Esta página foi deixada propositadamente em branco
Transcrição
Esta página foi deixada propositadamente em branco
Esta página foi deixada propositadamente em branco AS LEITURAS MÁGICAS DE MIGUEL SOUSA LUÍS VASCONCELOS TAVARES 146 ‘Tinha a sensação de que crescer VISÃO ?? DE ???? DE 2005 África ficou para trás, no best-seller que ainda domina as livrarias. O jornalista e escritor lançou-se aos espaços infinitos, a bordo da nave Ítaca-3000, no seu segundo livro infantil. O Planeta Branco, agora editado, fala-nos da morte dos homens, do planeta e de sonhos. Era uma vez um leitor compulsivo que se transformou em autor CULTURA SÍLVIA SOUTO CUNHA culpa era daquela cauda branca, imensa, orgulhosamente levantada no mar. Impressionava-o tanto que mal conseguia dormir, aconchegado entre os lençóis de menino. «Moby Dick foi um dos livros mais extraordinários que me lembro de ter lido em pequeno», conta Miguel Sousa Tavares, jornalista, cronista, contador de histórias, autor do best-seller Equador. E desfia a memória, com a mesma admiração com que mencionaria a colecção inteira de Hemingway: «Li-o aos 9 anos, numa versão mais curta do que o original, em francês e com umas ilustrações lindíssimas a acompanhar.» A união de palavras e desenhos que lhe marca a memória faz parte do universo da literatura infantil e das referências de muito boa gente. O Planeta Branco, o segundo livro infantil que Sousa Tavares acaba de lançar, não é excepção: acompanhado pelas ilustrações de Rui Sousa, a história navega, placidamente, pelo espaço sideral até um misterioso planeta, onde a tripulação, jovem e multirracial, aprende valiosas lições de vida. Aqui, não há descrições de vagas gigantescas e madeirame rachado ou de um comandante obcecado com um monstro marinho ou outros medos tão tangíveis, mas fala-se das cidades estranguladas pela poluição, do destino dos bons e dos maus, e do mistério da morte, esse grande buraco negro. Um livro politicamente correcto? Definitivamente, não é um livro infantil como os outros. A « era, sobretudo, ler livros’ ?? DE ?? DE 2005 VISÃO 147 CULTURA Pré-publicação ‘O Planeta Branco’ Começa assim o segundo livro infantil de Miguel Sousa Tavares, com ilustrações de Rui Sousa, editado pela Oficina do Livro, e dedicado «a todas as crianças que gostam de ler» e a «todos os pais e professores que ensinam as crianças a gostar de ler» ‘N avegavam pelo espaço há vários dias, dentro da sua pequena nave branca – Ítaca-3000. Tinham sido lançados do coração de África para o espaço, do calor de África para o frio que reinava lá fora. Um foguetão transportara a nave até ao limite da atmosfera terrestre e daí, com um último rugido dos seus potentes motores, empurrara a pequena nave para diante e desintegrara-se a si próprio. A Ítaca-3000 ficara sozinha na imensidão de um céu que era luminoso de dia, quando navegavam no quadrante do sol, e escuro como breu durante a noite. Depois da separação do foguetão e dos solavancos que se seguiram, parecendo que a nave se ia partir aos bocados, tudo ficou silencioso e quieto a bordo. À medida que se soltavam da órbita da Terra e, com o motor auxiliar desligado, deslizavam tranquilamente como se viajassem numa estrada de espuma. Os três astronautas espreitaram pelas pequenas janelas laterais de bordo, a que chamavam escotilhas, vendo ao longe a Terra desaparecer aos poucos, tornando-se cada vez mais distante e mais pequena, as manchas castanhas dos vales e planícies, as manchas verdes das 4As Leituras Mágicas de Miguel Sousa... Eu quis dizer às crianças que a morte é uma sequência natural da vida», explica Miguel, sem sombra de religião. «A ideia da história é ajudar as crianças e os seus pais a lidar com essa ideia. Por isso, tem de haver uma lição de moral, ou, pelo menos, um código de justiça, em que os bons se transformam em estrelas e os menos bons ficam simplesmente no Planeta Branco. Mas, aqui, nem os menos bons ficam no inferno, a serem picados pelos diabos, nem os bons ficam alheios a tudo o que se passa», adianta. É uma mitologia que lhe é familiar. «Quando os meus filhos eram peque148 VISÃO 27 DE OUTUBRO DE 2005 florestas, as manchas cinzentas das cidades que de noite se iluminavam como um presépio