Aspectos da filosofia educacional de John Wesley
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Aspectos da filosofia educacional de John Wesley
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 300 anos do nascimento de John Wesley Aspectos da filosofia educacional de John Wesley Aspects of the educational philosophy of John Wesley Clory Trindade de Oliveira Teólogo e doutor em História pela USP – SP R e s u m o No contexto dos 300 anos de nascimento de John Wesley, este artigo resgata aspectos da filosofia educacional do fundador do Metodismo, lembrando que, desde suas origens, o movimento iniciado na Inglaterra tomou a religião e a educação como forças indispensáveis e complementares. O autor lembra que as grandes ênfases na trajetória de Wesley foram sempre a religião e o estudo disciplinado, como caminho prático para a vida. Analisa o contexto histórico no qual se deu a formação educacional de Wesley, marcada por uma extensa e consistente atuação acadêmica, e o seu envolvimento com a população trabalhadora, pobre e ignorante de seus dias, o que o levou a ser chamado de “teólogo do povo”. Unitermos: filosofia da educação, história do metodismo, religião e educação. Synopsis Within the context of the 300 years of the birth of John Wesley, this article stresses aspects of the educational philosophy of the founder of Methodism, remembering that since its origins, the movement started in England took religion and education as indispensable and complementary forces. The author recalls that the greatest emphasis in the life of Wesley were always religion and the disciplined study as a practical way of life. He analyzes the historical context in which the education of Wesley took place, marked by a broad and consistent academic path, and his involvement with the working, poor and ignorant people of those days, which made him known as the “theologian of the people”. Terms: philosophy of education, history of Methodism, religion and education. Resumen Dentro del contexto de los 300 años de la John Wesley, este artículo rescata aspectos de la filosofía educativa del fundador del Metodismo, recordando que desde sus orígenes, el movimiento iniciado en Inglaterra tomó la educación y religión como fuerzas indispensables y complementarias. El autor recuerda que los grandes énfasis en la vida de Wesley siempre fueron la religión y el estudio disciplinado, como camino práctico para la vida. Analiza el contexto histórico dentro del cual se dio la formación educativa de Wesley, marcada por una extensa y consistente trayectoria académica, y su trabajo con la población obrera, pobre e ignorante de sus días, lo que lo llevó a ser llamado el “teólogo del pueblo”. Términos: filosofía de la educación, historia del metodismo, religión y educación. Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ 69 ○ ○ ○ Ano 12 - n0 22 - junho / 2003 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ J ○ ○ ohn Wesley é reconhecido como um dos homens de mais vasta cultura do século XVIII, na Inglaterra, cultura eclética, que variou desde os clássicos até os que constituíam, em seus dias, as novidades em ensaios, novelas, peças teatrais, tratados, história política, ciência, como ele refere quando escreveu: “as últimas descobertas científicas revelam aos olhos da fé a sabedoria de Deus na criação”1. Em 1756, Wesley escreve um documento chamado “Um discurso para os clérigos”, no qual analisa o preparo do clérigo, somando a cultura secular e a cultura religiosa. Diz ele: ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ As grandes ênfases na vida de Wesley foram sempre a religião e o estudo disciplinado 3 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ “Embora se deseje mais do que se espera uma modificação do plano de educação moderada, um tratado sobre o assunto, impresso na Inglaterra alguns anos atrás, alcançou sucesso. Apenas alguns têm ousado sair da estrada comum e educar os seus filhos de maneira cristã, e alguns orientadores na Universidade têm treinado os que estão sob os seus cuidados de modo digno dos cristãos primitivos.”3 John Wesley foi um estudante, no sentido pleno da palavra, durante toda a sua vida. Ele foi estudante na universidade por muitos anos, e lá ele permaneceu vinculado como preceptor até a época do seu casamento, em 1751, já então com 48 anos de idade. Esse fundo cultural lhe fez reconhecer que para o desenvolvimento da harmonia e segurança na sociedade humana, a religião e a educação eram 1 ○ forças indispensáveis e complementares. Em outras palavras, as grandes ênfases na vida de Wesley foram sempre a religião e o estudo disciplinado, como caminho prático para a vida. Escrevendo uma carta para a “Sociedade Pró-Fé e Cristianismo”, Wesley diz: “O ministro bem preparado precisa ter capacidade para raciocinar com clareza, (...) com penetração, (...) uma boa memória, (...) competente soma de conhecimento. Depois, vêm as Escrituras – nas línguas originais, mais conhecimento da história, (...) das ciências, (...) metafísica, (...) filosofia natural, (...) história do pensamento cristão e devoção, (...) conhecimento do mundo contemporâneo. A este conhecimento e cultura deve-se acrescentar: (...) senso comum e (...) a animação da graça (...) e um sentido claro do chamado.”2 2 ○ John Wesley foi um estudante, no sentido pleno da palavra, durante toda a sua vida A partir de Wesley, vai se popularizar no Metodismo a prática de se construir escolas junto de capelas. Certa vez, ao perguntarem a Wesley o que aconteceria ao Metodismo depois de sua morte, ele imediatamente respondeu que isso dependeria da “instrução e da religião” dos filhos das famílias metodistas. Religião e cultura, educação e vida, conhecimento e prática vão constituir o binômio básico, dentro do qual encontraremos alguns dos pressupostos fundamentais da filosofia de educação, em John Wesley. Trabalhei com tempo restrito e material resumido. Estou seguro de que é possível e de grande significado aprofundar a pesquisa e produção de documento, que revele com mais riqueza o absorvente envolvimento de John Wesley com tudo o que se John Wesley. Compêndio de filosofia natural natural, em Albert C. Outler; Theology in the Wesley na Spirit Spirit, 1975, p. 3-4. John Wesley. Obras, X, p. 480-500. Idem, ibidem, p. 480-500. Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ 70 ○ ○ ○ Ano 12 - n0 22 - junho / 2003 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ refere ao conhecimento, à razão, ao estudo, à literatura, à cultura secular medieval e moderna, bem como à literatura religiosa. Desconheço alguém que tenha lido e pesquisado mais livros que John Wesley. Quando se diz que o Metodismo nasceu na Universidade, reconheço que há grande sentido na afirmação. É claro que toda esta vasta cultura literária relaciona-se diretamente com a pregação do Evangelho de Jesus Cristo, transformador e criador de nova vida e nova sociedade. O mundo ancestral próximo de Wesley, bisavô, avô, pai, pai de sua esposa e esposa, constitui uma tradição de estudiosos e de pessoas altamente preparadas; eles faziam parte da absoluta minoria das pessoas letradas dos séculos XVII e XVIII; o importante nesse período eram os títulos de nobreza, as propriedades e o dinheiro. A educação e a cultura eram secundárias. Trabalho isso resumidamente na primeira parte deste artigo. Com exceção do pai e da esposa, os demais ancestrais pertenciam ao grupo dos Dissidentes, que se negaram a assinar o Ato de Uniformidade, de 1662, que os obrigava a ser subservientes ao Estado e ao Rei. John Wesley soube aproveitar as oportunidades que se abriram para estudos e envolvimento com o mundo intelectual, da ciência e da religião. A extraordinária criatividade de Wesley estava exatamente na sua sensibilidade e capacidade para coletar as riquezas encontradas nos milhares de documentos e livros que leu. Essas riquezas ajudaram-no a direcionar o rumo religioso e cultural de sua vida. ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Faço uma abordagem resumida disso na segunda parte deste artigo. O centro do trabalho está em sete critérios que selecionei entre muitos outros, e que nos ajudam a compreender um pouco melhor o modo de Wesley entender e praticar a obra educativa. É bom lembrar ser realmente difícil separar em Wesley a mensagem do ensino, a evangelização da educação. Elas se interpenetram e mutuamente se enriquecem no ministério de John Wesley. Essa dicotomia, mais ou menos radical, pregação e educação, capela e escola que temos hoje, deve ser debitada a nós, os metodistas pós John Wesley. O Metodismo nasceu na Universidade Formação educacional e os ancestrais de Wesley A família de John Wesley buscou sempre a melhor educação formal e informal possível. Bartolomeu, seu bisavô, pregador leigo da Igreja Dissidente, estudou teologia e medicina na Universidade de Oxford. Com a restauração da monarquia e a decretação do “Ato de Conformidade” (1662)4 , que exigia de cada clérigo o juramento de suprema obediência ao Rei, Bartolomeu foi expulso de sua paróquia, por não se submeter à subserviência Real. John, filho de Bartolomeu e avô de Wesley, estudou teologia em Oxford, alcançando o grau de mestre em Artes. Como Dissidente, foi encarcerado em 1661 devido à lei das “Cinco Milhas” 5 , vivendo depois errante, pregando o Evangelho, sendo outras vezes encarcerado. As privações e os sofrimentos levaram-no à morte muito cedo, aos 42 anos de idade. Wesley tinha sensibilidade e capacidade para coletar as riquezas encontradas nos livros que leu 4 Henry Carter. The Metodist Heritage Heritage, 1951, p. 13 Idem, ibidem, p. 53-55 (A lei das “Cinco Milhas” era dirigida contra os pregadores dissidentes, não-conformistas, proibindo de se aproximarem de vila ou cidade, onde tivessem exercido o pastorado). 5 Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ 71 ○ ○ ○ Ano 12 - n0 22 - junho / 2003 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Samuel, pai de John Wesley, nasceu em 1662, sendo educado num lar Dissidente e Não-conformista. Estudou na Academia Dissidente Stoke Newington, quando se desiludiu com os Dissidentes, transferindo-se para a Igreja Oficial. Ingressa no Exeter College, Universidade de Oxford, como aluno pobre, tornando-se pastor da Igreja Anglicana. A partir de 1696, foi o pároco de Epworth, onde permaneceu até sua morte em 1735. De acordo com Mateo Lelièvre6 , Samuel Wesley, “de inteligência mais universal que profunda, produzia uma grande variedade de publicações literárias, como folhetos políticos e religiosos, artigos para os periódicos, poemas, comentários e trabalhos de teologia (...)”7 . Bartolomeu, John e Samuel, ancestrais paternos de Wesley constituíram famílias nas quais o amor aos estudos, à educação e à cultura foi notável exceção, num mundo de analfabetos. Raríssimas eram as escolas, basicamente para o restrito círculo da nobreza e pouquíssimos alunos pobres. Dr. Samuel Annesley, pai de Susanna Wesley e sobrinho de Arthur, primeiro Conde de Anglesea era, igualmente, pessoa de elevada educação. Ele era “um homem de caráter e educação (...), foi educado no Queen’s College, na Universidade de Oxford, (...) foi ordenado capelão no navio Globe de sua Majestade (...) mais tarde, foi pastor em Cliff, no condado de Kent. (...) Mais tarde, foi expulso de sua paróquia, por ser um Não-conformista”8 . ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Susanna, mãe de John Wesley, é reconhecida por muitos estudiosos como “a mãe não apenas de Wesley mas, também, do Metodismo”9 . Susanna governou sua família e seu lar com a extraordinária força de sua personalidade. Ela foi uma mulher que levou a sério o seu preparo intelectual, desde muito cedo: Susanna é reconhecida por muitos estudiosos como a mãe não apenas de Wesley mas, também, do Metodismo “[Susanna] possuía natural inclinação para o estudo; ela sabia grego, latim e francês antes de ter vinte anos, e achava-se saturada de teologia. (...) Ela lia os padres primitivos e lutava com as sutilezas da metafísica. (...) Com treze anos apenas, ela recusou toda a matéria em discussão entre os Dissidentes e a Igreja, opinando contra a posição mantida por seu pai.”10 Raríssimas eram as escolas, basicamente para o restrito círculo da nobreza É exatamente neste período de sua precoce juventude que Susanna adere à Igreja Estabelecida, abandonando a orientação Dissidente assumida por seu pai e transmitida a ela. Susanna rivalizava “em saber e piedade com as mais ilustres mulheres da Reforma”11. Ela buscou desenvolver a mais rica e completa educação na vida de seus filhos e filhas. Para tanto, organizou uma pedagogia educacional simples, definida e pragmática, reveladora de seu caráter metódico. Estão presentes a disciplina, o castigo, o perdão, o horário, o silêncio, a vontade, a oração, o efetivo aprendizado, o cumprimento estrito das promessas, a paciência, a persuasão e o amor. Ela soube dosar com sabedoria todos esses valores. 6 Mateo Lelièvre. Juan Wesley Wesley. Su vida e su obra, 1911 Idem, ibidem, p. 26. 8 Arnold Lunn. João Wesley Wesley, 1929, p. 10 9 Mateo Lelièvre. Juan Wesley Wesley, 1991, p. 28. 10 W. H. Fitchett. Wesley e seu século século, 1916, p. 16-17 11 Mateo Leliève. Juan Wesley Wesley, 1991, p. 29. 7 Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ 72 ○ ○ ○ Ano 12 - n0 22 - junho / 2003 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Isso é uma modesta amostra da riqueza da personalidade e da vida de Susanna Wesley. Ela é representante de uma pequeníssima parcela de mulheres do século XVIII. “Mulheres como Susanna Wesley exerceram poderosa influência nos destinos das gerações, influência ainda maior, porque não dependia de direitos legais ou privilégios políticos.”1 2 Pode-se, hoje, questionar os princípios pedagógicos e mesmo éticos de Susanna Wesley, muito embora, vários desses princípios continuem a ser exaltados pelos educadores e psicoeducadores contemporâneos. O ponto fundamental é o fato de que Susanna tinha plena consciência da importância de se ter uma metodologia educacional e aplicá-la consistentemente. Os possíveis defeitos pedagógicos foram supridos pela sua extraordinária capacidade de amar seus filhos. Aqui, um breve esboço do contexto cultural, intelectual e educacional que emoldura a vida de John Wesley. Os ancestrais de Wesley, lado materno e paterno, valorizaram profundamente o seu preparo amplo no mundo da educação. Todos eles, incluindo Susanna, foram pessoas cultas, de notável saber. De outro lado, todos eles foram pessoas pobres, que lutaram arduamente para assegurar a sua sobrevivência. Susanna tinha plena consciência da importância de se ter uma metodologia educacional Formação educacional e John Wesley A formação educacional de Wesley começou e se fundamentou no seu 12 13 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ lar, sob a orientação e ministração de Susanna, sua mãe. Os dez primeiros anos de sua vida Wesley passou em Epworth, trabalhando, estudando e forjando sua personalidade. Esse período vai determinar, em boa medida, o modo de ser e viver de Wesley. Em 1714, com dez anos e meio, Wesley recebe uma bolsa de estudos do Conde de Buckinghan para a escola de Charterhouse, grande e renomado estabelecimento de ensino governamental; era escola para nobres e pessoas de dinheiro, pois era paga. Ali Wesley viveu seis anos, onde se preparou para a faculdade. Em 1720, com 17 anos, ingressou na faculdade (Christ College), na Universidade de Oxford, bacharelandose em 1724; é eleito em 1725 lente no Lincoln College; neste mesmo ano, ordena-se diácono. Em 1726 é nomeado professor de grego e presidente de classes. Em 1727 recebe o grau de mestre em Artes. É neste período que Wesley desenvolve e amadurece sua formação cultural. Nos anos de faculdade, ele estuda grego, latim, hebraico, árabe, lógica, metafísica, Bíblia, teologia, ética, filosofia, oratória, poesia etc. Oxford vive “o crepúsculo de uma de suas mais gloriosas épocas, sob o famoso trio de reitores: John Fell, Henry Aldrich e Francis Atterbury. Embora Oxford vivesse em período de depressão, havia um esplêndido repositório de livros e de ciência, onde Wesley pôde construir sua grande herança cultural”13. Wesley aprendeu cedo a ler, e continuou a ler e a estudar incessantemente, por toda sua longa e ocupada vida. Arnold Lunn. João Wesley Wesley, 1929, p. 12. Albert C. Outler. John Wesley Wesley, 1964, p. 6. Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ 73 ○ ○ ○ Ano 12 - n0 22 - junho / 2003 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ “Seu gosto passou pela totalidade do mundo da literatura, desde os clássicos, até o que era, em seus dias, o de mais novo em ensaios, novelas, peças teatrais, tratados (...) interessado, também, com história, política e presentes mudanças sociais (...) e últimas descobertas científicas (...).”14 Sim, Wesley foi sempre um incansável leitor, durante toda a sua vida. Lia e estudava enquanto cavalgava de vila em vila, de cidade em cidade; lia, estudava e escrevia diariamente e em todos os momentos possíveis. É verdade que “lia mais extensivamente que minuciosamente, mas é digno de se saber quanto efetivamente recordou e fez uso proveitoso”15. A partir de 1725, Wesley registrou praticamente a quase totalidade das leituras que fez, abrangendo mais de 1.400 diferentes autores em mais de 3.000 diferentes documentos. Segundo uma pesquisa do teólogo e historiador Albert C. Outler16, Wesley cita, entre outros: Horácio, Virgílio, Ovídio, Cícero, Juvenal, Aristófanes, Adriano, Homero, Lucasso, Lucrécio, Pérsides, Píndaro, Sêneca, Agostinho, Kempis; cita autores e a Patrística, os Místicos Medievais, escritores seculares da Renascença e autores da ciência Moderna. Esse apanhado nos permite vislumbrar a extraordinária riqueza cultural absorvida por Wesley, durante sua fase de escola, mas também no correr de toda a sua vida. Isso nos permite entender, também, o amor de Wesley ao estudo, à educação, à formação cultural, na sua diversidade, na sua complexidade, Wesley foi sempre um incansável leitor Destaque especial deve ser dado ao interesse de Wesley pelas crianças e pelos pobres ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ mesmo na sua confrontação. É bom recordar que, paralelo ao conhecimento secular, Wesley buscou o sólido conhecimento e fundamento da cultura bíblica. Dedicou-se ao estudo da Bíblia, nos seus dialetos originais, bem como à pesquisa dos estudiosos da Bíblia, particularmente os clássicos da patrística e período Medieval. Isso nos ajuda, ainda, a reconhecer o esforço de Wesley em compartilhar com os participantes do movimento metodista, especialmente seus companheiros e colaboradores, toda essa riqueza cultural, essa educação secular e bíblica. A educação, sem dúvida alguma, é pilar central na visão de Wesley de um mundo novo. Richard M. Cameron17 diz que não se pode falar no assunto ‘Educação’ sem reconhecer a importância do Metodismo na caminhada da educação como um todo. Por exemplo, o que hoje chamamos “educação de adulto”, cujo resultado foi o incentivo intelectual de milhares de pessoas que se uniram ao movimento metodista. Essa ênfase em vitalizar as faculdades mentais do povo comum favoreceu uma demanda ainda muito maior, mais tarde corporificada na criação de escolas públicas gratuitas. Destaque especial deve ser dado ao interesse de Wesley pelas crianças e pelos pobres. Desde o tempo do Clube Santo, na Universidade de Oxford, Wesley dedicou-se a organizar e, mesmo, construir escolas para crianças pobres. Já em 1736, quando missionário na Geórgia, organiza uma escola para meninos e meninas e escreve um “Catecismo para crianças”. 14 Idem, ibidem, p. 3-4. Idem, ibidem, p. 7-8. 16 Idem, ibidem, p. 6-8. 17 Richard M. Cameron. Methodism and Society in Historical Perspective Perspective, 1964, p. 63-64. 15 Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ 74 ○ ○ ○ Ano 12 - n0 22 - junho / 2003 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Em 1739, ele prepara um manual de instrução para as crianças e pede aos pregadores que expliquem a elas, em suas visitas aos lares. A partir de 1748, ele solicita aos seus pregadores que, em cada sociedade onde houvesse, pelo menos, dez crianças, se tivesse classe semanal com elas. Em 1756, em Dublin, Irlanda, Wesley se reunia duas vezes por semana com um grupo de mais de cem crianças, para educação cristã. Em 1770 – dez anos antes que Robert Raikes organizasse oficialmente a escola dominical –, Hannat Ball, sob a orientação de Wesley, organizou, em High Wycornbe, uma escola dominical, que ela dirigiu por mais de vinte anos. De um modo geral, podemos assegurar que a vida longa de John Wesley sempre esteve voltada para a educação, como fundamento na nova vida e na construção de um mundo novo mais qualificado e melhor. Não é, pois, de se admirar que John Wesley e o Metodismo, por onde quer que passassem, valorizavam intensamente a educação e organizavam o maior número possível de escolas, pequenas ou grandes, para crianças pobres, para filhos e filhas dos pregadores, para os pais analfabetos dessas crianças pobres, para os pregadores e assim por diante. A educação, sem dúvida alguma, é marca distintiva e indissolúvel do movimento metodista. A capela e a escola, no Metodismo, sempre andaram juntas. ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ A vida e a obra de John Wesley constituem manifestação e manifesto do amor de Deus ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ “Lembrando que Deus é amor, o ser humano é feito a sua mesma semelhança. Ele é pleno de amor ao próximo: amor universal, não confinado à seita ou ao partido, nem restrito àqueles que concordam com ele em opiniões, (...) nem ama somente aos que o amam, (...) amor que abarca vizinhos e estrangeiros, amigos e inimigos; (...) seu amor a todas essas pessoas, como a toda humanidade é, em si mesmo, generoso e desinteressado, não buscando vantagem para si mesmo, nem lucro, nem louvor, nem mesmo o prazer de amar. (...) ele sabe que ‘amor social’ é absolutamente e essencialmente diferente do ‘amor-a-si-mesmo’ (...). E esse universal, desinteressado amor produz a afeição correta. É abundante em bondade, ternura, sensibilidade, em humanidade, cortesia e afabilidade. (...) Isso produz modéstia, condescendência, prudência, (...) O mesmo amor é gerador de todas as retas ações.(...)”19 A essência da fé cristã é o amor; Deus é amor; o mundo é o ato da cria- 19 ○ ção amorosa de Deus. Jesus Cristo resume toda a lei e os profetas no amor a Deus e ao próximo, isto é, amor ao criador e ao mundo criado. A vida e a obra de John Wesley constituem manifestação e manifesto do amor de Deus. Amor, amor a Deus, amor ao próximo e seus correlatos são expressões e mensagens que se espalham por toda a pregação, todo ensino e todos escritos de Wesley e do Metodismo através dos tempos. “A presença de Deus no mundo é graça; sua natureza é graça; a graça é o que Deus é, o que ele sempre é: amor atuante”18 John Wesley afirma o verdadeiro e genuíno cristianismo, verdadeiro e genuíno cristão: Amor, a essência da educação e da vida 18 ○ Viver a graça de Deus Marquardt Klaiber.Viver Deus, 1999, p. 81. John Wesley. A Plain Account of Genuine Christianity Christianity, conforme Albert C. Outler, p. 184-185. Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ 75 ○ ○ ○ Ano 12 - n0 22 - junho / 2003 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Entendemos aqui amor não como teoria, filosofia especulativa, nem mesmo maneira de apresentar-se no mundo. Para Wesley, o amor de Deus, que requer o amor a Deus e ao próximo é poder transformador, capaz de curar e regenerar o mundo e a humanidade. Amor é ação, é praxis. Por isso, Wesley sempre insistia na absoluta necessidade da prática das obras de misericórdia; libertar o ser humano do erro, da ignorância e de todas as formas de pecado constituía objetivo supremo da pregação e da educação. Ele inquiria: ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Wesley sempre insistia na absoluta necessidade da prática das obras de misericórdia “Mostras o teu amor pelas tuas obras? Se tens ocasião, (...) fazes de fato o bem a todos os homens, vizinhos ou forasteiros, amigos ou inimigos, bons ou maus? Fazes a eles todo o bem que possas fazer, suprindo-lhes as faltas, auxiliando-os no corpo e na alma, no máximo de tuas forças?” 