quanto custa ser pescador artesanal

Transcrição

quanto custa ser pescador artesanal
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA
QUANTO CUSTA SER PESCADOR ARTESANAL?
Etnografia, relato e comparação entre dois povoados pesqueiros no Brasil e em Portugal
JOSÉ COLAÇO DIAS NETO
ORIENTADOR: PROF. DR. ROBERTO KANT DE LIMA
NITERÓI
MARÇO DE 2012
2
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA
QUANTO CUSTA SER PESCADOR ARTESANAL?
Etnografia, relato e comparação entre dois povoados pesqueiros no Brasil e em Portugal
JOSÉ COLAÇO DIAS NETO
ORIENTADOR: PROF. DR. ROBERTO KANT DE LIMA
Tese de doutoramento apresentada
ao Programa de Pós-Graduação em
Antropologia da Universidade
Federal Fluminense.
NITERÓI
MARÇO DE 2012
3
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA
QUANTO CUSTA SER PESCADOR ARTESANAL?
Etnografia, relato e comparação sobre dois povoados pesqueiros no Brasil e em Portugal
JOSÉ COLAÇO DIAS NETO
Aprovada em: ___/___/_____
Comissão Examinadora:
______________________________________________________________________
Prof. Dr. Roberto Kant de Lima – Universidade Federal Fluminense
Orientador
______________________________________________________________________
Examinador
______________________________________________________________________
Examinador
______________________________________________________________________
Examinador
4
Resumo:
Esta tese pretende consolidar resultados de pesquisas etnográficas realizadas em dois
povoados de pescadores artesanais: um no Brasil e outro em Portugal.
Localizada na região norte do estado do Rio de Janeiro, a Lagoa Feia oferece uma
extensa variedade de recursos naturais de significante interesse econômico e ecológico.
Por conta da diminuição gradativa de suas reservas de peixe, o IBAMA (Instituto
Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis) tem intensificado nos
últimos anos uma atenção especial à região. Oficialmente responsável pela
regulamentação do manejo sustentável de diversos tipos de ecossistemas, o IBAMA
vem impondo uma série de restrições à pesca artesanal, a fim de restaurar essas
reservas. Em muitas regiões do país, o controle realizado pelas agências do Estado sobre
as populações que vivem de atividades de extração e captura de recursos naturais tem
sido motivo de conflitos e transgressões de regras. Assim, a partir da etnografia de suas
práticas haliêuticas, o texto pretende evidenciar os motivos que levam muitos
pescadores do povoado de Ponta Grossa dos Fidalgos – localizado na margem norte da
Lagoa Feia – a não pararem suas atividades profissionais no período definido pelo
IBAMA.
Na parte portuguesa, a tese apresenta o material etnográfico coletado na Carrasqueira –
pequena aldeia de pescadores e agricultores localizada no Estuário do Sado, na costa
central portuguesa. Os ritmos de trabalho, tanto na pesca artesanal quanto na apanha de
mariscos, estão submetidos às condições das águas oceânicas, tais como altura, volume
e amplitude. Isto implica numa sofisticada leitura das condições ambientais, bem como
em uma adaptação cotidiana das formas de exploração dos recursos naturais por parte
dos carrasqueiros. Semelhante ao que ocorre no caso brasileiro, a DGPA (Direção Geral
de Pescas e Aquicultura) – órgão responsável pela administração e regulamentação do
setor em Portugal – tem formulado, de modo sistemático, normatizações que limitam o
acesso aos mais diversos recursos naturais. As medidas e as formas de fiscalização,
protagonizadas pela Polícia Marítima, têm sido recebidas com reclamação por grande
parte dos pescadores.
No contraste entre os dados etnográficos das duas pesquisas, o texto pretende responder
por que, em geral, pescadores artesanais não seguem normas oficiais de preservação
ambiental tal como esperam gestores públicos e ambientalistas.
5
Este trabalho é dedicado à
Suely Catunda, minha mãe, porque filhos são como navios, podem navegar por anos,
mudar a rota, traçar outros caminhos ou procurar outros portos. Mas, eles sempre
voltam ao porto de origem
e
Manuela Dias, minha irmã, porque amor de irmãos é para sempre e, como na pesca,
um camarada nunca abandona o outro nem nos momentos mais difíceis.
6
Everything about him was old except his eyes and they were the same color as the
sea and were cheerful and undefeated.
“Santiago,” the boy said to him as they climbed the bank from where the skiff was
hauled up. “I could go with you again. We’ve made some money.”
The old man had taught the boy to fish and the boy loved him.
“No,” the old man said. “You’re with a lucky boat. Stay with them.”
“But remember how you went eighty-seven days without fish and then we caught big
ones every day for three weeks.”
“I remember,” the old man said. “I know you did not leave me because you doubted.”
“It was papa made me leave. I am a boy and I must obey him.”
“I know,” the old man said. “It is quite normal.”
“He hasn’t much faith.”
“No,” the old man said. “But we have. Haven’t we?”
“Yes,” the boy said. “Can I offer you a beer on the Terrace and then we’ll take the
stuff home.”
“Why not?” the old man said. “Between fishermen.”
Ernest Hemingway – The Old Man and the Sea – 1957
7
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO........................................................................................................11
I. A PROA......................................................................................................................17
1- O caminho para a Lagoa Feia, ou o primeiro acaso....................................................18
2- A Lagoa Feia e Ponta Grossa dos Fidalgos.................................................................21
3- A pesca artesanal.........................................................................................................32
3.1- A minjoada...............................................................................................................41
3.2- A pesca de cutuca e a trolha.....................................................................................45
4- As diferentes percepções sobre a natureza..................................................................48
4.1- Do DNOS ao IBAMA..............................................................................................54
4.2- A natureza do ponto de vista nativo: os mapas do fundo.........................................56
4.3- O fenômeno jurídico e as histórias de pescador.......................................................74
5- Os calendários de pesca e as tensões...........................................................................90
II. O MEIO...................................................................................................................105
1- O segundo acaso e o caminho para Portugal.............................................................106
2- Os primeiros contatos................................................................................................110
3- As impressões iniciais, ou o impacto do Rio Tejo....................................................112
4- Encontro na MUTUA dos Pescadores......................................................................114
5- A primeira vez na Carrasqueira e o encontro com o “Pai do Céu”...........................116
6- O estuário Sado.........................................................................................................121
7- Os portos de pesca.....................................................................................................124
8- O porto palafítico da Carrasqueira............................................................................125
9- Do arroz à pesca artesanal, ou como surgiu a Carrasqueira......................................130
8
9.1- A Carrasqueira como foi e como é: da casa de capim à vivenda...........................131
9.2- A agricultura e as batatas doces.............................................................................145
9.3- A constituição dos grupos familiares, ou como se tornar camaradas....................150
10- A pesca artesanal.....................................................................................................157
10.1- Embarcações.........................................................................................................159
10.2- Máres e Marés: os carrasqueiros e suas categorias..............................................163
10.3- A apanha...............................................................................................................171
10.4- A apanha de canivetes..........................................................................................173
10.5- A apanha de ameijoas no Tejo.............................................................................182
10.6- A centralidade do choco e suas implicações........................................................192
10.6.1- Os meses quentes e os meses frios....................................................................192
10.6.2- Algumas formas de classificações dos bichos...................................................194
11- A pesca de choco.....................................................................................................201
12- Entre chocos, linguados e mapas.............................................................................225
13- Notas........................................................................................................................240
13.1- Os chocos da Gâmbia...........................................................................................240
13.2- As enguias em Escama Ferro...............................................................................242
14- A venda de peixes e suas implicações.....................................................................245
14.1- A Lota...................................................................................................................246
14.2- O Comprador........................................................................................................251
14.3- A Candonga..........................................................................................................253
14.4- A Candonga “1”...................................................................................................255
14.5- A Candonga “2”...................................................................................................257
14.6- As modalidades de venda e “le calcul sauvage”..................................................260
9
III. A POPA (ou quanto custa ser pescador artesanal?)..........................................265
1- Sobre as etnografias..................................................................................................266
2- As queixas.................................................................................................................269
2.1- Em Ponta Grossa dos Fidalgos...............................................................................269
2.2- Na Carrasqueira......................................................................................................273
3- Escrutinizando a cosmologia pesqueira, ou do que o mundo é feito?.......................276
3.1- A Comunidade de Vida..........................................................................................279
3.2- “A pesca como um jogo”.......................................................................................281
3.3- “O peixe sempre vence”.........................................................................................285
3.4- Algumas noções nativas de previdência.................................................................289
3.4.1- Abundância e penúria..........................................................................................291
3.4.2- Presente e futuro..................................................................................................294
4- O que é o IBAMA para os pontagrossenses?............................................................298
5- O que é a Polícia Marítima para os carrasqueiros?...................................................303
6- Quanto custa ser pescador artesanal?........................................................................310
6.1- “Custa” desempenhar outras atividades conjugada à pesca...................................311
6.2- “Custa” transgredir normas oficiais de preservação ambiental..............................316
6.3- “Custa” a reprodução de um modo de vida através da tragédia.............................319
BIBLIOGRAFIA.........................................................................................................322
ANEXOS
10
APRESENTAÇÃO
Esta tese tenta consolidar resultados de pesquisas etnográficas realizadas em
dois povoados de pescadores artesanais: um no Brasil e outro em Portugal. Neste
sentido, o material apresentado insere-se em uma genealogia de estudos desenvolvida
no âmbito do Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas da Universidade Federal
Fluminense sobre as, assim chamadas, populações tradicionais, tomadas sob seus mais
diversos aspectos, qual sejam, o direito costumeiro, o conhecimento naturalístico, as
características das estruturas de produção, seus contextos tecnológicos, as formas de
manejo dos ecossistemas, bem como a organização social dos grupos dedicados à
atividade pesqueira1.
Tal empreendimento foi impulsionado pelo Professor Luiz de Castro Faria, com
a elaboração de uma etnografia sobre o assentamento de Ponta Grossa dos Fidalgos
ainda no final dos anos de 1940. Casto Faria empreendeu um amplo registro da
morfologia social e da atividade pesqueira desenvolvida historicamente nesta localidade
fixada na margem norte da Lagoa Feia, no município de Campos dos Goytacazes. Seu
trabalho, ainda inédito, fazia parte de um ambicioso programa de Estudos de
Comunidade do qual resultaria, nos anos 40 e 50, uma série de publicações relevantes
para a, assim chamada, Antropogeografia e para as Ciências Sociais no Brasil, tanto do
ponto de vista conceitual, quanto metodológico.
2
Uma década mais tarde, o mesmo
professor iniciou trabalho etnográfico junto aos pescadores de Arraial do Cabo – porção
litorânea da conhecida Região dos Lagos no litoral do Rio de Janeiro. Se por um lado
seus esforços em Arraial chamaram a atenção pela maneira peculiar com que se
evidenciaram as tensões entre pescadores artesanais, uma grande empresa produtora de
barrilha e sal e órgãos de controle e monitoramento ambiental, por outro, marcou o
início de trabalhos acadêmicos feitos por pesquisadores com formação em antropologia
e com preocupações voltadas aos povoados pesqueiros espalhados pela costa
fluminense.
1
Cf. CASTRO FARIA: 2000; BRITTO: 1999; CUNHA: 2000; LOBÃO: 2000; PRADO: 2002; MOTA:
2003; MIBIELLI: 2004; LATINI: 2006; VALPASSOS: 2006; COLAÇO: 2007; FILGUEIRAS: 2008.
2
Parte inédita deste material atualmente se encontra no Museu de Astronomia e Ciências Afins – MAST,
aos cuidados da Prof.ª Heloísa Bertol Domingues.
11
O interesse pela tópica da pesca artesanal, ainda na década de 1970, pode ser
atestado também pela participação de pesquisadores que atualmente estão ligados ao
NUFEP e que naquela época integravam o staff do Programa de Assistência à Pesca
Artesanal (PESCART).
3
Deste empreendimento participaram, ainda no início de suas
carreiras, os professores Roberto Kant de Lima4 e Marco Antonio da Silva Mello5,
ambos colegas de Departamento e ex-alunos de Castro Faria por ocasião do
Bacharelado em Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense.
A aproximação junto aos assentamentos pesqueiros litorâneos que se deu através
do PESCART abriu um interessante campo de estudo levado à frente por estes e outros
pesquisadores6. A consolidação desta temática, por um lado ligada à gestão
governamental e por outro às preocupações acadêmicas dos membros envolvidos, gerou
trabalhos seminais como “Pescadores de Itaipu - Meio Ambiente, Conflito e Ritual no
Litoral do Estado do Rio de Janeiro”, apresentado primeiramente como dissertação de
mestrado ao Museu Nacional em 1978 e posteriormente publicada na Coleção
Antropologia e Ciência Política da Editora da Universidade Federal Fluminense (Eduff)
e “Gente das Areias – História, Meio Ambiente e Sociedade no Litoral Brasileiro” fruto
de um logo trabalho de campo iniciado em 1975 e publicado, pela mesma, editora no
ano de 20047.
Durante minha graduação em Ciências Sociais, iniciada no ano de 2001 na
Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro ingressei, sob a orientação
do Prof. Arno Vogel8, no Projeto “Estruturas Tradicionais e Expansão Metropolitana
na Baixada Litorânea do Estado do Rio de Janeiro II” e com recursos do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) realizei, em conjunto
3
O PESCART tratava-se de um convênio entre o Ministério de Agricultura e outros órgãos
governamentais que tinha como objetivo principal promover o desenvolvimento do setor pesqueiro
artesanal no Brasil.
4
Professor Titular de Antropologia do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia/ICHF, da Universidade
Federal Fluminense/UFF e Coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia-Instituto de
Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos – INCT/InEAC.
5
Professor Adjunto do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia/ICHF, da Universidade Federal
Fluminense/UFF e do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense/IFCSUFRJ.
6
Como, por exemplo, a professora Elina Gonçalves da Fonte Pessanha, também ela autora de um estudo
sobre a pesca artesanal, realizado em Itaipu e intitulado Os Companheiros. Cf. GONÇALVES: 2003.
7
MELLO & VOGEL: 2004.
8
Professor Titular de Antropologia do Centro de Ciências do Homem/CCH, da Universidade Estadual do
Norte Fluminense Darcy Ribeiro/UENF.
12
com outros colegas de curso, trabalho de campo no povoado de Ponta Grossa dos
Fidalgos – sessenta anos depois da presença de Luiz de Castro Faria na localidade. O
material etnográfico coletado ao logo dos anos de bacharelado foi apresentado,
parcialmente, em minha monografia de conclusão de curso no ano de 2005.
No mesmo ano, ingressei no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da
UFF como o objetivo de dar continuidade à etnografia junto aos pontagrossenses. Sob a
orientação do Prof. Marco Antonio da Silva Mello defendi, no ano de 2007, a
dissertação “Tempo(s) Ecológico(s): Um relato das tensões entre pescadores artesanais
e IBAMA acerca do calendário de pesca na Lagoa Feia – RJ”. Após o início de meu
doutoramento abandonei por quase dois anos o trabalho entre os pescadores do nortefluminense. Somente início do ano de 2009, sob a coordenação do Prof. Roberto Kant
de Lima, retomei a etnografia.
Entretanto, a aproximação com as temáticas que mobilizavam os pesquisadores
do NUFEP – mais especificamente as tensões e conflitos entre grupos sociais e políticas
públicas – redi9recionaram meu olhar sobre as relações entre os pontagrossenses e os
órgãos de fiscalização ambiental. Assim, ao longo da pesquisa empírica realizada entre
os anos de 2009 e 2010 pude intensificar a etnografia das percepções que estes
pescadores artesanais tinham sobre a agência brasileira de meio ambiente, bem como
observei, mais próximo do que em anos anteriores, seus trabalhos haliêuticos.
De outubro de 2010 até julho de 2011 tive a oportunidade de participar do
Convênio Internacional CAPES-FCT com o subprojeto “Quanto Custa Ser Pescador
Artesanal? Tensões entre conhecimentos naturalísticos e políticas públicas numa
perspectiva comparada Brasil/Portugal”. Tal convênio estabeleceu cooperação
acadêmica internacional entre pesquisadores associados ao Instituto de Estudos
Comparados em Administração Institucional de Conflitos – o InEAC – , o qual o
NUFEP é sede, com o Centro de Estudos Sociais da Universidade Nova de Lisboa, o
CESNova, em Portugal. 10 A parceria entre os grupos de pesquisa, vigente até os dias de
hoje, é animada por eixos temáticos e empíricos que se articulam em três grandes
linhas: a visibilidade e invisibilidade das demandas de direitos e reconhecimento no
9
Arte da pesca.
A parte brasileira é coordenada pelo Prof. Roberto Kant de Lima e a parte portuguesa pelo Prof. José
Manuel Resende da Faculdade Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa/FHCS.
10
13
espaço público, os sistemas classificatórios dos distintos grupos profissionais, e suas
consequências na administração institucional de conflitos, e as modalidades e
dispositivos de socialização política e de qualificação da ação pública.
Na ocasião de minha estadia portuguesa, residi a maior parte do tempo no
povoado pesqueiro da Carrasqueira, localizado na costa central portuguesa na região da
península de Setúbal. Seus moradores se dividiam entre a pesca e a agricultura,
desempenhando suas atividades haliêuticas no estuário do Sado. Com pouco
conhecimento sobre a realidade da pesca artesanal portuguesa e motivado pelas
questões trabalhadas com os pontagrossenses, elaborei etnografia da vida social do
povoado com especial atenção para os conhecimentos naturalísticos e suas percepções
sobre os órgãos de fiscalização ambiental.
A pesquisa empírica em terras estrangeiras foi pensada, inicialmente, apenas
como um exercício de deslocamento e estranhamento que agregaria valor inestimável a
minha formação como antropólogo. Uma oportunidade de, em curto período de tempo,
coletar dados etnográficos que pudessem ser modestamente contrastados com o extenso
material da pesquisa no norte-fluminense. Mas, para minha surpresa, minha integração
com os carrasqueiros se deu de modo rápido e profícuo. Esta condição me possibilitou a
observação exaustiva da vida dos moradores desta localidade, principalmente daqueles
que se dedicavam à pesca artesanal. Tanto que, antes mesmo de meu retorno ao Brasil,
em julho de 2011, considerei, seriamente, a possibilidade de escrever um texto
etnográfico com o objetivo de comparar a vida de pescadores brasileiros e portugueses,
suas práticas e suas percepções sobre a fiscalização ambiental.
“Quanto Custa Ser Pescador Artesanal? Etnografia, relato e comparação entre
dois povoados pesqueiros no Brasil e em Portugal” está dividido como um barco.
Possui, portanto, a Proa, o Meio e a Popa.
Na Proa, o leitor é apresentado, inicialmente, ao povoado de Ponta Grossa dos
Fidalgos e à Lagoa Feia. O texto segue com a descrição das técnicas pesqueiras tal
como elaboradas e praticadas pelos pontagrossenses. A observação das atividades
haliêuticas foi fundamental para a abertura de algumas questões que dirigiram a
pesquisa de campo por muito tempo – como a problemática em torno das reformas de
engenharia que se abateram sobre o ecossistema lacustre, ao longo do século XX, bem
14
como a fiscalização ambiental tal como esta tem se configurado nos últimos vinte anos,
aproximadamente. Assim, na Proa, são descritas as interpretações que os pescadores
fazem da natureza, seus conhecimentos naturalísticos e suas formas costumeiras de
organização dos espaços de captura. Ainda nesta parte, o texto contrasta a percepção e
as práticas dos pontagrossenses no que diz respeito à atuação da agência brasileira de
meio ambiente, apontando dissensos em torno do estabelecimento dos calendários de
pesca.
No Meio, o leitor atravessa o Atlântico até chegar a Carrasqueira. Aqui o texto
ganha outro estilo. É construído como um relato de viagem. Diferente da Proa, cuja
etnografia é marcada pelas as idas e vindas ao campo e foi construído, aos poucos, ao
longo de minha formação, o Meio é uma peça elaborada de pronto após o retorno ao
Brasil. Tem, propositalmente, uma construção teleológica que tenta reproduzir minha
trajetória nos dez meses de estadia em Portugal. Apresenta inicialmente o setting que
inclui o estuário do Sado e o povoado, de acordo com o ponto de vista carrasqueiros.
Aos poucos, os relatos vão dando o tom de suas experiências e de sua visão de mundo –
notadamente associadas à inscrição profissional. Em seguida é apresentado universo da
pesca artesanal praticada nos mares do Sado – e até mesmo em outros mares. A
descrição deste universo, assim como em Ponta Grossa, evidencia conhecimentos
naturalísticos e direitos costumeiros. Dele, também deriva uma etnografia da complexa
venda de peixes no contexto português.
Enfim, a Popa (ou Quanto Custa Ser Pescador Artesanal?). A última parte
apresenta o contraste entre as percepções de pontagrossenses e carrasqueiros sobre as
normas oficiais que afetam, em cada contexto, a prática da pesca artesanal. A pergunta
que tenta ser respondida na Popa é por que a maioria dos pescadores não segue regras
de conservação ambiental, tal como esperam o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e
dos Recursos Naturais Renováveis e a Direção Geral de Pescas e Aquicultura de
Portugal? São apresentados aqui, de forma mais cuidadosa e descritiva, relatos nativos
sobre como os dois grupos se relacionam com a natureza e com os órgãos de
fiscalização ambiental. Para isso, o texto reconstrói, etnograficamente, a cosmologia
pesqueira evidenciando percepções sofisticadas sobre o funcionamento do ambiente, o
comportamento dos animais, e as noções de tempo e previdência que esquematizam um
15
modo de vida comum às populações que se dedicam ao ofício da pesca artesanal
submetidas a ambientes relativamente semelhantes.
Por isso, enfim, que “Quanto Custa Ser Pescador Artesanal?” é uma tentativa
arriscada de retomar, sob outros moldes – quais sejam, a descrição etnográfica e o
trabalho de campo intensivo em perspectiva comparada – a problemática em torno da
construção dos Tipos Sociais apresentados na Revista Brasileira de Geografia, a partir
de 1939, e notabilizados no almanaque Tipos e Aspectos do Brasil, publicado,
posteriormente, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística11. A etnografia dos
oficiantes da pesca artesanal, seja esta lacustre ou estuarina, revela elementos que dão
unidade à existência desta gente no Brasil e em Portugal. Combinando, de acordo com
o ponto de vista deles, ambiente físico e comportamento social, este texto versa, ao fim
e ao cabo, sobre modo de vida de um povo.
11
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA: 1963 [Almanaque].
16
I. “A PROA”
“É noite, é noite/Helambaê, Halambaio, Helambaê, Halambaio/Helambaê, Halambaio, Helambaê,
Halambaio/Pescador não vai pra pesca/Pescador não vai pescar/Pescador não vai pra pesca que é noite de
temporal.” Dorival Caymmi.
17
1 – O caminho para a Lagoa Feia, ou o primeiro acaso.
Os caminhos que me levaram à Ponta Grossa dos Fidalgos, assentamento de
pescadores no norte do estado do Rio de Janeiro, no final do ano de 2001, não seriam os
mesmos que me indicariam a direção da Carrasqueira, povoado de pescadores e
agricultores localizado na costa central de Portugal, quase dez anos depois. Mas, o que
há de semelhante em seus movimentos é que nos dois casos, o acaso, (associado a
fatores aparentemente distantes de preocupações meramente científicas) me colocaria
em contato com um mundo que eu ainda não conhecia: o mundo da pesca artesanal e
das pessoas que vivem desta atividade.
No segundo semestre letivo do ano de 2001, na qualidade de aluno do
Bacharelado em Ciências Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy
Ribeiro (UENF), eu residia em uma república de estudantes na cidade de Campos dos
Goytacazes, cerca de 300 Km de minha cidade de moradia, o Rio de Janeiro. Naquela
época, eu ainda era um dos poucos alunos matriculados no Centro de Ciências do
Homem que tinha vida e moradia na capital. Longe de minha família, tal condição, fez
com que eu, desde o início do ano, tivesse que buscar por um emprego cujo salário
fosse ao menos suficiente para minha estadia na cidade de Campos.
A procura por trabalho no centro comercial de Campos revelou, rapidamente, a
dificuldade da empreitada. Recebi vários “nãos” como resposta. Os motivos variavam
entre “não contratamos ninguém neste período”, ou “sua faculdade tem aulas à tarde e
em nenhuma loja aqui vai te contratar assim”. Desanimado com as respostas, mas
entusiasmado com o curso de Ciências Sociais, resolvi tentar contato com o Serviço
Social da Universidade. Soube, através de alguns colegas, que existia um auxílio em
dinheiro pago aos alunos menos favorecidos e/ou oriundos de outras regiões. Era a
chamada “Bolsa de Apoio Técnico”. Pela quantia de R$ 190,00 por mês, o estudante
contemplado com a Bolsa deveria desenvolver algum tipo de trabalho administrativo
nos mais diversos órgãos e laboratórios da UENF.
Enviei minha documentação para o Serviço Social e fui notificado que minha
entrevista estava marcada. Esperei ansioso pelo dia. O dinheiro, não era muito, mas
meus gastos com estadia, alimentação e foto-cópias giravam em torno de R$ 300, 00. A
aquisição da Bolsa poderia diminuir os gastos que, até aquele momento, eram arcados
18
pela minha família. Porém, infelizmente, não obtive sucesso na entrevista. Ouvi da
assistente social responsável pelo processo que seria injusto me conceder uma Bolsa
daquela natureza já que eu tinha residência numa cidade na qual havia pelo menos
quatro universidades públicas. A UENF recebia alunos de várias regiões do estado do
Rio de Janeiro, e mesmo de fora dele, onde não havia nenhuma.
Triste com o resultado decidi que meu dead line seria o final do ano de 2001,
quando eu completaria o segundo período de curso. Caso não conseguisse recursos para
me manter em Campos eu trancaria minha matrícula e retornaria ao Rio de Janeiro com
o objetivo de aguardar a publicação dos editais de transferência de outras universidades
públicas na cidade.
Foi neste momento que uma colega mais adiantada no curso de Ciências Sociais
me avisou que um professor estava à procura de bolsistas de iniciação científica 12. O
termo “iniciação científica” era praticamente desconhecido por mim. Ainda no segundo
semestre de faculdade, eu não entendia bem os termos, as práticas, e o trabalho mesmo
de um pesquisador desta área.
O diálogo com minha colega sobre a possível oportunidade de trabalho ocorreu
mais ou menos assim:
– Você conhece o Prof. Arno Vogel? – disse ela.
–Não. Pessoalmente, não – eu respondi.
–Você gosta de Antropologia?
–Sim, gosto. Mas gosto de tudo também. O meu contato com a Antropologia está
acontecendo agora, no segundo período, pois estou cursando Antropologia 1.
–Ah, tá... Então, vai lá no LESCE (Laboratório de Estudos da Sociedade Civil e do
Estado), se apresenta e conversa com ele. Ele tem bolsa de um projeto que trouxe lá do
Rio, se não me engano.
Não posso esconder, quando repito esta história, que meu maior interesse era a
Bolsa, independentemente das atividades de pesquisa que eu poderia vir a desempenhar.
12
Me refiro à Antropóloga Fernanda Huguenin.
19
A necessidade do dinheiro naquelas circunstâncias era maior do que a predileção por
esta ou aquela Ciência Social. Eu era um aluno no primeiro ano do bacharelado e, como
é comum, não entendia nada sobre as diferenças entre Antropologia, Sociologia ou
Ciência Política.
Assim, munido da vontade de continuar a graduação e conseguir a tal Bolsa de
Iniciação, bati na porta do LESCE. O Prof. Arno Vogel me recebeu em seu gabinete de
modo muito simpático. Eu me apresentei, disse que tinha vindo por indicação de uma
colega e que estava disposto a trabalhar. Ele me explicou rapidamente do que se tratava
o projeto. Perguntou se eu possuía conta corrente no Banco do Brasil e se eu conhecia
mais algum aluno para indicar, pois ele contava com duas bolsas naquele momento.
Respondi que não tinha conta no banco (mas que abriria naquele mesmo dia!) e que
tinha um colega que poderia se interessar em trabalhar no projeto. O colega, que nos
anos seguintes tornar-se-ia um grande companheiro de pesquisa etnográfica, era Carlos
Abraão Valpassos.
O Prof. Arno pediu que eu preenchesse um formulário do CNPq e lhe passasse
meus contatos pessoais. O fim do ano se aproximava. Era novembro. Ele então disse:
“Esta é a ‘boneca’ de meu livro. O escrevi junto com meu amigo
Marco Antonio da Silva Mello. É sobre os pescadores da aldeia de
Zacarias, em Maricá (RJ). Leve-a para casa, tenha cuidado, leia e em
janeiro conversamos. Assim, podemos dar início à pesquisa de campo
em Ponta Grossa dos Fidalgos”.
Me despedi do Professor. Saí do Laboratório feliz. Contente por ter conseguido a
bolsa e por começar algum tipo de trabalho de pesquisa em minha área de formação.
Queria transmitir logo a notícia para meus familiares, namorada e colegas mais
próximos. Ao mesmo tempo, não tinha muita idéia de como seria o trabalho. Não sabia
que naquela tarde quente de novembro eu estaria dando o primeiro passo de minha
trajetória como pesquisador. Que dali em diante, pescadores artesanais, etnografia ou
Lagoa Feia eram conceitos que habitariam meu mundo e minhas preocupações
intelectuais.
20
E, não sabia, como lembrou Prof. Arno anos depois durante a arguição de meu
projeto de mestrado na Universidade Federal Fluminense, “que uma bolsa de iniciação
científica poderia render tanto”.
2 – A Lagoa Feia e Ponta Grossa dos Fidalgos.
Em minha primeira incursão a barco na Lagoa Feia eu estava na condição de
observador privilegiado ao navegar por aquela que é considerada a maior lagoa de água
doce do país e de poder contemplar in loco o exagero de suas dimensões físicas. Em
nosso barco ainda se encontrava o antropólogo Carlos Abraão Valpassos, que, como eu,
naquele período ainda era um aluno de Iniciação Cientifica do Curso de Ciências
Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro – além de amigo
e companheiro de pesquisa com quem pude compartilhar bons e maus momentos no
trabalho de campo. Os dois pescadores que nos acompanhavam, aos poucos, se
transformariam em importantes personagens da pesquisa.