visto ao longe e as manchas brancas das nuvens e das neves eternas que cobriam os cumes das mais altas montanhas. E, por entre todas as outras cores, o azul dos mares nos, dizia sempre que as estrelas eram pessoas que tinham morrido, que estavam lá em cima a ver-nos.» O paliativo pressentido nestas 96 páginas não se fica por aqui, abraçando todo o planeta, quase à maneira de um manual de bem viver para os sub-12. de a respeitar, que só pode vir da geração seguinte. Porque esta geração já provou que é capaz de liquidar alegremente o planeta. Nesse sentido, acho que nada dispensa um livro infantil de ter uma lição.» Um conto exemplar para meninos bem-comportados? «O livro contém os meus valores, a única religião em que acredito que é a da lei da natureza: tudo nasce, cresce, morre e, de alguma forma, continua de outra maneira. Uma árvore que morreu deixou o terreno fertilizado, uma planta que se colhe deixou sementes para outra que vem a seguir. Aquilo que é a justiça na vida é viver de acordo com a lei natural, não só nas relações humanas como na relação dos homens com o meio envolvente.» Príncipes para sempre «O outro livro infantil que escrevi, O Segredo do Rio [Relógio d’Água, 1996, com ilustrações de Fernanda Fragateiro] já continha esses elementos: era futurista, abordava o tema de uma seca. O Planeta Branco tem a mesma preocupação. Há uma consciência, a que se chama, depreciativamente, ecológica, mas que se deveria chamar natural; da lei da natureza e da obrigação e oceanos, parecendo, dali de cima, formar pequenas baías como poças de água entre a areia e as rochas de uma praia. Lucas era o mais velho e, por isso, o chefe da missão. Tinha o cabelo castanho e uns olhos verdes muito calmos, que às vezes pareciam tristes, outras vezes pareciam apenas preocupados. Falava pouco e passava a maior parte do tempo entretido a verificar todos os aparelhos e os indicadores de bordo, a confirmar no computador que tudo estava certo – a rota, a altitude, a velocidade, a inclinação, os painéis solares que davam energia à nave, o sistema de comunicações com Terra, os lemes laterais, que serviam para mudar de direcção ou de altitude. Duas vezes ao dia – quando amanhecia na nave e logo antes de o Sol se pôr para eles –, Lucas entrava em comunicação com a base de Terra e fazia um relato completo de tudo o que tinha sucedido a bordo e que observara. Então, a base fazia-o testar os sistemas todos, para confirmar que tudo estava em ordem e que a viagem podia prosseguir, como planeado. Lydia era a piloto auxiliar e navegadora. Cabia-lhe a missão de substituir Lucas, se este adoecesse ou por qualquer outra razão estivesse incapaz de dirigir a nave. E era também ela que a todo o instante actualizava os cálculos sobre a navegação, conferindo-os com os do computador, e quem anunciava aos outros onde estavam e que astros e planetas poderiam ver se espreitassem pela escotilha. Era uma rapariga vietnamita, de olhos oblíquos, cabelo curto escuro como breu, muito arrumada e organizada e que passava todos os tempos livres a ouvir música nos seus auscultadores. O terceiro astronauta era Baltazar, o mais novo deles, negro de Moçambique, que desempenhava as funções de engenheiro de bordo. Era Os meninos precisarão, aqui e ali, do exemplo de quem os guie pelo universo percorrido pela nave Ítaca-3000, seja um dicionário ou uma voz afectuosa, já que M.S.T. não quis escrever páginas fáceis e simplistas para consumir-e-deitar-fora. «A minha esperança é que a criança de 10 anos que leia este livro continue a lembrarse desta história daqui a 30 anos. O tempo é uma marca infalível da qualidade: as coisas boas marcam-nos para sempre», argumenta. Ele acredita que foi um menino privilegiado, que a entrada no maravilhoso reino das palavras começou à porta do seu quarto, meio palmo de gente a descobrir outras histórias. «Tive a sorte de ter crescido numa casa onde todos CULTURA ele que tinha de reparar todas as avarias que acontecessem nos sistemas e, por isso, passava o tempo todo a testar a quantidade imensa de equipamentos que havia a bordo da Ítaca. Mas Baltazar era um brincalhão que nunca conseguia estar quieto. Adorava passear-se pelo espaço reduzido da nave, flutuando no