Poderes equilibrados em uma nova agência

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Poderes equilibrados em uma nova agência
Poderes equilibrados em uma nova agência
Paulo Corrêa
Valor Econômico - 06/12/2000
Não procede a crítica de que o anteprojeto de lei sobre a criação da Agência Nacional de Defesa do Consumidor e da Concorrência (ANC) concede poderes excessivos ao diretor-geral da
agência. Primeiro, porque qualquer decisão terminativa do diretor é passível de revisão.
Mesmo as operações aprovadas por rito sumário poderão ser remetidas ao Tribunal da Concorrência mediante questionamento do ouvidor. Segundo, e mais importante, porque será
atribuição do Tribunal arbitrar todos os "litígios" existentes entre o diretor-geral e as empresas requerentes ou representadas. Como os "litígios" ocorrerão nos casos relevantes, caberá
ao Tribunal a decisão de mérito nos casos que constituirão, de fato, o corpo substantivo da doutrina antitruste no país. Terceiro: o Tribunal passará a presidir a instrução de processos
administrativos. É o próprio secretário de Direito Econômico quem, não obstante tenha decidido pela abertura da acusação formal, dirige o contraditório. Todas as demais atribuições do
diretor-geral pertencem originalmente à Secretaria de Direito Econômico (SDE).
Obrigado a examinar todas as operações, mesmo aquelas que não envolvem riscos para a concorrência, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) passou a ocupar boa
parte de seu tempo com a função burocrática de homologar transações privadas. Qual a relevância dessas decisões para a aplicação da legislação antitruste no país? Qual a contribuição
dessas decisões para a formação de uma doutrina substantiva, consistente ao longo tempo e baseada em princípios econômicos sólidos?
Ao rever o arquivamento de averiguações preliminares, o Cade passou a se dedicar a fiscalizar as decisões do secretário de Direito Econômico. Ainda que o Cade reverta uma ou outra
decisão, quais seriam as chances de êxito de uma acusação forjada por um órgão que formou convicção da inexistência da infração? Embora ocupe o Cade e a SDE, a revisão das
decisões de arquivamento não foi capaz de gerar casos com possibilidade concreta de êxito no Conselho e ainda criou situações de conflito interinstitucional. Trata-se de uma prerrogativa
contraproducente e custosa.
A crítica de que o vínculo estabelecido pelo anteprojeto entre o presidente da República e a diretoria da agência é indesejável pode ser ponderada face à experiência internacional. Nas
últimas duas décadas, as mudanças mais significativas no cenário antitruste estiveram associadas a ações de autoridade vinculada ao executivo, a Divisão Antitruste do Departamento de
Justiça norte-americano (USDOJ).
O DOJ se opôs a fusões de grandes empresas, (Lockheed Martin/Northrop Gruman, Continental/Northwestern Airlines, MCI/WorldCom); obteve a condenação de empresas multinacionais
por formação de cartel (vitaminas, lisinas, ácido cítrico); acusou empresas como a American Airlines de adotar práticas concorrenciais predatórias e levou a Microsoft a julgamento por
abuso de posição dominante. Nos últimos três anos, o DOJ persuadiu o Judiciário a proibir um número de fusões anticompetitivas superior ao que foi conseguido durante toda a
administração Reagan. Em 99, as multas por formação de cartel alcançaram um valor cinco vezes maior que a média anual do período republicano. Mudaram as leis? Mudou o Judiciário?
Não, mudaram o presidente da República e, como decorrência, a pessoa à frente da Divisão Antitruste do DOJ.
O Tribunal não terá qualquer vínculo com o presidente eleito. Os membros do Tribunal terão mandato de cinco anos, sem direito à recondução, sem coincidência com o mandato do
presidente da República e apenas dois conselheiros serão substituídos a cada ano. Essas características darão aos conselheiros condições apropriadas para interpretar a lei da forma
independente e garantirão uma jurisprudência estável ao longo do tempo. O vínculo proposto preserva a total autonomia do órgão judicante, mas rejeita a visão tecnocrática da política
antitruste, reconhecendo que as preferências do eleitor-contribuinte quanto à intervenção antitruste devem ser manifestadas através da política antitruste do governo eleito.
A suposta necessidade de afastar o órgão antitruste dos centros orientadores da economia, outra preocupação recorrentemente manifesta, parece brigar com os fatos. Em quase todos os
países da OCDE e em boa parte dos países da América Latina em que há legislação antitruste, pelo menos um órgão, em geral o órgão de instrução, vincula-se a um "centro orientador
da economia". Encontram-se, assim, o OFT na Inglaterra, a DGCCRF na França; o Competition Bureau no Canadá; a Secretaria de Defesa da Concorrência e do Consumidor na Argentina
e a autoridade chilena.
Essa tradição deriva da necessidade de evitar os custos de um eventual divórcio entre os princípios econômicos que fundamentam a intervenção antitruste e a aplicação da legislação
propriamente dita. À exceção de cartéis clássicos, quaisquer condutas ou atos de concentração envolvem potencialmente aspectos pró e anticompetitivos. A autoridade deve reprimir
aqueles cujo efeito final seja anticoncorrencial. Quaisquer dos dois possíveis erros são prejudiciais à economia.
Há 30 anos, o juiz e acadêmico Richard Posner havia alertado. Revendo a experiência errática da política antitruste norte-americana, o professor Posner ensinou: "Como resultado da
negligência de princípios econômicos, juízes, advogados, e demais autoridades encarregadas de aplicar a lei, têm moldado um corpo de doutrina substantiva e um sistema de sanções e
procedimentos que são pouco adequados para se alcançar os objetivos fundamentais da política antitruste: a promoção da concorrência e da eficiência. Essas e outras características do
sistema antitruste examinado nesse livro refletem um tentativa, às vezes engenhosa, às vezes patética, de manter o antitruste livre de qualquer dependência aos princípios econômicos.
A tentativa falhou. Chegou a hora de repensar o antitruste e com a ajuda da economia." (Em "Antitrust Law: an Economic Perspective". Chicago: Chicago University Press, 1976).

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