Talvez uma das tarefas mais difíceis seja conseguir traduzir em palavras o que é
estar na Lagoa Feia, sem ocultar toda a dimensão sensível desta experiência. Descrever
uma lagoa, cujo nome parece desprovido de coerência semântica, não pode ser
concebido como um exercício técnico apenas. O que dizer do cheiro da vegetação que
circunda o espelho d’ água, combinado com os matizes dos variados bandos de pássaros
em seu balé voador? E sobre o céu que parece mudar a todo o momento, pois a
intensidade dos ventos faz as nuvens harmonizarem diferentes pinturas suspensas? Por
outro lado, de que forma descrever a presença sempre desagradável dos insetos que
acompanham o curso do pescador – e mesmo do etnógrafo – em sua labuta diária? Ou
como qualificar a exposição ao sol escaldante logo após as primeiras horas do dia nos
meses mais quentes do ano? De qualquer modo estar na Lagoa Feia é experimentar um
mosaico de paisagens e sensações diferentes. É ser arrebatado por sua imponência.
Sua bacia hidrográfica cobre uma superfície de aproximadamente 2.955 Km2
constando o Canal das Flechas como seu escoadouro principal. Suas porções norte e
21
nordeste se confrontam com a bacia do Rio Paraíba do Sul, a oeste, com a bacia do Rio
Macaé e a sudeste com um conjunto de lagoas e lagunas litorâneas13.
Dia nublado
Por do sol
Margem em Canto do Sobrado
Do mesmo ecossistema faz parte ainda a Lagoa do Jacaré, cercada por brejos
periféricos, dentre os quais as lagoas do Luciano e da Ribeira. Até 1966 a Lagoa do
Jacaré era, na verdade, uma enseada da Lagoa Feia, da qual se encontra atualmente
isolada por diques e aterros, mantendo-se apenas um canal de ligação. A variedade de
plantas flutuantes, mangues e brejos, na sua orla, cria condições particularmente
propícias à subsistência de uma fauna igualmente diversificada.
Sessenta e nove espécies de peixes foram registradas na bacia, sendo que
cinquenta e seis habitam a Lagoa em regime integral 14. Há também uma grande
quantidade de espécies marinhas que chegam até a Lagoa através do Canal das Flechas,
13
14
Cf. BIDEGAIN & SOFFIATI: 2002.
Ibid.
22
algumas delas de médio porte como, por exemplo, o robalo e a tainha, que percorrem
toda a extensão lacustre, alcançando ainda a Lagoa de Cima.
Fonte: FENO RTE
F o to de S até lite o n de E s tã o D e sta cad o s o s C an a is
C o ns tr uíd os n a B ac ia d a L ag o a Fe ia
Imagem de satélite. Fonte: TECNORTE
Sua orla é composta por terrenos de planície aluvial e de restinga. Circundada
por pastagens, com raras árvores nativas isoladas, se destacam os aglomerados de
“gaiolinha” – planta africana designada em parte do nordeste brasileiro como avelós.
Sua porção meridional margeia o município de Quissamã. A estrada que liga este
município a Campos beira a Lagoa ao longo de alguns quilômetros.
O fundo da Lagoa é plano e seu assoreamento, ao longo dos anos, foi intenso.
Um levantamento batimétrico realizado no ano de 1995, sob os auspícios da Fundação
para o Desenvolvimento do Norte Fluminense – FUNDENOR – registrou a
profundidade atual da Lagoa oscilando entre 1,5m (mínima) e 2,3m (máxima) 15. De um
modo geral, suas águas são muito barrentas, devido, sobretudo, à intensidade dos ventos
que quando sopram do quadrante meridional agitam bastante as águas, segundo
informação dos pescadores, o que também fora observado durante o trabalho de campo.
Fauna e Flora
15
Lagoa
Id.
23
Entrada do Rio Ururaí
Por mais amparados que estejamos em reflexões clássicas ou contemporâneas
sobre o trabalho etnográfico, as experiências no campo são sempre algo peculiar a cada
pesquisador16. Ainda na introdução dos Argonautas, Malinowski qualifica a etnografia
como a “ciência do relato honesto”
17
. Não resta muito, portanto, senão descrever nas
próximas páginas, as condições nas quais foi realizado o trabalho de campo.
Parte da etnografia foi realizada no povoado de Ponta Grossa dos Fidalgos
durante os anos de 2002 a 2006. Neste período, visitas diárias foram alternadas com
semanas inteiras de trabalho entre os moradores e os pescadores do local. Outra parte
foi elaborada entre os anos de 2009 e 2010.
Uma das casas alugadas durante o trabalho de campo
16
17
Cf. EVANS-PRITCHARD: 1978.
MALINOWSKI: 1984, 18.
24
Cômodos de uma das casas alugadas
Outra importe informação que deve ser salientada é a de que raramente estive
sozinho durante os primeiros anos do trabalho de campo. Sempre houve muito estímulo,
tanto por parte do Prof. Arno Vogel quanto pelo Prof. Mello, para que o trabalho fosse,
dentro do possível, realizado em grupo. Ambos sempre mencionavam os ensinamentos
que o “trabalho de campo de longa duração” e em “equipe” poderiam ser importantes
recursos metodológicos para a coleta de dados18.
Escrever sobre o que foi o trabalho de campo é também empreender uma espécie
de genealogia do percurso. Uma tentativa muitas vezes frustrada de refazer um caminho
aparentemente familiar, mas que ao mesmo tempo é capaz de oferecer novas direções –
muitas delas para caminhos incertos. Para tanto, esta viagem não poderia começar sem
antes utilizar um método que pode, à primeira vista, parecer um lugar comum da
Antropologia: visitar as notas de campo.
De um modo geral, entre todos os recursos utilizados pelos etnógrafos – mesmo
os de diferentes gerações ou tradições teórico-metodológicas –, o caderno de campo ou
18
Conferir os comentários de James Clifford sobre o trabalho de campo feito por Marcel Griaule em
CLIFFORD: 2002.
25
caderno de notas parece ser aquele mais presente durante todo o trabalho. Isso não
significa, entretanto, que todos os dados etnográficos estejam no caderno. Em um artigo
muito criativo, Jean Jackson mostrou que praticamente não há consenso entre os
antropólogos americanos sobre o que realmente é a nota de campo19. Sua enquête
constatou que os entrevistados definem como notas de campo desde os mais prosaicos
escritos nas cadernetas que acompanham o etnógrafo em ação até o caso onde
pesquisadores afirmam ser a própria nota – daí o título de seu trabalho: I’m a Fieldnote:
Fieldnote as a Symbol of Professional Identity20.
Mais do que um conjunto de registros e informações escritas ao longo de
conversas no meio da rua (ou da Lagoa), o caderno funciona como um recurso
mnemotético. Um auxílio fundamental para a elaboração do texto etnográfico. Muitas
vezes um fragmento, um rabisco, palavras-chaves ou desenhos são suficientes para que
o etnógrafo possa reconstruir mentalmente uma experiência passada. Relendo as
anotações feitas durante o primeiro ano de pesquisa pude perceber algo já apontado por
Carlos Valpassos em sua dissertação de mestrado: que os grandes temas que viriam
posteriormente a ser considerados como objeto de diferentes pesquisas foram todos, de
algum modo, explicitados por nossos primeiros interlocutores em nossa primeira visita
à Ponta Grossa dos Fidalgos21. A significativa redução do espelho d’água da Lagoa e
algumas das justificativas nativas para a explicação de tal processo, o elenco das pescas
artesanais que, entre outras coisas, envolvia um profundo conhecimento do ecossistema
lacustre, as festividades religiosas, as querelas onde figuravam importantes personagens
da política local, o crescimento e as transformações que o povoado sofreu ao longo dos
últimos anos. Enfim, uma gama de assuntos que rendeu, inicialmente, muitas anotações
e futuros desdobramentos.
Parte do relato será feito no plural, pois estive ao longo do trabalho
acompanhado por outros pesquisadores na maior parte do tempo.
19
JEAN JACKSON: 1990.
Na ocasião de minha defesa de dissertação, o Prof. Roberto Kant de Lima, na qualidade de membro da
banca examinadora, mencionou que foi ele próprio quem disse a frase “I’m a Fieldnote” à antropóloga
quando foi entrevistado para a pesquisa.
21
Cf. VALPASSOS: 2006.
20
26
Valpassos, Doba e Colaço
A primeira fase da pesquisa teve um caráter mais exploratório, durante a qual
“descobrimos” o campo – estabelecendo os contatos iniciais com os moradores e
levantando questões para a etnografia. Até aquele momento tínhamos em mente a
leitura de Gente das Areias e uma vaga idéia do que seria o tal povoado pesqueiro. O
trabalho de campo engendrou temas pertinentes os quais, às vezes, não sabíamos ao
certo de que forma considerar. Por outro lado, e para nossa confusão, a maioria das
questões pareciam já ter sido levantadas no material etnográfico produzido pelo
Professor Luiz de Castro Faria, cerca de sessenta anos antes sobre o povoado.
Os primeiros anos foram bastante delicados, pois serviram, entre outras coisas,
para consolidar o relacionamento com os moradores de Ponta Grossa dos Fidalgos.
Com raras exceções, estes se mostraram sempre muito amigáveis e dispostos a auxiliarnos no que fosse preciso. A maior dentre as dificuldades iniciais foi levar os pescadores
a entenderem os reais objetivos de nosso trabalho. Embora Ponta Grossa não figure
como polo turístico, a maioria deles já estava acostumada com a presença de
“estranhos” entre eles, pessoas em busca dos atrativos naturais da região, figuras ligadas
a políticos locais (quando não os próprios), frequentadores oriundos das regiões
vizinhas e até mesmo outros pesquisadores.
Estes e alguns outros papéis sociais já estavam praticamente definidos. Foi, no
entanto, uma novidade para eles encontrar uma dupla de pesquisadores interessados em
estudar suas técnicas pesqueiras, seus conhecimentos sobre a Lagoa e, de uma maneira
geral, o seu modo de vida. Pelo menos foi dessa forma que Amarinho, Belo e Doba –
pescadores e moradores locais – nos receberam na primeira visita de pesquisa.
27
Amarinho e seus sobrinhos
Doba e Colaço
Chegamos, numa manhã de janeiro de 2002, de carona em uma Kombi, pois
tínhamos perdido o horário de saída do ônibus da Viação Progresso22. Desembarcamos
na entrada do distrito de Ponta Grossa e, depois de alguns contatos estabelecidos com o
auxílio de um amigo de faculdade que nos acompanhou na ocasião 23, nos
encaminhamos para uma pequena venda a fim de comer e beber algo. Lá
encontraríamos estes três personagens, sendo que dois deles – Amarinho e Belô – quase
que automaticamente se tornaram responsáveis por nos apresentar o povoado naquele
dia. Explicamos as razões de nossa presença ali e nossos anfitriões nos proporcionaram
uma visita guiada pelas ruas do lugar.
Ponta Grossa dos Fidalgos se localiza na margem setentrional da Lagoa. Uma
rápida caminhada revela até mesmo para o observador mais desavisado que se trata
realmente de um povoado pesqueiro. Sem muito esforço o caminhante esbarra a todo o
momento com grupos de homens tecendo e reparando redes de pesca, construindo ou
consertando embarcações, ou mesmo carregando pescado em isopores com gelo.
De acordo com o levantamento feito por uma pesquisadora, vive aí atualmente
uma população de pouco mais de 2.000 habitantes em 650 moradias24. A confirmar-se
22
Empresa de ônibus responsável pelo transporte no trecho Campos-Ponta Grossa. O percurso é realizado
em tempo médio de uma hora e meia por conta das paradas em vários distritos da Baixada Campista até
seu ponto final no povoado pesqueiro.
23
Este era Ramon Maia, também aluno do curso de Ciências Sociais que tinha como amigo um morador
local.
24
Levantamento feito por Cyntia dos Santos Jorge, com base nas fichas de cadastramento do Posto de
Saúde do povoado.
28
este número, a localidade cresceu muito pouco em comparação com o período estudado
por Castro Faria25.
Colaço, Dijeane e Dodô
Neguinho, Luis e sua neta
A pesca artesanal lacustre é a principal atividade econômica de Ponta Grossa dos
Fidalgos, embora seja possível, atualmente, encontrar aí também outros tipos de
ocupação. Há moradores – principalmente das gerações mais novas – que trabalham em
Campos dos Goytacazes. Estes tiveram pouco ou nenhum contato direto com a pesca.
Além disso, com o assentamento localizado ao norte da Baixada Campista, parte de seus
habitantes trabalha no setor rural prestando serviços nas fazendas de gado e nas usinas
de açúcar da região.
Nilson, Colaço e Vavá
A localidade de Ponta Grossa se estende ao longo da margem da Lagoa e sua
área residencial compreende uma faixa de aproximadamente 3,5 km. Uma rua principal
25
“A população de Ponta Grossa é relativamente numerosa; não conseguimos, entretanto, dados
estatísticos completos. (...) O total da população deve andar em torno de mil indivíduos”. CASTRO
FARIA: 1939/41.
29
– João Cabral de Melo – atravessa o povoado de uma extremidade à outra. O lugar
recebeu energia elétrica na década de 1960.
Em termos de sua distribuição espacial temos, de leste a oeste, a seguinte
divisão: Ponta, Beirada e Ingá. Os moradores mais antigos afirmam que o assentamento
teve sua origem na Beirada e no Ingá, estendendo-se, posteriormente, até a Ponta. No
Ingá e na Beirada há dois largos que são chamados de praças pelos moradores.
Tomando como referência a Praça da Beirada e seguindo rumo ao norte chega-se à
Igreja Nossa Senhora da Conceição; rumo ao sul chega-se à Lagoa, para o leste fica a
Ponta e, na direção oeste situa-se o Ingá. Atualmente, entre a Beirada e o Ingá,
encontra-se, a região do Macaco e, para além da Ponta, a região do Trator. Da Praça do
Ingá sai a estrada de asfalto que, rumando para o norte, liga Ponta Grossa ao vizinho
distrito de Tócos.
Estrada
para
Rua João Cabral
Neto
Ingá
Igreja Nossa
Senhora da
Conceição
Campos
Praça do
Ingá
Praça da
Beirada
Beirada
Pesque
Pague
Porto da
aBeirada
Lagoa Feia
Esquema da organização espacial de Ponta Grossa elaborado por Valpassos.
Os moradores locais relatam que ainda na década de 1940 o espelho d’água da
Lagoa Feia beirava a rua João Cabral de Melo chegando até mesmo a inundá-la na
época das cheias. Atualmente, com a redução da área lacustre, ruelas perpendiculares
à principal estendem-se, por mais de 200 metros, na direção da Lagoa. Ao longo das
margens da Lagoa Feia, vamos encontrar os portos – lugares, em sua maior parte, de
formação brejeira, onde os pescadores fundeiam suas embarcações ao voltar da
30
pesca. De leste a oeste, temos os portos do Trator, de Normélia, da Beirada, do
Chiquinho, do Macaco, de Amaro Bagre, do Campo, de Balmineira, e dos Soares.
Zé Lisboa em sua casa
O número de estabelecimentos comerciais aumentou com relação ao período
estudado por Luiz de Castro Faria. Em Ponta Grossa, existem atualmente um
minimercado, um salão de festas, uma farmácia, um pesque-pague, duas padarias, duas
lojas de roupas e miudezas, três açougues, cinco armazéns, e onze bares. O lugar
também conta com um posto de saúde, duas escolas municipais e um campo de futebol
que na ocasião de nossa primeira visita ainda estava no final de sua construção. Entre os
estabelecimentos religiosos é possível encontrar uma igreja católica e duas igrejas
evangélicas.
Há dois eventos calendários locais a propósito dos quais os moradores se
mobilizam – 29 de junho e 08 de dezembro – correspondentes, respectivamente, às
festas de São Pedro) – padroeiro dos pescadores –, e de Nossa Senhora da Conceição –
padroeira do distrito de Ponta Grossa dos Fidalgos. Embora se trate de comemorações
tradicionalmente católicas, a parte profana do evento não exclui os moradores de outros
credos. Também há festividades no período do Carnaval.
31
Procissão na Lagoa durante a Festa de São Pedro no ano de 2002
Boi de Carnaval no ano de 2010.
3 – A pesca artesanal
O universo da pesca artesanal, tal como pude observá-lo em Ponta Grossa dos
Fidalgos, se constitui mediante a elaboração, mobilização e articulação de determinados
dispositivos técnicos com base nos conhecimentos adquiridos da tradição do ofício
pesqueiro e de sua constante atualização na experiência quotidiana. Entretanto, mais do
que dispositivos técnicos bem articulados, a pesca artesanal imprime nos habitantes
locais uma marca que os distingue dos demais grupos e povoados da Baixada Campista.
Essa classificação exógena também acaba envolvendo aqueles moradores que
não têm contato direto com a pesca artesanal. Sem entrar, por hora na discussão da
qualidade dessa identidade, parece possível afirmar que os moradores locais, querendo
ou não, estão relacionados com ela. Seja por alguma relação de parentesco com aqueles
que desempenham (ou desempenharam) o ofício, ou mesmo pelo simples fato de residir
em um povoado situado às margens da Lagoa Feia onde, desde sua constituição, a
32
atividade da pesca artesanal já chamava a atenção pela quantidade da produção bem
como diversidade das espécies capturadas. Um bom exemplo disso está presente ainda
hoje na forma nostálgica com que os moradores mais antigos da cidade de Campos,
principalmente aqueles das classes sociais mais abastadas, se referem aos famosos
“Robalos da Lagoa Feia”. Para tal espécie sempre foram atribuídas qualidades
positivas que afirmam o seu tamanho (em comparação a outros peixes encontrados na
região Norte-Fluminense) e o paladar refinado de sua carne – ingrediente indispensável
para a feitura de sofisticadas receitas da culinária.
Para efeitos de exposição, começarei esta descrição à maneira de Malinowski,
com uma etnografia da canoa de pesca e das embarcações que lhe sucederam em
tempos mais recentes para depois apresentar os demais apetrechos pertinentes: redes,
remos e calões. Em seguida, vou deter-me nos grupos de pesca para, finalmente,
apresentar o conjunto mais relevante das modalidades pesqueiras praticadas pelos
pescadores ponta-grossenses.
Desejo apresentar aqui como as técnicas desempenhadas por estes pescadores
estão estritamente associadas a um conhecimento refinado do ecossistema da Lagoa no
que diz respeito a sua constituição geográfica e biológica como um todo. A etnografia
desse conhecimento naturalístico acabou revelando, ainda que de forma limitada, um
complexo sistema de etiquetas que podem ser entendidas como regras que organizam o
acesso aos recursos pesqueiros na Lagoa Feia.
Os pescadores de Ponta Grossa dos Fidalgos utilizavam, tradicionalmente,
canoas. Essas embarcações eram feitas de peroba ou cerejeira e esculpidas em um único
tronco. O material podia ser facilmente encontrado na Mata do Imbé, área florestal
localizada a noroeste do município de Campos dos Goytacazes. As canoas mediam de
seis a oito metros de comprimento, tinham formato arredondado nas extremidades da
popa e da proa e eram impulsionadas por velas, feitas de sacos de farinha de trigo, e
com o remo, que funcionava, ora como propulsor, ora como leme. Quando não havia
vento os pescadores utilizavam, além do remo, uma espécie de vara, ainda mais longa
do que este, que, cravada no fundo da Lagoa servia, ainda, para ancorar a embarcação,
impedindo-a de se movimentar livremente.
Atualmente não se produzem mais canoas em Ponta Grossa. Subsistem aí apenas
três embarcações deste tipo e, mesmo assim a data de sua construção remonta, pelo
33
menos, quatro décadas passadas. Dois motivos podem explicar tal fato. O primeiro foi a
proibição da derrubada de peroba no Imbé, pois esta havia sido identificada como uma
espécie arbórea em extinção, pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais (IBAMA). O segundo motivo está relacionado com a disponibilidade. Desde o
asfaltamento da estrada, que liga Ponta Grossa aos outros municípios da Baixada
Campista, se tornou viável obter determinados bens e serviços, outrora pouco
acessíveis. Assim, os pescadores puderam adquirir, entre outras coisas, madeira cortada
em tábuas de tipos e origens variadas.
Por volta de 1970, as canoas começaram, então, a ser substituídas por barcos de
tabuado. Estes são constituídos por diferentes partes, articuladas umas às outras por
pregos de ferro ou de cobre bem como utilizando cantoneiras de metal. Cada parte é um
plano constituído de várias tábuas, que deve ser medido e cortado separadamente para
facilitar a combinação de dois ou três tipos diferentes de madeiras na mesma
embarcação. Usualmente os construtores preferem a oiticica, pois tem boa durabilidade
e um preço proporcionalmente vantajoso.
Acompanhei, em várias ocasiões, a construção de barcos em Ponta Grossa dos
Fidalgos, além de, corriqueiramente, observar os pescadores empreendendo pequenos
reparos em suas embarcações. Existem apenas dois mestres construtores de barco na
localidade: Sêo Pedro e Sêo Alcino. Ambos aprenderam a técnica com artífices mais
velhos e de maneira informal.
Foto de José Colaço
Feitura do barco
Feitura de Barco
Ferramentas
A confecção começa com o corte da borda do barco, ou seja, os dois panos
laterais da embarcação. A borda pode variar dos 7,20m até 8,50m de comprimento e
sua altura média é de cerca de 80 centímetros. Em seguida, se tira a medida do
lançamento, recorte diagonal localizado na proa do barco. O ângulo formado entre a
34
borda e o lançamento é de aproximadamente 130 graus. Antes do corte do resto da
madeira, é o lançamento que serve como referência média para o tamanho da
embarcação. Para envergar a proa, amarra-se uma corda bem apertada ao redor dela.
Tencionada a corda, a proa se afila e se eleva um pouco, com relação ao restante do
barco. O fundo se faz por último, aproveitando o novo molde, resultante da pressão da
corda. Pregos de 6 centímetros, ao longo de toda a extensão do barco, mantêm
conectadas entre si todas as partes do mesmo. Pronta a estrutura, resta apenas aplicar a
massa, para vedar as fendas; fixar os bancos – cuja quantidade é proporcional ao
tamanho da embarcação – e pintar a madeira. A cor mais utilizada em Ponta Grossa dos
Fidalgos é o verde-escuro. Há quem diga que esta preferência se deve ao fato de que
esse matiz funciona como uma espécie de camuflagem, tornando a embarcação
invisível na vasta vegetação lacustre.
Embora tenha deixado de ser produzida, a canoa continua, atualmente, mais
valorizada do que o barco, porque lhe são atribuídas certas qualidades específicas, tais
como grande durabilidade e excelente aerodinâmica para a navegação. Ao estabelecer
comparações, os pescadores costumam dizer: “enquanto o barco vai de encontro à
água, devido ao seu formato ‘mais quadrado’, a canoa desliza, ela corta a água porque
é esculpida de forma mais arredondada”. O barco, por sua vez, além de suportar
menos peso do que a canoa apresenta-se ainda menos estável do que esta. Esta distinção
entre as duas embarcações me parece, às vezes, ligada também certa nostalgia dos mais
velhos. É possível assim falar de um tempo da canoa, rememorado pelos moradores
locais, onde “as pescarias eram mais fartas” e onde os pescadores eram reconhecidos
por sua técnica e desenvoltura na prática do ofício. Os relatos acerca da canoa
transcendem, pois, a questão de sua maior ou menor utilidade, revelando, para além
desta, a dimensão simbólica deste bem26.
A grande maioria das atuais embarcações tem motor movido a óleo diesel de 25
HP de potência. A engrenagem é parafusada na proa do barco (ou da canoa), ficando a
hélice submersa. O leme de ferro é posicionado atrás do banco na popa. Os pescadores
apontam as vantagens e desvantagens da utilização do motor. São vantagens
26
DOUGLAS & ISHERWOOD: 2004 discutem como, em diferentes sociedades, os usos dos bens
transcendem sua funcionalidade utilitária. Em seu estudo sobre os pescadores de Itaipu/RJ, KANT DE
LIMA: 1997 argumenta que as canoas estão sempre vinculadas às histórias de seus proprietários e da
pesca em geral. Também MELLO & VOGEL: 2004 fazem referência ao valor simbólico atribuído aos
apetrechos pelos pescadores de Maricá/RJ.
35
indiscutíveis: a possibilidade de navegar toda a extensão da Lagoa Feia, independente
de bons ventos, e redução do esforço braçal exigido pela atividade. Em compensação,
muitos pescadores creditam ao ruído dos motores, em trânsito pela Lagoa, uma
perceptível diminuição da quantidade de pescado, nos últimos anos. “É como se
espantasse os peixes”, dizem, pois argumentam que os peixes, ao se esconderem na
vegetação e nos brejos, são mais difíceis de capturar.
Pela feitura do barco o mestre cobra somente a mão de obra, pois todo o material
é fornecido pelo futuro proprietário. Ele, geralmente, conta com a ajuda do próprio
contratante, bem como dos amigos e parentes mais próximos deste. Durante o processo,
que, em princípio, pode realizar-se em mais ou menos três dias – do corte da madeira
até a pintura final –, o proprietário é responsável pelo provimento de comida e bebida
para o mestre e seus ajudantes.
A confecção de redes e apetrechos também faz parte do conhecimento
fundamental para o artesanato pesqueiro na lagoa. O uso destes artefatos está
intimamente ligado ao conhecimento que os pescadores têm da biologia das espécies e
da geografia do ambiente lacustre. A utilização das redes varia de acordo com três
fatores principais: 1) o tipo de pescaria a ser realizada; 2) a espécie de peixe que se
deseje capturar; e 3) as condições naturais encontradas na lagoa durante a atividade.
Foto de José Colaço
Luis e Luivan reparando a rede
Reparo de Rede
36
Foto de Carlos Valpassos
Rede de Algodão
Rede de algodão
Zezinho fazendo rede
No período documentado por Castro Faria, as redes eram de fio de algodão com
espessura variável. Atualmente o fio de nylon é o material mais utilizado na sua
confecção. Uma rede é dividida em peças e a tabuleta é a ferramenta responsável pela
definição do tamanho da malha. A braça, ou seja, a envergadura natural de um homem
adulto com porte médio serve como escala de referência para a medida das peças. Para
ser utilizada corretamente, a rede precisa ser entralhada. A tralha é um fio mais grosso
que prende as malhas em toda a sua extensão. Toda rede tem duas tralhas: a superior e a
inferior, isto é, a tralha da cortiça e tralha da chumbada (ou peso) respectivamente. O
fio em forma de alça que prende a malha da rede na tralha recebe, no jargão dos
pescadores, o nome de encala. A última etapa do processo de feitura é a colocação da
cortiça e da chumbada. Antes disso, porém, o pescador precisa esticar ao máximo a
peça para aproveitá-la em toda a sua extensão. Muitas vezes, a cortiça é substituída por
outros materiais flutuantes, tais como pedaços de isopor ou, até mesmo, garrafas
plásticas vazias. O mesmo acontece com a chumbada. A preferência é pela compra de
pequenos cilindros de chumbo, contudo, também estes podem ser substituídos por
objetos pesados como, por exemplo, pedaços de tijolo ou pedras.
37
Maneco, Lenilson e Doba fazendo rede
Luis fazendo rede
As redes são feitas pelos próprios pescadores. Ao caminhar por Ponta Grossa
facilmente se avista um pequeno grupo de homens fazendo ou reparando suas redes em
animadas conversas sobre temas do universo masculino – além de falarem, é claro,
constantemente sobre a pesca e sobre a Lagoa. Também as mulheres e crianças podem
dedicar-se a esta atividade. Mulheres e meninas, entretanto, devem realizá-la dentro dos
limites da casa, ao passo que os homens comumente as tecem nas calçadas das ruas ou
dentro dos bares. Alguns pescadores mais velhos, já afastados do ofício, fazem rede por
encomenda. Além do pequeno pagamento em dinheiro – a remuneração da mão de obra
para tecer uma rede não é muito alta – trabalhar com esta arte garante o permanente
acesso ao universo da pesca na Lagoa Feia, reafirmando constantemente a identidade de
pescador local diante do grupo.
Outros dois componentes indispensáveis à realização da pesca com rede são o
remo e o calão. O primeiro consiste numa peça talhada em madeira de garapa medindo
aproximadamente 7,5cm de diâmetro e 3,0m a 3,60m de comprimento. A parte de baixo
do remo tem um formato retangular e é esculpida separadamente para se anexar, em
38
seguida, ao restante do artefato. Este remo funciona como uma alavanca, gerando um
mecanismo de impulsão ao ser apoiado pelo popeiro no fundo da Lagoa Feia. A
manobra é possível, como já sabemos, em virtude da baixa profundidade média das
águas lacustres 27. O calão, por sua vez, é uma vara de bambu grosso que serve para
limitar o final das peças de rede. Caso o sistema de pesca utilizado exija que a rede
permaneça parada – como uma rede-de-espera – o calão funciona como uma estaca,
fixando-a verticalmente no fundo. Se, no entanto, a opção for uma técnica onde a rede
tenha de ser manejada de dentro d’ água, é a partir do calão que o pescador executa os
seus movimentos.
A pescaria na Lagoa Feia tem sido desempenhada por grupos de três homens
para cada embarcação. Esta organização é denominada grupo de pesca. A constituição
desse grupo se dá com base em laços de parentesco ou amizade. Um dos pescadores é
considerado o mestre. Como dono das artes (apetrechos e embarcação) e pescador mais
experiente, ele é o responsável pela condução da pescaria. Sua função dentro da
embarcação é a de popeiro. Cabe a ele a escolha do local onde se deve pescar e da
técnica a ser utilizada. O resultado da investida depende estritamente de suas decisões28.
Os outros dois homens do grupo são o meeiro e o proeiro. São também
chamados de camaradas ou quinhoeiros. Durante a pescaria, eles obedecem às ordens
do mestre, que é, neste sentido, um comandante soberano, responsável último pelos
êxitos e fracassos da empreitada.
O estabelecimento destas posições tem implicações fundamentais não apenas na
prática da pesca, mas também na divisão dos ganhos: o quinhão. A quantidade total do
pescado primeiramente é dividida por dois. Daí é retirada a parte do mestre – o
pagamento das artes. Em seguida, o restante é dividido por dois, resultando daí o
quinhão final de cada camarada. Um quinhão é referente à quarta parte da quantidade
total do produto.