20 Um intenso amor a Deus e ao próximo 21 pode explicar o espírito de amor e sacrifício que fez de Wesley o modelo mais perfeito de cristão. O amor suplicava no envolvimento pessoal do cristão; não era suficiente clamar o amor ou expressá-lo abstratamente. Wesley insistia que o amor precisava ser plenamente experimentado e vivido. Ele ensinou aos seus seguidores “que era muito melhor levar pessoalmente a ajuda aos pobres do que mandá-la”22. “Mesmo aquelas pessoas que nada tivessem para dar podiam cumprir sua missão, visitando e expressando pessoalmente palavras de afeto” 23. O amor a Deus e ao próximo sempre foi a força propulsora da mensagem e do ensino de John Wesley ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Wesley e o Metodismo colocam em posição de notável destaque a participação ativa, dinâmica dos seus seguidores, na consecução constante da prática do bem. Qualquer outra compreensão da fé cristã que não seja a vida de amor, de serviço, do envolvimento com os mais necessitados é descartada, como Pietismo e Antinomianismo, negadores da própria mensagem cristã. Vezes sem conta, em seus escritos, Wesley enfatiza o sentido da vida cristã, expressa em amor e serviço. As pessoas, na absoluta maioria, pobres e ignorantes, alcançadas pela mensagem e instrução Metodista, desde logo se sentiam desafiadas e mesmo compelidas a buscar as bênçãos divinas, para serem gozadas aqui na terra; isto é, eram levadas a buscar a sua imediata libertação do estado de vida sub-humana, jamais aceito como inerente na sociedade. Muito logo, essas pessoas adquiriram maior compreensão do sentido de vida, maior preparo e melhores condições para subir nas escalas da vida social, atingindo a estabilidade numa classe média crescente. Essa gigantesca obra constituía uma expressão concreta do amor a Deus e ao próximo. O amor a Deus e ao próximo sempre foi a força propulsora da mensagem e do ensino de John Wesley. Em certa medida, Wesley colocou o amor acima de tudo, até mesmo do conhecimento da verdade. É ele quem afirma: “Porque havendo ainda amor, mesmo com muitas opiniões errôneas, ele deve ser preferido à verdade despoja- 20 John Wesley. Sermões Sermões, v. II, 1954, p. 261. Mateo Lelièvre. Juan Wesley Wesley. Su vida y su obra, smith y lamor, 1911, p. 563. 22 John Wesley. The Journal Journal, v. IV, 1960, p. 422. 23 Idem, ibidem, v. III, p. 301. 21 Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ 76 ○ ○ ○ Ano 12 - n0 22 - junho / 2003 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Povo, o alvo da educação da de amor. Podemos morrer sem o conhecimento de muitas coisas e sermos, ainda, levados ao seio de Abraão; mas, se morrermos sem amor, do que nos valerá o conhecimento?”2 4 Arnold Lunn25, em pesquisa realizada, escreve que Wesley pregou somente um sermão sobre o inferno, enquanto que pregou mais do que quarenta mil vezes sobre seu tema favorito, o amor de Deus, livremente oferecido à toda humanidade. Wesley, na sua imagem mais conhecida de evangelista e organizador do Metodismo, de forma sistemática e metódica, aparece na história e a todos nós como uma pessoa culta, séria, severa e dominadora. Há bastante de verdade nessa fotografia, mas ela não revela o aspecto mais rico e significativo da personalidade de Wesley: ele era uma pessoa com um coração transbordante de amor; ele amava as crianças, os pobres, os prisioneiros, os enfermos, os idosos, os pecadores. E, por isso, ele era igualmente amado. O amor a Deus e ao próximo era o método por excelência na vida e obra de Wesley; somente esse amor era capaz de produzir essa personagem revolucionária, cuja vida e obra marcaram o século XVIII e a história, desde então. ○ A teologia, a mensagem, o ensino e a vida de John Wesley são totalmente voltados para o povo, na sua absoluta maioria, gente pobre. A mensagem e o ensino de Wesley sempre foram veiculados de modo claro, simples, direto, de sorte que a população pudesse entendê-los e assumi-los. A riqueza cultural de Wesley jamais o impediu de dar um rumo diferente às suas idéias, construindo uma mensagem e um ensino simples, claro e relevante para o povo do seu tempo. Wesley estava consciente e inserido na cultura de sua época, capaz de falar, ensinar e se fazer ouvido e entendido pela população trabalhadora, pobre, ignorante de seus dias. É nesse sentido que Outler o identifica como um “teólogo do povo”27. O notável preparo intelectual e educacional de Wesley, em confronto direto com a realidade cultural do seu tempo, moldou o rumo a seguir e as grandes ênfases do Metodismo. O beneficiário primeiro e direto dessa riqueza do Metodismo foi, principalmente, o povo marginalizado, pobre e ignorante, com quem partilhava a mensagem de nova vida e libertação. O Metodismo tornou disponível e ao alcance desse povo a oferta da graça libertadora de Cristo, na forma e na linguagem mais simples, como refere o próprio Wesley: “escrevo como geralmente falo, isto é, para o povo – ad populum: à massa humana, aqueles que nem apreciam, nem compreendem a arte de falar”28. Wesley explica ainda melhor o seu compromisso com o povo: O Metodismo tornou disponível e ao alcance desse povo a oferta da graça libertadora de Cristo “Ele era obedecido porque ele era amado. Ele era amado porque ele era absolutamente abnegado; e porque ele era abnegado, poucos ressentiam sua autocracia e menos ainda desafiavam as suas corretas e notáveis decisões.”26 24 Idem, Sermões Sermões, v. I, 1953, Prefácio, p. 25. Arnold Lunn. John Wesley Wesley, 1929, p. XVII (introdução). 26 Idem, p. XIII (introdução). 27 Albert C. Outler. Theology in the Wesleyan Spirit Spirit, 1975, p. 3. 28 John Wesley. Sermões Sermões, v. I, 1953, Prefácio, p. 21. 25 Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ 77 ○ ○ ○ Ano 12 - n0 22 - junho / 2003 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ “Ambiciono a verdade simples para o povo simples: assim, de propósito deliberado, abstenho-me de todas as especulações delicadas e filosóficas, de todos os arrazoados embaraçantes e intrincados. (...) Trabalho por evitar todas as palavras que não sejam fáceis de entender. (...)”29 É esse compromisso com o povo que leva Wesley a organizar as sociedades metodistas, com suas capelas e escolas, a fim de ministrar a mensagem bíblica da salvação, tornando as pessoas novas, livres do erro, da ignorância e do pecado. E, assim, ele se envolve na dramaticidade da vida, nas ruas, nas fábricas, nos presídios, onde quer que ele se encontre com a população. Tudo sempre a partir das necessidades do povo e de sua capacidade de compreensão e assimilação. O processo educativo da pregação e do ensino desenvolvido por Wesley jamais se circunscreveu aos ambientes fechados. A educação cristã, educação para a vida, aconteceu nas ruas, nas praças, com as pregações e o ensino ao ar livre, bem como nos lares, nas capelas, nas escolas; isso era endereçado às crianças, aos jovens, aos adultos; isso ocorria nas vilas, nas cidades, nos caminhos, nas zonas rurais, em toda a parte. Muito mais do que esperar a vinda do povo aos bancos, Wesley ia aonde o povo estava. ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ gar ao fundo da questão. Samuel percebeu essa característica nas atitudes de seu filho, ainda na sua adolescência. Certa ocasião, Samuel diz à sua esposa, Susanna: “Acho, querida, que nosso Joãozinho não comeria o seu jantar se não achasse uma razão para fazê-lo”30. Wesley estudou os grandes filósofos gregos e, certamente muito cedo alimentou, a sua inquietação racional com a teoria da “inteligibilidade” nas coisas, proposta por Aristóteles. No seu Compêndio de filosofia natural, que na primeira edição de 1777 já estava com cinco volumes, Wesley afirma a inteligibilidade dos próprios mistérios cristãos, e que o crer era só responsável em alcançar até a medida da verdade conscientemente atingida. Wesley escreve: Ele se envolve na dramaticidade da vida, nas ruas, nas fábricas, nos presídios “Nada é, pois, mais absurdo do que as objeções dos não-crentes, contra a inteligibilidade dos mistérios cristãos, visto que o Cristianismo requer o nosso assentimento, apenas ao que é simples e inteligível, em todas as proposições. Que todos tenham, primeiramente, uma convicção completa da verdade de cada proposição nos evangelhos, até onde ela seja simples e inteligível, e então creiam tanto quanto eles entendem.”31 Destaca-se, claramente, a importância que Wesley dá ao entendimento, como sendo a medida da responsabilidade humana. Projeta-se aqui a razão como órgão fundamental do ser humano. Em uma carta escrita ao senhor Rutherforth, Wesley argúi: Entender para crer e viver Desde muito cedo em sua vida, Wesley revelou sua profunda necessidade de encontrar a explicação suficiente para os fatos; é a manifestação do seu espírito lógico, ávido por che- “O senhor continua: ‘É princípio fundamental na escola metodista que todos 29 Idem, ibidem, p. 21-22. W. H. Fitchett. Wesley e seu século século, v. I, 1927, p. 50 (conforme citado). 31 John Wesley. Compêndio de filosofia natural natural, V. II, p. 447-449 (conforme citado em Burtner e Chiles – Coletânea da Teologia de John Wesley Wesley). 