ar, devido à ausência de gravidade, que faz com que os corpos não tenham peso e fiquem suspensos no ar, a menos que, como sucedia habitualmente com os astronautas, estivessem sentados e atados pelo cinto de segurança às cadeiras. A bordo da Ítaca, como em todas as outras naves, havia umas argolas de ferro presas às paredes e ao tecto, para os astronautas se agarrarem, quando tinham de se deslocar para ir à casa de banho, à despensa e à cozinha ou para os beliches onde dormiam, e assim não andarem de encontro às paredes ou às máquinas. Mas, para Baltazar, o maior divertimento era mesmo o de se deslocar pelo ar, sem se agarrar a nada, tentando chegar aos sítios, esbracejando, como se estivesse a nadar no mar. Os outros fartavam-se de rir com ele, vendo-o a esbarrar constantemente em tudo, mas, às vezes, Lucas achava que a brincadeira os distraía de mais e ordenava: – Baltazar, volta para o teu lugar e senta-te já, que isto é uma nave espacial, não é nenhum jardim infantil! E Baltazar lá voltava, sempre a rir e a contar anedotas, para o seu lugar de engenheiro, que ficava atrás da cadeira de Lydia – a qual se sentava à frente, à direita, ao lado de Lucas, que ia sentado do lado esquerdo da frente, que é o lugar dos comandantes das naves, dos aviões, dos chefes de bando dos pássaros e de tudo o que voa.» nos contavam histórias inventadas», recorda. Este plural guarda Miguel e os quatro irmãos e irmãs, filhos da poetisa Sophia de Mello Breyner e do jornalista Francisco Sousa Tavares. E todos os adultos, incluindo a avó e a empregada, se dedicavam a esse par- história da guerra de Tróia… Viver num mundo de histórias, sejam reais ou inventadas, é fascinante.» Uma educação sentimental que controlava os dias da casa familiar, no bairro da Graça. Miguel deixou a sua obsessão pelos livros crescer O meu pai arrumava os livros por géneros, como toda a gente. E a minha mãe tinha uma desarrumação que desorientava tudo ticular tipo de hipnotismo. Era uma vez… e já és meu. «A primeira vez que ouvi a Odisseia foi contada oralmente, tal como nasceu. Lembro-me, igualmente, de ouvir A Nau Catrineta, a como uma trepadeira, fazendo-o descobrir formas de chegar às prateleiras interditas. O pai, acérrimo devorador de volumes, defendia esta arrumação da biblioteca domés27 DE OUTUBRO DE 2005 VISÃO 149 CULTURA MEMÓRIAS «Os livros da minha mãe tinham um cheiro de que nunca mais me esqueci» LUÍS VASCONCELOS 4As Leituras Mágicas de Miguel Sousa... tica: os volumes acessíveis aos mais novos estavam em baixo e, à medida que a tribo crescia, ia conquistando as prateleiras mais altas. Em baixo, arrumavam-se os livros de pintura, a tal como o pai. E quando chegava à última página, era tempo de nova remessa, abastecida no alfarrabista da Rua da Voz do Operário. Aí, vendia os livros lidos e comprava novos, com uma contabilidade algures entre os 25 tostões e os 20 escudos. Atrás da capa branca de Santo Inácio de Loyola, escondiam-se as aventuras de corsários, tigres da Malásia e filibusteiros, imaginadas por Salgari Odisseia, de Homero, os volumes da Condessa de Ségur. Em cima, repousava Jorge Amado, considerado literatura erótica. Miguel não demorou a descobrir como se fazia a ascensão… «O meu pai arrumava os livros por géneros, como toda a gente. E a minha mãe tinha uma arrumação que desorientava tudo: aqui aqueles de que gosto e ali aqueles de que não gosto. Acabaram por chegar a um consenso, em que cada um tinha a sua estante.» Miguel lia, então, compulsivamente, tudo quanto apanhava, 150 VISÃO 27 DE OUTUBRO DE 2005 Há quem se tenha entretido a decorar contos de fadas, mas Miguel preferia as aventuras. O primeiro livro que leu foi uma versão infantil de Dom Quixote. Estava à sua espera na casa da aldeia, perto de Amarante, onde ele fez a primeira classe. Depois, vieram outros livros, infantis ou nem tanto. As Memórias de um Burro, Sem Família (a triste história de um saltimbanco que adopta uma criança, para, miseráveis, calcorrearem as aldeias a pé), os volumezinhos verdes de Júlio Verne, Dumas e O Conde de Monte Cristo, A Ilha do Tesouro, de Stevenson, e o seu adorado Emílio Salgari. «Tinha a sensação de que crescer era, sobretudo, ler livros», suspira. Quando estudou