O sucesso econômico do mestre é, em princípio, reflexo de sua experiência
como pescador, ela mesma baseada em um profundo conhecimento empírico. Manejar
27
Cf. BIDEGAIN & SOFFIAT: 2002
Em Maricá, por exemplo, a companha de pesca se reduz a dois membros – o corticeiro e o
chumbereiro. MELLO & VOGEL: 2004, 312.
28
39
as técnicas artesanais com desenvoltura e operá-las de forma precisa constituem um
saber objetivamente reconhecido dentro e fora do grupo de pesca.
Companha de três
Companha de dois
Pescador e Deus
Desde a época da pesquisa de Castro Faria, ocorreu uma mudança na
constituição dos grupos de pesca. Até os anos 60 e 70 do século passado, as pescarias
mais comuns eram o lanço e a trolha, técnicas que exigem o concurso de três
pescadores. As intervenções do Departamento Nacional de Obras e Saneamento
(DNOS), realizadas a partir de 1940 na Lagoa Feia foram, no entanto, responsáveis por
40
profundas transformações no ecossistema lacustre com implicações fundamentais para
as práticas da pesca artesanal
29
. Em função delas, tanto a trolha, quanto os lanços têm
sido, gradativamente, substituídos pela pesca de minjoada, que requer apenas um ou
dois pescadores, no máximo. Atualmente, os grupos estão mais flexíveis, porque a
minjoada é hoje a mais comum das pescarias em Ponta Grossa dos Fidalgos. Entretanto,
sempre que se recorre à trolha ou ao lanço o grupo de três pescadores é recomposto.
3.1 – A minjoada.
Por volta de quatro e meia da manhã já é possível escutar os primeiros
movimentos em Ponta Grossa dos Fidalgos. Esta é a hora em que os pescadores
começam a se preparar para a minjoada do dia. Os procedimentos iniciais consistem na
arrumação dos apetrechos. Cuidadosamente o pescador carrega a embarcação: dois
remos; um isopor com gelo para conservar o pescado; e um galão com óleo diesel, caso
o barco seja a motor. Na embarcação vai também um número de calões, que varia de
acordo com a quantidade de peças de rede.
29
Cf. VALPASSOS: 2006.
41
Luis na minjoada
42
Na pesca de minjoada, o pescador deve deixar suas peças armadas em
determinados locais da Lagoa. Esses lugares são previamente escolhidos com base no
critério de sua suposta piscosidade. As redes têm que ser alinhadas em lugares onde
haja certo trânsito de peixes e, tanto o seu posicionamento, quanto o tamanho de sua
malha variam de acordo com a espécie que se pretende capturar. Assim, malhas de
35mm a 45mm são preferidas para a captura de espécies de menor porte, como o sairú,
o bagre preto e a traíra, que costumam ser encontrados mais perto da beirada e nos
locais de vegetação. Redes de 50mm, 60mm e 65mm são mais propícias para captura de
espécies maiores que transitam ao “largo”, ou seja, nas porções da Lagoa mais distantes
das margens e com maior profundidade. São chamadas pelos pescadores de redes de
laça. Entre as espécies mais cobiçadas estão o bagre branco, o robalo e a tainha.
Esse tipo de pescaria compreende duas partes. A primeira consiste na colocação
das peças na Lagoa. A segunda etapa configura-se no ato de colher ou correr as redes.
Quando colhe uma rede, o pescador deve removê-la totalmente da água, trazendo-a de
volta para a terra. Esta operação é realizada geralmente quando o instrumento requer
algum reparo maior. O trabalho é delicado, pois depende de uma fina sincronia entre os
dois pescadores. O popeiro alcança o primeiro calão e, em seguida, segura a tralha da
cortiça, puxando-a para dentro da embarcação, ao mesmo tempo em que o meeiro fica
responsável pela tralha do chumbo, e, num movimento conjunto colocam-na para
dentro do barco. Quando, no entanto, os camaradas optam por “correr as redes”, o
popeiro movimenta e dirige a embarcação, enquanto o meeiro verifica a safra. Para isto,
tem de levantar a rede com o auxílio do remo. Ao encontrar peixes retira-os
imediatamente da rede, acondicionando-os no isopor com gelo.
Esta técnica é conhecida também como rede de espera, pois tendo as peças
devidamente posicionadas, o pescador pode voltar a terra, retornando à Lagoa vinte e
quatro horas depois a fim de conferir o resultado do empreendimento. Este período
entre uma saída e outra é considerado limite para que o pescado não apodreça na
própria rede. O ciclo geralmente é realizado da segunda-feira até o sábado – o que não
implica que o pescador não possa também pescar em dia de domingo.
As posições das redes podem ser constantemente modificadas de acordo com o
resultado da pescaria. Por maior que seja o conhecimento do pescador, entretanto, este
sabe que o seu êxito não depende apenas da escolha de um bom local para as suas peças
43
de rede. De todos os tipos de pescaria de rede, talvez seja a minjoada aquela em que o
fator da incerteza se faz mais presente, pois depende do movimento constante dos
peixes, por toda parte, na Lagoa Feia. Caso isto não ocorra, a possibilidade do fracasso
é iminente.
Minjoada com Doba e Washington
Os pescadores dizem que, embora sabendo dos riscos, optam pela técnica por
considerá-la mais adequada às atuais condições ecológicas da Lagoa Feia. Essas
transformações fizeram com que a Lagoa sofresse, além de uma drástica redução, um
processo de reconfiguração do desenho lacustre, levando, entre outros motivos, ao
desaparecimento da maioria de suas áreas rasas30. Quando percebida pelos pescadores,
30
“A construção dos diques, que se estendem ‘na orla Norte, Leste e Sul, entre a foz do rio Ururaí e o
início da enseada do Tatu’ e são responsáveis por evitar a inundação dos pastos e lavouras, ocasionou o
represamento da água, o que, por sua vez, levou à extinção da área marginal (zona eufótica), onde antes
acontecia um declínio progressivo da profundidade até sua anulação. Houve, pois, uma reconfiguração
do desenho lacustre, que deixou de ter o aspecto de um prato raso e adotou a aparência de um prato
fundo. (...) Foi dessa forma que compreendi porque os pescadores reclamavam do aumento da
profundidade da Lagoa, enquanto laudos técnicos mostravam que a profundidade média tinha diminuído
praticamente pela metade. O que ocorreu foi a eliminação de muitos lugares rasos, o que, junto com o
processo de sedimentação, fez com que a atual quantidade de áreas rasas, propícias à pesca, se tornasse
menor do que havia sido em décadas anteriores”. VALPASSOS: 2004, 69. Grifo meu.
44
tais transformações implicaram numa gradativa substituição de técnicas pesqueiras. À
diferença da trolha e do lanço, onde os pescadores precisam ficar de pé dentro da
Lagoa, a minjoada é aquela que se adapta melhor às águas profundas. Não é, no
entanto, considerada pelos pescadores de Ponta Grossa como sendo a técnica mais
refinada.
3.2 - A pesca de cutuca e a trolha.
A cutuca faz parte de um dispositivo de captura bastante engenhoso. O
pescador deve procurar na mata ao redor de Ponta Grossa uma árvore frondosa – um
jenipapeiro, por exemplo – e dele colher um ou mais galhos. Estes devem ter uma
determinada constituição e peso. Não podem apodrecer em contato com a água e nem
flutuar. Devem, ao contrário, ancorar-se com firmeza quando arremessados ao fundo da
Lagoa. Depois de colhidos, são levados para casa onde secam expostos ao sol. Somente
quando as sua folhas tiverem caído e sua madeira estiver bem seca, o pescador pode dar
início ao preparo da armadilha31.
Assegurando-se de que não está sendo observado, o pescador embarca os
galhos e segue navegando Lagoa adentro. Seu objetivo, neste momento, é identificar um
local onde a cutuca possa ser armada. Para isto o pescador deve manejar com habilidade
certos conhecimentos sobre a ictiofauna e a geografia do fundo lacustre – conforme
apresentarei mais a frente. Chegando ao ponto escolhido, deposita o galho n’ água com
o devido cuidado para que fique totalmente submerso.
Este galho deve descansar no fundo da Lagoa por pelo menos dois meses.
Durante esse período, ele começa, aos poucos, a recobrir-se com uma camada de limo e
lodo. Algumas espécies de peixes vão se agrupando em torno do galho, o qual, desse
modo, se converte, progressivamente, num artefato pesqueiro, pois atrai os peixes e os
fixa no lugar. A casca do jenipapeiro é, segundo os pescadores de Ponta Grossa, o
alimento preferido dos piaus. O micro-clima ali formado a partir e ao redor do galho,
contudo, é igualmente propício a outras espécies. Em pouco tempo a cutuca torna-se um
criadouro de peixes, ou seja, vira um pesqueiro.
31
Um processo similar ao da cutuca ocorre na Lagoa de Maricá por e foi estudado por MELLO &
VOGEL: 2004.
45
Para a captura das espécies que habitam a cutuca é necessária uma técnica
específica: a trolha. Os pesqueiros em sua maioria localizam-se em lugares rasos onde o
pescador tem a possibilidade de trabalhar em pé. Na trolha, o grupo de pesca é formado
por três companheiros – proeiro, meeiro e popeiro. O último, em virtude da sua posição
de mestre, indica a localização do pesqueiro onde está a cutuca. Cuidadosamente o
galho é retirado do fundo, procedimento que deve ser feito com o motor desligado, para
não assustar os peixes. Ao comando do mestre, o proeiro desce da embarcação e finca o
primeiro calão no fundo da Lagoa. Em seguida, o mestre movimenta a canoa de modo a
descrever um semicírculo com a rede. Estabelecida esta posição, o segundo calão é
fincado pelo meeiro. Depois, a embarcação se afasta da rede até uma distância
proporcional ao tamanho do pesqueiro. O mestre bate, então, o remo contra a água,
espantando os peixes em direção à peça de rede32.
Pesca de trolha com Dodô e Bolê
A partir daí, os pescadores começam a trolhar. Nesta etapa, o mestre entra
n’água, no instante mesmo em que o proeiro abandona o calão e volta para o barco. Na
posição de trolhador, o mestre avança junto com o meeiro até que a rede se feche em
círculo. Após o retorno do meeiro à embarcação, o trolhador, segura a extremidade
32
Caso terminasse neste ponto, a operação seria designada simplesmente como “pesca de lanço”.
46
livre da rede, executando uma trajetória em espiral. Seu objetivo é fechar o cerco aos
peixes ao mesmo tempo em que o meeiro e o proeiro, em cima do barco, recolhem a
rede, partindo da outra extremidade, até o fechamento completo da trolha.
Esse tipo de pesca é considerado mais seguro e lucrativo pelos próprios
pescadores. Em primeiro lugar, porque o uso dos pesqueiros – com ou sem a cutuca –
aumenta consideravelmente as chances de se realizar uma boa pescaria. Além disso, a
técnica de trolhar permite que o pescador vá ao encontro do peixe, em um local préestabelecido, ao passo que na minjoada a captura depende, em boa medida, da
movimentação dos peixes no ambiente lacustre. A pesca de trolha pode ser repetida
diversas vezes, a cada saída para a Lagoa, desde que o mestre conheça a localização dos
diversos pesqueiros ou tenha, ele mesmo, os seus pesqueiros, anteriormente criados.
Os pescadores dispõem de um arsenal de técnicas e artifícios de pesca que são
atualizados de acordo com as disposições ambientais. A permanência da pesca artesanal
na Lagoa Feia, mesmo praticada em condições muitas vezes adversas, pode ser
explicada pelo fato de constituir esta atividade uma instituição central, capaz de
estruturar as relações sociais do povoado. É, por assim dizer, o elemento catalisador
deste sistema cultural33. Mais do que um simples meio de coleta visando suprir as
necessidades materiais de uma família, a pesca artesanal imprime sua marca aos
aspectos mais elementares da vida cotidiana: a feitura dos instrumentos de pesca, a
comercialização do peixe, a alimentação do povoado, as conversas nas casas, nos bares
e nas ruas, a transmissão informal dos conhecimentos sobre a Lagoa. De certo modo, a
atividade perpassa, direta ou indiretamente, todas as relações sociais mais significativas
no assentamento de Ponta Grossa dos Fidalgos.
A etnografia dessas técnicas me levou, aos poucos, durante o trabalho de campo,
a uma compreensão abrangente do universo da pesca artesanal na Lagoa Feia. Longas
conversas com interlocutores qualificados de diferentes gerações, acerca das condições
nas quais desempenhavam o seu ofício, mostraram que os conhecimentos não se
restringiam apenas à utilização mecânica dos seus apetrechos. Comecei, então, a
perceber que os pescadores desenvolviam uma relação muito particular com o ambiente
lacustre.
33
Cf. GEERTZ: 2000.
47
4 – As diferentes percepções sobre a natureza.
As contribuições da revolução pasteuriana, na descoberta de micro-organismos,
e os avanços da teoria infeccionista, na compreensão dos processos de contágio de
doenças, contribuíram para a instauração de uma nova concepção do laço social; pois, a
partir de então, percebe-se que os indivíduos ligam-se, também, num plano
microscópico, pela ação de vírus e bactérias34.
Essa nova forma de pensar a transmissão das doenças identificou nas águas
estagnadas um obstáculo a ser vencido, visto que os meios alagadiços forneciam as
condições propícias à proliferação dos mosquitos vetores de doenças endêmicas, tais
como a febre amarela, a malária, a peste bubônica, o tifo etc. Para acabar com os focos
de tais enfermidades, fazia-se necessária uma batalha contra os pântanos e alagadiços.
Tal empreendimento, por sua vez, constituiria uma demiúrgica transformação da
natureza.
A confiança depositada nos métodos científicos, capazes de empreender as
correções das imperfeições presentes na natureza, sustentava-se sobre o postulado
positivista de que todos os problemas poderiam ser resolvidos através do uso da razão:
com os cálculos corretos, a técnica adequada e os instrumentos necessários, qualquer
problema seria passível de solução 35.
Com as expedições dos cientistas-viajantes ao interior do Brasil, desfez-se a
imagem bucólica do sertanejo de alma forte e índole dócil. Em longas expedições,
Carlos Chagas, Belisário Penna, e Arthur Neiva percorreram o Brasil documentando
uma triste realidade da vida camponesa:
“O que revelaram à opinião pública foi o pronunciamento implacável
do microscópio: a sífilis, a ancilostomíase, a malária, a febre amarela e
a doença de Chagas, cujos efeitos, somados aos da indigência,
assolavam a quase totalidade das regiões.” 36
O problema, antes atribuído à incapacidade racial fruto do processo de
miscigenação, passa a ser a fraqueza física e moral causada pelas moléstias. Belisário
34
MELLO & VOGEL: 2004, 131-132.
Cf. SOMBART: 1955.
36
MELLO & VOGEL 2004: 121
35
48
Penna, então, alerta para a necessidade de se fazer conhecer essa realidade “descoberta”
nos sertões:
“Propaganda activissima, ininterrupta, precisa ser feita para incutir no
espírito de todos os nossos patrícios, sobretudo no dos bons homens
publicos, dos litteratos, dos jornalistas, dos intellectuaes, emfim, que o
alcoolismo, a trypanosomiase americana, a malária e a opilação, em
vastissima escala, e outras endemias em menor, são as causas do
nosso atrazo e da vergonhosa retaguarda em que vamos ficando de
outros povos.” 37
Mas, se existia a preocupação com o estado de enfermidade, no qual se
encontrava imerso o povo brasileiro, havia também a certeza de que o problema possuía
solução: o saneamento.
Desse modo, inicia-se uma verdadeira difusão dos preceitos higienistas, que
encontram em Monteiro Lobato, senão o principal, um de seus principais porta-vozes.
“O caipira não ‘é’ assim, ele ‘está’ assim”– é essa a mensagem transmitida com a
publicação de “O Problema Vital”, onde Monteiro Lobato advertia sobre o problema
que assolava a população brasileira:
“O nosso problema, verificado que foi o mau estado da população
nativa,
é
simples
e
uno:
sanear.
Para
sanear
é
forçoso,
preliminarmente, convencermos o país da sua doença; e em seguida
fazer dessa idéia o programa de todos os governos, a idéia fixa de
todos os particulares.” 38
O saneamento passa, então, a ser almejado por políticos e intelectuais que
acreditavam que, através do combate às águas estagnadas, seria realizado o “resgate das
terras perdidas”, o que resultaria no melhoramento da saúde da população e seu
consequente desenvolvimento econômico. Isto porque a substituição das superfícies
alagadas por pastos e canaviais significava um ganho de espaço economicamente útil,
capaz de gerar riquezas para a nação, além de representar um enorme avanço na luta
contra as enfermidades que deterioravam a saúde do povo brasileiro. Desse modo, o
Brasil, enfim, entraria no caminho do progresso.
37
38
PENNA: 1919, 172.
MONTEIRO LOBATO: 1961, 285.
49
Assim, em 1918, foi instituída a Liga Pró-Saneamento do Litoral do Brasil e, em
1919, criada a Diretoria de Pesca e Saneamento do Litoral. De acordo com Luiz de
Castro Faria:
“A retórica dos escritos era pomposa: ‘Sanear o Brasil é povoá-lo, é
enriquecê-lo, é moralizá-lo’, e um apologeta dessa ideologia
salvacionista chegou a proclamar: ‘Oswaldo Cruz foi o Cristo da
religião do saneamento, o precursor da cruzada patriótica de redenção
de nossa raça e de reabilitação nacional.” 39
A ideologia do saneamento, no entanto, veio a consolidar-se apenas com a
instauração da República Nova, na década de 1930. No governo de Getúlio Vargas, as
propostas do saneamento obtiveram ampla legitimação e serviram de base a uma das
principais políticas públicas do Estado Novo.
O diagnóstico da realidade brasileira, tal como formulado por Vargas, podia ser
resumido da seguinte forma:
“Há no Brasil, três problemas fundamentais, dentro dos quais, está
triangulado o seu progresso: sanear, educar, povoar. O homem é
produto do habitat. Disciplinar a natureza é aperfeiçoar a vida social.
Drenar pântanos, canalizar as águas para as zonas áridas,
transformando-as em celeiros fecundos, é conquistar a terra. Combater
as verminoses, as endemias, as condições precárias de higiene, é criar
o cidadão capaz e consciente”.
“’Sanear, educar, povoar’” – eis a palavra de ordem, cuja difusão e
cumprimento deve presidir o grande projeto da ‘valorização do capital
humano.” 40
Determinada a enfrentar o problema da estagnação das águas, a República Nova
criou, em 1933, uma Comissão para responsabilizar-se pelo combate aos meios
palustres – realizando o dessecamento das terras encharcadas e, também, a colonização
das terras conquistadas por este processo.
A Comissão foi, devido ao seu intenso labor e seus conseqüentes resultados, sob
a direção de Hildebrando de Araújo Góes, promovida, em 1936, à Diretoria de
39
40
CASTRO FARIA: 2000, 432.
VARGAS: 1938, 245.
50
Saneamento da Baixada Fluminense. O sucesso contínuo desta empreitada fez com que
a Diretoria de Saneamento alcançasse uma segunda elevação, desta vez em 1940, sendo
transformada no Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS). Com este
órgão, serviço público de saneamento brasileiro tornou-se centralizado41.
A Baixada Fluminense, em virtude de suas características geológicas, constituía
uma enorme área repleta de alagadiços. Situada nos limites imediatos da Capital
Federal, foi nesta região que se iniciaram os trabalhos do novo órgão.
“As tarefas a serem executadas, com o objetivo de sanear os 17.000
Km² da baixada litorânea fluminense, eram múltiplas e complexas.
Era preciso recuperar áreas periodicamente alagadas pelas marés;
defender outras contra inundações recorrentes; dragar leitos de rios,
riachos e córregos; retificar cursos d’água; assegurar a drenagem
subterrânea dos alagadiços; construir polders, diques, pontes e
viadutos; e, finalmente, abrir canais, (...) problemas dos mais comuns
no litoral norte fluminense” 42.
Na Baixada Campista, mais particularmente, durante as cheias de verão, as
águas estendiam-se sobre a planície formando perenes brejais. A camada de argila
sedimentar, que caracteriza o revestimento da Baixada, dificultava a infiltração das
águas, acentuando ainda mais a impetuosidade das cheias. O paludismo, problema já
assinalado por Pizarro e Araújo, trazia grandes transtornos à região:
“(...) os pântanos e os charcos, donde se fermentam as rigorosas
malignas, que anualmente acometem aos que nêles residem; e anos
tem havido em que famílias inteiras desapareceram por esta epidemia.
Nos mêses de março e abril grassam constantemente as febres
intermitentes, que se curam com o uso da quina; as enfermidades
maiores são de ordinário epidêmicas”. 43
Assim, a planície campista representava um dos principais desafios a ser
enfrentado pelo DNOS. Coube a Próspero Vitalis a direção dos serviços de saneamento
em Campos dos Goytacazes. No livro Terra Fluminense, de Azevedo Silva, Vitalis
menciona diversas lagoas transformadas em canaviais ou pastagens. Dentre elas
41
MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES: 1942, 497.
MELLO & VOGEL: 2004, 88.
43
PIZARRO E ARAÚJO: 1945, 120.
42
51
contamos a Lagoa de Saquarema Grande, Saquarema Pequena, Mergulhão, Perú,
Cambaíba, Restinga Nova, Bananeiras, Ciprião, Jacaré, Taí Pequeno, Quitinguta, Água
Preta, Coqueiros, Aboboreira, Tambor, Sussunga, Colégio e da Concha.
De acordo com o engenheiro:
“Admitindo-se um perímetro de 50 quilômetros para a lagoa Feia, que
é o que nos fornecem os elementos que temos atualmente em mãos,
podemos assegurar que nada menos de 2 mil alqueires geométricos foi
a área reconquistada de alagados existentes, pois três quilômetros no
mínimo, recuaram as águas neste vastíssimo reservatório que é a lagoa
em apreço.” 44
Além das lagoas anteriormente citadas, houve, ao longo das obras de
saneamento promovidas pelo DNOS, o dessecamento de outras, como a Lagoa da
Goiaba e a da Ribeira. As lagoas tornaram-se, na maioria dos casos, áreas dedicadas à
agropecuária.
O maior empreendimento realizado pelo DNOS na Lagoa Feia foi a construção
do Canal das Flechas. Iniciada em 1942, a obra teve como objetivo facilitar o
escoamento das águas da bacia hidrográfica da Lagoa para o oceano. Para isso, foi
aberto um canal artificial, com 13 km de extensão por 120 m de largura, que substituiu
o sistema natural de escoamento realizado pelos rios da Onça, Novo, do Ingá, do Barro
Vermelho e do Furado, que se uniam no Rio Iguaçu.
Comportas do Canal das Flechas
44
VITALIS apud SILVA: 1955, 103.
52
Canal das Flechas
Os diques do Rio Paraíba do Sul já estavam construídos e conseguiam conter
apenas parcialmente as cheias periódicas. Isto, todavia, não anulava os problemas
causados pelas inundações. A solução encontrada foi o aproveitamento da declividade
natural do relevo do Rio Paraíba até a Lagoa Feia para a construção de canais que
escoariam as águas do Paraíba para a Lagoa. A função do Canal das Flechas seria,
então, realizar o escoamento das águas da Lagoa para o Oceano.
Os defluentes da Lagoa Feia foram desviados de leste para oeste, da laguna do
Açu para a Barra do Furado e, com a instalação de comportas manobráveis junto às
tomadas d’água do rio Paraíba do Sul, permitiu-se que a rede de canais construída pelo
DNOS cumprisse duas funções: 1) de irrigação, no período de estiagem; e 2) de
drenagem, no período das cheias. A abertura do Canal também “rebaixou o valor
médio das cotas máximas dos níveis de água da lagoa em cerca de 80 cm e também o
das cotas médias mínimas em torno de 90 cm”, o que levou a uma enorme perda da
área lacustre, pois as águas recuaram, deixando grandes extensões de terra secas. 45
De todos os fatores que contribuíram para a redução do espelho d’água da
Lagoa Feia, parece ter sido a construção do Canal das Flechas o mais importante. Esse
processo de redução torna-se explícito quando pensamos que, em 1898, Marcelino
Ramos da Silva atribuía 370 km² de superfície à Lagoa, enquanto Saturnino de Brito,
em 1929, conferia-lhe apenas 335 km², e o mapa elaborado pela ONG Lagoa Viva,
45
BIDEGAIN: 2002, 78.
53
juntamente com o CREA-RJ, em 2002, exibia a mesma lagoa reduzida a somente 160
km².
“A lagoa Feia foi a maior do Estado do Rio de Janeiro até 1949, data
de conclusão do canal da Flecha pelo extinto Departamento Nacional
de Obras de Saneamento - DNOS. Sua superfície superava a da lagoa
de Araruama, sendo pouco inferior a da Baía de Guanabara.” 46
Por fim, em 1980, o DNOS instalou 14 comportas manobráveis no Canal das
Flechas, o que permitiu ao órgão controlar o nível das águas da Lagoa Feia.
4.1 – Do DNOS ao IBAMA.
Em 15 de março de 1989 o DNOS foi extinto. Neste mesmo ano, no entanto, foi
criado o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis, que se
tornou responsável pela fiscalização, controle, monitoramento e gestão da qualidade
ambiental e utilização dos recursos da fauna. O IBAMA surgiu a partir da fusão de
quatro órgãos diferentes: a Superintendência do Desenvolvimento da Pesca, SUDEPE;
o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal, IBDF; a Superintendência do
Desenvolvimento da Borracha, SUDEVEA e a Secretaria Especial do Meio Ambiente,
SEMA47.
Escritório do IBAMA na região norte-fluminense
46
47
BIDEGAIN: 2002, 11.
Cf. LEITÃO: 1997.
54
Coube, desde então, ao IBAMA, orientar e disciplinar as atividades de fomento
florestal, pesqueiro e de borrachas. O órgão, além de exercer as funções de
cadastramento, assumiu como prerrogativa licenciar, fiscalizar e disciplinar as
atividades exploratórias dos recursos hídricos e da fauna silvestre, objetivando sua
conservação.
Dentre as ações do Instituto, aquela que afeta diretamente o ecossistema e as
atividades humanas ali desempenhadas refere-se ao estabelecimento do calendário de
pesca. Neste período – que tem início em novembro e estende-se até fins de fevereiro –
anualmente, o IBAMA publica uma Instrução Normativa que proíbe a captura de
espécies aquáticas com o objetivo de salvaguardar a reprodução e mesmo o crescimento
das mesmas 48.
“Art. 1º - Estabelecer normas gerais e específicas para o período de
proteção à reprodução natural dos peixes (piracema) temporada
2005/2006, nas bacias hidrográficas do Leste, nos estados da Bahia,
Espírito Santo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, excetuandose das bacias hidrográficas dos rios São Francisco e Paraná,
contempladas por portarias de piracema específicas.
Art. 2º - Fixar o período de 1 de novembro de 2005 a 28 de fevereiro
de 2006 para o defeso da piracema referenciadas no art 1º”.
O ecossistema da Lagoa Feia é, de acordo com o Intituto, parte integrante das
Bacias Hidrográficas do Leste. O que, já num primeiro olhar, pode ser identificado
na norma é sua abrangência territorial, o que representa, em si, uma homogeneização
artificial de ecossistemas diversos, bem como de seus ritmos sazonais locais e de
regiões climáticas.
A instituição de um calendário ecológico único, ou seja, de novembro a
fevereiro em diversas regiões, já há algum tempo vem ocasionando tensões entre
populações haliêuticas e o IBAMA. O problema, que permanece latente durante o
período de pesca liberada, manifesta-se claramente nos meses da cema. E é sobre estas
48
Cf. Anexo “1”. Usei como modelo o texto da Instrução Normativa n. 47 de 2005. O mesmo texto vem
sendo publicado anualmente no modelo de Instruções ou Portarias com implicações na Região Norte
Fluminense. Para tanto, basta dizer que, não houve nenhuma alteração no que diz respeito ao calendário
de proibição de captura das espécies na Lagoa Feia até os dias de hoje.
55
tensões, mais propriamente, que a etnografia ira se concentrar adiante. Justamente
porque elas evidenciam formas contrastivas de representações sobre a natureza, bem
como sobre seus usos tal como praticados pelos grupos sociais.
4.2 – A natureza do ponto de vista nativo: os mapas do fundo.
Persegui, portanto, alguns dos assuntos que Luiz de Castro Faria assinalou em
suas notas. A problemática, por si só, já fornecia a ideia de que a relação que os
pescadores mantinham com o ambiente gerava percepções muito distintas sobre o que
são e para que servem os recursos naturais, quando comparada com as narrativas da
engenharia sanitária ou preservacionista.
E, seguindo as recomendações do Antropólogo, no que diz respeito aos
conhecimentos naturalísticos partilhados pelos pontagrossenses, provoquei os
pescadores para que confeccionassem mapas da Lagoa Feia. Ao longo do tempo, foram
elaborados ao todo cinco, feitos em períodos e condições diferentes e por diferentes
pessoas. O primeiro data de março de 2002 e foi elaborado, por dois pescadores, ambos
com cerca de quarenta anos de idade. O trabalho se realizou de dentro da Lagoa, no
local conhecido como Capão de Baga. Em agosto do mesmo ano, outro pescador, este
mais antigo e já afastado da pesca, contando mais de sessenta anos de idade, produziu o
segundo mapa, na base de campo do Projeto, em Ponta Grossa dos Fidalgos. O mapa de
número três foi também foi elaborado em agosto de 2002, nesse mesmo local, por um
pescador de mais ou menos trinta anos de idade. À semelhança do primeiro, o quarto
mapa, foi desenhado em plena Lagoa, no Durinho do Lereta, em janeiro de 2003, por
um pescador de cerca de quarenta anos de idade. O quinto, finalmente, foi feito, certo
tempo depois, em janeiro de 2006, por um pescador de mais de cinquenta anos, em sua
própria residência e imediatamente após uma excursão conjunta à Lagoa Feia, onde este
assunto, além de outros, foi intensamente debatido.