30 Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ 78 ○ ○ ○ Ano 12 - n0 22 - junho / 2003 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ os que entram para ela devem renunciar a sua razão’. Está o senhor acordado? A menos que o senhor esteja conversando dormindo, como pode o senhor dizer uma inverdade tão grosseira? Nós temos o princípio fundamental de que o renunciar à razão é renunciar à religião, que a religião e a razão caminham de mãos dadas, e que toda a religião sem razão é falsa.”32 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ O entendimento, a autoconsciência, portanto, das coisas, da vida, da realidade, implicava em estudo sério, determinado, orientado. O entendimento, que se consegue por meio da pesquisa, do estudo, é algo tão essencial à própria vida a ponto de se constituir em um dos quatro grandes pilares do Cristianismo: “O Cristianismo é construído sobre quatro grandes pilares: o poder, o entendimento, a bondade e a santidade de Deus”34. Na sua mensagem e no seu ensino, Wesley primou por levar às pessoas o mais completo entendimento de tudo o que se relacionasse com a vida de cada um, bem como do que estava acontecendo ao seu redor. O processo educacional de Wesley jamais buscou ser massificante. O mundo criado por Deus é um mundo racional, sensível ao entendimento. Entender e crer são aspectos importantes da mesma realidade. Nem sempre há coincidência entre entender e crer; muitas vezes, é preciso saber esperar. “A religião e a razão caminham de mãos dadas, toda religião sem a razão é falsa” Embora a ciência da lingüística não tivesse atingido o nível elaborado dos nossos tempos, Wesley tinha bastante consciência da complexidade da palavra e da necessidade de se conhecer ao máximo os recursos disponíveis a fim de penetrar, o mais próximo da sua substância, no seu sentido real. No prefácio escrito por Wesley às Notas explanatórias sobre o novo testamento , em janeiro de 1754, ele diz: “Podemos observar na linguagem dos Escritos Sagrados a maior profundeza, bem como a maior facilidade (...) e daí, o dizer de Lutero: ‘A teologia nada mais é do que a gramática da língua do Espírito Santo’. Para entendermos isso perfeitamente, devemos observar a ênfase que existe em cada palavra, os santos sentimentos ali expressos e o temperamento manifesto pelos escritores.”33 Método, o caminho da eficácia Para Wesley, as palavras precisam ser colocadas na sua dimensão histórica, para serem entendidas; afinal de contas, elas têm diferentes “ênfases”, expressam graus de “sentimentos” e manifestam o “temperamento’” do seu autor. Para Wesley, as palavras precisam ser colocadas na sua dimensão histórica, para serem entendidas James Richard Joy, em seu livro O Despertamento Religioso de John Wesley , intitula o II capítulo com a frase “Tal mãe, tal filho”, começando a primeira linha com a seguinte afirmação: “John Wesley era metodista desde o berço”35; e a ênfase que corre todo esse capítulo está centrada, exatamente, na extraordinária capacidade de vida metódica e organizada, cultivada por John Wesley, durante a totalidade de sua existência, e que ele aprendeu primeiramen- 32 Cartas, v. V, p. 364. Prefácio em Explanatory Notes Upon the New Testament Testament, item 12, p. 9. 34 Obras, v. XI. Demonstração clara e concisa da inspiração das Sagradas Escrituras Escrituras, p. 478-479. 35 James Richard Joy. O despertamento religioso de João Wesley Wesley, 1963, p. 30. 33 Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ 79 ○ ○ ○ Ano 12 - n0 22 - junho / 2003 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ te com sua mãe e com sua vivência no lar. Susanna Annesley Wesley teve 19 filhos, dos quais sobreviveram nove. Desde cedo, eles aprenderam a temer a vara e chorar suavemente. Cada um dos filhos, logo que pudesse falar, aprendia a oração do Pai Nosso; aprendia o alfabeto de cor e a escrever as letras maiúsculas e minúsculas, no dia do seu quinto aniversário; apenas duas filhas precisaram mais meio dia para vencer o aprendizado. Depois, eles entravam para a escola que funcionava no lar, sob a direção da própria Suzana, e as crianças maiores ajudavam a ensinar as menores; não era permitido qualquer interrupção das 9h às 12h e das 14h às 17h de cada dia. Sob a liderança firme, metódica, de Susanna, Wesley viveu no seu lar até os onze anos, quando foi para um estabelecimento de ensino do governo. O uso organizado do tempo, da distribuição de suas responsabilidades diárias, que Wesley aprendeu com sua mãe, ele cultivou plenamente no resto de sua vida. Em 1727, quando Wesley, na Universidade de Oxford, concluía os seus estudos para o grau de mestre em Artes, ele escreveu à Susanna, informando-a de seu plano metódico de estudos, que ele cumpria no uso programado de seu tempo. Nessa carta36, ele diz que dedicava as segundas e terças-feiras aos estudos gregos e latinos; as quartasfeiras aos estudos da lógica e da moral; as quintas-feiras aos estudos da língua hebraica e árabe; as sextas-feiras aos estudos de metafísica e da filosofia natural; os sábados aos estudos da retórica e da poesia; e os domingos aos estudos da teologia. Reservava tempo, ainda, para os estudos de matemática 36 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Cada um dos filhos, logo que pudesse falar, aprendia a oração do Pai Nosso Método, organização foram fatores essenciais na vida e obra de Wesley ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ e francês. Tinha tempo também para sua vida de oração, visitas, leituras de livros devocionais, prática de exercícios físicos diários. É bom lembrar que Wesley levantava diariamente às quatro horas, e deitava ao redor das onze horas da noite. Esse espírito metódico, organizado Wesley difundiu no “Clube Santo”, na Universidade de Oxford, desde 1729 até 1735, período em que o epíteto de zombaria “metodista” lhe foi atribuído e aos seus companheiros, pelos demais estudantes. Mais tarde, quando se desenvolveram as Sociedades Unidas, criadas por Wesley, o nome que receberam foi de “Metodistas”, exatamente pela prática regular e metódica de certos atos, caracterizando o movimento que haveria de se difundir por todo o mundo. Método, organização foram fatores essenciais na vida e obra de Wesley. Ele os entendia como sendo o caminho da eficácia. Praticamente em tudo em que Wesley se envolvia, ele imprimia de modo indelével uma metodologia organizada, sistemática. Ele requeria isso dos seus auxiliares, dos membros das sociedades, até mesmo das crianças que freqüentavam as sociedades ou as escolas que Wesley organizou. Mais do que em outras experiências, é no trato com as crianças que se sobressaem a eficácia e os exageros, se não mesmo a inabilidade em psicologia infantil, revelados por Wesley. Diz ele: “Há dois modos para escrever-se ou falar-se às crianças: um consiste em descermos até elas, o outro em elevá-las até nós. O Dr. Watts seguiu o primeiro modo, escrevendo com admirável sucesso, falando-lhes como criança, e deixando-as Obras, v. XII – Carta a Suzana Suzana, p. 9 Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ 80 ○ ○ ○ Ano 12 - n0 22 - junho / 2003 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ como ele as encontrou. Os seguintes livros [uma coleção de livros para crianças editados por Wesley] foram escritos seguindo o segundo modo; eles contêm sentido forte e másculo, mas em linguagem tão fácil que mesmo as crianças podem entendê-la; mas quando elas as entendem, já não são mais crianças, sendo-o apenas na idade e na estatura.”37 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ de cima. (...) que lugar delicioso; agora tudo está como eu desejo.”40 Aqui está o centro do problema na metodologia educacional de Wesley para as crianças; ele as via como pequenos adultos, e não como crianças propriamente. Nas escolas, nos grupos de crianças organizados nas sociedades, Wesley desenvolveu uma prática metódica, no ensino às meninas e aos meninos e aos adultos, também. Se é verdade o rigor na metodologia usada, não é menos verdade que todas essas exigências eram dosadas com um profundo manto de simpatia e amor. O fato concreto é que com Wesley e o Metodismo a população na Inglaterra, no século XVIII, cresceu consideravelmente no conhecimento, na educação e na cultura. A verdade reconhecida é a de que as crianças aprendiam, os adultos aprendiam e as famílias metodistas subiram rapidamente de classe social. Wesley realmente acreditava na eficácia do trabalho organizado, metódico, sistemático com as crianças, como oportunidade incomparável na formação de personalidade equilibrada, como semente plantada, que haveria de produzir os frutos necessários, na época própria. Foi constante na sua vida a inquietação e as providências, visando