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Em busca do Éden Eldorado. A utopia de Cristóvão Colombo na interpretação de Ernst Bloch Suzana Guerra Albornoz Universidade de Santa Cruz do Sul (Brasil) Resumo Este breve ensaio visita trechos da obra O princípio esperança, de Ernst Bloch, onde, considerando a experiência de Colombo como exemplo de utopia geográfica, Bloch escreve sobre o sonho de cunho religioso – a busca do Paraíso –, à luz do qual o navegador a serviço da Espanha descobriu a América. Termina perguntando sobre a possibilidade de um olhar diferente sobre a relação entre as esperanças dos descobridores e o Novo Mundo, que não era o Paraíso. Palavras-chave Ernst Bloch, Colombo, utopia. Nascida em 1939, Suzana Guerra Albornoz é oriunda de Sant’Ana do Livramento, na fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguay. Graduada em Ciências Sociais (PUCRS), mestre (UFRGS) e doutora em Filosofia (UFMG), com estudos em História (EHESS-Paris), lecionou Ética e Política nas Universidades de Rio Grande (FURG) e de Santa Cruz do Sul (UNISC), onde ainda colabora no Mestrado em Educação. Entre outros, publicou Ética e utopia (Porto Alegre, 2ª ed., 2006) e O que é trabalho (São Paulo, 6ª ed., 2008), além do romance Maria Wilker (Florianópolis, 1983). Atualmente reside em Porto Alegre. Suzana Guerra Albornoz O ¹ Ernst Bloch, nascido em 1885 em Ludwigshafen, Alemanha, de origem judaica, como tal acompanhou as vicissitudes do século XX, tendo vivido períodos na Suíça e nos Estados Unidos. Após longo exílio, em 1949, retornou à Alemanha Oriental, onde permaneceu até a construção do muro de Berlim. Veio a falecer em Tübingen, então Alemanha Ocidental, em 1977. ² Das Prinzip Hoffnung, no seu todo, foi publicado pela primeira vez em alemão em 1959, pela Suhrkamp, Frankfurt. Traduzido para várias outras línguas nos anos setenta e oitenta do séc.XX, no Brasil o vimos publicado em português em 2005 e 2006, em tradução de Nélio Schneider (vols. 1 e 3) e Werner Fuchs (vol. 2), pelas editoras Contraponto e EdUERJ, Rio de Janeiro. ³ Páginas que nos inspiram e fundamentam neste ensaio, embora sem a formalidade de muitas citações. Aqui lembramos e redizemos, sobretudo, as páginas 299-328 do volume II, de 2005. 84 cerne das utopias é um desejo que habita nosso coração: a aspiração a um mundo melhor do que este, contingente e sofredor, em que vivemos. Nos tempos em que se anunciava a modernidade, na época das grandes navegações que acompanharam a grande transformação e o movimento criativo nas artes e nas ciências europeias que se veio a chamar de Renascimento, foi determinante essa capacidade de sonhar e de buscar o mundo novo mais perfeito, desejado e esperado. Inspirada pelas descobertas dos navegadores, e revigorando o ímpeto dos que se lançavam ao mar, um pouco por toda parte, a esperança nesse mundo novo tomou a forma de uma ilha imaginária e exemplar, entrevista ou descoberta no meio do oceano, como o exemplificam, de modo pioneiro, a Utopia de Morus, a Nova Atlântida de Bacon, a Cidade do Sol de Campanella. Algumas dessas famosas ilhas alegóricas ou lendárias, como a de São Brandão, ou a do reino do Padre João, tiveram talvez alguma base histórica real, mas cresceram em detalhes e em variedade de versões pelo trabalho da imaginação de muitos, indicando o que o filósofo da utopia, Ernst Bloch¹, denominou de “utopias geográficas”. O magnífico tratado das utopias intitulado O princípio esperança², considerado a obra-prima de Ernst Bloch, faz o inventário dos sonhos humanos que deram origem aos movimentos de mudança ao longo da história do ocidente, em especial, na era moderna. Nessa obra, ao interpretar as mais diversas manifestações da capacidade humana de sonhar e desejar o novo, o autor escreve à luz de uma teoria ontológica e antropológica que considera a imaginação voltada para o futuro como faculdade capaz de antecipar o possível real, e sob essa luz, valoriza as utopias como uma espécie de conhecimento e sinalização do futuro possível, também do ponto de vista político e ético. Na Parte IV de O princípio esperança, chamada “Esboços de um mundo melhor” – que foi antes pensada como uma obra específica e idealizada sob essa denominação –, entre as diversas utopias que reconhece, Bloch começa por distinguir as propriamente literárias das utopias médicas ou da saúde, impulsionadas pelo sonho de superação do limite físico, da dor, e, talvez mesmo, da morte. A seguir, considera detidamente os projetos de reformas sociais que outros autores denominam de “utopias práticas”, uma das produções mais reconhecidas dos utopistas, para ir firmar sua lente sobre as utopias arquitetônicas, que se inspiram nos arquétipos do cristal, como as pirâmides, ou da árvore da vida, como as catedrais góticas. Além delas, focaliza as utopias técnicas, que em nosso tempo têm evidente relação com a realidade, mesmo quando dão origem a utopias viradas pelo avesso, anti ou contrautopias. Por fim, o filósofo destaca muito especialmente as utopias religiosas, que expressam a sede de Absoluto e buscam o Reino de Deus, à espera do Messias, ou na expectativa