56
Elaboração de um mapa do fundo com Doba, Valpassos e Dodô
Comparando os cinco mapas, constata-se que apenas um lugar se repete em
todos eles – o Canto do Sobrado. A maioria dos locais, no entanto, aparece em alguns
dos mapas somente – Canal Grande, (II, IV e V); Buraco da Filomena, (II e IV);
Beirada dos Fernandes, (I, II, IV e V); Duro de Fora, (II, IV e V); As Pedras do Canal
Grande, (II, IV e V); Barro Vermelho, (II e IV); Capão de Baga, (I, IV e V); Ponta de
Ilha Nova, (I, IV e V); Canal das Flechas (I, IV e V); Canto dos Imbiuá, (I, IV e V);
Boca da Valeta, (I, IV e V); Beirada do Luiz de Souza, (I e IV); Areinha, (I, IV e V);
Canto Fundo, (I, III, IV e V);Coroa Baixa (I e V); Porto do Trator, (I, IV e V); Porto do
Macaco, (I e IV); Porto do Ingá, (I, IV e V); Porto do Soares, (I e IV); Canto do Pastor,
(II e III); Canto do Boneco, (II, IV e V); Quiosque de Quinho, (III, IV e V); Moita
Preta, (III e IV); As Caraquinha (I, IV e V); Buraco do Nizo (I e V); Carrapato (I e V);
Rio Ururaí (I e V); Boca do Rio Jacaré (I e V); Canto do Limão (I e V); Canto das
Palmeiras (II e V); Rio de Macabú (IV e V); Coroa dos Piau (IV e V); Gamboa (IV e
V); Ilha do Norval (IV e V); Canto do Oliveira (IV e V); Ilha de Catete (IV e V);
Entrada do Rio Ururaí (IV e V); Largo da Lama (IV e V); Canto do Curral Velho (IV e
V); Canto das Táuba (IV e V); Lagoa do Jacaré (IV e V)
Outros locais, como Lagoinha de Duas Pontas; Farinha Seca; Canto Barra;
Canto do Loro; Porto da Beirada; Porto da Balmineira; Ilha do Servo, são mencionados
apenas no primeiro mapa: a Coroa da Vara Grande; a Coroa do Pocinho; o Guaxiní; o
Duro Pegador; As Pedrinha; o Morinete de Dentro; o Morinete de Fora; o Duro da
Verga; Buraquinho; Os Barrinhos; a Coroa de João Bagre; a Coroa do Pocinho; As
Pedra de Chico Luiz; as Brovidade(s), figuram no segundo mapa. O terceiro por sua vez
registra os locais; Cajueiro; Porto de José de Abreu; Porto de Nilton; Porto Cajueiro;
57
Capivari; Pipirí. No quarto mapa podem ser encontrados: o Porto de Ponta Grossa; o
Porto de Carmélio; o Porto dos Homens; o Rio Velho; o Duro da Valeta; a Barra do
Macabú; a Barrinha; a Boca do Valão; a Beirada do Imbaíba; a Coroa de Luca; o
Engenho Velho; o Porto de Normélia; a Coroa do Pau Assobio; a Pedra Funda; a
Beirada da Jangada; o Duro do Lereta; o Barracão; o Cavaleiro. No quinto e último
mapa, finalmente, temos a Ilha do Mandinga; o Rio da Prata; o Canto do Rio Velho; a
Boca do Valão; o Porto de Luciano; a Caixa d´água; o Rio Pontal; o Canto de Onofre; a
Ilha do Capim; a Lagoinha de Duas Pontas; o Engenho Velho; o Pesque-Pague; As
Pedras do Cemitério; a Coroinha; o Canal Grande; a Ilha dos Carões.
Mapa I
O simples número dessas referências, citadas de cor, tende a impressionar o
etnógrafo. Mais ainda, a variedade semântica mediante a qual se compõem essas
designações próprias e precisas, manejadas não só com desembaraço, mas com
verdadeira paixão topográfica, por todos os nossos interlocutores, nesse tema. Em seu
conjunto, permitem vislumbrar um conhecimento extensivo e intensivo, até mesmo
sofisticado, dessa multiplicidade de locais, no entanto inacessíveis aos olhos do
pescador. Por isso convém considerá-lo mais detidamente, observando, sobretudo, o
estro classificatório que o tornou possível, mediante o exame atento dos seus frutos.
58
Mapa II
Antes de analisar os resultados deste exercício, tal como atualizado nesse
conjunto de mapas, vale a pena apresentar uma breve qualificação das suas fontes, pois
os seus respectivos pontos de vista constituem óbvios condicionantes da representação
consignada em cada um deles.
Assim, por exemplo, convém levar em conta que o autor do segundo mapa
assinalou o seu costume de pescar, sobretudo, na parte noroeste da Lagoa mais do que
nas outras. Em seu mapa o que aparece de forma predominante são os assim chamados
cantos. E estes, por sua vez, caracterizam justamente o território lacustre ao qual se
disse mais habituado. Um viés semelhante se manifesta, igualmente, no caso do terceiro
mapa, cujo autor declarou sua preferência, em matéria de território de pesca, pelo Canto
do Sobrado e, de um modo mais geral, pelos “lados de Quissamã”. Não admira, pois,
que a sua representação cartográfica tenda a privilegiar a parte meridional da Lagoa
Feia, que aí aparece com riqueza de detalhes. O autor do quinto mapa, por sua vez,
nomeou e descreveu com grande minúcia os lugares situados junto às margens, ao
longo de todo o perímetro da Lagoa. O primeiro e o último mapa foram produzidos de
dentro da Lagoa. Assim talvez se explique a visão mais abarcadora do ambiente lacustre
que os caracteriza. Finalmente, convém, acrescentar que todos estes pescadores, em
virtude de navegarem grandes extensões do espelho d’água, têm a fama de bons
conhecedores da Lagoa, como confirmaram vários outros interlocutores qualificados.
59
Mapa III
Este comentário preliminar já permite uma primeira constatação. A rigor, seria
impreciso falar de um mapa do chão no singular. O que existe, na verdade, são mapas,
no plural. E essa pluralidade envolve discrepâncias mais ou menos evidentes e/ou
relevantes. Nem sempre, no entanto, tais discrepâncias resultam apenas dos hábitos
pesqueiros de cada um dos cartógrafos, nem tampouco da mera circunstância que
presidiu à elaboração de suas respectivas obras.
Como o fundo é, ele mesmo, um espaço dinâmico, os detalhes cartográficos
podem variar ao longo do tempo. Assim, é comum que pescadores mais velhos, já
retirados do ofício, apresentem os seus conhecimentos sobre o fundo com a ressalva de
que se referem ao seu tempo de atividade, admitindo não só que as coisas possam ter
mudado nesse ínterim, mas também registrando as alterações das quais tiveram notícia,
seja por experiência própria, seja pelos relatos de terceiros. Há lugares desaparecidos há
tempo e que, quando se fala do fundo, ainda são arrolados, reduzidos a uma espécie de
existência fantasmática.
Existem as discrepâncias menores, relativamente fáceis de dirimir. Alguns dos
lugares, por exemplo, são designados por variantes do nome. As Cruz, por exemplo, são
conhecidas também como As Cruzes, ou simplesmente a Cruz. O local é o mesmo.
Apenas a pronúncia varia, dependendo do pescador. O mesmo acontece com o Capão
60
de Baga que é idêntico ao Capão de Bagre. Outros exemplos são simples casos de
abreviação: Boca da Valeta/Valeta; Luiz de Souza/Beirada de Luiz de Souza; Canto da
Areinha/ Areinha; Canto Fundo/Canto do Fundo.
Mapa IV
Podem, no entanto, além disso, ocorrer discrepâncias entre as coordenadas dos
mesmos lugares em mapas diferentes. Estas dão invariavelmente lugar a polêmicas
sobre a sua localização precisa. A propósito, surgem duas possibilidades. Tais
incongruências podem resultar de uma simples deficiência da representação gráfica,
pois uma coisa é o conhecimento espacial, outra a sua reprodução gráfica sob a forma
de um mapa
49
. A orientação espacial procede muitas vezes de acordo com percursos
regularmente praticados, isto é, com base, não em mapas, mas em narrativas de espaço,
como as chamava Michel de Certeau50. Isto, no entanto, não elimina a possibilidade de
resultarem de apreensões deficitárias, motivadas pela maior ou menor competência dos
respectivos autores em matéria de conhecimento específico sobre a Lagoa. Por isso é
preciso atentar, não somente para a idade do interlocutor e para a sua condição atual
6
“(...) Quando as pessoas conseguem conhecer a rede de ruas, elas executam uma séries de movimentos corretos em
direção aos referenciais conhecidos. Não adquirem nenhum mapa mental do bairro(...) Não é necessário precisão para
as atividades diárias da redondeza. A pessoa precisa apenas ter um sentido geral de direção do objetivo e saber o que
fazer a seguir, em cada trecho do percurso”. Cf. TUAN:1983, 82.
50
DE CERTEAU: 2001.
61
quanto à pesca, mas também para a sua reputação como pescador, avaliando, em cada
caso, a sua experiência e qualificação. Assim, se previne quaisquer distorções
eventualmente advindas de perspectivas limitadas, seja pelos hábitos do pescador, seja
pela sua maior ou menor experiência do ofício, ou, ainda, pelas circunstâncias em que
os mapas foram produzidos.
Satisfeitas estas condições, pode-se, agora, apresentar uma compreensão mais
refinada dessa cartografia do invisível, em particular, dos procedimentos classificatórios
que ela atualiza e dos quais resulta o que poderíamos considerar uma espécie de
semiologia do fundo lacustre.
Mapa V
Uma compreensão mais acurada daquilo que resolvi chamar de cartografia do
invisível requer maiores esclarecimentos sobre duas questões cruciais. Em primeiro
lugar, trata-se de evidenciar quais os desafios com que se defronta a navegação, nas
condições próprias do meio ambiente da Lagoa Feia. Em seguida, será necessário
comentar, mais extensamente, as características da lógica classificatória utilizada pelos
pescadores no exercício da pesca artesanal, isto é, com fins especificamente
tecnológicos. Neste sentido, considero os modos de composição das designações
verbais produzidas, no âmbito deste processo.
62
A navegação na Lagoa Feia constitui, ainda hoje, aos olhos daqueles que a
praticam uma atividade complexa e não isenta de risco. Embora suas águas, de um
modo geral plácidas, constituam um universo circunscrito, submetido ademais a uma
relativamente acelerada redução, ao longo do século passado, ao praticá-las, em sua
faina quotidiana, os pescadores de Ponta Grossa dos Fidalgos podem se ver diante de
desafios nada desprezíveis, em matéria de orientação espacial.
Com efeito, devido à sua ainda considerável extensão, é muito comum que em
determinados pontos da Lagoa a observação das margens venha a se tornar bastante
difícil, quando não impossível. A magnitude do seu espelho d’água, entretanto, não é o
único obstáculo a ser enfrentado. Condições climáticas desfavoráveis podem agravar os
efeitos da sua vastidão, impedindo divisar-lhe a margem até mesmo a distâncias
relativamente diminutas.
Assim, por exemplo, o pescador, ao sair cedo pela manhã, num dia claro, para
pescar, pode se deparar, de súbito, com uma densa cerração51, que o impedirá identificar
com precisão, tanto a orla da Lagoa, quanto seus acidentes interiores. De natureza
semelhante é a barra, conforme a designação local, fenômeno que consiste no acúmulo
repentino de nuvens, impedindo a visualização das serras, que, a exemplo do que
acontece em toda a região litorânea do Estado do Rio de Janeiro, constituem um vasto
anfiteatro montanhoso, cujos acidentes se oferecem como outros tantos pontos de
referência espacial, para o navegador lacustre. Finalmente, será necessário levar em
conta as condições da navegação quando chove ou à noite, pois as atividades da pesca
artesanal se desenvolvem muitas vezes nessas circunstâncias.
Até os anos 70, a navegação de longo curso na Lagoa Feia, se fazia à vela e o
pescador dependia, portanto, do impulso que os ventos pudessem dar à sua embarcação.
Quando estes por algum motivo lhe faltavam, a canoa tinha de ser deslocada à força de
varas ou com o próprio remo, o que se tornava possível graças à sua baixa profundidade
média, cerca de 1,5m
52
. Desse modo, muitas gerações de pescadores mantiveram,
durante seus longos anos de atividade, no “tempo da canoa”, um intenso e constante
contato com o fundo lacustre.
51
Cerração conforme definido pelos pescadores é uma espécie de bruma ou nevoeiro. Fenômeno climático de comum
ocorrência em determinadas épocas do ano nas regiões de clima úmido.
52
BIDEGAIN & SOFFIATI et al : 2002.
63
Atualmente, graças à utilização do motor movido a óleo diesel, a navegação
deixou de ser um trabalho tão árduo como antigamente. As novas embarcações tornam
possível alcançar distâncias maiores com rapidez muito maior e muito menos fadiga
para o pescador, pois, durante a maior parte do tempo ele pode dispensar o calão e o
remo, servindo-lhe este último principalmente como leme, ou nos momentos de zarpar e
chegar. Desse modo veio rareando também o contato com o chão da Lagoa, que deixou
de ser tão imprescindível quanto outrora.
Este fato, entretanto, não levou o conhecimento do fundo à extinção. Ele
continua vivo e se transmite, ainda, no artesanato pesqueiro, de geração para geração. E
isto porque, embora sem o peso de outros tempos, o chão manteve a sua importância
como referencial para a navegação na Lagoa Feia.
O contato com o fundo, historicamente consolidado pela transmissão entre as
gerações de pescadores, e que, até hoje, se mantém, embora em menor escala, fez dos
dedicados à pesca exímios conhecedores da porção coberta do espelho d’água da lagoa.
E de tal modo a conhecem que são, em princípio
53
, capazes de localizar e reconhecer,
pelo tato, variados tipos de chão, como o Duro (ou durinho), a Pedra (ou chão de
pedreira) e a Lama (ou mole), por exemplo54.
Convém, a propósito, recordar a acepção dicionarizada da palavra tato: “sentido
por meio do qual se conhece ou se percebe, usando o corpo, a forma, a consistência,
peso, temperatura, aspereza etc. de outro corpo ou de algo” 55.
Assim, quando os pescadores, tocando o chão lacustre com o remo grande ou
com a vara, usam o termo duro estão se referindo a um terreno arenoso, ou a terreno
composto por barro, porque ambos oferecem maior resistência ao toque. Esta dureza se
evidencia, sobretudo, no ato de fincar a vara, quando se fundeia a canoa. O termo lama,
por sua vez, diz respeito a um terreno muito mole, viscoso, às vezes, quase fluido. Esses
dois tipos de chão podem de ser encontrados praticamente por toda parte, na Lagoa. Aí
poderão aparecer, também, as formas compósitas, como é o caso, por exemplo, da
pedra.
53
Em determinadas circunstâncias, as águas da Lagoa se apresentam translúcidas, o que permite divisar claramente o
fundo. Essas circunstâncias, entretanto, são consideradas pouco auspiciosas para a pesca, pois vêm geralmente
associadas à ausência de peixe.
54
A incidência deste tipo de chão tem aumentado consideravelmente com o passar do tempo. Castro Faria
praticamente não o citou em suas notas. Esse fato, em parte, deve-se ao processo de intervenção antrópica das obras
de saneamento implementadas pelo extinto DNOS.
55
Cf. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, verbete tato.
64
Em diversos casos, há uma combinação de tipos. Assim, por exemplo, o chão
Duro, de areia ou barro, pode apresentar uma cobertura de lama. Esta camada de lama
pode variar de espessura, de um local para outro. Às vezes, o chão de pedra surge
também associado a um terreno arenoso. Quando os pescadores se referem ao chão,
distinguem uma areia mais grossa e mais escura de uma areia mais fina e mais clara; um
barro mais “duro” de um barro mais “mole”; uma lama mais pegajosa de uma lama
menos pegajosa; atualizam assim, uma espécie de escala de consistência. No caso do
barro e da lama, os pescadores acrescentam uma gradação de cores: barro marrom,
vermelho e vermelho escuro. A lama também é percebida em varias tonalidades
diferentes: preta; cinza (claro/escuro); “azulada” (clara/escura).
Este tipo de conhecimento já tinha despertado a atenção de Castro Faria, que o
comenta em uma de suas notas de campo, referindo-se às diferenças conhecidas e
reconhecidas, pelos pescadores de Ponta Grossa dos Fidalgos, quanto se tratava do
fundo da Lagoa, inspirando-lhe o seguinte registro:
“Todos os acidentes do terreno no fundo da lagoa que apresentam,
qualquer interesse para a pesca recebem dos pescadores de Ponta
Grossa designações próprias. Distinguem assim, murundús, pedreiras,
duros de buracos, abas de coroa e lages de pau.” 56
A distinção dos tipos de chão e o conhecimento dos componentes do fundo
fazem parte de um dispositivo graças ao qual, tateando o fundo da Lagoa com remo ou
calão, o pescador experiente consegue identificar exatamente o ponto onde se encontra,
isto é, as coordenadas de sua posição. Dessa forma, consegue navegar por toda parte
tendo como referencial apenas o mapa do chão, que tem na cabeça. A partir de sua
posição atual, e com base nas distâncias que o separam de qualquer outro ponto
conhecido da área lacustre, pode fundamentar as suas decisões, quanto aos rumos e
roteiros que mais convém à sua estratégia de pesca.
Meus interlocutores em Ponta Grossa gostam de se gabar deste conhecimento
específico. É notório o orgulho nos relatos e descrições. Nas palavras de Doba:
56
CASTRO FARIA: 1939/41. Grifo original.
65
“Na Lagoa Feia, os pescadores se localizam pelo chão, eles conhecem
o chão, sabem onde estão pelo chão. Quando o pescador toca o remo
no chão, sente o chão e vai de qualquer lugar para qualquer lugar. Por
exemplo: do Duro da Verga pro Canto do Sobrado.”
A utilização do chão como referencial também proporciona aos pescadores um
recurso auxiliar precioso para a realização da pesca de cutuca. Consiste, essencialmente,
na criação de um pesqueiro cativo, em um ponto escolhido da lagoa, mediante o
depósito de um galho de árvore, sob o qual e ao redor do qual se forma, com o tempo,
um micro-clima favorável a determinadas espécies, como, no caso da Lagoa Feia. Este
pesqueiro poderá, na sequência, ser localizado graças à sua marca de encruzo, 57 isto é,
às coordenadas cuja intersecção se dá no ponto exato em que o galho foi depositado.
Como, no entanto, as referidas coordenadas são acidentes escolhidos na linha do
horizonte, próximo (margens) ou distante (serras e morros) pode ocorrer que esses
elementos – situados em terra – ou bem se tornem, de repente, momentânea ou
definitivamente invisíveis.
Se há algo que todos esses locais têm em comum é o fato de pertencerem a um
conjunto – o dos lugares identificados na cartografia do chão da Lagoa Feia, tal como a
conceberam e continuam a conceber os pescadores de Ponta Grossa dos Fidalgos. Como
tais, no entanto, cada um deles se insere, ao mesmo tempo, numa rede de pontos
referenciais. De cada um deles se pode deduzir a posição atual da embarcação, na Lagoa
e sua distância relativa de outros pontos. De cada ponto, por sua vez, se pode rumar em
direção a qualquer outro, por distintos percursos, segundo as circunstâncias ad hoc da
pescaria, sejam elas as condições climáticas ou as motivações oriundas do interesse.
As denominações utilizadas para designar esses lugares são os signos descritivos
mediante os quais se configura o mapa do chão. Não se limitam, no entanto, apenas ao
papel que lhes é atribuído na semiologia cartográfica. São, além disto, parte integrante
de uma semiologia ainda mais abrangente, voltada, no âmbito da tradição artesanal da
pesca lacustre, para o seu principal objetivo: a localização das espécies com vistas à sua
captura.
57
Castro Faria já se referia a essa técnica em seu material etnográfico, onde registra alguns exemplos de sua
aplicação. A propósito, consultar, também, MELLO & VOGEL: 2004.
66
Também neste sentido o conhecimento acurado da geografia do fundo se revela
estratégico, pois, se permite ao pescador localizar-se, no vasto espelho d’água da Lagoa,
num outro plano, lhe permite reduzir os azares da pescaria, localizando a sua presa, com
maior grau de probabilidade. Lugares distintos quanto às suas características
constitutivas atraem e abrigam distintos tipos de peixe.
O Pensamento Selvagem de Claude Lévi-Strauss58, que se inscreve na
posteridade antropológica direta de Durkheim e Mauss, incorpora e atualiza de modo
crítico e inovador a discussão seminal destes no texto “Sobre Algumas Formas
Primitivas de Classificação”
59
. Admite, neste sentido, a origem social das
classificações. As coisas são distintas e classificadas a partir das relações sociais
estabelecidas no âmbito de um determinado grupo e no espaço em que este vive. São
dispositivos ordenadores do conhecimento sobre os mundos social e natural. Neste
sentido, as coisas, só podem ser classificadas na medida em que forem conhecidas, por
alguém, em algum tempo e lugar.
Esse conhecimento, por sua vez, é tributário de uma lógica do concreto60. A
observação exaustiva e o constante contato com o ambiente, indispensáveis à obtenção
dos recursos necessários à sua existência, leva os grupos sociais a criarem inventários,
mais ou menos sistemáticos, capazes de ordenar o seu universo. Agrupar elementos,
organizá-los em categorias e hierarquizar estas últimas são as três operações que
compõe o cerne do exercício classificatório. Para os pescadores de Ponta Grossa os
acidentes geográficos do espaço visível podem ajudá-los a diferenciar um local de
outro, mas, o que analiso aqui, não depende, apenas, do reconhecimento desse tipo de
marco.
Lévi-Strauss afirma que para uma melhor compreensão do exercício
classificatório deve-se levar em consideração a lógica das qualidades sensíveis,
identificadas em sua dimensão estética (visual), tátil (consistência ou textura), olfativa
(cheiros e essências) e palatável (gosto).
A classificação, portanto, é empreendida a partir da identificação de
propriedades capazes de tornar as coisas singulares em relação a outras. Neste caso, ao
58
59
60
LÉVI-STRAUSS: 1970.
DURKHEIM & MAUSS: 1969.
Cf: LÉVI-STRAUSS: 1970.
67
verificar diferenças de constituição no fundo da Lagoa Feia, tais como chão de areia ou
de lama, os pescadores estão operando na dimensão sensível da textura,
circunscrevendo um par de oposições – o duro e o mole –, estabelecendo, ao mesmo
tempo, uma escala de gradação entre elas: mais duro/menos duro; mais mole/menos
mole.
Há, no entanto, outros aspectos relevantes para esta lógica. Uma coroa, uma
ilha, ou um largo são assim designados levando em conta a sua forma, também ela uma
propriedade sensível. Outra dimensão considerada significativa é a da profundidade,
compreendida, também ela, dentro de uma gradação, a saber: fundo/raso/médio, mais
fundo/mais raso, muito fundo/muito raso.
Observando mais atentamente os nomes dos lugares
61
e o modo como são
nominados pelos pescadores, é possível compreender um pouco mais a sua lógica
classificatória. Neste sentido, aponto três variáveis de classificatórias principais. A
primeira diz respeito àqueles lugares cujos nomes se referem à constituição do fundo da
Lagoa, ao chão considerado do ponto de vista dos seus materiais, isto é, a uma
dimensão em princípio invisível. A segunda variável compreende formas, pertencentes,
de algum modo, à paisagem lacustre, e que são acessíveis ao olhar62. Por fim, a terceira
variável refere-se aos lugares mediante a sua associação a nomes próprios ou apelidos
de pessoas, tal como os reteve a memória local. O quadro que daí resulta poderia ser
resumido no seguinte esquema:
61
Adotei a conceituação de lugar feita por Asa Briggs: “A antropologia nos explica o apego profundo do homem às
menores porções do ambiente em que vive e o desejo que sente de dar-lhes um nome. ‘A pesquisa sobre querença’
interessou-se pela psicologia topológica de ‘orientação espacial’, dos processos através dos quais indivíduos e os
grupos estão sempre transformando ‘espaços’ em ‘lugares’, ‘apegando-se’ a eles através do hábito, memória,
temperamento, associação. Geralmente pouco importa se os ‘espaços’ foram planejados para serem lugares”. Cf.
BRIGGS: 1968, 80.
62
O sentido que atribuímos a este termo corresponde à seguinte definição dicionarizada: “Porção do espaço analisada
visualmente. A paisagem é resultado da combinação dinâmica de elementos físico-químicos, biológicos e
antropológicos que, reagindo uns sobre os outros, fazem dela um conjunto único e indissociável em perpétua
evolução”. Cf. GEORGE: 1970, 314 – verbete paysage.
68
LUGAR
CHÃO
PAISAGEM
NOMES
INVISÍVEL
VISÍVEL
RELATIVO
À
BIOGRAFIA
ACESSÍVEL À
EXPLORAÇÃO
TÁTIL
POTENCIALMENTE
PROPRIEDADE
INVISÍVEL DEVIDO
IMATERIAL EM
ÀS CONDIÇÕES
CONDIÇÃO DE
ATMOSFÉRICAS
DOMÍNIO
PÚBLICO
Esta divisão segundo três variáveis expõe, de uma maneira geral e, portanto,
esquematiza o exercício classificatório dos pescadores. Uma compreensão dos aspectos
mais refinados deste, contudo, requer um aprofundamento maior em cada uma delas.
O lugar chamado de Coroa Baixa, por exemplo, é um caso onde as
características geográficas supracitadas foram utilizadas também para a classificação,
pois se trata de uma coroa [forma] de areia [tipo de chão], situada a baixa profundidade.
Outros casos, ilustrativos são Os Barrinho(s) e As Pedrinhas, cujas designações se
referem exclusivamente à composição do chão, sem mencionar a forma do acidente em
questão.
69
A segunda variável pode ser exemplificada com As Cruz(es) e Canto do
Sobrado. A primeira dessas designações retém uma forma, característica de um dos
cantos meridionais da Lagoa, que tem as margens tomadas por uma vegetação muito
densa, cuja disposição, de acordo com os pescadores configura a imagem visual de uma
cruz. A segunda indica um canto preciso da Lagoa, onde parece ter existido outrora um
sobrado, pertencente ao proprietário das terras ribeirinhas. O sobrado já não mais existe,
permanecendo, entretanto, um referencial válido, inscrito na memória local, como parte
de uma geografia fantástica da Lagoa Feia.
A última variável da classificação faz constar, entre outras coisas, uma
determinada relação com o (ou frequentação do) lugar. Esta nos remete a um pesqueiro,
que antes pertencia, em sigilo, a um pescador, ou grupo de pesca, e que, por algum
motivo foi descoberto, tendo caído no domínio comum. Assim, as designações Trolha
de Manuel Francisco, Coroa de João Bagre, As Pedras de Chico Luiz, por exemplo,
referem-se a locais onde estes pescadores desenvolviam suas atividades, em pesqueiros
de sua respectiva autoria. No primeiro caso, o termo trolha define uma técnica
específica de captura até hoje praticada por esses pescadores. Nos dois últimos
exemplos, os nomes dos pescadores vêm associados às características geográficas do
local. Os nomes dos proprietários de terra às margens da Lagoa também funcionam
como elemento constitutivo na classificação, como vemos nos casos do Canto do
Oliveira e da Beirada dos Fernandes.
Como se constituem, em suma, esses signos descritivos que designam os
lugares? Consultando as extensas listas de nomes, verifica-se que muitos deles são
formados por ou incorporam uma menção a certas características dos sedimentos que
caracterizam os lugares por eles designados, como, por exemplo, a natureza desses
sedimentos (areia, barro, lama, pedra) ou a sua consistência (dura ou mole) Outros
jogam com a variável da profundidade, com os altos e baixos, o convexo e o côncavo.
Em alguns casos, fazem referência a verdadeiras formações topográficas. Outros ainda
incorporam referências a certos tipos de vegetação. Outros, finalmente, associam
determinados lugares aos nomes (ou às práticas) de certas pessoas, a maioria das quais
ninguém sabe mais quem foram. Subsistem na memória apenas porque estão inscritas
na toponímia da Lagoa Feia. Finalmente, existe toda uma gama de possibilidades, em
matéria de combinação dessas variáveis classificatórias.
70
Os dados apresentados configuram, certamente, um dispositivo classificatório.
Nele é possível identificar determinadas características sistemáticas, configuradas no
uso de um conjunto limitado de variáveis, combinadas, segundo determinados critérios,
para designar, com a maior precisão possível, lugares conhecidos e reconhecidos pelos
pescadores, de acordo, não só com a experiência de cada um, mas também por
intermédio da memória socialmente transmitida desses lugares e de outros, que já nem
existem mais.
Ao considerá-los, atentamente, porém, sugiro, neste caso, que não estamos
diante de um sistema de classificação do tipo ao qual se referia, em particular, o artigo
“Sobre Algumas Formas Primitivas de Classificação”. Os sistemas dos quais falavam
Durkheim e Mauss, neste agora já centenário texto, apresentavam um caráter
totalizador, graças ao qual tinham a capacidade de incorporar, potencialmente, os mais
variados tipos de elementos heterogêneos constitutivos de um determinado universo,
fossem eles – pontos cardeais, estações do ano, fenômenos climáticos, elementos da
natureza, matizes de cor, corpos celestes, e, finalmente, divisões sociais. Eram quadros
abrangentes do universo, verdadeiras cosmovisões.
Segundo esta concepção, tão célebre quanto criticada, nas infindáveis discussões
suscitadas pelo texto de Durkheim e Mauss, as divisões sociais, isto é, os aspectos
morfológicos dos grupos eram considerados como sendo a matriz classificatória, por
excelência, atuando na gênese de todas elas e conferindo-lhes um caráter
eminentemente sintético:
“Tais classificações são, pois, antes de tudo, destinadas a juntar idéias
entre si, a unificar conhecimentos; neste sentido se pode dizer sem
inexatidão que são obra de ciência e constituem uma primeira filosofia
da natureza.” 63
O foco que distingue minha análise, entretanto, é outro, embora também ele
resultante do mesmo artigo, onde surge num pé de página destinado, justamente, a
estabelecer uma distinção considerada relevante. Na nota 225 do segundo volume da
edição das Oeuvres de Mauss, tal como estabelecida por Victor Karady, lemos o
seguinte:
63
DURKHEIM & MAUSS: 1968, 82.
