Marco Antonio de Souza Brito - PPG

Transcrição

Marco Antonio de Souza Brito - PPG
UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
MARCO ANTONIO DE SOUZA BRITO
AMBIENTES, PRÁTICAS DE PESCA E TERRITORIALIDADE NO
USO DO LAGO GRANDE DE MANACAPURU (AM)
Manaus – Amazonas
2010
MARCO ANTONIO DE SOUZA BRITO
AMBIENTES, PRÁTICAS DE PESCA E TERRITORIALIDADE NO
USO DO LAGO GRANDE DE MANACAPURU (AM)
Dissertação de Mestrado apresentado ao
Programa de Pós-graduação em
Sociologia da Universidade Federal do
Amazonas, como requisito para a
obtenção do grau de Mestre em
Sociologia.
ORIENTADOR: PROF. DR. ANTONIO CARLOS WITKOSKI
Manaus – Amazonas
2010
(Catalogação realizada pela Biblioteca Central da UFAM)
Brito, Marco Antonio de Souza
B862a
Ambientes, práticas de pesca e territorialidade no uso do Lago
Grande de Manacapuru (AM) / Marco Antonio de Souza Brito. Manaus: UFAM, 2010.
179 f.; il. color.
Dissertação (Mestrado em Sociologia) –– Universidade Federal
do Amazonas, 2010.
Orientador: Prof. Dr. Antonio Carlos Witkoski
1. Pesca de subsistência - Amazônia 2. Pescadores – Amazônia –
Condições sociais 3. Territórios de pesca 4. Conhecimentos
tradicionais I. Witkoski, Antonio Carlos II. Universidade Federal do
Amazonas III. Título
CDU 639.2.05(811.5)(043.3)
MARCO ANTONIO DE SOUZA BRITO
AMBIENTES, PRÁTICAS DE PESCA E TERRITORIALIDADE NO USO DO
LAGO GRANDE DE MANACAPURU (AM)
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-graduação em Sociologia da
Universidade Federal do Amazonas,
como requisito para a obtenção do grau
de Mestre em Sociologia.
BANCA EXAMINADORA
PROF. DR. ANTONIO CARLOS WITKOSKI
Programa de Pós-graduação em Sociologia - UFAM
PROFª. DRª. LÚCIA DA COSTA FERREIRA
Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais - UNICAMP
PROF. DR. MANOEL DE JESUS MASULO DA CRUZ
Programa de Pós-graduação em Geografia - UFAM
AGRADECIMENTOS
A Agradeço à FAPEAM – Fundo de Amparo à Pesquisa na Amazônia – pela bolsa
de estudo concedida. À Universidade Federal do Amazonas pela realização das atividades
do Programa de Pós-Graduação em Sociologia – PPGS / UFAM.
Aos ribeirinhos e pescadores das localidades Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de
Cima pela minha inserção no mundo da pesca. Sou eternamente grato pelos seus
ensinamentos.
Ao
professor
Dr.
Antonio
Carlos
Witkoski
pelo
esforço,
dedicação
e
comprometimento ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia, e com mesmo empenho e
paciência nos momentos de orientação desse trabalho, que foi desde o empréstimo de vários
livros, perpassando pelas idéias e elaboração de formulários de pesquisa e pelas discussões
coletivas envolvendo o grupo de pesquisa por ele organizado – projeto PPG7.
Aos colegas de pesquisa do projeto rede BASPA / PPG7 pelos ensinamentos e
esclarecimentos sobre o tema principal da pesquisa: “recursos pesqueiros”. Especialmente
ao Sérgio (Serginho), à Suzy C. P. Silva, ao Pedro Rapozo e ao Raniere Garcez pelo apoio
intelectual e produção dos gráficos inseridos neste trabalho.
Aos professores Henrique do S. Pereira, Márcia R. Calderipe e Manoel de J. Masulo
da Cruz pela leitura, críticas e colaborações dadas a este trabalho.
Aos meus pais, que mesmo à distância me deram e dão total apoio, carinho e boas
energias. Ao meu tio César, Giane e família pelo apoio incondicional em minha formação
acadêmica e, acima de tudo pela afetividade e solidariedade. Sou eternamente Grato. À
Kariny Texeira de Souza, minha companheira de todas as horas, de amor e paciência no dia
a dia de nossas vidas.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS /UFAM) pelo
incentivo e apoio intelectual durante este período de nossa formação. As aulas e as trocas de
idéias em sala de aula foram valiosas. Aos colegas do Programa de Pós-Graduação em
Sociologia, obrigado pelo companheirismo e apoio intelectual.
Agradeço aos amigos do NUSEC / UFAM pela amizade profissional e lazer de todas
as horas, em especial à professora Therezinha de Jesus Pinto Fraxe pelos ensinamentos,
oportunidade e apoio intelectual.
Aos professores visitantes do nosso Programa de Pós-Graduação em Sociologia,
somos gratos pela participação e incentivo ao início desse compromisso social e acadêmico.
À memória de meu avô Pedro Lobato Brito
RESUMO
Este trabalho aborda as práticas de pesca e a territorialidade dos pescadores de subsistência e
pescadores comerciais das localidades Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima no uso
do lago Grande de Manacapuru (AM). O estudo realizado a partir das fases do ciclo
hidrológico da região (enchente/cheia/vazante/seca) ressaltou a importância do
conhecimento dos pescadores como a dimensão por excelência das práticas de pesca que
viabilizam, por intermédio de práticas tradicionais, o manejo e a conservação da natureza –
dos peixes e seus habitats. Na ocasião das atividades, verificou-se que o ponto de pesca mais
praticado é o lanço de igapó, local “bom” de captura, sendo também o momento da
aprendizagem das crianças a serem socializadas na atividade pesqueira. Acompanhando as
rotinas de trabalho, observou-se que o lago Grande e o Paraná do Anamã são lugares
aquáticos vitais para estas localidades, pois não secam totalmente em períodos de estiagem
(seca). Este fato permitiu compreender os acordos informais subjacentes às práticas de
pesca, bem como identificar os principais conflitos e as “possíveis iniciativas locais” de
intervenção na apropriação desses e de outros ambientes e seus recursos, com base nos
interesses e necessidades das próprias localidades.
Palavras-chave: Conhecimento; Práticas de pesca; território de pesca.
.
ABSTRACT
This works approach about the subsistence and commercial fishermen’s fishery practice and
territoriality from the Cajazeira, Jaiteua de Baixo and Jaiteua de Cima localities at the
Manacapuru Big Lake (Amazon). This study was realized starting in the regional
hydrological cycle (rising/flood/receding/dry) and shows the importance of fishermen
knowledge as a Excellency dimension for the fishery practice that was possible due to its be
intermediated by the traditional practice, management and the environment conservation –
fish and its habitats. During the fisheries practice, was verified that the fisheries sector more
used was the lanço de igapó, good place for fish capture, be came also the learning time
from kids that was socialized with fisheries activities. Accompany the works routine we
observed that the Manacapuru Big Lake and the Paraná do Anamã were the vital aquatic
places for these localities, because these fisheries place does not dry completely during the
dry season. This fact permit us to understand the informal agreements congruent with the
fisheries practice, as well to identify the main fisheries conflicts and the possible local
initiative for interventions the appropriation of the fisheries environment and other
resources, based on localities interest and needs.
Key word: knowledge; fishery practice; fishery territory
LISTA DE FIGURAS
Figura
1–
Localização do rio Manacapuru e do lago Grande.............................
20
Figura
2–
Comunidade Nossa Senhora do Perpétuo Socorro – Cajazeira .........
21
Figura
3–
Comunidade Nossa Senhora Aparecida – Cajazeira. .........................
22
Figura
4–
Comunidade Santo Antonio – Jaiteua de Baixo.................................
22
Figura
5–
Comunidade Nossa Senhora do Perpétuo Socorro – Jaiteua de Cima
23
Figura
6–
Comunidade Santa Izabel– Jaiteua de Cima ......................................
24
Figura
7–
Comunidade Assembleia de Deus Tradicional – Jaiteua de Cima ....
25
Figura
8–
Comunidade Assembleia de Deus – Jaiteua de Cima ........................
25
Figura
9–
Mapa da área de estudo: comunidades participantes da pesquisa ......
26
Figura 10 –
Paisagem do lago Grande de Manacapuru .........................................
32
Figura 11 –
Paisagem do Igarapé da Cajazeira no período da seca........................
34
Figura 12 –
36
Figura 13 –
a) Terraço que geralmente inunda; b) Terraços possíveis de
inundação dependendo da intensidade da cheia (espacialidade e
volume) ..............................................................................................
Terra alta: lugar possível de inundação .............................................
Figura 14 –
O lago Grande: entremeado por ilhas. ...............................................
39
Figura 15 –
Imagem de satélite do lago Grande de Manacapuru: período da seca
/ 2005; Período cheia / 2007...............................................................
O igapó ...............................................................................................
42
51
Figura 18 –
a) Comunidade Nossa Senhora do Perpétuo Socorro; b) Comunidade
Nossa Senhora Aparecida -- Cajazeira .........................
a) Cajazeira: período da seca; b) Cajazeira: período da cheia...........
Figura 19 –
a) transporte; b) pontes; c) varadouros; d) cacimbas .........................
56
Figura 20 –
O calendário das atividades produtivas. ............................................
57
Figura 21 –
Produção de farinha...........................................................................
58
Figura 22 –
O período da seca em Jaiteua de Baixo.............................................
61
Figura 23 –
Cacimba ............................................................................................
64
Figura 24 –
Trapiche: lugar para lavar utensílios domésticos e ponte improvisada
65
Figura 25 –
O calendário das atividades produtivas em Jaiteua de Baixo ............
65
Figura 26 –
Paraná do Tauari no período da seca .................................................
68
Figura 27 –
Paraná do Seringa no período da seca ...............................................
69
Figura 28 –
Território da comunidade Nossa Senhora do Perpétuo Socorro
sujeito à inundação. Jaiteua de Cima .................................................
70
Figura 16 –
Figura 17 –
37
44
54
Figura 29 –
Ponte improvisada ..............................................................................
72
Figura 30 –
Calendário das atividades produtivas realizadas em Jaiteua de Cima
72
Figura 31 –
O roçado em Cajazeira .......................................................................
95
Figura 32 –
Pescadores citadinos ..........................................................................
103
Figura 33 –
Preparo de um lanço (floresta alagada): época da seca ......................
115
Figura 34 –
Pesca no lanço (floresta alagada): época da enchente ........................
116
Figura 35 –
Preparo de um lanço de terra firme: época da seca ............................
121
Figura 36 –
122
Figura 38 –
Preparo e atuação da pesca de lanço de terra firme no lago São
Lourenço, Manacapuru ......................................................................
Perfil da malha, instrumentos de confecção de malhadeiras e
malhadeiras coloridas ........................................................................
Peixe preso na tramalha .....................................................................
Figura 39 –
Caniços ...............................................................................................
128
Figura 40 –
128
Figura 42 –
Composição do arco e flecha; 2) flecha montada; 3) partes físicas da
flecha azagainha; 4) ilustração da montagem; 4) o pescador
manuseando-a ....................................................................................
O arpão. Da esquerda para direita: 1) tipos de arpão; 2) haste e
manuseio; 3) arpoeira; 4) ponteira perfurante do arpão; 5) orifício de
encaixe da ponteira .............................................................................
Pontos de desmatamento às margens do igarapé da Cajazeira ..........
Figura 43 –
Imagem de satélite do lago Grande – cheia ........................................
178
Figura 44 –
Imagem de satélite do lago Grande – seca .........................................
179
Figura 37 –
Figura 41 –
126
127
129
152
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 1 –
53
Gráfico 4 –
Intensidade da atividade pesqueira dos pescadores de Cajazeira.
Enchente: o melhor preço do pescado e média dificuldade de
captura; Vazante/Seca: períodos de maior fartura e captura em
quantidade de pescado. Pescado barato ..............................................
Intensidade da atividade pesqueira dos pescadores de Jaiteua de
Baixo. Enchente: o melhor preço do pescado no mercado, porém de
difícil captura; Vazante/Seca: períodos de maior fartura, facilidade
de captura em quantidade de pescado, porém preço barato no
mercado ..............................................................................................
Intensidade da atividade pesqueira dos pescadores de Jaiteua de
Cima. Enchente: melhor preço do pescado no mercado e relativa
facilidade de captura; Vazante/Seca: períodos de maior fartura,
facilidade de captura em quantidade de pescado, porém preço barato
no mercado .........................................................................................
Instituições religiosas .........................................................................
Gráfico 5 –
Pescadores de subsistência e pescadores comerciais ..........................
92
Gráfico 6 –
Atividades criatórias ............................................................................
96
Gráfico 7 –
Peixes mais comercializados e capturados nos lanços de pesca .........
119
Gráfico 8 –
125
Gráfico 9 –
Apetrechos de pesca mais utilizados para pesca comercial e
subsistência .........................................................................................
Territórios de pesca: Cajazeira. ...........................................................
Gráfico 10 –
Apetrechos de pesca ............................................................................
150
Gráfico 11 –
Territórios de pesca. ............................................................................
154
Gráfico 12 –
Apetrechos de pesca ............................................................................
159
Gráfico 13 –
Territórios de pesca: Jaiteua de Baixo ................................................
163
Gráfico 14 –
Apetrechos de pesca. ...........................................................................
164
Gráfico 2 –
Gráfico 3 –
62
71
87
144
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 –
Critérios para escolha das comunidades ............................................
19
Quadro 2 –
Associações de comunidades .............................................................
79
Quadro 3 –
Quadro 4 –
Nível de participação social e política na Colônia de Pescadores de 82
Manacapuru Z 9..................................................................................
Nível escolar........................................................................................ 85
Quadro 5 –
O cultivo nos quintais das moradias em Cajazeira ............................
96
Quadro 6 –
Indicação dos elementos presentes na pesca do lanço ......................
117
Quadro 7 –
Critérios biológicos e ecológicos para confecção dos apetrechos de
pesca ..................................................................................................
Ambientes de pesca............................................................................
123
Quadro 8 –
141
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................
14
CAPÍTULO I – A DINÂMICA ECOLÓGICA DO LAGO GRANDE DE
MANACAPURU .....................................................................................................
1.1 O lago Grande de Manacapuru ...........................................................................
30
1.2 O tempo ecológico do ciclo das águas nas localidades Cajazeira, Jaiteua de
Baixo e Jaiteua de Cima......................................................................................
1.2.1 Cajazeira .........................................................................................................
1.2.2 Jaiteua de Baixo ..............................................................................................
1.2.3 Jaiteua de Cima ..............................................................................................
CAPÍTULO II – PESCADORES E PESCARIAS .............................................
2.1 A vida comunitária dos pescadores e de suas famílias nas localidades
Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima .........................................................
2.2 A família do pecador como unidade de trabalho nas atividades produtivas ........
45
2.3 Pescadores de subsistência, pescadores comerciais e “pescadores de fora” .....
2.4 Reflexões sobre tempo ecológico e tempo social na pequena produção
92
104
31
49
60
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88
mercantil simples .......................................................................................................
2.5 A pesca no lanço: o conhecimento básico para o manejo da pesca de
subsistência e pesca comercial .................................................................................
2.6 Apetrechos de pesca ..........................................................................................
CAPÍTULO III – TERRITÓRIOS DE PESCA NO USO DO LAGO
GRANDE DE MANACAPURU ...........................................................................
3.1 A noção de território de pesca .........................................................................
110
3.2 Territórios de pesca e as relações sociais estabelecidas ...................................
138
3.2.1 Cajazeira ..........................................................................................................
143
3.2.2 Jaiteua de Cima ...............................................................................................
154
3.2.3 Jaiteua de Baixo...............................................................................................
162
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..............................................................................
166
REFERÊNCIAS ....................................................................................................
170
ANEXO ...................................................................................................................
177
123
132
133
14
INTRODUÇÃO
O estudo objetivou identificar e compreender as práticas de pesca e as
territorialidades dos usuários dos recursos ictiofaunísticos do lago Grande de Manacapuru, a
partir de agentes sociais estabelecidos em três localidades rurais do município de
Manacapuru (AM): Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima. A caracterização espacial
(física) do lago Grande Manacapuru também compôs os objetivos da pesquisa.
Para esclarecimento do leitor, o termo localidade para cada um dos nomes acima, e
apenas como condição operacional da pesquisa, refere-se aos locais onde estão estabelecidas
as comunidades ribeirinhas situadas nas proximidades das margens do lago Grande de
Manacapuru. Os nomes dados às localidades são de autoria dos moradores e convencionado
historicamente por eles, cuja forma de classificação ou nomeação do local de moradia não
consta nas definições do IBGE1 ou em mapas (na época do estudo exploratório) de
identificação de bairros ou assentamentos do município de Manacapuru. O principal
referencial geográfico dado às localidades por trabalhadores do Terminal Pesqueiro2 de
Manacapuru, era de estarem próximas ao lago Grande de Manacapuru ou identificadas por
comunidades próximas à sede do município. A comunidade Nossa Senhora das Graças, por
exemplo, situada às margens do rio Solimões e área focal dos estudos do PIATAM3 / UFAM
cedeu informações sobre a localização e identificação das lideranças dessas localidades.
A importância da pesca na Amazônia é antiga e fundamental para a economia das
populações ribeirinhas (BATISTA et al., 2004). A pesca comercial e a pesca de subsistência
são, sem dúvida, as principais atividades aquática da várzea, onde a maior parte dos
moradores pescam por meio período ou em tempo integral. Portanto, o peixe é a principal
fonte de proteína e de renda (BARTHEM et al., 1995; ALMEIDA et al., 2006). Bayley &
Petrere Jr. (1989) estimaram que em 1980 cerca de 61% do total de capturas do Estado do
Amazonas (125,665 t) era de origem do mercado local e das pescarias de subsistência.
O lago Grande de Manacapuru é uma região de alto potencial pesqueiro onde os
moradores e pescadores utilizam o pescado para o consumo e para abastecer os mercados
locais e de outros municípios. O volume de pescado comercializado no mercado de
Manacapuru é considerado o terceiro maior do Estado do Amazonas, depois de Manaus e
1
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
Este terminal pesqueiro flutuante fica atracado na beira do Rio Solimões, em frente à cidade de Manacapuru e
recebe o pescado vindo de embarcações maiores conhecidos localmente como motores de pesca. Furtado
(1993) reconhece como barcos geleiros.
3
Projeto Inteligência Socioambiental Estratégica da Indústria de Petróleo na Amazônia – PIATAM.
2
15
Tabatinga (RUFFINO et al., 2004). A maior parte desse pescado é proveniente da pesca de
subsistência e comercial realizada nos lagos do sistema lago Grande de Manacapuru e rio
Solimões.
Diante deste contexto de intensificação da pesca mercantil realizada no lago Grande
Manacapuru, a problemática da pesquisa sugere se a experiência de vida, as práticas de
pesca e a territorialidade dos pescadores das localidades Cajazeira, Jaiteua de Baixo e
Jaiteua de Cima podem ser pensados como elementos culturais de iniciativas para o manejo
racional dos recursos pesqueiros. Esta hipótese parte do princípio que é preciso entender que
as culturas tradicionais possuem singularidades por se desenvolverem como forma de
produção mercantil simples onde não prevalece a acumulação capitalista em grande escala,
já que o uso da força de trabalho assalariado é reduzido e as atividades econômicas são de
pequena escala. A combinação das atividades econômicas para garantir a subsistência
(agricultura, pesca e extrativismo) com o uso de tecnologias simples, de pouco impacto
ambiental e de forte identificação entre os grupos sociais em razão de sua cultura,
contribuem para as possibilidades do manejo racional dos recursos pesqueiros (DIEGUES,
1983).
Deste modo, trabalhamos com comunidades rurais que se apropriam dos ambientes
aquáticos e terrestres para aquisição dos seus meios de vida. Não se tratando
necessariamente de comunidades de pescadores.
O conceito de territorialidade utilizado na pesquisa se configura como um importante
referencial para entender o esforço coletivo dos pescadores das localidades Cajazeira,
Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima em usar, ocupar e controlar parcela específica de seu
meio social e biofísico – os pontos de pesca –, e com ela se identificar, convertendo-a em
seu território – território muitas vezes bem delimitado e conflitante (LITTLE, 2002). Neste
estudo, subjaz à noção de territorialidade, o conhecimento e as ações dos pescadores ao se
apropriarem dos recursos ictiofaunísticos do lago Grande de Manacapuru, necessários à
manutenção do seu modo de vida.
As motivações da pesquisa, num período anterior ao estudo, surgiu do meu interesse
associado às motivações de um grupo de professores da Universidade Federal do Amazonas4
4
Esta pesquisa foi coordenada pela profª. Dra. Therezinha de Jesus Pinto Fraxe e pelo prof. Dr. Antônio Carlos
Witkoski (NUSEC/UFAM). Este projeto fez parte de um projeto interdisciplinar chamado Bases Para
Sustentabilidade da Pesca na Amazônia Central (BASPA) e constituído de outros projetos sub-redes sob
coordenação dos seguintes pesquisadores e respectivos projetos: Prof. Dr. Alexandre Almir Ferreira Rivas –
Estimativa de Valor de Não-Uso de Recursos Ambientais na Região do Lago de Manacapuru (AM); Prof. Dr.
16
(UFAM), interessados em estabelecer uma proposta de manejo e uso coletivo de recursos
comum (nesse caso, recursos pesqueiros), envolvendo as comunidade ribeirinhas e os
pescadores da sede de Manacapuru e de outras áreas vizinhas que utilizavam o lago Grande
de Manacapuru.
As hipóteses para a intenção do manejo para as comunidades ribeirinhas no âmbito
do lago Grande de Manacapuru, partiram dos pesquisadores tendo como fundamento a
sobrepesca de algumas espécies da ictiofauna deste complexo, como é o caso do tambaqui
(Colossoma macropomum) e do tucunaré (Cichla monoculus), o primeiro, já em condição de
sobrepesca, e o último, próximo desta condição como previsto por Soares (et al., 2008).
Para levar adiante esta proposta, os professores coletivamente elaboraram um projeto
interdisciplinar chamado BASPA – Bases Para a Sustentabilidade da Pesca na Amazônia –,
um projeto “guarda chuva” (amplo) envolvendo algumas disciplinas acadêmicas, tais como
biologia, engenharia de pesca, economia e sociologia. Este projeto foi financiado pelo
PPG75 em parceria com MCT/CNPq.
Eu, na condição de aluno de graduação e bolsista de iniciação científica, fiquei
interessado em participar da pesquisa, tendo como orientador o Prof. Dr. Antonio Carlos
Witkoski, sob o projeto “O caboclo ribeirinho e as modalidade de pesca no uso do lago
Grande de Manacapuru”.
Metodologia
A pesquisa de campo foi realizada por meio do método etnográfico. A opção pela
etnografia teve como propósito converter o observador em parte da observação, na medida
em que reinterpreta as representações sociais dos informantes, através do enfoque
interpretativo desses atores sobre o fato ou fenômeno interpretado e compreendido pelo
Carlos Edwar de Carvalho Freitas – Estratégias de Manejo Pesqueiro na Amazônia; Profª. Dra. Maria Gercília
Mota Soares – Biologia e Ecologia de Peixes de Lago de Várzea: subsídios para conservação e uso dos
recursos pesqueiros da Amazônia; Prof. Dr. Antônio José Inhamuns da Silva – Manejo Tecnológico Racional
do Pescado em Comunidades Rurais no Estado do Amazonas; Prof. Dr. Miguel Petrere Jr. – Manejo em Lagos
de Várzea Utilizando Modelos de Produção;
5
O Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil - PPG7 é uma ação conjunta do governo
brasileiro, da sociedade civil brasileira e da comunidade internacional, visando à conservação das florestas
tropicais do Brasil. Entre os subprogramas que compõem o Programa Piloto, o Subprograma de Ciência e
Tecnologia - SPC&T Fase II tem como objetivo promover e disseminar, de forma coordenada, pesquisas
científicas e tecnológicas em áreas relevantes do conhecimento, visando contribuir para a conservação e o
desenvolvimento sustentável da Região Amazônica.
17
pescador. Ou seja, “transformar” o “exótico” (o pouco conhecido ou o diferente) em
“familiar” (em conhecimento) (DAMATTA, 1987).
Geertz (1989) percebe o trabalho etnográfico sob a seguinte perspectiva:
Fazer a etnografia é como tentar ler um manuscrito estranho, desbotado,
cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários
tendenciosos, escritos não com os sinais convencionais do som, mas com
exemplos transitórios de comportamento modelado (GEERTZ, 1989, p.
20).
O estudo etnográfico se revela um método de observação eficaz, pois pela
intensidade do trabalho de campo permite apreender os significados das práticas e
representações sociais, ou seja, “começamos com as nossas próprias interpretações do que
pretendem nossos informantes ou que achamos que eles pretendem, e depois passamos a
sistematizá-las para melhor compreendê-las” (GEERTZ, 1989, p. 7).
Para Geertz (1989) o trabalho etnográfico enfrenta as seguintes dificuldades:
“[o exercício etnográfico envolve] uma multiplicidade de estruturas
conceptuais complexas, sobrepostas ou amarradas umas às outras, que são
simultaneamente estranhas, irregulares e implícitas, e que ele [o
etnográfico] tem que, de alguma forma, primeiro apreender [o fenômeno] e
depois apresentar. E isso é verdade em todos os níveis da atividade do seu
trabalho de campo (p. 7).
Nessa perspectiva etnográfica é que focalizamos, por exemplo, os aspectos sociais na
pesca de lanço e as regras sociais estabelecidas em seu uso pelos pescadores das localidades
pesquisadas.
Área de estudo
O município de Manacapuru está localizado na 7ª Sub-Região na região dos rios
Negro – Solimões, com altitude de 34 m acima do mar, tendo uma área territorial 7.602 km²
(Biblioteca Virtual do Amazonas, 2007). O acesso a Manacapuru pode ser via rodovia,
através da estrada Manuel Urbano AM-070 que liga o município à cidade de Manaus. O
acesso pode ser feito também por via fluvial através do rio Solimões. Manacapuru se
encontra distante de Manaus por via terrestre a 85 km e por via fluvial a 102 Km.
Nessa região está situado o lago Grande de Manacapuru. Esse lago é caracterizado
pela flutuação do nível das águas com cerca de 10 m, os quais resultam em períodos de cheia
e seca bem definidos (FREITAS & GARCEZ, 2004). É formado por uma rede de ambientes
aquáticos que se conectam ou se separam durante as fases do ciclo hidrológico
18
(enchente/cheia/vazante/seca), por canais, lagos, furos, igarapés, paranás e restingas que
formam uma grande área de várzea. Essas áreas são habitadas por grande variedade de
espécies de peixes migradoras e residentes (FREITAS & GARCEZ, 2004), sendo por isso,
de interesse amplo para a pesca comercial regional.
As principais atividades do setor primário no município de Manacapuru se
encontram, em sua maioria, na zona rural. Entre elas, destacam-se, como produção de
várzea, a agricultura da mandioca, juta, milho, feijão e hortaliças em geral. E na produção da
fruticultura, destacam-se o cultivo do maracujá, cupuaçu, mamão, abacaxi, banana e abacate.
O extrativismo vegetal ainda é uma atividade de grande significado para a economia local
através da exploração de produtos, tais como, a borracha, a pupunha e a madeira. A pecuária
se destaca pela criação de bovinos, equinos e suínos.
No município, também, executam-se atividades de avicultura, principalmente a
criação de galinhas de postura destinadas ao consumo local e, parte do excedente, vendido
aos municípios vizinhos. A atividade pesqueira apresenta forte desempenho, destacando-se
pela alta rentabilidade. Dentre as espécies mais populares e consumidas, destacam-se o pacu,
a sardinha, o curimatã, a branquinha, o matrinxã, o acari-bodó e peixes lisos em geral. A
piscicultura (criação de peixes em cativeiro) é uma das atividades em crescimento no setor
pesqueiro local, havendo a existência de viveiros de algumas espécies, tais como, o
tambaqui e o pirarucu; espécies saborosas pela qualidade e textura da carne, sendo muito
apreciados pelas redes de restaurantes em geral, redes de hotéis e redes de supermercados.
As qualidades destas espécies agregam alto valor de rentabilidade e o público consumidor,
mais frequentes são clientes da classe média e alta (BIBLIOTECA VIRTUAL DO
AMAZONAS, 2007).
De acordo com Vandick Batista et al., (2004), embora, nesta área, já tenham sido
criados pesqueiros reais desde o século XVII, e houvesse ocorrido movimentos migratórios
relacionados ao extrativismo da borracha desde o século XIX, a pesca no rio Solimões até a
década de 1960 era considerada de baixa exploração em decorrência da pequena densidade
populacional existente nas cidades da Amazônia brasileira em geral, principalmente na
Amazônia Central – região de Manacapuru e cidades vizinhas. Porém essa situação foi
transformada significativamente a partir dos projetos desenvolvimentistas implementados
pelo governo federal (a Zona Franca de Manaus e Projetos de Assentamentos Rurais) a partir
da segunda metade da década de 1960 (século XX) em diante, na região (KOHLHEPP, 1984
apud BATISTA et al., 2004). Como conseqüência ocorreu um grande aumento demográfico
na área urbana de Manacapuru, e principalmente em Manaus e cidades vizinhas, exigindo,
19
como desdobramento, o aumento e investimentos em novas forças produtivas (adicionais às
já existentes), tais como: compra de novas tecnologias de pesca – barcos movidos a diesel,
redes de pesca, construção de frigoríficos – e, consequentemente, exigindo mais mão de
obra, isto é, mais pescadores com dedicação exclusiva.
Na ocasião da pesquisa, somam-se cerca de 20 mil pescadores profissionais lotados
em Manaus e em diversas cidades do interior do estado do Amazonas, atividade profissional
exercida predominante pela população ribeirinha (BATISTA et al, 2004). Em Manacapuru
são 2.300 pescadores associados à Colônia de Pescadores Z9 (instituição que organiza e
regulamente a atividade de pesca) acrescidos também de outros pescadores que não são
associados às Colônias de Pescadores.
Diante dessa nova realidade social, a pesca no município de Manacapuru é o reflexo
do processo de capitalização do setor pesqueiro, incentivada principalmente pela cidade de
Manaus, o maior consumidor de pescado; lembrando que boa parte da produção de pescado
é destinada para outros estados brasileiros, principalmente, os da região Sudeste e também
para outros países.
Para a seleção das comunidades (distribuídas nas três localidades) a serem
envolvidas na pesquisa, tomaram-se por base, os critérios definidos no workshop PPG7,
realizado em Manaus no dia 28 de Maio de 2006. Esse workshop foi realizado pelas equipes
(coordenadores e pesquisadores) do projeto BASPA que, por sua vez, foram responsáveis
pela execução dos projetos sub-redes que constituem o primeiro. Na ocasião do evento,
foram colocadas algumas questões comuns e peculiares a todas as equipes. Algumas dessas
questões faziam a seguinte referência: 1) critérios de escolha das comunidades; 2) o
planejamento das viagens a campo; e 3) a aplicação conjunta dos instrumentos de coleta de
dados. No decorrer do evento, foram abordados alguns critérios para a seleção das
comunidades. Esses critérios foram baseados em aspectos espaciais (geográficos),
ecológicos e socioeconômicos (Quadro 1).
Aspectos/Variáveis
Espacial
Atividade econômica
Comunidade próxima da cidade de
Manacapuru
Comunidades que não atuam
intensamente na pesca comercial
Comunidade intermediária à cidade
de Manacapuru
Comunidades em transição na
pesca comercial
N. de Famílias
20
Comunidade distante da cidade de
Manacapuru
Comunidades que atuam
intensamente na pesca
comercial
Entre 15 a 30 famílias
Quadro 1 – Critérios para escolha das comunidades.
Fonte: Relatório do Workshop PPG7, Maio (2006).
A primeira pesquisa de campo foi realizada quase no final do primeiro semestre de
2006, mais precisamente no período de 26 a 29 de maio. A viagem teve como objetivo,
através do estudo exploratório, o reconhecimento das comunidades situadas em áreas de
influência do lago Grande, lago São Lourenço e rio Manacapuru. As equipes da sub-rede
saíram de Manaus no dia 26 de maio, às 21:00 h com destino à cidade de Manacapuru (sede
do município). Após a chegada, os coordenadores da excursão entraram em contato com o
Sr. Mureru, morador e proprietário de uma casa flutuante6 situada às margens do rio
Solimões, que os guiou pelo rio Manacapuru até a comunicação com a última comunidade
visitada (Figura 1).
Figura 1 – Localização do rio Manacapuru e do lago Grande.
Fonte: Imagem de Satélite Landsat, 2001.
.
Após o embarque do Sr. Moreru, o barco-pesquisa partiu do município de
Manacapuru, próximo ao principal terminal pesqueiro (recebimento e venda de pescado), em
6
Tipo de habitação comum nos ecossistemas de várzea baixa, construídos sobre prancha de madeira ou bóias
do tipo tronco de madeira de baixa densidade permitindo acompanhar o movimento das águas decorrente da
sazonalidade.
21
direção aos locais da pesquisa. Assim, depois de algum tempo de viagem, a equipe se
deparou com a localidade denominada Cajazeira. Nesse local, visitamos a primeira
comunidade, então chamada Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e fizemos o contato com
Sr. Raimundo Corrêa da Silva, morador e líder comunitário. Ele nos repassou o quantitativo
de 15 famílias residentes na localidade e as principais atividades de trabalho baseadas na
agricultura e pesca de subsistência (Figura 2).
Figura 2 – Comunidade Nossa Senhora do Perpétuo Socorro –
Cajazeira.
Fonte: Dados de campo (2006).
.
A segunda comunidade visitada, também estabelecida na mesma localidade, foi
Nossa Senhora Aparecida. A liderança local representada pelo Sr. José Delemir Dias da
Silva nos informou que a comunidade reunia cerca de 20 famílias e as principais atividades
de trabalho baseadas na agricultura e pesca de subsistência, característica muito semelhante
à comunidade Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, também influenciada pela proximidade
(Figura 3).
22
Figura 3 – Comunidade Nossa Senhora Aparecida.
Fonte: Dados de campo (2006).
A terceira comunidade visitada foi Santo Antônio, estabelecida na localidade
denominada Jaiteua de Baixo. De acordo com os relatos do Sr. Abdias Monteiro, líder da
comunidade, a mesma reúne cerca de 20 famílias. Parte significativa das famílias se dedica
exclusivamente à pesca comercial, a outra parcela mantém suas atividades pesqueiras,
associadas às outras atividades, tais como, agricultura, extrativismo e atividades criatórias
(Figura 4).
Figura 4 – Comunidade Santo Antonio.
Fonte: Dados de campo (2006).
.
A quarta comunidade visitada foi Nossa Senhora do Rosário. Neste local, residem
cerca de 25 famílias que realizam atividades criatórias de pequenos animais, tais como,
galinhas, porcos e poucas cabeças de gado e pescam apenas para subsistência. A liderança
23
da comunidade na época da visita não estava na comunidade. Então, o Sr. Francisco Rosano
Lopes Monteiro, morador da comunidade Santo Antônio (Jaiteua de Baixo) e ex-agente da
Secretaria de Desenvolvimento Sustentável – SDS – de Manacapuru foi solidário com
relação às informações acima explicitadas, acompanhando-nos também ao local.
A quinta comunidade visitada foi Boa Esperança, localizada em Jaiteua do Meio. Na
ocasião, não foi possível obter informações a respeito desta comunidade, pois o seu líder e a
maioria dos moradores estavam em comemoração festiva em outra comunidade não descrita
nesse trabalho. Mais uma vez, o Sr. Francisco Rosano Lopes Monteiro, morador da
comunidade Santo Antônio, mediou a comunicação com a comunidade, mas não pôde
prestar informações mais precisas sobre a mesma.
A sexta comunidade visitada foi Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, situada na
localidade Jaiteua de Cima. O líder comunitário, o Sr. Raimundo Martins Corrêa, nos
informou que nela residem aproximadamente 25 famílias. A produção econômica local está
baseada em atividades de pesca, agricultura e criação de pequenos e médios animais. As
atividades são desempenhadas para a subsistência, mas parte significativa da produção se
destina à comercialização (Figura 5).
Figura 5 – Comunidade Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Jaiteua de Cima.
Fonte: Dados de campo (2006).
A última comunidade visitada foi Nova Esperança, localizada no paraná do Ajará (na
área de influência direta do lago Grande), próxima às imediações do rio Solimões. O líder
comunitário, o Sr. José Lino Duarte dos Santos informou que as principais atividades
econômicas são a pesca comercial e a agricultura, havendo, também, a prática de atividades
criatórias – criação de gado. De acordo com os moradores, a comunidade utiliza cerca de
24
seis lagos onde realizam a atividade pesqueira. Em razão da impossibilidade de acesso a esta
comunidade no período da seca e pelo fato de estar muito distante das demais, optou-se por
não incluí-la nesta pesquisa.
As comunidades Assembleia de Deus Tradicional, Assembleia de Deus e Santa
Isabel situadas na localidade Jaiteua de Cima, não descritas acima, não foram visitadas no
primeiro estudo exploratório. Porém, em trabalho de campo posterior falamos com os líderes
comunitários dessas comunidades. O Sr. Smith Tavares da Silva, líder da comunidade Santa
Isabel mencionou a existência de 30 famílias, que praticam a pesca mais para a subsistência,
tendo como atividade principal a agricultura e a criação de animais (Figura 6).
Figura 6 – Comunidade Santa Izabel – Jaiteua de Cima.
Fonte: Dados de campo (2006).
.
A Sra. Maria Vera Lúcia Custódio da Silva, líder da comunidade Assembleia de
Deus Tradicional informou sua convivência com 30 famílias dedicadas principalmente a
pesca comercial, seguida da agricultura e do extrativismo (Figura 7).
25
Figura 7 – Comunidade Assembleia de Deus Tradicional. Jaiteua de Cima.
Fonte: Dados de campo (2006).
O Sr. Valdenir de Assis de Oliveira, líder da comunidade Assembleia de Deus,
afirmou que a comunidade tem aproximadamente 17 famílias, que se dedicam
fundamentalmente à agricultura e a pesca de subsistência (Figura 8).
Figura 8 – Comunidade Assembleia de Deus. Jaiteua de Cima.
Fonte: Dados de campo (2007).
As comunidades Nossa Senhora do Rosário e Nova Esperança, embora
apresentassem características importantes para a pesquisa, não foram incluídas neste
trabalho pelas dificuldades naturais de acesso durante o período da vazante, e mais difícil
ainda, na época da seca do ciclo hidrológico. A comunidade Boa Esperança não foi incluída
na pesquisa, porque estava em fase de agregação de moradores e reunindo na ocasião,
26
apenas cinco famílias. As atividades de trabalho das famílias eram desempenhadas, na
maioria das vezes, em comunidades vizinhas.
Diante desse contexto e de acordo com os coordenadores dos projetos sub-redes
baseados nos critérios estabelecidos no Workshop PPG7, as unidades sociais (comunidades)
participantes da pesquisa foram as seguintes: 1) comunidades Nossa Senhora do Perpétuo
Socorro e Nossa Senhora Aparecida estabelecidas em Cajazeira (3°14'31.00"S /
60°45'58.00"O). Próxima desta, está a localidade Jaiteua de Baixo (3°15'50.02"S /
60°45'9.37"O), onde está estabelecida a única comunidade, cujo nome é Santo Antônio. E
por último, a localidade Jaiteua de Cima (3°15'2.34"S / 60°51'55.92"O) que reúne quatro
comunidades: Santa Izabel, Assembleia de Deus Tradicional, Assembleia de Deus e Nossa
Senhora do Perpétuo Socorro. E verificou-se que, dependendo do ponto de partida, a
distância destas localidades para a sede do município de Manacapuru pode variar de
aproximadamente 0:45 h/min de motor (barco/voadeira) na época da cheia e/ou até 2:00 h
(ou mais) na época da seca, navegando através do canal principal e por múltiplos atalhos –
furos, paranás e igarapés (Figura 9).
Figura 9 – Mapa da área de estudo: comunidades participantes da pesquisa.
Fonte: Imagem do Google Earth 2006, com modificações.
27
Para a coleta de dados, trabalhamos com algumas técnicas de abordagem, tais como:
entrevistas abertas, formulários, mapas mentais, uso de GPS (georeferenciador de território),
câmera fotográfica, gravador de voz e diário de campo.
As entrevistas abertas são de natureza mais interativa, e permitiram tratar de temas
mais complexos que dificilmente poderiam ser investigados adequadamente, através de
formulários ou questionários (MINAYO, 2004).
Em torno de 14 (dez) entrevistas abertas foram realizadas com os chefes de famílias,
principalmente pescadores comerciais. Mas, nesse quantitaivo, incluiram-se entrevistas com
mulheres responsáveis integralmente pelo lar (3 donas de casa) e 3 (três) idosos. Nas
entrevistas, abordamos assuntos relativos ao manejo da pesca (conhecimentos e práticas), as
principais motivações/necessidades e os principais problemas enfrentados na atividadade
pesqueira em seus contextos de trabalho. A vida em comunidade, a história social das
famílias, a dificuldade financeira, as alternativas de trabalho e a contextualização das
especificidades socioambientais de cada localidade também foram abordadas.
Os formulários (MINAYO, 2004) foram aplicados às famílias, considerando como
critério, os agentes sociais que vivem exclusivamente ou quase exclusivamente da renda do
pescado e/ou aqueles agentes sociais que se consideraram pescadores comerciais;
geralmente chefes de famílias ou filhos mais velhos e, em determinadas situações, as
mulheres quando consideradas responsáveis pela família do ponto de vista financeiro ou do
provimento dos meios materiais de vida.