da implantação do Milênio. Nessa verdadeira aventura literária, em que desenvolve uma rica reflexão sobre todas as variantes da utopia no plano da história contada e vivida, em todas as dimensões da existência humana inclusive no cotidiano, Bloch apresenta páginas inesquecíveis sobre o que chamou de utopias geográficas3, quando o navegador luta contra os perigos do oceano desconhecido e temido, em busca – nada mais, nada menos que – do Éden4 situado, quem sabe, ao lado MORUS - Utopia e Renascimento, n. 7, 2010 EM BUSCA DO ÉDEN ELDORADO de Eldorado5. Junto com o sonho do reencontro do Éden, a descoberta do Eldorado configura a mais perene utopia geográfica. As utopias geográficas no Princípio Esperança As utopias geográficas, dentro da fenomenologia dos sonhos humanos que é a obra de Ernst Bloch, têm sua origem e sua alma na busca do paraíso perdido6. Do ponto de vista filosófico, a descoberta aparece ao pensador como o conteúdo específico da esperança geográfica. Há uma base antropológica para a busca do novo, do outro lugar, e a descoberta vai coroar essa busca. É natural querer deixar um lugar que está cheio de problemas e carências; por outro lado, não é fácil abandonar este lugar; por isso, idealiza-se o lugar perfeito, o outro lugar, essencialmente outro, e esperase encontrar esse “milagre” ao longe. Uma distinção entre dois conceitos nos ajuda a entender o que se afirma pela obra do navegador pioneiro: a invenção e a descoberta. O impulso para o novo leva à invenção, enquanto na descoberta aparentemente não surge o novo, apenas se encontra algo que estava escondido, desconhecido. Enquanto a invenção exige transformação, na descoberta, o que estava desapercebido se apresenta e se integra como novo elemento para um outro mundo, uma outra realidade. No entanto, o fato de descobrir o que não se apresentava antes também provoca transformação, e assim, de certo modo, a descoberta acarreta a invenção: enquanto encontra e mostra, a descoberta também inventa, criando um mundo de novos contornos, novas dimensões, novas possibilidades. Por isso, a diferença é só aparência, porque a descoberta também transforma. O navio que chega às Caraíbas não inventa as ilhas e as enseadas, só as descobre para a consciência dos descobridores. O descobridor é uma forma de observador que contempla o universo que antes não fora visto e nele observa suas características a ponto de dar-lhe um nome: ilha de Santa Maria, monte do Redentor, cabo da Boa Esperança. Quem descobre tira o véu que até então ocultava o objeto descoberto, e revela – para seus semelhantes, companheiros de época e de latitude, seus conterrâneos – algo que já existia, que só é novo do ponto de vista do descobridor, mas que, ao ser descoberto, transforma o mundo de referência do descobridor. Por meio do descobridor observador, os sonhos que envolvem a geografia se dobram diante de fatos reais. Mas a tendência é ir cada vez mais longe. Assim como o impulso para o progresso técnico empurra as descobertas científicas ou invenções tecnológicas, também o impulso para descobrir leva sempre adiante. Assim como em 1500 buscava-se o caminho para as Índias, em 2000 perseguem-se as hipotéticas civilizações extraterrestres. Mitos variados envolvem as utopias geográficas e os lugares maravilhosos ou terríveis que elas visitam. Os exemplos são muitos: as lendas sobre as Colunas de Hércules e o limite do ocidente; contos de Ulisses – de Homero, como o da casa dos Feácios, ou o do velo de Ouro, de Jasão, na mitologia grega. Contos árabes, como o de Simbad, o marujo. Lendas bretãs, como a do Santo Graal, na Inglaterra do Rei Arthur. Comum a todos é que ao longe se encontra o mundo fabuloso, o tesouro milagroso, desaparecido: sinal da primavera da Terra, do paraíso perdido. O Éden, primeiro Paraíso na tradição bíblica, é comumente definido como “área legendária onde, de acordo com o Antigo Testamento, Deus plantou um jardim para Adão, o primeiro homem, morar. Lá cresceu a árvore do conhecimento e a árvore da vida. Lá ocorreu a queda do homem”. Reconhecem-se interpretações teológicas do Éden, como o lugar da passagem da inocência ao estado de pecado, atribuída à hybris humana, à ambição “do conhecimento do bem e do mal”. Conforme as versões mais ligadas à Bíblia, o Éden estaria situado a leste da Palestina, talvez na fonte dos rios Tigre e Eufrates, ou sobre uma montanha ao sul. Na realidade, o lugar em que se esperou encontrar o paraíso terrestre mudou conforme as épocas e as tradições. 4 5 Eldorado, na verdade, era apenas uma das muitas regiões míticas de grande bem-estar, mas sua busca contribuiu significativamente para a exploração-ocupação da maior parte do hemisfério sul pelos espanhóis e outros europeus. Em busca do Eldorado, Pizarro cruzou os Andes, em Quito (1539). Francisco Orellana navegou o Napo e o Amazonas (1541-42). Gonzalo Jiménez de Quesada explorou o lado este de Bogotá (156972). Walter Raleigh tentou encontrar Manoa nos baixios do Orinoco (1595), enquanto ali também os espanhóis procuravam Omagua. Em 1603, o português Pero Coelho de Souza explorou as regiões ao norte de Pernambuco e a cidade dourada de Eldorado era mostrada em mapas do Brasil e das Guianas durante muitos anos desde então. Eldorado, na realidade, passou a ser usado para dizer qualquer lugar onde se pode enriquecer fácil e rapidamente, e cidades concretas na América, norte e sul, tomaram esta denominação. Há abundante menção de Eldorado na MORUS - Utopia e Renascimento, n. 7, 2010 85 Suzana Guerra Albornoz Um grande sonho movia a viagem de Colombo literatura, como, p.ex, na obra Paraíso perdido, de Milton (VI, 4112). 