71
“Por isso, elas se distinguem muito nitidamente daquilo que se
poderia chamar as classificações tecnológicas. É provável que, desde
todo o sempre, o homem tenha mais ou menos nitidamente
classificado as coisas das quais se alimenta segundo os procedimentos
que emprega para delas se apoderar: por exemplo, em animais que
vivem na água, ou nos ares, ou sobre a terra. De início, porém, os
grupos assim constituídos não são ligados uns aos outros e
sistematizados. São divisões, distinções de noções, não são quadros
de classificação. É evidente, além disso, que essas distinções estão
estreitamente engajadas na prática da qual elas não fazem senão
exprimir certos aspectos. É por esse motivo que não falamos delas
neste trabalho onde buscamos, sobretudo, esclarecer um pouco as
origens do procedimento lógico que serve de base às classificações
científicas.”64
Ao considerar os mapas do chão sob esta perspectiva, observa-se que neles os
espaços
65
se apresentam como séries simultâneas, reversíveis e múltiplas, elaboradas a
partir da experiência constante da pesca lacustre, como representações práticas, isto é,
como dispositivos de um saber local centrado num sujeito (agente) que o adquiriu (e
utiliza) no exercício de sua profissão. 66
São, portanto, a propriamente dizer, saberes profissionais. Mas o que significa
isto? Significa justamente que não se confundem com os sistemas de classificação tais
como Durkheim e Mauss os tinham em mente, ao discutir as assim chamadas “formas
primitivas”. Ao contrário destas, se caracterizam, antes, como dispositivos submetidos à
temporalidade das histórias de vida, sendo, pois, tributários da experiência e, em virtude
de sua utilização, no desempenho quotidiano do ofício, são também permanentemente
atualizados, por meio de ratificações e retificações. Resultantes de fontes e tempos
diversos, não têm unidade, a não ser no sentido pragmático, como ferramentas de
trabalho de um mesmo tipo de atividade, exercida num determinado contexto.
É neste sentido que as classificações tecnológicas se opõem aos “sistemas de
noções hierarquizadas”, que Durkheim e Mauss discutiram. Sua finalidade não é
eminentemente especulativa. Visam, antes de tudo, “facilitar a ação”, da qual são ao
64
Idem.
Cf. HAMELIN: 1956 , 12.
66
Cf. HAMELIN: 1956, 153.
65
72
mesmo tempo a condição de possibilidade e o resultado67. Não apresentam o aspecto
arquitetônico dos sistemas cosmológicos, mas o caráter narrativo do conhecimento
conquistado em virtude da experiência individual. São frutos do tempo de vida do
profissional, produtos do seu artesanato, do qual constituem, ao mesmo tempo, a
memória, na medida em que resultam “do passado de cada um para cada um. 68”
Esses lugares, atuais ou pretéritos, registrados nos diversos elencos topográficos
que recolhemos no campo, têm em comum o fato de pertencerem ao conjunto dos topoi
do fundo da Lagoa Feia. Como tais se inscrevem numa rede de pontos referenciais. E
nisto reside precisamente a sua funcionalidade para a navegação e a pesca artesanal na
Lagoa Feia. De cada um deles o nauta pescador pode proceder em direção a qualquer
outro, segundo diferentes percursos e prospectos, de acordo com as circunstâncias
vigentes no momento da pescaria.
Nesta qualidade, fazem parte de uma sofisticada semiologia do espaço lacustre,
que torna possível ao pescador, não só traçar roteiros alternativos para os seus
deslocamentos, mas também formular prospectos
69
mais ou menos precisos sobre as
oportunidades de captura, pois em cada lugar encontrará, de acordo com as suas
características, as diferentes espécies aí aquerenciadas.
As classificações tecnológicas, entretanto, não se limitam à sua funcionalidade
imediata para o ofício da pesca. São igualmente expressivas. Atestam a identidade
social do pescador, ao mesmo tempo em que a constituem. Identidade com o grupo e
com o lugar – apenas quem possui este tipo de conhecimento se pode verdadeiramente
qualificar como um pescador de Ponta Grossa dos Fidalgos. Neste sentido, finalmente,
aferem o domínio do artesanato. Quem conhece muitos lugares e é capaz de enumerálos e caracterizá-los é portador da marca distintiva de um mestre da pesca artesanal, na
Lagoa Feia.
A descrição desse conhecimento abriu novos caminhos em minha interpretação
sobre a lógica da pesca artesanal tal como esta vem sendo desenvolvida pelos
pescadores de Ponta Grossa dos Fidalgos na Lagoa Feia. Não me parecia razoável crer
que esse conhecimento poderia ser encerrado nele mesmo, ou seja, que ele pudesse
67
Cf. DURKHEIM & MAUSS: 1968, 82.
Cf. HAMELIN: 1956, 146.
69
As classificações tecnológicas são, sob esse aspecto, como todas as demais, um sistema de antecipações, e, como
tais, proporcionam um dispositivo capaz de conduzir a interpretações significativas. Ver a propósito, o verbete
Classification. In : RAPPORT & OVERING (Orgs.): 2000, 32-40.
68
73
existir apenas como um dispositivo prático para a navegação e para a captura de peixes.
Comecei então a pensar como este refinado exercício classificatório tinha implicações
fundamentais na relação daqueles pescadores com a Lagoa e com eles mesmos
enquanto grupo profissional. Pareceu-me relevante admitir, portanto, que o
conhecimento naturalístico sobre Lagoa estava diretamente associado a um esquema de
regras e de etiquetas como aquilo que Marcel Mauss chamou oportunamente de
Fenômeno Jurídico 70 no sétimo capítulo de seu Manuel d’Ethnographie.
4.3 – O fenômeno jurídico e as histórias de pescador
Em diversos lugares, pescadores artesanais têm direitos estabelecidos de
propriedade em relação aos recursos naturais implicados pelo seu exercício profissional.
As formas de regulação têm por objetivo minimizar conflitos e limitar, de alguma
forma, o acesso às potencialidades relevantes do ecossistema71:
“Diversos autores têm assinalado casos onde pontos de pesca não são
formalmente propriedade, mas onde o segredo e o gerenciamento de
informação operaram para efetivar alguns direitos de pesca relativos
aos recursos. Em alguns poucos casos, certos grupos de pesca detêm
direitos de fato, em nichos e ecozonas específicas, desde de que sejam
os únicos na área que tenham a técnica para pescá-los. McCay aponta
que na maioria das sociedades pesqueiras os direitos envolvem
controle relativo ao ‘espaço de pesca.’” 72
Para Acheson, a pesca, mais que um empreendimento de incerteza, configura-se
como uma competição entre indivíduos e grupos pela questão da acessibilidade aos
recursos naturais disponíveis. Sendo tais recursos limitados, muitos grupos pescadores
desenvolveram, ao longo de muitas gerações, não somente variadas tecnologias, mas
também uma extensa gama de instituições criadas para dividir os riscos da competição e
estabelecer certos direitos de propriedade.
Para o caso da Lagoa Feia, o próprio Luiz de Castro Faria, em seu inédito
trabalho, já assinalava o caráter competitivo da pesca ali praticada. Neste sentido,
70
MAUSS: 2002, 195.
ACHESON: 1981.
72
ACHESON: 1981, 281.
71
74
mencionava em um fragmento a importância da descoberta de locais propícios para a
realização de uma boa pescaria:
“O exercício contínuo da atividade pesqueira, que assume inevitavelmente
um caráter de competição entre grupos de pesca, faz com que a descoberta
de locais propícios seja conservada tanto quanto possível em segredo.”
73
Os assim chamados “locais propícios” são designados como pesqueiros. Desta
forma os pescadores denominam certos lugares na Lagoa que não possuem, a priori,
nenhuma demarcação visível, mas onde normalmente se pesca com mais sucesso. Um
pesqueiro funciona objetivamente como um ponto de pesca. O pescador utiliza-se dos
conhecimentos naturalísticos sobre a biologia das espécies que habitam a Lagoa em
associação com os conhecimentos geográficos do ambiente para identificar um bom
ponto. Além disso, ele também pode criar o seu próprio pesqueiro usando alguns
artifícios como galhos de jenipapeiro e grãos de milho, no intuito de estabelecer um
ambiente propício para atrair o pescado. A criação de um pesqueiro estabelece um lugar
na Lagoa onde a pesca tem mais chances de tornar-se bem sucedida. Sendo assim,
pretendemos neste artigo discutir como se formulam e resolvem, neste povoado, os
problemas suscitados pela questão da autoria dos pesqueiros, na medida em que esta
surge como geradora de direitos, expectativas e sentimentos morais, ou seja, um
esquema de regras e etiquetas.
Pesqueiro com Pudim e Adilson
73
CASTRO FARIA: 1939/41.
75
Como o pesqueiro não possui nenhuma demarcação concreta, uma das maneiras
de achá-lo na imensidão da Lagoa Feia é utilizando a técnica das marcas. Estas se
estabelecem da seguinte maneira: estando a embarcação parada em determinado local, o
pescador procura em terra dois acidentes geográficos que lhe servirão de ponto de
referência. Depois, ele traça duas linhas imaginárias, que vão da embarcação até os
pontos de referência, interconectando-os. A marca de encruzo é a intersecção destas
linhas imaginárias, sendo o pesqueiro o vértice do triângulo. Essa técnica requer a
utilização de referenciais situados em terra firme, como por exemplo, árvores,
edificações, picos de morro, entre outros. Manejada com habilidade, permite ao
pescador retornar ao pesqueiro sempre que o deseje ou julgue oportuno.
Traíras sem escamas.
A transmissão deste conhecimento continua sendo feita geração após geração, o
que lhe confere um caráter dinâmico. É passível de permanentes atualizações, em
virtude das adaptações e ajustes impostos pelas mudanças ecológicas ou pelas
intervenções humanas na paisagem. O que desejo ressaltar aqui é, sobretudo, que a
constituição dos pesqueiros e mesmo a técnica das marcas estão estreitamente
relacionados com certos direitos de pesca.
Os primeiros dados de campo indicavam que os pescadores se referiam aos
pesqueiros usando pronomes possessivos, como se fossem de sua propriedade. Frases
como: “minha trolha” ou “minha pescaria” e até mesmo “meu lugar” eram
constantemente proferidas quando o assunto era a pesca. A maneira como os pescadores
se manifestavam sobre o assunto era indicativa do seu sentimento de posse com relação
76
aos pesqueiros. Não a todos, indiscriminadamente, como parecera de início, mas a
alguns em particular, aos quais estavam vinculados mais fortemente.
Para os pescadores, então, a categoria propriedade não aparece de forma isolada.
Nos relatos feitos por sujeitos de gerações diferentes surge um consenso quanto à
exclusividade de uso de certos pesqueiros. Cada pescador, juntamente com seus
companheiros de pesca, pode usufruir determinados lugares com exclusividade, não se
obrigando a compartilhá-los com nenhum outro grupo.
77
Neguinho e Jonas
A constituição do pesqueiro, tal como percebida pelos pescadores, tem
implicações fundamentais para a regulação de seu uso. Neste sentido, parece relevante
distinguir dois tipos: o pesqueiro “natural” e o pesqueiro “feito”, termos que
correspondem, literalmente, ao dizer dos pescadores. O objetivo aqui é evidenciar os
vínculos que essas duas categorias estabelecem entre a origem do pesqueiro e as formas
diferenciadas de sua apropriação.
Diz-se que um pesqueiro é “natural”, ou, para usar a expressão nativa, “é da
natureza”, quando este se constituiu, independente de qualquer intervenção humana, a
partir de determinadas características da topografia do fundo, com suas variadas
implicações hidráulicas, biológicas e, portanto, haliêuticas. São, por exemplo, as
“pedreiras” (relevo rochoso), as “buraqueiras” (feitas por determinadas espécies de
peixes), lugares específicos, enfim, onde se tenha constituído, ao longo do tempo, um
ambiente favorável à aglomeração e à presença constante de certas espécies ou
populações naturais, em decorrência das condições ecológicas ali existentes.
“Natural”, neste caso, não significa o resultado de um intenso processo de
transformação geológica recorrente em ecossistemas integrados como o da Lagoa Feia –
inclusive porque muitos acidentes geográficos, por mais naturais que pareçam, podem
78
ser oriundos da frequente intervenção antrópica no ambiente. Esta noção enquadra
aquilo que os pescadores dizem ser “os pesqueiros que já estavam lá e ninguém fez”.
Nesse tipo de pesqueiro não é possível, pois, reivindicar autoria. O pescador que
o tenha identificado pode legitimamente mantê-lo em segredo para os demais.
Entretanto, caso descubra que outro pescador está frequentando este mesmo pesqueiro,
não lhe cabe invocar qualquer direito de exclusividade. Como não existe autoria
definida não há tampouco dono. Quando falam do assunto, os pescadores dizem coisas
como: “se está lá, e não é de ninguém, é da natureza”. Sua ideia de natureza pode
apresentar-se sob a forma de enunciados diferentes. Alguns, por exemplo, se referem a
Deus como autor. Outros falam da “Mãe Natureza”. Há aqueles ainda que se referem ao
“começo do Mundo”. É consenso, no entanto, que a palavra natureza se refere a algo
que a que todos podem ter acesso, desde que possuidores dos conhecimentos
adequados, segundo a tradição local da pesca.
“Feitos” são aqueles pesqueiros que resultaram da iniciativa conscientemente
direcionada de um pescador. Foram criados mediante a utilização de técnicas adquiridas
durante a socialização profissional.
Todos os pescadores podem conhecer locais na Lagoa considerados bons para se
pescar. Nem todos, porém, têm a competência de formar um bom pesqueiro, pois isto
requer o domínio de três técnicas associadas: I) a escolha de um bom lugar; II) o uso de
artifícios para atrair o peixe como o galho seco de jenipapeiro; III) o conhecimento das
marcas de encruzo como dispositivo referencial para a localização do pesqueiro.
Um pescador pode criar seu pesqueiro tendo assim o direito de mantê-lo em
sigilo, não só em face dos seus parceiros imediatos, senão para todos os demais
pescadores. O sigilo para com os primeiros é facultativo, admitindo exceções, sempre
dependentes das relações de confiança (ou não) entre o mestre e seus companheiros.
Para com os últimos, o segredo é imperativo, pois se trata de resguardar um bem para
usufruto restrito.
A reivindicação da exclusividade do uso é, neste caso, uma convenção social a
partir do reconhecimento de uma autoria claramente estabelecida. Quem, no entanto,
deve garantir esta exclusividade, em primeiro lugar, é o próprio “autor” do pesqueiro –
aquele que o criou e que fez a sua marca. É a ele que cabe manter segredo a respeito da
79
localização do ponto. O reconhecimento de um direito, porém, implica também os
mecanismos necessários à sua salvaguarda. No caso do “pesqueiro feito”, as
transgressões do direito de exclusividade estão, portanto, sujeitas a sanções. Caso se
venha a descobrir, por evidências ou indícios, que outrem está usufruindo de seu lugar,
pode-se mencionar publicamente tal violação, exigindo explicações, justificativas ou,
até mesmo, uma retratação do acusado.
A sanção consiste na desmoralização pública do transgressor, pois se entende
que todos os envolvidos com a pesca artesanal conhecem e reconhecem as prerrogativas
e regras de uso dos espaços lacustres. As sanções se parecem enquadrar naquilo que
Raymond Firth chamava de “sanção da opinião pública”
74
. O que caracteriza este tipo
de sanção é o fato de não existir um lugar formalmente designado para proferir a
acusação, ou seja, isto pode ser feito em rodas de conversa, nos bares, nos portos etc.
Não há data, nem hora para fazê-lo. E não existe, tampouco, a necessidade de um
mediador formalmente indicado. Tudo isso, entretanto, não afeta a sua eficácia, que
reside na possibilidade de expor aquele que infringiu a regra a uma situação pública de
incômodo e constrangimento perante os demais.
Segundo os relatos, não há necessariamente uma ruptura das relações entre as
partes envolvidas. O que pode ocorrer é que o pescador acusado de ter infringido a
regra, caso persista em fazê-lo, daí por diante passe a carregar um estigma. Será (re)
conhecido como um pescador que – ao invés de criar os seus pesqueiros – fica sempre à
espreita da pescaria alheia.
Na tipologia dos pesqueiros o traço distintivo entre aqueles que são “da
natureza” e aqueles que, ao contrário, são “feitos”, é, justamente, a autoria. No primeiro
caso parece não haver autoria, ao passo que, no segundo, esta manifestamente existe,
podendo inclusive ser referida à ação humana consciente, ao querer e realizar de um
indivíduo singular, conhecido e nomeado.
Émile Benveniste, em sua análise etimológica da categoria Censor, e que se
refere a um personagem da magistratura romana com funções especificamente
normativas, afirma: “enquanto especifica com autoridade uma verdade de fato, o censor
pronuncia a situação de cada um e sua posição na sociedade: é este o census, avaliação
74
FIRTH: 1978, 142.
80
hierarquizante das condições e das fortunas (...)” 75, acrescentando, ao final, que o verbo
latino censeo significa mais precisamente avaliar.
Mais importante ainda é a associação que Benveniste encontra entre esta noção
do censor e outra, que lhe é complementar – a noção latina verbalizada na palavra
autoridade: “(...) com grande freqüência emprega-se censeo com auctor e auctoritas76”.
Onde auctor, por sua vez, deriva do verbo latino augeo, comumente traduzido por
“acrescer” ou “aumentar”
77
. Mais do que a um simples incremento meramente
quantitativo, entretanto, se trata aqui de uma de uma adição, no sentido específico
assinalado abaixo:
“Em seus mais antigos usos “augeo” indica não o fato de aumentar o que
existe, e sim o ato de produzir fora de seu próprio seio; ato criador que faz
surgir alguma coisa de um meio fértil e que é privilégio dos deuses ou das
grande forças naturais e não dos homens.” 78
É, portanto, a partir da análise do verbo augeo que Benveniste vai desenvolver
sua discussão sobre a problemática da autoria. Segue abaixo uma das mais
esclarecedoras passagens do seu argumento:
“É esse sentido que vem atestado pelo nome de agente auctor.
Qualifica-se de auctor, em todos os domínios, aquele que ‘promove’,
que toma uma iniciativa, que é o primeiro a produzir alguma atividade,
aquele que funda, que garante, e finalmente o ‘autor’.” 79
Este erudito estudo de uma categoria da cultura romana fornece, assim, um
importante instrumento para esta análise. A etimologia de “autor” indica, com nitidez, o
sentido primordial da palavra, que parece bastante adequado ao entendimento do objeto
em questão: a lógica do direito costumeiro em Ponta Grossa dos Fidalgos.
Se autor é aquele que funda, que produz ou que inaugura o novo, este fato
parece estar intrinsecamente relacionado com certas propriedades características do
agente para poder fazer – qualidades que o distinguem de todos aqueles que não as
possuem.
75
BENVENISTE: 1995, 149.
Idem; ibidem: 150.
77
Idem; Ibidem: 151.
78
BENVENISTE: 1995, 151. Grifo meu.
79
Idem; Ibidem: 151. Grifo meu.
76
81
Como observamos anteriormente, o autor de um bom pesqueiro deve ter um alto
grau de domínio de seu ofício. Não lhe basta conhecer, de forma mais ou menos
exaustiva, as técnicas específicas da pesca artesanal. Mais do que conhecê-las a fundo,
este pescador deve saber operá-las na prática, manejando-as todas ao mesmo tempo,
articuladas entre si de modo a proporcionar-lhe o melhor resultado. E esta não é apenas
uma questão técnica, pois não é todo pescador que se revela capaz disto.
O fato de ser o autor de um ou mais pesqueiros confere ao pescador direitos
sobre sua obra. Da autoridade dele faz parte, por exemplo, o direito de reivindicar
exclusividade em matéria de usufruto do pesqueiro. O reconhecimento desse direito, por
sua vez, remete tacitamente ao fato de ser o autor do ponto de pesca um pescador de
notória competência, assim considerado pelo grupo.
Não existe nenhum mecanismo jurídico formal que regule a prerrogativa da
exclusividade sobre um determinado “ponto” da Lagoa Feia. Não há estatuto em que
esteja consignada. Não há nenhum documento normativo que a estabeleça e sancione. A
única coisa capaz de assegurá-la, de algum modo, é política do sigilo. É ela que permite
aos pescadores de Ponta Grossa usufruir exclusivamente dos pesqueiros por eles
criados.
A presença do segredo, na etnografia das comunidades pesqueiras, não constitui
novidade. Surge em vários trabalhos. Vamos encontrá-lo, por exemplo, nos estudos de
Shepard Forman sobre os jangadeiros da costa brasileira. Aparece também no trabalho
de Roberto Kant de Lima sobre a pesca artesanal na Praia de Itaipu, em Niterói/RJ. E no
de Marco Antonio da Silva Mello e Arno Vogel, quando analisam a pesca de galho no
Lago Grande, em Maricá/RJ80.
Nenhum pescador é obrigado a dizer a outro(s) onde está localizado qualquer
pesqueiro de sua autoria. Se, por algum motivo, não lhe for possível manter o segredo, o
pesqueiro cai no domínio público, o que fatalmente acarreta, em virtude da perda de
exclusividade, na diminuição progressiva da captura naquele local. Assim, uma forma
muito utilizada para manter o sigilo em torno dos pontos de pesca, é confundir os outros
com histórias inventadas com o único objetivo de não revelar a real localização do
pesqueiro cativo.
80
FORMAN: 1970; KANT DE LIMA: 1997; MELLO & VOGEL: 2004.
82
Em Ponta Grossa dos Fidalgos, como em outros povoados pesqueiros, existem
espaços privilegiados de socialização. Os bares e botecos são os locais preferidos pelos
os pescadores para “jogar conversa fora”, falar de futebol, de assuntos dos quais as
mulheres e crianças não costumam participar e – como não poderia deixar de ser –
comentar o universo da pesca, sob os seus mais diversos aspectos 81.
Essas conversas podem se desenrolar de diversas maneiras. Em pequenas rodas
de amigos, espalhadas pelo boteco, nas quais todo mundo parece estar falando ao
mesmo tempo. Ou em ajuntamentos mais focalizados, onde um narrador conta sua
história diante de uma audiência mais ou menos atenta. Observando e escutando as
conversas, sempre acaloradas nestes ambientes, quase ninguém relata um caso em que a
pesca tenha sido mal sucedida82. Ao contrário, normalmente o que se ouve em público
são histórias que falam da fartura dos peixes e das grandes pescarias.
Bar do Lenilson
81
Outro lugar onde se conversa sobre pesca é na beira da Lagoa em local conhecido como Porto da
Beirada. Neste local a prefeitura de Campos dos Goytacazes construiu um píer e os moradores de Ponta
Grossa costumam freqüentar bastante.
82
Não é que nunca digam que a pescaria foi ruim. Porém, na conversa com os demais pescadores colegas
de ofício, tentam mostrar-se sempre em situações de sucesso. Falando bem de suas empreitadas o
pescador aumenta seu prestígio.
83
Bar do Lenilson
Bar do Doba
Em uma dessas ocasiões, enquanto ouvia atentamente a história de mais uma
pescaria, Cáu, um pescador muito falante, que já acompanhava a pesquisa há certo
tempo, nos disse baixinho: “não anota no caderno não, porque o que ele tá falando é
mentira”. A convicção desta assertiva surpreendeu. Esperei o pescador acabar sua
narrativa. Cáu, no entanto, voltou a insistir. Disse que provaria que o orador estava
mentindo. Passado mais algum tempo, chegou ao boteco o companheiro de pesca do
84
suposto mentiroso. Neste momento, Cáu inquiriu o recém-chegado sobre o local onde
tinham ido pescar durante a tarde. “Fomos pescar em Canto do Sobrado”, respondeu o
pescador. Imediatamente, Cáu abriu um sorriso e disse: “Tá vendo? O outro disse que
toda a pescaria tinha sido feita em outro lugar”. Perguntei, então, como sabia, e ele
respondeu enfático: “porque todo pescador é mentiroso, Zé!”.
Roberto Kant de Lima menciona a característica destas conversas em seu estudo
sobre os pescadores de Itaipu/RJ:
“(...) se estabelece, na medida do possível, uma distorção de informações,
através do seu ‘exagero’ e/ou sua ocultação, pela omissão ou distorção
das horas, lugares, quantidades, preços e condições do mar, o que visa
‘esconder’ a estratégia utilizada das outras companhas, tendo em vista a
exploração particular de um ‘território’ comum, através de propriedade
provisória dos pontos de pesca e/ou da sucessão da vez” 83.
Georg Simmel em seu “O Segredo e a Sociedade Secreta” empreende uma
discussão sobre a função social do segredo e da mentira. Inicia seu argumento
assinalando que todas as relações humanas se baseiam em algo que uns podem e outros
não podem saber84. Parte, nesse sentido, do pressuposto de que cada indivíduo possui
uma propriedade interior, ou seja, elementos que constituem sua personalidade e sua
subjetividade e que ele não revela. Quanto mais esta revelação for negada, tanto maior o
valor que ela vai adquirindo socialmente, como sustenta Simmel. Assim surge o
segredo. As relações sociais se fundam justamente na tensão existente entre a revelação
e a possibilidade de descobrir o segredo do outro85.
A partir das tensões inerentes à possibilidade de se manter (ou não) um segredo
é que se constitui a política do sigilo em Ponta Grossa dos Fidalgos. Os pescadores
sabem que existe algo que não deve ser revelado e que todos têm o direito de fazê-lo:
manter em segredo, tanto quanto possível, a localização de seus pesqueiros. Mais do
que uma prática isto é uma instituição. Ao mesmo tempo em que se admite o segredo,
admite-se também a tentativa constante de descobri-lo. E, neste sentido, a mentira surge
como um dos mais importantes mecanismos acionados para resguardar o sigilo sobre o
que se quer ocultar.
83
KANT DE LIMA: 1997, 122.
SIMMEL: 1986.
85
Ibid; 381.
84
85
Levando em conta o imaginário popular, as histórias de pescador são sempre
mentirosas. São lorotas, “conversa mole pra boi dormir”, “conversa fiada”... São, pois,
invariavelmente consideradas como invenções fantásticas da mente do pescador. Há
mesmo uma expressão muito comum, na linguagem coloquial – “Isso é conversa de
pescador!”, usada quando alguém conta uma história difícil de acreditar. E os próprios
pescadores a conhecem e reconhecem, admitindo, pois, o seu enquadramento
classificatório como mentirosos.
Se a mentira literalmente é o engano dos sentidos e o ato de dizer mentiras é a
indução ao erro, inventar histórias enganosas sobre onde, como e quanto se pescou,
parece ter um sentido bastante peculiar, no caso dos pescadores de Ponta Grossa. A
mentira assume aí um caráter fundamental para a manutenção da exclusividade sobre os
pesqueiros de que falamos. Narrar fatos fictícios; exagerar os detalhes, e,
principalmente, inventar lugares onde se realizou uma grande pescaria, não passa, na
maioria das vezes, de mais uma forma socialmente legitimada e compartilhada de
conservar em segredo a sua criação.
86
Conversa e jogo no Bar do Lenilson.
Assim, a mentira é capaz de estabelecer uma complexa rede de solidariedades e
de significados:
“(...) o saber mutuo, que determina positivamente as relações não se faz
por si só, se não que estas relações pressupõem igualmente certa
ignorância, uma quantidade de mutua dissimulação, que naturalmente
varia em suas proposições até o infinito (...). Se é certo que amiúde
destroça a relação, também é certo que a mentira é um fator integrante
da sua estrutura. O valor negativo que, na ética, tem a mentira, não deve
nos enganar sobre a sua importância sociológica na conformação de
relações sociais concretas.” 86
Em Ponta Grossa a mentira não é percebida de forma pejorativa no contexto da
pesca artesanal. Ela faz parte de um complexo sistema de regras, e todos nele
envolvidos podem invocá-la quando está em jogo a manutenção do pesqueiro. Dentro
desta política do sigilo, portanto, o direito de mentir é garantido87. A mentira aparece,
neste caso, como parte constitutiva de um princípio elementar, o da ocultação
consciente e proposital da informação que rege determinados aspectos do direito
costumeiro vigente em Ponta Grossa dos Fidalgos. Mais do que isso, evidencia, ainda
que de modo sensível, a forma peculiar como estes pescadores lidam com o ambiente
lacustre que, neste sentido, não é apenas um dado natural. É um espaço dinâmico
repleto de significados e usos.
86
87
SIMMEL: 1986, 369. Tradução livre do autor.
Sobre a diferença entre segredo e sigilo ver MIRANDA: 1997.
87
Se, como sustenta Marcel Mauss, “o que define um grupo de homens, não é a
sua religião, nem as suas técnicas, nem nada que não seja seu direito” 88, o que confere
aos pescadores de Ponta Grossa dos Fidalgos sua identidade, como grupo, é o direito
costumeiro relacionado à pesca, pois é ele quem lhes dá sua “inscrição no espaço
social.”
89
Neste sentido, os direitos de pesca ilustram, com clareza, o fato de que não
há, muitas vezes, como separar os aspectos econômicos dos aspectos jurídicos, pois
ambos se dão, conjuntamente, no mesmo fenômeno 90.
Os pontos de pesca resultam, em primeiro lugar, da disposição de criar um
espaço cativo de captura, isto é, de um animus. A partir dele desencadeia-se uma série
de procedimentos que culminam com um exercício classificatório e mnemônico, em
virtude do qual surgem as marcas de encruzo. Seus autores passam à condição de
titulares de um direito de uso exclusivo, como se ali houvesse um campo cultivado de
sua propriedade. Juntamente com este direito, advindo da autoria, adquirem igualmente
a prerrogativa de ocultar ou revelar as marcas, segundo suas conveniências. Esta
prerrogativa lhes é socialmente reconhecida. São donos de um segredo legítimo e, como
tais, têm o direito de protegê-lo, seja pelo silêncio, isto é, pela omissão, seja,
ativamente, pela dissimulação ou pela mentira.