Os dados obtidos para composição dos gráficos foram originados do formulário
BASPA, cujo conteúdo se refere a perguntas, quadros e tabelas pertinentes aos aspectos da
prática da pesca (etnoconhecimento, etnoconservação dos recursos pesqueiros e dados
socioeconômico) em relação direta com as fases do ciclo hidrológico da região – enchente,
cheia, vazante e seca.
Este formulário coletou dados para as equipes sub-redes – ecologia de peixes,
biologia, socioeconomia e tecnologia do pescado – para facilitar a necessária compreensão e
interdependência entre áreas do conhecimento, permitindo assim a leitura mais ampla dos
processos culturais e materiais relacionando homem e natureza.
100% dos dados obtidos nos formulários BASPA expressam o quantitativo de 64
unidades aplicadas, isto é, abrangeu a expectativa de 40,7% do total de famílias existentes
nas localidades. De todos os gráficos elaborados, alguns correspondem, por exemplo, aos
ambientes de pesca mais utilizados pelos pescadores de subsistência e pescadores comerciais
28
das localidades, porém, os ambientes que foram mencionados de maneira esparsa não foram
apresentados nos gráficos.
Em barco alugado pelos coordenadores dos projetos sub-redes, as excursões
interdisciplinares para área de estudo foram realizadas mensalmente durante doze (12)
meses. Em seguida, realizadas bimestralmente totalizando dezoito (18) meses. O tempo de
excursão em cada ida a campo era de cinco (5) dias e máximo de dois (2) dias em cada
localidade, sendo necessário visitar todas as comunidades e suas respectivas lideranças.
Parcela significativa das excursões (sete viagens aproximadamente) foram destinadas à
aplicação dos formulários BASPA.
Utilizamos a observação participante, que permitiu descrever nos cadernos de campo
as observações in loco. Cardoso de Oliveira (2000) afirma que o ato de escrever o caderno
de campo é tarefa diária – no final do dia – após visitas aos grupos domésticos, uma vez que
o ato de escrever é simultâneo ao ato de pensar, é um caminho metodológico que marca o
fazer antropológico.
O capítulo I – A dinâmica ecológica do lago Grande de Manacapuru propõe a
descrição espacial do lago a partir da literatura especializada associada à percepção dos
pescadores das localidades Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima. A percepção dos
pescadores se refere ao conceito de representação social de Serge Mocovici (2003), que
sugere que a representação social é uma forma de conhecimento que expressa a experiência
de vida de qualquer grupo social. O relato de cada pescador acerca experiência de vida na
várzea, demonstra que as variações sazonais do lago Grande de Manacapuru interfere,
diretamente, em suas rotinas de trabalho exigindo atitudes adaptativas diante da escassez de
recursos.
O capítulo 2 – Pescadores e Pescarias deu ênfase à organização social dos
pescadores das localidades pesquisadas. Os conceitos de Lourdes Furtado (1993) – pescador
polivalente e pescador monovalente –, nos apoiou ao entendimento dos papéis sociais dos
pescadores de subsistência, pescadores comerciais e pescadores citadinos dadas às
peculiaridades e similaridades (ou seja, o que há de comum) de suas rotinas de trabalho. Este
capítulo abordou o conhecimento do pescador sobre o manejo e a conservação dos recursos
ictiofaunísticos. Na ocasião das atividades de pesca, verificou-se que a técnica de pesca mais
praticada nas localidades é o lanço, local “bom de pescaria”, sendo também o momento da
aprendizagem das crianças a serem socializadas na atividade pesqueira.
O capítulo 3 – Territórios de pesca no uso do lago Grande de Manacapuru objetivou
mapear os principais pontos de pesca e verificar as condutas territoriais dos pescadores das
29
localidades Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima a partir de seus próprios discursos.
Acompanhando as rotinas de trabalho dos pescadores, verificou-se que o lago Grande, o
lago do Jaiteua e o paraná do Anamã são pesqueiros vitais para estas localidades. Este fato
permitiu compreender os acordos informais subjacentes às práticas de pesca, bem como
identificar os principais conflitos e as possíveis iniciativas locais de intervenção na
apropriação desses e de outros ambientes e seus recursos, com base nos interesses e
necessidades das próprias localidades.
30
CAPÍTULO I
A DINÂMICA ECOLÓGICA DO LAGO GRANDE DE
MANACAPURU
O uso do lago Grande de Manacapuru enquanto espaço aquático para pesca, revela
os processos de interação entre o homem e o ambiente. Este capítulo aborda a caracterização
espacial do lago Grande de Manacapuru a partir da literatura científica referente à dinâmica
do ciclo das águas da várzea amazônica, articulada à percepção e ao conhecimento
(experiência) dos pescadores das localidades Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima
sobre as implicações do ciclo das águas em seu cotidiano.
Este exercício demonstra que as alterações paisagísticas ocorridas nas localidades
Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima como resultado do recuo da água do lago
Grande de Manacapuru (correspondente a fase terrestre da várzea), incide sobre os
territórios de pesca das localidades, exigindo mais esforço de trabalho e ajuste social a nova
realidade.
31
Os pescadores das localidades Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima
evidenciaram relatos sobre a dinâmica do ciclo das águas demonstrando como esse
fenômeno repercute em suas vidas. Serge Mocovici (2003) diz que o senso comum – a
experiência de vida – é uma forma de conhecimento, é uma representação social que se tem
da realidade. O autor afirma:
[...] A representação social é tudo aquilo que nos permite explicar o mundo
que nos cerca. [...] as representações sociais devem ser entendidas
articulando elementos afetivos, racionais e sociais, e integrando, ao lado da
cognição, da linguagem e da comunicação, a consideração das relações
sociais que afetam as representações (MOSCOVICI, 2003, p.6).
Nesta perspectiva de Serge Mocovici (2003) é que apresentaremos a espacialidade do
lago Grande de Manacapuru na perspectiva dos pescadores das localidades pesquisadas.
1.1 O lago Grande de Manacapuru
Saindo do principal terminal pesqueiro de Manacapuru e percorrendo o rio Solimões
até se conectar ao lago Grande, visualiza-se que o lago é um ambiente admirável pela sua
abrangência. Quem percorre seu leito de “voadeira7” inevitavelmente percebe a
espacialidade e o volume de água que abarca, e logo em seguida, vem à mente de um
simples observador interessado pela pesca a imediata dedução: “aqui parece ter muito
peixe”.
Numa ocasião, em trabalho de campo, solicitei ao senhor Lázaro, pescador comercial
da localidade Jaiteua de Cima, se ele poderia me levar para dar uma volta e apresentar o lago
Grande. Ele aceitou a proposta e logo em seguida nos preparamos para o passeio. Nesse
caminho, fui indagando sobre onde iniciara o lago Grande e onde terminara, ele respondeu:
“[...] o lago Grande começa lá “fora” e chega até aqui. Aqui é o lago do Jaiteua que a gente
chama” (L. S., pescador comercial, Jaiteua de Cima, 2007).
Depois de uns trinta minutos percorrendo o lago Grande, resolvemos retornar.
Percebi que o caminho de volta para a localidade Jaiteua de Cima não foi o mesmo. Do
caminho anterior partimos de Jaiteua de Cima, passando pelo Paraná do Tauari, que é um
canal extenso, ligando-se diretamente ao lago do Jaiteua até chegar ao lago Grande.
Certamente fiquei confuso, pois o que eu estava visualizado como lago do Jaiteua não era
7
A “voadeira” é uma embarcação metálica e motorizada de pequeno porte utilizada como meio de transporte
em ambientes aquáticos da Amazônia.
32
apenas um lago extenso e longo, ele se coadunava com pequenas ilhas arborizadas e
caminhos diversos parecendo labirintos, que ele chamava ora de igarapé, ora de furo e as
vezes, de paraná ou paranazinho.
De volta à localidade, desembarcamos da rabeta8, e ele então me disse: “o lago
Grande aqui pra nós é tudo isso que você viu” [...]“a várzea aqui pra nós é essa mistura de
coisa, e quando aqui tá seco, muda tudo. Tudo ao redor de casa vira um campo maior onde
os bois e as vacas podem pastá mais livre” (L. S., pescador comercial, Jaiteua de Cima,
2007) (Figura 10).
Figura 10 – Paisagem do lago Grande de Manacapuru.
Fonte: Dados de campo (2007).
Não se limitando a falar da importância da dimensão abrangente do lago Grande em
seu dia a dia, a várzea que o senhor Lázaro descreve como ocorrência de períodos de cheia
outrora períodos de seca, é percebida pela sua experiência como situação de limites e
possibilidades para a realização de suas atividades de trabalho. Como esclarece Pereira
(2007, p. 12):
“A alternância das fases terrestres e aquáticas devido às variações do nível
do rio é um fator ecológico limitante para a vida nos ambientes de várzea
8
A rabeta, como denominada pelos pescadores das localidades pesquisadas, é uma canoa motorizada utilizada
para transporte e atividades de trabalho.
33
do rio Solimões-Amazonas. Esta dinâmica tem conseqüências
fundamentais sobre as formas de vegetação que nela ocorre e sobre a
distribuição das espécies. Sejam as formações totalmente aquáticas ou
vegetações florestais, elas se instalam segundo o tipo de hábitat, idade dos
solos, taxa de sedimentação, força da corrente [do rio] e o período de
inundação”.
A alternância das fases terrestres e aquáticas na percepção do senhor Lázaro,
significa que ele vivencia o tempo ecológico determinado pelo ciclo das águas. Com base
neste tempo ecológico que se interpenetra ao tempo social expressos pelas representações
sociais dos pescadores das localidades Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima,
primeiramente discorreremos sobre as características físicas do lago Grande de Manacapuru,
para, em seguida, entendê-lo como espaço de mobilidade espacial dos pescadores, que se
apropriam deste lago e dos microambientes para a manutenção e reprodução material e
social de sua existência.
Na perspectiva da ciência geomorfologica, o lago Grande de Manacapuru é um lago
de várzea. Como descrito por Ayres (1995) e Sternberg (1998), a várzea e a terra firme
compõem a planície amazônica formando a maior bacia sedimentar da Terra. Ela abarca
uma área que perfaz seis milhões de km2, dos quais 3,9 milhões de km2 se encontram em
território brasileiro – o que significa 65,0% da área total.
A várzea produzida pelo rio Solimões-Amazonas corresponde aproximadamente de
1,5 a 2% do território da Amazônia brasileira (variando de 75 a 150 mil km
aproximadamente), constrastando em vários aspectos com a maior parte da região
constituída de terras secas e altas, denominadas de terra firme como destaca Pereira (2007).
O lago Grande, assim como os demais lagos da várzea amazônica, são corpos de
água transbordados do canal principal do rio por ocasião da enchente, que podem
permanecem cheios, parcialmente cheios ou temporariamente isolados da água do rio
Solimões no período da seca (SIOLI, 1984). Nesse ciclo de transformação, como uma
espécie de “retorno das águas”, o rio Solimões se insere como coletor final do complexo
sistema de drenagem formado pelos inúmeros afluentes: os igarapés, os paranás, os igapós e
os pequenos rios.
De acordo com Esteves (1985) e Junk (1997) citados por Fabré (2003, p. 88),
“a dinâmica de inundação que caracteriza a várzea amazônica traz como
consequência a formação de diversos ambientes, a maioria temporários
como os lagos de planície de inundação, pertencentes à categoria de lagos
formados pela atividade do rio. [...] Para Junk a proposta mais
compreensiva para lidar com áreas inundáveis é o conceito de pulso de
34
inundação. Este conceito leva em conta tanto os aspectos hidrológicos do
rio e da área de captação da bacia de drenagem quanto das áreas
inundáveis. O conceito de pulso propõe que o rio Solimões e a área de
inundação constituem um sistema que atua como uma unidade indivisível,
porque possuem água e sedimentos em comum. Dentro dessas áreas podem
ser identificados tanto habitats permanentes como habitats temporários,
periodicamente expostos à inundação com o avanço e retrocesso das
águas”.
Esta explicação descrita por Fabré condiz com o efeito causado pelo recuo da água
do lago Grande no período da seca do ciclo das águas, ao reduzir as águas dos igarapés e
furos das localidades Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima, “transformado-os”9, em
determinados lugares, num imenso campo verde ou lamacento (Figura 11).
Figura 11 – Paisagem do Igarapé da Cajazeira no período da seca.
Fonte: Dados de campo (2007).
Pereira (2007) considera os lagos importantes fontes de recursos para a manutenção
das comunidades amazônicas. Os lagos são geralmente formados a partir de depressões
profundas ou rasas e podem ser alimentados na estação da seca por igarapés ou canais
oriundos da floresta circundante, ou ainda, apresentarem conexão com o rio principal no
período da cheia.
Pereira (2007) chama atenção para a importância da formação geomorfológica dos
lagos de várzea ao mencionar que, entre as unidades geomorfológicas, tais como, planície de
9
Transformação no sentido de modificar a paisagem aquática para a uma paisagem seca.
35
bancos e meandros antigos, planície de bancos e meandros atuais e depósitos estuarinos, a
quarta denominação que caracteriza a área do lago Grande de Manacapuru, é a unidade
geomorfológica denominada de depósitos de inundação.
“os depósitos de inundação estão frequentemente em altura maior que a
planície de bancos e, em algumas partes, formando verdadeiros terraços e,
em outras, formando áreas deprimidas, semeadas de grandes lagos,
provavelmente afundadas por fenômenos neotectônicos (PEREIRA, 2007,
p. 26).
Os depósitos de inundação compõem a planície de inundação chamada de várzea
amazônica. Estes depósitos produzem trechos alteados ou elevados chamados pelos
moradores das localidades como várzea alta.
Os pescadores das localidades Jaiteua de Cima e Jaiteua de Baixo explicam a várzea
alta como uma área de transição entre várzea e terra firme. As chamadas “terras altas” como
os moradores das localidades explicam, constituem porções de várzea que são relativamente
alagadas na estação da cheia e se elevam em direção à terra firme.
Porro (1998) faz uma distinção para classificar a várzea alta e várzea baixa. Segundo
o autor, a várzea alta se refere ao ecossistema que se localiza próximo ao rio resultante de
maior deposição de sedimentos ao longo do tempo, enquanto a várzea baixa é a porção de
terra mais recuada, recortada por igarapés, lagos temporários e permanentes.
Morán (1990) sugere que o processo de fragmentação da várzea, ao classificá-la,
pode conduzir a uma noção errada acerca do seu potencial biológico ou agrícola. Segundo o
autor, as diferenças significativas entre os tipos de várzea envolvem a flora, a fauna, o
aluvião depositado, o declive e a altitude, a acidez do solo e a reprodução de biomassa.
A fala do pescador da localidade Jaiteua de Cima esclarece a noção transitória que
percebemos nas localidades Jaiteua de Cima e Jaiteua de Baixo acerca do que Porro (1998)
indica como várzea baixa e várzea alta (Figura 12):
“[...] onde a gente vive a cheia às vezes pode ser um problema. Olha, essa
várzea aqui do Jaiteua, as terras que a gente vive ficam um pouco mais alta,
e vai crescendo até chegar na terra firme mesmo, essa aí pra trás. Algumas
pontas da terra são mais altas, e quando vem pra comunidade ela vai
alteando, mas se dé uma cheia forte a nossa terra pode fica debaixo
d”água” (L. S., pescador comercial, Jaiteua de Cima, 2008).
36
a)
b)
Figura 12 – a) Terraço que geralmente inunda; b) Terraços possíveis de inundação
dependendo da intensidade da cheia (espacialidade e volume).
Fonte: Dados de campo (2007).
37
Em Cajazeira, a terra firme é mais mencionada pelos moradores como terra de
atividade agrícola, terra de coleta de produtos da floresta e terra para criação de gado. As
florestas de terra firme da Amazônia são os ecossistemas terrestres mais ricos em
diversidade de espécies na biosfera e com maior produção de biomassa vegetal, embora sua
riqueza biológica não seja em função da riqueza dos solos, ela resulta de sofisticados
sistemas de reciclagem de nutrientes e evolução das plantas adaptadas às condições químicas
do solo (MORÁN, 1990).
De acordo com os moradores, a terra firme é muito boa para o cultivo de vários
vegetais. Ela não chega a ser inundada pela enchente, porém os terrenos dos núcleos
comunitários onde estão estabelecidas as residências, poderão estar sujeitos a esta situação
dependendo da intensidade da cheia.
A explicação de Morán (1990) demonstra a riqueza da terra firme (Figura 13).
Porém o relato do senhor Abdias, morador da localidade Cajazeira, ajuda-nos a entender a
dinâmica aquática em sua região:
“[...] aqui onde nós moramos pode inundá, mas tudo depende da cheia, se
for forte ela pode chegar aqui é passar aí pra trás. É difícil acontece porque
tem que ser uma cheia forte. [...] a terra firme como a gente tava falando
fica aí pra trás. Lá é bom de planta, tem castanheira, tem muita vegetação
aí pra dentro” (A. S., pescador de subsistência, Cajazeira, 2008).
.
Figura 13 – Terra alta: lugar possível de inundação;
Fonte: Dados de campo (2007).
38
A área do lago Grande de Manacapuru descrita pelo Sr. Lázaro no início da
apresentação é composta por diversos ambientes aquáticos, tais como igarapés, poços,
paranás, furos e pequenos e grandes lagos. Dentre estes, destacam-se o lago São Lourenço, o
lago Grande, o lago do Jaiteua, o paraná do Jaiteua e o paraná do Anamã, muito procurados
pelos pescadores das localidades Jaiteua de Baixo, Jaiteua de Cima e Cajazeira, pois
afirmam que estes ambientes apresentam abundância de recursos pesqueiros.
Para
os
moradores
das
localidades,
esses
ambientes
apresentam
certas
especificidades e recebem estes os nomes conforme suas conceituações, não havendo
fronteiras visuais tão demarcadas ao nosso entendimento para dizer que tal ambiente é um
lago. Os lagos Jaiteua e São Lourenço, conforme Soares (et al., 2008), integram um sistema
de lagos, incluindo o lago Grande conhecido também como lago Cabaliana. No
entendimento dos moradores das localidades, o lago do Jaiteua assim nomeado, é uma
extensão do lago Grande “separado” deste por uma série de ilhas próximas entre si e
próximos às terras altas de ocupação das moradias das localidades Jaiteua de Baixo e Jaiteua
de Cima.
Estas ilhas são ligadas entre si por furos e canais ou pelos caminhos de água, mais
conhecidos pelos moradores como, paranazinhos, entradas e bocas de lagos e igarapés,
conformando uma densa paisagem labiríntica, onde os peixes encontram condições
favoráveis ao desenvolvimento da vida – abrigo, alimentação e reprodução (Figura 14).
39
.
Figura 14 – O lago Grande: entremeado por ilhas.
Fonte: Dados de campo (2007/8).
40
Esses lagos e microambientes interligados fazem parte do Complexo lacustre que
forma o lago Grande de Manacapuru, constituído por lagos, paranás, furos e igarapés com
área estimada em torno de 420 km2 (SOARES, et al., 2008).
Na perspectiva liminológica, o lago Grande de Manacapuru, de acordo com o estudo
de Soares (2008, et al., 2008), possue água mista, ou seja, recebe água branca do rio
Solimões/Amazonas principalmente na enchente-cheia, através de canais de conexões e,
água preta proveniente do rio Manacapuru que alimenta o sistema principalmente nas épocas
de vazante-seca. Apesar do sistema receber água com duas características distintas (branca e
preta) o ambiente é caracterizado como de água branca segundo a classificação de Sioli
(1984), com altos valores de pH e de condutividade elétrica.
Na enchente e cheia a água apresenta elevadas concentrações de íons e com grande
quantidade de sedimentos. Os sedimentos da água do rio Solimões/Amazonas que aflui para
os lagos por canais de conexão são retidos, grande parte, pela vegetação (macrófitas
aquáticas, capins flutuantes e arbustos) e depositada na área alagada, o que da um aspecto de
água preta, principalmente na cheia e vazante. Em decorrência da flutuação sazonal do nível
das águas, o lago têm importante papel associado à produtividade e a variabilidade de
habitats. A água aberta e a floresta alagada (igapós), por exemplo, estão entre os ambientes
de pesca muito procurados pelos pescadores. Na água aberta, os pescadores pescam na parte
mais profunda, no canal, nas margens, próximos a entrada ou bocas de furos, igarapés e
paranás do lago Grande. Nas florestas alagadas10 que dominam a paisagem do lago, os
pescadores de subsistência e comercial, pescam no período de alagação, enchente e cheia,
sob as arbóreas, o tambaqui (Colossoma macropomum) e a pirapitinga (Piaractus
brachypomus); e às margens da floresta, o tucunaré (Cichla spp.).
Fabré (2003) em estudo anterior a Soares (et al.; 2008) se aproxima da conceituação
proposta por este – complexo lacustre –, ao mencionar que os lagos amazônicos cumprem
um papel fundamental no processo de disponibilização de matéria orgânica da dinâmica das
áreas inundáveis, tornando-se assim um ambiente de grande importância para a pesca de
autoconsumo e comercial.
10
“A floresta alagada é importante habitat para a ictiofauna por fornecer uma cadeia alimentar de origem
alóctone que pode manter alta biomassa de peixes. Isto está relacionado à habilidade dos peixes de explorarem
os alimentos disponíveis como folhas, flores, sementes e invertebrados, que caem das árvores na água, e dos
detritos oriundos da decomposição da matéria orgânica” (GOULDING, 1980; CLARO, Jr., 2003 apud
SOARES, et al., 2003).
41
Na área focal do estudo realizado pelo PYRÁ11, a autora identificou com base no
diálogo e no conhecimento tradicional dos pescadores dessa área, três grandes ambientes,
denominados-os de sistemas lacustres12: o Sistema Lacustre Paracuuba/Jacaré, o Sistema
Lacustre do Cururu e o Sistema Redondo, sendo três sistemas inundados sazonalmente pelo
rio Solimões.
Ao entorno do Sistema Redondo, foi identificado o lago Grande de
Manacapuru – um lago de várzea –, porém não estudado diretamente pelo programa PYRÁ
na época da realização da pesquisa.
É importante salientar que os três sistemas lacustres estudados pelo PYRÁ, para
quem parte de Manacapuru, estão situados próximos à margem direita do rio SolimõesAmazonas, e opostos ao lago Grande de Manacapuru que está situado em áreas alagáveis, à
esquerda do rio Solimões-Amazonas.
Diante destas abordagens teóricas acerca da composição liminológica do lago de
várzea, convém, com bases nos autores, face aos dados empíricos, “olhar” o lago Grande de
Manacapuru como um amplo sistema aquático constituído de microambientes tal como
entende os moradores das localidades pesquisadas (Figura 15).
11
PYRÁ – Programa Integrado de Recursos Aquáticos e da Várzea – foi coordenado pelos professores da
Universidade Federal do Amazonas, Nídia Noemi Fabré e Vandick da Silva Batista. Este programa se
caracterizou como um programa de pesquisa-ação atuante em comunidades ribeirinhas através de estudos
interdisciplinares concentrados em biologia de água doce, pesca e socioeconomia. O livro intitulado SAS:
Sistemas Abertos Sustentáveis: uma alternativa de gestão ambiental na Amazônia, resultou como proposta de
manejo integrado e participativo nos locais identificados por Fabré (2003) como sistema lacustre.
12
“A complexidade fisiocrática destas formações lacustres presentes na planície de inundação comunicadas
entre si ou com o rio, por furos, canais, igarapés, ou compondo uma grande superfície inundada na cheia, nos
leva a tratar este conjunto de ambientes aquáticos como sistemas lacustres cujos limites são menos precisos
durante o período de águas altas” (FABRÉ, 2003, p. 92).
42
Figura 15 – Imagem de satélite do lago Grande de Manacapuru: período da seca /
2005; Período cheia / 2007.
Fonte: Imagem cedida pelo IBAMA da Amazônia, 2009.
Os igarapés e os paranás também são considerados águas de trabalho pelos
pescadores. Witkoski (2007, p. 230) em seu conceito águas de trabalho, apoia-nos a refletir
sobre o modo e o local onde são realizadas as pescarias, esses ambientes são definidos
através do princípio de territorialidade. O autor esclarece:
43
“na visão de mundo do camponês amazônico que habitam a calha do rio
Solimões-Amazonas e áreas contíguas (paranás, igarapés, furos etc.), os
ambientes aquáticos amazônicos dividem-se em duas grandes unidades: os
rios são concebidos como território aquático público; os lagos são
compreendidos, quase sempre como territórios aquáticos coletivo. Os
camponeses dividem os lagos em três sub-unidades: lagos de procriação
(lagos sagrados, lagos santuários); lagos de manutenção (subsistência da
família camponesa); por fim e não menos importante, os lagos livres
(destinados a pesca comercial, dentro dos limites estabelecidos pela
legislação municipal e pelas comunidades). Podemos, pois, conceber as
duas grandes unidades – os rios e diferentes tipos de lagos – como águas
de trabalho. Assim as águas de trabalho são responsáveis pela maior parte
da produção de proteína animal necessária a vida camponesa.
Além dos rios e dos lagos mencionados por Witkoski (2007), os igarapés, segundo
Junk (1997), são originários de altas taxas de precipitação, de chuvas, o que contribui para
que exista uma rede muito densa de igarapés em áreas de várzea. O autor enfatiza que a
maioria das espécies de peixes comem alimentos – insetos terrestres, frutos, sementes e
outras espécies da natureza – não provenientes do próprio igarapé, mas sim, da floresta ao
longo do seu leito.
Outros ambientes de pesca são identificados na área de estudo a partir dos elementos
paisagísticos mencionados pelos pescadores das localidades: o “igapó”, por exemplo, é um
importante ambiente de pesca. Morán (1990) afirma que as florestas de igapó são áreas para
onde uma grande parte da fauna aquática dos principais rios procura refúgio na época da
enchente. As frutas produzidas pela vegetação arbórea dos igapós são a principal fonte de
alimentação de espécies de grande porte como o tambaqui.
Pereira (2007) esclarece a ocorrência de floresta de igapó a partir da topografia
ondulada da várzea atual, que é causada por diferenças na deposição de sedimentos devido à
migração lateral intermitente dos canais do rio. Isso permite entender o tipo de vegetação
originária nas localidades pesquisadas. Segundo o autor,
“A topografia se caracteriza pela atuação de diques laterais (restingas),
depressões de canais abandonados (baixios) e bacias lacustres (lagos),
fazendo que exista diferenças na drenagem dos solos e na duração das fases
terrestres e aquáticas entre os diferentes tipos de terrenos. Estas variações
na topografia se refletem em variações na vegetação do interior da ilha,
como por exemplo, a ocorrência de igapós (florestas inundáveis) no topo
da restinga, e desenvolvimento durante a fases terrestre de vegetação
herbácea com predominância de gramíneas nas áreas deprimidas”
(PEREIRA, 2007, p. 20).
Na área de estudo, podemos observar que os igapós são utilizados frequentemente
para pescaria nas três localidades, através da técnica do lanço que será apresentado no
44
capítulo II. A aproximação com a residência é um fator de interesse para se pescar nesses
lugares, pois não gasta muito tempo e nem dinheiro com combustível, favorecendo a
economia do pescador (Figura 16).
Figura 16 – O igapó.
Fonte: Dados de campo (2008).
A espacialidade do lago Grande de Manacapuru aqui descrita é o espaço de
referencia adotado na pesquisa para entender a dinâmica de ação dos pescadores das
localidades Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima, uma vez que a pesca é exercida
em ambientes internos (de dentro), nos arredores (imediações) e distantes das localidades.
Todo raio de ação dos pescadores é considerado como um exercício realizado no
lago Grande de Manacapuru, e como é pronunciado pelos próprios pescadores, o lago
Grande é um território de todos os pescadores das localidades.
45
1.2 O tempo ecológico do ciclo das águas nas localidades Cajazeira, Jaiteua de Baixo e
Jaiteua de Cima
Após a apresentação das características físico-químicas e espaciais do lago Grande
Manacapuru, percebemos a importância de discorrer sobre os efeitos ecológicos da fase
terrestre e aquática da várzea no cotidiano dos pescadores das localidades e como reagem
diante deste fenômeno.
Ao conversar com o Senhor Abdias, pescador de subsistência e morador da
localidade Cajazeira, perguntei a ele se não estaria cansado de viver na várzea, enfrentando
esses períodos de cheia e seca, e se, caso morasse em Manaus ou em outro lugar que fosse
mais “urbano”, não seria melhor para ele e sua família. Ele respondeu:
“olha, [...] eu e minha família já estamos acostumado a viver com a seca e
a cheia brava. Nunca pensei viver em Manaus, porque a vida aqui é
melhor, é difícil mas é melhor. Eu ... viver em Manaus [...] ?, eu tive lá ano
passado pra passar no médico por causa da minha pressão, é muito calor,
não tem os igarapés como tem aqui e nem peixe como tem aqui todo
tempo. A gente que vive aqui conheçe a dificuldade, mas também nós
criamos nossa maneira de viver” (A. S.; pescador de subsistência,
Cajazeira, 2007).
Evans-Pritchard (2005) ajuda-nos a pensar que o interesse em viver em determinado
local depende das escolhas subjetivas e das motivações construídas historicamente pelo
indivíduo e seu grupo em um campo social de contradições e antagonismos com a sociedade
abrangente. As condições do ambiente também devem propiciar as possibilidades de vida.
O interesse pelo pescado nas localidades, combinado às condições naturais da várzea
– o ciclo das águas –, exige um determinado modo de vida dos moradores que se concretiza
através do trabalho e das técnicas de adaptabilidades ao meio, ações que foram observadas
por Witkoski (2007) e Pereira (2007) ao pesquisarem os camponeses amazônicos ou as
comunidades ribeirinhas, respectivamente.
Pritchard ao se referir sobre o tempo ecológico pensado pelos Nuer, observa que os
aspectos sociais e ecológicos pelos quais as estações climáticas são definidas, têm maior
clareza quando esclarecidos do ponto de vista do interlocutor – os próprios Nuer, moradores
da savana africana. Em nosso caso, o tempo ecológico e os aspectos climáticos são
expressões das representações sociais que os pescadores de subsistência e comerciais das
localidades Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima fazem de seu meio envolvente –
das águas, das terras e das florestas de trabalho que dispõem na várzea (Witkoski, 2007).
46
A dinâmica do ciclo das águas imprime o ritmo do tempo ecológico ao ritmo social
em todas as circunstâncias da vida dos pescadores. São as necessidades da água e as
variações no suprimento de alimentos que relativamente condicionam as mobilidades
espaciais dos pescadores em determinadas épocas do ano – da fase terrestre para a fase
aquática da várzea ou vice-versa –, exigindo, como ação, medidas preventivas e
compensatórias (PEREIRA, 2007) ante aos períodos de escassez e estresses produzidos
pelos extremos da seca e da cheia do ciclo das águas.
Estas ações preventivas e compensatórias orientadas sob a tomada de decisões dos
pescadores – com base na estrutura social e simbólica do núcleo familiar e das relações de
parentesco – são variáveis políticas e econômicas que propiciam alternativas de mudança,
adaptação e mobilidade espacial no ambiente de várzea.
Em outras palavras, o Sr. Abidias vive a importância da natureza no seu dia a dia e
vive as escolhas do seu núcleo familiar sobre o preceito da manutenção das relações sociais
estabelecidas. A posse e uso da terra, a garantia do uso dos lagos ou dos igarapés ou os
fatores econômicos são variações que têm como “pano de fundo” a manutenção das relações
sociais e dos papéis desempenhados por ele, sua família e pelos parentes em diálogo com a
comunidade e com a sociedade a que pertencemos e interagimos.
Lourdes Furtado (1993), no estudo a respeito dos pescadores polivalentes e
pescadores monovalentes realizado no Baixo Amazonas, chama a atenção para a importante
percepção espacial dos ribeirinhos sobre o tempo, indicando uma conotação mais ecológica
do que propriamente cronológica acerca do tempo em atividades pesqueiras, onde o homem
e natureza se relacionam dicotomicamente com a variação sazonal do rio. Nestas
circunstâncias, a organização do trabalho é pensada em sintonia com o tempo ecológico,
sugerindo que a organização social do trabalho orienta a vida dos pescadores motivados por
valores (simbolizações) relativos ao mundo natural e social, intermediando a reprodução e
atualização das formas de manejo dos recursos naturais.
Sobre a percepção dos pescadores e seu tempo de trabalho, Yi-Fu Tuan (1983), em
Topofilia, contribui enfatizando que a adaptabilidade humana em qualquer contexto e o
“ideal de natureza” dependem de fatores biológicos, psicológicos e sociais, sobre as quais a
cultural “imprime suas marcas”. Tuan não pensa o indivíduo desconecto do ambiente de
crescimento e socialização fora dos marcos da cultura. Ele pensa que, para nós, seres
humanos, a partir de um ambiente, a habilidade espacial precede o conhecimento espacial
(considerados fatores intrínsecos da percepção humana), pois antes de qualquer
conhecimento sólido sobre o espaço ou lugar que vivemos, a relação do indivíduo com o
47
meio depende do desenvolvimento das percepções (da inteligência) humana que, por sua
vez, são estimulados pelos sentidos sócio-motores do indivíduo – o olfato, o paladar, a
visão, o tato e a postura – vivenciando um contexto geográfico, social.
Tais conexões mentais permitem as deduções para a formulação de novos
conhecimentos acerca da vida, do lugar e do espaço. Portanto o domínio do espaço
desconhecido da várzea só passe a ser o lugar de segurança dos pescadores quando intuído
todo o arcabouço mental para a produção de conhecimentos a serem empregados nesses
espaços. Assim, o conhecimento se faz de outros conhecimentos. O conhecimento dos
pescadores são mediados pela cultura da qual participam.
Emílio Morán (1990, p.26) se direciona na mesma perspectiva de Tuan (1983), ao
pensar os processos de adaptabilidade humana ao ambiente da várzea amazônica, processo
que ele chamou de adaptação reguladora. O autor explica:
“o ambiente é reconhecido pela percepção do indivíduo, mas somente parte
dessa percepção entre na cognição devido às estruturas ecológicas e
[sociais] que derivam da linguagem e das rotinas diárias do indivíduo em
sociedade. Tais estruturas também servem para avaliar o que entrou no
consciente. A partir daí se segue um processo de decisão na qual interagem
a avaliação com rotinas culturais baseadas em experiências anteriores. Daí
surge a decisão de fazer ou não alguma coisa que, por sua vez, será
influenciada pelas condições externas que passam a restringir a ação: [os
fatores ecológicos e as normativas sociais do grupo social a que o
indivíduo pertence].
O tempo ecológico que os pescadores das localidades internalizam de seu meio
envolvente reflete a representação social do uso direto e indireto das águas de trabalho. O
uso direto da água se refere ao conhecimento prático sobre o manuseio dos ambientes
aquáticos, por exemplo, dos recursos pesqueiros. O uso indireto da água, por sua vez, se
relaciona ao conhecimento prático acerca das atividades que dependem das condições de
existência da água: por exemplo, a água para o transporte, a água para o cultivo agrícola ou a
água para o uso doméstico.
Segundo Godelier (1984), na prática, o tempo ecológico e a representação social se
combinam intrinsecamente formando um “tipo ideal de natureza”, uma forma de
conhecimento do pescador que mediatiza as práticas culturais. Esse conhecimento permite
que o pescador tire maior proveito do lago Grande direta ou indiretamente durante as fases
terrestres e aquáticas da várzea.
Como observado, os moradores das localidades Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua
de Cima se apropriam da água como um recurso vital para suas vidas. Vital, pois, agrega
48
valores materiais e simbólicos que refletem os aspectos culturais do cotidiano de suas vidas
naquele local. O uso direto e indireto da água pelos moradores se concretiza em suas
práticas culturais, seja em atividades produtivas, no uso doméstico ou no lazer. Este
importante recurso se impõe naturalmente durante o ciclo anual das águas como um desafio
à reprodução social de suas vidas.
Para Carlos Bruni (1994), a água, ao longo da história da humanidade, é investida de
representações. O significado da água para os moradores das localidades expressa a essência
do que a mesma representa: a água como fonte de vida, esperança, liberdade, angústia
desespero e prazer.
Escritores como o paraense Leandro Tocantins (1968, p.281), em O rio comanda a
vida, explicita:
“[...] rio, sempre o rio, unido ao homem em associação quase mística [...]
Veias do sangue da planície, caminho natural dos descobridores, farnel do
pobre e do rico, determinantes das temperaturas e dos fenômenos
atmosféricos, amados, odiados, louvados, amaldiçoados, os rios são a fonte
perene do progresso, pois sem eles o vale se estiolaria no valor
inexpressivo dos desertos. Esses oásis tornaram possível a conquista da
terra e asseguram a presença humana, embelezam a paisagem, fazem girar
a civilização – comandam a vida no anfiteatro amazônico.
Para o autor, o rio Solimões, para além do determinismo geográfico, tem um
significado dinâmico no contexto social das populações ribeirinhas da Amazônia, pois a
várzea produzida e renovada ano a ano pelo rio Solimões que age pelos seus afluentes
diretos e indiretos proporcionando as condições básicas da vida aos ribeirinhos da
Amazônia.
O fenômeno como o ciclo das águas deixa suas marcas no cotidiano dos pescadores
das localidades. A localidade Cajazeira que reúne as comunidades Nossa Senhora do
Perpétuo Socorro e Nossa Senhora Aparecida é determinada pelo fluxo aquático do lago São
Lourenço. A localidade Jaiteua de Baixo, onde está estabelecida a comunidade Santo
Antonio, e Jaiteua de Cima, que é composta por quatro comunidades: Santa Izabel,
Assembléia de Deus Tradicional, Assembléia de Deus e Nossa Senhora do Perpétuo
Socorro, são margeadas direta e indiretamente pelas águas do lago do Jaiteua e lago Grande,
respectivamente.
Diante deste amplo ecossistema envolvendo as três localidades, apresentaremos
algumas variáveis sociais, econômicas e adaptativas básicas, fundamentais na vida dos
49
moradores das localidades as quais são conectadas e interdependentes ao tempo ecológico
do ciclo das águas.
1.2.1 Cajazeira
Numa conversa descontraída com o Sr. Abdias, pescador da localidade Cajazeira, ele
relatou que os três lagos juntos formam o lago Grande de Manacapuru, e quando a águas do
lago São Lourenço diminui, a pesca próxima de sua casa fica mais difícil. Ele assim relata:
“[...] o lago São Lourenço aqui pra nós é o lago da Cajazeira, mas tudo isso
que o Sr. tá vendo lá no Santo Antonio [Jaiteua de Baixo] e no Jaiteua [de
Cima] é o lago Grande que a gente considera, e que tudo mundo fala .[...]
Ali aquela área do lago do Jaiteua, pra comunidade Santo Antonio, ali é
uma fonte boa de pescaria. Nós vamos pra lá, nós vamos pelo furo da
Cajazeira. Pra comer a gente pega pra cá mesmo, no igarapé do Acari. Ele
vara desse lago lá pra dentro por isso tudo aí é fonte de pescaria. Não
carece se deslocar, só vamos pra lá quando queremos pegá um peixe de
qualidade melhor.
[...] e quando o lago vem secando assim no mês de agosto e setembro, tudo
começa a ficar ruim pra nós. Seca tudo aqui. Esse igarapé aqui fica só
lama. Pra pescá mesmo é só lá no meio do Jaiteua ou no lago Grande” (A.
S., pescador de subsistência, Cajazeira, 2007).
O Sr. Abdias é um morador antigo da localidade Cajazeira. Ele residente na
comunidade Nossa Senhora Aparecida e sabe como é viver as dificuldades na várzea durante
a fase terrestre, isto é, do período relativo à “estação-seca” do ciclo das águas. Como não
pesca mais comercialmente, as alternativas de renda da sua família são o salário da
aposentadoria, a pequena produção agrícola, os produtos extraídos e coletados da floresta e a
criação de pequenos animais realizada em seu sítio.
As dificuldades naturais que o ciclo das águas impõe a estas atividades, é a condição
que todos os moradores da localidade Cajazeira estão sujeitos em seu dia a dia. A pesca que
ele pratica em ambientes próximo de sua residência, como no igarapé da Cajazeira, é
basicamente para o consumo da família. Ele considera as melhores fases para pesca
comercial o período da enchente. Porém, no período da seca, ele não hesita em pescar em
lugares mais distantes, como geralmente ocorre ao se deslocar para o lago do Jaiteua: Ele
diz: “o peixe pra nós é muito importante aqui, é nossa energia” (A. S., pescador de
subsistência, Cajazeira, 2007).
50
A comunidade Nossa Senhora Aparecida é vizinha da comunidade Nossa Senhora do
Perpétuo Socorro, estando separadas pelo igarapé da Cajazeira. Para quem entra em
Cajazeira, cujo acesso é apenas pela via fluvial através do lago São Lourenço, a primeira
comunidade – Nossa Senhora do Perpétuo Socorro – está à margem esquerda do igarapé,
sendo a primeira a ser avistada ao entrar na localidade, e a segunda comunidade – Nossa
Senhora Aparecida – se situa um pouco mais adiante à margem direita do igarapé.
Como as duas comunidades estão muito próximas, a dimensão ecossistêmica é
praticamente a mesma. Tanto Nossa Senhora Aparecida quanto Perpétuo Socorro estão
estabelecidas nas partes mais altas da localidade, local que os moradores chamam de “terra
firme”. Essa posição é estratégica, pois se caracteriza pela necessidade de proteção face às
imposições da cheia do ciclo das águas. Em Cajazeira, a água só alcança a “terra firme” se
for uma cheia muito densa (Figura 17).