6 Bloch, 2006, v. 2, p. 299 e ss. Sob o que Paul Ricoeur, em Philosophie de la volonté, denomina de “mito adâmico”. 7 86 O sonho que movia a viagem de Colombo era o mais antigo e tinha aparecido antes sob muitas formas. Os gregos imaginavam mundos em contraste: nas lendas, os “lugares sem problemas” se situavam ao lado dos mais aterrorizantes. Ao lado e além das Colunas de Hércules, temia-se encontrar o “mar coagulado”. O medo do Atlântico reforçava o medo do ocidente. No Atlântico, logo após o estreito de Gibraltar, quando o navio se afasta da costa de Portugal ou da África, dizia-se, encontrar-se-ia um mar de sargaços, de grandes algas que impediriam a navegação – um mar viscoso, de obstáculos enredados e envolventes, mergulhado em noite eterna. O medo do Atlântico teria sido difundido pelos Fenícios que, assim, incentivando os medos, afastavam os concorrentes gregos, romanos, árabes. O medo por muito tempo foi a maior objeção à busca da rota marítima ocidental para o país maravilhoso das Índias. Em longa tradição, o ocidente era temível e o oriente representava a esperança. Isso talvez se compreenda pelo fato simples e natural de que o oriente é onde o sol nasce e renasce, e o ocidente, onde o sol se põe, portanto, “morre” para o nosso dia, os nossos olhos. Apesar das diferenças existentes entre as diversas tradições que se encontram na raiz de nossa cultura, parece presente a todas o sonho de um lugar e um momento de perfeição na origem do homem. O que os gregos entendiam como Idade de Ouro, uma ilha da felicidade, irrecuperável, perdida no passado, a tradição judaica nos descreve como o estado original de pureza e conformidade com a vontade divina, o Éden, essa ilha da felicidade absoluta, primeiro paraíso, também perdido, passado; todavia, na tradição bíblica7, a perfeição original poderia ser esperada, recuperada ou encontrável no futuro, segundo a tendência do messianismo ou do milenarismo cristão. A tradição judaica conhece a figura de um segundo paraíso: o País de Canaã, cheio de riqueza – vinho, leite e mel –, a Terra Prometida, Terra da Aliança, substituta do Éden, o primeiro paraíso perdido pelo pecado. A Terra Prometida é reencontrada pela Aliança. Canaã é dada ao povo escolhido e este reencontra pela Aliança algo parecido ao Éden. No cristianismo, também se manteve por muito tempo a crença na existência concreta de um paraíso terrestre, ainda que impenetrável. Este estaria situado no hemisfério sul da Terra (conforme Clemente de Alexandria), longínquo e inacessível. Para os cristãos, por muito tempo o jardim do Éden foi considerado localizável, mas só era permitida sua aproximação, a entrada era proibida, o que aparece em contos inúmeros, como “O romance de Alexandre”, de Pseudo-Calisteno, em 200 d.C. A localização do paraíso terreno permaneceu como objeto de dúvida e especulação. A versão mais corrente o situava no oriente, ou perto de Jerusalém, mas tais crenças se cercavam de contradições. Se, na tradição grega, as “ilhas de felicidade” encontravam seu lugar no Atlântico, no ocidente proibido, e na tradição da Bíblia, o Éden era associado a Canaã e Jerusalém, deslocando-se para o oriente, na descendência dessa esperança dentro do cristianismo, o paraíso foi afastado para o longínquo inalcançável, acabando por ser transferido para um lugar indeterminado, associado com o extremo oriente. MORUS - Utopia e Renascimento, n. 7, 2010 EM BUSCA DO ÉDEN ELDORADO Na maneira de ver de Bloch, Colombo teria tido a determinação e a coragem para lançar suas naus às águas do Atlântico, que encerravam a expectativa de tão terríveis ameaças, porque o navegador carregava, além da tripulação de marinheiros corajosos e dos víveres para alimentá-los, uma esperança fortemente religiosa; neste sentido, suas motivações mais profundas podem ser identificadas com a busca do Éden, tal como o sonhara o cristianismo na Idade Média. As muitas lendas amedrontadoras sobre o oceano Atlântico, e a força dessas crenças como obstáculo à navegação, parecem amplamente estabelecidos. É o que de outra forma exprime, por exemplo, Eduardo Galeano, quando começa a construir sua famosa tese sobre a pobreza e a riqueza da América Latina8. Por outro lado, a busca do Éden, ao tempo das viagens de Colombo, tinha longa tradição. Mesmo nas utopias sociais aparecia “a ilha da felicidade” como uma terra longínqua, vislumbrada ao horizonte, não apenas imaginária, realmente existente, mas distante, inalcançável, sempre adiante. O objetivo para o qual se viaja, quando Colombo viaja, é uma realidade longamente esperada: o “Novo Mundo”, os “Novos céus e Nova