a polêmica do autismo na frança

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a polêmica do autismo na frança
SIG revista de psicanálise
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PAUTA
A POLÊMICA DO AUTISMO NA FRANÇA
THE CONTROVERSY OF AUTISM IN FRANCE
Cláudia Perrone1
Este breve texto pretende recolher fragmentos de um episódio ocorrido na
França em fevereiro de 2012. O sentido desse gesto é iniciar uma reflexão sobre
a pertinência da psicanálise na história de nosso presente. De modo muito semelhante ao início do século passado, o século XXI já foi marcado pelo trauma
geopolítico de 11 de setembro que deflagrou a guerra a um inimigo sem fronteiras, pelas mutações das práticas sociais e culturais provocadas pelas novas
tecnologias. A idéia de que a história se repete é tentadora, pois a exclusão
social, a extrema direita, o biologicismo, a paranóia, a violência novamente
estão presentes no campo social, no entanto, sob um novo arranjo: a condição
humana neoliberal. Neste novo contexto de vitória do pensamento único, há o
retorno do religioso pela via das ideologias sectárias, racistas e sexistas. O Estado testemunha a paixão renovada pela norma, com o avanço da atividade
legislativa nos espaços sociais de incerteza e indeterminação. Uma das expressões desse fenômeno é o aumento sem precedentes de questões sociais, que
põem em causa o próprio limite do que pode ou não ser regulado por uma lei.
Ao sujeito cabe a objetivação e universalidade do discurso da ciência, as avaliações e perícias, os números que falam por si, sem qualquer saber ou singularidade. Feita essa breve contextualização, podemos seguir com nosso relato.
A crise social mobiliza a Europa, o índice de desemprego é o mais alto dos
últimos doze anos e continua subindo em direção aos dois dígitos. O euro agoniza. As reformas da previdência social e do trabalho caminham no rumo da
diminuição das garantias sociais da população. Na segunda semana do mês de
fevereiro, o presidente francês Nicolas Sarkozy concedeu uma entrevista à revista Fígaro Magazine que foi considerada o primeiro passo da sua campanha para
a reeleição a presidência da França. Ele afirmou que irá endurecer ainda mais as
regras para a obtenção da nacionalidade francesa, reafirmou sua oposição a
ampliar os direitos dos estrangeiros, de não autorizar a eutanásia e nem o casamento de homossexuais, revelando uma estratégia de extrema direita.
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Psicóloga, psicanalista da
Associação Psicanalítica
Sigmund Freud,professoraadjunta do Departamento
de Psicologia da UFSM e
do Pós-Graduação em
Administração da UFSM.
[email protected]
Alguns dias depois, mais exatamente em 13 de fevereiro, uma manchete na
capa do jornal Libération deflagra um debate nacional: La psychanalyse interdite
d´autisme. No interior do jornal o título da reportagem é ainda mais impactante:
Autismo - psis foram reduzidos ao silêncio. A matéria de Eric Favereau antecipa
trechos inéditos de um relatório sobre boas práticas no tratamento do autismo – que
será publicado oficialmente no dia 8 de março – realizado pela Haute Autorité de
Santé (HAS). Criada em 2004, a HAS é encarregada de avaliar cientificamente e
promover as boas práticas e o bom uso dos cuidados de saúde. Trata-se de uma
entidade independente e composta por um colegiado oito especialistas entre médicos, funcionários públicos e acadêmicos, cujas recomendações são seguidas com
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atenção. Cabe assinalar um elemento do ideário neoliberal: boas práticas são aquelas que, em uma empresa, garantem a entrega do valor certo para o cliente com o
menor custo para a organização, é uma relação de eficácia. No universo das práticas de saúde são as técnicas identificadas como as melhores para realizar determinada tarefa, ou em outras palavras, a forma correta de atuar com o menor custo.
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“As palavras do relatório são pesadas”, diz Favereau (2012, p.14). Na página 27 do relatório, os especialistas da HAS afirmam: “A falta de dados sobre a
eficácia e a divergência de opiniões expressas permitem concluir a não pertinência
das intervenções sustentadas em abordagens psicanalíticas e na psicoterapia
institucional” (2012, p. 14).
Favereau definiu o relatório como uma “verdadeira bomba clínica” (2012,
p.14). A mais alta instância de saúde francesa fecha a porta para a psicanálise no
tratamento do autismo. O chefe de um centro de tratamento de autistas resumiu
a inquietude do episódio: é como se fosse decretado o fim do inconsciente
(2012, p.15).
O inquietante cuidado da lei ainda tem outro desdobramento. O deputado
Daniel Fasquelle propôs um projeto de lei que
“visa proibir o acompanhamento psicanalítico de pessoas autistas, a favor
dos métodos educacionais e comportamentais. Para ajudar as pessoas a
lidar com o autismo a França não pode continuar a tolerar e apoiar as
práticas do tipo psicanalítico no tratamento do autismo.” (2012, p.15)
Em uma entrevista para a revista Le Point (2012), Fasquelle explicita o motivo de sua cruzada ao afirmar que a França sofre de um “atraso” em relação aos
outros países no tratamento do autismo porque o movimento psicanalítico tem
muito mais espaço na França do que no exterior. A sua batalha é exatamente
contra o poderoso lobby psicanalítico. A proposta de Fasquelle é exemplar para
compreender a política como o exercício da purificação, uma das dimensões
fundamentais da normalização social, do esplendor do Estado como forma de
normalização.