51
a)
b)
Figura 17 – a) Comunidade Nossa Senhora do Perpétuo Socorro; b) Comunidade
Nossa Senhora Aparecida – Cajazeira. Fonte: Dados de campo (2008).
52
Segundo o Sr. Abdias, em janeiro, o lago São Lourenço começa receber água dos
rios Manacapuru e Solimões. Quatro meses depois, a água avançou gradualmente atingindo
outros microambientes no interior da localidade, o que melhora as possibilidades de uma
pesca de qualidade, seja para subsistência ou para comercialização.
O senhor Orney Corrêa, pescador comercial que mora na comunidade Nossa Senhora
do Perpétuo Socorro relatou que a vida na localidade, assim como a vida em qualquer
beirada, é difícil quando está seco, mas na cheia também não é fácil.
Conversando sobre o tempo da pesca ele afirma:
“[...] Rapaz a pesca fica difícil tanto quanto tá cheio e quando tá seco, os
dois tempos. Quando tá cheio o peixe espalha tudo. Num fica um no
beiradão, tem que ficá muito tempo pescando pra conseguir algum
pouquinho pra boia. [...] a pesca aqui no São Lourenço é bom nas beiras,
nas matas da beira. Agora quem faz lanço a pesca é no mais fundo onde
passa os cardumes. Na seca, é mais fácil pesca, porque o peixe fica junto
principalmente nos poços. Mas é difícil porque a gente tem que andar
muito até o Jaiteua, que é onde a gente costuma pescá também. [...] quando
tá enchendo é o melhor período pra pescá também, porque o peixe da mais
dinheiro, agente pesca aqui na área, no igarapé do Acari. [...] na cheia fica
mais difícil aqui pra nós porque o pessoal foi criando gado e desmatando
tudo, porque o capim é onde o peixe gosta de ficá e agora eles estão mais
longe foi afastando com o tempo do gado aqui” (O.C. S., pescador
comercial, Cajazeira, 2007).
Nos lagos São Lourenço e Jaiteua, a pesca ocorre em alguns pontos em períodos de
enchente, principalmente na parte mais profunda ou em suas margens, onde ocorre mais
vegetação. Segundo Soares (et al. 2008), a pesca em floresta alagada (locais dos igarapés e
igapós) é de interesse do pescador porque os peixes encontram as condições favoráveis para
alimentação e abrigo.
O senhor Orney Corrêa vive praticamente da renda da pesca. A pesca comercial
intensiva praticada pelos pescadores da localidade Cajazeira geralmente ocorre em
ambientes fora da localidade, como é o caso do uso do paraná do Anamã que ocorre de
agosto a outubro, período que a água recua drasticamente na localidade (vazante/seca). Este
fenômeno facilita as capturas, pois os peixes vão se confinando em locais mais profundos no
paraná – os poços como dizem os pescadores. O peixe, nesse período, pela grande oferta,
tem seu valor barateado no mercado pesqueiro de Manacapuru (Gráfico 1).
53
35,0
30,0
25,0
20,0
Melhor
15,0
10,0
5,0
0,0
Enchente
Cheia
Vazante
Seca
Gráfico 1 – Intensidade da atividade pesqueira dos pescadores de Cajazeira. Enchente:
o melhor preço do pescado e média dificuldade de captura; Vazante/Seca: períodos de
maior fartura e captura em quantidade de pescado. Pescado barato.
Fonte: Dados de campo (2008).
A enchente é um período considerado bom para os pescadores, porque coincide datas
festivas anuais (por exemplo, a Semana Santa) com a melhor qualidade do peixe – peso e
tamanho – devido à fartura de alimentos encontrada nos igarapés e nos igapós (MORÁN,
1990; SOARES, et al., 2008). Estes dois fatores se coadunam para a melhor valorização do
pescado.
No entendimento do Sr. Orney, a várzea sempre teve seus momentos de fartura como
períodos de escassez. Porém o gado em sua opinião é um problema sério criado por “pessoas
de fora”, que compraram terras na localidade, desmatado-as, para servir de pastagem. Essa
prática não afeta apenas ele por ser pescador comercial, mas prejudica todos os moradores
da localidade, porque precisam do peixe como alimento básico e de “rápida aquisição”.
A seca se caracteriza pela ausência ou redução da chuva, sendo o calor intenso. A
descida do nível das águas começa em julho até atingir o nível mínimo em final de outubro.
A redução drástica da água do lago São Lourenço está associada à interrupção de alguns
canais que são conectados ao rio Manacapuru e ao rio Solimões, reduzindo gradualmente o
deslocamento fluvial. O igarapé da Cajazeira é diretamente afetado por esse processo
(Figura 18).
.
54
a)
Figura 18 – a) Cajazeira: período da seca; b) Cajazeira: período da cheia.
Fonte: Dados de campo (2008).
55
Em Cajazeira, a mobilidade aquática através de embarcações como, canoas a remo,
rebetas, voadeiras, barcos-recreio e o barco-escola diminuem significativamente no período
da seca. A redução da água do lago São Lourenço implica a inconsistência aquática do
igarapé da Cajazeira, o quê torna o fenômeno um obstáculo natural que limita a travessia dos
pescadores até a margem do lago e para outros ambientes onde são realizadas as pescarias.
O transporte de produtos produzidos diminuem internamente, e a chegada de
produtos de fora através das embarcações reduzem significativamente devido a escassez de
água. A caminhada através de “varadouros” ou atalhos ocorre o ano todo, pois alguns
roçados ou “centros”, como localmente denominam, ficam em lugares relativamente
próximos, e outros, distantes das comunidades. Porém, o uso dos varadouros se constitui em
uma rotina mais intensa de caminhada nesta época para abreviar a distância dos lugares de
trabalho e das moradias até as margens do lago São Lourenço. Geralmente o acesso ao lago,
após o uso do varadouro, se dá através dos paranás onde as embarcações ficam a espera dos
pescadores e suas famílias para realizarem juntos a travessia até o lago.
Ao andar pelos varadouros, em virtude da severidade do percurso e dos obstáculos,
pular as cercas do gado, equilibrar-se em cima de troncos de árvores caídos e descer e subir
chavascal ou igapós são perigosos e desafios como relata os pescadores. Porém é uma
realidade a ser enfrentada e não abdicada, pois precisam dos alimentos básicos para manter a
existência: o peixe e outras fontes de proteína animal.
Com relação à água para o consumo humano, doméstico e animal, na estação da
seca, ela é coletada em poços abertos anualmente pelos pescadores denominando-os
localmente de cacimbas.
As cacimbas são abertas em áreas baixas ou médias com medidas suficientes de
largura e profundidade para se ter acesso a ela. A água é limpa e, frequentemente, as
cacimbas são abertas no olho d’água, no lençol freático. Cada grupo doméstico possui sua
própria cacimba, podendo também ocorrer o uso coletivo como acontece em Cajazeira. A
cacimba é rodeada de tábuas e cobertas com palhas para proteção, para os animais
domésticos não sujarem a água (Figura 19).
56
Figura 19 – a) transporte; b) pontes; c) varadouros; d) cacimbas.
Fonte: Dados de campo (2008)
Henrique Pereira (2007) apoia-nos a pensar a vida dos pescadores e suas famílias, ao
apresentar duas classificações que visam contornar os problemas causados pela sazonalidade
dos recursos face às variações do ciclo das águas, que são 1) as medidas preventivas e 2) as
medidas compensatórias. O autor explica,
“As estratégias preventivas atuam em longo e a curto prazo e têm por
objetivo evitar a escassez relativa dos recursos. Entre as estratégias
preventivas de longo prazo, destacam-se a territorialidade e a conservação
dos recursos. Entre as estratégias de curto prazo destacam-se a
armazenagem de recursos e a armazenagem de créditos e valores.
Estratégias compensatórias são estratégias que visam lidar com escassez
dos recursos [...] que são inesperados ou de tal forma intensas, que
estratégias preventivas se tornam ineficazes. No caso dos ambientes de
várzea, a ocorrências de cheias anormais, ou seja, cuja intensidade e
(duração e volume) seja superior, representam esse tipo de estresse
ambiental mais intenso (PEREIRA, 2007, p. 19-20)”.
Com base nas contribuições do autor, verificamos que as noções de estratégia
preventivas e estratégias compensatórias são dimensões reais vividas pelas famílias dos
57
pescadores em Cajazeira. Abaixo está descrito o calendário das atividades produtivas de
Cajazeira durante o tempo das fases terrestres e aquáticas da várzea, atestando a polivalencia
das atividades produtivas como medidas de sobrevivência e ao mesmo tempo preventivas
para evitar a escassez dos recursos (Figura 20).
Figura 20 – O calendário das atividades produtivas.
Fonte: Dados de campo (2008).
A pesca, por exemplo, como atividade principal do nosso estudo, ocorre o ano todo
em Cajazeira. Os ambientes de pesca internos e alguns próximos à localidade são protegidos
para a pesca de uso doméstico, sendo proibida a prática comercial. Sob essa lógica são
ambientes preservados e conservados para atender às expectativas das famílias em períodos
de possível escassez de recursos pesqueiros. Os acordos informais de pesca como
dispositivo “jurídico” expressam a territorialidade das famílias de pescadores mediante as
possibilidades de terem seus recursos ameaçados por práticas de pesca que não condizem
com a manutenção da subsistência das famílias. Deste modo, as práticas de conservação
mediante dispositivos jurídicos visualizam a manutenção dos recursos a médio e a longo
prazo.
A agricultura, a caça e o extrativismo também ocorrem o ano todo. Estas atividades
não foram abordadas com profundidade neste estudo.
58
A prática da agricultura possui centralidade para os grupos domésticos da área de
estudo, ganhando maior expressão com a roça de mandioca. A constatação dessa prática não
é diferente de outras partes da Amazônia, onde pesquisas demonstram que o cultivo de
mandioca é a característica marcante do subsistema agrícola (NODA et al., 2001, 1997;
RIBEIRO & FABRÉ, 2003; FRAXE, 2000; WITKOSKI, 2007).
Observamos que a agricultura se divide em fases temporais ou ciclos – tempo do
preparo, tempo do cultivo e tempo da colheita – ao longo do ano quando praticada em “terra
firme” da localidade ou terra preta de índio como diz Porro (1998).
O plantio ocorre nos meses de agosto a setembro. A colheita ocorre de novembro em
diante. As principais espécies cultivadas observadas foram: a mandioca, o maracujá, a
banana e o milho.
A farinha como subproduto do roçado da mandioca (Manihot esculenta) é preparada
em fornos de farinha aquecidos com lenhas oriundas dos arredores dos roçados ou dos sítios.
Geralmente é produzida durante o período da enchente até meados do início da cheia. Após
preparada, parte da produção é destinada ao consumo, outra parte, à comercialização e uma
terceira parte, não necessariamente nesta ordem, é guardada como uma espécie de poupança
alimentar ou reserva destinada à venda quando adentra o período da seca do ciclo das águas
(Figura 21).
Figura 21 – Produção de Farinha.
Fonte: Dados de campo (2008).
59
O extrativismo vegetal e animal ocorrem em tempos diferenciados. Em Cajazeira, tal
como ocorre em outras comunidades ribeirinhas amazônicas estudadas por Fraxe (2000) e
Witkoski (2007), os quintais ou os sítios trabalhados pelos pescadores e suas famílias
constituem a área ao redor de suas moradias, onde são cultivadas várias árvores frutíferas,
plantas medicinais, plantas ornamentais, os jiraus13 e a criação de animais.
A coleta de cupuaçu, castanha e açaí, por exemplo, ocorre em determinados períodos
do ano. Algumas quantidades são destinadas ao consumo, e outras, imediatamente
destinadas à comercialização. A renda obtida com a venda dos produtos é para o provimento
de produtos geralmente não produzidos na localidade tais como, açúcar e medicamentos.
A caça consiste numa atividade sazonal relevante como alternativa alimentar e fonte
de proteína animal (MORÁN, 1990). Além de ser uma atividade destinada à subsistência,
serve à sociabilidade masculina nos momentos de confraternização, não orientados pela
lógica do trabalho produtivo e rotineiro como a agricultura.
A caça, como extrativismo animal, é praticada sempre que possível e o ano todo. Não
há em Cajazeira um tempo demarcado para esta atividade, isso porque é praticada antes,
durante, entremeada ou após outras atividades as quais já sabemos: a pesca, as práticas
agrícola, o extrativismo vegetal e a criação de animais ou após os serviços gerais e
específicos realizados pelos agentes de saúde e profissões de ensino como ocorre na
localidade.
A criação de pequenos e grandes animais é frequente durante o ano. O investimento
numa pequena criação de gado bovino, por exemplo, funciona como uma forma segura de
poupança para provimentos futuros, pois estes animais podem sobreviver e crescer durante
os períodos de escassez (cheia) e, nos casos de necessidade extrema, o investimento pode ser
facilmente recuperado com o consumo ou a venda de animais (FRAXE, 2000; WITKOSKI,
2007; PEREIRA, 2007).
Ao discorrer sobre as práticas produtivas realizadas em Cajazeira, a manutenção e a
preservação dos ambientes de pesca e a conversão de parte dos produtos temporariamente
abundantes em uma poupança na forma de produtos não perecíveis e sua posterior troca por
produtos de primeira necessidade, facilitam a sobrevivência dos pescadores e suas famílias
durante o período da fase terrestre da várzea. Estas práticas, como indica Pereira (2007),
situam-se no âmbito das estratégicas preventivas a médio e a longo prazo.
13
Adaptações suspensas para o período da cheia do ciclo das águas destinas aos cultivos de determinados
vegetais.
60
Esta dinâmica social quando praticada na várzea amazônica demonstra que a
temporalidade e a espacilidade do ciclo das águas são os fatores determinantes nas vidas dos
pescadores das localidades Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima.
1.2.2 Jaiteua de Baixo
A comunidade Santo Antonio e algumas casas flutuantes que se consideram
pertencentes à própria comunidade, compõem a localidade Jaiteua de Baixo. Os moradores
por ocuparem as margens do “paranazinho do Santo Antonio”, vivenciam o recuo da água
desse ambiente no período da seca, pois o volume e a espacialidade do “paranazinho”
depende do fluxo de água do sistema maior que é proveniente do lago Grande de
Manacapuru.
Conversando com o Sr. Rondon Filho, pescador comercial, ele fala que a
comunidade tem vantagem de não ficar tão distante da água do “paranazinho” como
acontece com os igarapés das localidades Cajazeira e Jaiteua de Cima. Isso porque, no
período da seca, a água diminui, mas não seca totalmente. Ele assim relata,
“[...] a seca pra nós aqui é difícil como em outras comunidades também. A
água fica mais suja aqui no beradão. O bom é que tem água branquinha que
sai do nosso terreno que serve pra beber e fazer tudo que precisa [...]. Eu
percebo uma coisa que é boa aqui, é que não fica seco como fica pro lado
da Cajazeira e do Jaiteua. Pra esses lugares, a seca é mais forte que aqui”
(F.R.F., pescador comercial, Jaiteua de Baixo, 2007).
Essa afirmação se aproxima com a questão topográfica explicada por Pereira (2007,
p. 20), ao dizer que “a topografia [o perfil do solo] ondulada da várzea é causada por
diferenças na deposição de sedimentos”. Essa diferença causou depressões e, ao mesmo
tempo, ondulações no terreno, o que torna as características ambientais de Santo Antonio
diferente das demais localidades. Isso permite afirmar que o paranazinho do Santo Antonio
não é raso em frente à comunidade, se ligando pelo canal diretamente com o paraná do
Jaiteua (Mãe do Rio, conforme o pescador) que permite o acúmulo de água por tempo
prolongado mesmo em períodos de seca (Figura 22).
61
Figura 22 – O período da seca em Jaiteua de Baixo.
Fonte: Dados de campo (2008).
A pesca realizada pelos pescadores de Santo Antonio, quando praticada em
ambientes internos ou próximos à comunidade, têm uma dinâmica diferente em relação às
localidades Cajazeira e Jaiteua de Cima. Conversando com o senhor Rondon Filho assim
esclarece:
“[...] A enchente é o pior período prá pesca porque aqui, quando enche, eu
tenho observado, aqui nós não temos lago na nossa região. O que nós
temos muito é ilha. O peixe tem facilidade em se transportar de um lugar
para outra ilha. Quando é lago como ali no Piranha, porque o pessoal pega
muito peixe lá, porque é lago e lá tem vários lagos. Tem lago porque tem a
restinga tão alta que não dá passagem pra beira do Solimões, e eles pegam
o peixe na beira da restinga.
Agora porque fica bom na seca pra nós, é por aqui é passagem de peixe, e
quando vem secando a tendência do peixe é baixar, e na passagem, a gente
sabendo bota a malhadeira lá [...].
Agora, pra certos lugares a enchente é melhor [...] o Terra Preta é bom, o
Belmiro, o furo do Bode [...] Na enchente é ruim pra nós e pra outros
lugares é bom. Em Cajazeira é melhor porque tem restinga alta. Uma época
dessa você não arpua um surubim aqui, porque não tem terra pra gente ver
ele; taí mas ninguém consegue vê. Ele está no fundo. Lá consegue pegar
porque tem beira pra ele ficar. Aqui não tem beira” (F.R.F., pescador
comercial, Jaiteua de Baixo, 2007).
O senhor Rondon Filho se refere ao conceito restinga alta para demonstrar que a
diferença no perfil do terreno em áreas de várzea ocorre de uma localidade para outra. Isso
significa que os lagos ou lagotes emergidos no período da seca próximos à sua comunidade,
62
quando utilizados para pesca, têm uma dinâmica diferenciada em relação à fase aquática de
outros ambientes de pesca das localidades Cajazeira e Jaiteua de Cima.
Ele demonstra que a “enchente” é o pior período para pescar em sua localidade. Este
fato que ocorre nos meses de fevereiro até abril equivale ao período de enchente para ele e
para as outras localidades, porém com a diferença de não ser um período bom para a sua
comunidade, mas sim, para as localidades Cajazeira e Jaiteua de Cima (Gráfico 2).
50,0
40,0
30,0
Melhor
20,0
10,0
0,0
Enchente
Cheia
Vazante
Seca
Gráfico 2 – Intensidade da atividade pesqueira dos pescadores de Jaiteua de Baixo.
Enchente: o melhor preço do pescado no mercado, porém de difícil captura;
Vazante/Seca: períodos de maior fartura, facilidade de captura em quantidade de
pescado, porém preço barato no mercado.
Fonte: Dados de campo (2008).
Esse conhecimento ecológico é importante porque as práticas de pesca podem ser
diferenciadas de um lugar para outro, fato que foi identificado por Batista (2003) e Fabré
(2003) ao caracterizarem os ambientes aquáticos conforme o destino da produção e o tipo
ecológico do ambiente manejado.
Fabré (2003, p. 54) ao mencionar algumas paisagens modificadas naturalmente para
se tornarem ambientes de pesca em outro, se refere à restinga alta da seguinte maneira:
“as restingas constituem longas faixas contínuas de terraços mais altas
(barrancos), denominadas regionalmente como “costa” [...] a restinga alta é
coberta pela floresta de várzea [...]. Durante a cheia esta floresta fica
totalmente inundada, sendo denominada localmente como igapó. A floresta
inundada não está distribuída sobre um relevo uniforme, principalmente
passada a área de restinga alta, apresenta um suave declive, que em
algumas áreas podem se acentuar, culminando com formações de baixadas
pantanosas: os chavascais”.
O tempo ecológico do ciclo das águas, como visto, é internalizado na observação da
formação física do ambiente. Porém, o tempo da movimentação dos peixes nos ambientes de
várzea é um conhecimento básico que os pescadores da comunidade internalizam desde a
63
infância em seu período de aprendizado. O senhor Rosano, pescador comercial da
comunidade Santo Antonio, assim observa o fenômeno da piracema:
“[...] a piracema vai do mês de Agosto a Setembro quando o rio vem
secando. Em outros lugares ela vai até Outubro e começa desde Julho. A
piracema é uma fase que baixa todas as qualidades de peixes em cardume,
vem saindo dos lagos e descendo do Solimões. Aí os peixes começam a
sair e quando tem a alagação que não seca muito, eles saem, mas quando
seca muito num dá pra sair não.
Depois deles saírem do Solimões, muitos deles sobem os afluentes, vão
enfrentando as cabeceiras, as corredeiras, vão subindo pros outros lagos
que ainda tem acesso, vão subindo o rio e muitos deles que sobem pro
Solimões retorna. Retorna pra desovar na água nova que entra nos pastos,
retorna pra desovar no Solimões e depois um bucado deles retorna pro seu
hábitat. No ano passado deu uma piracema muito grande de peixes, saiu
muito peixe, foram todas as qualidades de peixes na piracema [...] o pacu, a
sardinha, a branquinha, o jaraqui, o pelubim, a pescada” (F.R.L.M.,
pescador comercial, Jaiteua de Baixo, 2008).
A vazante é o período em que as água baixam. Nessa época, a pesca para lancear
cardumes migratórios é uma alternativa praticada por alguns pescadores comerciais da
comunidade. O IBAMA tem portarias que proíbem esta prática para determinadas espécies
de peixes, pois coincide com o período do defeso. Porém os pescadores direcionam as suas
capturas para as espécies que estão fora desta normativa prevista pelo IBAMA e pela
Colônia dos Pescadores de Manacapuru.
O tempo do ciclo das águas apresenta alguns fatores limitantes que reduzem
qualitativamente a base de subsistência dos moradores de Jaiteua de Baixo. O período da
seca amplia a jornada de trabalho, havendo a necessidade de adequar o corpo a nova
situação. Os caminhos aquáticos que antes eram realizados em canoa ou rabeta, agora são
realizados a pé. Caminhos que duravam alguns minutos a serem percorridos, agora levam
até hora ou horas.
A água como elemento necessário ao corpo humano, no período da seca, se torna
quase imprópria ao consumo devido o aumento do acúmulo de sedimentos e outras
partículas decorrente da redução da água nos igarapés e no próprio paranazinho do Santo
Antonio. “É difícil beber água barrenta” como diz os moradores da localidade.
Algumas alternativas são criadas para contornar a situação. A cacimba, como vimos
em Cajazeira, é uma alternativa utilizada em Santo Antonio. Alguns improvisos são feitos
próximos às residências através de equipamentos como, caixa d’água e cano PVC que
captam a água que sai do olho d’água descoberto. Segundo o senhor Rondon, a água de sua
64
cacimba surge apenas no período da seca e próximo à sua moradia. Ela é limpa e boa para o
consumo. A água da cacimba é empregada para o uso doméstico em lavagem de louças e
outros utensílios caseiros. Os animais do seu sítio também consomem esta água (Figura 23).
Figura 23 – Cacimba.
Fonte: Dados de campo (2008).
A redução da água no período da seca, como vimos, minimiza o raio de ação dos
pescadores em Cajazeira. Em Jaiteua de Baixo, as áreas internas da comunidade exigem a
abertura de varadouros para ter acesso a determinados ambientes de pesca. Com a redução
da água, os trapiches construídos para embarque e desembarque de pessoas e produtos são
transportados de lugares rasos para a margem mais profunda do “paranazinho” do Santo
Antonio (Figura 24).
65
Figura 24 – Trapiche: lugar para lavar utensílios domésticos e ponte improvisada.
Fonte: Dados de campo (2008).
A seguir, o calendário das atividades de trabalho reflete a polivalência dos moradores
da localidade Jaiteua de Baixo durante o ciclo anual das águas (Figura 25).
Figura 25 – O calendário das atividades produtivas em Jaiteua de Baixo.
Fonte: Dados de campo (2008).
66
A pesca é a atividade forte da localidade, é uma atividade realizada o ano todo pelos
pescadores em ambientes internos, nos arredores e distantes da localidade. A vazante e a
seca, contrário de Cajazeira e Jaiteua de Cima, é o melhor período para a pesca interna e
próxima à localidade. Os motivos, como vimos, foram explicados acima por Pereira (2007) e
pelo sr. Rondon acerca das diferenças do relevo na formação topográfica e ecológica do
ambiente que diferem Santo Antonio das demais localidades.
Em linhas gerais, a pesca realizada na vazante e na seca para o destino comercial não
é a mesma coisa da pesca comercial realizada no período da enchente. Os motivos
relacionados aos fatores culturais, econômicos e naturais explicam a valorização do peixe no
período da enchente tal como ocorreu em Cajazeira.
A pesca praticada na vazante e seca produz uma fatura que decorre de maiores
concentrações de peixes em pontos específicos – poços, paranás (canais de rotas
migratórias), furos e pequenos lagos – nesse período. Porém a fartura no mercado é
consequência do maior número de pescadores comerciais atuando. Isso acarreta na visão dos
pescadores – demanda relativamente reduzida, oferta de pescado acentuado e o maior
número de pescadores – a redução significativa do preço do pescado, ou seja, o valor do
peixe mais barato.
Como a pesca nos ambientes internos e próximos de Jaiteua de Baixo são melhores
na vazante e seca, eles preferem atuar no período da vazante tendo em vista a captura dos
peixes migratórios (cardume) que percorrem os ambientes próximos à localidade. Na seca, o
senhor Rondon, por exemplo, prefere atuar na agricultura apenas para manter as condições
básicas de sua família, ou seja, ele não ganha dinheiro para algo além do que manter as
condições mínimas necessárias da família.
Ele retorna a pescaria comercial mais intensiva após o período da seca. Durante a
enchente, ele pratica a pesca comercial em ambientes mais distantes da localidade que
requer conhecimento e prática, pois é o momento que a pesca melhor remunera – como
vimos anteriormente.
A caça como extrativismo animal é praticada o ano todo, porém sem tempos
definidos claramente para isso. Ela ocorre concomitantemente às demais atividades,
dependendo basicamente do interesse do pescador ou do agricultor.
A agricultura é praticada o ano todo, porém orientada por intervalos compreendendo:
preparo da terra, cultivo e colheita. Esta atividade é praticada de maneira alternada à
pescaria dependo do interesse e da disponibilidade do pescador comercial. Para a pesca de
67
subsistência, o tempo de trabalho destinado à agricultora ocorre, porém exigindo mais
disciplina e maior esforço do pescador ou agricultor.
Os quintais e os sítios constituem a área ao redor da residência do produtor (FRAXE,
2000). No sítio do Sr. Rondon, observamos o cultivo de árvores frutíferas, hortaliças e a
criação de pequenos e médios animais. No roçado, observamos o cultivo de milho, da
mandioca e da banana.
1.2.3 Jaiteua de Cima
A temporalidade e a espacialidade do ciclo das águas em Jaiteua Cima são fatores
dinâmicos e modificadores radicais da paisagem local. Como citado anteriormente, Jaiteua
de Cima reúne quatro comunidades: Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, Assembleia de
Deus, Assembleia de Deus Tradicional e Santa Izabel.
O lago do Jaiteua, como adverte os pescadores, é uma fronteira demarcada
territorialmente pelos moradores da localidade para assegurar onde termina ou alcança o
paraná do Tauari em direção aos limites externos da localidade. O lago do Jaiteua como
intermediário entre o paraná do Tauari e o lago Grande é de uso coletivo e sujeito a
determinadas restrições de uso, principalmente no período da seca do ciclo das águas para o
controle da pesca comercial. O paraná do Tauarí, como ambiente interno da localidade, é de
uso exclusivamente doméstico.
A água proveniente do lago Grande alimenta o lago do Jaiteua e todo sistema de
igarapés e canais que cortam o interior e os terrenos de fundo da localidade. O paraná do
Tauari, no período da cheia, margeia e “unifica” fisicamente os territórios das comunidades
Assembléia de Deus, Assembléia de Deus Tradicional e Nossa Senhora do Perpétuo
Socorro. No período da seca a água recua significativamente restando em seus trechos
alguns caminhos de água que tendem a ficar mais densos quando próximos da entrada do
lago do Jaiteua (Figura 26).
68
Figura 26 – Paraná do Tauari no período da seca.
Fonte: Dados de campo (2008).
A comunidade Santa Izabel, embora esteja na mesma localidade, não é diretamente
determinada pela influência aquática do paraná do Tauari. Santa Izabel situa-se às margens
do paraná do Seringa. Este mantém confluência com o paraná do Tauari e com o lago do
Jaiteua no período da cheia. Na época da seca, o Seringa tem sua água reduzida
drasticamente e desta fase emerge as “cacaias” – os galhos retorcidas e submersos da época
da cheia – como tradicionalmente classificam, ficando um campo vasto que liga a
comunidade até a margem do paraná. O paraná do Seringa é um ambiente de uso doméstico,
sendo proibida a pesca comercial para qualquer pescador, seja morador de dentro ou de fora
da localidade durante todo o ano (Figura 27).
69
Figura 27 – Paraná do Seringa no período da seca.
Fonte: Dados de campo (2008).
A dinâmica de abrangência da água do lago do Jaiteua, entendido na perspectiva dos
moradores como continuidade do lago Grande de Manacapuru, é, no período da cheia, um
fator limitante para a organização social da comunidade Assembleia de Deus e Nossa
Senhora do Perpétuo Socorro, porque parte do território das comunidades fica quase
totalmente submersa pela água nesse período.
O território da comunidade Nossa Senhora do Perpétuo Socorro está distribuído em
dois seguimentos: o principal é o núcleo central da comunidade, o outro extrato reúne um
pequeno número de casas que ficam praticamente de frente à comunidade Assembleia de
Deus Tradicional. Este segundo extrato é o território da comunidade que está mais sujeito à
inundação pelo paraná do Tauari no período da cheia. A comunidade Assembleia de Deus
tem seu território também dividido em dois extratos, e dependendo da intensidade da cheia,
são totalmente sujeitos à inundação (Figura 28).
70
Figura 28 – Território da comunidade Nossa Senhora do Perpétuo Socorro sujeito à
inundação. Jaiteua de Cima.
Fonte: Dados de campo (2008).
Conversando com o Senhor Lázaro, pescador comercial, indaguei sobre as condições
da pesca durante o período da cheia e da seca, ele explicou:
“[...] a cheia quando muito forte fica ruim pra pesca. Os peixes se enfiam
nesse igapó e pra pegar ele fica muito difícil, eles se espalham. Já na seca é
bom pesca no paraná do Anamã, porque tem muito peixe, lá o que tem
mais é poço e os peixes acabam ficando tudo lá quando começa a secá.
Mas as vezes tem conflito porque é muita gente pescando pra vende. Lá é
um lago bom pra pesca, porque lá tem poço na seca e os peixes reune tudo
lá quando sai daqui de dentro quando começa a secá. Aqui no Tauari e no
Seringa é só pra pesca pra consumo. Aqui é proibido pesca pra vender. Nós
fizemos um acordo pra isso.
[...] A chuva forte que deu semana passada já é sinal que vai começar a
enchente. Vai começa entrar água nova e o peixe vem junto com a água. O
lago Grande enche, aqui pra nós começa a encher tudo também” (L. S.,
pescador comercial, Jaiteua de Cima, 2007).
O senhor Lázaro é pescador comercial, é muito versátil porque conhece muito de
pescaria. Para ele, a estação da enchente é considerada um momento de abundância de
peixes, pois os peixes começam a entrar na mata de igapó em busca de abrigo e alimento. Os
acordos informais de pesca adotados pelos pescadores locais são para a proteção dos
ambientes internos e nas imediações da localidade, ocorrendo como medidas preventivas
adotadas para a manutenção dos recursos pesqueiros (Gráfico 3).
71
50,0
40,0
30,0
Melhor
20,0
10,0
0,0
E nchente
C heia
Vazante
S eca
Gráfico 3 – Intensidade da atividade pesqueira dos pescadores de Jaiteua de Cima.
Enchente: melhor preço do pescado no mercado e relativa facilidade de captura;
Vazante/Seca: períodos de maior fartura, facilidade de captura em quantidade de
pescado, porém preço barato no mercado.
Fonte: Dados de campo (2008).
A redução da água no período da seca implica a mudança de comportamento dos
moradores da localidade, alterando as rotinas de trabalho. Acordar mais cedo para caminhar
até um lugar de pesca, ou acordar mais cedo para caminhar até “o centro” – o local do
roçado e da floresta de trabalho – são algumas das alterações temporais que ocorrem no
cotidiano dos pescadores da localidade. “Quem manda em tudo aqui é a água” diz o senhor
Lázaro ao se referir ao aumento do esforço de trabalho no período da seca.
Ele fez algumas ponderações a respeito do que altera na jornada de trabalho de sua
família: o transporte aquático no paraná do Tauari, por exemplo, é parcialmente limitado por
causa da seca. Caso seja uma seca acentuada, a alternativa para sair da localidade em direção
ao lago Grande ocorre através dos varadouros. Estes atalhos, segundo o senhor Lázaro, são
caminhos improvisados por terra que facilitam o acesso a determinados espaços aquáticos.
As poças, os poços ou os canais como ele se refere, são ambientes alcançados pelos
varadouros, o que favorece o acesso ao lago Grande.
As pontes improvisadas são alternativas para apoiar a travessia de um igarapé seco e
lamacento para sua outra extremidade. Porém ele destaca que é uma travessia perigosa, pois
as pontes como são coisas improvisadas, elas podem quebrar e as farpas da madeira
ocasionar ferimentos ao corpo. A qualidade da água para consumo tem suas características
reduzidas. Como não há poços artesianos na localidade, a água consumida é geralmente
proveniente do igarapé. Na seca, o paraná e os igarapés se tornam inviáveis para o consumo
devido ao aspecto e densidade de água barrenta. As cacimbas, nesse contexto, são
72
alternativas viáveis para o consumo doméstico das famílias tal como em Cajazeira (Figura
29).
Figura 29 – Ponte improvisada.
Fonte: Dados de campo (2008).
O calendário abaixo descreve as atividades produtivas realizadas em Jaiteua de Cima
(Figura 30):
.
Figura 30 – Calendário das atividades produtivas realizadas em Jaiteua de Cima.
Fonte: Dados de campo (2008).
A comunidade pratica a polivalência de atividades. A prática agrícola ocorre o ano
todo através do ciclo: preparo da terra, cultivo e colheita. O “centro”, denominado por eles
73
como o local do roçado, situa-se em áreas de terras altas e afastadas das possibilidades da
cheia. O plantio ocorre nos meses de agosto a setembro e a colheita ocorre de novembro em
diante.
No roçado, cultivam principalmente a mandioca (Manihot esculenta), o milho, a
banana e o abacaxi. São cultivos destinados ao consumo e à comercialização. Da mandioca,
preparam a farinha, considerada o principal produto para obtenção de renda para as famílias
da localidade.
Tal como ocorre em Cajazeira e Jaiteua de Baixo, os moradores praticam estratégias
preventivas para aliviar situações de possível escassez. Isso porque, do preparo da farinha,
armazenam uma parte da produção em potes para trocar ou comercializar com objetivo de
adquirir alimentos não perecíveis (açúcar, sal e óleo).
A pesca é praticada o ano todo. O período da enchente – de fevereiro a maio como
indicado pelos pescadores – é o momento que consideram como favoráveis à boa pesca,
sobretudo pela boa remuneração. Fato que foi recorrente, no mesmo período em Cajazeira.
De acordo com o depoimento dos pescadores, os ambientes de pesca internos da
localidade são destinados para o uso exclusivo dos pescadores locais e suas famílias. Os
ambientes relativamente externos à localidade são utilizados conforme determinadas regras e
acordos informais de uso comum dos recursos. A territorialidade e os acordos informais
operam para garantir a prevenção e a manutenção dos recursos aquáticos a médio e a longo
prazo, face a situações de escassez naturais ou escassez produzidas socialmente pela pesca
predatória.
A caça como extrativismo animal é uma prática semelhante ao que ocorre em
Cajazeira, sem maiores detalhes. A criação de pequenos e grandes animais é comum na
localidade. Porém a criação de gado bovino, quando do período da seca, é transportado para
às margens do paraná do Jaiteua longe dos agravos – doenças e dificuldades de alimento –
desse período como destaca por Sternberg (1998). O uso de marombas não foi percebido em
nenhuma localidade.
Esse tipo de ação é considerado estratégias compensatórias (PEREIRA, 2007). Isso
ocorre quando,
Estratégias preventivas não forem ou não puderem ser iniciadas, ou forem
inadequadas, então algumas respostas imediatas são necessárias para
corrigir os problemas de desequilíbrio entre população e recursos. Estas
respostas podem assumir a forma de redistribuição da demanda
(população) ou de redistribuição dos recursos [como ocorre com o gado no
período da seca] (PEREIRA, 2007, p.17).
74
No capítulo a seguir será apresentado a organização social dos pescadores, os principais
agentes sociais da pesca e o conhecimento tradicional dos pescadores em relação às praticas de
pesca.
75
CAPÍTULO II
PESCADORES E PESCARIAS
Este capítulo aborda o conhecimento e as práticas de pesca desenvolvidas pelos
pescadores de subsistência e pescadores comerciais das localidades Cajazeira, Jaiteua de
Baixo e Jaiteua de Cima no uso dos seus territórios de pesca.
Os conceitos de Lourdes Furtado (1993) – pescadores polivalentes e pescadores
monovalentes – apoiou-nos a pesar a multiplicidade de atividades que estes agentes sociais
realizam em um dia de trabalho, bem como as redes de sociabilidade que estabelecem na
vida comunitária e durante as práticas de pesca.
Os lanços de pesca realizados pelos pescadores das localidades Cajazeira, Jaiteua de
Baixo e Jaiteua de Cima em áreas de floresta alagada (florestas de igapó) evidenciam o
tempo ecológico (da natureza e seus ciclos físicos e climáticos) e o tempo social (das
relações sociais e do mercado) vivenciado pelos pescadores.
Esta conexão de tempos combinados na consciência do pescador, imprimem ritmos
de trabalho no “interior” da pesca de subsistência e da pesca comercial, ocasionado
possibilidade de manejo equilibrado ou degradante aos recursos pesqueiros.
Estes são os principais assuntos apresentados neste capítulo.
76
2.1 A vida comunitária dos pescadores e de suas famílias nas localidades Cajazeira,
Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima
“Nós que vivemos aqui, vivemos da nossa força, do nosso trabalho mesmo
[...], os políticos só vêm pra cá na época de eleição, prá querê voto, depois
que passa, eles desaparecem, e as coisas continuam assim: precisando
melhorá a escola, falta saúde, falta energia (V. C., pescador de subsistência,
Jaiteua de Cima, 2008).
As comunidades estabelecidas nas localidades estudadas apresentam, em sua
composição social e material, instituições e infraestruturas (equipamentos culturais)
semelhantes a outras comunidades rurais do estado do Amazonas. As comunidades
apresentam um modo de vida e trabalho que possibilitam sua manutenção de existência,
porém vivenciam as dificuldades de infraestrutura básica, baixa renda e pouco apoio das
instituições do Estado – segurança, saúde, educação, lazer e alimento – o que tem contribuído
para a redução da qualidade de vida das famílias dos pescadores.
As famílias das localidades Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima como
descrito, estão organizadas em “comunidades” (modo como é chamado os assentamentos
rurais locais) segundo a denominação dos moradores. Os núcleos comunitários são os espaços
de socialização dos moradores à medida que centralizam condições de infraestrutura para
realização de serviços gerais, lazer, vida religiosa, saúde e educação. A necessidade de formar
os centros comunitários nos quais estão localizadas as principais instituições – a escola, a
igreja, a sede de reuniões comunitárias, o campo de futebol e as associações – são de suma
importância para dar expressão aos assuntos, conhecimentos, sentimentos e interesses comuns
e divergentes dos moradores acerca das suas necessidades e reivindicações de serviços
públicos para a melhoria local.
Segundo Souza (1996), no âmbito comunitário, a ação comunitária tem sido um
instrumento usado pelos grupos rurais para a superação das barreiras e dos problemas
encontrados na vida em comunidade. Esse instrumento tem sido usado de diferentes formas,
por diferentes grupos de pessoas, muitas com obtenção de resultados positivos e outras
vezes, não correspondendo às expectativas. A ação comunitária precisa estar vinculada a
trabalhos cooperativos para que tenha algum resultado, entretanto, se não houver uma
resposta da própria comunidade, não terá valor algum.
A busca de superar os desafios encontrados na vida comunitária requer a cooperação
de todos para que estas ações sejam concretas e atinjam seus objetivos. A ação comunitária
representa um princípio através do qual a família já não é apenas uma unidade básica, mas
77
passa a ser incorporada ao centro onde todas as famílias possuem um papel fundamental
para o funcionamento da vida local. Segundo a autora:
“[...] a ação comunitária é uma prática de ajuda mútua e cooperação que se
articula e se opera a partir da comunidade [...]. Esta ação enfrenta os
desafios a que a população comunitária é submetida, seja para solução de
conflitos, seja para a promoção de eventos ou comemorações [...] a partir
desses desafios é que determinadas formas de cooperação comunitária, tipo
mutirão, ajuda mútua, coleta voluntária, vão se estruturando e dando
resultado a essa ação coletiva [...]” (SOUZA, 1996, p. 28).
O conceito de comunidade utilizado para pensar a organização social e a ação dos
moradores das localidades está relacionado aos elementos da teoria clássica do conceito de
comunidade, porém o sentido de comunidade como designado pelos moradores indica uma
realidade dinâmica que é transformada pelas necessidades do contexto, seja político,
econômico ou relacionados à defesa de seus direitos.
Para Tonnies (1973), por exemplo, “tudo que é confiante, interno, que vive
exclusivamente junto, é compreendido como a vida em comunidade.” O autor analisa a
distinção entre comunidade e sociedade. Para o autor, a comunidade é caracterizada pela
organicidade social, há uma ligação entre os membros onde prevalece a concórdia, o
costume e o entendimento. Estes elementos são tácitos, dados quase naturalmente. Para
Tonnis (1973), o sentido contrário ou contraditório seria a sociedade, que decorre da troca e
afastada do sentido de coletividade partilhada, onde se estabelece o contrato explícito que é
o contrário do consenso comunitário e das regras consuetudinárias. A motivação de pleno
livre arbítrio e a competição são o que substituem a solidariedade.