Esta última é uma alternativa comum, pois, têm de falar de seus êxitos, para
constituir ou manter sua reputação, mas, ao mesmo tempo, têm de ocultar as condições
que o tornaram possível. Poderíamos dizer que também a pesca faz parte dos domínios
ambíguos, como os chama Barnes, em que a mentira é esperada91. São conhecidos os
dizeres de uma tabuleta, frequentemente afixada em bares e botecos: “Aqui se reúnem
caçadores, pescadores e outros mentirosos”.
A mentira envolve questões e sentimentos morais. Costuma ser condenada, do
ponto de vista ético, pois resulta da e fomenta a desconfiança entre pares. Existem, no
entanto, domínios em que a presença de mentiras não exclui um ambiente geral de
confiança 92.
88
MAUSS: 2002,196.
Idem: ibidem.
90
Idem: ibidem, 196-197.
91
BARNES: 1996, 45-67 e 69-97.
92
BARNES: 1996, 49.
89
88
Ora, como afirma Marcel Mauss: “O direito é o meio de organizar o sistema das
expectativas coletivas, de fazer respeitar os indivíduos, seu valor, seus agrupamentos.
Sua hierarquia. Os fenômenos jurídicos são fenômenos morais organizados.”
93
Neste
sentido, o segredo e os modos de mantê-lo não parecem, neste caso, suscitar
sentimentos morais de reprovação. Estão inscritos no costume e são considerados
inerentes à posse de um bem legitimamente adquirido a partir de uma autoria individual.
O segredo é antes de tudo parte do conhecimento de um profissional do ofício
pesqueiro, constituindo, neste sentido, marca de um bem imaterial, do seu autor. Este
pode, segundo as circunstâncias, levá-lo para o túmulo ou compartilhá-lo com mais
alguém. Pode fazer dele um legado para o seu grupo de pesca ou transmiti-lo a um de
seus descendentes. Isto é, ele pode dispor do acesso ao lugar criado graças à sua própria
iniciativa.
Um lugar, entretanto, pode vir a ser descoberto. Ou por ter o pescador sido
observado quando o frequentava, ou porque alguém o descobriu por acaso. É,
precisamente, nestas ocasiões que o direito se manifesta. Com efeito, o descobridor
intencional ou casual, embora tendo conseguido o acesso ao lugar continua submetido
às mesmas regras, que são, ao mesmo tempo, morais e jurídicas. Torna-se, pois, ele
mesmo, prisioneiro do segredo de sua transgressão. Terá de frequentar o ponto de pesca
furtivamente, para evitar constrangimentos morais difusos e/ou questionamentos
explícitos, por parte do autor da marca, dono do lugar.
Há, finalmente, os lugares na Lagoa Feia que caem no domínio público capazes,
inclusive, de ganhar nomes. São exemplos deste caso: a Trolha de Manuel Francisco, a
Coroa de João Bagre, e as Pedras de Chico Luiz. Estes foram, em outros tempos,
pesqueiros feitos por Manuel Francisco, João Bagre e Chico Luiz.
Não há memória sobre o modo pelo qual este processo ocorreu, mas todos eles
eram consensualmente lugares cativos dos pescadores segundo os quais são nominados.
Atualmente, não pesa sobre eles qualquer proibição, explícita ou tácita, de pesca. São
conhecidos e frequentados por quem quer que conheça a sua marca, sem o menor
constrangimento. Tanto que os mesmos nomes foram inúmeras vezes mencionados
durante a elaboração dos mapas do fundo conforme analisado anteriormente. Fazem,
93
MAUSS: 2002, 198.
89
por assim dizer, parte do patrimônio comum dos pescadores de Ponta Grossa dos
Fidalgos. Passaram da esfera privada para a esfera pública do direito costumeiro.
5 – Os Calendários de pesca e as tensões
Tais formas de classificação, de apropriação e organização do espaço lacustre,
identificam e particularizam os pescadores de Ponta Grossa. São, dessa forma,
expressões de um fenômeno jurídico, como escreveu Marcel Mauss. Isso não significa,
entretanto, que a manifestação deste fenômeno seja reconhecida por todos os atores
sociais e/ou instituições que tenham algum tipo de relação com a Lagoa Feia. Talvez
por isso – como já é discutido há tempos pela teoria antropológica – muitas tensões,
confitos e controvérsias, envolvendo certos grupos sociais e outras tantas instituições,
sejam tão recorrentes no Brasil e fora dele (como no caso português que será
apresentado na parte seguinte).
Apresento agora a problemática sucitada pelo dissenso em torno dos calendários
de pesca. Tal problemática me chamou a atenção, mais precisamente nos dois últimos
anos de trabalho de campo, para os motivos que levariam parte dos pescadores de Ponta
Grossa a não respeitarem o Calendário normatizado pelo IBAMA que anualmente
proíbe a capitura de espécies aquáticas entre os meses de novembro e fevereiro. O
aprofundamento da questão revelou sua complexidade, pois, além do IBAMA, a
Secretaria Municipal do Ambiente de Campos dos Goytacazes também formulou,
durante alguns anos, um Calendário concorrente ao do IBAMA.
O esforço da etnografia foi, dessa forma, descrever a relação dos pescadores e
moradores de Ponta Grossa com estas temporalidades que estão diretamente associadas
as suas atividades sociais e políticas. Somente após uma análise cuidadosa sobre estas
motivações será possível apresentar uma etnografia dos casos de não cumprimento ou
transgressões das normas – quer emitidas pelo IBAMA, quer formuladas pela
Secretaria, ou de qualquer outra natureza. Os pescadores organizam suas atividades a
partir do cruzamento de três calendários94. Os chamarei de Calendário Nativo,
94
É importante assinalar o já consolidado interesse de renomados antropólogos por discussões
envolvendo as representações sociais sobre o tempo, tal como este é percebido e operacionalizado por
diferentes grupos humanos. Na Antropologia Britânica – apenas para destacar dois nomes – E. E. EvansPritchard em seu clássico estudo sobre os Nuer e Edmund R. Leach nos ensaios sobre a representação
90
Calendário Legal e Calendário Político. Como a pesca artesanal é uma atividade central
no povado, creio que estes três calendários regulem não apenas a faina, mas também se
estendam para as relações sociais mais elementares. Reconheço, com efeito, que ambos
os calendários têm características ecológicas, na medida em que são produzidos através
dos processos de interação entre os atores sociais e o meio natural, este último
configurado pelo ecossistema da Lagoa Feia95. Dessa forma, um olhar atento aos
calendários podem nos dizer muito sobre as expectativas coletivas que mobilizam seus
moradores – pescadores ou não – durante o ano.
Do material produzido pelo Prof. Luiz de Castro Faria, um elemento chamou a
atenção. Tratava-se de uma ‘roda’ onde era possível encontrar a reunião de diversas
informações sobre o ciclo ecológico da Lagoa Feia tal como descrito pelos pescadores
de Ponta Grossa no período em que foi elaborado, ou seja, há mais de sessenta anos.
Distribuído a partir dos 12 meses do ano, da margem ao centro da roda podem-se
encontrar a temperatura da água, o período de reprodução das espécies aquáticas, e a
dicotomia entre peixes brancos/peixes pretos, e, a incidência dos ventos.
simbólica do tempo são exemplos significativos. Evans-Pritchard, em uma das mais notáveis etnografias
produzidas ainda na primeira metade do século XX, propõe que os conceitos de tempo entre os Nuer –
povo africano que habita as margens do Rio Nilo na região do Sudão – são divididos em dois grupos,
sendo estes, o tempo ecológico, e o tempo estrutural. O primeiro conceito seria caracterizado pelas
relações do grupo com o meio-ambiente natural. Já o segundo, estaria ligado às relações concretas que os
indivíduos estabelecem no seio do próprio grupo. No primeiro de seus ensaios, Leach discute a categoria
de tempo relativizando as várias acepções que a palavra inglesa time oferece, ao compará-la com as
ideias que os povos não europeus têm sobre o tempo. O antropólogo chama a atenção que a percepção
linear que os ingleses (e os “ocidentais”, de um modo geral) têm do tempo não pode ser aplicada em
todas as culturas. Para ele, nem mesmo os gregos representavam o tempo desta forma. 94 Em seu segundo
texto, o argumento central baseia-se na idéia de que as sociedades marcam o tempo a partir de eventos
calendários – como festas, cerimônias e ritos – simplesmente porque nós não o experimentamos com os
sentidos. Ou seja, precisamos de mecanismos sociais capazes de nos dar uma idéia – apenas uma idéia –
sobre o movimento do tempo. EVANS-PRITCHARD: 1978; LEACH: 1974.
95
“O termo ‘Ecologia’ foi criado em 1869 pelo biólogo Haeckel, da palavra grega, oikos, que significa
casa, habitação, morada. No sentido da palavra grega, o termo significa não somente o lugar de morada,
mas também os habitantes e as atividades cotidianas aí executadas. Neste sentido, então, a Ecologia é o
estudo dos seres vivos, não como indivíduos, mas como membros de uma complexa rede de organismos
conexos (...), tal como estes organismos funcionam em variados ambientes.” HOLLINGSHEAD: 1970.
91
A roda registra um conhecimento empírico construído a partir da observação
exaustiva dos ciclos naturais e das espécies aquáticas da Lagoa. Quando discuti com os
pescadores estes dados pude perceber que o que estava em jogo entre eles era mais do
que sua aplicação prática (ou contemporânea) na atividade pesqueira. O conhecimento
das informações contidas no calendário elaborado por Castro Faria se configura até
hoje como um capital manipulado por pescadores reconhecidos como mestres do ofício.
No “tempo dos antigos”
96
– categoria utilizada pelas gerações mais velhas
localmente para se referirem ao tempo em que eram crianças ou jovens – o pescador
aparece, antes de tudo, como um bravo. As condições nas quais desempenhava as
atividades de captura eram as mais desfavoráveis. Narram-se histórias de pescarias
fantásticas quando as canoas ainda não tinham motor e a navegação era empreendida a
remo ou a vela.
O Calendário Nativo remete a um período no qual as pescarias eram mais fartas,
as técnicas consideradas mais sofisticadas e a captura de espécies como o robalo e a
96
Esta categoria nativa considera os últimos 50 a 60 anos do ponto de vista das gerações mais velhas que
ainda estão vivas. Dito de outro modo é o tempo que os pescadores e moradores mais velhos do povoado
conseguem alcançar através da rememoração da própria experiência.
92
tainha atestavam a abundância e a riqueza do ecossistema lacustre no imaginário da
região, para além de Ponta Grossa dos Fidalgos.
Um período onde a vida em Ponta Grossa, embora dura e sofrida, era também
considerada pelos pescadores mais calma. As pessoas eram todas conhecidas e o lugar
não seria tão movimentado como nos dias de hoje. Somos apresentados a uma espécie
de nostalgia nativa lembrada através de frases como “no tempo das canoas...”.
O pescador aqui aparece como um mestre em seu ofício; possuidor, dessa
forma, de um saber profissional capaz de distingui-lo dos demais moradores. Detém
consigo competências adquiridas a partir de uma biografia dedicada exclusivamente à
pesca artesanal.
Se esse Calendário representa mesmo um registro do ponto de vista nativo sobre
o ecossistema, suas implicações podem engendrar uma identidade baseada nesse saber.
Estes conhecimentos funcionam como dispositivos submetidos à temporalidade das
histórias de vida sendo, pois, tributários da experiência e, em virtude de sua utilização
no desempenho quotidiano do ofício, são também permanentemente atualizados, por
meio de ratificações e retificações.
Resultantes de fontes e tempos diversos estes saberes profissionais são
ferramentas de trabalho de um mesmo tipo de atividade, exercida num determinado
contexto. Embora procedentes da tradição constituem, no âmbito desta, uma espécie de
saber ad hoc97. São ainda frutos do tempo de vida do profissional, produtos do seu
artesanato, do qual constituem – ao mesmo tempo – a memória, na medida em que
resultam “do passado de cada um para cada um”.
Os períodos de captura, nos dias de hoje são regulados oficialmente por outro
calendário, como será apresentado adiante. Mas, os conhecimentos técnicos associados
a uma biografia inscrita na pesca artesanal são capitais valorizados no lugar.
Reconhecer e manipular informações relevantes sobre o funcionamento do ecossistema
distingue os praticantes deste ofício. Os coloca em diferentes posições sociais seja
dentro ou fora da Lagoa.
O que chamo aqui de Calendário Legal organiza oficialmente a atividade
pesqueira na Lagoa Feia. Normatizado pelo IBAMA, este calendário é um mecanismo
97
Cf. TARDIFF: 2000.
93
regulatório amplamente conhecido pelos praticantes da pesca artesanal98. Qualquer
pescador, independente da geração que pertença, sabe quais são os meses em que a
captura se encontra legalmente suspensa tal como estabelecida por este calendário.
A proibição da captura de novembro a fevereiro tal como normatizada pelo
IBAMA tenta administrar o uso dos recursos naturais e cuidar da preservação do
ecossistema da Lagoa Feia. Durante este período o Governo Federal paga aos
pescadores registrados no Ministério do Trabalho a quantia de um salário mínimo por
mês99. Este pagamento é chamado de Seguro Defeso e tem o objetivo de suprir as
necessidades básicas de cada pescador durante o período de pesca parada.
Este calendário representa um conhecimento técnico que indica uma condição
de desequilíbrio ambiental revelada por pesquisas elaboradas por biólogos,
oceanógrafos e outros profissionais das assim chamadas Ciências da Natureza. A
fiscalização para saber se a regra está sendo respeitada pelos pescadores é feita pelos
órgãos municipais, sendo eles, a Secretaria Municipal de Meio-Ambiente de Campos
dos Goytacazes e de Quissamã. Na prática, e em tempos normais, a pesca artesanal na
Lagoa Feia gira em torno deste calendário.
Existe também o Calendário Político. Seu estabelecimento é fruto de uma
complexa negociação entre os pescadores – representados pela Associação de
Pescadores Artesanais de Ponta Grossa dos Fidalgos (APAPGF) – e a Secretaria
Municipal de Meio-Ambiente de Campos. Este calendário entra em operação de forma
complementar ao Calendário Legal. Quando os pescadores, em conjunto com os
técnicos da Prefeitura, julgam que o ecossistema da Lagoa não se recuperou da
temporada de pesca, o Calendário Político pode entrar em vigor. Caso não haja acordo,
pelos mais variados motivos, ele simplesmente não é operacionalizado100. Assim,
podem ser acordados mais dois ou três meses de proibição por ano além dos meses
referentes ao Calendário Legal para que os pescadores não desempenhem as atividades
haliêuticas. Essa lógica sugere que os peixes ganhariam mais tempo para desovar e se
98
Instrução Normativa n. 47, apresentada anteriormente.
O valor vigente do salário mínimo nacional é de 545,00 Reais. Os ganhos mensais com a atividade
pesqueira variam de 1.500,00 a 3.000,00 Reais dependendo do tamanho do grupo de pesca e outros
fatores.
100
Houve períodos em que ele não entrou em vigor. Os motivos são um tanto quanto ambíguos. Quem
media a relação entre a APAPGF e a Secretaria de Meio-Ambiente são políticos locais. Um deles foi
durante muito tempo um importante vereador – o que sugere uma vez mais o caráter político da medida.
99
94
desenvolver. Para tanto a Prefeitura, através da Secretaria competente, paga outro
seguro também no valor de um salário mínimo com o objetivo de ressarcir
financeiramente os pescadores durante mais esse período. O pagamento é realizado
com a contrapartida de que os beneficiados ingressem nas Frentes de Trabalho
realizando atividades extras que, entre outras coisas, os manteriam longe da pesca101.
Semelhante ao Calendário Legal, o Político regula a conduta moral dos
moradores locais, mas exibe algumas diferenças significativas.
A adesão dos pescadores ao Calendário Político está condicionada ao
pagamento do Seguro Defeso Municipal. Entretanto, o cadastramento dos pescadores
na Associação – procedimento indispensável para o recebimento das parcelas do
Seguro – é baseado em variáveis pouco objetivas.
O registro na Associação depende da avaliação que o seu presidente faz do que
é “ser um pescador” além de critérios com “ser gente de boa conduta” ou “ser
trabalhador”. Os dados sugerem ainda que essa classificação esteja relacionada a uma
rede de relações pessoais que articula os arranjos políticos dentro e fora do povoado.
Tal rede passa pelo grupo de pescadores mais próximos do líder da Associação
chegando até certos políticos com influência junto ao Poder Executivo Municipal.
Outra característica é que mulheres e familiares de pescadores que estejam envolvidos
indiretamente com a pesca também estão aptos a entrar na lista dos segurados.
Quando algum indivíduo resolve pescar durante a proibição complementar os
julgamentos também ocorrem, mas são de outra ordem. Se o Calendário Legal é visto
com dúvida por muitos pescadores, o Calendário Político tem menos legitimidade
ainda, pois este é compreendido como fruto de acordos que dependem de relações
pessoais locais que não estão distribuídas igualmente pelo povoado. Quando se torna
público que um pescador está recebendo o Seguro Defeso Municipal e mesmo assim
continua pescando, o seu comportamento é radicalmente condenado pelos demais, pois,
nessa lógica, ele não teria nenhum motivo para cometer tal ação. Seria, conforme ouvi
diversas vezes, classificado como “ganancioso” ou “mau caráter”. Já me foram
relatados casos onde acusações desta natureza foram resolvidas em brigas de bar,
101
As Frentes de Trabalho são mutirões organizados pela Prefeitura Municipal de Campos dos
Goytacazes que tem por objetivo aproveitar a mão de obra ociosa de populações consideradas carentes.
Em determinados períodos do ano esses grupos são recrutados para executar atividades de interesse
público sob a coordenação da Prefeitura
95
precisamente porque o lado da acusação, além de não receber o Seguro Municipal,
ainda estava sem pescar.
Por outro lado, muitos dos que pescam neste período argumentam que o fazem
porque não estão “metidos na política”. Estes geralmente não recebem o Seguro
Municipal. Muitos até acham correto que a pesca fique suspensa para dar descanso à
Lagoa, mas sem o Seguro eles relatam não ter alternativa que não seja retornar à
atividade. Assim como aqueles que desrespeitam o Calendário Legal, os pescadores que
voltam a pescar durante o Calendário Político também são classificados como
“irresponsáveis” e “criminosos”.
Sugiro, portanto, que estes três calendários de forma articulada organizam as
atividades práticas no povoado de Ponta Grossa. Além disso, penso que os calendários
regulam também as relações de poder entre os moradores locais, pescadores ou não.
Os períodos aqui descritos não devem ser entendidos isoladamente. Pensar nos
calendários entrecortados e complementares me parece uma necessidade empírica. Os
pescadores de Ponta Grossa em seu cotidiano não se desfazem subitamente de todo o
elenco de expectativas, etiquetas e performances na mudança de um período para o
outro.
Baseio-me no modelo proposto por Marcel Mauss quando analisa a variação das
instituições jurídicas esquimós argumentando que elas, em alguma medida, ainda que
polarizadas, se influenciam mutuamente:
“Mas, por mais opostos que sejam esses dois regimes morais e
jurídicos, eles não deixam de se afetar mutuamente, pelo simples fato
de se sucederem no seio de uma mesma sociedade e de serem os
mesmos homens que deles participam. O esquimó não pode desfazerse totalmente, durante o inverno, dos hábitos, das maneiras de ver e
agir os quais se acostumou no verão, e reciprocamente. Portanto, é
muito natural que alguns dos costumes e das instituições de uma certa
estação do ano passe para outra.”102
102
MAUSS: 2003, 492.
96
Existem dois períodos referentes aos Calendários Legal e Político. Por isso,
estamos diante de esquemas sazonais que, dependendo dos arranjos práticos podem se
tornar complementares ainda que diferentes entre si. São percebidos pelos pescadores,
na medida em que estabelecem estratégias de acesso aos recursos, sendo estes, os
seguros ou mesmo o pescado.
Estes dois calendários também modificam o movimento e as ocupações em
Ponta Grossa. Nos períodos de suspensão da captura, a maior parte das atividades dos
homens é realizada em terra. Nesse momento muitos pescadores ingressam em
trabalhos paralelos nos mais variados setores da indústria canavieira campista. Para os
pescadores e seus familiares que estão cadastrados na Associação, os meses do
Calendário Político são ocupados pelo ingresso nas Frentes de Trabalho organizadas
pela Prefeitura. As atividades vão desde o recapeamento de ruas e estradas na região até
a limpeza de rios e córregos na baixada campista. É hora, portanto, do pescador
profissional fazer uma espécie de “bico” até que a pesca se restabeleça nos meses
seguintes 103 .
Também há mudança nas atividades femininas. As mulheres cadastradas na
Associação são recrutadas para as Frentes de Trabalho na maioria dos casos
participando ativamente das campanhas de prevenção à Dengue A tarefa é visitar
diversas residências na Baixada Campista fiscalizando as práticas domésticas com o
objetivo de restringir a atuação do mosquito transmissor da doença. O grupo de
mulheres é coordenado por uma junta da Secretaria Municipal de Saúde.
O Calendário Nativo, ainda que não seja oficialmente reconhecido pelo IBAMA
está articulado com os outros dois. Ele se caracteriza como um capital que o pescador
detém sobre o ecossistema ao mesmo tempo em que o conecta a um tempo passado
funcionando como um distintivo. É por vezes utilizado para contestar os calendários
propostos pelos órgãos administrativos formais. O reconhecimento das informações
apresentadas no Diagrama Ecológico apenas pode ser feito por notáveis mestres do
ofício pesqueiro, atestando, dessa forma, um saber profissional.
Há, inclusive, uma hierarquia de gerações. Aos mais velhos são atribuídas
qualidades técnicas baseadas em um tempo em que pescar na Lagoa Feia não era tarefa
103
No vocabulário popular, “bico” significa todo o tipo de ocupação informal remunerada que tem por
objetivo complementar a renda mensal.
97
para qualquer um: “Pescar nessa Lagoa, no tempo dos antigos era só para quem era
pescador mesmo!”. Essa distinção sugere que hoje em dia os pescadores mais jovens
não detêm os mesmos conhecimentos sobre os ciclos da Lagoa e nem o domínio das
técnicas de captura que os pescadores das gerações anteriores.
O conhecimento local sobre as artes da pesca bem como sobre o funcionamento
do ecossistema lacustre imputam uma autoridade e uma identidade ao pescador
artesanal. E é precisamente nesse ponto que o Calendário Nativo se junta aos
Calendários Legal e Político. As ideias sobre o que é ser um pescador têm implicações
significativas na hierarquia das relações entre o próprio grupo profissional, transborda
para a Associação e chega até o IBAMA. Além disso, as mesmas ideias ainda definem
as formas como os grupos dialogam.
Os três calendários entrecortados e complementares, portanto, além de mediar a
relação dos pontagrossenses com a Lagoa, consolidam expectativas e condicionam
comportamentos, ainda que na prática, não exista um limite rígido entre eles. São
sazonalmente definidos por meses do ano e seus períodos nos dizem bastante sobre a
vida cotidiana do povoado.
Inicialmente, meu material etnográfico apresentava um aparente dissenso entre o
período de proibição da atividade pesqueira na Lagoa Feia, tal como estabelecido pelo
IBAMA e aquele que seria o ponto de vista dos pescadores de Ponta Grossa registrado
por Castro Faria em seu Diagrama Ecológico.
Uma saída conceitual foi pensar como dois grupos distintos – pescadores
artesanais e funcionários do IBAMA – organizavam suas visões sobre o manejo do
ecossistema da Lagoa Feia. De um lado, um grupo com uma percepção marcada pela
experiência de um ofício e um estilo de vida, a pesca, e de outro um grupo que
compreende a natureza baseando-se em uma lógica administrativa e preservacionista
dirigida por conhecimentos técnicos de biólogos e oceanógrafos. A partir daí, pude
refletir sobre a questão dos Calendários e como tais grupos se relacionavam com eles e
entre eles.
Durante o desenvolvimento da pesquisa de campo, acreditei estar diante de um
conflito deflagrado que polarizava de maneira clara duas versões diferentes de uma
mesma história: aquela que tinha como principal tema o dissenso sobre os mecanismos
98
de preservação do ecossistema da Lagoa Feia. Essa rígida polarização, no entanto, foi
caindo por terra na mesma intensidade em que o texto etnográfico aparecia. Percebi, aos
poucos, que os Calendários Nativo e Legal não se confrontavam somente. Eles, na
prática, se cruzavam ao mesmo tempo em que se complementavam. Consolidavam
percepções sobre o ecossistema sobrepondo visões de mundo e formas de agir sobre a
Lagoa. Assim, o cruzamento dos Calendários relevou para o etnógrafo as tensões entre
os grupos sociais envolvidos na história. O conflito, que se torna mais evidente nos
meses de novembro a fevereiro, continua ainda que de modo mais tácito, presente na
relação pescadores-IBAMA. Entender o cruzamento e a complementariedade dos
calendários é, sobretudo, entender a posição destes atores sociais 104.
George Simmel em seu “A Naturaza Socilógica do Conflito” assinala que, se a
interação entre os homens é mesmo uma sociação [Vergesellschaftung], então, por sua
vez, o conflito é a sua dimensão mais vívida e aparente.
“O indivíduo não alcança a unidade de sua personalidade
exclusivamente através de uma harmonização exaustiva - segundo
normas lógicas, objetivas, religiosas ou éticas - dos conteúdos de sua
personalidade. A contradição e o conflito, ao contrário, não só
precedem essa unidade como operam em cada momento de sua
existência (...) Assim como o universo precisa de ‘amor’ e ‘ódio’, isto
é, de forças de atração e de forças de repulsão, para que tenha uma
forma qualquer, assim também a sociedade, para alcançar determinada
configuração, precisa de quantidades proporcionais de harmonia e
desarmonia, de associação e competição, de tendências favoráveis e
desfavoráveis.”
105
O sociólogo alemão percebe, portanto, as características integradoras do
conflito. O argumento é sustentado pela idéia de que só é possível existir conflito se
104
As reflexões de GLUCKMAN: 1975 e VAN VELSEN: 1987 sobre os ‘estudos de caso’ foram
importantes que eu repensasse meu material etnográfico. A proposta é que o pesquisador selecione casos
que são contados e vividos (ou melhor, dramatizados) por seus interlocutores, em torno de questões que
são relevantes para eles. Rixas, disputas e querelas entre grupos são bem-vindas aqui. Pode-se obter uma
coleção de casos e relacioná-los com o objetivo de comparar suas versões. Nessa perspectiva é possível
pensar a sociedade em sua dimensão processual e dinâmica, onde os indivíduos atuam a todo o momento
fazendo escolhas e (re) produzindo a estrutura social. O método do ‘estudo de caso’ ficou conhecido
através das monografias produzidas na antropologia inglesa a partir do final da década de 1950. De
acordo com VAN VELSEN: 1987, 345 o grande avanço desta perspectiva foi ter incorporado o conflito
como elemento intrínseco ao processo social.
105
SIMMEL: 1983, 124. Tradução do autor.
99
ambas as partes se reconhecem mutuamente, por mais que a natureza de seus interesses
seja radicalmente distinta. E, para o autor, o desaparecimento dos antagonismos parece
ser mesmo prejudicial:
“O desaparecimento de energias de repulsão (e, isoladamente
consideradas, de destruição) não resulta sempre, em absoluto, numa
vida social mais rica e mais plena (assim como o desaparecimento de
responsabilidades não resulta em maior propriedade), mas num
fenômeno diferente e irrealizável quanto se o grupo fosse privado das
forças de cooperação, afeição, ajuda mútua e convergência de
interesses”.
106
Entre os pescadores artesanais de Ponta Grossa e o IBAMA há reconhecimento e
interesses comuns em ambos os lados. Também, conforme a etnografia apresentada,
existem dissensos sobre qual seria o período correto para a realização das atividades
haliêuticas que não tragam danos ao ecossistema lacustre. Essa relação é mediada
através de muitas dúvidas - uma espécie de ceticismo mútuo - fazendo com que os
grupos estudem, analisem a situação e produzam valores sobre o outro a todo momento.
Os atores desse conflito são muitos. O IBAMA surge como órgão do Estado.
Tem como atribuições a fiscalização, o controle, o monitoramento e gestão da
qualidade ambiental e da utilização dos recursos naturais no território brasileiro.
Enquanto órgão ele deve seguir uma agenda programática. Deve também cumprir e
fazer cumprir a lei. Mas ele, IBAMA, não é uma mera abstração. É feito por pessoas.
Temos os pescadores artesanais de Ponta Grossa dos Fidalgos. Homens que
detêm o conhecimento empírico do ecossistema da Lagoa Feia. Um saber ad hoc
baseado na observação exaustiva da natureza e no manejo qualificado das técnicas
pesqueiras. Trata-se de um grupo profissional. Também ele composto por pessoas.
Entre eles, a Associação de Pescadores. Uma entidade política de representação
da categoria. Aqui – como nos outros dois – também existem pessoas e seus interesses.
Como explicar, portanto, os motivos da coexistência de três Calendários e, mais
ainda, por que mesmo acreditando em seu próprio ponto de vista – tal como registrado
na roda de Castro Faria – os pescadores não vindicam uma alteração objetiva nos
106
Ibid; 126.
100
períodos de proibição da pesca? Uma das saídas possíveis é pensar que os calendários,
além de entrecortados, são manipuláveis.
Para os pescadores não creio que seja interessante a modificação do período
referente ao Calendário Legal e a extinção do Calendário Político. Se o Calendário
Nativo garante a marca mais positiva da identidade social – aquela que versa sobre o
saber profissional – os outros dois garantem os recebimentos dos Seguros. O primeiro,
tal como estabelecido pelo IBAMA, não precisa de incrementos ou arranjos locais mais
complexos. É normatizado anualmente e não depende diretamente dos pontagrossenses.
Mesmo com algum atraso, os pescadores recebem as parcelas desde que estejam
registrados e reconhecidos pelo Ministério do Trabalho. No segundo calendário, os
acordos políticos podem, ou não, garanti-lo. São, portanto, os pescadores organizados
que o estabelecem.