no colégio dos Jesuítas, e os monges faziam o retiro anual de três dias, Miguel começava uma maratona de leitura supostamente dedicada às vidas dos santos. Mas, atrás da capa branca de Santo Inácio de Loyola, escondiam-se as aventuras de corsários, tigres da Malásia e filibusteiros, imaginados por Salgari. E houve também os álbuns franceses de Tintim. «Sempre que saía um novo livro, era um acontecimento», recorda Miguel. «A minha mãe comprava-o, juntávamo-nos na sala e ela começava a ler. Mas ria-se tanto que levava imenso tempo a traduzir para nós!» E, claro, do seu imaginário infantil fazem parte as histórias poéticas de Sophia: O Rapaz de Bronze, A Fada Oriana, O Cavaleiro da Dinamarca, A Menina do Mar, que adorava como todos os outros meninos. «Os livros da minha mãe tinham um cheiro de que eu nunca mais me esqueci», conta. E depois de ‘Equador’? Miguel Sousa Tavares está a escrever. Ou melhor, estava. Tem dois romances entre mãos: um, curto, sobre uma viagem de duas pessoas, e outro, megalómano, em fundo histórico. Esmagado pela pesquisa e ambição do enredo, debruçado sobre os primeiros 40 anos do século XX e a prever umas 800 páginas de resultado, Miguel interrompeu a escrita: «Demasiado fôlego para a minha carroça...», desabafa. Pela sua casa, estão espalhados volumes que levantam o véu do mistério – o livro de fotografia de Robert Capa sobre a Guerra Civil espanhola, um espólio de cartazes publicitários da década de 30... O título é «segredo», mas sabemos que cem páginas já estão escritas – e são, segundo o seu juízo, «muitíssimo melhores do que as de Equador: mais maduras e atentas, com uma escrita mais pensada». Nessas cem páginas, ele espera cumprir o dito de Sophia de Mello Breyner: «A minha mãe diziame que eu transformava o que vivia em coisas úteis, quando as escrevia, que não desperdiçava nada.» Desperdício? O balanço de Equador soma actualmente 23 edições e 246 mil exemplares vendidos em Portugal, traduções contratadas para 12 países, vendas apreciáveis noutras latitudes. Aliás, o Brasil (20 mil livros vendidos) até se convenceu do tema do segundo livro: «Descobriram que andei a pesquisar no Vale do Paraíba, coberto de fazendas de café, e fizeram logo o enredo aí, o que desminto sempre.» Estes números ensinaram-lhe que há pessoas que gostam de livros com história, que querem ler. Como aquele caso comovente, diz, de um senhor de Monfortinho que lhe disse estar a juntar dinheiro para comprar o best-seller. Na escola, entediado com Júlio Diniz e A Morgadinha dos Canaviais, trocava exemplares das colecções Mundo de Aventuras e Falcão – onde havia Major Alvega, espiões e cowboys como ele queria ser: Larrigan, o solitário que, no último quadrado, desaparecia no horizonte. De leitor a autor Sozinho, Miguel começou a escrever O Planeta Branco, quando estava ainda nos territórios ficcionais de São Tomé, a braços com uma história de amor, a escravatura e o poderio colonial, no cenário das roças de Equador, o seu primeiro grande romance. Tudo porque queria «descansar e variar de estilo». Mas a rapidez desejada transformou-se num labor mais lento. «A escrita para crianças é complicada. Temos de nos situar na cabeça do leitor e perceber ILHA DOS TESOUROS Livros especiais da juventude de Miguel Sousa Tavares CULTURA 4As Leituras Mágicas de Miguel Sousa... LUÍS VASCONCELOS até que ponto existem conceitos, palavras, ideias, de que ele é capaz de se aperceber. É uma escrita que exige que saiamos de nós próprios; de grande entrega, porque não interessa tanto o que eu escrevo mas aquilo que eles vão ler. E o grande objectivo é que as crianças leiam», afirma. Não só Harry Potter, que M.S.T., aliás, nunca teve a curiosidade de descobrir. «O mundo está todo montado para que as crianças não leiam. Para que não sintam até que ponto a literatura é algo de essencial e formativo, na vida delas, tal como o é ter aulas de ginástica ou aprender a falar uma língua. Acredito que ler vai ser cada vez mais importante; um factor de divisão – um novo imperialismo, dividindo entre os HISTÓRIAS INFANTIS que leram e os que Uma dádiva ao leitor não leram.» Sousa Tavares abraça uma missão. Aliás, bem patente na sua frase, a propósito de Equador: «Não sei se