Weber (1999), de modo mais sofisticado, define as relações sociais como sendo
comunitárias e associativas. De acordo com o autor, as relações comunitárias podem se
apoiar em fundamentos afetivos, emocionais, familiar ou tradicionais, “repousa no
sentimento subjetivo de pertencer [a um grupo social]” (WEBER, 1999, p. 25). A coesão
social tem um sentido naturalizado e integrador. Enquanto as relações associativas para
Weber (1999), constituem-se a partir de ajustes de interesses racionalmente motivados, de
acordos racionais por declaração recíproca, uma relação contratual deliberada politicamente.
Para o autor, “a grande maioria das relações sociais tem caráter, em parte, comunitário e, em
parte, associativo” (WEBER, 1999, 25).
Gusfield (1975), por outro lado, percebe a questão operacional dos conceitos, ou
seja, percebe como os conceitos, dentre eles comunidade, são acionados diante de
determinada realidade. Para o autor, existem dois modos de uso do conceito de comunidade
78
em jogo: um de uso territorial que é referente ou relacional ao lugar, e um que é relacional
vinculado e elaborado a partir das relações sociais como decorrente de designação política.
Para o autor, comunidade é um conceito analítico, é um instrumento operacional que não
significa necessariamente realidades empíricas. Comunidade é um conceito dinâmico, é uma
maneira de pensar as realidades empiricamente observáveis. Segundo o autor, a
solidariedade é construída, e os “atrativos comunais” nos ajudam a pensar a identidade do
grupo. Essa identidade é uma construção social e não está presa a uma localização
geograficamente estabelecida ou determinada.
Nesse sentido, a noção conceitual de comunidade de Gusfield (1975) nos ajuda a
pensar que o termo comunidade para os moradores das localidades pesquisadas quando
acionados expressa uma designação de uso desses agentes sociais direcionado para a
utilização político-administrativa ou jurídica e não apenas como forma empírica.
Para alcançarem os objetivos de melhoria social e econômica, os moradores das
localidades Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima organizaram algumas associações
para melhor pensar e gerenciar seus problemas e reivindicações. O quadro 2 a seguir
descreve as formas de organização política dessas comunidades por localidade:
79
Localidade
Cajazeira
Jaiteua de
Baixo
Comunidade
Nossa Senhora Aparecida
Associação dos devotos de Nossa Senhora
Aparecida
Associação de Pais e Mestres
Associação de Moradores
Associação de Agricultores
Clube de Mães
Nossa Senhora do Perpétuo Socorro
Associação de Moradores
Associação dos Agricultores
Associação de Pais e Mestres
5 anos
10 anos
3 a 4 anos
3 anos
4 anos
2 anos
2 anos
4 anos
Santo Antônio
Clube de mães
Jaiteua de
Cima
Tempo de
Existência
Assembleia de Deus
Associação dos membros da Assembleia de
Deus
Associação de Moradores
Assembleia de Deus Tradicional
Associação dos membros da Assembleia de
Deus Tradicional
Associação de País e Mestres
Associação de Moradores
Nossa Senhora do Perpétuo Socorro
Associação de Pais e Mestres
Clube de Mães
Associação de Moradores
Associação de Agricultores
Santa Isabel
Associação dos membros da Assembleia de
Deus
Clube de Mães
Membros do sindicato Rural dos Trabalhadores
Associação de Moradores
Associação de Pais e Mestres
5 anos
8 anos
3 anos
6 anos
5 anos
4 anos
10 anos
20 anos
30 anos
2 anos
10 anos
17 anos
20 anos
18 ano
20 anos
Quadro 2 – Associações de comunidades
Fonte: Dados de campo (2008).
Verificamos que as famílias das comunidades participam de diversas associações.
Algumas delas como, a Associação de Moradores, são recém criadas e outras têm alguns
anos de existência, aproximadamente entre dez a vinte anos.
Os moradores das comunidades participam dessas associações na condição de sócios,
pagando um valor mínimo para a manutenção dessas instituições. A participação se dá
80
também através de diversos trabalhos, cooperando como tesoureiros da diretoria executiva
da associação. Outros moradores trabalham na prestação de serviços gerais como auxiliares,
colaborando nas reformas das igrejas e das escolas. Outros associados auxiliam em
atividades culturais, tais como a promoção e divulgação de festas religiosas e eventos
esportivos. Um pescador de subsistência da comunidade Assembleia de Deus (Jaiteua de
Cima) fala da importância da Associação de Moradores e da vida em comunidade:
[...] Viver na comunidade traz benefícios. Depois que a pessoa passa pagar
a associação dos moradores todos os meses. Se for [documento] pra
aposento a pessoa vai receber até morrer. Então, ela tem direitos. Por
exemplo, o auxilio materno [...] a comunidade dá uma declaração, dá um
pedaço de terra de um amigo pra essa pessoa no período de cinco meses
[...]. Nós exigimos somente que essa pessoa seja sócio da comunidade,
mas, pagando seu direito para que nós possamos correr atrás dos benefícios
que eles querem, pro benefício de todos. Eu levo no sindicato, eu levo no
INSS, eu tenho declarações prontas aqui do sindicato para qualquer
beneficio. [Levo também os associados] para tirar carteira de identidade,
CPF. Eu passo pros comunitários tudo isso direitinho, já tudo declarado. A
nossa associação de moradores serve pra isso, e tem feito a gente feliz (V.
C., líder comunitário, Jaiteua de Cima, 2008).
Uma importante conquista das comunidades nos últimos anos como resultado de
pauta de reuniões foi o reconhecimento jurídico de suas comunidades. A legalização das
comunidades permite o diálogo formal com o Estado (instituições públicas) e com as
instituições privadas. A aquisição do CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica), por
exemplo, facilitou que as lideranças comunitárias acionassem os bancos (geralmente bancos
estatais) para adquirirem empréstimo e financiamento para aquisição de produtos –
máquinas e equipamentos – a serem usados nos trabalhos agrícolas e de infraestrutura nas
comunidades. O morador da localidade Jaiteua de Cima afirma:
“[...] a gente sempre viveu em comunidade, mas depois de oito anos ... é
isso mesmo, que a gente passou a ser comunidade mesmo com toda
documentação certinha, a gente conseguiu algumas coisas pra nossa
comunidade ... o motor de luz que a gente tem, nós compramos esses
tempos .., a reforma da escola foi uma parte que a prefeitura fez, a outra
parte nós compramos financiado mesmo ... se a gente não tivesse
organizado o documento da comunidade seria difícil melhora as coisas por
aqui, porque onde você vai, e falar na prefeitura ou no banco tem que tá
com a comunidade em dia, toda documentada, se não, não consegue nada”
(Sr. R. V., líder comunitário, Jaiteua de Cima, 2008).
O acordo informal de pesca convencionado pelos pescadores de subsistência e
pescadores comerciais da localidade Jaiteua de Cima para “guardar” e conservar o paraná do
81
Anamã e o lago do Jaiteua no período da seca do ciclo das águas, foi estabelecido em
reuniões de moradores envolvendo as quatro comunidades estabelecidas em Jaiteua de
Cima, com o intuito de discutir a situação de escassez da pesca que estava ocorrendo pela
exploração comercial excessiva por pescadores comerciais locais e por pescadores citadinos
principalmente no período da seca.
A mobilização dos líderes comunitários para concretizar o acordo de pesca foi uma
iniciativa importante para controlar a pesca comercial e garantir as condições mínimas de
subsistência para as famílias dos pescadores de Jaiteua de Cima. Porém as lideranças
comunitárias ressaltam que o acordo não é seguido por todos porque há resistência dos
próprios pescadores comerciais locais que vivem necessariamente da renda da pesca e por
pescadores citadinos (pescadores de fora) que se fundamentam no fato de os moradores
locais não disporem de legitimidade jurídica legal para impedir o acesso dos pescadores aos
principais ambientes aquáticos da localidade – paraná do Anamã e lago do Jaiteua – e de uso
partilhado com os pescadores das localidades Cajazeira e Jaiteua de Baixo.
Neste mesmo período relativo à criação do acordo informal de pesca, as Associações
de Moradores, de modo geral, passaram a discutir a participação dos pescadores das
localidades com relação à filiação desses agentes sociais à Colônia de Pescadores de
Manacapuru Z9. Isso porque o controle sobre a atividade passou a confrontar os interesses
dos pescadores comerciais locais que achavam que seus ganhos (rentabilidades) seriam
limitados pelo acordo. Sendo importante ressaltar que a maior parte dos moradores das
localidades não estava vinculada a nenhuma associação ou instituição de trabalho, e que por
esse motivo os moradores não tinham acesso aos seus direitos de pescador ou agricultor
(este último referente à Associação dos Produtores Rurais de Manacapuru).
Esse tema, praticamente, era pouco comentado em reuniões comunitárias das
localidades e o desconhecimento dos pescadores sobre seus direitos e deveres com relação
ao oficio de pescador profissional (artesanal) e agricultor era difuso. Essa condição, além de
desestimular o interesse dos pescadores comerciais em se ajustarem ao acordo informal de
pesca porque não viam sentido de ganho material (monetário) sobre o mesmo, exigiu das
lideranças comunitárias (até mesmo para o fortalecimento do acordo) mobilização política
interna e o conhecimento sobre os direitos legais dos pescadores e dos agricultores de suas
comunidades junto a estas associações. O desdobramento dessa atitude dos líderes
comunitários resultou no envolvimento gradual dos moradores em busca de seus direitos.
Uma liderança comunitária afirma:
82
“[...] antes do nosso acordo [de pesca] aqui pro Jaiteua, nós tinha pouco
conhecimento dos nossos direitos. Tinha um e outro pescador, até o pessoal
da agricultura não sabia mesmo dos seus direitos. Então prá melhorá isso,
nós pedimos auxílio do irmão [evangélico] que conhece mais sobre a
Colônia e das leis, e ele veio aqui e explicou tudo. Depois começamos a
ficá sócio da Colônia e outros da Associação dos Agricultores, foi isso que
aconteceu [...]” (V. C., líder comunitário, Jaiteua de Cima, 2008).
Os quadros 3 indica, respectivamente, a participação dos pescadores como filiados à
Colônia de Pescadores de Manacapuru Z9 na época anterior à mobilização, em seguida, os
principais motivos relacionados a não participação desses agentes sociais a essa instituição.
Localidades
Participação
25%
(Sim)
75%
(Não)
20%
(Sim)
80%
(Não)
14%
(Sim)
86%
(Não)
Jaiteua de Cima
Jaiteua de Baixo
Cajazeira
Motivos dos pescadores relacionados a
não participação na Colônia dos
Pescadores de Manacapuru Z9
Localidades
(Nível de Informação)
Cajazeira
Jaiteua
de Baixo
Jaiteua de
Cima
Conhecimento sobre a Colônia.
médio
baixo
baixo
Documentos pessoais completos para filiação.
médio
baixo
baixo
Receio de perder outros direitos como a
aposentadoria por tempo de trabalho na
agricultura.
alto
baixo
médio
médio
médio
médio
Motivação política do líder comunitário.
baixo
baixo
baixo
Desinteresse pessoal.
médio
alto
médio
alto
alto
alto
Distância da moradia à
Pescadores de Manacapuru.
Falta de dinheiro.
Colônia
dos
Quadro 3 – Nível de participação social e política na Colônia de Pescadores de Manacapuru Z 9.
Fonte: Dados de campo (2008).
83
A Associação de Moradores e a Associação de Pais e Mestres discutem sobre os
problemas relacionados ao ensino escolar adotado nas localidades. O sistema de ensino
escolar desenvolvido nas localidades é coordenado pela Prefeitura Municipal de
Manacapuru e pela Secretaria Estadual de Educação do Estado do Amazonas (SEDUC). A
pesquisadas apontou para a predominância de escolas de ensino fundamental – ensino de 1ª
a 8ª série. A fase posterior, ou seja, o ensino médio só é possível de ser realizado se os
estudantes conseguirem vagas em escolas de localidades vizinhas que tenham esse nível
escolar ou em escolas da sede do Município de Manacapuru.
De acordo com as lideranças comunitárias das localidades Cajazeira, Jaiteua de
Baixo e Jaiteua de Cima que estabeleceram diálogo com a Prefeitura de Manacapuru em
contextos pretéritos, cada comunidade (das respectivas localidades) deveria ter uma escola
com sede própria e com infraestrutura suficiente para acomodar os estudantes de todas as
séries e idades, porém não é isso que ocorre na prática. Em Jaiteua de Cima, por exemplo, a
escola de 1ª a 8ª série chamada Raimundo Queiroz é frequentada por crianças, jovens e
adultos da própria localidade, e por alunos das localidades Jaiteua de Baixo e Cajazeira. Por
outro lado, a estrutura escolar é sobrecarregada com alunos das comunidades Assembleia de
Deus Tradicional e Assembleia de Deus (pertencentes à localidade Jaiteua de Cima) que não
têm sede escolar por motivo de falta de apoio – financeiro e planejamento – da Prefeitura de
Manacapuru.
Em Cajazeira, as comunidades Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e Nossa Senhora
Aparecida possuem escolas de ensino fundamental, porém a infraestrutura escolar de ambas
é insuficiente para atender as demandas de todos os alunos. As salas de aula e o material
didático são ajustados para atender com prioridade alunos de 1ª a 4ª série. Os alunos de 5ª a
8ª são alocados para a escola Raimundo Queiroz em Jaiteua de Cima para darem
continuidade aos estudos.
Em Jaiteua de Baixo, a escola de ensino fundamental atende apenas as demandas de
ensino de 1ª a 4ª série para crianças e adolescentes e educação básica para adultos. Os
estudantes de 5ª a 8ª série são encaminhados para a escola Raimundo Queiroz em Jaiteua de
Cima e os alunos de ensino médio são encaminhados para escolas da sede do Município de
Manacapuru quando as condições financeiras e sociais permitem.
O horário de funcionamento das escolas em todas as comunidades compreende o
período matutino e vespertino. Na escola Raimundo Queiroz, por exemplo, as aulas são
ministradas por professores residentes da própria localidade, por professores de localidades
84
vizinhas e por profissionais do município de Manacapuru. Os professores que moram fora da
localidade, geralmente, ficam como residentes temporários na comunidade Nossa Senhora
do Perpétuo Socorro, ocupando o “barracão”, mais conhecido como “a casa dos
professores”.
O quadro 4 a seguir apresenta o nível escolar das localidades pesquisadas.`
85
Localidade
Comunidade
Nossa Senhora
Aparecida
Grau de Escolaridade
1ª a 4ª Série
5ª a 8ª Série
Ensino Médio Incompleto
Não Lê e não Assina o Nome
Só Assina o Nome
Freqüência
%
33,3
16,7
16,7
16,7
16,7
Cajazeira
1ª a 4ª Série
Ensino Médio Incompleto
50,0
25,0
Só Assina o Nome
25,0
1ª a 4ª Série
5ª a 8ª Série
Ensino Médio Completo
Nunca Estudou
57,1
14,3
14,3
14,3
Assembléia de
Deus
1ª a 4ª Série
5ª a 8ª Série
Só Assina o Nome
50,0
33,3
16,7
Assembléia de
Deus
Tradicional
1ª a 4ª Série
87,5
5ª a 8ª Série
12,5
Santa Isabel
1ª a 4ª Série
Não Lê e não Assina o Nome
Só Assina o Nome
61,5
7,7
30,8
Nossa Senhora
do Perpétuo
Socorro
1ª a 4ª Série
5 ª a 8ª Série
Ensino Médio Completo
Não Lê e não Assina o Nome
Nunca Estudou
Só Assina o Nome
21,4
42,9
7,1
7,1
14,3
7,1
Nossa Senhora
do Perpétuo
Socorro
Jaiteua de
Baixo
Jaiteua de
Cima
Santo Antônio
Quadro 4 – Nível escolar.
Fonte: Dados de campo (2008)
Conforme os moradores e a observação em campo, o nível escolar de 1ª a 4ª série
corresponde aos estudantes jovens e adultos das localidades pesquisadas e atende às
expectativas dos líderes comunitários em atingir esse nível mínimo educacional. Para o grau
de escolaridade variando entre a 5ª e 8ª série e a condição de moradores alfabetizados e nãoalfabetizado, os líderes comunitários explicam:
“[...] a primeira necessidade das nossas comunidades, que era muito
discutido nas reuniões da associação de pais e dos moradores também, era
86
a preocupação em faze as nossas crianças estuda mais. Com toda
dificuldade nossa e conversando com os professores e os pais a gente
conseguiu garanti o ensino básico pra crianças, que é mais importante
mesmo, mas a gente conseguiu convence os mais velhos a vim pra escola
também. Hoje os companheiros mais velhos, principalmente as mães,
minha esposa que não sabia lê direito, foi pra escola com dificuldade,
porque tem que trabalhá, hoje sabe lê, assina o nome e tudo, que bom né.
Hoje os colegas, o pessoa da nossa família sabe lê, e lê a bíblia certinho.
Isso foi muito bom pra nós. [...]”(Sr. R. V., líder comunitário, Jaiteua de
Cima, 2008).
“[...] é difícil continuá o estudo das crianças aqui nas comunidades depois
que termina a 4ª série, a escola é pequena, falta professor, falta sala de aula
que pra nós e mais grave. Então a saída e mandá pra comunidade do
Velhote [comunidade N.S.P.S., Jaiteua de Cima] que já não tem mais vaga,
e pra quem podé manda pras escolas de Manacapuru. Porque só dá pra ir
pra lá quem tem parente lá, que sempre tem. As crianças que querem
avança no estudo tem que ir pra lá, ou pra Manaus e só dá pra vim pra casa
no sábado e domingo, porque o gasto pra vim pra cá e alto, e os pais não
tem dinheiro pra isso [...]” (Sr. R., líder comunitário, Cajazeira, 2008).
As escolas são freqüentadas apenas nos períodos da enchente e cheia, porque os
ambientes aquáticos oferecem condições naturais para o deslocamento do barco-escola e das
pequenas embarcações que transportam os estudantes aos estabelecimentos de ensino. Esse
espaço de tempo corresponde ao calendário oficial escolar e todas as atividades escolares
devem ser realizadas nesse período. Do intervalo de tempo que compreende o mês de agosto
à segunda quinzena de novembro aproximadamente (períodos da vazante e seca,
respectivamente), as escolas entram em recesso e retornam às atividades apenas no mês de
dezembro em sintonia com a subida da água – da enchente.
As lideranças comunitárias se posicionam criticamente diante dessa situação,
afirmando que o curto calendário não dá conta daquilo que deveria ser ideal para o
aprendizado de qualidade. Por outro lado, a prefeitura do município de Manacapuru
pronuncia-se muito pouco com relação a rotina de vida escolar, atendendo somente as
condições mínimas de existência e funcionamento da estrutura pedagógica local.
O poder e a capacidade de liderança comunitária (administração) são fortemente
influenciados pela vida religiosa nas localidades. Inclusive as tomadas de decisão e as regras
de conduta dos moradores, neste caso, os acordos informais de pesca, são discutidos sob o
juízo de valor dessa conexão – vida comunitária e vida religiosa – e não cumprir as regras
significa sanções ao morador.
Liliane Oliveira (2008) estudou a dimensão religiosa nas localidades Cajazeira,
Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima e verificou que as instituições religiosas predominantes
87
correspondem às denominações Católica Apostólica Romana e às Igrejas Evangélicas
(Gráfico 4).
120,0
100,0%
100,0%
100,0
80,0
58,8%
60,0
41,2%
40,0
20,0
0,0
Católica
Católica
Cajazeiras
Jaiteua de Baixo
Católica
Evangélica
Jaiteua de Cima
Gráfico 4 – Instituições religiosas
Fonte: Dados de campo (2007).
Segundo a autora, a formação dos núcleos comunitários nas localidades se deu dentro
do direcionamento político e territorial, e atualmente são as igrejas (evangélica e católica) e
o poder local instituído dentro de cada comunidade (cada comunidade disponibiliza de uma
igreja) que delimitam o espaço territorial e as formas de uso dos recursos em todas as
localidades, sendo em Jaiteua de Cima a maior disputa simbólica. Nesta localidade, as
iniciativas de acordo informal de pesca para disciplinar o uso dos recursos pesqueiros
surgiram e tiveram eficácia, principalmente pela influência das instituições evangélicas, e
participar da vida religiosa nas comunidades evangélicas significa acompanhar as
deliberações do núcleo comunitário – das reuniões das associações existentes nas
comunidades – e o descumprimento sujeita a pessoa a determinadas sanções: perder os
benefícios sociais – empréstimos, auxílio de serviços –que a vida comunitária pode
proporcionar, é uma delas.
A autora afirma que o poder local está diretamente estabelecido a partir da história da
formação social de cada núcleo comunitário. Ela detectou entre os núcleos comunitários, que
o poder local se constitui por laços familiares associados à vida religiosa. Fator que
determina que os cargos de liderança sejam ocupados pelas pessoas que fazem parte da
família pioneira na fundação de cada núcleo comunitário. Além disso, o terreno onde os
88
núcleos estão concentrados é uma herança familiar, gerando assim, um forte laço de
parentesco.
“[...] aqui na comunidade as família participa mais das decisões na
comunidade, porque a maioria é tudo parente mesmo. Primeiramente é
mais a minha família. Tem na comunidade a minha família, tem da minha
mulher, tem mesmo na comunidade umas cinco famílias, quase todo
mundo é parente. Tem umas quatro a cinco famílias só na comunidade e
todo mundo é parente, eu sou parente da minha mulher, primos distantes.
[…] como nós somos evangélicos, a gente segue o principio da igreja, né, e
nas reuniões o que a comunidade decide é o que a gente cumpre, é
importante isso” (I. L., Agente de saúde e ex-líder comunitário, 2007).
Nas localidades Cajazeira e Jaiteua de Baixo, as comunidade são predominantemente
católicas. A organização social, porém, não difere do predomínio familiar presentes nas
lideranças comunitárias como em Jaiteua de Cima.
2.2 A família do pecador como unidade de trabalho nas atividades produtivas
Para pensar as rotinas de trabalho dos pescadores de subsistência e pescadores
comerciais das localidades Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima, apropriamos-nos
das noções conceituais de Lourdes Furtado (1993) denominadas pescadores polivalentes,
pescadores monovalentes e pescadores citadinos, porque nos auxiliam a pensar os múltiplos
papéis sociais que os pescadores das localidades exercem e o modo como as racionalidades
subjacentes às práticas produtivas operam.
Os conceitos de Furtado se relacionam com o conceito de camponês de Chayanov
(1974) e, mais especificamente, aproximando-se do conceito de camponês amazônico de
Witkoski (2007), pois sugere-se que a organização social no interior das atividades
pesqueiras e produtivas da terra e da floresta, defronta-se com elementos chaves que
caracterizam a economia camponesa da várzea amazônica.
Nas localidades estudadas, o cotidiano dos pescadores é constituído de atividades e
rotinas de trabalho diversificadas (FURTADO, 1993). As atividades produtivas como, a
agricultura, o extrativismo, a caça e a pesca, se mantêm, geralmente, em moldes lógicos de
organização do trabalho tradicionais, mostrando para nós que os pescadores necessitam
trabalhar intensamente os três ambientes – a terra, a floresta e a água. A piscosidade dos
diversos ambientes aquáticos favorecem a economia da subsistência e do excedente. Parte
importante da produção do pescado, o que e como produzir, vem das demandas do mercado
89
consumidor de Manacapuru através dos agentes da comercialização que socializam
informações necessárias para atender às expectativas local e extra-local (WITKOSKI, 2007).
A organização do trabalho em atividades pesqueiras tal como ocorre em atividades
agrícolas, extrativistas e criatórias está fundamentada e tem sentido na participação ativa dos
membros do grupo doméstico, ou seja, da unidade de produção camponesa como sugere
Chayanov (1974), contando também com parcerias de trabalho envolvendo os parentes e a
vizinhança os quais contribuindo para as formas de intercâmbio com os diversos agentes da
comercialização – os comerciantes “atravessadores” de produtos agrícolas e os compradores
do peixe desembarcado em Manacapuru.
Chayanov (1974) elabora o conceito de campesinato, cuja base de orientação é a
própria estrutura familiar camponesa. A família é protagonista desta realidade ao estabelecer
regras fundamentais de comportamento econômico aos seus integrantes.
Os laços comunitários que os pescadores das localidades estabelecem entre si e entre
seus familiares e a vizinhança, o conjunto de regras coletivas que os acompanham durante as
práticas de trabalho, os vínculos de natureza personalizada que imaginam e praticam e o
carácter extraeconômico das relações de dependência econômica que estão sujeitos
fundamentam, o conceito de camponês amazônico, e permitem explicar as particularidades
sociais e culturais desses atores sociais (WOLF, 1970; CHAYANOV, 1974; WITKOSKI,
2007).
Com bases nesta reflexão, entende-se que a organização econômica dos pescadores
de subsistência e dos pescadores comerciais é constituída da unidade de consumo e da
unidade de produção. A primeira representa o universo de pessoas da família que ainda não
trabalham, ou são liberados do trabalho momentaneamente ou não mais trabalham
diretamente no manejo dos locais de produção dos produtos originados da terra (o roçado),
da floresta (o extrativismo) e da água (a pesca e a caça). Esta unidade reúne crianças em
situação de amamentação (de colo) ou crianças e jovens que os pais não ou ainda não
exigem com mais frequência o apoio da força de trabalho nestas atividades, pois alegam
estarem em fase escolar, o que é uma decisão deles em face a determinadas regras do grupo
doméstico visualizando novas oportunidades de trabalho, ou seja, “o melhor futuro para os
filhos”. Os membros da família que estão aposentados por motivos diversos (por exemplo,
invalidez) e idosos também fazem parte desta unidade. Porém esta ocorrência não pode ser
generalizada, pois, nas localidades, há alguns idosos que caçam, coletam e pescam. A
maioria deles contribui com atividades de trabalho mais leves e menos desgastantes
90
fisicamente, tais como a limpeza das residências, o preparo de alimentação e o cuidado com
as crianças menores (netos).
O senhor Napoleão assim relata,
“[...] Os meus filhos e os meus netos acordam cedo pra ir pro roçado. Às
vezes quando dá eu vou, mas quando não, eu fico com os meus netos
pequenos e com a minha nora. As vezes ela vai também, então eu fico só
com eles. Alguém tem que cuidá deles. [...] os meus netos pequenos e até
os maiorzinhos não chegaram a me acompanhar nas pescarias mesmo, mas
quando é pesca pra boia eles vão comigo e aprende a pesca” (N.M.S.,
pescador de subsistência, Jaiteua de Cima, 2008).
A vivência e o sentido destas relações de apoio e cooperação familiar explicadas pelo
Sr. Napoleão são comuns entre as famílias das localidades estudadas. O pai e a mãe, ao se
afastarem de casa para trabalhar, contam com o apoio dos filhos mais velhos ou dos idosos
no cuidado com as crianças menores. A noção de cuidado para os pais comporta,
principalmente, a segurança (o cuidado com relação aos acidentes e a alimentação em
horários específicos) e a educação das crianças. A atribuição do Sr. Napoleão, ao cuidar dos
seus netos, tem sido, além da segurança, ensiná-los, na prática – meninos e meninas –, a
coletar iscas para peixe, a identificar e a demarcar os melhores pontos de pesca.
A unidade de produção é fundamental para a manutenção da unidade de consumo, ou
seja, ela atua em duas frentes: 1) é responsável pelo provimento de alimentos destinados à
subsistência e a 2) produção de produtos destinados à comercialização tendo em vista a
necessidade de aquisição de renda em forma de moeda para adquirir produtos que não são
produzidos nas localidades – por exemplo, laticínios e remédios. Esta unidade de trabalho é
constituída por pessoas cuja faixa etária transita em idade juvenil, em idade adulta e por
idosos.
No âmbito familiar, a chefia e as decisões políticas são geralmente atribuições tanto
dos homens – pai, avô ou filho mais velho – quanto das mulheres (mãe e avó). Porém, fora
do campo doméstico, o controle social sobre as atividades de trabalho é exercido pelo pai,
que é responsável pelo que deve produzir e comercializar, isso porque o tempo de trabalho
que ele exerce se situa na maior parte do tempo fora do campo doméstico, estabelecendo
contato com os agentes da comercialização, por isso sua liderança não se justifica apenas
pelo trabalho pesado que exerce na agricultura ou na pesca:
“[...] A minha mulher trabalha muito aqui em casa e no roçado junto com
meus filhos, ela praticamente não tem tempo pra fazer outras coisas. Faz o
que, eu tenho que vendê o peixe e vende as coisas que a gente planta aqui,
91
e no caso da gente que tem criança pequena, ela fica com a minha sogra,
porque a gente só volta no fim do dia, do centro quando é dia de roça. E
quando ela chega é só pra descansa um pouco e arrumar as coisa de casa
que tem que ser feito” (S.M., pescador comercial, Jaiteua de Cima, 2007).
A mulher sabe o que deve produzir e comercializar, porém vive uma jornada de
trabalho mais intensa do que o homem: ela é mãe, doméstica, agricultora, pescadora,
extratora e exerce trabalhos técnicos que exigem nível de formação mais elevado. Na
agricultura, por exemplo, percebe-se a participação ativa da mulher nas atividades do
roçado, pois realizam a plantação do feijão, do maracujá e da mandioca e ficam incumbidas
da limpeza do roçado junto com os filhos, o que acontece periodicamente durante o ano.
A inteligência e a força de trabalho da mulher não se situam apenas no grupo
doméstico. Nas localidades, a participação social e política das mulheres são constantes e,
em certas circunstâncias, têm sido mais atuantes em reuniões do conselho comunitário que
os homens. Algumas mães sustentam suas famílias exercendo algumas atividades que não
são comuns à maioria das mulheres e dos homens. Elas atuam como professoras das escolas
de ensino fundamental e praticam a função de agentes de saúde, ganhando tanto e, em certas
circunstâncias, mais que seus maridos. As filhas de algumas famílias que querem continuar
os estudos ou que apresentam maiores níveis de escolaridade, trabalham em postos de saúde
ou trabalham em lojas como prestadoras de serviço no município de Manacapuru,
cooperando na renda da família:
“[...] Quando a gente faz reunião aqui na comunidade pra decidir algumas
coisas é porque a gente precisa tomar decisão pra melhorar nossa vida. A
gente precisa dos homens, dos nossos maridos pra tomar decisão junto,
mas de uns anos pra cá percebo que eles não participam como antes
participavam, eles acreditam pouco nisso, alguns trabalham e acha que só
isso tá bom. E agora esses tempos corremos atrás das pessoas pra poder se
aposenta porque o governo tava fazendo campanha pra tirar documento pra
ajudar até na aposentadoria, nos ficamos sabendo e acionamos as pessoas
pra arrumar todas documentação. Se não fosse a gente se mexe, muita
gente ia ficar parado o direito que a gente tem de se aposenta passando, né”
(V.L.M., moradora e líder da comunidade Assembléia de Deus Tradicional,
Jaiteua de Cima, 2007/8).
Para Silva (2007) e Rodrigues (2007) que estudam o papel da mulher em
comunidades ribeirinhas, embora a realidade das comunidades da várzea amazônica ainda
reproduza a desigualdade de valores na relação de gênero, o processo de consciência da
importância do papel social da mulher, por ela mesma, e a participação política delas em
92
tomadas de decisão, tem contribuído em evidenciar que as mulheres não devem ser
valorizadas apenas nos afazeres domésticos, mas sim pela capacidade organizativa que
exercem no âmbito comunitário.
2.3 Pescadores de subsistência, pescadores comerciais e “pescadores de fora”
Gráfico 5 – Pescadores de subsistência e pescadores comerciais.
Fonte: Dados de campo (2007).
Os pescadores de subsistência estão difusos nas três localidades, com predominância
nas localidades Cajazeira e Jaiteua de Cima. Furtado (1993) conceitua esse tipo ideal de
pescador como polivalente. Nas palavras da autora, o pescador polivalente realiza as
seguintes atividades:
[eles] lavram a terra própria e/ou arrendada, criam gado, cultivam juta,
caçam, coletam sementes e frutas da mata, extraem plantas medicinais e
resinas vegetais silvestres, fabricam carvão, torram farinha de mandioca e
preparam farinha de peixe e pescam. A pesca entre eles é primordialmente
destinada ao auto abastecimento e secundariamente à venda no mercado
local e extra local (FURTADO, 1993, p. 241).
A produção pesqueira realizada por esse grupo social tem participação ativa dos
membros do seu grupo doméstico e, em alguns casos, do grupo de parentes que habita a
vizinhança. “Estes formam as unidades de trabalho nessa modalidade de produção, que vão
diariamente aos rios, igarapés, paranás e lagos localizados nas imediações de suas moradias”
(FURTADO, 1993, p. 356).
93
Os pescadores de subsistência em razão de comercializar mais os produtos extraídos
do trabalho realizado na agricultura, autodefinem-se como agricultores e não como
pescadores. Eles vivem mais na várzea afastados dos centros urbanos, porém mantendo
constantemente ligações com a cidade, trocando bens e serviços e mantendo relações
próximas com parentes e participando de atividades religiosas (FURTADO, 1993).
Nas localidades, a prática do cultivo da mandioca e sua posterior transformação em
farinha é a principal fonte para aquisição de renda. A agricultura assume lugar primordial
entre esse grupo social, ficando a pesca como atividade mais para o autoconsumo, embora
destinem eventualmente uma proporção para a venda.
A venda do pescado ocorre mais no período da enchente, pois o peixe se torna mais
rentável comercialmente em virtude das necessidades e demandas do mercado consumidor
de Manacapuru e Manaus.
O preço do pescado é também elevado pelas influências das festas religiosas como, a
Semana Santa, datas comemorativas relacionadas ao Dia das Mães e Dia dos Pais e pelas
dificuldades de captura das espécies devido aos fatores naturais relacionados a esses
períodos do ciclo das águas.
Os interesses em torno das atividades agrícolas pelos pescadores de subsistência
estão diretamente relacionadas com as fases do ciclo hidrológico. Isso porque, no calendário
da atividade pesqueira, o período da vazante e seca expressa a redução significativa de
diversos ambientes de pesca. Fato que dificulta não só a prática desta atividade, mas também
sua remuneração devido à competição entre os pescadores destas localidades pela
apropriação do pescado e, consequentemente, o barateamento do peixe em virtude de sua
fartura no mercado consumidor. O acesso aos ambientes aquáticos, devido a distância,
também é um fator que limita a ação dos pescadores de subsistência e pescadores
comerciais, pois o desgaste físico é muito grande, devendo-se levar em consideração o
tempo de chegada e retorno ao local da pescaria, bem como o gasto de combustível, a
alimentação e o peso carregado no ato do transporte das espécies capturadas.
Para entender essa dinâmica ecológica, e, ao mesmo tempo, econômica, um pescador
de subsistência da localidade Jaiteua de Cima assim explica:
“[...] eu começo a pescar na base de fevereiro em diante. Fevereiro, março,
abril, maio, junho, por aí assim, direto. É nessa fase. Daí quando chega os
mês de botar o roçado [julho, agosto, setembro], aí eu paro. Daí eu vou
botar meu roçado pra trabalhá. Aí depois de colocado eu continuo de novo
a pescar. O serviço é esse... Daqui ninguém pode sair. Sair daqui só se for
94
pra outro canto, pra cidade ... Agora, meu serviço é esse: viver de pescaria
e trabalhar em farinha, em roça. Eu prefiro pescar na época da enchente
porque o peixe dá dinheiro e pescando não falta quase nada. É que nem o
trabalho da roça também. A roça todo tempo tá dando e a gente todo tempo
tem o negócio do dinheiro. E assim que é a pescaria. Nós temos nossas
experiências, por exemplo, tem a época que o peixe dá bem, dá peixe
melhor, o peixe grande. Numa época dessa [janeiro/enchente] ele dá
dinheiro, mesmo quando tá cheio que é difícil de pegá ele dá dinheiro
também. [...] e quando tá enchendo eu pesco pra vender o curimatã, o
tucunaré, a aruanã, o roelo, a pirapitinga, o pirarucu, o pacu, o carauaçu.
Esses outros peixes miúdo, [pacu e carauaçu] não pesco quase não, porque
quando tá enchendo dá os peixe graúdo que é melhor de vender, né!”(D.
M., pescador de subsistência, Jaiteua de Cima, 2007).
Nas localidades, as plantações ocorrem em áreas de terra firme, e geralmente são
terrenos que ficam próximos às casas dos pescadores, nos fundos da propriedade, ou em
áreas mais distantes das moradias fora do alcance da enchente e cheia do ciclo das águas –
neste caso são utilizadas canoas e rabetas para o transporte. Esses locais da produção, os
roçados, são localmente denominados sob o nome de centro, e lá, as famílias dos pescadores
de subsistência exercem suas atividades com base no uso compartilhado da terra e do
trabalho familiar como apresentado no tópico anterior.
A roça ou roçado (os centros) são os sistemas de uso da terra mais utilizados na
Amazônia pelos ribeirinhos, é o local onde geralmente são cultivadas espécies anuais
durante algum período (normalmente dois ciclos anuais, dependendo da qualidade do solo) e
após isso é deixado em descanso, para recuperação da fertilidade e eliminação das plantas
invasoras no solo. Essa técnica, conhecida como pousio, permite que os nutrientes
disponíveis sejam imediatamente utilizados na produção de alimentos energéticos
(MORÁN, 1990; FRAXE, 2000).
A época de plantio das culturas agrícolas é variável por ambiente e pelo tipo de
cultura. Em geral, o plantio é feito manualmente pela unidade de trabalho familiar e com a
utilização de instrumentos de trabalho simples como o machado, o terçado e a enxada. Nos
ambientes de terra firme, diversas culturas são plantadas no segundo semestre do ano, final
da época seca e início das chuvas.
Os processos de trabalho nas roças, segundo os
pescadores de subsistência se dão da seguinte forma: derruba da capoeira, queima seguida de
encoivaramento e requeima, plantio e colheita.
A prática de corte e queima, como sistema de preparação da área para agricultura,
ofereceu ao ribeirinho um tipo de controle ao ataque de pragas para obter uma safra
razoável, além da economia na preparação do terreno, na conservação dos nutrientes e na
95
recuperação do solo pelo abandono gradativo da roça ao processo de sucessão secundária
(MORÁN, 1990).
A escolha das áreas se deve ao tipo de solo, baixa incidência de pragas e doenças,
aproveitamento da área e fácil manutenção. A consorciação de plantas que apresentam ciclos
vegetativos
distintos
pode
representar
uma
das
mais
importantes
formas
de
complementaridade, pois tal associação, na maioria das vezes, proporciona melhor uso
temporal dos fatores de produção, cujo excedente produzido pode complementar a renda do
produtor (FRAXE, 2000).
Nas roças de monocultivo, os principais produtos cultivados são a mandioca
(Manihot esculenta) e a banana (Musa sp). Nas roças de culturas misturadas, foram
identificados dentre os principais cultivos: o cará (Dioscorea alata L.), o milho (Zea mays) e
o maxixe (Cucumis anguria L.) (Figura 31).
Figura 31 – O roçado em Cajazeira.
Fonte: Dados de campo (2007).
Os quintais das casas dos pescadores de subsistência também são áreas manejadas.
Os quintais ou sítios são áreas onde são cultivadas árvores frutíferas, grãos, hortaliças e
plantas ornamentais e criação de animais, tendo como finalidade principal a
complementação da produção obtida em outras áreas de produção, como a roça, a criação de
animais maiores, a floresta e as capoeiras (FRAXE, 2000; 2004).
96
Nos quintais das casas dos pescadores de subsistência, é comum o cultivo de plantas
perenes e herbáceas, tendo como finalidade, a garantia de subsistência das famílias. As
principais espécies vegetais encontradas nos quintais foram classificadas de acordo com seu
uso e podem ser categorizadas em espécies frutíferas, medicinais, hortaliças e espécies
florestais (Quadro 5).
FRUTÍFERAS
MEDICINAIS
Coco
Cocos nucifera
Manga
Mangifera indica
HORTALIÇAS
FLORESTAIS
Quebra-pedra
Cebolinha
Açaí
Phyllanthus niruri L.
Allium pisfulosum
Euterpe oleraceae
Unha-de-gato
Uncaria guianensis
Cheiro-verde
Castanheira
Bertholletia excelsa
Goiaba
Psidium guajava
Sucuúba
Himatanthus attenuatus
Azeitona
Syzygium
jambolanum
Macela
Coriandrum ativum
Pimenta de cheiro
Capsicum chinense
Sucuúba
Himatanthus attenuatus
Achyrocline satureoides
Cupuaçu
Theobroma
grandiflorum
Castanheira
Bertholletia excelsa
Quadro 5 – O cultivo nos quintais das moradias em Cajazeira
Fonte: Dados de campo (2007).
Os quintais agroflorestais possuem uma micelânea de cultivos anuais, porém
dividindo espaço com outras atividades produtivas. As criações de pequenos animais,
médios e grandes animais são algumas destas atividades, mantendo regularidade no
cotidiano das famílias dos pescadores de subsistência das localidades Cajazeira, Jaiteua de
Baixo e Jaiteua de Cima (Gráfico 6).
7%
10%
51%
32%
Aves (Galinhas e Patos)
Suíno
Bovino
Gráfico 6 – Atividades criatórias.
Fonte: Dados de campo (2007).