Washington e Colaço
Dodô, os filhos e o sobrinho
Cumatãs e Acarás
101
Bolê e Jonathan
Doba e Washington
Arrisco afirmar que, em alguns casos, por mais contraditório que isso possa
parecer, os períodos de defeso conjugados são épocas de fartura para boa parte dos
pescadores ponta-grossenses, pois, mesmo recebendo os dois Seguros, muitos não
param totalmente a pescaria. Dessa forma, minha interpretação tenta não desqualificar a
figura do pescador ou repetir antigos argumentos onde eles aparecem como figuras
incapazes de se organizar porque não teriam “cultura política”. Como qualquer outro
grupo humano, esses pescadores também têm suas estratégias para atingir seus
objetivos. Os conflitos são gerados, sobretudo, por conta da redução do tempo de
defeso legal em relação ao Calendário Nativo e pelo aumento da remuneração
financeira compensatória que marca os Seguros pagos por instituições públicas.
Mas não apenas os pescadores manipulam o Calendário da Lagoa. O IBAMA
também o faz. Por conta de sua atribuição legal, compete ao Instituto Brasileiro do
Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis definir as regras para o manejo
sustentável dos ecossistemas no território brasileiro. Atualmente, considera-se que essas
normas devem ser acordadas junto com as populações mais diretamente envolvidas
com as áreas ambientais, para que as políticas e normatizações tornem-se mais
eficientes e menos conflituosas. Mesmo assim, na prática, nem sempre isso pode
acontecer. Um dos entraves estaria precisamente no ceticismo do órgão sobre quais
seriam os reais interesses do pescador artesanal. Isso faz com que o IBAMA não
reconheça os pescadores pontagrossenses como atores competentes o suficiente para
gerir o ecossistema da Lagoa Feia de maneira autônoma e longe de interesses
particularistas.
102
O Instituto, por seu posto, tem que cumprir o seu papel administrativo. No caso
analisado, é através da Instrução Normativa n. 47, ou das outras normatizações
anualmente emitidas, que ele controla o acesso e fiscaliza a atividade de captura na
Lagoa Feia. Ou seja, ao fim e ao cabo, é o IBAMA quem tem o monopólio legal do
Calendário. Tanto que o Calendário Político – normatizado pela Prefeitura em acordo
com a APAPGF – é visto de forma negativa, pelos gestores do IBAMA. Não é difícil
entender, portanto, os motivos para as tensões. O que está em jogo aqui, entre outras
coisas, é a autoridade de quem pode, ou não, controlar o acesso à Lagoa. A “disputa”
dos calendários configura a expressão mais cabal disso. Como não existe nenhum
movimento por parte dos pescadores que reivindique a mudança do Calendário, dentro
daquilo que seria o ponto de vista nativo, o IBAMA simplesmente administra a Lagoa
durante os períodos de proibição através da referida Instrução. Mesmo porque,
conforme mencionado, a Lagoa Feia é apenas uma das áreas ambientais protegidas por
tal dispositivo.
Caminhonete do IBAMA
A problemática em torno dos Calendários abriu caminho para questões relativas
ao cumprimento – ou não – das normatizações que afetam a prática da pesca artesanal.
Foi a partir daí, que me detive, etnograficamente, nas histórias, nas motivações e nos
casos nos protagonizados pelos pescadores de Ponta Grossa as quais evidenciam porque
parte significativa do grupo não para suas atividades nos períodos determinados pelo
Instituto que serão retomadas na Popa, parte final desta tese.
103
Acredito que só é possível compreender as tensões entre os pontagrossenses e o
Instituto, se descrevermos, cuidadosamente, as percepções que os pescadores artesanais
têm de suas práticas e de seu modo vida. Parte deste procedimento foi feito aqui na
Proa. Escrutinizando esta cosmologia, que é formulada a partir da experimentação
particular deste grupo social com o ambiente no qual vive, talvez tenhamos elementos
mais sólidos para pensar as controvérsias em torno das normas, das políticas de controle
e, por ventura, das atitudes que são consideradas oficialmente transgressões. No mundo
dos pescadores, conforme apresentado, se reproduzem, incessantemente, histórias e
práticas que os conectam com o ambiente lacustre, com os elementos que o compõem,
mas, sobretudo, que os colocam em contato com eles próprios.
104
II. “O MEIO”
“Sou filha d’um pescador/Honrado e trabalhador/Valente lobo do mar/Se o tivesse do meu lado/Eu
melhor cantava o fado/Cantava-o sim a chorar/No peito d’um pescador/Vive a graça do Senhor/Que o
acompanha no mar.” Arnaldo Silva.
105
1 – O segundo acaso e o caminho para Portugal.
O verão de 2010 foi particularmente quente. O ano mal começara e eu ainda não
tinha ideia das novidades profissionais que estavam por surgir. Depois de mais uma
temporada em Ponta Grossa dos Fidalgos, ocorrida nas últimas semanas de janeiro e
emendada com a semana de Carnaval, retomei minhas atividades no Rio de Janeiro.
Como de costume, após meu retorno, apresentei ao meu orientador e aos meus colegas
do NUFEP mais um relato sobre o trabalho de campo recém realizado.
O desenvolvimento e os problemas das pesquisas empreendidas no NUFEP eram
(e são) conversados em reuniões semanais realizadas nas tardes das segundas-feiras.
Naquela ocasião, apresentei alguns dados novos, mostrei novas imagens, contei
histórias e discuti com meus pares uma frase dita por um pescador que se tornaria
emblemática desde então: “Pescador que é pescador enfrenta até o IBAMA”. A frase,
não gerou apenas uma animada conversa sobre a relação das populações de pescadores
com os órgãos do Estado ou do Estado com a sociedade. Ela foi capaz de me animar
como etnógrafo.
Isso porque aquele momento de meu doutoramento era bastante delicado. Eu
sentia um estranho desânimo. Sentimento este, muitas vezes pouco compreendido
mesmo por colegas mais próximos. Eu tinha, aparentemente, tudo: uma boa etnografia,
um bom tema de pesquisa, relações consolidadas no campo tanto com os pescadores
como com funcionários do IBAMA... Mas parecia faltar algo.
Lembro que Lenin Pires, meu amigo e colega de Núcleo, naquele período me
disse que o desânimo era normal. A longa duração do trabalho com o mesmo objeto
empírico associado ao tempo investido em minha formação dava, segundo ele, a falsa
impressão de que a pesquisa “não avançava” ou mesmo, ambiguamente, que “ela não
teria fim”. Se desânimo é a falta de ânimo, ou seja, a ausência de uma substância que
impulsiona e dá movimento [alma] aos corpos, foi naquela reunião do NUFEP, que eu
soube da notícia que poderia mudar meus planos para aquele ano. Não sabia, ainda, em
que grau eu seria afetado, mas entendi que precisava me movimentar.
106
Fábio Reis Mota, professor da Universidade Federal Fluminense e também
pesquisador do Núcleo, anunciou as datas para a implementação das bolsas de
doutorado e pós-doutorado, bem com das missões de trabalhos referentes ao Convênio
Capes-FCT, aprovado no final do ano de 2009. Tal convênio estabeleceu uma
cooperação acadêmica internacional entre os pesquisadores do InEAC, do qual o
NUFEP é sede, com o Centro de Estudos Sociais da Universidade Nova de Lisboa, o
CESNova, em Portugal.
Fábio Mota, na ocasião, disse que as bolsas de doutorado sanduíche já poderiam
ser implementadas no segundo semestre de 2010. Os auxílios para doutoramento tinham
vigência de um ano. O objetivo era estimular os alunos da parte brasileira do Convênio
a elaborarem pesquisas empíricas em Portugal e com isso produzir material etnográfico
para comparação com os casos estudados no Brasil. Em seguida, Fábio levantou um
problema: um membro do Núcleo que constava como participante do Convênio, tal
como foi aprovado, talvez não pudesse viajar para Portugal. Tratava-se de Frederico
Policarpo, meu colega de pós-graduação e também pesquisador associado ao NUFEP.
Ele, naquele momento, buscava financiamento para sua pesquisa junto a outras
instituições de fomento internacionais, pois tinha interesse em desenvolver etnografia
comparativa nos Estados Unidos ou na Holanda.
A provável desistência de Frederico em viajar para Portugal – que logo seria
confirmada com a aprovação de sua bolsa para os Estados Unidos – abriu uma
possibilidade arriscada. Era necessário enviar para a Capes, até o mês de maio, os
nomes dos bolsistas de doutorado sanduíche e dos professores que participariam das
missões de trabalho no primeiro ano de vigência do Convênio. Entretanto, dois
problemas foram levantados e discutidos na reunião: 1) se a Capes permitia a troca de
bolsistas logo na implementação das primeiras bolsas, e 2) quem seria o substituto. Não
é simples enviar um pesquisador para a Europa, sem alguma programação a priori, para
que este passe cerca de um ano elaborando uma etnografia. Por isso, além da questão
institucional com a Capes era preciso também resolver outra de ordem mais prática.
Desde que iniciei meu doutoramento na UFF, no ano de 2007, professores e
colegas mais experimentados chamavam a atenção para a importância de um estágio no
exterior – onde quer que fosse – neste período de formação profissional. Ouvi de muitos
107
deles que a experiência de deslocamento, intensificada pela viagem, e a vivência mais
longa em outra sociedade era capaz de imprimir mudanças significativas nas percepções
sobre as relações sociais de um modo amplo e, ao mesmo tempo, um amadurecimento
como pesquisador e como pessoa. Tudo isso, fruto do estranhamento ao qual o jovem
antropólogo é submetido quando está “longe de casa” – movimento já bastante
ventilado pela teoria antropológica107.
Até aquele momento, por vários motivos, eu não tinha experimentado o tal
deslocamento – para além dos períodos de trabalho de campo no norte do Rio de Janeiro
– e meu nome foi sugerido como candidato a tal bolsa sanduiche no Convênio com
Portugal. Embora não seja comum a quase nenhum estudante participar de uma
empreitada como esta quando se encontra do meio para o fim do doutoramento, eu
ainda cumpria os requisitos para me candidatar108. De minha parte bastava, portanto,
aceitar ou não. E, em relação à Capes, o Prof. Kant, na qualidade de coordenador da
parte brasileira do Convênio, ficou responsável por elaborar uma carta formal que
justificasse a substituição do bolsista.
Dessa forma e de modo inesperado – pois naquela altura a participação em um
estágio internacional não fazia parte de meus planos – aceitei a ideia, ainda sem pensar
muito em suas consequências práticas. Minha primeira tarefa foi elaborar um plano de
trabalho que tivesse ligação com o projeto aprovado no Convênio intitulado
“Modernidade e Justiça: controvérsias, causas públicas e participação política numa
perspectiva comparada Portugal/Brasil”. Assim, escrevi uma proposta de trabalho que
colocava em evidência minha problemática de pesquisa no Brasil com objetivo de
verificar se questões semelhantes às que eu acompanhava também ocorriam por lá 109.
Algum tempo depois, mais precisamente em julho, veio a anunciação: a Capes
aprovou a indicação de meu nome e a partir do mês de setembro daquele ano, a bolsa
sanduiche poderia ser implementada. Em meu plano de trabalho organizei a estadia em
107
MATTA: 1978; VELHO: 1978; SIMMEL: 1983.
Eu já havia completado 36 meses de curso. Refiro-me basicamente aos prazos do Programa de PósGraduação, no que diz respeito ao cumprimento de créditos e data limite para defesa da tese, bem às
exigências da agência de fomento.
109
O plano de trabalho foi intitulado de “Quanto Custa Ser Pescador Artesanal? Tensões entre
conhecimentos naturalísticos e políticas públicas em uma perspectiva comparada Brasil/Portugal”.
108
108
terras portuguesas entre os meses outubro de 2010 e julho de 2011110. Passado o
momento inicial de euforia pela aquisição da bolsa – compartilhado com colegas de
trabalho, amigos e familiares – me percebi em uma situação semelhante àquela narrada
por Roberto DaMatta sobre os momentos que antecedem um deslocamento territorial de
longo prazo para a elaboração de uma etnografia:
“(...) A pergunta então, não é mais se o grupo X tem ou não tem linhagens
segmentadas, à moda dos Nuer, Tallensi ou Tiv, ou se a tribo Y tem
corridas de tora e metades cerimoniais, como os Krahó ou os Apinayé,
mas de planejar a quantidade de arroz e remédios que deverei levar para o
campo comigo. Observo que a oscilação do pêndulo da existência para
tais questões – onde vou dormir, comer, viver – não é nada agradável.
Especialmente quando nosso treinamento tende a ser excessivamente
verbal e teórico, ou quando somos socializados numa cultura que nos
ensina sistematicamente o conformismo, esse filho da autoridade com a
generalidade, a lei e a regra (...).” 111
Não iria ao encontro de uma tribo indígena desconhecida e isolada. Iria a Lisboa.
Não viajaria, tampouco, em busca de um grupo humano que não falasse minha língua.
Até onde sabia, qualquer povoado de pescadores em Portugal deveria praticar o
português. Levar arroz não era uma preocupação, pois, presumia que a bolsa era de
valor suficiente para minha estadia, alimentação, deslocamento e até mesmo cobriria
gastos com a degustação de vinhos – bebida tão apreciada e recomendada naquele país.
Os dias seguintes à notícia da viagem, entretanto, foram angustiantes. O período
prático da pesquisa obriga o etnógrafo a imaginar “o que vai ser lá”, mas, sobretudo,
exige que ele organize o seu mundo objetivo e subjetivo antes de partir. Subitamente,
me vi ocupado em resolver as mais variadas coisas: o que fazer com meu apartamento
alugado, como tirar o visto de residência temporária, procurar apartamento à distância,
entender as regras, prazos e valores relativos à bolsa Capes, etc. Organizar o mundo
prático não é uma mera coordenação de tarefas. É, de certa forma, desconstruir nosso
mundo seguro e conhecido. É a parte inicial do processo de deslocamento.
110
Existe uma norma na Capes que obriga que os doutorandos estejam em no Brasil seis meses antes do
prazo final da defesa de tese.
111
MATTA: 1978; 24-25.
109
Se o primeiro acaso, conforme descrevi anteriormente, me levou a iniciar o
trabalho com os pescadores de Ponta Grossa dos Fidalgos no período de minha
graduação, considero que este outro acaso – visto que não estava vinculado
formalmente ao Convênio e só pude participar do mesmo devido à desistência de um
colega – indica o início de outra etapa fundamental em minha formação como
etnógrafo: com o estudo de outro grupo social inserido em outra sociedade nacional. E,
associado a isto, a sensação de que a viagem estava cada vez mais perto produzia uma
confusão de sentimentos. Não compreendi na época (e talvez não entenda até os dias de
hoje) que sentimentos eram aqueles. Sabia, entretanto, que aquele conjunto de
novidades era capaz de me movimentar. Neste sentido, era mesmo capaz de me animar.
Não sabia o que ia encontrar em Portugal. Não tinha nenhum conhecimento
sobre pescadores portugueses ou as políticas públicas que os afetavam. Meu
conhecimento acerca da história portuguesa não passava das informações básicas que
evidenciavam as conexões possíveis entre nós e nossos patrícios. Ainda não tinha ideia,
até o momento de minha partida do Brasil, que Alexandre e Deolinda, Joaquim e
Minda, Prof. Zé Resende, Helena, Zé Carioca, Tibía, Cristina, Marta, entre outros,
seriam os personagens de uma história que começaria em breve, após minha chegada no
Aeroporto da Portela, em Lisboa, na última semana de outubro de 2010.
2 - Os primeiros contatos.
O período prático da pesquisa, que antecedeu a viajem, envolveu a coordenação
se uma série de atividades realizadas ainda no Brasil. Uma delas era viabilizar, o mais
rápido possível, meu trabalho de campo em terras portuguesas. Afinal, o principal
objetivo de minha participação no Convênio era justamente a produção de uma
etnografia sobre algum grupo de pescadores de lá capaz de contrastar com meu material
de Ponta Grossa dos Fidalgos.
Como eu não tinha nenhum conhecimento sobre a atividade pesqueira
desenvolvida naquele país e nenhum contato pessoal com profissionais associados à
temática, contei, inicialmente, com a rede de relações que o Prof. José Manuel Resende
110
disponibilizou assim que soube de minha participação no Convênio. Dessa forma, ainda
em agosto, iniciei interlocução por e-mail como Helena Abreu e Cristina Moço.
Helena era mestranda em Sociologia e havia sido aluna do Prof. Resende em
uma disciplina ministrada no âmbito da Pós-Graduação na Faculdade de Ciências
Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Ainda na graduação, ela elaborou
uma monografia sobre os pescadores da Cascais – estreito costeiro ao norte da cidade de
Lisboa – e discutiu questões relativas à profissionalização e a renovação de quadros na
pesca local. Além disso, Helena também era estagiária do IPIMAR, o Instituto de
Investigação das Pescas e do Mar.
Após alguns contatos, Helena me apresentou à Cristina Moço – assistente social
e Diretora de Serviços, Acção Social e Cooperativa da MÚTUA dos Pescadores. Tratase de uma cooperativa de seguros na área das pescas e dos assuntos marítimos, com
atuação em todo o território português. Cristina foi muito solícita e atenciosa desde os
primeiros contatos via internet. Características estas que pude confirmar pessoalmente
ao longo de nossa interlocução já em Portugal. Meu movimento inicial foi me
apresentar, falar sobre meus interesses de pesquisa e, consultá-la sobre as possibilidades
de iniciar um trabalho de campo (ou de “terreno”, como eles dizem) rapidamente.
A assistente social mostrou um vasto conhecimento empírico sobre povoados de
pescadores espalhados pela costa portuguesa. Em suas comunicações, escrevia com
desenvoltura sobre as características gerais das aldeias, as diferenças entre as artes, os
principais problemas enfrentados pelos pescadores, etc. Sua atuação profissional na
MÚTUA associada a sua disposição para o trabalho junto aos pescadores artesanais
davam esta distinção às elaborações de Cristina.
Fiquei animado com os primeiros contatos. Para quem não tinha nada, as
conversas com Helena e Cristina, ainda que virtualmente, serviram como um ponto de
partida para a pesquisa etnográfica que estava por vir. Lá em Lisboa, com o passar do
tempo, as colegas se tornariam, cada uma a seu modo, também, importantes
interlocutoras.
No dia 23 de outubro, cruzei o Atlântico com poucas certezas. Uma delas era
que já na primeira semana de estadia, participaria de uma reunião com Helena e Cristina
111
no escritório da MÚTUA dos Pescadores. Outra certeza era que o Prof. Resende estaria
a minha espera em Lisboa e, desde o início de nossa relação profissional, fazia tudo que
estava ao seu alcance para viabilizar minha etnografia e tornar minha experiência
internacional a mais proveitosa possível.
3 – Impressões iniciais em Lisboa, ou o impacto do Rio Tejo.
Fui recebido pelo Prof. José Resende em sua residência nos primeiros quarenta e
cinco dias de minha estadia. O apartamento do Professor localizava-se em São Marcos,
freguesia pertencente ao conselho de Sintra, a cerca de 25 quilômetros da região
portuária de Lisboa. A localidade é considerada parte integrante da Grande Lisboa. O
período que passei em São Marcos foi marcado por longos deslocamentos via transporte
público da urbanização até a Universidade Nova de Lisboa na Avenida de Berna. Para
completar o trajeto, era necessário tomar um ônibus de São Marcos até Oeiras, um trem
até o Cais do Sodré e depois dois metrôs até a estação Campo Pequeno – a mais
próxima da FCSH.
Nas primeiras semanas de estadia estive a maior parte do tempo acompanhado
pelo Prof. Resende que, de forma atenta e incansável, me instruía sobre os usos do
transporte público na região metropolitana de Lisboa. Os ensinamentos práticos eram os
mais variados. Como comprar e validar os bilhetes de viajem, quais os melhores
horários para ir e voltar para casa, quais os vagões de trem e metrô estavam associados
às melhores saídas nas estações, os cuidados com objetos pessoais, entre outras coisas.
As dicas eram sempre acompanhadas de longas conversas sobre a corporalidade dos
usuários dos transportes evidenciando a diferença entre suas origens étnicas: falava-me,
por exemplo, como se comportavam portugueses, africanos ou brasileiros nestes
espaços. Eu, animado pelo estranhamento, tentava, durante o diálogo, contrastar as
ponderações do Prof. Resende com minhas percepções – demasiado empíricas – do
transporte público na cidade do Rio de Janeiro.
As relações humanas obviamente me chamavam a atenção. Ainda mais se
tratando da sociedade portuguesa na qual a imigração era um fenômeno bastante
contemporâneo – tal como em outros contextos nacionais europeus – e o transporte
112
público de massa era um lugar privilegiado para a observação dos encontros e
desencontros deste processo112. Mas, além disto, a paisagem que se apresentava
cotidianamente aos meus olhos, fora do trem, notadamente me arrebatava. A linha
férrea que ligava Oeiras ao Cais do Sodré é conhecida como “marginal” porque seu
desenho corre em paralelo ao Rio Tejo. E, cada vez que passava por ali todas as manhãs
era impactado pelo imponente Rio. Suas águas nasciam no centro da Espanha, na Serra
de Albarracín, e vinham rasgando a península ibérica até encontrar o mar ali onde
cresceu Lisboa.
Nos primeiros dias na cidade, ainda não sabia por onde começar minha
etnografia sobre os pescadores lusitanos. A contemplação do Tejo durante meu caminho
até a FCSH, me levava a imaginar que a relação daquele povo com o mar era muito
especial. Toda a construção de um passado épico, cujos protagonistas se materializam
em estátuas e monumentos espalhados pela cidade, estava estritamente associada ao
mar. A extensão costeira do Tejo é o interstício entre a terra, conhecida e ocupada, e o
mar que, até o século XII, mais precisamente até a Revolução de Avis, era desconhecido
e desafiador.
Talvez, olhando para o Tejo eu estivesse, aos poucos, me dando conta do desafio
que era estar ali, em um país ainda desconhecido para mim e prestes a começar uma
etnografia que, naquele momento, existia apenas como uma proposta. De algum modo,
sabia que aqueles momentos iniciais eram apenas o começo de longos meses longe de
Copacabana, dos amigos, da família, da UFF, da pesquisa na Lagoa Feia, ou seja,
distante das pessoas, dos lugares e das atividades que organizavam minha vida no Brasil
e, por consequência, me traziam conforto. Talvez o Tejo me indicasse alguns sintomas
do deslocamento tais como a saudade e a melancolia. Poderiam ser estes os primeiros
custos da viagem? A viagem ultramarinha – que notabilizou os portugueses como
grandes descobridores de tempos pregressos – tinha o Tejo como ponto de partida. Senti
várias vezes que, para mim, aquele Rio também era o ponto de partida para uma viagem
que me transformaria como etnógrafo e como pessoa. Uma famosa frase do Professor
112
A segunda metade do século XX é marcada por um intenso fluxo imigratório advindo, inicialmente,
das ex-colônias africanas e de países do leste europeu. Nas últimas décadas, grupos de ciganos, brasileiros
e oriundos de países asiáticos tais como Índia e China têm se fixado em território português. Presenciei
duas cenas de racismo envolvendo negros africanos e portugueses brancos no trajeto de ônibus entre São
Marcos e Oeiras as quais registrei em meu caderno de notas.
113
Castro Faria pareceu fazer sentido para mim somente depois de experimentar estas
sensações: “As viagens, para o comum dos viajantes, é um desperdício de emoções;
para o etnógrafo é um acúmulo de experiência” 113.
E foi mais uma vez pelo caminho marginal ao Rio Tejo que me dirigi no dia 26
de outubro de 2010 à FCSH. O objetivo era encontrar Helena Abreu pessoalmente, pela
primeira vez, e seguir com ela até o escritório da MÚTUA para conhecer, enfim, a
Cristina Moço.
4 – Encontro na MÚTUA DOS PESCADORES.
Encontrei Helena no portão principal da FCSH, na Avenida de Berna, um pouco
depois da hora do almoço. A moça, desde o início, mostrou-se muito simpática e
interessada em ajudar. Além de mestranda em Sociologia, ela também era estagiária no
IPIMAR e já conhecia Cristina de trabalhos anteriores associados à MÚTUA. Nos
apresentamos e conversamos um pouco sobre o que estávamos pesquisando até a
chegada ao escritório da cooperativa que se localizava a poucas ruas atrás da Faculdade.
Lá, Cristina Moço estava a nossa espera.
A assistente social era uma muito falante. Ela nos recebeu em seu gabinete, mas
logo depois sugeriu que sentássemos à mesa de reuniões em uma sala anexa para termos
mais espaço. Cristina parecia administrar várias coisas ao mesmo tempo. Por isso, a
todo o momento nossa conversa era interrompida para que ela pudesse atender ao
telefone, despachar documentos ou receber rapidamente algum funcionário da
cooperativa. Comentei minhas impressões sobre o ritmo de trabalho que observava ali e
ela, rapidamente disse: “E não adianta marcarmos outro dia, pois aqui na MÚTUA é
sempre assim”. Eu sorri e concordei.
Depois de apresentar em linhas gerais minha pesquisa em Ponta Grossa dos
Fidalgos, bem como os objetivos de minha presença em Portugal, Cristina disse que
podia me ajudar. Argumentei com ela sobre a importância de desenvolver um trabalho
etnográfico em um povoado que fosse relativamente perto de Lisboa e que tivesse, de
113
CASTRO FARIA: 2000, 299.
114
um modo geral, características morfológicas parecidas com Ponta Grossa dos
Fidalgos114.
Depois de ouvir atentamente, a diretora da MÚTUA enumerou quatro
comunidades piscatórias115 que poderiam me interessar. Eram elas a Carrasqueira,
localizada no Estuário do Sado e não muito longe de Lisboa; a Ilha da Culatra,
localizada no Algarve, próximo à cidade de Faro, ou seja, no extremo sul de Portugal;
Caxinas, em Vila do Conde, região ao norte do país que concentra muitos povoados; e,
finalmente, Peniche, ao norte de Lisboa, próximo à cidade de Caldas da Rainha.
Cristina argumentou que eu deveria ir a todos os povoados e depois escolher um
com o objetivo de acompanhar as atividades sociais de perto. Eu concordei, entretanto,
argumentei que não poderia perder tempo. Seria ótimo conhecer todos, mas seria melhor
ainda encontrar já nas primeiras investidas aquele no qual eu pudesse me estabelecer de
modo mais sistemático e intensivo. Isso, infelizmente, como eu sabia, não seria
resolvido em uma mesa de reuniões em Lisboa. Qualquer elaboração sobre o melhor
lugar para começar o trabalho etnográfico não passaria de mera especulação. Era
preciso agir. Porque em etnografia, acontece como no conhecido provérbio, “Se Maomé
não vai à montanha, a montanha vai à Maomé”. Teria que ir nestes povoados para ver
em qual deles encontraria as melhores condições para elaborar o trabalho de campo.
Ao final de nossa conversa, Cristina convidou a mim e a Helena para que
participássemos do V Encontro Mútua “Segurança no Mar”, que seria realizado no dia
06 de novembro em Portimão, uma conhecida praia no Algarve. Seria uma forma de
conhecer lideranças de pescadores de vários lugares de Portugal e fazer contatos. O
convite foi estendido também ao Prof. José Resende. Cristina insistiu em nossa presença
e disse que tanto o transporte para o Algarve quanto a hospedagem em Portimão eram
por conta da MÚTUA. Eu e Helena confirmamos a presença ali mesmo. Disse a minha
nova colega que transmitiria o convite ao Prof. Resende. Ficamos de acertar os detalhes
por telefone e email.
114
A preferência pela proximidade do povoado em relação à cidade de Lisboa seu deu por fatores de
ordem pessoal e acadêmica. Pessoal porque, ainda no final de 2010, eu receberia minha esposa para
residir e estudar em Lisboa e acadêmica para poder ficar mais perto das universidades e bibliotecas da
cidade.
115
Termo usado em português lusitano para definir comunidades pesqueiras.
115
Saí da MÚTUA contente com a receptividade de Cristina e Helena. Começava,
naquela tarde, a costurar a rede de relações profissionais que mantive durante toda
minha estadia portuguesa. Ainda não saiba por qual povoado pesqueiro começar. O
quadro, todavia, era bastante animador quando comparado aos meses anteriores nos
quais não tinha qualquer informação e não conhecia ninguém que pudesse me auxiliar.
***
No sábado, dia 06 de novembro, estávamos eu, Helena e o Prof. José Resende,
na Praça de Espanha, região central de Lisboa, a espera de Candido Batista – engenheiro
aposentado e funcionário do quadro administrativo da MÚTUA. Batista, que também
participaria do evento em Portimão, ofereceu carona em seu carro para nosso grupo. Na
viagem – que durou aproximadamente duas horas e meia – conversei com o engenheiro
sobre meu interesse em visitar algum povoado de pescadores. Ele disse que poderia me
acompanhar. Argumentou que não conhecia tantos povoados quanto a Cristina, mas que
tinha disposição para ir comigo. Ali, na estrada mesmo, decidimos partir para a
Carrasqueira na semana seguinte. Helena nos acompanharia.
5 – A primeira vez na Carrasqueira e o entronco com o “Pai do Céu”.
Eram 9:30h do dia 11 de novembro. Eu e Helena aguardávamos Batista, mais
uma vez, na Praça de Espanha. O dia bastante ensolarado contrastava com o frio do
inverno que começava.
Entramos no carro de Batista e seguimos rumo à Carrasqueira. O caminho
escolhido pelo engenheiro para realizar o trajeto foi seguir até Setúbal pela autoestrada
A12 e pela A1 até chegar à cidade portuária. Este caminho foi cumprido em cerca de 50
minutos. Já em Setúbal, a ideia era atravessar o Rio Sado em um ferry-boat – uma
maneira de contemplar a paisagem e, ao mesmo tempo, conhecer a região estuarina.
116
Cais da Atlantic Ferries, Setubal
Setúbal vista do Rio Sado
O Rio Sado, comparado ao Tejo, pelo menos observado daquele ponto, parecia
um pouco menor. Ali mesmo, em frente à Setúbal era possível observar o encontro do
Sado com o Atlântico. O encontro das águas abre uma boca que marca o fim do
conjunto montanhoso da Arrábida e o início da península de Troia. Do meio do Rio, era
possível avistar Setúbal que, na sua porção fluvial, da esquerda para a direita, conta com
um porto de pesca, duas marinas, a lota116, vários armazéns, uma praça, um conjunto de
prédios administrativos – incluindo a Associação de Pescadores, Cooperativas, a
Capitania dos Portos e a Polícia Marítima –, o cais dos ferry-boats e dos catamarans, o
porto de Setúbal e, mais à direita, o grandioso estaleiro naval administrado pela
Lisnave.