à educação religiosa, moral, científica, global das crianças. Em 1736, enquanto na Geórgia, em sua aventura missionária, trabalhando junto a uma escola para meninas e meninos, que organizou, Wesley redigiu um “catecismo para crianças”; por volta de 1740, nos primórdios do movimento metodista, na Inglaterra, ele preparou um manual Nas escolas, nos grupos de crianças organizados nas sociedades, Wesley desenvolveu uma prática metódica A escola Kingswood, fundada por Wesley em 1748, uma espécie de colégio-internato, onde as crianças e adolescentes eram admitidos, incluía um programa para uma educação ampla. Ali, Wesley desenvolveu uma disciplina rígida, espartana, de estudos e trabalhos. Não havia, porém, qualquer período de recreação, pois ele dizia: “Aquele que brinca quando criança brinca quando for homem”38. Wesley enfrentou muitos problemas com essa e outras escolas, no esforço de implantar a sua metodologia educacional. Em 1776, ele escreve: “Fui a Kingswood; depois de dizer tudo que tinha em mente dizer aos mestres e empregados, falei às crianças de maneira ainda mais forte do que nunca. Matarei ou curarei. Terei uma ou outra coisa; terei uma escola cristã ou nenhuma”39. Alguns anos mais tarde, Wesley volta novamente à sua escola de Kingswood e relata a visita que lá fez: “Aquele que brinca quando criança brinca quando for homem” “Achei a escola em excelente ordem. É agora um dos lugares agradáveis da Inglaterra. Achei tudo como desejava; as regras são observadas e o comportamento das crianças revela uma disciplina inspirada pela sabedoria que vem lá 37 Poesias, v. VI, Prefácio à edição resumida dos meios para crianças crianças, p. 369. James Richard Joy. Citado em O departamento religioso de João Wesley Wesley, p. 129. 39 Diário, v. V, p. 159. 40 John Wesley. Citado em Holland Metyeire, History of Methodism Methodism, p. 333. 38 Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ 81 ○ ○ ○ Ano 12 - n0 22 - junho / 2003 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ de instruções para crianças. Em 1748, na escola de Kingswood, cresce o trabalho com os pequenos, multiplicando-se as classes, nas diversas sociedades, bem como escolas, visando a sua instrução. Se o material didático usado na época não lhe parecesse bom, Wesley preparava pessoalmente gramáticas, manuais, edições novas e cuidadosamente revisados de autores clássicos, conforme aconteceu na própria escola de Kingswood41. Em 1768, durante a Conferência Anual das Sociedades, Wesley preparou cinco instruções, para serem observadas pelos pregadores, que se espalhavam por toda a Inglaterra, Irlanda e Escócia4 2: ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ siderava “uma doutrina cheia de blasfêmia” 43. Wesley aceita a liberdade como um dom intrínseco na natureza humana, conservada em alguma medida, mesmo após o pecado. No sermão sobre “A Libertação Geral”, Wesley afirma: “A imagem natural de Deus consiste nestes elementos: o poder de movimento próprio, o entendimento, a vontade e a liberdade”44. Esses quatro elementos têm um ponto central em comum, que é a liberdade. É exatamente o “abuso da sua liberdade”45 que levará o ser humano à queda e ao fracasso. Mesmo a reconciliação do ser humano com Deus e com seu semelhante supõe a sua liberdade, pois: “a sabedoria de Deus se mostra na salvação do homem, sem destruição da sua natureza, sem priválo da liberdade, que lhe foi dada”46. A idéia de “castigo e recompensa”, aspecto saliente na teologia de Wesley, só tem sentido na afirmação de que “toda recompensa bem como todo castigo pressupõe liberdade de ação, e sempre que uma criatura é incapaz de escolher, ela se torna incapaz de recompensa ou castigo”47. A primeira Conferência Anual do Movimento Metodista, acontecida em 1744, vai dar respostas a alguns problemas concretos, que estavam afetando a vida do “povo chamado metodista”. Essa Conferência institui, ela mesma, uma prática altamente significativa e salutar, na preservação e na dinamização da liberdade de idéias e de ação, que se têm tornado um verdadeiro símbolo dentro do Metodismo, tantas Wesley aceita a liberdade como um dom intrínseco na natureza humana “ 1. Seja do agrado ou não, devem passar uma hora semanal com as crianças; 2. Conversar com as crianças, sempre que as encontrassem; 3. Orar pelas crianças encarecidamente; 4. Instruir com diligência aos pais, e exortar a todos, veementemente, em suas casas; 5. Pregar, especificamente, sobre a educação das crianças.” Consciência, o limite da liberdade O melhor amigo de Wesley, Jorge Whitefield, liderara um movimento religioso que se torna um dos motivos de grande sofrimento para Wesley e uma oportunidade para um de seus mais persistentes conflitos religiosos, chamado a Controvérsia Calvinista. Wesley sempre se opôs à idéia predestinista da salvação, que ele con41 Mateo Lelièvre. Juan Wesley Wesley. Su vida y su obra, 1911, p. 303. José A. Piquinela. Una fiesta sin precedentes precedentes, 1980, p. 02. 43 Diário, v. VII, no Sermão A livre graça graça, p. 376-383. 44 Idem, v. VI, p. 242-244. 45 Idem, p. 271-272. 46 Idem, p. 326. 47 Obras, v. X, p. 361-363. 48 John Wesley. Sermões Sermões, v. II, p. 226; Jornal, VII, p. 389. 42 Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ 82 ○ ○ ○ Ano 12 - n0 22 - junho / 2003 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ vezes relembrado no dito de Wesley: “Penso, e deixo os outros pensarem”48. Uma das primeiras resoluções, definidas nessa Conferência foi: ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ No estudo do relacionamento do movimento metodista, das sociedades metodistas com a Igreja Anglicana, levantado na Conferência de 1744, ficou decidido, com aprovação de Wesley, que “se devia obedecer aos bispos anglicanos, em todas as coisas que fossem indiferentes, submetendo-se aos cânones eclesiásticos, dentro dos limites aprovados pela consciência”53. O grande problema que perseguiu Wesley a vida toda foi exatamente a conciliação, nem sempre fácil, de conseguir, entre a quase rigidez de seus métodos de educação e trabalho e a eficiente organização desenvolvida no Movimento Metodista. Organização que produziu uma notável infra-estrutura, com os desafios liberais e democráticos, resultantes de suas amplas convicções da liberdade humana, da autoconsciência individual, do direito de participação e debate sobre qualquer assunto. Tudo isso para se chegar às últimas conseqüências, na compreensão da verdade das coisas e da vida. No entanto, é inegável que Wesley conseguiu atingir um extraordinário índice de relacionamento dialético entre essas características dominantes na sua vida e na sua filosofia de educação. Mais que isso, Wesley imprimiu, na sua mensagem e no seu ensino, o significado superior da liberdade de consciência, como um valor a ser cultivado. Ele mesmo se submetia à correção por qualquer erro que viesse a cometer: “Penso, e deixo os outros pensarem” “É desejo que todas as coisas sejam consideradas na presença imediata de Deus; que nos reunamos com bons propósitos e como pequenos que têm de aprender tudo; que todo assunto seja examinado a fundo; que toda pessoa diga livremente o que sente, e que toda questão proposta seja discutida amplamente”49. Humildade, pesquisa, liberdade de expressão e discussão ampla são características que se sobressaem na resolução acima. É ainda nessa Conferência que Wesley vai enfatizar a importância da consciência, da autoconsciência como o limite da liberdade e responsabilidade humanas. Ao ser feita na Conferência a pergunta sobre: até que ponto deveria cada um submeter-se ao julgamento dos demais, Wesley respondeu, com a aprovação dos participantes: “Nas causas de caráter especulativo ninguém é obrigado a submeter-se, senão até onde suas convicções lhe permitam; mas, em assuntos práticos, devemos submeter-nos ao juízo dos demais até onde seja possível, sem violentar nossa consciência.”50 ○ Wesley conseguiu atingir um extraordinário índice de relacionamento dialético O próprio pecado, para Wesley, só pode ser entendido como algo referido à consciência humana: “O pecado propriamente dito é uma transgressão voluntária de uma lei conhecida”51. Ou ainda: “Estritamente falando-se, só é pecado a transgressão consciente de uma lei de Deus”52. “Mas, alguns podem dizer que tenha eu próprio errado o caminho, embora tomando o encargo de o ensinar aos outros. (...) Asseguro, porém, que onde 49 Diário, v. III, p. 144. Jorge Smith. History of Wesley and Methodism Methodism, v. I, 1859, p. 211. 