Caprino / Ovino
97
A criação de aves (51%) teve maior destaque entre as famílias das localidades e o
destino da criação para o consumo doméstico. A criação de suínos (32%) ocorre nas três
localidades, porém com destaque para a localidade Jaiteua de Cima que comercializa os
animais para o centro comercial de Manacapuru. A criação de gado (10%) ocorre nas três
localidades, porém com destaque para as localidades Cajazeira e Jaiteua de Cima que têm
áreas de pastagem cultivadas por criadores que moram fora da localidade, por moradores das
localidades que passaram a desenvolver esta atividade com mais frequência e moradores que
destinam a criação de gado para o uso doméstico.
Para algumas famílias das localidades, o investimento numa pequena criação de gado
bovino funciona como uma forma de poupança, pois estes animais podem sobreviver e
crescer durante os períodos de escassez (cheia) e nos casos de necessidade extrema o
investimento pode ser facilmente recuperado com o consumo ou com a venda do animal. A
venda tem por objetivo a manutenção da saúde da família, a compra de equipamentos de
infraestrutura e alimentação (FRAXE, 2000; PEREIRA, 2007). A criação de gado em
Jaiteua de Baixo se resume ao uso doméstico de apenas duas famílias.
A criação de gado bubalino não consta no gráfico (3), porém a prática dessa
atividade é visível numa área ampla de pastagem situada nas imediações de Jaiteua de Cima,
cujo proprietário é um fazendeiro que não mora na localidade. Os moradores da localidade
enfatizam os transtornos que essa atividade tem causado, pois os animais são criados soltos
na maior parte do tempo e, como consequência, pisoteiam as matas ciliares dos igarapés,
nadam nesses ambientes afugentando os peixes e destruindo os roçados.
A criação de caprinos e ovinos (7%), em relação às demais atividades criatórias, é
reduzida, porém com destaque para a localidade Jaiteua de Baixo onde a família de um
pescador de subsistência cria em torno de uma centena desses animais. A família destina a
produção para a comercialização. Nas demais localidades, a criação de caprinos e ovinos é
apenas para consumo doméstico.
Os pescadores de subsistência utilizam apetrechos de pesca tanto para a pesca de
subsistência quanto comercial, destacando-se a malhadeira e a tramalha. Isso decorre,
segundo o Sr. Armando, pescador de subsistência, da escassez de peixes “graúdos”, o que
minimiza a viabilização da pesca com os apetrechos tradicionais – que antigamente eram
utilizados com mais frequência – como o arpão, a azagaia, o arco e flecha, embora não
tenham deixado de utilizá-los.
Dessa forma, os recursos pesqueiros para os pescadores de subsistência possui um
valor-de-uso, um valor qualitativo que expressa a vida no sentido que serve de fonte de
98
nutrição para esse grupo social, trocam o produto não no sentido de obterem lucro com a
venda, mas para adquirirem bens e serviços que a sua unidade doméstica não produz, ou
seja, troca mercadoria por mercadoria, sendo a moeda apenas um meio de circulação.
As três localidades também reúnem a presença dos pescadores comerciais,
denominados por Lourdes Furtado (1993) como pescadores monovalentes. Os pescadores
citadinos ou “pescadores de fora” como classificados pelos pescadores das localidades, e
que fazem parte deste conceito “pescadores monovalentes”, serão apresentados mais adiante.
Os pescadores comerciais locais estão mais presentes na localidade Jaiteua de Baixo
(66,7%), um pouco menos predominante em Jaiteua de Cima (39%) e são menos
expressivos em Cajazeira (14,3%) (vide gráfico pescadores).
De acordo com Furtado (1993), o pescador que se dedica à pesca comercial, apesar
de estar associado às grandes cidades, não é apenas o pescador citadino, mas inclui também
os ribeirinhos ou varjeiros, que podem (ou não) ser contratados pelos barcos de pesca ou
“motores de pesca” (embarcações com caixas de gelo ou urnas com gelo). “Isto [...] causa a
mistura entre ribeirinhos e pescadores profissionais, gerando a cumplicidade de muitos
comunitários com a atividade comercial” (BATISTA et al, 2004, p. 76). Os pescadores
monovalentes das localidades se autodefinem como pescadores simplesmente. Eles fazem
do produto da pesca uma mercadoria, possuindo não apenas valor-de-uso, mas, sobretudo,
um valor-de-troca. Estes pescadores se dedicam à pesca de maneira mais intensa e menos à
agricultura.
Eles enfrentam jornadas corridas de trabalho, sobretudo, porque parte do valor de seu
produto é posse de outros agentes sociais (compradores ou atravessadores). Estes pescadores
se dedicam o ano inteiro à pesca e se deslocam a grandes distâncias em busca de lagos e rios
piscosos, “vive o pescador, do lago para o rio, do rio para o lago, obedecendo à sazonalidade
do produto da pesca nesses biótopos” (FURTADO, 1993, p. 367). Por isso, o raio de ação do
pescador comercial, é bem maior do que o dos pescadores de subsistência.
Os apetrechos de pesca mais utilizados pelos pescadores comerciais das localidades
são a malhadeira, a tramalha, e quando conseguem, emprestado ou arrendado de algum
pescador, o arrastão ou a rede de pesca. Existem, entre esses pescadores, alguns que
trabalham para barcos de pesca em determinados períodos, porém nem todos os moradores
das localidades admitem isso porque sabem que os pescadores comerciais locais atuam nos
ambientes protegidos pelas localidades. De outro modo, quando vão pescar para a
99
comercialização, pescam também em lugares distantes, por isso vão sempre acompanhados
de algum amigo ou parente, desse modo, dividem o lucro da pescaria após a venda.
Alguns pescadores comerciais locais vivem em condições precárias de trabalho, pois
não possuem todos os apetrechos de pesca necessários para esta atividade, isso os obriga a se
associarem ou trabalharem para os outros pescadores. É o caso de um pescador comercial
local, que trabalha para um pescador comercial citadino, este lhe oferece todos os apetrechos
de pesca, o lucro é divido, e essa divisão sempre tende a beneficiar o proprietário dos meios
de produção.
Analisando a realidade dos pescadores comerciais das localidades, entendemos que o
conceito de pescador monovalente de Furtado (1993) abarca as similaridades que há entre os
pescadores, porém verificando o contexto dos pescadores comerciais de Jaiteua de Baixo
identificamos que esses atores sociais dependem exclusivamente da renda da pesca para
viver, pois, além de ser a principal fonte de renda das famílias, a situação de dependência
exclusiva à pesca comercial se mantém pelo fato de as atividades agroflorestais, agropastoris
e extrativistas serem pouquíssimos estimuladas ao desenvolvimento.
Os fatores que mantêm essa condição, de acordo com os moradores da localidade,
estão relacionados mais aos problemas políticos e econômicos, envolvendo a mais a
organização social da localidade do que problemas ecológicos relacionados ao meio
ambiente onde vivem e trabalham.
Do ponto de vida econômico, os pescadores afirmam que o sentido dado à
predominância desta atividade decorre da seguinte maneira: em primeiro, situa-se a renda
imediata que o pescado proporciona quando comparado às outras atividades produtivas, tais
como, a agricultura ou extrativismo. Nestas atividades, a quantidade, o peso e a variedade de
produtos é o que determina, quando bem negociados, as condições de maioria rentabilidade,
porém exigindo mais tempo de trabalho da unidade familiar, isto é, da participação
numerosa, ativa e disponibilidade de tempo de todos os membros do núcleo familiar.
Nas atividades agrícolas e extrativistas, as expectativas das famílias são pouco
alcançadas quando comparadas à pesca, pois, para o pleno desenvolvimento, seriam
necessários investimentos em otimização da produtividade, tais como, a compra de
equipamentos, a garantia e a disponibilidade da mão de obra da unidade de produção
camponesa e favoráveis relações de negociação com a mão de obra contratada e,
principalmente, a melhor negociação com agentes da comercialização – os regatões, os
feirantes e os marreteiros, uma vez que a presença desses agentes sociais é constante neste
100
processo, sujeitando os trabalhadores à condição de subordinação na cadeia de
comercialização do excedente produzido, que se inicia nessas localidades, face às relações
econômicas mais abrangentes consolidadas em Manacapuru.
Na pescaria, o contexto do trabalho é mais flexível e oportuno, pois o pai em
determinadas circunstâncias pode optar em pescar sozinho tal como ocorre nos períodos da
enchente e cheia (nos lanço) ou na seca (nos paranás), reduzindo também o número de
parcerias de pesca. Isso minimiza o esforço de trabalho da unidade familiar, poupando-a
para as demais atividades acima descritas (agricultura ou extrativismo) ou até mesmo para o
descanso.
Esta economia do tempo que a pesca pode promover não é um fato que acontece para
todas as famílias, isso porque a unidade familiar está todo tempo trabalhando em alguma
atividade, seja no roçado, no extrativismo ou no conserto e manutenção dos apetrechos de
pesca. Mas a rentabilidade em curto prazo de tempo que o valor agregado do pescado pode
proporcionar permite que as crianças, por exemplo, possam ter mais tempo disponível para
frequentar a escola, não se vinculando o dia inteiro à polivalência das atividades produtivas.
O pescador comercial esclarece:
“[...] A agricultura pra nós aqui é mais difícil, falta organização na nossa
comunidade, falta legalizá né é isso mesmo que chama, né. Porque senão
tira o documento certinho da comunidade não da pra gente consegui as
coisa, porque tudo hoje em dia tem que tá organizado em comunidade, né.
É por isso que a gente fica na pesca mais, a gente pesca e ganha mais
rápido [...] é no roçado a família fica todo tempo ocupada, não falta comida
mas dá pouco dinheiro. Por isso que é bom pesca, eu prefiro pesca sozinho
e evita leva as crianças pra elas pode estudá, se ganhar dinheiro só com a
plantação dá pouco e precisa de muita gente pra trabalhá, toma todo nosso
tempo, a pesca não é mais rápido, é só pesca e vende” (F.R.L.M., pescador
comercial, Jaiteua de Baixo, 2008).
A “pesca de caixinha”, também conhecida como “pesca rápida” é uma atividade
rápida e rentável para o pescadores comerciais e pescadores de subsistência da localidade.
Ela é praticada nas três localidades e consiste na captura de diversas espécies de peixe de
tamanhos variados (pequeno, médio e grande), ou podem atender a encomendas requisitando
tambaquis ou tucunarés, considerados “peixes de classe” na linguagem do pescador. As
capturas são mantidas congeladas dentro de uma caixa de isopor que pode variar de 100 a
101
200 litros. Depois da caixa completa, a venda do pescado ocorre imediatamente no porto
Panairzinha14 em Manacapuru, e o pagamento feito em dinheiro.
O segundo fator que torna a pesca atrativa para os pescadores comerciais de Jaiteua
de Baixo é a fartura do peixe que é relativamente constante em determinados pontos de
pesca (pesqueiros) por eles apropriados devido às circunstâncias naturais favoráveis. Os
lanços de pesca que os pescadores realizam são ocorrentes em áreas de igapó ou igarapé
muito rico em variedade de espécies na enchente e cheia do ciclo das águas – as
característica da floresta inundada onde ocorrem esses pesqueiros e suas qualidades foram
descritas no capítulo I.
Esta dinâmica também é marcada pela concorrência entre os pescadores da
localidade que, por sua vez, dividem seus territórios de pesca com pescadores de localidades
vizinhas e todos em competição com os diversos agentes sociais da pesca – pescadores
citadinos e motores de pesca (barcos de pesca) que apresentam níveis de concorrências
elevadas e desiguais socialmente. Porém estabelecendo relações de complementaridade para
comercialização da produção.
O terceiro fator que torna a pesca a atividade principal são os conflitos políticos
internos envolvendo os agentes sociais representantes dos poderes decisórios da localidade,
cuja atribuição das práticas estão mais fundamentadas em relações de parentesco e
vizinhança geralmente centrado em pessoas mais velhas e considerados moradores mais
antigos, inviabilizando processos de negociação, acordos e consensos entre outros
moradores interessados na mudança de postura política e econômica da localidade.
Caso o consenso interno fosse alcançado, as futuras ações de decisão possivelmente
viriam a beneficiá-los em situações mais abrangentes que exigem o reconhecimento e
legitimidade oficial documentada da comunidade Santo Antônio (Jaiteua de Baixo) para
aquisição de empréstimos financeiros para o desenvolvimento de possíveis frentes
produtivas, atualmente pouco desenvolvidas, por exemplo: a agricultura. Estas dificuldades
enfrentadas são pouco mitigadas estando ainda em andamento. Esse contexto torna a pesca
comercial como meio de renda mais imediata e menos burocrática apenas sujeita aos
acordos de pesca como ocorre nas demais localidades – Cajazeira e Jaiteua de Cima.
O pescador comercial explica:
14
O porto Panairzinha (flutuante) é o principal comprador de pescado oriundo do lago Grande de Manacapuru.
Praticamente todos os pescadores das localidades vendem o pescado neste flutuante, com exceção dos
pescadores que trabalham para os motores de pesca (barcos geleiros).
102
“[...] ah! ... a gente vem batalhando pra mudá as coisas aqui fazendo
reunião, mas o problemas é mais entre o pessoal que acha que mora aqui
mais tempo, que não qué mudá de opinião, fica preocupados achando que
vão ficá pra trás. É ruim porque se não uni, não vai consegui nada, porque
temos que regularizá a comunidade, deixá em dia pra consegui dinheiro prá
faze nossas plantação melhó” (F.R.L.M., pescador comercial, Jaiteua de
Baixo, 2007).
No campo de disputa pela apropriação dos ambientes aquáticos, a presença dos
pescadores citadinos é constante em territórios de pesca das localidades. Os pescadores
citadinos são denominados pelos pescadores das localidades pelo rótulo “pescadores de
fora”.
Segundo Furtado (1993), o estilo de vida polivalente dos pescadores de subsistência
– onde se trabalha a terra, a floresta e a água – se dilui a partir do momento em que o
pescador migra para os centros urbanos, não encontrando mais condições objetivas de viver
como antes, passando a se dedicar no campo da pesca intensiva.
Os pescadores citadinos, ou, de acordo com a definição de Furtado (1993),
monovalentes, se autodefinem como pescadores. Fazendo parte desta categoria, em termos
conceituais, os pescadores comerciais das localidades, porque se consideram pescadores
simplesmente, vivendo relativamente da renda da pesca.
Os pescadores citadinos habitam os centros urbanos municipais de Manacapuru. Em
sua maioria, são emigrantes vindo das áreas de várzea em busca de melhores condições de
vida, mantendo relações com os parentes que continuaram na várzea. Juntam-se, a estes
pescadores, pessoas residentes nos próprios municípios que resolvem se converterem em
pescadores em busca de auferir recursos monetários mais rápidos para satisfazer suas
necessidades materiais e sociais.
Este grupo social de pescador vive prioritária ou exclusivamente da pesca. O produto
de seu trabalho é destinado ao consumo de suas famílias e à venda. Dessa forma, a pesca é a
atividade produtiva principal na vida do pescador citadino, onde o comércio do pescado é
feita em proporções muito maiores das encontradas pelos pescadores de subsistência e
pescadores comerciais das localidades pesquisadas.
Uma das características mais significativas da pesca realizada pelos pescadores
citadinos, é que o produto de seu trabalho possui não só um valor-de-uso – como vimos no
grupo anterior –, mas, sobretudo, um valor-de-troca. Sua produção pesqueira, contudo, se
destina principalmente à comercialização, sendo o peixe a principal fonte de renda.
103
Os pescadores comerciais citadinos se dedicam o ano inteiro à pesca e deslocam-se a
grandes distâncias em busca de lagos e rios piscosos (FURTADO, 1993, p. 367). Por isso, o
raio de ação desse tipo de pescador, é bem maior do que o dos pescadores de subsistência.
Os pescadores citadinos (FURTADO, 1993) geralmente são filiados à Colônia de
Pescadores de Manacapuru – Z9. Consideram-se e são considerados profissionais. Alguns
pescadores possuem muitas apetrechos de pesca, têm vasto conhecimento acerca do
comportamento dos peixes, o que os possibilitando detectar e capturar grande variedade de
espécies quando atuam nos motores de pesca, na pesca de caixinha (individual) ou na pesca
de parceria em lanços de pesca preparados em rios como, o Solimões-Amazonas, ou no lago
Grande.
Os pescadores das localidades que pescam comercialmente, raramente possuem um
arsenal de pesca semelhante aos pescadores citadinos, pois são diversos em tamanho,
variedade e de preços elevados. É importante ressaltar que alguns destes agentes sociais
vivem da sazonalidade de pesca. Fora desta época, praticam diversas atividades: são
ajudantes da construção civil, trabalham em fazenda ou voltam para as comunidades de onde
vieram para restabelecer contatos com familiares e desenvolver novas relações de trabalho, e
outra parte dos trabalhadores dessa categoria assume a profissão de pescador continuamente
durante o ano atuando em diversos barcos de pesca comercial (Figura 32).
Figura 32 – Pescadores citadinos.
Fonte: Dados de campo (2007).
Tal como aborda Leonel (1998), em A Morte Social do Rios, a questão é que parte
significativa dos pescadores que reside na sede do município não são proprietários dos
meios de produção. Alguns deles trabalham e vivem em condições de subalternidade aos
patrões – donos de barcos de pesca e atravessadores. As longas jornadas de trabalho, a
dependências dos meios de produção, a informalidade da atividade que é justificada pelo não
registro da carteira de trabalho, os baixos salários e os múltiplos acordos como formas de
104
pagamento pelo trabalho realizado, marcam a precarização do trabalho e a péssima
qualidade de vida destes trabalhadores.
Neste contexto, verificou-se que estes trabalhadores são marginalizados, e o rótulo
“pescadores de fora” deve ser problematizado em relação direta com os processos culturais e
econômicos a que estão inseridos local e globalmente. Caso contrário, corre-se o risco de
estigmatizá-los como gananciosos, o que é comum durante as concorrências pela
apropriação do pescado.
Como apresentado, discorremos sobre os principais pescadores das localidades
Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima e suas rotinas de trabalho. Neste contexto
destaca-se a atuação dos pescadores citadinos (pescadores de fora) em seus territórios de
pesca, que em determinadas situações, foge ao controle social dos pescadores das
localidades por fatores que veremos mais adiante, sendo importante lembrar que o lago
Grande de Manacapuru é um ambiente de livre acesso, porém demarcado territorialmente
pelos pescadores das localidades.
2.4 Reflexões sobre tempo ecológico e tempo social na pequena pesca mercantil simples
Pensando a atividade pesqueira realizada pelos pescadores de subsistência e
pescadores comerciais das localidades Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima, o fator
tempo nesta atividade nos remete ao tempo dos ciclos da natureza em conexão com a
dimensão, prática, simbólica e econômica da pluralidade cultural dos povos amazônicos e
não-amazônicos. Há, como nos adverte Marilene Corrêa (1999) em Metamorfoses da
Amazônia, a inter-relação temporal e espacial entre o local e o global. O local está no global
e o global está no local, ideia sugerida apenas para fazer alusão ao tempo e ao espaço das
atividades econômicas e culturais da amazônia elaboradas pelo tempo histórico social de
cada grupo social e em parte determinada pelas exigências do mercado capitalista nacional e
internacional.
Esta afirmação não nos parece exagerada ao verificar que significativa parte da
produção pesqueira executada na Amazônia atende às expectativas do mercado nacional e
internacional.
Apenas para dar fundamento argumentativo ao uso do tempo e espaço pelos
pescadores das localidades que vivem sob o regime do ciclo hidrológico da várzea
amazônica, alguns intelectuais da ecologia, sociologia e da antropologia tem dado atenção
105
ao fator tempo em determinados estilos culturais face à dinâmica e espacialidade dos ciclos
naturais.
Embora tenhamos uma noção ou opinião ou consciência generalizada sobre o
significado do que seja tempo, este é um fator característico e singular para qualquer
sociedade ou agrupamento social.
A modernidade faz do tempo uma noção prática que soa linear para nós. Um tempo
cronológico que não apresenta descontinuidades históricas. Temos que dar solução aos
problemas, e os problemas são o agora o imediato. Não há tempo para pensar o tempo da
natureza, e não internalizamos o tempo que deve ser dado a ela.
A sociedade moderna, se orienta pelo tempo do relógio. É impossível nos
desvincular dele porque está em nossa cultura, a cultura ocidental do mundo. Como diz
Boaventura de Souza Santos (2006), em Uma Sociologia das Ausências e Uma Sociologia
das Emergências, tudo que é peculiar (cultural, econômico ou político) em determinados
grupos sociais que não se enquadra na cultura ocidental do mundo é o atrasado, é o inferior,
é o feio, é o indolente. Está “ausente”, não é conhecido. Porém algumas especificidades
culturais são encontradas em locais em que a dinâmica do global também se faz presente,
como o caso das localidades rurais de Manacapuru.
Edmund Leach (1974) apresenta dois aspectos do tempo que é concebido em termos
gerais em sociedade influenciadas pela cultura ocidental: a) o tempo que se refere aos
fenômenos da natureza e que são percebidos como repetição; e b) o tempo que sugere que as
mudanças da vida são irreversíveis – a morte, por exemplo.
A primeira característica se refere ao tempo da repetição, dos fenômenos dos ciclos
naturais: a chuva, o verão, a seca, a ocorrências de dias, o tique taque de um relógio. O autor
esclarece que o tempo que se repete é um tempo esperado, um intervalo de tempo. Um
ritmo. O segundo diz respeito à não repetição. “Estamos cientes de que as coisas vivas
nascem, crescem e morrem, e que esse fenômeno é irreversível. O autor sugere que todos os
outros aspectos do tempo, duração ou sequência histórica em “profundidade” ou
descontinua, são exemplos sugeridos como derivação dessas duas condições, porque é assim
que a sociedade contemporânea concebe as sociedades que não se enquadram em aspectos
do tempo da modernidade.
O que o autor percebe é que momentos históricos do pensamento grego, perpassando
pela filosofia romana até a formulação do ideário cristão, a concepção de tempo foi
modificada. Os dogmas de várias religiões encerrou o repúdio à “realidade” da morte; “um
dos estratagemas mais comum é simplesmente afirmar que a morte e o nascimento são as
106
mesmas coisas – que o nascimento segue a morte, assim como a morte segue o nascimento”
(LEACH, 1974, p. 193). Essa concepção motiva o ser humano a pensar que tudo pode e
deve ser realizado no mundo terreno, pois morte não há. O que há é um renascer que se
repete. O segundo aspecto do tempo (b) se ajustam ao primeiro (a). Nesta linha de
pensamento, os recursos naturais são pensados e utilizados como algo permanente tal qual a
vida humana. “Deus proverá os homens”.
Essa afirmação não poder ser dada como a única forma de explicação para a questão
do tempo na modernidade, mas a materialidade presente no discurso religioso percebe o
acúmulo como algo benéfico, um dom divino como esclarecido por Max Weber (2004) em a
Ética protestante e o “espírito” do capitalismo.
Edmund Leach afirma:
a regularização do tempo moderno não considera o tempo da natureza
como parte intrínseca da natureza, é uma noção fabricada pelo homem, que
nós já projetamos em nosso ambiente para os nossos próprios objetivos
particulares (LEACH, 1974, p. 205).
Por que indagar o tempo ao pensarmos as atividades pesqueiras? Pensamos que a
pesca na várzea, como identificado por Evans-Pritchard (2005) – em áreas sazonais –, Fraxe
(2000), Henrique Pereira (2007) e Witkoski (2007) de forma direta ou indireta em suas
pesquisas, está estreitamente conectada com a dimensão do tempo internalizada pela
atividades práticas do pescador. Na prática da pesca nos lanços, há o tempo ecológico da
natureza internalizada na consciência do pescador, e a pesca se realiza face às nuanças do
contexto do pescador – suas necessidades materiais e simbólicas imediatas – e
condicionadas também pelas determinações do ciclo hidrológico.
Percebemos que não há uma disjunção entre o tempo ecológico e o conceito de
tempo social do pescador, isso porque de modo geral seus meios de vida partem daquilo que
a natureza pode fornecê-lo. Não há indústria ou qualquer tipo de manufatura nas localidades.
Porém o que verificamos é a dependência significativa dos pescadores das localidades com
relação aos ambientes que vivem, pois deles retiram os produtos que serão vendidos para
adquirir outros produtos que não podem produzir.
Um caso clássico para pensar essa realidade é o trabalho de Evans-Pritchard (2005)
intitulado Os Nuer, que aborda o sentido da articulação entre os ciclos naturais e o modo de
vida e política organizacional desta etnia situada numa planície denominada nilota em
Sudão, país do continente africano.
107
Aos falar sobre os aspectos ecológicos da terra dos Nuer, o autor descreve:
“Do ponto de vista de um homem europeu, a terra dos nuer não possui
qualidades favoráveis, a menos que se considere como tal sua severidade,
pois seus pântanos intermináveis e amplas savanas [vegetação típica de
parte do continente africano] têm um encanto austero, monótono. É muito
duro viver nela tanto para os homens, quanto para animais, sendo a maior
parte do ano ou seca ou em pântano. Os Nuer, porém, acham que vivem na
melhor região do mundo e, deve-se reconhecer, para criadores de gado, a
região tem muitas qualidades admiráveis. [e o autor continua] [...] eu logo
desisti de convencer os Nuer de que existem regiões mais adequadas para a
criação de gado do que a deles, tentativa que se tornou mais inútil ainda
desde que alguns deles foram levados para Karthum – que é considerada
por eles como o lar de todos os brancos – e, tendo visto a vegetação
desértica daquela latitude, viram confirma-se a opinião de que a terra deles
é superior que a nossa” (PRITCHARD, 2005, p. 61).
O autor evidencia que os Nuer operam suas atividades de trabalho em duas formas de
tempo: o ecológico e o estrutural. O tempo ecológico é mensurado a partir das épocas de
cheia e de seca da região que vivem, que eles conceituam como tot e mai respectivamente.
Na estiagem (seca) eles devem ter certos cuidados com o gado – a principal fonte de
alimentação – complementada por outras formas de proteína como o sogo e o milho, além da
pesca. No caso, eles conduzem o gado até o leito do rio, onde há pastagem e montagem de
seus acampamentos. O tempo é dividido entre as tarefas de preparação de montagem dos
acampamentos e da retirada dos membros do grupo das terras altas que haviam ocupado no
período anterior das chuvas, terras que não serão ocupadas desta vez.
Já na época das chuvas, o grupo retorna para as suas cabanas permanentes, há muito
tempo estabelecidas. Junto dessas estão os currais que ficam situados nas terras mais altas da
planícia nilota. Pritchard observou que as estações da chuva e da seca é que determinam as
atividades do grupo, ou seja, o que ele denominou de tempo ecológico.
Os Nuer possuem convenções similares aos nossos doze meses do ano, baseadas
nas tarefas da lua. Porém, como o autor frisou, não há muita referência aos meses e sim às
atividades desenvolvidas neste ou naquele período, levando em consideração os
acontecimentos marcantes para o grupo. Mas os Nuer, ao indagarem a sua memória, não se
referem a meses ou estações, mas às atividades que realizavam quando de um evento
marcante para o grupo. Por exemplo, eles não se referem ao mês de pet, mas as atividades
que eles desempenhavam naquele período, e a partir dessa descrição sabem em que período
estavam. Eles raramente usam os nomes do ano, mas referem-se à época do plantio, época
dos casamentos, época da pesca, época da colheita.
108
Pritchard observou que, “o calendário dos [Nuer] é uma relação entre o ciclo de
atividades e um ciclo conceitual, e os dois não podem ser isolados, já que o ciclo conceitual
depende do ciclo das atividades do qual se deriva do sentido e função” [dos papéis sociais
dos homens, mulheres, crianças e idosos no interior do grupo Nuer]
(EVANS-
PRITCHARD, 2005, p. 113)
Pritchard chama atenção, à primeira vista, parecer o tempo ecológico a variável que
determina as formas de entendimento do mesmo. Mas o tempo, apesar de tudo, é estrutural,
pois está relacionado à função social dos papéis sociais ligados à organização social e à
produção tendo em vista a sobrevivência dos Nuer. Mas isto não significa uma
correspondência imediata. No caso, o tempo estrutural está determinado por aquilo que o
autor chama de distanciamento estrutural, o que significa dizer que são as relações de
linhagem e parentesco, bem como os grupos etários, é que determinam a forma de se
relacionar com a categoria tempo entre os Nuer.
O autor chama atenção ao dizer que não há universalização de tempo para os Nuer,
pois como são vários grupos espalhados pela margem do Nilo, cada um tem seu sistema de
referência baseado nos acontecimentos internos de seu grupo. Por sua vez, estes
acontecimentos fornecem significados para apenas aquele grupo e não para outros. Pritchard
(2005, p. 120) reconhece os limites de nossa compreensão das categorias do tempo em outra
cultura.
Os Nuer são um exemplo clássico e tipo ideal de organização social simples e
complexa – neste, caso parafraseando Edgar Morin (1999), o simples não é antônimo e nem
oposição do complexo. O simples é tão complexo quanto o complexo – que permite pensar o
modo de vida dos pescadores de subsistência e pescadores comerciais das localidades, uma
vez que suas orientações de trabalho seguem a lógica do ethos organizacional do grupo
doméstico, tendo em vista a sobrevivência do grupo. O mercado econômico é uma variável
importante, porque necessitam estabelecer trocas materiais para aquisição de outros bens
materiais que não produzem localmente. O imaginário ecológico e conceitual dos pescadores
das localidades parece operar conforme as condições ideais da qualidade de vida do grupo
doméstico.
As similaridades das atividades pesqueiras sob o peso dos ciclos ecológicos da
várzea quando comparados aos Nuer são menos radicais, pois nem todos os pescadores de
subsistência e comerciais das localidades migram de suas moradias no tempo da cheia,
apenas, em casos extremos da seca ou da cheia, como indica Emílio Morán (1990) e Pereira
109
(2007) ao explicarem os limites da adaptabilidade humana quando se prolonga os picos da
cheia ou extremos da seca como descrito no capítulo I.
Os pescadores não operam no sentido imaginário conceitual estrutural dos Nuer
porque é outra matriz cultural diferente, mas apresenta similaridade em relação ao ethos do
camponês amazônico identificados por Fraxe (2000) e Witkoski, (2007), porque se
valorizam a identidade, a crença e as normas internas do grupo, que não são diluídas
necessariamente pelo mercado comercial. Este é apenas uma variável da cultura apesar de
sua importância fundamental e determinante em relação ao que se deve produzir enquanto
mercadorias da atividade pesqueira exigidos em Manacapuru ou em Manaus.
De modo comparativo, podemos pensar o tempo ecológico e o tempo social
presentes na pesca de lanço, a partir das formulações de Lúcia Helena de Oliveira Cunha
(2000), em Tempo natural e tempo mercantil na pesca artesanal, um estudo realizado junto
à comunidade pesqueira de Barra de Lagoa (SC), que objetivou compreender como a
categoria tempo (do capital ou “natural”) imprime ritmos variados de jornada de trabalho no
interior da pesca artesanal.
Segundo a autora, o tempo “natural”15 é característico e expressão de algumas
comunidades tradicionais ou domésticas, cuja rotina da vida diária está regulada pelas
tarefas de trabalho associadas a diversas práticas produtivas, e por fronteiras de tempo de
trabalho e de não trabalho não marcados nitidamente pelo tempo do relógio, pois a
polivalência de atividades evolvendo agricultura ou a pesca exigem disponibilidade de
trabalho necessário à vida. Há um tempo ecológico e social no interior destas atividades.
Por outro lado, o tempo mercantil ou o tempo do relógio é mais característico das
chamadas sociedades modernas ou industriais, cujo ritmo de tempo se expressa através das
relações sociais formais ou informais, definidas pela própria sociedade, em especial, aquelas
regidas pelas relações capitalistas16.
Ambas as formulações de tempo não são encontradas em “estado puro” na nossa
atualidade. Tratando-se da pesca de subsistência e pesca comercial, enquanto forma de
apropriação dos recursos pesqueiros, o tempo de trabalho se apresenta em dois níveis no
interior destas atividades: o primeiro é a realização da pesca como fonte básica de
subsistência, a outra é a atividade de pesca como atividades para renda imediata e condição
15
É importante compreender que a categoria tempo é analisada numa perspectiva antropológica, ou seja, o
tempo como sendo uma construção cultural e social.
16
De acordo com a autora, o tempo do relógio que representa consiste no regulador do ritmo dominante nas
sociedades ocidentais”, pois o homem se encontra submetido a uma medida autônoma, fora quase que
totalmente do seu controle (CUNHA, 2000, p. 102-103).
110
básica de vida (a venda do pescado ou da mão de obra). Em síntese, os dois ritmos de
trabalho podem apropriar-se distintamente dos recursos pesqueiros, no entanto, se
complementam economicamente à medida que se considera a natureza do processo de pesca
em conformidade com o destino da produção, caso seja para a subsistência ou para
comercialização.
O antropólogo Antonio Carlos Diegues (1983) afirma que:
a significação da pesca artesanal está contida em um conjunto de
elementos singulares. Do ponto de vista de sua organização interna,
destaca-se o fato de se constituir uma atividade econômica que depende
das forças naturais, cujos reflexos imediatos atuam na geração do
excedente e nos grupos ou classes sociais envolvidos. Como uma atividade
eminentemente irregular, o pescador tem sobre ela pouco controle, estando
em direta dependência da natureza e de suas leis básicas – ventos e chuvas
– e do próprio ciclo de produção e migração dos peixes.
Daí resulta que a categoria tempo, nas reflexões de Lúcia Helena de Oliveira Cunha
(2000), colabora para pensarmos como a noção de tempo pode imprimir ritmos
diferenciados de trabalho no interior das práticas de pesca de subsistência e comerciais de
acordo com a racionalidade de quem se apropria.
Pereira (2007) nos esclarece o dia a dia do camponês da várzea amazônica ao
mencionar que algumas atividades são pensadas em termos do calendário agrícola. O autor
afirma que o tempo da várzea é demarcado pelas fases terrestre e aquática, e que os ciclos
produtivos perpassam pelas questões climáticas, pois estas atividades operam no ambiente
de várzea, onde a falta de sincronização entre regime pluvial e fluvial faz como que existam
quatro “estações climáticas” – enchente, cheia, vazante e seca. Entender esse tempo da
várzea é fundamental para compreensão do tempo social das atividades pesqueiras.
A seguir veremos que a pesca nos lanços opera sob a convergência das variáveis
ecológicas, econômicas e sociais, demonstrando que a conservação dos recursos pesqueiros
depende do manejo que considera o equilíbrio dessas variáveis.
2.5 A pesca no lanço: o conhecimento básico para o manejo da pesca de subsistência e
comercial
Ao pensarmos a prática da pesca no lanço, entendemos que o conhecimento e as
práticas dos pescadores de subsistência e comerciais das localidades estão interligados, fato
que orienta culturalmente e sustenta os ambientes manejados. Este conhecimento está na
base das decisões e estratégias de pesca dos pescadores das localidades.
111
Neste sentido, ele é empírico e prático, combinando informações sobre o
comportamento dos peixes, taxonomias e classificações de espécies e hábitats, assegurando
capturas regulares e, muito das vezes, a sustentabilidade a longo prazo, das atividades
pesqueiras. O conhecimento tradicional também é capaz de fornecer o conhecimento crucial
para o manejo dos recursos pesqueiros locais.
Neste trabalho, o conhecimento dos pescadores é entendido como um conjunto de
práticas cognitivas, fundamentados em habilidades (noções espaciais e perceptivas) e
práticas que são transmitidas pela própria prática.
Diegues (1983) e Furtado (1993) que estudaram comunidades de pescadores
caracterizam alguns elementos constitutivos do conhecimento de pescadores. Deste modo,
traçamos alguns paralelos de seus conhecimentos para identificar as peculiaridades da
cultura dos pescadores das localidades pesquisadas. Assim percebemos que o conhecimento
se caracteriza: a) pelas relações simbólicas e econômicas com os recursos da terra e da água;
b) pela ligação como os territórios de pesca tendo em vista as atividades de subsistência e as
relações com o mercado comercial para a reprodução do modo de vida; c) o papel
desempenhado pela unidade familiar e as relações sociais baseadas principalmente no
parentesco (geralmente é o filho e o parceiro que pesca mais com o pai; d) pelo uso de
tecnologias relativamente simples e mais baratas compradas ou feitas com o material do
ambiente de moradia; c) uma identificação social e a linguagem peculiares em relação à
sociedade urbanizada. Outras características mais particulares do conhecimento dos
pescadores se relacionam com o hábitat dos peixes; a classificação das espécies (peixecachorro, por exemplo, peixe cambuti), e os conhecimentos alimentares das espécies de
peixes.
Se, para a ciência contemporânea, o conhecimento sistematizado representa o modo
de classificar, organizar e compreender a complexidade das coisas do mundo, o
conhecimento dos pescadores das localidades Jaiteua de Cima, Jaiteua de Baixo e Cajazeira,
representa a ciência da experiência de vida dos ribeirinhos no contexto da várzea amazônica.
Nesta perspectiva, Lévi-Strauss (1996) enfatiza que a diversidade cultural se
constitui de diferenças culturais – conhecimentos e técnicas – e não de desigualdades
culturais17. De outro modo, cada cultura ou grupo social estabelecem empréstimos ou
exercem trocas culturais que se opõem umas às outras por motivos de decisões econômicas e
17
O termo desigualdades culturais significa a noção explicita e, em certas circunstâncias implícita, de vincular
o conceito de cultura relacionado à existência de sociedades ou grupos culturais superiores e inferiores.
112
forças políticas. E, em certas circunstâncias, fecundam-se naturalmente a ponto de
convergirem para algo positivo, se beneficiando mutuamente, com base no conhecimento e
nas técnicas diversas que cada cultura disponibilizou ao longo de sua trajetória históricosocial.
Contextualizando esta reflexão, percebe-se atualmente que a intensificação do uso de
apetrechos de pesca modernos – malhadeiras e tramalhas – no cotidiano dos pescadores de
subsistência e pescadores comerciais, significa mudanças culturais substanciais nas formas
de apropriação dos recursos ictiofaunísticos. Quer seja pela facilidade ou pelo aumento da
capacidade das capturas com estes apetrechos em virtude das demandas de mercado e pela
necessidade de sobrevivência dos pescadores, é pertinente ressaltar que as práticas de pesca
e a confecção de apetrechos tradicionais, tais como o arpão, o arco e flecha, estão em
situação de quase desuso. Fato que pode ocasionar a perda do capital cultural investido na
confecção destes apetrechos desenvolvidos ao longo do tempo, uma vez que apresentam
detalhes e mecanismos estruturais importantes em sua confecção e praticidade de uso (ver
tópico 2.6).
De outro modo, este conhecimento, quando não reproduzido socialmente, pode ser
degradado no tempo e no espaço, por ter ocasionado a falsa noção de apetrechos obsoletos e
atrasados por serem raramente manuseados e pelo fato de não atenderem às expectativas
pragmáticas do mercado. Não se trata de situar os pescadores de subsistência e pescadores
comerciais como reivindicadores da sua preservação cultural e nem de situá-los como
sociedades estacionárias, mas sim valorizar suas práticas culturais como patrimônio desta
diversidade de povos da região, e que tem muito a contribuir para a manutenção dos recursos
naturais.
Na várzea amazônica, o cotidiano de trabalho dos pescadores é marcado pelo tempo
natural dos sistemas ecológicos e pelo tempo mercantil das práticas econômicas que, pela
conexão intrínseca, caracterizam o estilo de vida do pescador ribeirinho que vive da
sazonalidade desta atividade e da polivalência de outras culturas – o extrativismo, a
agricultura, a caça e os serviços gerais – durante as fases do ciclo hidrológico. Neste sentido,
cabe ressaltar as reflexões de Cunha (2000, p. 105, grifo nosso):
“o pescador parece definir sua existência e demarcar os afazeres diários,
não somente em função do calendário urbano, mas [do calendário
ecológico] das principais safras de peixes que perpassam [os períodos do
ciclo das águas]. Ele se refere a [determinados momentos] enquanto
significado da atividade [de pesca], demarcando os períodos de passagem
dos peixes: [a piracema, época do jaraqui e da curimatã].
113
Esta reflexão permite afirmar que o sentido dado aos processos de trabalho dos
pescadores das localidades, seja para subsistência ou comercialização, coadunam-se com
elementos ecológicos, cuja composição é internalizada nas práticas de pesca. Assim, o
sucesso nas pescarias dependerá do conhecimento acerca da temporalidade dos sistemas
ecológicos, isto é, da inteligência e capacidade perceptiva dos pescadores em relação aos
períodos de reprodução e movimentação dos peixes, o que influencia diretamente as
possibilidades de captura das diferentes espécies de peixes que vivem em cardume ou em
comportamento isolado.
Com base nas palavras de um pescador, é possível ter ideia do conhecimento dos
grupos sociais das localidades acerca da apropriação da ictiofauna ao indagá-lo sobre a
influência da Lua em suas atividades de pesca:
“[...] a Lua. Só vão por lua o peixe-boi, a anta, o veado, a queixadá, o
caititú. Esses animais só comem assim. Eles vivem assim pra cima. Até no
roçado na nossa plantação de mandioca, se nós plantarmos na lua nova ela
dá uma planta boa, e se for na minguante ela não dá não. Assim mesmo são
os bichos, eles vivem pela força da lua. Tem dias que você chega lá e não
tem uma lua bem forte pra eles, eles não vem não. O peixe, o tambaqui são
peixes de arribação, de lua. O pirarucu, o pirarucu ele vinha focar toda essa
cabeceira, mas quando está no tempo do rio seco ele se banhava aqui pra
cima” (A. S.; pescador de subsistência, Cajazeira, 2007).