Terra”, muito parecidos com aqueles vistos em transe no Apocalipse. Sua base religiosa era bíblica. O objetivo de Colombo se identificava também com a espera da volta do Cristo, da nova forma do paraíso, do mundo redimido. Em seu balanço do que sobrou do paraíso nas esperanças do homem de hoje, Jean Delumeau9 rememora a passagem da tradição judaica ao paraíso cristão durante o período medieval, quando cita o poema de Giacomino da Verona sobre a cidade celeste, onde o autor insiste na associação da Jerusalém eterna ao maravilhoso dos jardins, às águas, à vegetação e aos pássaros coloridos que a animam e embelezam. A evocação desse poema me parece ilustrar bem o conteúdo da utopia do Éden que Bloch atribui a Colombo10. O caráter da motivação de Colombo é propício a dúvidas e polêmicas. Aliás, embora Cristóvão Colombo tenha sido o mais importante navegador europeu da época da Renascença – e suas viagens, ao longo dos séculos, aparecem como decisivas para a mudança da forma do mundo conhecido – sua verdade histórica se cerca de polêmicas. Ainda hoje, o personagem pode ser apresentado como enigmático11. Em geral, considera-se que nasceu em Gênova, na Itália, mas há quem se impressione pelo fato de ter vivido e formado família em Portugal, realizando suas viagens e descobertas sob a bandeira da Espanha. E assim como não se comprova cabalmente seu lugar de nascimento, também o lugar em que repousam seus restos é alvo de dúvidas, o que confere ao personagem uma aura de mito e idealização. Ainda se duvida se o seu corpo se encontre sepultado na catedral de Santo Domingo, ou se na tumba da Catedral de Sevilla12. Parece de consenso, no entanto, que Colombo morreu julgando haver descoberto o caminho ocidental para as Índias. Ele não teria tido consciência exata do continente em que havia aportado e do qual havia descoberto ilhas, rios, montes, portos de terras ricas e promissoras que batizou com nomes em homenagem à fé cristã e à Espanha, que lhe dera bandeira para suas viagens. É claro, não se devem esquecer as motivações econômicas tão reais, como a busca dos “Quando Cristóbal Colón se lanzó a atravesar los grandes espacios vacíos al oeste de la Ecúmeno, había aceptado el desafio de las leyendas. Tempestades terribles jugarían con sus naves, como si fueran cáscaras de nuez, y las arrojarían a las bocas de los monstruos; la gran serpiente de los mares tenebrosos, hambrienta de carne humana, estaría al acecho. Sólo faltaban mil años para que los fuegos purificadores del Juicio Final arrasaran el mundo, según creían los hombres del siglo XV, y el mundo era entonces el mar Mediterráneo con sus costas de ambígua proyección havia el África y Oriente. Los navegantes portugueses aseguraban que el viento del oeste traía cadáveres extraños y a veces arrastraba leños curiosamente tallados, pero nadie sospechaba que el mundo sería, pronto, asombrosamente multiplicado” (Galeano, 2010, p. 27). 8 9 Delumeau, 2003, p. 120 e ss. “As águas e as fontes que correm na cidade/ São mais belas que prata e ouro fundido;/ Tomai como certo que quem delas beber/ Nunca mais poderá morrer e não terá mais sede./ Ainda no meio dela corre um belo rio/ Que é cercado de um imenso verdor,/ De árvores e de lírios e de outras belas flores,/ Rosas e violetas, que dão grande perfume./ Claras são as ondas, mais que o sol brilhante,/ Rolando pérolas de ouro fino e de prata,/ E, de todo o tempo e sempre mais, pedras preciosas,/ Semelhantes às estrelas que estão postas no firmamento,/ Cada uma das quais tem tal virtude/ Que fazem retornar um homem velho à juventude,/ E o homem que jaz há mil anos sob o monumento/ A seu contato levanta-se vivo e são./ Ainda: os frutos das árvores e dos prados,/ Que estão situados na margem à beira do rio./ Só de os provar, os doentes 10 MORUS - Utopia e Renascimento, n. 7, 2010 87 Suzana Guerra Albornoz curam-se,/ E elas são mais doces que mel e que qualquer outra coisa./ De ouro e de prata são as folhas e os troncos/ Das árvores que dão esses doces frutos;/ Florescendo todas doze vezes por ano,/ Jamais perdem suas folhas nem se tornam secas./ E cada uma é tão perfumada/ Que seu aroma é sentido a mil milhas ou mais;/ Assim, a cidade inteira, dentro ou fora,/ Parece repleta de cinamomo e de menta./ Calhandras, rouxinóis e outros belos pássaros/ Cantam dia e noite em seus arbustos,/ Fazendo seus versos mais justos e mais belos/ Do que fazem violas, rotas e chamarelas./ Lá no alto dos bosques e os pomares são sempre verdes,/ Nos quais se distraem os santos cavaleiros,/ Que jamais têm queixa nem preocupação,/ Exceto abençoar o Criador do céu” (...). Ver, por exemplo, Rodrigues e Teveza, 2007, p.80: A identidade de Cristóvão Colombo – Cristóbal Colón, para os espanhóis, Cristóforo Colombo, para os italianos – continua a verter tinta. 