A busca do necessário na dialética do Ser e do parecer no livro II de A

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A busca do necessário na dialética do Ser e do parecer no livro II de A
Revista Aproximação – 2º semestre de 2008 – Nº. 1
A BUSCA DO NECESSÁRIO NA DIALÉTICA DO SER E DO
PARECER NO LIVRO II DE A REPÚBLICA
Luciano Brazil
Graduando em Filosofia da UFRJ
“Ora vamos lá! Fundemos em logos uma cidade. Serão, ao que parece, as nossas necessidades
que hão de fundá-la”. (Platão, 2007, 369c).
Resumo: No vigor do questionamento acerca da justiça, surgem as noções de aparência
e realidade, verdade e falsidade, justiça e injustiça; bem como a relevância dessas
dicotomias perante a necessidade e a felicidade. Na plenitude dessa questão, Platão
constrói no livro II de A República uma dialética que visa conciliar o problema da
aparência com a justiça e a felicidade, e a constrói a partir de um bem comum, a cidade
justa. Nessa dialética, impera o valor que a aparência precisa ter perante uma vontade de
justiça.
Palavras-chave: Justiça. Ontologia. Platão.
O esforço de Platão em expor conceitualmente a justiça parece tão mais um
esforço entre uma oposição já bastante difundida no ocidente; o Ser e o não-Ser, a
realidade e a aparência, verdade e falsidade. A leitura de A República evidencia essa
problemática do início ao fim, que, entretanto, mostra numerosas faces e numerosos
obstáculos a ser ultrapassados. Mas não é antes uma busca meramente conceitual, é,
sobretudo, uma tentativa de estabelecer uma verdade que desague na vida prática, uma
verdade que se apresente em existência. É, pois, o esforço de aprofundar radicalmente
toda a questão do pensamento nas suas diversas interrogações.
Neste artigo, pretendo traçar um esboço a partir da discussão do livro II que
perpasse de um modo geral e ligeiro estes elementos discutidos e que têm sua forma
decisiva em todo o diálogo A República. Ver nesses elementos sua importância, desde o
argumento do livro que serve de pórtico para o restante da obra, ou seja, aquele de
Trasímaco, o de que a justiça é aquilo que está no interesse do mais forte (Platão, 2007,
338c), cuja aporia que fecha o livro I abre o livro II e revigora o nosso protagonista
Sócrates a seguir seu caminho filosófico de investigação através do logos, através de
uma gênese da polis e do trabalho; tarefa que deságua na questão da educação e que
segundo o modelo, não apenas ático, mas de toda a Hélade, se liga intimamente à
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questão da poesia e da mitologia. Portanto, a tarefa do artigo é fazer enxergar como a
dialética do Ser e do parecer animada no livro II se estende e determina cada passo dado
pelo velho protagonista na composição da cidade justa, quer seja em crítica pedagógica,
quer seja em teoria do conhecimento, quer seja, enfim, como estatuto ontológico da
justiça do justo. Vamos à tarefa.
No livro II, o mito proferido por Glauco dá continuidade a uma investigação
filosófica levantada no início do livro I, que tinha por protagonistas Sócrates, o velho
Céfalo e seu filho, e o sofista Trasímaco. Glauco, que até então participava como
ouvinte da discussão, adentra no assunto a fim de renovar o problema defendido pelo
sofista, elevando a tese deste a um limite extremo, que é o usufruto de possibilidades da
maneira mais individual possível: sem ser notado por ninguém. Nesse sentido, a justiça
é uma convenção. É porque existe o constrangimento perante a aparência que se busca
uma maneira justa de agir. Mas o interessante é que a aparência de justiça não resolve o
problema; pelo contrário, ela o duplica. Isso significa que o justo pode ser justo tanto na
aparência quanto na realidade, e da mesma forma o injusto; são quatro possibilidades.
Decorre disso que a verdadeira justiça só poderá realizar sua perfeição se ignora,
sobretudo, a aparência que lhe cobre, ao passo que a verdadeira injustiça, se torna
perfeita, na medida em que permanece o máximo possível no limite de mera aparência.
Lembremos que a discussão omitida aqui, do livro I, é uma discussão que se
pergunta não somente a oposição justiça/injustiça, mas que busca mostrar em qual das
duas há a felicidade. O que vemos no início do livro II é uma tentativa de separação
mais radical a respeito da justiça e da injustiça e onde encontraremos a felicidade. Ao
passo que se supõe a injustiça como um privilégio da aparência e a justiça não, parece
haver aí implícita uma conotação moral, ou ao menos, assim feita a divisão, restaria
indagar em qual das duas oposições há efetivamente uma superioridade qualitativa. É o
que fazem Glauco e Adimanto nesta primeira exposição do livro II. Primeiro Glauco,
tentando se convencer do contrário, defende que (Platão, 2007, 361a) “O supra-sumo da
injustiça é parecer justo sem o ser” e, posteriormente, Adimanto que (Platão, 2007,
365c) “uma vez que a aparência subjuga a verdade, e é senhora da felicidade, é para este
lado que devemos voltar-nos por completo”.
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Na conclusão do discurso dos dois irmãos, vemos nascer pela boca de Sócrates
uma cidade justa. Uma fundação em aparência, em logos, e em “letras grandes”. É que a
justiça de um único se realiza na justiça de um todo que é maior. Não é do indivíduo
para a cidade, mas da cidade para o indivíduo, que devemos compreender uma justiça
atrelada à felicidade. A dialética ontológica entre o Ser e o parecer ganha conformidade
na fundação da cidade justa; um mundo sensível que não seja destituído do inteligível,
mas que esteja afirmativamente em pleno acordo com as Formas perfeitas.