“[...] numa época dessas, eles [os cardumes de tucunaré] estão saindo,
porque a água está arriando, aí tá secando. Então, eles estão saindo, porque
se não sair, eles ficam em terra, aí pra dentro, aí vão procurando o fundo,
saindo pro fundo. Aí ele vai, vai, aí quando é novembro, a água nova já
vem. Aí é a época da enchente, aí já vem entrando, aí que eles ganham as
cabeceiras, os igapós... aí fica difícil o cara pegar ele. Mas esse é o
momento bom de pescar, o peixe dá mais dinheiro e a procura da cidade é
muita” (V.S., pescador comercial, Cajazeira, 2007).
No cotidiano dos pescadores de subsistência e pescadores comerciais, o
conhecimento do ambiente em que vivem e a habilidade para fazer as coisas para utilizar
esse ambiente, à medida que vão sendo transmitidos e absorvidos pelos seus filhos,
transformam práticas, recriam hábitos de vida e modos de apreensão e apropriação da
natureza.
O conhecimento dos pescadores se constrói na prática, trabalhando. Estes agentes
sociais geralmente levam seus filhos para acompanhá-los nas pescarias. O processo de
aprendizagem da criança ao trabalho inicia a partir do 5 anos de idade, momento em que a
114
criança começa a despertar para as curiosidades da natureza do mundo. A pesca no lanço é o
momento mais significativo desta experiência, pois esta prática expressa o conhecimento e a
habilidade do pescador (o pai) acerca dos pontos de concentração de peixes.
Na área de estudo, os lanços podem ser feitos em ambientes fechados como a floresta
inundada (igapó) ou em áreas abertas dos lagos, em suas margens. Nas localidades
pesquisadas, a pratica mais comum é o lanço de floresta inundada (alagada ou igapó). Soares
(et al., 2008) citada no capítulo I sinaliza que a composição de águas mistas do lago são
importantes fontes de energia e otimizadoras do processo biológico em floresta alagada. Na
época da enchente os igapós e os igarapés são ambientes favoráveis para os peixes porque
encontram muitos alimentos. Muitas árvores ao redor dos igarapés, por exemplo, estão em
fase de frutificação no período da enchente, e os peixes comem os alimentos que caem nos
igarapés, do mesmo modo ocorrendo com os igapós.
O lanço é uma prática de pesca relativamente individual e não altera muito o
ambiente. Cada lanço representa um ponto de pesca. Esse local geralmente é preparado no
período da seca, ocorrendo a limpeza do terreno do lanço, retirando troncos de algumas
árvores e galhos retorcidos, galhos emersos no período da seca, denominados localmente
como “cacaias”. O lanço se caracteriza por um corredor ou caminho de terra, cuja largura é
suficiente para o deslocamento de uma canoa. A garantia desse espaço e não mais que isso, é
importante, pois caso o tamanho exceda o “peixe estranha”. O comprimento deve garantir as
possibilidades de distender diversos tamanhos de malhadeiras ou tramalhas para exercer as
pescarias (Figura 33).
115
Figura 33 – Preparo de um lanço (floresta alagada): época da seca.
Fonte: Dados de campo (2007).
A limpeza é necessária para que não haja o enrosco das malhas (malhadeiras) no
fundo do igarapé ou do lago, o que pode ocasionar prejuízos (danificação) ou risco de
acidentes ao entrar sucessivas vezes na água para desprendê-la. Em seguida, se marca com
golpes de terçado – o facão usado pelo ribeirinho – alguns troncos ou galhos que servirão de
referencial visual durante o período da cheia. Cada pescador tem seu lanço. “Ninguém é
dono do rio, mas o lanço é o trabalho do pescador. Para pescar no lanço do outro se deve
pedir licença, é a nossa regra aqui” (F.R.F., pescador comercial, Jaiteua de Baixo, 2007).
Nota-se abaixo o local conhecido como igapó da Terra Preta, próximo ao lago
Grande, onde foi possível perceber o desenvolvimento da prática do lanço (Figura 34).
116
Figura 34 – Pesca no lanço (floresta alagada): época da enchente.
Fonte: Dados de campo (2007).
Como observado, as imagens seguem uma sequência que permite pensar a pesca no
lanço: a criança geralmente conduz a embarcação. O pai orienta e lhe indica onde deve
entrar com a canoa motorizada (a rabeta). Neste período, a criança vai observando as
práticas do pai. O filho indaga, critica, dá opiniões e advertências. O pai, por outro lado,
pede para observar, e vai explicando, na prática, como um lanço se difere do outro. Há
lanços que dão mais peixes, outros, menos. As observações são importantes, pois cada lanço
apresenta suas especificidades: uma delas é a quantidade de fruta dentro e ao redor do lanço,
o que permite mais concentração de peixes, facilitando as capturas através das malhadeiras
distendidas de um ponto de amarração (referência) ao outro ponto do lanço.
Na rotina da vida do pai, a criança, ao acompanhá-lo, inculca e aprende a prática da
pesca. A habilidade e o conhecimento se desenvolve na experiência de vida, de modo
gradual e paciente.
O Quadro 6 ilustra a composição da pesca no lanço realizado pelo Sr. Rondon Filho
nas imediações da comunidade Santo Antônio, localidade Jaiteua de Baixo durante as
rotinas do seu trabalho.
117
Ambiente/lanço
“Igapó”da
Terra Preta
Quant.
lanços*
8
pontos
de
pesca
Períodos
Favoráveis
Enchente/
Cheia
Horário
Manhã,
Tarde,
Noite
Pescadores
Apetrechos/
Embarcação
Pai e filho;
Outras
Parcerias
Tramalha,
Malhadeira,
Arpão;aza
gaia/canoa,
Rabeta
Espécies**
Pacu,
Roelo,
Tucunaré,
Jaraqui e
Outros
Quadro 6 – Indicação dos elementos presentes na pesca do lanço.
Fonte: Dados de campo (2007).
Com apoio na ilustração e na participação ativa do pescador comercial, nota-se que o
igapó da Terra Preta é um ambiente de pesca que apresenta diversos pontos de pesca.
Segundo Sr. Rondon Filho, os lanços são definidos conforme a natureza do processo de
pesca: caso seja a pesca para a subsistência, em condições naturais favoráveis, a definição do
uso de três lanços, em um dia de trabalho, é suficiente para a manutenção da rotina alimentar
da família durante uma semana de trabalho, dada às condições mínimas de armazenamento e
abrigo, isto é, o uso de técnicas de tratamento e conservação do pescado, tais como a
aplicação de gelo e da salga, o que é muito comum no dia a dia doméstico de sua família.
Nessa condição, a composição das pescarias é muito variável, sendo definida de
acordo com o desejo do pescador: ele pode pescar sozinho ou com seu filho (o que reforça
os laços consanguíneos) ou parceiro de pesca. Conforme as oportunidades do contexto, isto
é, da possível fartura do peixe, e, consequentemente, sua comercialização, ele pode ater-se
ao uso misto de apetrechos de pesca tradicionais e modernos ao mesmo tempo, sendo mais
comum o uso de malhadeiras e tramalhas, arpão e azagaia, respectivamente (ver tópico
apetrechos de pesca).
Neste tipo de pescaria, o deslocamento da residência até o local de pesca pode ser
realizado por canoa a remo ou canoa motorizada (a rabeta), porém o deslocamento dentro do
lanço exige total silêncio para não afugentar os peixes. Nessa condição, o uso de canoa a
remo é mais recomendável.
As espécies capturadas são variadas, tendo ocorrido o destaque para o ruelo, o
tucunaré, o pacu e o jaraqui, todos muito apreciados para autoconsumo e bons para
comercialização. Caso a pescaria seja exclusiva para a comercialização, a composição das
pescarias em um dia de trabalho pode exigir a definição do uso de mais lanços, isto é, de
mais pontos de pesca. Nesse contexto, a racionalização do espaço de trabalho, do tempo e
118
das técnicas a serem utilizadas, é fundamental para o bom êxito das pescarias. Assim os
lanços são trabalhados em seqüência, partindo do melhor ponto de pesca para o que
apresenta menos fartura, fato que a experiência – a percepção e a habilidade – do pescador já
definiu anteriormente.
Conforme a racionalidade das práticas comerciais, o tempo de trabalho visando à
pesca comercial, ao contrário da pesca de subsistência, é organizado por turnos diários
(manhã, tarde e noite) ou jornadas de 24 horas, fato que perpassa a mente do pescador em
pernoitar em seu ambiente de trabalho, vivenciando as dificuldades e perigos das matas de
igapó, típica da vegetação que constitui o igapó da Terra Preta e seu entorno. Nesse
processo, o tempo e as condições dos sistemas ecológicos são determinantes no
comportamento das espécies (mas não as únicas), pois a aparição e a facilidade de captura
dos peixes dependerão das condições favoráveis ao abrigo e alimentação.
Os lanços sendo trabalhados sequencialmente na prática comercial, o uso combinado
de apetrechos de pesca modernos, tais como as malhadeiras e as tramalhas, são intensivas,
pois a maneira como estes são confeccionados objetivam a captura racionalizada, porém,
não seletiva de espécies de peixes de hábitos coletivos e individuais em grande quantidades,
o que depende da disposição e organização físico-espacial desses apetrechos nos ambientes
de pesca.
Nos lanços, os apetrechos tradicionais, tais como o arpão, utilizado tecnicamente
para a captura do pirarucu, e o arco e flecha aplicados, por exemplo, para a captura do
tucunaré, são constantes durante a pesca comercial. Isso é possível após a disposição das
malhadeiras e tramalhas nesses ambientes, apetrechos que exigem maior tempo de
permanência submersos para as capturas. Esse espaço de tempo que consome algumas
dezenas de minutos, ou até horas, é capaz de gerar um “tempo mais livre” ao pescador que o
utiliza para a pescaria do pirarucu e outras espécies, ou atividades relacionadas à pesca, tais
como a coleta de frutas, insetos grandes ou pequenos (jia/sapinnho, minhoca etc.) que
servirão de iscas para apetrechos de menor impacto ao ambiente como, o caniço ou linha de
mão. Nesse processo, a canoa e a rabeta continuam sendo os principais meios de transporte,
aumentando em número conforme as pescarias estabelecidas entre os agentes sociais
envolvidos.
A apresentação dos lanços de pesca nas florestas de igapós enquanto pontos de pesca
das localidades, evidencia que o tempo ecológico dos ciclos naturais é internalizado pelos
pescadores e associado ao tempo das relações comerciais. Observamos que o manejo desse
119
tipo de atividade opera sob racionalidades que podem conservar (no sentido de manutenção)
ou degradar os estoques pesqueiros. O pescador sabe manejar sob as duas formas de
racionalidade e seus conhecimentos contribuem para a sustentabilidade dos recursos
ictiofaunisticos.
O gráfico 7 apresenta algumas espécies capturadas nos lanços e destinadas à
comercialização em Manacapuru. A atividade ocorre conforme as expectativas do mercado e
do cotidiano doméstico/familiar, motivações que definem quais espécies capturar e como
capturá-las.
35,0
30,0
25,0
20,0
15,0
10,0
5,0
S ardinha
Matrinxã
P es cada
Aruanã
P acu
Acará-açu
T ambaqui
C urimatã
R oelo (filhote do tambaqui)
T ucunaré
0,0
Gráfico 7 – Peixes mais comercializados e capturados nos lanços de pesca.
Fonte: Dados de campo (2007).
Assim, a espécie mais mencionada pelos pescadores em suas capturas é o tucunaré
(34%), muito preferido pelos freqüentadores dos restaurantes locais e pelas famílias (em
geral), por ser uma carne saborosa e com razoável preço de mercado. Em segundo, destacase o roelo, o filhote de tambaqui (22%) que agrega valor comercial elevado, porém ainda
acessível aos consumidores em geral. O curimatã (19%), que também reúne boas qualidades
em suas carne e preço acessível ao consumidor de média/baixa renda. O tambaqui adulto
(13%) que é um peixe nobre e caro semelhante ao pirarucu (em termos de custo), muito
procurado pelos donos de restaurantes, hotéis e supermercados, sendo os principais
120
compradores. E, por último, a matrinxã e a sardinha, espécies típicas das mesas mais
populares da região, acessíveis à compra e bem apreciados.
Na área de estudo, ocorre outra modalidade de pesca de lanço praticado em
ambientes abertos às margens dos lagos e relativamente distinto do lanço de floresta alagada.
Esta atividade é realizada no tempo da enchente/cheia do ciclo das águas, especialmente nas
margens do lago São Lourenço com objetivo de capturar cardumes de peixes de espécies
variadas. A escolha do local do lanço é resultado de observações empíricas do pescador,
sendo os canais dos lagos, no período da enchente/cheia, caminho de rota migratória de
cardumes de peixes de diversas espécies, ou seja, a escolha não ocorre por acaso,
aleatoriamente.
Este tipo de pescaria geralmente é praticada por barcos de pesca ou por pescadores
citadinos que arrendam a terra para a preparação do lanço. É uma atividade peculiar porque
consiste não apenas na atividade pesqueira, mas na aquisição de renda através do
arrendamento da terra por parte do camponês amazônico que adquiriu a terra por posse
tradicional reconhecida pelos comunitários (MASULO, 2007).
Box 1 – Lanço de terra firme
A técnica de pesca de lanço de apropriação e uso individual/familiar foi introduzida no lago
São Lourenço e baixo rio Manacapuru pelos proprietários de barcos de pesca, provenientes
da cidade de Manaus, no início da década de 60 do século XX, na qual se apropriavam de
porções das águas e terras dos camponeses-ribeirinhos. Executavam a pesca de lanço e, o
que é mais sintomático, não deixavam nada em troca para os moradores. Todo o pescado
capturado era direcionado para ser comercializado em Manaus. A partir de meados da
década de 70 do século XX, os camponeses-ribeirinhos começaram a impedir esse tipo de
pescaria por parte dos proprietários dos barcos de pesca na frente de suas propriedades.
Como os moradores já dominavam a técnica de preparar o lanço, eles assumiram essa
atividade. Desse modo, o controle dessas porções de água passou das mãos dos proprietários
de barcos de pesca de Manaus para as mãos dos camponeses-ribeirinhos, os quais
assumiram todo o processo de preparação e armação dos lanços. Além disso, assumiram
também todo o processo de comercialização do pescado. Por outro lado, como os
camponeses-ribeirinhos não dispunham de capital suficiente para as redes de pesca, tiveram
que se sujeitar aos proprietários de barcos de pesca, agora de Manaus e Manacapuru, que
começaram a fornecer esses apetrechos para a realização da pesca de lanço. A rede de pesca,
denominada localmente de “tralha”, tem um custo considerado alto para os camponesesribeirinhos, pois, para executar a pesca em apenas um lanço, precisa-se de pelo menos dez
panos. Cada um pano custa o equivalente a R$ 1.100, 00, uma rede sairá pelo preço de R$
11.000, 00. Como a maioria dos camponeses-ribeirinhos no lago São Lourenço e baixo rio
Manacapuru possui mais de um lanço, em geral três, torna-se extremamente oneroso
adquirir, com capital próprio, essas redes, também chamada de “arrastadeira”. Por isso, os
camponeses-ribeirinhos, sem alternativas, tiveram que se sujeitar aos proprietários dos
barcos de pesca, entretanto, o apurado da venda do peixe no mercado de Manacapuru é
dividido em partes iguais, ou seja, 50% para os camponses-ribeirinhos, donos dos lanços, os
outros 50% para os proprietários dos barcos de pesca, donos das redes. Portanto, observa-se
uma extração da renda da terra e da água que vai para nas mãos dos donos dos barcos de
pesca (ou empresários do capital pesqueiro) e do camponês-ribeirinho que está na base do
arrendamento (MASULO, 2007, p. 262-263).
121
A composição deste tipo de pescaria exige barco de pesca, equipes de pescadores
organizados, redes de pesca, canoas auxiliares e área de terra situada às margens dos lagos,
neste caso, do lago São Lourenço como mencionados pelos pescadores das localidades. O
trabalho na terra é semelhante ao trabalho no lanço de floresta alagada, pois consiste na
preparação da terra no período da seca (águas baixas). Nesta ocasião ocorre a varredura do
terreno pela equipe de pescadores que geralmente arrendam a terra (ou pelo arrendador). A
varredura tem por objetivo a retira da vegetação, de galhos, de troncos e até árvores se
necessário. A limpeza do terreno é feita para que não haja problemas de enrosco das redes
durante as capturas, ao conduzir os cardumes para a margem. Depois de varrido o terreno e
preparado o lanço, aguarda-se o período da enchente para iniciar as pescarias (Figura 35).
Figura 35 – Preparo de um lanço de terra firme: época da seca.
Fonte: Dados de campo (2007).
Os pescadores das localidades pesquisadas geralmente não praticam esse tipo de
pescaria por três motivos básicos: 1) é uma pesca dispendiosa porque exige recursos
financeiros para executá-la (compra de equipamentos de pesca); 2) os moradores não são
proprietários das terras dos lanços e praticamente não tem vínculos de parentesco com os
proprietários que moram em outras comunidades não reconhecidas na pesquisa; 3) e por ser
considerada uma prática predatória, pois retira da água todas as espécies de peixes e outros
animais de vida aquática como, botos, tartarugas e peixes- boi (Figura 36).
122
Fig. 03 - Croquis do Lanço – Preparação da terra para o cerco do cardume - Perspectiva.
Figura 36 – Preparo e atuação da pesca de lanço de terra firme no lago São Lourenço, Manacapuru.
Elaboração:
Beniz
- Abri
Fonte:
Nusec, de
Gabriel
Beniz,/2005.
adaptado por Marco Antônio de Souza Brito.Trabalho de campo, 2007.
Conforme os pescadores das localidades, está atividade é dispendiosa para o
pescador arrendatário do lanço de lago. O pescador deve assumir os custos sociais e
financeiros e os riscos da produção, caso a pescaria seja fracassada. A natureza, como vimos
no capitulo 1 e II, segue os ciclos dela própria, cabendo ao pescador conhecê-la e desvendála. As rotas migratórias dos peixes são observadas, porém podem mudar a qualquer
momento, sem licença prévia para o pescador, por isso o risco de ser fracassada. Em outras
palavras, o arrendamento antecipado para a preparação do lanço pode causar dados materiais
e econômicos ao arrendatário.
Sob a lógica do arrendamento, a pesca de lanço em lago de terra firme, com base no
custo-benefício, apenas pode assumir o caráter de valor de troca (MARX, 1971; DIEGUES,
1983), ou seja, a forma de organização do lanço no lago São Lourenço pode ser
caracterizada como uma pequena produção mercantil simples. “A principal característica
dessa forma de organização é a produção de valor de troca em maior ou menor intensidade,
isto é, o produto final, o pescado, é realizado tendo-se em vista a sua venda” (DIEGUES,
1983; MASULO, 2007).
123
2.6 Apetrechos de pesca
Os apetrechos de pesca compõem os instrumentos de manejo dos recursos
pesqueiros. Como etnografado por Diegues (1983), Furtado (1993) e Maldonado (1993) em
outros contextos de abordagem, ao pensar o sentido dado às práticas de pesca, verificou-se
que os apetrechos confeccionados tradicionalmente ou adquiridos através da compra pelos
pescadores das localidades Cajazeira, Jaiteua de Baixo, Jaiteua de Cima são tecnicamente
aplicados e manuseados conforme a natureza do processo de pesca em consonância com o
círculo de produtividade econômica a que estão inseridos.
Nas localidades, os apetrechos de pesca são instrumentos produzidos de acordo com
as expectativas do pescador. Nesta condição, o sentido dado ao processo produtivo se refere
aos apetrechos que podem ter maior ou menor eficácia durante as pescarias. Estas práticas
estão em conformidade com as espécies que se desejam capturar e também com o principal
fator, que é o destino da produção.
Os modos de pescar nas localidades pesquisadas variam entre as tecnologias
tradicionais (que remontam a influência dos povos indígenas) e modernas (caracterizando-se
por apetrechos confeccionados industrialmente). Atualmente é muito comum o uso
individual de apetrechos modernos (malhadeiras e tramalhas) e/ou em combinação com
diversos apetrechos tradicionais (por exemplo, o uso do arpão e arco e flecha) no cotidiano
dos pescadores das localidades, fato que indica mudanças lentas, porém contínuas neste tipo
de atividade na região de Manacapuru.
Tratando-se do processo de pesca artesanal (autoconsumo/comercialização) que
demonstra o uso combinado de apetrechos tradicionais e modernos, o conhecimento
tradicional do pescador enfatiza alguns detalhes importantes acerca dos seguintes critérios
para definição de uso e confecção de apetrechos, conforme o quadro 7.
O saber sobre o comportamento dos peixes que
deseja capturar;
Considerar os locais onde vivem;
O que os peixes comem;
Locais onde se reproduzem;
Se são peixes de cardumes ou de
comportamento individual;
Se são espécies de escama (couro) ou peixes lisos (pele
fina);
Conhecer a anatomia do peixe;
Especificidades em relação ao tamanho, caso seja grande
ou pequeno e a largura da boca;
Quadro 7 – Critérios biológicos e ecológicos para confecção dos apetrechos de pesca.
Fonte:
124
Considerando os aspectos acima, sendo apetrechos perfurantes e cortantes do tipo
arco e flecha ou arpão, é imprescindível trabalhar as dimensões e os cortornos físicos destes
instrumentos, devendo-se levar em consideração o tipo de material de que são fabricados,
ressaltando a durabilidade e a flexibilidade do material empregado.
Os apetrechos confeccionados podem desenvolver maior ou menor eficácia no ato da
captura do peixe, sendo imprescindível a experiência do pescador no seu manuseio. Deste
modo, o manuseio e eficácia do apetrecho de pesca também requerem o uso da técnica
corporal (MAUSS, 2003) adequada, o que geralmente pode ser desenvolvido antes ou
reelaborado depois da fabricação destes instrumentos. Ao usarem os apetrechos, tais como o
arpão, o arco e flecha, a azagaia, a tarrafa e as malhadeiras, já pensaram no ato de sua
confecção, os detalhes de apoio que ficarão encaixados ao corpo – no ombro e nos braços –
e que facilita a otimização do manuseio no ato da pescaria. Após a fabricação dos
apetrechos, os ajustes são realizados no dia a dia conforme a percepção do pescador, seja
com relação ao tipo de peixe ou dos ambientes onde está pescando.
O sucesso da captura também depende da facilidade do manuseio do apetrecho e da
praticidade do movimento do corpo, sendo a experiência e o conhecimento acumulados do
pescador os melhores caminhos para o bom êxito da pescaria. Como diz Mauss (2003, p.
410), “as técnicas do corpo podem se classificar em função de seu rendimento, dos
resultados de um adestramento [capacidade, habilidade]. O adestramento, como a montagem
de uma máquina, é a busca, a aquisição de um rendimento”.
O gráfico 8 apresenta os apetrechos de pesca utilizados mais frequentemente pelos
pescadores das localidades Jaiteua de Cima, Jaiteua de Baixo e Cajazeira:
125
35,0
28,8
24,8
25,0
20,0 19,2
20,0
13,5
11,5
10,0
11,2
9,6
8,8
5,8
5,8
5,0
3,8
3,8
7,2
3,2
1,9
2,4
2,4
Currico
15,4
15,0
Arpão
30,0
0,8
Comercial
Arrastadeira ou Rede
Tarrafa
Zagaia
Arco e Flecha
Linha e Anzol
Caniço
Tramalha
Malhadeira
Arrastadeira ou Rede
Tarrafa
Currico
Zagaia
Arpão
Linha e Anzol
Arco e Flecha
Caniço
Tramalha
Malhadeira
0,0
Subsistência
Gráfico 8 – Apetrechos de pesca mais utilizados para pesca comercial e subsistência.
Fonte: Dados de campo (2008).
O gráfico permite visualizar a tendência geral do uso dos principais apetrechos de
pesca pelos pescadores das localidades pesquisadas. As malhadeiras e as tramalhas estão em
destaque, sendo considerados apetrechos de pesca modernos. Tanto para pesca comercial
quanto para pesca de subsistência, a frequência de uso desses apetrechos representa em
média 29% e 25% respectivamente, dos instrumentos mais utilizados pelos pescadores. As
malhas (o tecido das malhadeiras e tramalhas) podem ser confeccionadas a partir de
diferentes tipos de linhas e com dimensões de malhas variadas. Nas localidades, observamos
o uso de malhadeiras confeccionadas com linha de nylon ou plástico e apresentam
dimensões quadriculadas variadas.
Elas correspondem ao tamanho e ao tipo de espécies de peixes que se deseja capturar
e não necessariamente específica para uma espécie. Quanto maior a dimensão da malha,
maior o tamanho do peixe capturado. Deste modo, temos, por exemplo, a malha 140 que na
medição do pescador equivale a “um palmo e dois dedos” de abertura são destinados à
captura de peixes graúdos, tipo tambaqui e malhas menores de tamanho 30 e 40 que são
destinadas à captura de espécies menores – a traíra, o acari-bodó. Os tamanhos 50, 60, 70,
80, 90, 100 e 120 são aplicados nesta mesma lógica: maior o peixe que se deseja capturar,
maior a dimensão da malha.
126
Atualmente, a técnica utilizada pelos pescadores para facilitar a captura com estes
apetrechos é o processo de tingimento das malhas com uma substância corante chamada
anelina. A coloração da malha corresponde às características da cor da água que pode
apresentar coloração esverdeada escura, clara, amarelada ou cinzenta. De acordo com
pescadores comerciais, os peixes estão mais “espertos” e “percebem” obstáculos (isto é, os
apetrechos) em seus ambientes de circulação. Por isso, a necessidade de aperfeiçoar
determinadas técnicas de captura (Figura 37).
Figura 37 – Perfil da malha, instrumentos de confecção de malhadeiras e malhadeiras coloridas.
Fonte: Dados de campo (2007).
As tramalhas também passam por esse tratamento e, em geral, são confeccionadas
com linhas de plástico. Os pescadores comerciais e os pescadores de subsistência das
localidades optam por comprar este apetrecho e alegam que o bom preço favorece o
interesse pela aquisição, pois gasta-se muito tempo em fabricá-lo artesanalmente. As malhas
mais utilizadas variam entre 35 a 50, sendo ideais para capturas de espécies pequenas e
médias. Geralmente capturam traíra, pacu, sardinha, tucunaré e bodó (Figura 38).
127
Figura 38 – Peixe preso na tramalha.
Fonte: Dados de campo (2007).
O caniço é um apetrecho utilizado com frequência para a pesca de subsistência (19,2
%). Como dizem os pescadores: “o caniço é bom pra pescaria rapidinha, pra boia” –
alimentação. Para pesca comercial (13,5%), é utilizado de maneira combinada com outros
apetrechos em pescarias mais frequentes em pontos de pesca, tais como o lanço de floresta
alagada (floresta de igapó) anteriormente apresentado.
De acordo com os pescadores, é um apetrecho simples e produzido a partir dos
galhos de árvores encontrados em torno das matas das comunidades. Estes apresentam
“certa retidão”, ou seja, são pouco retorcidos. As madeiras empregadas na fabricação são
conhecidas localmente como envira surucucu e taboca (uma espécies de bambu). São
resistentes, flexíveis e permitem uma “boa briga” com o peixe durante a captura, ou seja, as
madeiras não quebram facilmente. As espécies mais fisgadas com este apetrecho são: o
jaraqui, o pacu, a traíra e a sardinha (Figura 39).
128
Figura 39 – Caniços.
Fonte: Dados de campo (2007).
O arco e flecha ainda é um apetrecho tradicional razoavelmente utilizado nas
localidades, e sua frequência de uso ocorre nas práticas de subsistência (8,8%). Porém
apresentando relevância para pescadores que vivem mais dos períodos sazonais
(enchente/cheia) e por pescadores comerciais (11,5%)18.
Este apetrecho é confeccionado com matérias-primas retiradas da floresta que são
encontradas no entorno das comunidades. As partes (isto é, as peças) que compõem a
estrutura física da flecha são de encaixe e ajustável.
A figura 40 ilustra a composição do apetrecho arco e flecha, apresentado pelo senhor
Moisés, pescador comercial, especificando a montagem da flecha azagainha, instrumento
por ele fabricado e utilizado em conjunto com o arco (Figura 40).
Figura 40 – 1) Composição do arco e flecha; 2) flecha montada; 3) partes físicas da flecha azagainha; 4)
ilustração da montagem; 4) o pescador manuseando-a. Local: comunidade Assembleia de Deus Tradicional,
Jaiteua de Cima. Fonte: Dados de campo (2007).
18
Como visto anteriormente, este pescador vive mais da renda da pesca, prática exercida com mais intensidade
durante todo ano.
129
O apetrecho arco e flecha é um tipo de apetrecho tradicional apropriado
para a pesca de subsistência e usado durante o dia. É também utilizado em
algumas circunstâncias na pesca comercial. Costuma-se também praticar
outras formas de caça com este instrumento. O Sr. Moisés fabrica o arco e
flecha somente para seu uso particular. É um conhecimento tradicional e
prático que herdou de seu pai, o Sr. João Palheta. Ele afirma que fabricar
este instrumento é uma “inteligência maior do “caboclo-índio”. Uma
herança herdada dos “índios Ajará”, seus antepassados. As espécies mais
capturadas, de acordo com o pescador, são: o tucunaré, a aruanã (aruanã), o
pacu, o jaraqui e o tracajá. Os ambientes de pesca mais frequentes para a
captura destas espécies são: o lago, o igarapé e o chavascal. Ele afirma que
o uso deste apetrecho tem sido bastante reduzido devido à escassez do
pescado nestes ambientes. A haste da flecha é produzida a partir de um
material muito leve, um tipo de bambu chamado popularmente de “canela
de velho”. A ponteira penetrante (ponta perfurante) é feita de ferro
retorcido que depois de aquecido é martelado (adornado) até adquirir o
formato final. O arco é produzido de uma madeira leve, flexível e resistente
à umidade. Em síntese, toda fabricação é artesanal, sendo desenvolvida por
alguns pescadores das localidades Jaiteua de Cima e Jaiteua de Baixo e o
processo de fabricação reflete o patrimônio cultural das famílias de
pescadores tradicionais desta região. Alguns pescadores relatam que estes
apetrechos estão em fase gradual de desuso devido à concorrência entre
diferentes pescadores nos ambientes de pesca das localidades e também à
escassez de várias espécies média e adultas. Nesta condição, a maioria dos
pescadores optam pelo uso das malhadeiras e das tramalhas para maior
eficiência nas pescarias (Caderno de campo, fevereiro de 2007).
O arpão é outro apetrecho de pesca tradicional e aplicado em pescarias especiais,
com baixa frequência de uso (5,8%), principalmente para captura do pirarucu e peixe-boi
(estes proibidos de serem capturados pela normativa (portaria do IBAMA), ambos para
comercialização e executadas em períodos de maior rentabilidade do pescado
(enchente/cheia).
Nas localidades, também, foi possível verificar a ocorrência do uso de modelos de
arpão confeccionados com objetivo de capturar bichos de casco, principalmente tracajás. A
figura abaixo apresenta alguns modelos de arpão e detalhes acerca das estruturas (peças)
componentes deste apetrecho (Figura 41).
Figura 41 - O arpão. Da esquerda para direita: 1) tipos de arpão; 2) haste e manuseio; 3) arpoeira; 4) ponteira
perfurante do arpão; 5) orifício de encaixe da ponteira. Fonte: Dados de campo (2007).
130
A composição física deste apetrecho reúne partes com as seguintes definições:
Imagens 2: haste do arpão. Esta é confeccionada a partir da madeira
conhecida localmente como “paracuuba”. Esta madeira é encontrada nas
matas em torno das comunidades. É de coloração marrom, dura (dureza),
impermeável e de peso moderado. Sendo o arpão um apetrecho de
arremesso (projétil), o peso da haste é fundamental para garantir a
perfuração da escama ou couro do peixe. Caso a haste do arpão seja leve
demais, só a ponteira de ferro não garante a perfuração do tecido destes
animais, correndo o risco de não capturá-los. Imagem 3: a arpoeira é
composta por um cordão (barbante) que varia de 2 a 6 mm de diâmetro
aproximadamente e com comprimento que pode chegar até 10 metros
aproximadamente. O tamanho do cordão é para permitir o deslocamento do
peixe depois de fisgado até cansar. Neste cordão, é amarrada a ponteira de
ferro (imagem 4) – o gancho perfurante –, através de um nó ou laço
especial chamado de “estrovo”. A parte inferior do gancho apresenta um
orfício oval (imagem 5) que é encaixado na ponta da haste do arpão. E em
outra extremidade do cordão é amarrada uma boia de isopor ou de plástico
para não perder o apetrecho e nem perder de vista o peixe. Deste modo,
temos a montagem completa deste apetrecho (imagem 1), cuja eficiência
requer boa pontaria e habilidade do pescador durante seu manuseio.
O conhecimento sobre o comportamento e modo de vida das espécies a serem
capturadas é fundamental para o bom êxito da pescaria. Este êxito se refere à quantidade
capturada e redução de tempo de trabalho. Alguns pescadores comerciais locais utilizam este
apetrecho principalmente em pescarias encomendadas, por exemplo, a encomenda de
pirarucu. Alguns pescadores afirmam que este apetrecho está em fase de gradual desuso
devido à concorrência entre diversos pescadores nos principais ambientes de pesca das
localidades, seja para subsistência ou comercial, e também à escassez e ao possível
desaparecimento de espécies como pirarucu dos seus principais ambientes de pesca. As
representações sociais subjacentes a esses processos de trabalho, seja para a subsistência ou
comercialização intensiva, são caracterizadas e também fundamentadas em circunstâncias
que envolvem relações de parentesco e parcerias entre os distintos trabalhadores da pesca e
agentes da comercialização que determinam a maior ou menor pressão sobre o uso dos
recursos pesqueiros.
Nesse sentido, foi possível perceber, durante as práticas de pesca, que os elementos
técnicos e representativos da vida cultural dos pescadores transitam entre situações da vida
econômica moderna que exigem deles atitudes adaptativas ao contexto das esferas do círculo
da comercialização do pescado e, ao mesmo tempo, entre o modo de vida tradicional que,
alicerçado pela força do habitus (Bordieu,1979), resiste com pressupostos identitários e
131
territoriais a essas formas de determinação sutis e, em certas circunstâncias, impositivas dos
ritmos da lógica instrumentalizada da economia de mercado e dos valores e crenças da
filosofia de vida moderna.
Assim o pescador comercial afirma:
[...] antigamente eu pescava com meu pai e nós usava o arpão e o arco e
flecha pra pegar os peixes. A gente comercializava pegando peixe mais
fácil, tinha muito aqui. Depois começou aparecer muito barco de pesca, aí
a concorrência aumentou pra essas bandas daqui [Jaiteua de Cima] então
passamos a pescar com as malhas [malhadeiras e tramalhas] mais vezes pra
poder pegar mais peixe bom pra vender, porque os grande [barcos de
pesca] só pegava eles. Por isso ficou difícil.
[...] a gente aqui não tem vontade de ir pra Manacapuru, prefiro viver aqui
com a minha família, porque aqui a gente tá próximo dos nossos parentes,
temos nossas festas, amigos ... seria bom se voltasse como antigamente
(S.M., pescador comercial, Jaiteua de Cima, 2007).
Ao compreender a realidade do Sr. Moisés e, na tentativa de articular a associação
entre a atividade pesqueira aos diferentes ambientes aquáticos – lagos, igarapés, e igapós –,
verificou-se que a identidade social dos pescadores e a territorialidade das práticas de pesca,
além das relações sociais em si, se constroem nestes espaços produtivos através da
reciprocidade entre o ambiente e ação humana para o aproveitamento dos recursos naturais
aí disponíveis. Nesse processo de reciprocidade, é imprescindível que os meios de produção
(relações sociais e instrumentos de trabalho) se ajustem aos ambientes manejados, “a fim de
que os recursos naturais se reproduzam ciclicamente e, ao mesmo tempo, ele (o pescador)
assegure, para a sua apropriação, a produção dos recursos historicamente necessários à sua
sobrevivência e vida”.
No capítulo a seguir abordaremos a territorialidade dos pescadores das localidades
Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima.
132
CAPÍTULO III
TERRITÓRIOS DE PESCA NO USO DO LAGO GRANDE DE
MANACAPURU
Este capítulo apresenta as ações territoriais dos pescadores das localidades
Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima na utilização dos seus principais território de
pesca. O lago Grande de Manacapuru é compreendido pelos pescadores das localidades
como um amplo território de pesca, porém sendo recortado territorialmente por pontos de
pesca que ficam nas proximidades, nas imediações e distantes das moradias dos pescadores
das localidades. Estes territórios não são utilizados deliberadamente para qualquer tipo de
pescaria, eles são apropriados por cada localidade conforme determinadas regras de uso
(acordos informais de pesca) tendo em vista, como iniciativas dos próprios pescadores, a
manutenção dos estoques pesqueiros destinados principalmente ao provimento de suas
famílias.
133
3.1 A noção de território de pesca
“[...] A minha família veio pra Manacapuru [do Ceará] na época da
borracha prá consegui uma oportunidade prá trabalhá. Nós trabalhamos
muito tempo na juta, e de alguns anos pra cá temos vivido mais da pesca
junto com a plantação também. A pesca cresceu, cresceu, pra essas bandas
de Manacapuru, o pessoal chama financiá que é né? Com esse negócio de
empréstimo, cresceu de barco, de motô que a gente chama. É bom, mas
tem muita gente pescando agora de uns anos pra cá [...] morar aqui na
várzea não é só vontade, a gente precisa viver e acreditá. Aí que é difícil,
porque a gente tem que fazer condições pra isso. A gente tem que pescá ou
plantá, nós fazemos essas coisas junto pra ter mais dinheiro, dinheiro pra
família. [...] Antes a pesca aqui pra essas bandas do Piranha não era
problema, tudo mundo podia entra lá e pesca. Agora com esse negócio de
reserva que chama, fica difícil entra lá, tem que dá um jeitinho e conversa
pra não criar problema com ninguém” (N.M.S., pescador de subsistência,
Jaiteua de Cima, 2008).
Ao pensarmos os territórios de pesca utilizados pelos pescadores das localidades
Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima, não podemos deixar de evidenciar que suas
histórias de vida são feitas de realizações motivadas pela esperança, porém marcadas pelas
circunstâncias políticas e econômicas (antagonismos e contradições) de uma realidade
complexa como a Amazônia.
As palavras do Sr. Napoleão demonstram um pouco dessa realidade ao mencionar, à
sua maneira, que os processos de ocupação e estabelecimento de sua família, assim como
muitas famílias ribeirinhas de Manacapuru, mesmo considerando as particularidades
culturais e decisões subjetivas de cada indivíduo ou grupo social, são decorrentes de
processos históricos de migração fortemente influenciados pelos ciclos e modelos
econômicos, estimulados financeiramente pelo governo federal e implementados pelo
governo estadual do Amazonas. Tudo isso num espaço de tempo ou períodos de tempo os
quais concernentes a determinadas conjunturas ou situações políticas articuladas por
interesses diversos e direcionada para a sociedade amazonense e brasileira como política
Nacional (SILVA, 1999; FREITAS, 2003).
O setor pesqueiro, como indica Ruffino (2004), não deixa de ser beneficiado por
estes estímulos do governo federal, sobretudo a partir da década de 1960, cujo objetivo era
motivar a economia pesqueira no Amazonas e “integrá-la economicamente” ao território
nacional.
Desde modo, pode-se afirmar que as localidades pesquisadas, mesmo apresentando
aspectos de isolamento, sempre estiveram conectadas e contextualizadas em processos de
134
relações sociais mais abrangentes pertinentes à economia política regional, nacional e
internacional.
Com base nesses processos históricos, a noção de território no contexto social dos
pescadores é dinâmica, pois relaciona intrinsecamente algumas variáveis fundamentais da
realidade social que dão sentido a este termo: a dimensão espacial, a dimensão ecológica, a
dimensão política, a dimensão econômica e a dimensão simbólica. Esses elementos
combinados, e apenas neste sentido, fundamentam o conceito de território. Este conceito não
pode ser pensado como uma realidade estática. Por ser um conceito dinâmico, ele deve ser
contextualizado, pois expressa a dimensão histórica dos grupos sociais envolvidos com a
pesca.
A convergência dos elementos ecológicos, políticos, sociais, econômicos e históricos
são pensados intrinsecamente ao conceito de território, porque, ao abordar as práticas de
pesca na várzea amazônica, nos deparamos com diferentes fenômenos ou situações que
marcam a vida dos moradores das localidades pesquisadas. Por exemplo, do ponto de vista
ecológico, as diferentes fases do ciclo hidrológico, um fenômeno determinante e singular na
vida dos moradores da várzea amazônica, quando não “respeitado” ou não levado em
consideração pelas práticas econômicas predatórias, sejam capitalistas ou não, pode e
retroage aos grupos sociais sob a expressão do desequilibro ecológico e social, flagelando a
vida de muitas famílias ribeirinhas com situações temporárias ou permanentes de escassez
de recursos naturais.
Deste modo, pensamos o conceito de território como uma questão prático-teórica que
expressa formas de racionalidade e ações que ora soam “harmoniosas”, ora “conflitante” no
decorrer do uso do lago Grande de Manacapuru pelos pescadores das localidades Cajazeira,
Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima.