11 12 Ibid. 13 Bloch, 2006, vol. 2, p. 325. Ao falar de vento da origem, neste contexto, não se pode deixar de lembrar a Tese sobre a história, de Walter Benjamin, que dialoga com o Anjo de Paul Klee: “Há um quadro de Klee que se chama Ângelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está voltado para o passado. Onde aos nossos olhos surge uma sucessão de acontecimentos, ele vê apenas uma única catástrofe, que vai acumulando destroços sobre destroços, lançando-os a seus pés. O anjo gostaria de se demorar, despertar 14 88 produtos comercializados do Oriente, da Índia e da China, as especiarias variadas, e a cupidez pelo ouro que habitava os segredos de muitos dos seus seguidores; contudo, parece bastante aceito que não se podem reduzir as motivações de Colombo a metas materiais, sendo reconhecido por todos seu caráter extremamente religioso, à beira do fanatismo. Em meio à incerta compreensão que a história mantém do desbravador do Atlântico, Bloch ilustra sua teoria sobre as utopias geográficas, interpretando-o como portador de um grande sonho religioso. Na lente de Bloch, Colombo não teria sido apenas um ousado navegador, mas um grande sonhador e, desse modo, podemos localizá-lo no mar das utopias, entre as viagens dos míticos contempladores da Ilha de São Brandão. Colombo não teria feito suas viagens em busca apenas do caminho das Índias pelo Ocidente, apesar de realmente pensar ter encontrado o outro lado daquele oriente. Em sua alma religiosa, o navegador buscaria o Éden; movia-o a esperança mais radical, mais profunda, a obsessão mística do homo religiosus; ou seja, acreditava na existência terrestre do paraíso e o supunha posto desse lado do oriente, que exigia a passagem pelo ocidente para quem partia da Europa. Colombo buscava a utopia em seu sentido positivo. Em suma, o ousado navegador seria, sobretudo, um utopista. As descobertas anteriores haviam ficado sem consequências, e ainda que outros europeus houvessem antes aportado em terra americana, foi preciso um projeto, uma antecipação imaginária – uma utopia –, para que a descoberta pudesse entrar na história. Sob a expedição de Colombo, o objetivo era a descoberta da Terra Nova, a Nova Terra. Como já dissemos, também foram importantes causas econômicas, políticas e comerciais da expedição, sobretudo as contidas nas intenções daqueles que o apoiavam, como a monarquia da Espanha e, quem sabe, os banqueiros de Gênova. Todavia, as mais profundas bases para a navegação de Colombo não se reduziriam a essas causas materiais, que não explicam tudo. O Almirante viajaria, nada mais, nada menos do que em busca do paraíso terrestre: o Éden encontrado em Eldorado, o Eldorado encontrado no Éden. O vento das caravelas não só soprava em direção da utopia; soprava desde a utopia13, vindo da origem sonhada, que é de onde vem o vento das utopias14. E só a fé na existência do Paraíso Terrestre teria feito com que Colombo pudesse superar o Terror do Atlântico. E ainda: segundo Bloch, mais do que renascentista, movido pela busca do retorno aos valores da Antiguidade, Colombo seria um crente quiliasta, movido pela esperança no Milênio. A inspiração da navegação colombiana, por isso, deveria ser interpretada sobre o pano de fundo da “consciência do Advento”. O horizonte terrestre foi ampliado com as navegações, mas o ponto oriental e solar da criação15 que se buscava era aquele, mais alto, que deveria elevar a Terra e aproximá-la do Céu, o ápice da Terra16. Colombo se enganou, é verdade. Os enganos de Colombo foram “utopias” no sentido negativo, quando pensava haver chegado às Índias, ao Oriente, cujas evocações, muito embora, foram próximas do Éden. Um bando de papagaios, ou seja, o acaso, teria feito com que desviasse a expedição mudando o curso de oeste para sudeste. Assim aconteceu MORUS - Utopia e Renascimento, n. 7, 2010 EM BUSCA DO ÉDEN ELDORADO que, se devia ter chegado à Flórida, chegou às Ilhas do Caribe. O Novo Mundo parecia a Colombo ser aquele mais antigo: o Éden no coração da Ásia oriental. Seus erros, inegáveis, associavam-se a observações precisas e ousadias interpretativas geniais, pelo que, segundo registros do observador descobridor, o delta do Orinoco estaria situado próximo ao Paraíso. É o que se lê, por exemplo, em uma carta aos reis da Espanha, Fernando e Isabel, escrita em 1498: “Parece-me que este rio provém, se não do Paraíso, ao menos, de uma vasta terra até agora desconhecida e situada ao sul. Mas estou convencido de que é lá onde se encontra o paraíso terrestre, e me apoio nas provas e autoridades que citei acima”. Ao que Bloch comenta: “Colombo acreditava ter atingido o ponto oriental original, onde o primeiro amanhecer se teria produzido após a criação”17. Esse ponto seria o “cimo da Terra” (apex terrae), conceito místico aparentado com o de “cimo da alma” (apex mentis)18, onde a alma encontra Deus. De lá nascem os rios para o paraíso terrestre. Humboldt, no século XIX, havia observado que Colombo poderia ter-se inspirado na ideia sistemática dos geógrafos árabes sobre a terra de Lanca – Ceilão – que seria o paraíso terrestre no oriente. Múltiplas foram, em vários contextos, as associações míticas da terra da felicidade máxima com o cimo da terra: o Olimpo grego antigo se situava nas alturas, e também na Bíblia, o jardim do Éden ficava ao redor da fonte superior dos rios Eufrates e Tigre, ou seja, nas alturas da Mesopotâmia Norte. Essas montanhas, entre tais rios, passavam