prestei um serviço à literatura; prestei um serviço à leitura.» «Não sei dizer porque é que, volta e meia, me apetece escrever livros infantis», diz. «Mas sei que é a mais generosa das escritas. Primeiro, porque comercialmente nem vale muito – tirando a Ana Maria Magalhães e a Isabel Alçada, e a minha mãe, mais ninguém, em Portugal, deve ter vivido dos livros infantis. Para mim, seria mais rentável escrever uma short story. Há um sentido da dádiva, mais do que da escrita. Ser simplesmente capaz de contar uma história a uma pessoa de 6 anos. Essa é a matriz do contador de histórias, que não se pode perder. É um exercício muito bom, uma reciclagem, um regresso ao essencial.» E o essencial é que alguém, no futuro, tenha o livro sobre a nave Ítaca-3000 nas mãos, tal como ele tem agora o livro de Moby Dick, a única «leitura mágica» que guarda. ■ 152 VISÃO 27 DE OUTUBRO DE 2005 IMAGENS | JOÃO MÁRIO GRILO Enfim? C OMO SERIA INFELIZMENTE de esperar, os media portugueses passaram quase em claro a assinatura, no passado dia 20, em Paris, da muito aguardada Convenção sobre a Produção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais (CPPDEC). Aprovada no contexto da 33.ª Conferência Geral da Unesco, por uma esmagadora maioria de 151 votos a favor, 2 contra (Estados Unidos e Israel) e 2 abstenções, esta Convenção poderá vir a ser um instrumento essencial para a defesa da singularidade cultural de cada país (e, mesmo, de cada cultura), face aos cada vez mais fortes efeitos globalizantes das mega-indústrias de entretenimento planetário, como é o caso – quase exclusivo – da indústria cinematográfica e audiovisual americana. Para além disso, a assinatura deste «tratado de não proliferação» não só põe termo a um sangrento processo de dois anos de negociações e boicotes, como é também uma saborosa vitória da Unesco, em vésperas do seu sexagésimo aniversário, o que poderá ajudar muito a restabelecer o abalado e depreciado prestígio da instituição. uma duríssima prova: a sua ratificação pelos governos e os parlamentos de, pelo menos, 30 Estados-membros. Só então, as suas resoluções passarão a ser, realmente, efectivas. SERÁ PRECISAMENTE neste quadro nacional que a Convenção enfrentará o seu maior desafio: quando se passar do papel aos actos e cada país tiver de negociar bilateralmente com implacáveis agências americanas. Esperemos que Portugal seja um dos primeiros ( já que o somos tão poucas vezes em matéria de cultura) a ratificar o acordo e já agora um dos primeiros, também, a promover medidas para a sua rápida aplicação. Serão medidas necessariamente duras, que podem vir a alterar substancialmente o quadro cultural e social em que nos movimentamos, e em que Hollywood arrecada 85% das receitas geradas nas salas de cinema e no comércio congénere de DVDs e licenças de exibição televisiva. A julgar, por exemplo, pelos impressionantes números do último DocLisboa (que apontam para quase 20 mil espectadores numa semana), há cada vez mais gente (e cada vez mais nova) saturada da monotonia americana e da progressiva inércia do seu cinema. Por paradoxal que possa parecer, é na reforma total deste quadro antigo e viciado que o cinema americano poderá encontrar condições para se libertar dos seus próprios bloqueios, afastando-se de rotinas e receitas comerciais completamente estafadas, que devem muito menos à arte e à criação do que à incompetência de funcionários e executivos sem chama, cujos gostos e interesses se replicam depois, como um vírus, pelo mundo inteiro, acolhidos pelo laxismo e temor dos diferentes governos nacionais. Há cada vez mais gente saturada da monotonia americana O QUE DE MAIS IMPORTANTE e significativo fica consignado na CPPDEC é o direito soberano de cada Estado para elaborar políticas culturais que visem «proteger e promover a diversidade das expressões culturais» e «criar condições que permitam o desenvolvimento harmonioso das diferentes culturas e a sua livre interacção». O debate, um dos mais acesos e prolongados na história da Unesco, foi pontuado por muitas declarações inflamadas e por nada menos que 27 propostas de emendas, por parte dos representantes americanos. O documento final, composto por 30 artigos, passará agora por