51 Obras, v. XI, p. 396. 52 Cartas, v. V, p. 322. 53 Obras, v. VIII, p. 280. 50 Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ 83 ○ ○ ○ Ano 12 - n0 22 - junho / 2003 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ quer que eu tenha errado, minha mente está aberta para a convicção em contrário. Desejo sinceramente ser melhor ensinado. Digo a Deus e ao homem: aquilo que eu não sei, tu mo ensinas.”5 4 54 55 56 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ à capela que havia lá, liam livros selecionados para os prisioneiros, e de seus próprios recursos, juntamente com contribuições trimestrais de outros, eles construíram um fundo, para a compra de livros, remédios e outras coisas, que suprissem as necessidades dos prisioneiros, libertando alguns que estavam presos devido a pequenas dívidas55. Esse espírito intensamente prático Wesley vai expressar vigorosamente no movimento metodista. Seus seguidores precisavam não somente ser boas criaturas, mas também fazer todo o bem possível. Num sermão sobre “A imperfeição do conhecimento humano”, escreve Wesley: Práxis e frutos, a dinâmica da educação É inegável o fato de que Wesley foi sempre um homem prático, que entendia o valor de qualquer coisa ou verdade, na medida em que isso produzisse algum resultado significativo. Para Wesley, a verdade ou qualquer fato precisavam ter o seu sentido, a sua razão de ser, a sua função; enfim, precisavam ter a sua devida aplicação e produzir os necessários frutos. O ensino de algum princípio implicava na sua aplicação, e isso redundaria em resultados. Essa capacidade de aplicação e de obtenção de resultados é que determinará a importância do ensino, e a sua efetiva aplicação e os resultados alcançados é que identificarão a realidade do tema em questão. Em 1729, foi organizado o “Clube Santo” por Charles Wesley e alguns companheiros, na Universidade de Oxford; poucos meses depois, John Wesley volta a Oxford e assume a liderança do Clube. Era característico do programa o exame diário das ações durante o dia e dos planos para o dia seguinte. Em síntese, o plano de ação do Clube Santo era simples; eles distribuíam as tarefas para pequenos grupos; alguns conversariam com jovens da Universidade, visando a ajudá-los; outros instruíam e auxiliavam famílias pobres; outros ainda faziam o trabalho numa escola especial para crianças; alguns mais iam ao presídio da cidade e ○ Esse espírito intensamente prático Wesley vai expressar vigorosamente no movimento metodista “O desejo de conhecimento é princípio universal do ser humano, gravado na sua natureza mais íntima. (...) O atual conhecimento do ser humano (...) é suficiente para avisar-nos e preservar-nos da maioria dos males (...) e para provernos de tudo o que nos é necessário.”56 Essa é a tese pragmática de Wesley no que se refere ao conhecimento; ele é importante na proporção em que nos preserva, nos resguarda e nos supre. Na segunda Conferência de Diretores de Colégios da Igreja Metodista, realizada no Chile em 1952, foi feita uma afirmação, que corresponde ao juramento e à ação de Wesley no que se refere ao processo educacional: “Reconhecendo que as pessoas não podem participar na vida social, que as rodeia, não podem abrir a Bíblia para buscar a verdade e, por fim, não podem John Wesley. Sermões Sermões, v. I (Prefácio), p. 24. James Richard Joy. Op. cit., p. 23-24. Diário, v. VI, p. 337-338. Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ 84 ○ ○ ○ Ano 12 - n0 22 - junho / 2003 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ se salvar, se não são educadas. O Metodismo tratou de abrir as mentes das pessoas, (...) Desde o começo, a apreciação dos conhecimentos formou uma parte intrínseca da filosofia metodista.”57 É preciso “abrir a mente” das pessoas com os conhecimentos e a educação, afim de que elas possam participar da vida social, buscar a verdade e encontrar a sua reconciliação. Daí a importância de se selecionar e buscar o que é fundamental, separando das bagatelas e coisas secundárias. Escreve Wesley: É preciso “abrir a mente” das pessoas com os conhecimentos e a educação “Se tivéssemos pela frente muitos séculos de vida, poderíamos muito bem dedicar algum tempo ao estudo de bagatelas curiosas; mas sendo tão efêmera esta existência, seria malbaratar o tempo, empregando uma parte considerável dele em coisas que não trarão proveito imediato e seguro.”58 É essencial na pregação e no ensino de Wesley a valorização do prático sobre o teórico. Não que Wesley menosprezasse a teoria, a formulação de preceitos, a sistematização de princípios; porém o mais importante é ser a teologia uma reflexão sobre a prática da fé cristã, sobre a ética cristã. Na verdade, o Cristianismo é o povo praticando a fé cristã. Assim, reconhece-se a supremacia da prática sobre o escolasticismo, sobre o intelectualismo, sobre as especulações e sobre as teorias. Nesse sentido, Wesley distingue entre “opiniões” e “doutrinas essenciais”. As doutrinas essenciais estão relacionadas à realidade da prática da fé, na sua expressão concreta, no dia-a-dia da vida. As dou57 58 O Cristianismo é o povo praticando a fé cristã ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ trinas essenciais são aquelas que interferem, não apenas com a crença de alguém, mas com a sua conduta, o seu comportamento, o seu modo de ser e viver, quer em relação a Deus como ao próximo e a si mesmo. As doutrinas essenciais supõem confiança, segurança, firmeza, convicção. Elas revelam, de imediato, pela prática, os seus significativos resultados. As opiniões, enquanto opiniões, são meros ‘pontos de vista’, suposições, quando muito, possibilidades. Assim, Wesley e o Metodismo reforçam a prática da fé, do bem, das boas obras como critério para a avaliação de sua própria identidade e, também, como instrumento de sua validação. Deve-se começar com a “teoria da fé” ou com a “prática da fé”? Vemos que Wesley valorizou a teologia da cultura, na medida em que nela encontrou os elementos essenciais para desenvolver sua mensagem e seu ensino. É a partir da realidade concreta da vida do povo que Wesley encontrou os desafios, cujas respostas ele buscava na Bíblia e na vasta formação cultural que havia construído. A teorização posterior, a construção da teologia nada mais era que a organização na forma racional dos elementos da vivência da fé cristã e da vida humana. Na caminhada de Wesley, na organização do movimento metodista, ele foi reformulando suas tradições, na medida em que a experiência da prática assim exigia. Wesley aprendera que pregar ao ar livre era profanação da Palavra de Deus, até que mostrou ser uma graça divina. Wesley aprendera que somente o clérigo consagrado podia pregar a mensagem, até que os leigos provaram na prática que isso era abençoado por Deus. Jane Hahne. El Missionero y La Escuela Confessional, 1952, citado em Objetivos de las escuelas metodistas metodistas, p. 49. Obras, v. XII, p. 9. Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ 85 ○ ○ ○ Ano 12 - n0 22 - junho / 2003 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ É claro que Wesley buscava encontrar, na Bíblia e no testemunho e conselho de Susanna e amigos leais, argumentos que lhe ajudassem a tomar essas decisões. É inquestionável, no entanto, que o espírito prático de Wesley constituía a força decisiva para as mudanças que foram acontecendo no seu ministério da pregação e do ensino. A prática da educação de crianças e de adultos, incluindo o preparo dos pregadores, visava sempre a preparar as pessoas para a transformação de suas vidas para melhor se qualificar para a sua sobrevivência e para subir na escalada social. E assim aconteceu. A mensagem e o ensino endereçados para a grande maioria das pessoas pobres, analfabetas e de vida moral enfraquecida produziu em um século a formação de uma estável comunidade de classe média, nos metodistas da Inglaterra e, também, em várias partes do mundo. ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ O espírito prático de Wesley constituía a força decisiva para as mudanças que foram acontecendo no seu ministério Educação contínua, a solução A educação formal, nos dias de Wesley, era realmente um privilégio, concedido a um grupo muito pequeno, entre os de família nobre e os de família rica. Excepcionalmente, alguém de família pobre – como era o caso dos Wesley –, mediante bolsa de estudo ou trabalho, usufruía da oportunidade de ir à escola. A grande maioria do povo era gente pobre e ignorante. O movimento metodista vai contribuir de maneira decisiva para diminuir, em muito, a ignorância dessa gente. Isso foi feito por meio das muitas escolas que se criaram a partir de John Wesley mas, também, de modo impressionante, pela educação 59 60 A grande maioria do povo era gente pobre e ignorante ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ de adultos, por meio de processos os mas variados, dentro do que poderíamos chamar “educação não-formal”. Múltiplos foram os estímulos intelectuais usados por Wesley na consecução desse objetivo, partilhados com milhares de pessoas, que se uniram, ou não, ao movimento metodista. Como o próprio Wesley afirmava: “Os metodistas poderão ser pobres, mas não há necessidade de que eles sejam ignorantes” 59. É essa visão educacional que levará Wesley a desenvolver uma imensa atividade libertária, com publicações de toda a espécie, a fim de colocar esses recursos ao alcance do povo pobre e dos seus colaboradores. Wesley publicou mais de duzentas obras, escritas por ele ou compendiadas, incluindo biografias, livros, obras místicas, histórias, sermões, obras didáticas de todo o tipo. Assim ele produziu folhetos, livretos, revistas, opúsculos, livros e coleções. Quando Wesley “foi levado à sepultura por seis pessoas pobres, nada deixou senão uma boa biblioteca, uma bem gasta sobrepeliz, uma reputação muito vilipendiada, e a Igreja Metodista” 60. É assim que o escritor Fitchett vê o fim terreno de Wesley. Morreu pobre, como era seu desejo, mas legou ao mundo aquilo que fora essencial no desempenho da sua extraordinária obra educacional e evangélica: o acervo da sua notável biblioteca. Podemos acompanhar com segurança o caminho de um pobre ignorante que fosse alcançado pela mensagem metodista. Ele começava com a leitura da Bíblia, se soubesse ler; caso contrário, tinha de aprender a ler, e a Bíblia era o seu livro-texto; depois vinham os sermões de Wesley, os hinos de Charles e, então, os tratados John O. Gross. La Iclesia Cristiana y La Educacion Superior, in: Objetivos de las escuelas metodistas metodistas, op. cit., p. 81. W. H. Fitchett. Wesley e seu século século, v. I, 1927, p. 05. Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ 86 ○ ○ ○ Ano 12 - n0 22 - junho / 2003 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ sobre os mais diversos assuntos; depois mais, ele se confrontaria com a “Biblioteca Cristã”, organizada por Wesley, e que devia fazer parte de cada sociedade, contendo uma seleção de livros, visando a um aprimoramento intelectual sistematizado. Essa tremenda pressão sobre as faculdades mentais do povo comum colaborou decisivamente na demanda, mais tarde parcialmente e formalmente satisfeita, por escolas públicas gratuitas, que se espalharam pela Inglaterra. Wesley sempre demonstrou uma preocupação acentuada com o preparo intelectual dos seus ajudantes leigos, a quem pedia para estudarem continuamente, seguindo um plano elaborado por ele. O próprio Wesley, sempre que tinha oportunidade, aproveitava as ocasiões para estudar juntamente com algumas pessoas, a fim de estimulá-las. Certa ocasião em 1747, ele escreve: “Durante esta semana, estudei em companhia de alguns jovens um compêndio de Retórica e outro de Ética. Eu não vejo porque um homem de inteligência mediana não possa aprender em seis meses uma sólida filosofia, mais do que se aprende em Oxford em quatro anos e, em algumas vezes, em sete anos de estudos.”61 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ A educação, para Wesley, jamais foi entendida como um instrumento apenas para a preparação secular de alguém, ou visando à conquista de uma profissão, para usufruir bens materiais e crescer na escala social da vida. A educação era um instrumento divino para o humano, do cristão. Estudar é libertar-se da ignorância e do erro, bem como crescer na graça e no conhecimento de Deus e do mundo, criação de Deus, e de tudo o que nele há. Essa compreensão do lugar da educação na economia de Deus é que nos ajuda a entender melhor o intenso amor de Wesley pela educação, especialmente a educação continuada. Educação é um processo dinâmico; é a descoberta e conquista das riquezas de Deus. Educação é um processo dinâmico; é a descoberta e conquista das riquezas de Deus Conclusão Podemos afirmar que John Wesley foi um notável pregador e, igualmente, um extraordinário professor. Ele não buscava alcançar apenas o coração, o sentimento, as emoções da pessoa; ele não buscava massificar o evangelho, na vida de seus seguidores; ele não buscava o superficialismo da fé, da vida interior. Na verdade, Wesley buscava alcançar a compreensão mais profunda possível da fé cristã, de tal sorte que o crente assumisse conscientemente a plenitude do desafio da vida nova, de amor a Deus e amor ao próximo. Wesley entendia Deus como um ser de amor e inteligência. É verdade que o pecado havia destruído a imagem do amor e da sabedoria de Deus, no ser humano. O próprio Wesley afirmava: O ser humano nasceu para crescer, e crescer sempre “Não há perfeição em grau, como se diz; nenhuma há que não admita crescimento. Quanto mais alto tenha subido o homem, por mais elevado 62 ○ que seja o grau de sua perfeição, ele ainda tem necessidade de crescer em graça e avançar diariamente no conhecimento e no amor de Deus.”62 O fundamento, em Wesley, da educação continuada, seja secular, seja bíblica, está na sua convicção teológica de que o ser humano nasceu para crescer, e crescer sempre. É ele quem afirma: 61 ○ Diário, v. III, p. 284. Sermões, v.. II, p. 286. Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ 87 ○ ○ ○ Ano 12 - n0 22 - junho / 2003 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ “Além da semelhança com o seu criador, o homem foi dotado de entendimento – capacidade de apreender todas as coisas, que se lhe antolham, e de fazer julgamento a respeito dos mesmos.”63 (...) “A imagem natural de Deus consiste nestes elementos: o poder de movimento próprio, o entendimento, a vontade e a liberdade.”64 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ trói o caminho da reconciliação com Ele. O ponto de partida é a graça preveniente. Segue-se a graça justificante e a graça santificadora. O ser humano vitaliza a sua semelhança e imagem de Deus. Em Cristo, a dignidade humana é refeita. Coração e razão trabalham na sua plenitude. Wesley sabe que a pregação e a educação, a mensagem e o ensino são a base para a edificação da nova vida, nascida em Cristo. É essa convicção teológica que leva Wesley a insistir na necessidade da educação. Ele é um pregador que educa, um educador que prega. E isso ele requer dos seus companheiros de trabalho e de todos os seus seguidores. É tão forte a presença da educação no movimento metodista que, ao espalhar-se pelo mundo, valorizou e valoriza a libertação do ser humano de toda a ignorância. Hoje, no Brasil, o povo metodista batalha pelo seu crescimento cultural e educacional; a força numérica educacional metodista é aproximada à força numérica, econômica e organizacional das congregações metodistas. Mas Wesley continua: o pecado corrompe a totalidade do ser humano; e da raiz do pecado cresce a descrença, o orgulho, a vaidade, a ambição, a cobiça, a ira, o ódio, a malícia, a vingança, a inveja, o crime. Isto é: “O ser humano está num profundo sono; os seus sentidos espirituais não estão acordados; eles não discernem o bem do mal. Os olhos do seu entendimento estão fechados (...) ele está numa ignorância grosseira e estúpida de tudo aquilo que deve conhecer.”6 5 Então a graça, o livre amor de Deus, a misericórdia de Deus recons63 John Wesley. Sermões Sermões: a libertação geral, conforme citado em Burtner e Chiles: Coletânea, p. 110. Idem, p. 111. 65 John Wesley. Sermões Sermões, v. II, p. 374. 64 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Referências bibliográficas BURTNER e CHILES. Coletânea da teologia de João Wesley Wesley. São Paulo: Imp. Metodista, 1960. CAMERON, R. M. Methodism and Society in Historical Perspective Perspective. Nashville: Abingdon Press, 1911. CARTER, H. The Methodist Heritage Heritage. London: The Epworth Press, 1951. FITCHETT, W. H. Wesley e seu século século. Porto Alegre: Carlos Echernique, 1916. Wesley. São Paulo: Imp. Metodista, 1963.x JOY, J. R. O despertamento religioso de João Wesley LELIÉVRE, M. Juan Wesley. 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