por ser as mais altas do mundo (Ezequiel, 28,13). No Renascimento, por exemplo, em Dante, na Divina Comédia, o Paraíso aparece como montanha divina. E em muitas religiões, nos lembra Bloch, aparece também o culto das alturas. Na Babilônia, tem-se a “montanha celeste”, que os árabes transformaram em “catedral celeste”. Sob influência da herança desses mitos, Colombo acreditava ter achado a cúpula terrestre, e que no Orinoco, ao longe, no azul do horizonte, se poderia ver a terra do Éden. O Paraíso se desviava, assim, do Ceilão, da geografia árabe, para o Delta do Orinoco, que o navegador acreditava ser vizinho daquele, e assim, em carta a Fernando e Isabel, afirma abertamente: “en que tengo assentado en el anima que allé es el parayso terrenal”. Trechos destas e de outras cartas confirmam que o descobridor da América se inclinava a pensar haver descoberto “Novos Céus e Nova Terra”. A célebre carta do Haiti, de outubro de 1498 aos monarcas espanhóis, atesta a sua convicção de que ali se situava o paraíso terrestre19. Pode-se compreender a exaltação de Colombo ante o universo que a seus olhos se descortinava pela primeira vez, como confusão causada pelo imenso peso das circunstâncias, como resultado da fadiga das tão grandes dificuldades enfrentadas, ou como compensação ante a incompreensão e a hostilidade da corte, quer dizer, ante o julgamento mundano do “fracasso” da expedição, pela frustração das expectativas de abundância de ouro e outras riquezas materiais imediatas. Com certeza, ele procedia a um exagero: “Novos Céus e Nova Terra”, segundo o Apocalipse, apareceriam no fim dos tempos. Porém, de certo modo, o Almirante, como era chamado por seus companheiros de viagem, expressava a grandeza de seu feito ao acreditar haver atingido as proximidades do Éden, onde se situaria a árvore da vida, os mortos e reconstituir o que foi despedaçado. Mas a tempestade sopra do Paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o empurra irresistivelmente para o futuro, para o qual está virado de costas, enquanto o monte de escombros, diante dele, cresce até ao céu. Essa tempestade é o que chamamos de progresso” (Benjamin,1996, p. 226). 15 Bloch, 2006, vol. 2, p. 325. 16 Ibid., p. 327. 17 Ibid., p. 395. 18 Ibid., p. 327. Apud Bloch, vol. 2, p. 326, ref. C. Jane, Selected Documents, Illustrating the Four Voyages of Columbus, vol.II, 1933, p. 7 e ss. 19 MORUS - Utopia e Renascimento, n. 7, 2010 89 Suzana Guerra Albornoz e nisso era levado pela intuição da riqueza e da potencialidade da terra descoberta. Afinal, na apresentação que dele faz Ernst Bloch, o fato de que “o Éden depois foi apenas as Antilhas, de que no continente atrás das ilhas não penetraram deuses brancos, mas criminosos como Cortez e Pizarro, e de que o paraíso terrestre não é um fato, mas um problema de esperança e uma latência, nada disso priva a intenção perseguida por Colombo de seu vigor e dignidade”20. Ou seja, os crimes que se seguiram não diminuem o tamanho e a força da intenção da utopia colombiana. De nós que não somos o paraíso Bloch, vol. 2, 2006, p. 328329. 20 Holanda, 2010, cap. 6, p. 202 (1ª ed.,1959; 2ª ed. revista e ampliada, 1969). 21 Ibid., cap. 2 (Terras incógnitas), p. 53:“Colombo não estava tão longe de certas concepções correntes durante a Idade Média acerca da realidade física do Éden, que descresse de sua existência em algum lugar do globo. E nada o desprendia da ideia, verdadeiramente obsessiva em seus escritos, de que precisamente as novas Índias, para onde o guiara a mão da Providência, se situavam na orla do Paraíso Terreal. (...) desde o começo de suas viagens de descobrimento, a tópica das “visões do paraíso” impregna todas as suas descrições daqueles sítios de magia e lenda.” 22 Ibid., cap. 7 (Paraíso perdido), p. 226. 23 Ibid., cap. 8 (Visão do paraíso), p. 274. 24 90 Em Visão do Paraíso, obra publicada pela primeira vez no mesmo momento histórico de O princípio esperança de Ernst Bloch, Sérgio Buarque de Holanda afirmava a mesma convicção, de ter estado Colombo profundamente imbuído dos motivos edênicos, sob forte influência da esperança de encontrar o Paraíso Terreal que se esconderia em algum ponto oriental da Terra. Nessa imensa obra brasileira de pesquisa e erudição, o ilustre compatriota procede a uma revisão das dimensões míticas ou utópicas que agiram em volta dos descobrimentos europeus no continente americano, mas, sobretudo, no descobrimento e colonização do Brasil, onde o comportamento dos colonizadores portugueses, como numa reação própria da forma da cultura lusa, teria operado certas “atenuações plausíveis”21 das esperanças exaltadas dos conquistadores castelhanos22. Não poderíamos dizer, portanto, que a interpretação de Bloch era uma interpretação inteiramente singular, antes, a sua confirmação pela obra citada acima nos permite considerar sua tese como bem fundada, uma vez que tem apoio no reconhecimento da comunidade estudiosa da ciência da história. Para Buarque de Holanda, que recorre a fontes abundantes, de modo próximo, e mesmo precursor do que se pode chamar de “história das mentalidades”, a crença na realidade física