A fundação ocorre numa busca pelo necessário1, mas em um necessário que não
é exclusivamente material ou ideal. Se nos indagarmos onde se insere a origem desse
necessário a que Sócrates se refere, perceberemos que ele surge no cerne da dualidade
entre inteligível e sensível. É preciso lembrar que, de início, Sócrates inflama a cidade
de excessos, mas posteriormente a descobre muito incapaz de dar conta de si própria –
estamos falando do livro IV, cuja reflexão acerca da pobreza e da riqueza remete tanto
aos guardiões quanto ao cumprimento das demais artes. Acerca disso, é como se a
necessidade material expusesse outra necessidade, para além do material, como se o
necessário fosse um ponto de equilíbrio e de divisão que parte do plano material para o
plano imaterial. Isso permite compreender que o Ser e o parecer não se esgotam cada
um em si, mas que mantêm uma relação inerente.
Cabe notar que podemos interpretar o discurso dos irmãos de Platão; há em suas
palavras elementos suficientes para compreender uma forçosa intangibilidade a respeito
da superioridade da justiça. O que prevalece é a vontade de tornar a justiça uma virtude,
e isso é consensual tanto em Glauco e Adimanto, quanto em Sócrates. Com isso, fica
exposta também uma possível inversão da relação ser/parecer, donde a verdadeira
justiça é mera aparência, enquanto a injustiça é o verdadeiro Ser das coisas. Essa
inversão, ou paradoxo, não parece se resolver em toda A República. A fundação da
cidade ocorre, portanto, no esforço em privilegiar a vontade de justiça (Platão, 2007,
368b): “Pois não tenho maneira de defender a justiça. Parece-me que sou incapaz [...] E,
por outro lado, não posso deixar de a defender”. A aparência subjuga a verdade, e não
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369c: “Serão, ao que parece, as nossas necessidades que hão de fundá-la”.
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se deve ignorá-la. Sendo assim, a virtude há de ser construída levando em conta o
fenômeno, o que se mostra à vista, para que com este se chegue à felicidade.
Mas afirmar essa tensão não é associar erradamente o necessário com o aparente,
e isso se aplica na configuração da cidade; da divisão dos trabalhos à adesão dos
guardiões filósofos, por exemplo: o que marca a escolha de uma determinada natureza
do guardião é ele ser capaz de discernir os amigáveis dos inimigos, e, além disso, saber
quando agir.
É preciso, portanto, enxergar criando distinções – antes de tudo distinções, pois
se quer superar o argumento de Trasímaco, que joga tudo para o plano da indistinção.
Poderíamos dizer que Trasímaco não possui uma preocupação moral, ao passo que a
ótica de Platão é profundamente moral; esse olhar que cria distinções, separações, por
isso esta pesquisa por essência e aparência e o desdobramento de um necessário, um
meio termo que se liga entre as forças da vontade, da individualidade junto ao
comunitário, ao político; e, entretanto não poderíamos afirmar como Trasímaco, que se
tratasse de um acordo; não se trata de uma convenção, a busca do necessário nos remete
para além do político e nos coloca novamente no plano ontológico. O necessário é o
ontológico, o que se liga intimamente às formas, ainda que só se possa falar de teoria
das formas a partir do livro VI. Em última instância deveríamos afirmar que o problema
do Ser, conforme as tentativas de solução forem feitas, irão convergir numa teoria do
conhecimento, presente nos livros posteriores ao livro II, sobretudo no mencionado
livro VI, onde se discutirá precisamente as Formas perfeitas e o nível de conhecimento
capaz de distinguir filósofos dos filodoxos. Para a presente tarefa, cabe a nós mantermonos no cerne da tensão que se abre nos dois primeiros livros, acerca da aparência e do
Ser.
O necessário é a importância do essencial dentro deste jogo de relações. Isso
significa que destituído do essencial existe um modo de vida das cidades e dos
indivíduos que não está adequado a uma justiça. Esse é o tema do livro IV, que reflete
acerca da importância da moderação da riqueza, da opulência, da grandeza. E que tal
moderação só torna os homens melhores em suas respectivas artes, demonstrando aí que
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o necessário convém à moderação, e que esta se liga intimamente à natureza das coisas.
Decorre pensar, finalmente, não em uma negação da vontade, mas da afirmação de um
estatuto ontológico da justiça que torna possível fundar uma cidade perfeita. Se há uma
teoria do conhecimento, bem como todas as outras investigações ao longo dos livros
seguintes, estas se voltam, quer seja como método, quer como conteúdo, a saber, aos
cidadãos da polis, prezando esse estatuto ontológico do que é justo.
Ora, a remissão aos livros posteriores ao II nos leva a concluir, por fim, que a
busca pelo necessário extrapola o livro II, e que em última instância, a constatação desse
necessário é um pressuposto que converge o aparente e o essencial, e que atravessa toda
a criação da cidade perfeita e caminha junto à aporia acerca da justiça na busca por esta.
A cidade que se funda baseada no necessário e que tem na natureza das coisas o
ideal só pode revelar sua sabedoria dentro de um projeto educacional, isto é, a cidade
justa é um projeto ético que tem a educação como base, donde o extenso trabalho e o
esforço expansivo de Platão em toda a obra A República procedem. Um conjunto de
seres que, condicionados pela aparência, compreenda uma verdade ontológica e exerça
sua superioridade no conjunto de suas ações; esse é o trabalho que A República tenta
realizar.
Referências bibliográficas:
Platão. A República. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 2007.
MORAIS, Emília Maria Mendonça de. Justiça e Ontologia: a dialética do ser e do
parecer na República, in: Cadernos de Atas da ANPOF, nº1, 2001.
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