O conceito de território pressupõe a categoria espaço, que é o fundamento básico de
uma comunidade ou de uma sociedade, onde se constroem as relações sociais e repousam os
objetos naturais (as coisas da natureza) e materiais (elementos que resultam do trabalho). É
preciso que vejamos o espaço como um sistema de objetos e, ao mesmo tempo, como um
sistema de ações. Isso significa dizer que o espaço é dinâmico, pois pressupõe o
empreendimento de ações humanas na sua configuração (SANTOS, 2002). O trabalho
realizado nos pontos de pesca como a técnica do lanço em ambientes fechados (floresta de
igapó) ou abertos (margem de lagos ou rios) reflete essa configuração elaborada pelo
trabalho individual e coletivo elaborado pelos pescadores das localidades e por pescadores
citadinos.
135
O espaço se transforma em território, à medida que o revestimos de significados,
sejam eles simbólicos ou materiais, afetivos ou míticos (TUAN, 1983). Ou seja, o território
é uma representação social e coletiva, uma ordenação primeira do espaço. Nesse contexto, a
afetividade e o pertencimento ao lugar podem ser considerados formas de valor agregado,
assim como o conhecimento e a práxis das atividades produtivas realizadas no território – a
pesca, a agricultura, o extrativismo vegetal e animal e a caça. O território também pressupõe
e, ao mesmo tempo, é produto das ações coletivas organizadas. O território à medida que é
pensado e organizado, cultural e socialmente pelo trabalho coletivo, dá visibilidades aos
grupos sociais que passam a operacionalizá-lo mediante regras de uso como ocorre nas
localidades pesquisadas. O senhor Lázaro, pescador comercial explica esse contexto:
“[...] Esses lanços aqui no igapó que você tá vendo, eram pouco
trabalhados, o pessoal só passou a mexê neles depois que eu fiz o primeiros
preparos, as varredura que a gente chama. É preciso conhecê um pouco
como funciona os lanço prá fazer isso. [...] Aí depois começamos a
organizar turma de dois, três na época da seca pra limpa. Aí quem quisé
pesca aqui na época boa, pode pescá mas tem que pedi licença também prá
não atrapalhá a pesca de quem preparou ... acho isso certo né” (L. S.,
pescador comercial, Jaiteua de Cima, 2008).
O lago Grande de Manacapuru é compreendido pelos pescadores das localidades
como um amplo território de pesca, porém, sujeito a determinadas regras de uso que marcam
sua “descontinuidade” ou “delimitações de fronteiras” articuladas pelos próprios pescadores.
Manoel Masulo (2007), ao estudar o processo de territorialização dos rios e lagos
amazônicos – lago São Lourenço e baixo rio Manacapuru (parte do local da pesquisa) –
praticado pelos camponeses-ribeirinhos e pescadores profissionais, se apropria de três
conceitos: espaço aquático, território de pesca e terroir. O primeiro significa que o espaço
aquático é pensado como “entidades espaciais estruturadas pelos sistemas de uso múltiplos
dos recursos aquáticos” (2007, p. 252), ou seja, o acesso aos recursos aquáticos interiores
(rios, lagos e microambientes aquáticos amazônicos) é orientado pela reivindicação das
comunidades de pescadores. Isso significa dizer que os direitos de uso sobre as águas fazem
parte da tradição e do costume constituindo o processo de apropriação dos espaços
aquáticos.
O território de pesca é pensado como a capacidade que potencialmente um grupo ou
vários grupos de pescadores podem explorar os recursos pesqueiros, levando em
consideração o destino da produção: o consumo ou a comercialização.
136
O conceito terroir é de origem francesa e, segundo o autor, significa “porção do
território apropriado, organizado e utilizado pelo grupo que reside e retira seus meios de
existência” (MASULO, 2007, p.253). Este conceito é abrangente, pois é pensado não apenas
como extensão do uso dos recursos aquáticos. Ele abarca a dimensão de áreas inundáveis ou
inundadas dos pescadores das localidades, uma vez que são destinadas tanto para fins
pesqueiros quanto para atividades agrícolas e criatórias, sendo local de residência e
apropriado para a existência humana. Este conceito combina-se com os conceitos de
pescadores de subsistência e pescadores comerciais adotados na pesquisa, uma vez que os
pescadores vivem da polivalência de atividades produtivas e relativa monovalência da
atividade pesqueira.
Articulado a essa noção conceitual, porém, na perspectiva ecológica, Begossi (2004)
afirma que “o território é um espaço que foi, ou está sendo apropriado por algum individuo,
grupo ou comunidade sob formas de defesa ou regras de uso, ou sob os conflitos de uso”. A
territorialidade é uma forma de controlar espaços e recursos através de formas de defesa ou
regras de uso. De acordo com Begon et al. (1996), citado por Begossi (2004), a
territorialidade ocorre quando há interferência ativa entre indivíduos, quando uma área
exclusiva, o território, é defendida contra intrusos por um padrão de comportamento
reconhecido pelos outros indivíduos. Nesse sentido, a territorialidade tem mais conotação
política porque estabelece condutas de comportamento, ou seja, mobilização política com
relação à defesa do território.
A autora esclarece que dominar um território ou se apropriar de um território,
envolve custos, ou seja, a relação custo benefício na territorialidade, leva em conta a
disponibilidade de recursos, a sua distribuição e a organização social das comunidades. A
autora cita Stewart (1995) que estudou os índios Shoshoni na Califórnia, onde a escassez e a
imprevisibilidade dos recursos elevaria muito o custo de manter territórios para a extração
dos recursos. Dessa forma,
O nomadismo e a ausência de territorialidade entre os Shoshoni são
estratégias que respondem às peculiaridades ambientais dessa região da
Califórnia, onde os recursos localizados em vales áridos, mostrassem-se
limitados e esparços (BEGOSSI, 2004, p. 226).
Esta realidade descrita pela autora não evidencia totalmente a realidade da área de
estudo, porém ajuda-nos a pensar que a fase terrestre da várzea quando muito prolongada (a
seca) pode provocar situações de escassez, principalmente pesqueiros, levando os usuários
137
dos recursos a partir para medidas compensatórias (PEREIRA, 2007), ou seja, se deslocarem
de suas moradias para lugares com melhores possibilidades de acessos aos recursos. Por
outro lado, caso não haja a situação de escassez, as regras de uso são as melhores práticas
para se evitar a possível escassez no período da seca, ações denominadas como medidas
preventivas (Capítulo I).
Nesta condição, entendemos que os territórios de pesca dos pescadores das
localidades pesquisadas são defendidos através de acordos informais de pesca. Os ambientes
protegidos são aqueles, cujas formas de expressão territorial neles contidos são de atribuição
simbólica e material (pertencimento e trabalho) de seus usuários que tendem a se defender
de formas de expressão territorial (dos pescadores citadinos) que possivelmente degradem os
recursos ictiofaunísticos destinados a subsistência de suas famílias. Um pescador comercial
assim relata:
“[...] os acordos que negociamos aqui é prá proteger os nosso igarapé, o
paraná do Anamã, se não o peixe se acaba de tanto pesca prá vendê e a
gente fica sofrendo como nas vezes passadas aconteceu aí no Anamã na
época da seca, que veio gente de fora com os motor de pesca e levou todo o
peixe e estragou um bocado também. Teve até gente que levô suas famílias
daqui pra Manacapuru porque ficô sofrido vivê com pouco peixe, só da
roça não dá [...]” (E.M.S. pescador comercial, Jaiteua de Cima, 2008).
Simone Maldonado (1993), ao conviver com os pescadores do litoral de
Pernambuco, percebe que a mestrança é a expressão do conhecimento e da territorialidade
do pescador na defesa do ponto de pesca. A mestrança significa um cargo de honra e
prestígio investido ao pescador, pois ao conduzir a embarcação e os embarcados na condição
de proprietário ou contratado, pressupõe o conhecimento das regras de uso dos espaços
marítimos, que a autora identifica como espaços indivisíveis a olho nu, porém divisíveis
simbolicamente; e o conhecimento dos melhores pontos de pesca denominados como o
caminho das pedras – o local de concentração dos cardumes de peixes.
A autora enfatiza que,
[...] os territórios tanto podem corresponder a realidades geográficas
concretas quanto à representação que frequentemente se estendem às
relações sociais, na medida em que a territorialidade humana encompassa
amplo leque de dimensões como status, identidade e prestígio, não raro
podendo constituir-se em ordenações simbólicas em cujo bojo se dão
relações de poder e dominação, eventos de linguagem e ideologia
(MALDONADO, 1993, p. 35).
138
Nessa condição, a territorialidade se estabelece a partir de processos políticos
definidos pelas redes de sociabilidade entre os agentes sociais e mecanismos sociais como as
regras de uso, cujo objetivo é manter e defender o usufruto ou a posse dos espaços de
interesse (MALDONADO, 1993). Através de sua concepção, é preciso que vejamos a
territorialidade como uma dimensão do comportamento humano, que se orienta para
apropriar-se do espaço e dividi-lo em territórios, fazendo deles recursos para o seu interesse.
A noção de territorialidade que se articula com a proposta de Maldonado (1993) a
qual utilizaremos, a seguir, para fazer alguns comentários acerca dos principais ambientes de
pesca apropriados pelos pescadores das localidades Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de
Cima, parte da colaboração conceitual de Paul Little (2002). O autor destaca duas noções
que dão suporte ao conceito de territorialidade: a noção de Cosmografia e Território. O autor
afirma:
“A cosmografia de um grupo social considera seu regime de propriedade,
os vínculos afetivos que mantem com seu território específico, a história se
sua ocupação guardada na memória coletiva, o uso social que dá ao
território e as formas de defesa dele”(LITTLE, 2002, p. 4).
A territorialidade implica uma conduta territorial, ou seja,
“[Refere-se ao] esforço coletivo de um grupo social ocupar, usar, controlar
e se identificar com uma parcela específica de seu ambiente biofísico,
convertendo-o assim em seu território [...] o território é um produto
histórico de processos sociais e políticos” (LITTLE, 2002, p. 3).
3.2 Territórios de pesca e as relações sociais estabelecidas
Antes de identificar os ambientes de pesca dos pescadores das localidades em estudo,
é importante enfatizar que estes agentes sociais atuam num campo social de relações
objetivas sob as nuanças de conjunturas políticas, culturais e econômicas.
Pierre Bourdieu, em A produção da crença: contribuição para uma economia dos
bens simbólicos (2006), explica que o campo social envolve distintos grupos sociais, cujas
manifestações expressam relações de reconhecimento, antagonismos e contradições. Nesse
campo social, a trama das relações sociais é fundamentada numa rede de sociabilidade que
expressa diferentes discursos, posições e estratégias diferenciadas nessa rede, caracterizando
uma espécie de jogo de interesses, poder e prestígio entre os diversos agentes sociais em
139
disputa pelo reconhecimento constante ou revelador do seu discurso e do posicionamento
social. Nesse sentido, a lógica ou racionalidade que opera no campo da “economia dos bens
simbólicos” não segue a mesma lógica ou racionalidade que orienta as economias
fundamentadas nas leis universais do mercado econômico. Embora esse conjunto de
racionalidades influenciadas pela lógica da economia de mercado, e outras, fundamentadas
na suposta denegação da “economia”, flutuem, ou melhor, constituem o campo da cultura,
isso significa dizer que as relações sociais na pesca e a crença professada pelos diversos
discursos em torno dessa prática, revelam que o sentido que orienta os distintos modos de
organização da produção – a pesca para autoconsumo ou a pesca exclusivamente comercial
–, bem como a delimitação e determinadas regras de uso de territórios de pesca, não seguem
necessariamente (integralmente) as normativas do mercado comercial.
Nestas circunstâncias, o campo social da pesca no lago Grande de Manacapuru se
configura numa relação social de interesses comuns, divergentes e relativamente específicos
envolvendo pescadores de subsistência, pescadores comerciais e pescadores citadinos
(“pescadores de fora”).
O conceito de habitus é importante para pensar o campo social da pesca em
Manacapuru,
“[...] pois o habitus é uma noção mediadora que ajuda a romper com a
dualidade de senso comum entre indivíduo e sociedade ao captar “a
interiorização da exterioridade e a exteriorização da interioridade”, ou seja,
o modo como a sociedade se torna depositada nas pessoas sob a forma de
disposições duráveis (meios sociais passados), ou capacidades treinadas e
propensões estruturadas para pensar, sentir e agir de modos determinados,
que então as guiam nas suas respostas criativas aos constrangimentos e
solicitações do seu meio social existente” (ALMEIDA, 2005, p.126).
Este conceito ajuda a pensar que os pescadores das localidades vivem a relação
dialética com seu contexto social, externalizando valores de seu ethos (moral, identidade e
história social) quando coagidos por condições sociais que não correspondem com a
realidade que reivindicam.
Segundo Diegues (2004), a pesca enquanto apropriação material e social de recursos
renováveis e móveis coloca problemas relevantes para a análise da relação entre homem e
natureza. Em relação aos ambientes de pesca utilizados pelos pescadores das localidades
Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima, tivemos a preocupação de apresentar
informações sobre as formas de uso dos lugares de pesca apontados pelos pescadores a partir
da sazonalidade dos períodos hidrológicos, dos apetrechos direcionados para a finalidade da
pesca – consumo e comercialização – e a relação estabelecida entre os agentes sociais.
140
Para falar sobre os ambientes de pesca e a expressão territorial que os pescadores
fazem deles, discorremos sobre a apresentação de gráficos por localidade. Os ambientes de
pesca apresentados nestes gráficos são identificados no quadro 8 através de seus nomes
atribuídos pelo conhecimento dos pescadores, seguido de um número (numeral) para o
ambiente para facilitar a identificação e os comentários.
Os ambientes de pesca também foram identificados em duas figuras (43 e 44,
imagens de satélite) representando, respectivamente, os períodos da cheia e seca do ciclo das
águas com o objetivo de apresentar, além dos ambientes de pesca, o contraste aquático entre
os dois períodos. O georreferenciamento dos ambientes de pesca teve por objetivo
identificá-los e, ao mesmo tempo, perceber a dimensão espacial do lago Grande de
Manacapuru e a dispersão dos médios, pequenos e microambientes em sua abrangência
apropriados pelos pescadores das localidades Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima.
Os ambientes identificados e numerados no quadro 8 são os mesmos identificados e
numerados nas figuras 43 e 44 (são os mesmos nomes e numerações para os ambientes).
A figura 43 (imagem de satélite) descreve cores predominantes de tom verde, azul e
azul escuro em escala gradual de cores (este último com tonalidade preta). As tonalidades
escuras indicam os ambientes aquáticos que são misturas de água mista (branca e escura) e
pontos profundos (poços, paranás, lago etc.) e captados apenas pela tecnologia de satélite.
Estes pontos profundos são ambientes mais visíveis no período da seca (Figura 44)
indicando que são lugares de acúmulo ou concentração de corpos aquáticos (locais de
conflitos de pesca); a redução da água expressa pela fase terrestre da várzea configura-se em
escala de cinza.
Os ambientes de pesca descritos nos gráficos por localidade correspondem aos
pesqueiros mais mencionados pelos pescadores das localidades, não devendo vincular à
análise dos ambientes, o uso exclusivo de qualquer território de pesca ao limite geográfico
físico de uma localidade (dos assentamentos comunitários), pois existem regras de uso para
tais ambientes, ou seja, o pescador da localidade Cajazeira menciona, por exemplo, o uso do
lago do Jaiteua que fica próximo à localidade Jaiteua de Cima que não é de uso exclusivo
dessa localidade. Esse fato também ocorre com outros ambientes de pesca.
Alguns nomes de territórios de pesca não foram identificados nas figuras 43 e 44 e
no quadro 8 pelo nome ou pelo georreferenciamento do ambiente por falha no registro da
informação, porém são pesqueiros reconhecidos pelos pescadores como ambientes
141
importante para pesca; esse é o caso, por exemplo, do lago Grande e do lago São Lourenço
entre outros microambientes não identificados.
A seguir destaca-se a apresentação do quadro 8 relativo ao ordenamento dos
ambientes de pesca e, posteriormente, apresentaremos os territórios de pesca por localidades.
As duas imagens de satélite referentes aos territórios de pesca (georreferenciados)
identificadas como figuras 43 e 44 estão em anexo para facilitar a leitura do texto e a
consulta simultânea dos territórios de pesca nestas figuras (ler e ver as imagens
simultaneamente).
AMBIENTES DE PESCA UTILIZADOS PELOS PESCADORES DAS LOCALIDADES
LAGOS
São coleções de águas paradas se ligação direta com o mar, distribuídas como ilhas na terra
(Schwoerbel, 1971 apud Junk, 1980). Os quais apresentam morfologias diferentes de acordo
com três categoriais: localização do lago no terreno (podem estar situados tanto na várzea
quanto na terra firme), origem/tipo de lago e quanto a forma (SOUZA, 2000). Na área de estudo
ocorre lagos de várzea.
Lago do Jaiteua [03]
Lago do Catoré
Lago do Chavascal
Lago Grande
Lago São Lourenço
S 3° 16' 32.7" e W 60° 51' 27"
S 3° 17' 10.6" e W 60° 53' 52"
CANAL
Os canais são caminhos aquáticos de conexão entre ilhas e entre igarapés e lagos (Pescadores
das localidades pesquisadas, 2008).
Canal do Tiago [01]
Canal Serra Lima (entre duas ilhas) [09]
Canal do peixe-boi (cruza com o igarapé Grande) [13]
Canal do Jauari Grande [14]
Canal que vai para o Castanho [22]
Canal do Cumaru [44]
S 3° 15' 29.5" e W 60° 52' 4.7"
S 3° 17' 14.8" e W 60° 45' 55.1"
S 3° 16' 49.2" e W 60° 50' 40.6"
S 3° 16' 49.9" e W 60° 50' 29.5"
S 3° 17' 33.8" e W 60° 53' 3.6"
S 3° 14' 56" e W 60° 51' 26"
PARANÁ
Canais de navegação até os lagos, importante ambientes para migração/dispersão de peixes
entre os lagos e rio (GARCEZ, 2000).
Paraná do Jaiteua [02]
Paraná do Cedrinho [11]
Paraná da Fazenda (entram nas cabeceiras e se espalham)
[15]
Paraná do Tauari (1) [17]
S 3° 15' 28.7’’ e W 60° 51' 34.3’’
S 3° 16' 36.6’’ e W 60° 51' 15.6’’
S 3° 16' 44.4’’ e W 60° 50' 9’’
S 3° 15' 39.5" e W 060° 51' 14.9"
142
Paraná do Tauari (2)
Paraná do Catoré
Paraná do Seringa
Paraná do Anamã
Paraná do Jaiteua
[43]
[24]
[25]
[42]
[50]
S 3° 15' 16" e W 60° 51' 35"
S 3° 17' 23.8" e W 60° 54' 3.2"
S 3° 16' 53.6" e W 60° 53' 34.3"
S 3°15' 24.8" e W 60° 51' 30.2"
S 3°16' 2" e W 60° 43' 59"
BOCA
A boca é o lugar de entrada ou início de um lago, furo ou igarapé (Pescadores das localidades
pesquisadas, 2008).
Boca do Lago do Jaiteua [41]
Boca do Furo do Tigre
[38]
Boca do igarapé da Cajazeira [40]
Boca do Lago do Jaiteua [41]
S 3° 17' 3" e W 60° 51' 15.3"
S 3° 15' 10" e W 60° 44' 54"
S 3° 14' 26" e W 60° 45' 55"
S 3°17' 3" e W 60° 51' 15.3"
FURO
O furo é um caminho aquático de conexão entre lagos, entre lagos e igarapés e entre igarapés.
Furo do Acari entrada [33]
Furo do Acari saída
[34]
Furo do Tigre
[29]
Furo do Bode
[53]
Furo do Cumaru
[54]
S 3° 16' 7" e W 60° 45' 25.9"
S 3° 15' 28.88" e W 60° 46' 52.61"
S 3º 14' 48.3'' e W 60° 44' 8.2''
S 3° 15' 9" e W 60° 43' 36"
S 3° 15' 6" e W 60° 43' 58"
POÇOS
Lugares profundos situados em um canal ou paraná (Pescadores das localidades Cajazeira,
Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima, 2008).
Poço do Muruca [04]
Poço do Barro Vermelho [18]
Poço do Chatu [20]
Poço Pescoço do Veado (entrada de peixe nos canais)
[21]
S 3° 17' 14.1"e W 60° 51' 53"
S 3° 17' 2.5" e W 60° 51' 21.2"
S 3° 17' 6.1" e W 60° 51' 31.3"
S 3° 17' 24" e W 60° 52' 08.6"
IGARAPÉ
São corpos de água de pequeno porte, caracterizados pelo leito bem definido, correnteza
relativamente acentuada, os cursos médios e superior são totalmente encobertos pelo dossel da
floresta de terra-firme e o leito é entulhado de troncos caídos (Lowe-McConnel, 1999).
Segundo Junk (1983) as altas taxas de precipitações (chuvas) contribuem para que exista um
rede muito densa de igarapés que transportam a descarga superficial das chuvas. O autor
esclarece que a maioria dos peixes come os alimentos não provenientes do próprio igarapé, mas
sim, da floresta ao longo do seu leito, tais como insetos terrestres, frutos, sementes, polém etc.
Igarapé do Peraço (vai p/ o paraná do Anamã) [10]
Igarapé do Zé Leite [12]
Igarapé Grande
[16]
Igarapé do Seringa [26]
Igarapé Água Branca (cabeceira) [28]
Igarapé do Acari [32]
S 3° 15’ 40.5" e W 60° 51’ 14.4"
S 3° 16' 48.5" e W 60° 50' 47.6"
S 3° 15' 20.9’’e W 60° 50' 44.6’
S 3° 16' 26.5" e W 60° 52' 33"
S 3° 15' 10.9" e W 60° 51' 49.1"
S 3° 15' 4.1'' e W 60° 46' 16.4''
143
Igarapé da Canarana [35]
Igarapé sem nome (Atrás da casa do Sr. Abdias) [36]
Igarapé do Tigre [37]
Igarapé da Cajazeira [56]
S 3° 15' 32.7'' e W 60° 47' 12.1''
S 3° 15' 53" e W 60° 45' 1"
S 3° 15' 38" e W 60° 44' 56"
S 3° 14' 25.78" e W 60° 46' 11.38"
Quadro 8 – Ambientes de pesca. Adaptado de Samantha A. Pereira (2005).
Fonte: Dados de campo, 2007/8.
3.2.1 Cajazeira
Os pescadores da localidade Cajazeira utilizam ambientes próximos (internos), nos
arredores (nas imediações) e distantes de suas moradias. O lago do Jaiteua [03], a “Mãe do
Rio” (paraná do Jaiteua) [48], o lago Grande19 e o paraná do Anamã [42], considerados
ambientes distantes, são apropriados em todas as fases do período hidrológico pelos
pescadores dessa localidade. Estes ambientes apresentam fartura de peixe, fato que motiva o
interesse dos pescadores comerciais da localidade. Porém alguns desses ambientes são
utilizados com restrições principalmente no período da seca para a pesca comercial.
A pesca realizada pelos pescadores de subsistência indica que eles utilizam alguns
ambientes internos que perpassam pelas comunidades Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e
Nossa Senhora Aparecida (Cajazeira), destacando-se o uso dos ambientes (principais)
igarapé da Cajazeira [46] e boca do igarapé da Cajazeira [40]. Os pescadores também se
apropriam de pontos de pesca situados nas imediações da localidade, com destaque para os
ambientes: furo do Acari [33], igarapé do Acarí [32], igarapé do Marinho, igarapé do Jacó e
Ilha Redonda (Gráfico 9 e Figura 43 e 44).
19
Há pontos de pesca no lago Grande de Manacapuru (não referenciados, estando no domínio aquático da cor
azul no mapa da cheia, porém visíveis na época da seca, mas não georreferenciados por problemas de trabalho
de campo – tempo, logística de campo e condições ambientais –, que os pescadores das localidades, neste caso
particular, em Cajazeira, consideram distantes. Os pescadores não identificam por nomes, mas sim, por pontos
de pesca no lago Grande, e apenas isso. Ao se referirem ao lago Grande como descrito no gráfico significa que
não é o lago do Jaiteua, não é o lago São Lourenço, mas sim, pontos de pesca distribuídos que reconhecem e
identificam como compondo apenas o lago Grande, e este ambiente incluindo os lagos do Jaiteua e lago São
Lourenço compondo o lago Grande de Manacapuru como descrito no capitulo I.
144
RSD Piranha
Ilha redonda
Igarapé do Marinho
Igarapé do Jacó
Lago Grande
Igarapé da Canarana [35]
Boca do Igarapé do Tigre [38]
Furo do Acari
[33 / 34]
Igarapé do Acari
[32]
Boca do Igarapé da Cajazeira [40]
Mãe do Rio (Paraná do Jaeteua) [48]
Paraná do Anamã
[42]
Lago do Jaiteua [03]
Igarapé da Cajazeira
[46]
0,0
20,0
Enchente
40,0
Cheia
60,0
Vazante
80,0
100,0
120,0
Seca
Gráfico 9 – Territórios de pesca: Cajazeira.
Fonte: Dados de campo (2007/8).
A pesca realizada nos ambientes internos da localidade (40, 46 e outros) é
exclusivamente para o consumo das famílias dos pescadores em associação com a
polivalência de outras atividades rentáveis como a agricultura, o extrativismo e a criação de
animais que foram apresentadas no capítulo II. Os pontos de pesca situados nas imediações
das localidades (32, 33 e outros) são apropriados tanto para o consumo quanto para a
comercialização e partilhados pelos pescadores de subsistência que vendem o pescado mais
no período da enchente, e pelos pescadores comerciais que vivem mais da renda do pescado
durante o ano.
Os ambientes de pesca internos (40, 46) utilizados “exclusivamente” para a pesca de
subsistência são apropriados com intensidade durante o ano, porém com a redução do nível
da água no período da seca, os pescadores de subsistência tendem a se apropriar de
ambientes mais distantes tais como o lago do Jaiteua [03], a Mãe do Rio ( paraná do Jaiteua)
[48], o paraná do Anamã [42] e o lago Grande para suprir as necessidades básicas da família
com a proteína do peixe e destinar uma parte do pescado capturado para a venda
completando o orçamento material e financeiro das famílias. O pescador de subsistência
relata:
145
“[...] quando lá mesmo no Acari [igarapé] começa a secá, aqui na Cajazeira
a gente percebe que o nosso igarapé começa a secá também. Então a gente
passa lá pro Anamã, pro lago do Jaiteua, pra Mãe do Rio, a gente vai pra
outros lugares também né, porque esses lugares sempre tem peixe. Eu
aproveito e pego o peixe pra vendê também, o que eu não vendo, trago pra
casa prá prepará prá comê no nosso roçado quando tivé trabalhando. [...]
Mas é muito cansativo porque a gente tem que andá muito a pé. É de
rabeta, canoa mesmo, e de pé, pegando os varadouros que você viu hoje até
chegá nesses lugá. Se não for assim não tem peixe” (V.S., pescador
comercial, Cajazeira, 2008).
A pesca realizada nos ambientes internos e nos ambientes considerados distantes não
está isenta de regras de uso. Em Cajazeira, os pescadores de subsistência e os pescadores
comerciais locais estabeleceram um acordo de pesca informal, que garante, como prioridade,
o uso dos ambientes internos apenas para o consumo dos moradores da localidade. Ao se
deslocarem para o paraná do Anamã [42] e para o lago do Jaiteua [3], seja para subsistência
ou para a comercialização, estão sujeitos ao acordo informal de pesca estipulados pelos
pescadores da localidade Jaiteua de Cima, que adotaram-no para controlar o uso coletivo
desses ambientes. Estes agentes sociais exercem a territorialidade (LITTLE, 2002) com
eficiência de modo a coibir a pesca comercial no período da seca, principalmente no paraná
do Anamã [42], pois este reúne consideráveis estoques de peixes nessa época.
A pesca realizada nas imediações da localidade Cajazeira pelos pescadores
comerciais locais está sujeita às restrições de uso negociadas e maleáveis. Os pontos de
pesca são compartilhados com os pescadores comerciais da localidade Jaiteua de Baixo, que
estabelecem regras de uso apenas para os lanços20 que fazem (produzem) na época da seca.
Esta regra é uma recíproca que os pescadores da localidade Cajazeira se valem quando
fazem seus lanços nesses mesmos ambientes, que são menos numerosos em relação aos
produzidos pelos pescadores de Jaiteua de Baixo. O uso desses ambientes pelos pescadores
citadinos (pescadores de fora) ocorre na época mais produtiva, encontrando certa
cumplicidade com os pescadores comerciais de Jaiteua de Baixo, porém sendo
constantemente vigiados para não excederem na exploração dos lanços.
Diegues (1983) e Furtado (1993) já haviam percebido esta cumplicidade entre os
pescadores-lavradores (pescadores comerciais locais) e os pescadores citadinos (pescador
comercial e embarcado) a respeito da convergência de interesses pelos pontos de pesca.
Estes interesses geralmente articulados pelos donos dos motores de pesca ou pelos
20
Esses lanços que os pescadores se referem são feitos em ambientes de floresta inundada (igarapés, igapós e
chavascais) chamados também de lanços de ambientes fechados.
146
pescadores citadinos se ramificam numa ampla rede de prestações de serviços, cuja
finalidade são as melhores condições de captura, venda e compra do pescado. O apoio
logístico desses agentes sociais baseado em empréstimos do tipo esforço de pesca
(equipamentos e apetrechos de pesca) são meios pelos quais os pescadores comerciais da
localidade se sentem estimulados ao trabalho. Porém os autores apontam a ruptura desta
cumplicidade na medida em que os pescadores citadinos se interessam por outros pontos de
pesca ofertando as mesmas condições de cumplicidade a outros pescadores.
Um pescador da localidade Cajazeira explica:
“[...] a gente aqui não costume fazê lanço igual o pessoal do Jaiteua, a
gente faz dois, três lanços lá pro Acari, pra garanti, pra ganha alguma coisa
né, quando tá bom de vendê, só prá comê não compensa muito, que dá
trabalho pra fazê. Mas aqui dentro mesmo não, a gente pesca aqui no nosso
igarapé. Lá eles fazem muito lanço porque pesca prá vendê.
[...] Quando a gente faz um lanço, a gente faz porque precisa, e como tudo
mundo precisa pescá a gente não pode dizê: não você não pode pescá, mas
o pessoal tem que respeitá quando o outro tivé pescando. Se a gente vê
alguém no lanço a gente passa direto, mas quando não tem nenhum que
tudo mundo tá usando eu falo: “o fulano posso pescá? Mas isso já é ruim,
porque se ele tivé lá, só dá prá pescá depois, porque só é bom numas parte
do dia.
O pessoal lá do Jaiteua pesca prá vendê, mas às vezes trabalha pros donos
do motô. O lanço que eles fazem é pra eles, mas o pessoal de fora também
usa prá pescá de caixinha. Não é sempre que eles fazem isso. É quando
vale a pena mesmo. Mas quem sai ganhando é só os donos que pagam
pouco [...]” (L. S., pescador comercial, Jaiteua de Cima, 2008).
A Reserva de Desenvolvimento Piranha21 (no gráfico, RDS Piranha) é o destino de
alguns pescadores comerciais da localidade Cajazeira. A reserva está distante de Cajazeira,
porém sua territorialidade legal e abrangente faz limites com o lago Grande de Manacapuru,
próximo à localidade Jaiteua de Cima. A RDS Piranha é um complexo de ambientes
21
As Unidades de Conservação (UC) integrantes do Sistema Nacional de Unidade de Conservação (SNUC)
dividem-se em dois grupos com características específicas, as Unidades de Proteção Integral e as de Uso
Sustentável. O objetivo das de Uso Sustentável é compatibilizar a preservação da natureza e o uso sustentável
de parcela dos recursos naturais. Neste grupo estão inseridas as seguintes categorias: Área de Proteção
Ambiental (APA), Área de Relevante Interesse Ecológico, Floresta Nacional (FLONA), Reservas Extrativistas
(RESEX), Reserva da Fauna, Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) e a Reserva Particular do
Patrimônio Nacional (RPPN) (Constituição Federal, Lei n° 9.985/2000 - MMA / Ministério do Meio
Ambiente). Por conta de estudos realizados por consultores e técnicos do IBAMA-AM, a Prefeitura Municipal
de Manacapuru implantou em 1997 (LEI n° 009/97) a primeira RDS municipal do país, denominada Reserva
de Desenvolvimento Sustentável Piranha (MESQUITA, 2000). A RDS Piranha foi criada com objetivo de
proteger o ecossistema de várzea, promover o desenvolvimento e melhorar a qualidade de vida das
comunidades locais.
147
aquáticos (lagos e microambientes) que oferece boas condições para pesca comercial
durante o ano. Os pescadores afirmam utilizarem o lago do Piranha (um dos vários
ambientes da RDS) principalmente na enchente e cheia do ciclo das águas, porque a venda
do pescado nesses períodos é mais rentável e a disponibilidade de espécies é variada. O
pescado capturado é encaminhado e vendido diretamente na Balsinha do Pescador em
Manacapuru.
O uso da RDS Piranha pelos pescadores implica um acordo com os moradores de
dentro da Reserva. Isso é uma situação de risco, porque sabem que pescar dentro da RDS é
proibido, e que seus apetrechos de pesca podem ser apreendidos pelos ficais do IBAMA22 e
eles notificados por crime ambiental: “nós sabemos que pescá na RDS é errado, o pessoal do
IBAMA se pegá a gente leva tudo” (Pescador comercial, localidade Cajazeira, 2008).
O território da RDS Piranha legalmente delimitado gera conflitos para os pescadores
da Cajazeira no campo simbólico, pois alegam que a RDS era extensão de sua
territorialidade, uma vez que se reuniam com os moradores para dialogar e agir em defesa do
local, sendo favoráveis às regras de uso para evitar a pesca comercial predatória. Porém o
contexto atual da RDS Piranha faz os pescadores da localidade refletirem sobre a situação
que vivem, pois é proibida a pesca no interior da Reserva pelos “pescadores de fora”: eles
próprios. Nesta condição, foi possível identificar algumas variáveis que perpassam a mente
dos pescadores: 1) alguns pescadores acham viável utilizar a Reserva devido à facilidade de
captura, porém entendem que pagar para se ter acesso não é correto porque a utilizam para a
pesca comercial tendo em vista o sustento de suas famílias; 2) outros pescadores se sentem
constrangidos por não poderem pescar dentro da RDS, porque é proibido, prática que faziam
antes de sua institucionalização e por não terem sido consultados antes de sua criação; 3)
depois que se instituiu a RDS os pescadores citadinos que já utilizavam os ambientes de
pesca das localidades pesquisadas, passaram a utilizá-los com maior frequência, aumentando
o número de pescadores e a pressão sobre os estoques pesqueiros. O pescador comercial da
localidade Cajazeira explica:
“[...] o povo de lá da área não gosta muito desse negócio de reserva, cada
morador de lá ganha um salário pra não mexer em nada, o pessoal disse
que a derrota deles foi assinar, concordar pra ser reserva, o amigo nosso
disse que ganhava numa viagem que dava com as caixinhas pra
Manacapuru. Agora passa um mês pra ganha um salário, prá não pescá.
Mas o pessoal lá, todos eles pescam assim mesmo, podem tirar duas
caixinhas que tem direito, e a gente que pescava lá dá um jeito de pescá
22
Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis.
148
também. Eu acho que a reserva foi a nossa derrota também, antes de ser
reserva era melhor, agora a população aumentô, aumentô o pescadô no
nosso lugá de pesca, tem mais gente agora” (O.C.S., pescador comercial,
Cajazeira, 2007).
Contudo, diante destas circunstâncias históricas, há opiniões divergentes acerca da
institucionalização da RDS Piranha, que são relatadas pelos próprios pescadores de
Cajazeira:
“[...] A reserva que tudo mundo fala e acha ruim, eu acho que ela ajuda pra
mantê os peixes existindo. O pessoal reclama muito porque não pode entrá
a vontade pra pescá, eu também acho ruim, mas se não fosse assim o
pessoal de fora já tinha acabado com tudo como fizeram um tempo aí no
Anamã [paraná]. Mas seria bom se tivesse uma maneira da gente pode
pescá lá sem sê escondido. Isso ajuda muito a gente aqui que precisa pescá
porque a gente vive da pesca mesmo” (A. S., pescador de subsistência,
Cajazeira, 2008).
Ao se pensar o uso dos ambientes de pesca é importante relacioná-los ao uso dos
esforços de pesca aplicados. Neste sentido, os pescadores da localidade Cajazeira utilizam
diversos apetrechos de pesca. Os apetrechos de pesca apresentados no capítulo II são os
equipamentos utilizados nos ambientes descritos no gráfico 9 acima. A relevância destes
apetrechos diz respeito à natureza própria de como são produzidos esses equipamentos de
pesca, à capacidade criativa do pescador e aos recursos naturais de que dispõem para a
confecção (NERY, 1995). Geralmente a pesca é praticada de forma artesanal como
demonstramos no capítulo II – o lanço no igapó da Terra Preta –, com instrumentos simples
e individuais e, de preferência, nas proximidades e imediações das residências. Porém o uso
é evidente nos igarapés, nos paranás, nos furos e nos igapós.
Conforme os pescadores da localidade, os apetrechos de pesca apresentam,
atualmente, grande plasticidade de uso. Ou seja, a dificuldade de capturar o pescado por
fatores associados à competitividade entre os pescadores, ao pouco dinheiro para a compra
dos apetrechos e à escassez de determinadas espécies, tem forçado a adaptação do uso de
determinados apetrechos em ambientes cuja aplicação era menos regular. O uso da
malhadeira no igapó é um exemplo, pois não era comum seu uso neste ambiente, apenas nos
furos, nos paranás e nos lagos onde continuam sendo utilizados.
149
A tramalha23, por outro lado, tem substituído relativamente a malhadeira através da
criatividade dos pescadores que, utilizando a técnica “das emendas dos panos de malha” ,
dão origem a “novas malhadeiras” e pequenas e médias redes de pesca.
Leme & Begossi (2004) detectaram esses arranjos nas pescarias realizadas pelas
comunidades do rio Negro, associando esse fato à baixa rentabilidade do pescador e ao
processo do aumento monovalente desta atividade em relação às demais culturas: agricultura
e extrativismo florestal. A compra desses apetrechos apenas faz sentido para as comunidades
se a relação custo-benefício atende às expectativas positivas das famílias. Caso contrário,
sua aquisição, sendo inviável, conduz o pescador a apostar em novas experiências criativas,
porém necessárias a seu ofício de pescador.
Os apetrechos de pesca mais mencionados pelos pescadores da localidade foram: o
caniço, a tramalha, a malhadeira, a tarrafa e a azagaia. Em seguida, tivemos os apetrechos
menos mencionados, com destaque para: o arco e flecha, a linha e anzol, o arpão e a rede.
O uso de diferentes tecnologias de pesca varia de acordo com os hábitos alimentares
e os padrões de mobilidade das espécies (BEGOSSI, 2004). Os apetrechos de pesca
utilizados pelos pescadores de Cajazeira são aplicados conforme a mudança do ciclo das
águas. Os apetrechos mais seletivos geralmente são utilizados nos igapós24 e nos igarapés
nos períodos da enchente e cheia para captura de espécies de comportamento individual tais
como o tambaqui (Colossoma macropomum), o roelo (tambaqui filhote) (Colossoma
macropomum) e o tucunaré (Cichla monoculus). A azagaia, por exemplo, é um apetrecho
extremamente seletivo utilizado para captura de peixes de hábito noturno como, o tucunaré
(Cichla monoculus), o aruanã (Osteoglossum bicirrhosum) e o acará-açu (Astronotus
ocellatus). O uso desses apetrechos é direcionado para a pesca comercial.
O uso do caniço foi observado no igapó em algumas ocasiões para a pesca de
consumo, isso depois de preparada (distendida) a tramalha no lanço. Porém seu uso foi
frequentemente observado juntamente com a linha de mão para pesca de consumo próximo
às residências dos pescadores.
A tramalha é utilizada tanto para pesca de subsistência quanto para pesca comercial
com mais frequência nos períodos da enchente e cheia nos igarapés e nos igapós. Na seca,
23
Tramalha: pequena rede de pesca produzida a partir da linha de plástico. A malha é o tecido de plástico,
confeccionado, cujo tamanho é variado, mais conhecido como “pano”. Diversos panos emendados ou apenas
um “pano” dá origem à tramalha. Seu custo é relativamente baixo no mercado em relação à malhadeira que é
confeccionada a partir da linha de Nylon, considerada mais cara.
24
A Riqueza biológica desses ambientes de pesca foi descrita no capítulo I e II.
150
ela é utilizada em substituição da malhadeira em ambientes mais rasos. A malhadeira é
utilizada mais para pesca comercial nos furos, nos paranás e nos lagos em todas as fases do
período hidrológico.
A tarrafa é utilizada com mais frequência no período seca, em ambientes onde a
concentração de peixe é maior. O arco e flecha e o arpão são utilizados nos igapós e nos
igarapés, de modo combinado, em ocasiões da pesca comercial. A rede de pesca é utilizada
pelos pescadores comerciais, porém devido ao alto custo para sua aquisição os pescadores
tem optado pelas redes feitas de “emendas de malhas”. O uso é frequente nos paranás, nos
furos e nos lagos (Gráfico 10).
Cajazeiras
%
25,0
20,0
15,0
10,0
5,0
Caçoeira
Arrastadeira
ou Rede
Arpão
Anzol
Linha e
Anzol
Arco e
Flecha
Zagaia
Tarrafa
Malhadeira
Tramalha
Caniço
-
Gráfico 10 – Apetrechos de pesca.
Fonte: Dados de campo (2007/8).