e atual do Éden parecia inabalável na era dos grandes descobrimentos marítimos, assim como o fora durante a Idade Média, e isso até mesmo entre os portugueses – onde era menos obsessiva que entre os espanhóis –, e assim o fora também para outros povos cristãos da Europa e mesmo para não-cristãos, judeus e muçulmanos23. Não só o imaginativo Colombo assim concebia o mundo recém descoberto: não só o deslumbramento de um Colombo divisava as suas Índias e as pintava, ora segundo os modelos edênicos provindos largamente de esquemas literários, ora segundo os próprios termos que tinham servido aos poetas gregos e romanos para exaltar a idade feliz posta no começo dos tempos, quando um solo generoso, sob constante primavera, dava de si espontaneamente os mais saborosos frutos, onde os homens, isentos da desordenada cobiça (pois tudo tinham sem esforço e de sobejo), não conheciam ferro, nem aço, nem armas, nem eram aptos para eles – (...) – mas até os de mais profundo e repousado saber se inclinavam a encarar os mundos novos sob a aparência dos modelos antigos24. MORUS - Utopia e Renascimento, n. 7, 2010 EM BUSCA DO ÉDEN ELDORADO Por outro lado, que as navegações e descobertas geográficas influenciaram o gênero moderno das utopias parece ficar manifesto nas tantas narrativas de viagens escritas pelos autores que, é bem verdade, com as suas narrativas imaginárias, também visavam mascarar e tornar menos perigosa a crítica da sociedade do seu país europeu. Como diz Lestringant, a utopia não precisou das grandes navegações para nascer, mas também não deixou de ser tocada por elas25. Com este breve comentário que se acrescenta ao resumo da interpretação que Ernst Bloch faz do sonho de Cristóvão Colombo, não pretendo aprofundar a pesquisa daquela relação que parece bem estabelecida, entre a descoberta de novas terras e o imaginário europeu. Antes desejo começar a sugerir o caminho inverso da reflexão: que se pense em que medida os sonhos, que alimentaram as utopias e estiveram sob os motivos das grandes navegações, puderam marcar, de modo sorrateiro, mas duradouro, o modo como os europeus viriam ou continuariam a considerar os povos e lugares por eles descobertos por volta de 1500. Espero que este breve texto possa justificar-se pela sugestão de algumas perguntas para os intérpretes das relações, complexas e sutis, imbricadas com as expectativas mútuas entre a Europa e a América Latina, que também se deixam influenciar pelas trocas míticas entre o Novo e o Velho Mundo. O erro de identificação do Éden Eldorado com o Delta do Orinoco, ou seja, com a terra tropical situada deste lado do Atlântico e abaixo do Equador, poderia eventualmente ser causa de uma tonalidade desconfiada de olhar que os nórdicos teriam ainda hoje sobre a Amazônia e, mais amplamente, sobre a América Latina? Não será que somos vistos como portadores de um pecado original regional, sendo, ao mesmo tempo, donos de uma terra de riquezas imensas, de solo e subsolo verde e dourado, do Eldorado, terra do ouro, e, por outro lado, terra verde porque intocada, onde vivem inocentes primitivos em harmonia com a natureza, como no Éden, lugar da inocência e da felicidade, e que, assim sendo, contudo, não somos puros nem perfeitos como deveríamos ser se fôssemos o paraíso? As decepções com as terras e os habitantes das terras descobertas não estariam na origem da disposição do europeu em relação à América Latina, que Colombo descobre pelo Caribe e o delta do Orinoco? Até que ponto nosso continente carrega, diante do chamado Primeiro Mundo, o peso simbólico de haver consistido num engano, o de haver sido confundido com a utopia, com o lugar do encontro do Éden ou de Eldorado, pelo menos, com o Oriente, que não somos? E, portanto, de haver ludibriado a esperança do seu continente em relação ao nosso? E afinal, até onde se manterá entre nós a desilusão original que é reflexo da lente do colonizador e da aspiração do conquistador? Até quando nos consideraremos menores, menos aptos, menos fortes do que os do velho mundo? Como se sente a América Latina diante da África e da Europa? Não esqueceremos o sentimento contido no canto melancólico dos deportados à força no navio negreiro em direção da escravidão, aparentado com a saudade da pátria longínqua que marca a língua dos navegadores e marcou a alma dos descendentes dos colonizadores portugueses assim como o faria com os exilados brasileiros, prefigurando o mazombismo nacional comum a tantos outros compatriotas vindos de outras terras?26 Lestringant, 2006, p. 155175. O autor assim inicia seu artigo: ‘A Utopia precisou das grandes navegações para nascer e se desenvolver? Não. Mas surge em ressonância com elas. E acontece de alimentarse delas, pelo menos a título ornamental ”. 25 Moog, 2006, p. 124: “E em que consistia esse mazombismo brasileiro? Tal como nos primeiros tempos coloniais, consistia essencialmente nisto: na ausência de determinação e satisfação de ser brasileiro, (...). No fundo, o mazombo, sem o saber, era ainda um europeu extraviado em terras brasileiras. (...) Inesgotáveis como eram suas reservas de má vontade para com tudo quanto se referisse ao Brasil, vivia a escancarar as suas simpatias para tudo quanto fosse europeu”(...). 