Bernard Golse declarou para o Libération (2012, p. 15) que está com medo
desse ódio e
“nesse conflito que surgiu recentemente, uma das grandes mudanças é que
o Estado saiu de seu papel. Eles persuadiram os poderes públicos que o
autismo se tornou um problema de saúde pública. Fala-se que uma criança
em cento e cinquenta é autista, isso seria um problema enorme. Mas tudo
está misturado como se houvesse uma epidemia de autismo. Agora se fala
de problemas invasores do desenvolvimento. Tudo isso é inconsistente.”
Golse refere-se à grande confusão que está ocorrendo ao redor da palavra
autismo neste momento. Inicialmente ele era classificado na categoria das psicoses infantis e, posteriormente, foi integrado aos problemas invasivos do desenvolvimento, caracterizados por alterações qualitativas das relações sociais e
das modalidades de comunicação e por um repertório de interesses e atividades
restritos, estereotipados e repetitivos. As causas seriam múltiplas: genéticas, bio-
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lógicas, neurológicas e ambientais. Esta mudança tornou possível que uma em
cada cento e cinquenta crianças possa ser classificada como autista. Na definição clássica, estabelecida por Bruno Bettelheim, uma criança em mil e quinhentas poderia ser considerada autista.
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Ainda no dia 13 de fevereiro o Partido Comunista Francês lançou uma nota:
Autismo – projeto de lei: uma interferência totalitária. O PCF denunciou a campanha para proibir a referência à teoria psicanalítica como método de tratamento
das equipes de saúde mental e destacou que, como em qualquer disciplina médica, a equipe de saúde tem direito de recorrer à relação terapêutica da sua escolha,
do mesmo modo que o paciente tem direito a escolher o seu terapeuta.
O PCF acredita que nesse ataque está escondida uma questão fundamental
contra a psiquiatria que acredita na cura como uma questão relacional. Os criadores da campanha defendem como tratamento dos transtornos mentais a
normatização do comportamento através da associação da terapia farmacológica
com métodos pedagógicos. No entanto, segue a nota, a grande maioria das pessoas com problemas de saúde mental e suas famílias esperam um acompanhamento relacional e não uma gestão normativa focada nos sintomas. O PCF finaliza afirmando seu objetivo de prosseguir com esforços para iniciar uma renovação da psiquiatria humanista, centrada na relação de cuidado.
Algumas associações de pais como Vaincre l´autisme, Autisme Europe e
Ensemble pour l´autisme falam em “uma grande causa nacional” e reivindicam
a revolução proposta pela HAS. O psicanalista Eric Laurent (Cuneo, 2012) contesta as idéias de lobby e atraso associadas à psicanálise e entende o projeto do
deputado Fasquelle como parte de uma campanha lançada por certas associações de pais de crianças autistas. No entanto, ele lembra que os Estados Unidos
e o Canadá já formularam críticas éticas, legais e práticas em relação às técnicas
comportamentais. “Não podemos aplicar um método único para todos, como
os comportamentalistas defendem.”
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POLÊMICA CONTINUA COM MANIFESTAÇÕES DIVERSAS CONTRA E A FAVOR
Esse relato é fragmentário e aberto para várias leituras. Foi uma leitura orientada pela articulação dos discursos e do poder, pelo traçado das fronteiras de
um acontecimento. O que se apresenta é um novo momento do capitalismo no
qual somos conduzidos pela mão invisível da normalização. A nova forma jurídico-discursiva do poder aspira acabar com o inconsciente com um decreto. A
insistência na norma e na racionalidade econômica justifica a censura e a proibição da má prática psicanalítica. O novo ethos é nacionalista, impregnado por
um programa moral que serve para criar uma regulação empresarial da vida.
O ódio à psicanálise tem relação com o fato dela não ser uma palavra vã. A
interrogação das direções contraditórias do desejo teve como efeito social a
criação de uma analítica da normalização. Seus efeitos também são efeitos de
poder de libertar o que pensa silenciosamente. A genealogia da racionalidade
realizada pela Psicanálise abala as certezas e os dogmatismos e relança infinitamente o trabalho indefinido da liberdade. Ela semeia a dúvida e ... o ódio.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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CUNEO,L. Autisme: La fin du régne de la psychanalyse? Disponível em: http://
www.lepoint.fr/societe/autisme-la-fin-du-regne-de-la-psychanalyse-13-02-20121431031_23.php . Acesso: 10 de março de 2012.
FAVEREAU, E. Autisme: lês psys réduits au silence. Libération
Libération, Paris, 16 fev., p. 14-15, 2012.
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