Os moradores da localidade Cajazeira denunciam os problemas ambientais que
verificam em seu cotidiano, como a pesca comercial realizada em alguns pontos às margens
do lago São Lourenço, considerada predatória. A técnica de pesca denominada lanço de
áreas abertas25 praticada às margens desse lago (apresentado no capítulo II) é criticada pelo
impacto que causa ao ambiente, pois atua na captura de grandes quantidades de pescado
selecionando aquelas espécies de mais interesse comercial. Os peixes menores (incluindo de
menor valor comercial) e outras espécies, como os botos e os bichos de casco (tartarugas ou
25
Este lanço de pesca realizado em área abertas como nas margens dos lagos ou paranás, é diferente dos lanços
de áreas fechadas ou mata inundada (igapós ou igarapés). As duas práticas foram descritas no capítulo II.
151
tracajás) são aproveitados dependendo da demanda e tamanho. Caso contrário, as espécies
são descartadas nos próprios lagos, fato que implica a poluição e a escassez dos recursos
pesqueiros. Esta prática de pesca ocorre com frequência no período da enchente
coadunando-se com a migração de cardumes de diversas espécies.
Os “pescadores de fora” ou pescadores citadinos são os agentes sociais que atuam
nesta atividade, atendendo às demandas dos donos dos “motores de pesca” provenientes,
principalmente, do município de Manacapuru e Manaus. O esforço de pesca, sem dúvida, é
superior aos dos pescadores da localidade Cajazeira, que se sentem prejudicados diante da
desigualdade material e econômica.
Para a defesa dos lagos, os pescadores da localidade têm denunciado estas práticas ao
IBAMA e à Prefeitura de Manacapuru conseguindo respostas positivas, pois a fiscalização
destas instituições tem atuado para coibir estas práticas de pesca fazendo a apreensão dos
barcos e equipamentos de pesca dos “pescadores de fora”26. Porém há situações que as
fiscalizações não ocorrem por problemas institucionais de logística e infraestrutura, fato que
deixa as localidades a mercê da atuação desses pescadores.
A criação de gado é uma atividade que tem causado transtornos aos moradores da
localidade. Isso porque as áreas situadas às margens do igarapé da Cajazeira têm sido
desmatadas para servirem de pastagem para os animais. Esta prática implica dois fatores
prejudiciais aos moradores: o desmatamento causa a redução das matas ciliares e, como
consequência, a redução dos fatores biológicos que permitem a permanência das espécies no
igarapé – alimentos, abrigo da luz e condições de reprodução das espécies. O segundo fator
é o deslocamento dos peixes para lugares mais distantes, forçando os pescadores a se
dirigirem para ambientes já explorados por eles e por outros atores sociais, sobretudo nos
ambientes cujas regras de uso são mais eficientes como, no paraná do Anamã e no lago do
Jaiteua no período da seca. Isso causa pressão sobre os estoques pesqueiros desencadeando
conflitos entre os pescadores (Figura 42).
26
Este tipo de pratica deve ser melhor investigada para compreender as relações sociais que se estabelecem
nesse circuito envolvendo camponeses amazônicos, que moram em comunidade vizinhas não pertencentes às
localidades pesquisadas e “novos proprietários de terra” que não moram nas localidades e nem nas
comunidades vizinhas.
152
Figura 42 – Pontos de desmatamento às margens do igarapé da Cajazeira.
Fonte: Dados de campo (2007/8).
A criação de gado tem forçado algumas famílias da localidade a deixarem de praticar
a polivalência das atividades. No campo, observamos a realidade dos moradores, ao
identificarmos o desmatamento de áreas produtivas destinadas à agricultura e ao extrativo.
Isso tem forçado as famílias, como alternativa a curto prazo, a praticar a monovalência da
atividade pesqueira, pois a rentabilidade nesta atividade é mais imediata, exigindo apenas o
conhecimento do pescador e um pequeno esforço de pesca (apetrechos, canoa e caixas de
gelo) para as capturas.
Essa dinâmica da expropriação do ribeirinho da várzea foi problematizada por
Furtado (1993) e Begossi (2004), apontando que a qualidade de vida dos pescadores da
várzea tende a reduzir devido ao “abandono das práticas de agricultura e extrativismo em
substituição à pesca comercial”. Esta dinâmica “sugere a perda gradual da autonomia
simples de produção de alimentos, do conhecimento das práticas do manejo e, como
consequência, a redução da diversidade biológica produzida pelo manejo.
“[...] O gado que esse pessoal de fora cria aqui tem prejudicado nóis
bastante. Cê viu dá ultima vez que você veio aqui. Tudo isso que você tá
vendo não tava assim, foi derrubado esses dias, daqui do nosso terreno até
o terreno do meu compadre aqui. A gente junta nossas terras pra fazê tudo,
prá pegá açaí, prá pegá cupuaçu, prá plantá. Ele usa a minha parte e uso a
dele. E agora, o que a gente vai fazê? Morá em Manacapuru ...? prá fazer o
quê ?, trabalhá de ajudante de pedrero ou pescá pros patrão dos motô. Nos
vamos acioná o IBAMA pra vê o que a gente consegue fazê aqui [...] pesca
mais vai sê o que a gente vai fazê um pouco mais prá ganhá alguma coisa,
né” (O.L.L., pescador de subsistência, Cajazeira, 2008).
153
Os moradores da localidade Cajazeira alegam que a criação de gado é
responsabilidade de dois atores sociais: é praticada por pessoas de dentro da localidade que
passaram a valorizar a criação de gado e, por isso, necessitam de maiores espaços de terra
para pastagem dos animais; e por pessoas “de fora” que convivem na localidade apenas em
períodos favoráveis do ciclo das águas – enchente e cheia. Nos últimos três anos, estes
atores sociais que não moravam na localidade têm negociado o uso de grandes áreas
destinadas à criação de gado.
Pereira (2007) menciona que criadores de gado vêm praticando a distribuição do
gado em áreas de várzea através da prática da meia. Nesta parceria, os investimentos e os
riscos da produção do gado são divididos proporcionalmente entre as partes. O autor explica:
“Durante o verão, o fazendeiro retira o rebanho das pastagens da terra
firme dividindo-o em pequenos lotes para serem entregue a vários
pequenos produtores da várzea. O meeiro é subsidiado pelo criador
[fazendeiro] nos gastos com o trabalho de manutenção da pastagem e
pastoreio do gado. Ao final da engorda, o gado é recolhido e o pagamento
ao meeiro pelo trabalho de cuidar dos animais é feito em espécie” (Pereira,
2007, p. 19).
Para os moradores, a área da localidade Cajazeira é considerada de terra firme,
“ideal” para pastagem dos animais. Porém o morador da localidade faz a seguinte indagação
sobre o assunto:
“[...] Esse pessoal de fora que tem muito gado aqui, quando começa a
diminui a água eles mandam os gado pras bandas do Jaiteua, nos beiradão
do paraná do Jaiteua, esses lugares é melhó prá cuidá quando tá seco”
(O.L.L., pescador de subsistência, Cajazeira, 2008).
Apresentado os principais territórios de pesca utilizados pelos pescadores da
localidade Cajazeira, os motivos de determinadas regras de uso aplicadas a esses ambientes
e os problemas ambientais que vivem, discorremos a seguir sobre os ambientes de pesca da
localidade Jaiteua de Cima.
154
3.2.2 Jaiteua de Cima
Os pescadores da localidade Jaiteua de Cima se apropriam de ambientes internos e
ambientes situados nas imediações de suas moradias, com exceção da RDS Piranha
considerado um ambiente distante no ponto de vista dos pescadores. O paraná do Anamã
[42], o lago Grande, o lago do Jaiteua [03], o paraná do Cedrinho [11] e o lago do Mutum
são ambientes frequentados pelos pescadores durante todo o ciclo hidrológico, seja para
pesca de subsistência ou comercialização.
Os ambientes considerados internos como, o igarapé do Peraço [10], o canal do
Cumaru [44], o igarapé Grande [16], o paraná do Tauari [17] e o canal do Tiago [1] são
frequentados durante o ano e destinados exclusivamente para pesca de consumo dos
moradores da localidade. Porém a frequência das práticas de pesca nestes ambientes é
reduzida no período da seca devido a diminuição drástica do nível da água associada à
pouquíssima quantidade de pescado (Gráfico 11).
RSD Piranha
Igarapé do Peraço [10]
Canal do Cumaru
[44]
Lago do Mutum
Lago Grande
Igarapé Grande
[16]
Canal do Tiago
[01]
Paraná do Cedrinho [11]
Paraná do Tauari
[17]
Paraná do Anamã
[42]
Lago do Jaiteua
[03]
0,0
20,0
40,0
Enchente
Cheia
60,0
80,0
Vazante
100,0
120,0
Seca
Gráfico 11 – Territórios de pesca.
Fonte: Dados de campo (2007/8).
As regras de uso direcionadas para os ambientes internos da localidade é para coibir
a prática comercial, sem exceção para qualquer período do ano, ou seja, são ambientes
exclusivos para a subsistência das famílias. O líder comunitário Sr. Raimundo, mais
conhecido como “Seu Velhote” esclarece:
155
“[...] o acordo que a gente batalhô aqui no Jaiteua é prá proibi a pesca pra
vendê mesmo aqui dentro de nossas comunidades. Nós temos que
preservar nossos igarapés aqui dentro. Se a gente não fizé isso nossa
família vai sofrer porque não tem muito peixe como o pessoal pensa. Hoje
tá muito concorrido prá pescá, todo mundo qué vendê, por isso de quatro
anos pra cá a gente tem feito isso” (R.M.C., pescador de subsistência e
líder comunitário, Jaiteua de Cima, 2008).
.
O paraná do Anamã [42] e o lago do Jaiteua [03] são os pesqueiro que se destacam
entre os demais ambientes porque são dos poucos lugares do lago Grande de Manacapuru
que oferecem condições ideais para pesca durante o período da seca (Figura 44). Os demais
ambientes, inclusive os lagos têm seus espelhos de água muito reduzidos, fato natural que
provoca a migração dos peixes para ambientes como o paraná do Anamã. Neste pesqueiro,
há ocorrência de “poços” ou fossos profundos que são conhecidos popularmente pelos
nomes de poço do Barro Vermelho [18], poço do Chatu [20] e poço do Pescoço do Veado
[21].
De acordo com os pescadores, estes ambientes localizados na extensão do paraná do
Anamã atingem a profundidade aproximada de quase cinqüenta metros durante o período da
cheia, permanecendo profundos na seca. Durante a seca, os poços são destinos de grande
parte dos peixes que instintivamente se deslocam dos igarapés e de outros ambientes
aquáticos em busca de alimentação, reprodução e abrigo.
O Sr. Lázaro, pescador comercial explica:
“[...] O paraná do Anamã é um lugar bom de pescá, tem muito peixe pra
nós todo tempo. Tem muito poço também ... é lá que os peixes ficam
quanto tá seco, quando eles vem de outros lugares eles ficam porque tem
comida e não é baixo de água como fica nos lagotes por aí [...] o Anamã é
assim, tem muito poço por isso que o pessoal gosta de pescá lá” (L. S.,
pescador comercial, Jaiteua de Cima, 2007).
Para efeitos comparativos, o estudo realizado por Fabré (2007) na unidade Sistemas
Abertos Cururu em Manacapuru (AM) indica que o “Poço” do lago Cururu é uma espécie de
celeiro ou micro-hábitat com alta disponibilidade de peixes para os grupos sociais locais. A
autora relata que o poço é a área mais profunda do lago e na época da seca serve de refúgio
para os peixes sedentários.
A característica ecossistêmica que qualifica o poço Cururu como celeiro de alimentos
para os grupos sociais, por outro lado, é reavaliado por Fabré (2007) como local de
“conflitos de pescadores”. A autora explica:
156
Observa-se a convergência de todos os grupos sociais do sistema
[Cururu] ao celeiro de uso comum denominado poço, fato que o
configura como centro de conflito socioambiental. Esses conflitos se
caracterizam como embates entre os grupos sociais derivados dos
distintos modos de inter-relacionamentos com seu meio social e
natural, onde os grupos sociais têm sua forma de adaptação,
ideologias e modo de vida que entram em choque com outros grupos
sociais, dando a dimensão social e cultural ao conflito.
Os conflitos sociais identificados pela autora no uso do poço Cururu foram similares
aos conflitos ocorridos no paraná do Anamã [42], porém envolvendo pescadores de fora da
localidade.
A pesca realizada no paraná do Anamã [42] e no lago do Jaiteua [03] está sujeita
aos acordos informais de pesca articulados pelos pescadores de subsistência e pescadores
comerciais locais de Jaiteua de Cima. Os acordos de pesca foram firmados para o controle
da pesca comercial realizada neste ambientes principalmente no período da seca. O alvo
desses acordos tem sido direcionado com mais rigidez para os “pescadores de fora”, pois os
pescadores de subsistência relataram que “os pescadores de fora” entraram no paraná do
Anamã e no lago do Jaiteua, e com as equipes de pesca retiraram grandes quantidades de
pescado.
Os pescadores das localidades Cajazeira e Jaiteua de Baixo como descrito
anteriormente se ajustaram a esses acordos de pesca porque entendem que esses ambientes
devem ser preservados da pesca predatória. Eles reconhecem as iniciativas e legitimam os
acordos de pesca porque dependem das pescarias realizadas nesses ambientes
principalmente no período da seca, tendo em vista que os pesqueiros próximos às suas
residências secam quase totalmente, e, para aqueles que vivem primordialmente da renda da
pesca27 o paraná do Anamã, torna-se um dos poucos ambientes viáveis a pesca neste
período. Os laços de solidariedade (amizade, vizinhança e parentesco), o sentimento de
segurança entre os pescadores das localidades e o respeito às regras de uso reforçam o
acordo de pesca, contribuindo para minimizar as tensões inerentes ao controle social
direcionado para o uso desses recursos pesqueiros.
27
Embora o acordo informal de pesca proibe a pesca comercial no Paraná do Anamã no período das águas
baixas (vazante/seca), esta regra é direcionada mais para os pescadores de fora. Porém ocorre a negociação
com os pescadores das localidades pesquisadas para a retirada controlada do pescado com destino comercial:
uma caixa de isopor de 120 a 170 litros em média (duas vezes por semana) é a quantidade convencionada entre
os pescadores da localidade Jaiteua de Cima. Esta regra é tanto para os pescadores comerciais como para os
pescadores de subsistência.
157
Os pescadores de Jaiteua de Cima relataram que as técnicas de captura do pescado
utilizadas no paraná do Anamã são criativas e variadas. Os pescadores citadinos geralmente
costumam operar fazendo a prática da pesca de caixinha, que é uma atividade comum entre
os pescadores das localidades e pescadores citadinos de Manacapuru. Esta atividade consiste
no seguinte processo: os pescadores se organizam em equipes de duas pessoas ou apenas
uma pessoa utilizando canoas motorizadas (as rabetas) que servirão para conduzi-los até os
pontos de pesca. Nas canoas, eles embarcam alguns apetrechos de pesca, tais como as
malhadeira e as redes, carregam lanternas, comidas para suprirem o desgaste físico, água e
caixas de isopor de 200 litros abastecidas de gelo para o armazenamento do pescado
capturado. Por essa composição de equipamentos, essa prática é chamada de pesca de
caixinha. Depois de cheias, as caixas de isopor são levadas aos “motores de pesca” (geleiros)
onde são armazenadas, ou são levadas diretamente para o Terminal Pesqueiro de
Manacapuru pelos pescadores citadinos quando negociadas anteriormente com os
compradores do peixe.
O cerco aos peixes é outra técnica praticada no paraná do Anamã. Consiste na
organização de duas embarcações e quatro pessoas embarcadas, ou seja, dois pescadores em
cada canoa de pesca. Os pescadores são munidos de malhadeiras ou redes de pesca, que são
distendidas de modo a se fecharem em círculo, facilitando a captura de grandes quantidades
de pescado. A batição dos remos na água é feita pelos pescadores para conduzir o pescado
para dentro das redes. Esse tipo de prática foi observada por Furtado (1993) nas pescarias
realizadas pelas comunidades ribeirinhas da cidade de Óbidos (PA), onde causou vários
conflitos de pesca envolvendo pescadores polivalente e pescadores citadinos.
Os motivos que levaram a mobilização social para a criação dos acordos informais de
pesca entre os pescadores das localidades, principalmente em Jaiteua de Cima, são
contextualizados em duas situações pretéritas a partir dessas técnicas de pesca empregadas
no lago do Jaiteua [03], porém com destaque para o paraná do Anamã, principal local dos
conflitos. A primeira faz referência ao ano de 1999 e a segunda ao ano de 2005.
Em 1999, ocorreu a grande pesca do tucunaré (Cichla ocellaris) realizada por um
“motor de pesca” (barco geleiro) vindo da cidade de Manacapuru. Na ocasião, uma grande
quantidade de pescado foi capturada com base na seleção de espécie de interesse comercial.
O montante do tucunaré capturado foi separado das espécies menores e armazenado nos
motores de pesca. As espécies menores e outras espécies variadas sem valor comercial
foram descartadas, jogadas no paraná do Anamã. “A matança e a podridão tava horrível, e o
158
pessoal da nossa região que pesca prá vendê tava pescando junto apoiando isso, além de a
gente ficá sem peixe, tivemos que passar todo tempo pelo cheiro ruim de peixe podre.” (Sr.
E. F. O., pescador de subsistência, 2007).
Em 2005, ocorreu a pesca liderada por dois “motores de pesca” vindos de
Manacapuru, que fez uma grande captura direcionada para o curimatã (Phochilodus
argenteus). Da captura, ocorreu o enorme estrago de peixe devido à seleção de espécies
maiores e menores. Os peixes menores e sem valor de mercado foram descartados na área do
Paraná do Anamã. O Sr. E. F. O., pescador de subsistência relatou:
[...] os barcos vieram de Manacapuru, como a outra vez, fizeram a mesma
coisa, a mesma mortandade. Como era dois motor grande, eles deram
quatro lanceada com os batelão (canoa) e levaram tudo, só que dessa vez
levaram curimatã, só deixaram os pequeno mesmo, jogando na água pra
apodrecer. Agente se reuniu aqui todos e fomos até o Ibama, falamo o que
aconteceu eles falaram que iam vim aqui, mas não deu em nada. Eles
dizem que falta gente prá trabalhá, a gente sabe disso, mas se não for prá
eles, prá quem a gente vai falá? (E.F.O., pescador comercial, Jaiteua de
Cima, 2008).
O contexto histórico relatado pelo Sr. E. F. O. demonstra que a pesca no paraná do
Anamã anterior à época da criação dos acordos de pesca, operava sob racionalidades que
possivelmente poderiam destruir os estoques pesqueiros. As iniciativas locais que se
desencadearam em acordos informais de pesca têm garantido o uso controlado do paraná do
Anamã, incluindo também o lago do Jaiteua. O lago Grande, por sua vez, tem uma dinâmica
diferenciada porque os pescadores de Jaiteua de Cima o consideram de livre acesso, pois
partilham seu uso com pescadores das localidades vizinhas e com os pescadores citadinos.
Porém, no período da seca, há restrições de uso para pesca comercial associada à
convergência de interesses dos pescadores das localidades que foram apoiados pelas
instituições governamentais atuantes em Manacapuru através da sinalização de placas
proibindo a pesca comercial em determinados pontos do lago Grande.
Retomando o contexto dos acordos de pesca, os pescadores comerciais de Jaiteua de
Cima articulam situações que causam constragimento aos moradores da localidade. Isso
porque insistem em pescar durante o período da seca no paraná do Anamã, confrontando as
determinações dos pescadores de subsistência. Os pescadores comerciais locais quebram as
regras dos acordos informais em determinadas situações, sempre associadas à condição de
atender às demandas das famílias.
159
Para os pescadores de subsistência, a condição de necessidade é uma situação a que
todos estão sujeitos, o que não justifica a pesca comercial no período da seca no paraná do
Anamã fora dos termos da negociação, que é de duas “caixinhas” por semana (ver nota de
rodapé 27). Porém, o que causa mais descrédito aos moradores, é a cumplicidade com os
pescadores de fora. Essa prática tem sido contestada veemente na localidade a ponto de
forçar alguns pescadores comerciais a rever suas condutas em relação aos pescadores de
fora. O pescador comercial explica:
“[...] Às vezes os nosso colegas aqui, como os irmãos da igreja, eles acham
que a gente pesca prá querer só dinheiro, mas não é assim: eu tenho
sabedoria, prá pesca, sei pescá, então quando preciso eu vou, e às vezes eu
vou pro paraná do Anamã, porque lá tem muito peixe, eu armo as
malhadeiras, faço a caputura rápido e pronto. O sr. vê, eu tenho quatro
crianças curumim ainda, e preciso de dinheiro prá comprá remédio,
comida. O irmão Everson aqui chama minha atenção junto com o pessoal,
eu paro prá não causar problema, porque a gente precisa um do outro. Mas
eu concordo que o paraná do Anamã tem que ser vigiado, porque os
pescador de fora aí acaba com tudo [...] eu trabalhava com o pessoal de
fora, mas o pessoal da comunidade faz pressão prá gente pará com isso.
Então, hoje sigo o que a gente da comunidade decide” (M.O., pescador de
comercial, localidade Jaiteua de Cima, 2007).
Depois de apresentado os principais conflitos de pesca vivenciados pelos pescadores
da localidade Jaiteua de Cima, agora descreveremos os apetrechos de pesca (Gráfico 12)
utilizados nos ambientes descrito no gráfico 11.
Jaiteua de Cim a
%
30,0
25,0
20,0
15,0
10,0
Gráfico 12 – Apetrechos de pesca.
Fonte: Dados de campo (2007/8).
Arrastadeira
ou Rede
Tarrafa
Currico
Arpão
Zagaia
Arco e
Flecha
Linha e
Anzol
Caniço
Malhadeira
0,0
Tramalha
5,0
160
Os pescadores mencionaram o uso mais frequente de quatro apetrechos de pesca: em
primeiro lugar, temos a malhadeira e, em seguida, respectivamente o uso do caniço, da
tramalha e da linha e anzol. Os apetrechos menos utilizados vieram na seqüência,
respectivamente, iniciando com o arco e flecha, a azagaia, o arpão, o currico, a tarrafa e, por
último, a rede.
A malhadeira, como descrevemos anteriormente (em Cajazeira e Jaiteua de Baixo), é
utilizada nos lagos [03], nos paranás [42], nos canais [44] ou nos furos em todas as fases do
período hidrológico. Os pescadores da localidade utilizam a tramalha de maneira associada
aos demais apetrechos, tais como a azagaia, o arco e flecha e o arpão quando a pescaria é
realizada no lanço de ambiente fechado, isto é, na floresta inundada (nos igarapés, nos
igapós e nos furos). A tramalha é utilizada em ambientes rasos em substituição à malhadeira
principalmente no período da seca. O motivo do uso, segundo os pescadores, é devido a sua
eficiência e baixo custo de manutenção quando comparado à malhadeira. O pescador
comercial esclarece:
“[...] O pano da tramalha que a gente chama, que é de linha de plástico, é
mais barato que a malhadeira, e a piranha se estragá a gente não gasta tanto
[...] com a tramalha na seca a gente pega mesmo, se não pega peixe com
ela, com outro apetrecho a gente não vai pegá mesmo” (S.M., pescador
comercial, Jaiteua de Cima, 2007).
O uso do caniço e a linha e anzol é mais comum para pesca de autoconsumo,
principalmente pelas crianças e jovens que capturam os peixes geralmente para o momento
do almoço. Esta é uma atividade que as mães geralmente direcionam para seus filhos
menores quando, estão trabalhando nos roçados, ocupadas.
Os moradores de Jaiteua de Cima denunciam os problemas ambientais que vivem em
seu cotidiano. Na localidade, os problemas relacionados à criação de animais de grande
porte, sobretudo em relação à criação de gado bubalino [45], demonstram que as práticas de
desmatamento para pastagem dos búfalos e a circulação desses animais nos ambientes
aquáticos têm provocado mudanças de comportamento, a migração e a redução de algumas
espécies de peixes, sendo estas muito apreciadas para o consumo e para a comercialização
pelos pescadores de subsistência e comerciais. Dentre tais espécies, destacam-se o tambaqui
(Colossoma macropomum), o pirarucu (Arapaima gigas) e o roelo (filhote do tambaqui)
(Colossoma bidens) que existiam em grande quantidade, porém, hoje, são raros nos
ambientes de pesca internos da localidade.
161
A criação de búfalos tem causado constrangimento aos moradores, pois os animais
pisoteiam o chão, provocando a compactação do solo, nadam principalmente nos ambientes
internos da localidade (igarapés) afugentando os peixes e incomodando os pescadores. Os
animais circulam nos roçados destruindo os cultivos agrícolas e atacam outros animais de
grande e pequeno porte, como o gado bovino e os porcos causando em alguns casos a morte
dos animais.
Algumas ações mobilizadas pelos moradores como abaixo-assinados para a retirada
do gado bubalino foram encaminhadas junto à prefeitura de Manacapuru e ao IBAMA com
o objetivo de avaliar a situação e convencer o fazendeiro responsável pela criação de búfalos
a retirar os animais da região, porém, até o momento, não houve respostas positivas para o
problema. O líder comunitário explica:
Nós andamos por todas comunidades aqui do Jaiteua para consegui
assinaturas prá pedir prá sair a fazenda dos búfalo daqui. A gente levô o
papel com as assinaturas prá Prefeitura e pro IBMA de Manacapuru, mas
estamos até agora esperando a resposta deles, não vindo nada é um
problemas prá nós porque a gente vai continuá a viver essa situação de ter
nossas plantações estragadas por causa dos animais, a gente não pode fazê
nada contra os animais porque a gente não quer confusão e é errado matá
os animais (R.M.C., pescador de subsistência e líder comunitário, Jaiteua
de Cima, 2008).
.
Nas palavras dos moradores, a criação de gado bubalino não traz benefícios e é
incompatível com os ambientes de várzea. Os conflitos entre pescadores e fazendeiros,
embora não sejam manifestos na área de estudo, configuram-se como um problema social
que necessita de um olhar mais atento por parte dos organismos de defesa do meio ambiente.
Alguns pescadores da localidade mencionaram o uso dos pesqueiros da RDS
Piranha. Porém a relação estabelecida entre os pescadores da localidade e os moradores da
RDS Piranha perpassa pela esfera religiosa. Na RDS Piranha a única associação comunitária
e religiosa é da Igreja Evangélica Assembleia de Deus (FABRÉ, 2007). Em Jaiteua de Cima,
os moradores das comunidades evangélicas, principalmente da comunidade Assembléia de
Deus são visitados e vice-versa por membros desta instituição religiosa. Esta relação que
perpassa pelos interesses comunitários e pelas relações de parentesco entre os moradores da
localidade e da RDS, facilita a negociação de acesso à reserva. Para outros pescadores da
localidade que não tem os mesmos vínculos, o acesso a reserva se assemelha à negociações
estabelecida
pelos
constrangimentos.
pescadores
da
localidade
Cajazeira,
causando
os
mesmos
162
3.2.3 Jaiteua de Baixo
A maioria dos pescadores da localidade Jaiteua de Baixo vive da renda da pesca. Eles
mencionaram os nomes de diversos pesqueiros, porém os ambientes mais utilizados são os
descrito no gráfico 13 destinados com frequência para a pesca comercial.
Os pescadores se apropriam de pesqueiros próximos, nos arredores e distantes de
suas moradias. O lago do Jaiteua [03], a Mãe do Rio (paraná do Jaiteua) [48], o paraná do
Anamã [42], o canal Serra Lima [09] e o lago Grande são apropriados em todas as fases do
período hidrológico. Esses pontos de pesca são considerados distantes, com exceção da Mãe
do Rio (paraná do Jaiteua) e do canal Serra Lima, pesqueiros estes situados nas imediações
da localidade.
O igarapé do Tigre [37] e o igapó Terra Preta são pesqueiros utilizados em quase
todo o período hidrológico, reduzindo o uso drasticamente no período da seca, porque os
ambientes secam totalmente. Nesses pontos de pesca, observamos a prática do lanço desde o
preparo (a capinagem e limpeza) até a realização das pescarias no período da enchente como
descrito no capítulo II.
O furo do Bode [53], o furo do Cumaru II [54], o canal Serra Lima [09] e a ilha da
Borboleta (poço) [08] são apropriados com frequência, porém apresentando relativo limite
de uso no período da seca. De acordo com os pescadores, esses ambientes são rotas
migratórias de diversos cardumes, o que desperta o interesse dos pescadores comerciais da
localidade (Gráfico 13).
163
RSD Piranha
Igarapé do Tigre [37]
Furo do Cumaru II [54]
Mãe do Rio
[48]
Lago Grande
Furo do Bode [53]
Igapó Terra Preta
Canal Serra Lima
[09]
Ilha da Borboleta (poço) [08]
Paraná do Anamã
[42]
Lago do Jaiteua
[03]
0,0
20,0
40,0
Enchente
Cheia
60,0
Vazante
80,0
100,0
120,0
Seca
Gráfico 13 – Territórios de pesca: Jaiteua de Baixo.
Fonte: Dados de campo (2007/8).
Os demais pontos de pesca que não foram mencionados no gráfico apresentam
diversas limitações de uso principalmente relacionados aos fatores ecológicos e topográficos
apresentados no capítulo I. Ou seja, a formação de inúmeras ilhas na área de pesca da
localidade, dificulta a pesca no período da enchente e cheia porque os peixes se “espalham
ou ficam nas moitas” (S. L., pescador comercial, 2008). Esse é um fator natural que reforça
o interesse dos pescadores comerciais em buscar outros pesqueiros, tais como o paraná do
Jaiteua , o canal Serra Serra Lima e outros ambientes nesses períodos.
A Reserva de Desenvolvimento Piranha, como apresentado nas outras localidades, é
o destino de alguns pescadores comerciais de Jaiteua de Baixo. Os pescadores afirmam
utilizarem o lago do Piranha principalmente na enchente e cheia do ciclo das águas, porque a
venda do pescado nesses períodos é mais rentável. O pescado capturado é encaminhado e
vendido diretamente na Balsinha do Pescador em Manacapuru.
Os pescadores de subsistência e os pescadores comerciais de Jaiteua de Baixo não
estabeleceram acordos informais de pesca próprios para proibir ou restringir com veemência
o uso dos pesqueiros da localidade. Porém, para não afirmarmos que não há nenhum tipo de
restrição, os pescadores estabelecem a regra de uso para os pontos de pesca onde foram
feitos seus lanços. Ou seja, os lanços feitos em qualquer ponto de pesca são prioridade de
uso daqueles que tiveram o trabalho de organizá-los durante a limpeza e o preparo do
164
terreno. Esse fato é o que ocorre com o furo do Acari [33] e o igarapé do Acarí [32]
compartilhados com os pescadores da localidade Cajazeira.
Pelo fato de não haver acordos informais de pesca nos pesqueiros da localidade
Jaiteua de Baixo, isso não significa que os pescadores não sejam atentos aos “pescadores de
fora” (citadinos) por conta da pesca predatória. Os pescadores permitem o uso dos lanços e
dos outros pesqueiros (sem lanços) pelos “pescadores de fora”, porém com o argumento
focado para não realizarem a pesca de arrasto e nem excederem na exploração dos lanços
através do aumento do esforço de pesca.
Nessa condição, os pescadores apenas acompanham os acordos informais de pesca
definidos pelos pescadores da localidade Jaiteua de Cima com relação aos pontos de pesca
internos e os ambientes que são frequentados em todo período hidrológico como, o paraná
do Anamã e o lago do Jaiteua. Em Cajazeira, os pescadores das localidades respeitam o
acordo de pesca que proíbe a pesca comercial nos ambientes internos da localidade.
Os pescadores de Jaiteua de Baixo utilizam tecnologias de pesca simples como, a
malhadeira, a redinha, a tramalha, o currico, o arco e flecha, a tarrafa, o caniço, o arpão, a
linha de mão e a zagaia, cujas descrições detalhadas foram apresentadas no capítulo II e são
encontradas na literatura de Smith (1979) e Furtado (1993) (Gráfico 14).
Jaiteua de Baixo
%
30,0
25,0
20,0
15,0
10,0
Gráfico 14 – Apetrechos de pesca.
Fonte: Dados de campo (2007/8).
Zagaia
Tarrafa
Linha e Anzol
Currico
Caniço
Arrastão ou
Redinha
Malhadeira
0,0
Tramalha
5,0
165
A malhadeira é o apetrecho de pesca mais citado pelos pescadores, utilizado em
todos os períodos do ciclo hidrológico tanto para pesca comercial quanto para pesca de
subsistência. Este apetrecho é utilizado nos lagos, nos paranás e nos furos. Por várias vezes,
pudemos presenciar os pescadores da localidade mencionarem que a malhadeira é o
apetrecho que “sustenta” a família. Segundo eles, a malhadeira garante os peixes necessários
para o consumo no período que ocorre a expansão dos ambientes aquáticos.
A redinha é utilizada mais com finalidade comercial, sendo empregada nos mesmos
ambientes. O caniço é muito utilizado para pesca de subsistência, principalmente na
enchente e cheia nos igapós e nos igarapés. A tramalha é utilizada para pesca de subsistência
e comercial nos igapós e nos igarapés.
Na localidade Jaiteua de Baixo não há problemas ambientais similares aos problemas
das localidades Cajazeira e Jaiteua de Cima correspondentes a criação de gado bovino ou
bubalino. Deste modo, apresentamos os principais territórios de pesca das localidades, as
regras de uso neles empregadas e os principais problemas ambientais vivenciados pelos
pescadores.
166
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo da nossa investigação foi evidenciar as práticas de pesca focalizando o
lago Grande de Manacapuru como amplo território de pesca dos pescadores das localidades
Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima. A pesca, como vimos, está associada a
dinâmica ecológica da várzea, exigindo como imperativo o conhecimento de condições de
adaptabilidade ao ciclo das águas que reflete diretamente nesta atividade.
Num primeiro momento do trabalho, mostramos a dimensão espacial do lago Grande
de Manacapuru, dando ênfase a composição ecológica do lago através das suas
características físicas (geomorfolóficos e liminológicos) (PEREIRA, 2007; SOARES, et al.,
2008). Essa perspectiva se coadunou com a experiência de vida dos pescadores das
localidades evidenciando que as instabilidades de seus ambientes aquáticos e terrestres
geram situações de escassez, sobretudo dos recursos aquáticos, impondo limitações de uso
dos recursos e estresse ao corpo humano. O período da seca ou da cheia em situações
extremas exige adaptação dos pescadores, pois, na seca, por exemplo, a água potável se
torna escassa e de menos qualidade e os pontos de pesca ficam mais distantes. A
representação social que os pescadores fazem de sua realidade expressam essa dinâmica.
A adaptabilidade pressupõe conhecimento sobre a natureza e seus recursos. A
característica liminológica do lago Grande (lago de água mista) é fundamental para as
atividades produtivas, porque estão associadas com a flutuação do nível da água – expresso
no tempo da enchente, cheia, vazante e seca. No período da enchente, apenas para fazer
alusão à afirmação, ocorre a frutificação dos vegetais nos igapós que é fonte de alimentação
para determinados peixes, o que é um conhecimento importante para os pescadores durante
suas capturas, pois há peixes que se alimentam essencialmente de frutas – como o tambaqui
(Colossoma macropomum), um peixe principalmente frugívoro – e que mudam de
alimentação em outro período hidrológico (MORÁN, 1990; SOARES, et al., 2008). Isso
revela que a base produtiva dos pescadores é um ecossistema natural, de enorme riqueza e
diversidade de espécies. No período da seca como vimos, os recursos pesqueiros se tornam
escassos em determinados pontos do lago Grande de Manacapuru, exigindo do pescador,
dependendo do contexto social, que convencione regras para o uso dos recursos. Nas
localidades pesquisadas os acordos informais de pesca foram adotados pelos pescadores
como medidas preventivas que visam a manutenção dos recursos pesqueiros e para que
sirvao de suporte a esta manutenção a médio e longo prazo.
167
No segundo momento mostramos que o lago Grande de Manacapuru é utilizado por
diversos agentes sociais, e nas localidades pesquisadas identificamos os pescadores locais de
subsistência, pescadores comerciais e pescadores citadinos que operam sob racionalidades
conflituosas e, em determinados momentos, complementares. A pesca de lanço que ocorre
em florestas inundada, reflete o conhecimento do pescador sobre as melhores condições de
manejo do pescado seja para a subsistência ou comercialização. Porém, os lanços de
margens de lagos e paranás que são ambientes abertos, pelo custo-benefício desta atividade,
apenas faz sentido se for para a comercialização, o que coloca em risco a sustentabilidade
dos recursos pesqueiros pela pesca predatória realizada pelos pescadores de fora.
A partir dos contextos apresentados por localidade, verificamos que os territórios de
pesca e os espaços de uso comum (terras e florestas de trabalho) utilizados pelos pescadores
da localidade Jaiteua de Baixo, porém mais evidentes em Cajazeira e Jaiteua de Cima
(principalmente) são confrontados por ações territoriais (criadores de gado bovino e gado
bubalino e a pesca realizada pelos pescadores citadinos) que tendem aos desajustes ou
desequilíbrio dos acordos informais de pesca e das regras de uso comum dos recursos
naturais convencionados por esses pescadores. Esses confrontos de ações territoriais indicam
a sobreposição de territórios. No caso do uso dos territórios de pesca das localidades pelos
próprios pescadores, a sobreposição de uso territorial é negociada, havendo conflitos apenas
no campo simbólico. Porém, quando se trata dos problemas ambientais relacionados às
criações de gado bovino, gado bubalino e a pesca comercial realizada pelos pescadores de
fora, a sobreposição territorial se torna prejudicial colocando em risco a manutenção dos
recursos naturais de um modo geral.
O conflito simbólico interno que ocorre entre os pescadores de subsistência e
pescadores comerciais das localidades repercute também para a soma aos possíveis
desarranjos no tecido social das localidades, isso porque as unidades domésticas em sua
maioria combinam relações de uso dos recursos naturais (embora não seja algo partilhado de
modo eqüitativo), e no caso da pesca, os ambientes internos e alguns mais distantes como o
paraná do Anamã são vitais para as famílias das localidades em todo as fases do ciclo
hidrológico, principalmente na seca.
A noção da vida em comunidade e os benefícios sociais que dela advém (capítulo II)
são percebidos pelos pescadores. Esta condição tende a amenizar a situação de conflito
interno porque os pescadores comerciais locais podem perder valores mais simbólicos do
que necessariamente monetários ao manter relações de cumplicidade com os pescadores
citadinos (pescadores de fora). Os benefícios materiais decorrente da prestação de serviços
168
são perdas importantes para quem deixa de viver em comunidade. Nesse sentido, as
lideranças comunitárias, e com mais ênfase as evangélicas, fiscalizam de perto as atitudes
dos pescadores comerciais. Um fator importante é que entre as comunidades há relações de
parentesco que ocorrem por consangüinidade (primos de 1° até 4°) e casamentos, o que
fortalece os acordos informais de pesca, principalmente em Jaiteua de Cima e Cajazeira.
Lima (2006, p. 149-148), ao estudar a economia doméstica ribeirinha da RDS Mamirauá28,
chama este tipo de relação de “comunidade de parentes” e esclarece:
“as parentelas [entre as comunidades da RDS Mamirauá] são ligadas por
afinidade e consangüinidade [...]. Nesse contexto se observa um resultado
do processo de reprodução dos grupos domésticos que caracteriza a
sociedade rural: a constituição de “comunidades de parentes” que detêm o
direito de usufruto comum do território onde realizam suas atividades
produtivas. A delimitação de uso dos territórios dessas “comunidades” é
mais precisa em relação à extensão do conjunto de áreas individuais de
moradia e plantio, enquanto que as áreas de pesca, de acesso coletivo do
grupo, são definidas de acordo com as localidades, [e localidades vizinhas]
e por isso sujeitas aos conflitos no campo simbólico e material, [mesmo
beneficiando a todos, os conflitos ocorrem porque não atende todos os
níveis de satisfação]”.
O uso da RDS Piranha pelos pescadores das localidades, como vimos, pelo discurso
e pelo dado gráfico é ilegal do ponto de vista normativo das leis ambientais, porém as
relações sociais transcendem a norma jurídica. A invisibilidade da relação dos pescadores
das localidades com os comunitários da RDS Piranha ao nível da norma jurídica
provavelmente continuará, porém o principio da dádiva (reciprocidade) e certos níveis de
intolerância dos comunitários que não aceitam a presença de intruso na RDS serão
ajustados pela própria relação, uma vez que o poder público não tem condições materiais
suficientes para vigiar a abrangência da RDS, tão pouco de controlar a relação desses
agentes sociais.
As informações apresentadas são importantes para identificar e compreender os
conflitos e as regras sociais que ocorrem no uso dos territórios de pesca das localidades
Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima. Sugerir a proposta de gestão participativa
dos pontos de pesca das localidades onde existem estas situações de sobreposição do
território não é apenas a única saída, pois é necessário rever situações como a delimitação
territorial da RDS Piranha que possivelmente esteja forçando pescadores de fora das
localidades a se dirigirem para os territórios de pesca das localidades (até mesmo como
28
Reserva de Desenvolvimento Sustentável localizada em uma extensa área na região do Médio Solimões,
Amazonas.
169
únicas alternativas) e, por outro lado, a territorialidade da RDS Piranha sendo negociada
com os pescadores de fora, que inclui os pescadores das próprias localidades.
Nesse sentido podemos afirmar que os conhecimentos e as práticas dos pescadores
das localidades pesquisadas possibilitam o manejo racional dos recursos coadunando-se
com o diálogo científico.
170
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ANEXO
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15
16