26 MORUS - Utopia e Renascimento, n. 7, 2010 91 Suzana Guerra Albornoz Galeano, 2010, p. 31: “Nació el mito de Eldorado, el monarca bañado en oro que los indígenas inventaran para alejar a los intrusos: desde Gonzalo Pizarro hasta Walter Raleigh, muchos los persiguieron en vano por las selvas y las aguas del Amazonas y el Orinoco. El espejismo del “cerro que manaba plata” se hizo realidad en 1545, con el descubrimiento de Potosí, pero antes habían muerto, vencidos por el hambre y por la enfermedad o atravesados a flechazos por los indígenas, muchos de los expedicionarios que intentaron, infructuosamente, dar alcance al manantial de la plata remontando el río Paraná”. 27 A esse respeito, Mello e Souza, em “Os novos mundos e o velho mundo: confrontos e inter-relações” (2002), cita Serge Gruzinski, p. 167: “Espantosos caminhos do pensamento e dos imaginários europeus que fazem a América, alternadamente, a inspiradora de uma construção do espírito e o campo de aplicação do qual só conseguem enxergar (um)a pretensa virgindade”. 28 92 Num tempo de economicismo como foi o nosso último século, Ernst Bloch foi precursor na consciência de que nem só os interesses econômicos causam os conflitos e as mudanças, e de que não se separam claramente os mitos e os interesses nas riquezas materiais, como mesmo Galeano recorda, embora seja bela e lógica a tese de que, em nossa história americana, onde havia riqueza, houve exploração, e onde tanta não havia, deixaramna mais livre27. Em torno da Amazônia, por exemplo, acrescentam-se riquezas materiais, interesses, ideologias e mitos, à herança antiga das utopias geográficas dos povos nórdicos. Qual o sentimento predominante nos europeus ante esse mundo tropical – que era rico, que era pobre? É bem expressivo que o suposto Paraíso Terrestre tenha vindo depois a ser chamado às vezes de “inferno verde”; e tal como nos tornamos o “Terceiro Mundo”, hoje somos os “emergentes” – mas afinal, de que emergimos? E para o que emergimos? Refletindo sobre essas mútuas, inegáveis e ainda não completamente avaliadas influências entre o imaginário latino-americano e a realidade europeia, outro lado da relação entre a realidade latino-americana e o imaginário europeu, estudos apontam para o reconhecimento do plano das mútuas interferências que influem nas relações entre as culturas do Velho e do Novo Mundo28. É assim que, de modo fragmentário e provisório, ao encarar quinhentos anos de estranhamento e paixão que temos entre nós – em especial, nesta terra de Santa Cruz – e a Europa, resta a impressão de possuirmos algo que podemos não só aprender com o Velho Mundo, mas também ensinar, por exemplo, sobre um dos grandes desafios de nosso tempo que é o da convivência intercultural, ou seja, a tolerância das diferenças, que me parece encaminhada, se não resolvida, entre nós que não somos o paraíso. Referências BENJAMIN, W. Obras escolhidas. Trad. S. P. Rouanet, J.-M. Gagnebin.São Paulo: Brasiliense, 1996.. BLOCH, Ernst. Das Prinzip Hoffnung. Frankfurt: Suhrkamp, 1959. [O princípio esperança. Trad. N. Schneider, W. Fuchs. Rio de Janeiro: Contraponto e UERJ, 2005 e 2006.] COLOMBO, Cristóvão. Los cuatro viajes /Testamento. Madrid: Alianza Editorial, 1986. DELUMEAU, Jean. O que sobrou do paraíso? Trad. de Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. GALEANO, Eduardo. Las venas abiertas de América Latina. Buenos Aires: Siglo XXI, 2010. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso. São Paulo: Cia. das Letras, 2010. LESTRINGANT, Frank. “O impacto das descobertas geográficas na concepção política e social da utopia”. [Nova tradução de Ana C. R. Ribeiro]. In: Morus – Utopia e Renascimento, n.3, 2006, p. 155–175. MORUS - Utopia e Renascimento, n. 7, 2010 EM BUSCA DO ÉDEN ELDORADO MELLO E SOUZA, Laura. “Os novos mundos e o velho mundo: confrontos e inter-relações” In: Prado, Maria Lígia Coelho; Vidal, Diana Gonçalves (orgs). À margem dos 500 anos: Reflexões irreverentes. São Paulo: Edusp. 2002. MOOG, Vianna. Bandeirantes e pioneiros. Rio de Janeiro: Graphia Editorial, 2006. RODRIGUES, J. N.; DEVEZAS, T. Portugal, o pioneiro da globalização. Lisboa: Centro Atlântico, 2007. RICOEUR, Paul. Philosophie de la volonté. Paris: Aubier, 1988. VERNE, Júlio. Cristóvão Colombo. São Paulo: Landy Editora, 2005. In search for Eldorado Eden. Chistopher Columbus’ utopia in the interpretation of Ernst Bloch Suzana Guerra Albornoz Abstract This brief essay visits excerpts from Ernst Bloch’s The Principle of Hope, in which, considering Columbus' experience as an example of a geographic utopia, the author writes about a dream with a religious trait – the search for Paradise –, by which the navigator in service to Spain discovered America. It concludes by asking about the possibility of a different view on the relation between the hopes of the discoverers and the New World, which was not Paradise. Key-words Ernst Bloch, Columbus, utopia. MORUS - Utopia e Renascimento, n. 7, 2010 93
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