O trajeto até o cais de Troia durou 18 minutos. De lá, é necessário seguir pela
estrada que corta a península. Rumo ao sul, observa-se, na estrada, do lado direito o mar
e do lado esquerdo o rio. Somente mais tarde eu entenderia como esta simbiótica
relação entre as águas influenciava a vida dos carrasqueiros – pescadores ou não. O
caminho de Troia até o povoado, por si, já impressionava. A península que dividia as
águas era uma língua de areia que sustentava, do lado oceânico, uma vegetação rasteira
onde a cor predominante era o verde claro, muito semelhante às restingas fluminenses e,
na parte estuarina, encontrava-se o sapal117 – formação aluvional periodicamente
alagada por água salgada e ocupada por vegetação halofítica 118 que em muito lembra ao
viajante os manguezais brasileiros.
116
Edificação semelhante a um grande galpão no qual acontecem os leilões do pescado fresco.
Terreno alagado temporariamente inundado pelas águas de um rio que, quando localizado junto à foz,
varia com a subida e descida da maré.
118
Vegetação resistente à secura provocada pelo excesso de sais no solo.
117
117
Batista, muito cuidadoso, explicava detalhes do trajeto bem como algumas
informações sobre a região. Em direção ao sul, o viajante alcança as localidades de
Grândola, Santiago do Cacém, Cines, entre outras, e, adiante, chega ao Algarve. Para
alcançar a Carrasqueira, entretanto, era preciso passar pela Comporta, uma pequena
aldeia do lado estuarino da península. Por isso dobramos à esquerda.
No caminho da Comporta até a Carrasqueira avistei algumas habitações
diferentes. Tratava-se de casas feitas de capim, algumas em mau estado de conservação,
mas outras muito bem cuidadas. Cristina havia falado em nossa reunião que a ocupação
mais antiga naquela região foi feita por trabalhadores rurais que desempenhavam suas
atividades nos extensos arrozais localizados nas terras alagadiças do Sado. A assistente
social chamou a atenção para o fato de que as habitações deveriam ser provisórias por
determinação da companhia que explorava aquelas terras. Assim, os trabalhadores que
ali paravam construíram suas casas utilizando capim seco e madeira. A informação foi
confirmada por Batista também. Ao longo da pesquisa etnográfica, percebi o quanto as
tais “casas de capim” evidenciavam noções de tempo, estilo de vida, visões de mundo e
aspectos fundamentais da história da Carrasqueira na forma como seus moradores a
percebem.
Saindo da aldeia de Possanco – último aglomerado de casas antes do nosso
destino – avistei, enfim, a Carrasqueira. Eram 12:30h.
O acesso ao povoado, por este caminho, nos obrigava a entrar por uma longa rua
na qual à direita observava-se um conjunto de casas de tijolos com terrenos contíguos.
E, à esquerda, abria-se um largo com pequenas hortas. Ao fundo era possível avistar o
restante do povoado e a estrada que o ligava para o conselho de Alcácer do Sal. Nosso
objetivo inicial era procurar por Fátima, uma pescadora do local que tinha ligações com
Cristina. Só tínhamos o seu número de telefone. Não foi preciso utilizá-lo. Reconheci
Fátima caminhando pela rua porque, dias antes da ida ao povoado, recebi por email uma
fotografia dela e do marido pescando no Rio Sado. A foto foi tirada por Marta Pita,
antropóloga e também funcionária da MÚTUA em Lisboa.
Batista parou o carro e eu indaguei a senhora. Sim, era a Fátima. E,
aparentemente, ela ficou muito feliz em nos ver ali. Disse que Marta já havia avisado de
nossa ida. Desculpou-se por não poder nos receber naquele exato momento, pois estava
118
terminando um trabalho da horta e, depois, iria almoçar. Por isso marcou conosco um
encontro para mais tarde. Assim, nosso trio rumou ao cais palafítico da Carrasqueira.
Foi possível avistar os barcos atracados e o Rio Sado bastante seco – devido ao nível da
maré –, mas havia pouco movimento de pescadores no local. Após uma rápida olhada
decidimos almoçar no restaurante indicado pela Fátima. Retornamos então ao centro do
povoado e Batista parou no carro em frente ao “Rola” – restaurante grande e confortável
que servia vários tipos de pratos, entre eles, peixes e frutos do mar. Pedimos um robalo
grelhado.
Helena Abreu e Candido Batista no Cais Palafítico, Carrasqueira
***
Não encontramos Fátima, mas o primeiro dia na Carrasqueira possibilitou outro
importante encontro. Naquela altura nem eu mesmo nem sabia o quanto. Após o
almoço, decidimos ir ao cais palafítico novamente. Por um lado, porque a engenhosa
construção impressiona. Por outro, porque em lugares onde os barcos estão atracados é
mais provável encontrar com algum pescador para começar uma conversa. E foi isso
mesmo que aconteceu.
Chegando ao cais, depois mais uma caminhada sobre a passadeira central, me
aproximei de um senhor. Alexandre era seu nome. Me apresentei como antropólogo e
lhe disse de meu interesse em desenvolver pesquisa na Carrasqueira, do mesmo modo
como fazia no Brasil. O pescador se interessou. Começou a falar, em linhas gerais,
sobre a pesca artesanal ali. Apontou na direção de seus dois barcos, o “Genoveva Luisa”
e o “Sonia Neto”. Disse que havia muitos moradores locais que viviam da associação
entre a pesca e a agricultura. Enalteceu a singularidade do cais palafítico salientando
119
que era “o único da Europa naqueles moldes”. Falou das belezas naturais do estuário
do Sado, da dureza da pesca e da tranquilidade da vida na Carrasqueira. Para ele, não
havia lugar melhor no mundo para viver, trabalhar e criar os filhos. Alexandre ressaltou
também o interesse de turistas, nos meses de verão, em se fixar na região. Segundo ele,
nos meses quentes a Carrasqueira recebia turistas de diversas nacionalidades européias,
tais como espanhóis, franceses e ingleses, além de portugueses de outras regiões do país
em busca do contato mais próximo com a natureza, das praias e da culinária daquelas
paragens.
Alexandre e José Colaço no porto palafítico. Fotos: Manuela Dias
O pescador parecia, inicialmente, uma espécie de relações públicas da
Carrasqueira. Falava bem e de modo objetivo apresentou para nosso grupo as
potencialidades locais. E, aproveitando sua conversa sobre o turismo de verão, perguntei
se ele conhecia alguém com quartos para alugar. Para minha surpresa, Alexandre
respondeu que ele tinha quartos disponíveis para aluguel em sua casa e costumava
receber muitos turistas e trabalhadores sazonais. Fiquei entusiasmado, pois a única
indicação, até aquele momento, eram os quartos oferecidos pelo Rola – dono do
restaurante onde almoçamos mais cedo – que se localizavam em cima do próprio
estabelecimento comercial.
A possibilidade de iniciar a estadia na Carrasqueira morando na casa de um
pescador, sem dúvida, me animava mais. Isto não resolveria todo meu trabalho de
campo, é óbvio, mas, com alguma habilidade de minha parte, me colocaria pelo menos
de modo mais rápido, em contato com outros pescadores – além de acompanhar de
perto o cotidiano da família de Alexandre.
120
O pescador sugeriu que o seguíssemos até a sua casa a fim de mostrar a
localização. A residência ficava bem no início da longa rua pela qual adentramos no
povoado. Alexandre fez questão que levássemos um saco de batatas doce e algumas
laranjas. Disse que a Carrasqueira “era rica”, pois lá eles tinham tudo que precisavam
para viver bem. No terraço da frente estava Deolinda, sua esposa e também pescadora.
Após me entregar o cartão de visitas – no qual constava seu nome completo “Alexandre
Martins Neto”, os dizeres “Alugam-se Quartos com Cozinha”, o endereço e dois
telefones – ele reforçou que eu iria gostar muito da Carrasqueira e não me arrependeria
caso resolvesse voltar.
A hora avançava e resolvemos partir. Depois de nos despedirmos do casal,
reforcei o desejo de retornar logo. Minha ideia era voltar para Lisboa a fim de organizar
assuntos relativos ao meu estabelecimento na cidade (apartamento e outros trâmites
jurídico-administrativos) e planejar o início da temporada na Carrasqueira. Ainda que
muito animado com o que experimentei na primeira visita ao povoado, só mesmo uma
temporada no lugar para avaliar se a pesquisa etnográfica poderia ser desenvolvida ali.
Ao final da conversa, Alexandre me disse: “Voltem logo para cá. Não vão se
arrepender. E, caso percam a direção, procurem pelo ‘Pai do Céu’”. Este era um dos
apelidos do pescador. Mais tarde eu entenderia o por quê.
6 – O estuário do Rio Sado.
Até o período Miocênico o estuário do Sado encontrava-se ligado ao estuário do
Tejo, formando uma gigantesca baía. A separação em dois ecossistemas deve-se a
incidência das correntes marítimas, processos de erosão, sedimentação e, sobretudo, a
fenômenos tectônicos. Do local de nascimento até a foz o rio percorre uma extensão de
180 km que vai da Serra da Vigia até o Atlântico
119
. O estuário compreende uma área
de aproximadamente 160 km2, com um comprimento de 20 km, contados a partir de seu
eixo maior, com uma profundidade média de 8 metros sendo a máxima próxima de 50
119
MOREIRA: 1991.
121
metros. A área total da bacia hidrográfica do Sado é de 7.640 km2 e ela engloba os
distritos de Setúbal, Beja e Évora 120.
Semelhante ao que ocorre em outros estuários portugueses, seu hidrodinamismo
é bastante complexo. A formação geométrica irregular, tanto do fundo como das
margens, deve-se principalmente à associação entre os movimentos turbulentos da maré
e do caudal do rio. Três correntes de maré são responsáveis por esta condição. A
corrente da enchente que adentra o estuário pelo pela zona de Tróia, ao encontrar os
bancos de areia, divide-se em duas outras: uma que segue pelo canal norte e outra que
alcança o interior da região pelo canal sul. As correntes da vazante deslocam-se do
interior para o Atlântico, encontrando-se juntas às margens nos dois canais121. Tal
movimento é responsável por dotar a topografia submersa do estuário, no que diz
respeito aos seus acidentes – bancos, altos, fundos, baixios, poços e perais, entre outros
–, de um razoável dinamismo, o que torna difícil a navegação mesmo de barcos
considerados pequenos dependendo da altura da maré. Além disso, a mesma dinâmica é
responsável pela distribuição espacial das espécies aquáticas ao longo do estuário.
Estuário do Sado. Fonte: Google Earth
120
121
MARTINS, CARNEIRO & REBORDÃO: 2004.
NEVES: 1985.
122
Estuário Sado vista aérea
Estuário do Sado visto de Tróia
Por tratar-se de uma formação estuarina, a região é também uma importante
zona de desova, reprodução e crescimento de diversas espécies de peixes, moluscos e
crustáceos. Seus biótopos mais representativos são as lamas interditais, os sapais, os
caniçais e as salinas. Dentre estes, os sapais e os caniçais constituem um conjunto
vegetal denso e rico em espécies de caules e algas que funcionam como filtros naturais.
O acúmulo de sedimentos e lodo em suas raízes é uma importante fonte de alimentação
para as espécies aquáticas. Além destas, o ambiente estuarino do Sado, em termos
ornitológicos, é considerado como uma zona de importância internacional por ser um
local de concentração de mais de 20.000 aves no inverno. Em suas margens alagadiças,
no que diz respeito aos mamíferos, encontram-se raposas, doninhas, lontras e javalis. A
única comunidade de golfinhos-roazes presentes na costa portuguesa faz deste ambiente
o seu abrigo 122.
A exploração dos recursos naturais no estuário do Sado é muito antiga. Suas
características morfológicas e sua constituição físico-química o tornaram, desde os
tempos da ocupação romana, no século I d.C., uma área natural de elevado valor
econômico. Neste período, Cetóbriga – que atualmente compreende a região de Tróia –
foi o lócus de um importante centro fabril de salga de peixe que viveu seu apogeu
durante os dois séculos seguintes. Entretanto, as atividades haliêuticas não ocorreram de
modo contínuo no Sado. Ao longo da história da ocupação de suas margens, é possível
identificar outras atividades associadas ou mesmo sobrepostas à pesca, tais como a caça
e a agricultura. No caso desta última, a exploração da região nos últimos séculos é
122
SOARES: 2000.
123
marcada pela rizicultura como atividade catalisadora de mão de obra oriunda até mesmo
de outras regiões do país 123.
Considerada em Portugal uma área natural de interesse ecológico, arqueológico
e paisagístico, o estuário possui, atualmente, os estatutos de proteção de Reserva
Natural do Sado124, Sítio Ramsar e Zona Especial de Conservação125, além da área
oceânica, a oeste do estuário, que é qualificada como Parque Marinho. Sobre a pesca
profissional desenvolvida no interior do estuário recai o Regulamento de Pesca do Rio
Sado e algumas normativas emitidas sazonalmente que versam sobre a captura de
algumas espécies de peixes, bivalves e minhocas126.
7 – Os portos de pesca.
A atividade da pesca artesanal no Rio Sado é desempenhada atualmente, de um
modo geral, por grupos sociais, organizados em aldeias, povoados ou distritos, fixados
no entorno do estuário127. É possível contar oito locais nos quais as embarcações
pesqueiras são atracadas. Tais estruturas são chamadas localmente de porto de pesca ou
cais. Estão, portanto, localizados em Setúbal, Faralhão, Mouriscas, Gâmbia, Comporta,
Carrasqueira, Cachopos e Alcácer do Sal. No volume intitulado “Contribuição para o
conhecimento das artes de pesca utilizadas no Rio Sado”
128
, publicado pelo Instituto
de Investigação das Pescas e do Mar (IPIMAR), são assinalados os portos encontrados
na região.
“Porto artificial – abrigo característico com alteração significativa da
linha da costa marítima ou da margem de um rio ou laguna, à custa de
diversas obras de engenharia, tais como molhes ou docas, e possuindo
ainda, infra-estruturas várias: de carga e descarga, de frio, de
abastecimento de gelo, de combustíveis e/ou alimentos, etc. Porto
intervencionado – abrigo obtido à custa de ligeiras alterações da linha de
costa marítima ou da margem de um rio ou laguna, com introdução de
123
MARTINS, CARNEIRO & REBORDÃO: 2004; SEIXAS: 1999; MARTINS & SOUTO: 2000.
Decreto de Lei 430/80 de 1 de outubro. Cf. Anexo “2”.
125
Sítio PTCON0011 Estuário do Sado. Cf. Anexo “3”.
126
Portaria nº 562/90 de 19 de julho. Cf. Anexo “4”
127
Com exceção da pesca lúdica ou desportiva que atrai para a região muitos praticantes nos meses mais
quentes do ano.
128
MARTINS, CARNEIRO & REBORDÃO: 2004.
124
124
obras de engenharia de pequena monta. Porto natural – abrigo obtido
sem alteração da linha de costa marítima ou da margem de um rio ou
laguna, podendo apresentar obras que, eventualmente, aproveitem as
condições naturais, exponenciando-as. Cais – obra de pedra, betão,
madeira ou aço, na margem de um rio ou laguna, ou num porto,
especialmente destinada a atracação de embarcações”.129
Do conjunto estuarino, apenas o porto de Setúbal é considerado artificial.
Mouriscas, Gâmbia, Carrasqueira, Alcácer do Sal, são identificados como
intervencionados e os de Faralhão, Cachopos e Comporta aparecem como naturais.
8 – O porto palafítico da Carrasqueira.
Uma edificação que impressiona o viajante recém-chegado no povoado da
Carrasqueira é, sem dúvida, o porto palafítico. Seja ele observado por quem chega pelo
mar ou por quem o alcança pela a porção costeira do povoado, o porto é uma engenhosa
construção elaborada pelos pescadores locais erguida no início do século XX, segundo
constam os relatos dos moradores mais velhos.
Margem do Rio Sado com porto palafítico ao fundo
O porto consiste em uma passadeira formada por tábuas de madeira distribuídas
paralelamente e erguidas a uma altura média de 2,5m do lodo do sapal. Esta passadeira
é a estrutura central do porto, que nasce ainda na terra, e se alonga por cerca de 300
metros para dentro do Rio Sado. Grandes estacas de madeira enfiadas no fundo do
sapal promovem sua sustentação. Da mesma passadeira, surgem ramificações em
129
Idem. 2004:11. As mesmas tipologias são apresentadas em estudo anterior e de modo mais amplo
intitulado A Pesca Artesanal Local na Costa Portuguesa publicado no ano de 2001.
125
posição perpendicular, também construídas a partir da fixação de tábuas, que são
chamadas localmente de pontes. São nestas pontes que os pescadores atracam suas
embarcações.
Em algumas delas, existem escadas feitas de madeira posicionadas verticalmente
para o auxílio no embarque e desembarque. Em outras não. O nível da maré tem
influência direta na distância entre a embarcação e a ponte. Ou seja, com a maré na
vazante, a altura entre a embarcação e a ponte torna-se maior, aumentando a dificuldade
do desembarque do pescador e do pecado. Com a maré mais alta, os pescadores têm
mais facilidade de atracar e efetuar o desembarque, pois a distância entre o barco e a
ponte diminui.
Há uma sequência de pequenos postes de luz elétrica na passadeira central que, a
partir da última década, foi instalada pela administração municipal de Alcácer do Sal.
Em uma caminhada pela estrutura é possível observar algumas construções de madeira
que lembram caixas ou armários. Tratam-se, na verdade, de barracas construídas por
alguns pescadores com o objetivo que guardar redes, armadilhas, linhas, motores, peças
de barcos, latões, caixas, casacos, capas de lona, ferramentas, combustível e outros
vários objetos que constituem o mundo da pesca. Aqueles que não possuem as pequenas
barracas os guardam em casa.
Pontes
Barracas
126
Ouvi dos carrasqueiros, muitas vezes, que o porto palafítico era “o único da
Europa”.
Escutei vários relatos sobre a construção: “Não há nada igual e tão
impressionante/ Talvez exista algo semelhante na China ou em outro país asiático, ou
mesmo no Brasil, onde os índios ainda moram, alguns deles, em palafitas/Os turistas
vêm de todos os sítios para ver o cais palafítico”. Todas as falas o particularizavam ou
o distinguiam. As menções à obra, erguida pelos carrasqueiros e fixada na porção
costeira do povoado parece, constantemente, associar a existência daquelas pessoas com
o trabalho braçal e com o ambiente, ao mesmo tempo em que os singulariza na
qualidade de grupo. Um dos relatos mais expressivos neste sentido foi de Fátima que,
em uma de nossas conversas, disse: “Este cais foi erguido pela gente trabalhadora aqui
da aldeia. Porque cá é assim, Zé, a natureza nos dá tudo. Mas não podemos ficar
parados”.
Lembro-me do dia que conheci Zé Bacalhau, pescador de quase 70 anos, numa
fria tarde de inverno, ainda em 2010. O velho pescador estava em pé, na sua ponte, de
frente para o barco. Lá, como de costume, antes do início da temporada de choco,
Bacalhau reparava sozinho seu instrumento. Foi a primeira vez que escutei como se deu
a construção do porto.
“Isto era assim. Quando eu era pequenino não havia porto nem nada. Eu
vi a construção disto. Foram os mais antigos que tiveram a ideia. Uma
boa ideia. Os antigos cá chegavam e tinham uma dificuldade imensa de
encostar as embarcações. Não havia muitas àquela época. Mas já havia
pescadores sim. Iam às ameijoas. Àquela época iam às ameijoas. Então
eles começaram a erguer por ali [apontou para a margem]. Para poder
facilitar a chegada com a embarcação carregada. Pois, sem as passadeiras
e sem as pontes, era difícil chegar até a margem e descarregar a
embarcação, não é? O barco atolava-se todo e pescador também. Era
preciso esperar o máre ficar alto para passar. Mas o máre não fica alto
todo o tempo, não é? Foi assim. Meu tio participou na primeira
construção e logo fez uma ponte para ele, pronto! Com o tempo foi
crescendo. Caindo e crescendo. E chegou como está.”
127
Zé Bacalhau no porto palafítico
O porto palafítico da Carrasqueira pode ser enquadrado na tipologia
“intervencionado”, proposta pelo IPIMAR, pois é uma construção de pequena monta
que provocou pouca alteração física na costa onde foi instalado. É possível, entretanto,
assinalar uma característica peculiar à engenharia deste porto. Ele, assim como o
ambiente sobre o qual está erguido, está em constante movimento. Imperceptível aos
olhos de um viajante de fim de semana, o movimento ao qual me refiro só pode ser
compreendido a partir do relato dos moradores locais e a partir de uma observação
cuidadosa dos elementos físicos que o compõem.
Zé Bacalhau em seu barco
Quando Zé Bacalhau fala que o porto “começou ali”, ele está se referindo a
localização exata da passadeira central, das pontes e de tudo mais que constitui a obra.
O pescador faz remissão, desta forma, há um tempo passado. Neste caso, há pelo menos
cinco décadas atrás. O constante contato da madeira com a água e com os microorganismos que ali vivem, provoca, com o passar dos anos, o apodrecimento de toda
estrutura que sustenta a passadeira. Tal processo, lento, porém implacável, faz com que
as estacas de sustentação fiquem fofas e quebradiças. Isso, associado ao peso exercido
pelo desembarque do pescado sobre a construção, bem como ao uso cotidiano do porto
– nas idas e vindas dos pescadores – provoca, inevitavelmente, a queda de parte das
128
estacas. É necessário reerguer, portanto, periodicamente, o porto. A cada reconstrução,
seu desenho acompanha as modificações na linha costeira provocadas pela erosão, vento
e movimento da maré. Levam-se em conta, ainda, as transformações do fundo composto
pelo sapal, principalmente no que diz respeito à densidade e firmeza do lodo.
É possível ver, ao largo do porto “atual”, estacas e restos de madeira que
integravam suas construções mais pregressas. Além disso, encontram-se redes
inutilizadas, alcatruzes velhos130, pedaços de barco e outros elementos que, em
conjunto, sugerem uma espécie de memória arqueológica capaz de reconstruir a
morfologia do que foi e do que é o porto. Como argumentou Georg Simmel, as ruínas,
ou as formas físicas que, pelos motivos mais variados caem em desuso e tornam-se,
aparentemente, destituídas de vida, são, na verdade, marcadores dinâmicos de atividades
sociais que mobilizam os homens e seus sentimentos.
“O que erigiu o edifício foi a vontade humana, o que lhe confere sua
aparência atual é o poder de natureza, mecânico, rebaixador, corrosivo
e demolidor. Mas ela, entretanto, não permite que a obra afunde na
informidade da mera matéria – desde que se trate de uma ruína e não
de um monte de pedras. Surge, pois, uma nova, que, da perspectiva da
natureza, faz sentido, é concebível e diferenciada”. 131
As ruínas do porto palafítico são testemunhos do início da atividade pesqueira
no povoado. Seu “desenho móvel”, reconstruído a partir da observação e das histórias
que os carrasqueiros contam sobre elas, evidencia, entre outras coisas, a peculiar relação
dos homens e mulheres que ali vivem com o ambiente natural que os circunda. A faina,
tal como desenvolvida na Carrasqueira, passou por mudanças e adaptações ao longo do
tempo. A morfologia do porto indica, ela própria, o continuum da atividade e, ao mesmo
tempo, uma associação dinâmica entre a natureza e as atividades humanas – entre os
pescadores carrasqueiros e o estuário do Sado.
A partir do porto foi possível esboçar importantes aspectos da relação que os
pescadores carrasqueiros estabelecem com o ambiente natural no qual vivem e
desempenham suas atividades profissionais. As ruínas são um artefato elaborado pelos
carrasqueiros, capaz de unir natureza e cultura numa única forma. Dito de outro modo,
130
131
Tipo de armadilha em formato cônico feita em barro utilizada para a captura de polvos.
SIMMEL: 1998.
129
as ruínas atualizam, assim, uma relação tensa e dialética entre o espírito [o intelecto e a
ação humana] e o ambiente [hostil e implacável]. Somente ao longo do trabalho
etnográfico, sobretudo após meu ingresso na atividade pesqueira, é que pude aprofundar
as noções nativas sobre a natureza e seu complexo funcionamento.
No início da investigação, entretanto, o porto, para os carrasqueiros já surgia
como signo de suas histórias. Para mim, naquela altura, era apenas uma evidência.
9 – Do arroz à pesca artesanal, ou, como surgiu a Carrasqueira.
A constituição do povoado da Carrasqueira, tal como este se configura hoje,
deve-se, em grande parte, aos movimentos migratórios ocorridos em Portugal a partir da
metade do século XX. Na península de Setúbal e no Vale do Sado, mais especialmente,
a rizicultura e a cultura das vinhas foram catalisadoras de mão de obra advinda de outras
localidades do país. Para o caso do arroz, a ocupação das terras nas margens do Sado era
feita de modo sazonal: normalmente, de abril até junho, trabalhava-se no plantio e
depois, em setembro e outubro, as atividades concentravam-se na colheita e debulha.
Segundo indica Magalhães, na década de 1950 já se contava na região de
Alcácer do Sal mais de 7.000 trabalhadores migrantes nos arrozais, sendo 6.000 deles
mulheres132. A origem desses trabalhadores era variada. Alguns eram contratados de
conselhos e vilas relativamente próximas como Coruche, Salvaterra de Magos,
Grândola e Santiago do Cacém. Muitos outros vinham também do Algarve, Alto
Alentejo ou do norte do país133.
Arrozais entre a Carrasqueira e o Rio Sado
132
133
MAGALHÃES apud SOUTO: 2000.
Sobre os detalhes deste processo migratório, ver SOUTO: 2000.
130
Henrique Souto assinala que não há muita precisão sobre quando se iniciou a
ocupação na área onde hoje é a Carrasqueira. Na carta Agrícola de Pery134, publicada
em fins do século XIX, não é indicado nenhum grupo populacional em seu território. O
geógrafo, entretanto, menciona que:
“(...) a primeira fotografia aérea vertical do território português –
conhecida como Vôo dos Americanos, de que não se conhece
exatamente a data, mas que se sabe ter ocorrido entre 1938 e 1948
– apesar de em mau estado de conservação, uma cópia à escala de
1/2 500 permite identificar 30 cabanas, diversos pequenos anexos,
pequenas parcelas agrícolas e, junto ao estuário, arrozais.” 135
Tais dados, em conjunto com os relatos atuais de seus moradores sobre os
tempos mais antigos, revelam que a Carrasqueira foi ocupada, originalmente, por grupos
de agricultores atraídos pelo trabalho nos arrozais da região. Apenas décadas depois, os
filhos da primeira geração de carrasqueiros teriam dado início aos trabalhos de extração
– ou apanha, conforme nomeado localmente – dos recursos naturais disponíveis no
estuário do Sado, tais como ameijoas, búzios, ostras e barbigões. Além disso, somente
na década de 1960, a pesca com o uso de artes se torna uma prática difundida entre
várias famílias locais. A etnografia apresentada nesta tese tentará descrever a associação
das atividades de apanha, pesca e agricultura, tal como se configura nos dias de hoje.
9.1 – A Carrasqueira como foi e como é: da casa de capim à vivenda.
O trabalho nos arrozais, no início do século XX, fixou, aos poucos, a população
de trabalhadores. Imprensados entre o Rio Sado e as terras de cultivo, algumas famílias
decidiram se estabelecer por períodos mais extensos, deixando de lado o movimento
sazonal balizado pelo “tempo do arroz”. As motivações para a fixação eram variadas.
Ouvi de alguns carrasqueiros que seus avôs resolveram ficar por ali, pois “de onde
vieram era mais pobre ainda”. Ou, “cá, naquelas alturas, a natureza já dava tudo”.
Outros relatos evidenciavam cansaço e impaciência com a mudança permanente de
lugar em busca de trabalho: “Não somos ciganos, não estamos neste mundo para andar
134
Documentos elaborados em trabalho de campo por grupos de técnicos ligados à Direção Geral de
Agricultura que tinham por objetivo conhecer e registrar as áreas agrícolas de todo território português ao
longo do século XIX.
135
SOUTO: 2000, 04.
131
para lá e para cá. Acho que foi assim que meu avô pensou antes de construir aquela
casa de capim”.
A observação do povoado nos dias atuais não fornece ideia direta do que ele foi
há pelo menos sete décadas. Sua configuração espacial, tal como é hoje, foi, em sua
maior parte, resultado da intervenção da autarquia de Alcácer do Sal que, a partir do ano
de 1992, promoveu obras de infraestrutura como, por exemplo, a construção de redes de
água, esgoto, energia elétrica, telefonia e a reconstrução da passadeira principal do porto
palafítico. O corte e asfaltamento das ruas principais também data deste período. O
povoado possui, também, uma pequena praça com brinquedos infantis implementada
pela Junta de Freguesia da Comporta 136.
Rua principal
Casa alugada para o trabalho de campo
136
Vivenda e redes
Restaurante e café
SOUTO: 2000.
132
Parque infantil
Mercado e telefone público
A Carrasqueira conta com duas longas ruas que são extensões das estradas que
ligam o povoado à Comporta e à Alcácer do Sal. Tais ruas marcam o vértice no local
onde é considerado o centro do povoado. Lá está localizada a maior parte dos
estabelecimentos comerciais, sendo três restaurantes/cafés, uma farmácia e um
minimercado. Em frente a este último localiza-se o único telefone público do lugar.
Seguindo uma das ruas na direção de Alcácer ainda há dois outros restaurantes.
Deste cruzamento estende-se outra rua. É o caminho que leva a mais um
conjunto de casas erguidas em torno de um adro. Há um canteiro que divide a rua em
duas. Quem ruma pela rua de baixo segue em direção à margem do Rio Sado. A rua de
cima leva o andante até mais um renque de casas e à escola do povoado que se encontra,
atualmente, desativada. Antes de alcançar a margem, além das casas, passa-se por mais
um restaurante. É justamente neste ponto que o asfalto cede lugar a uma rua estreita de
terra batida. Dali já é possível avistar o Sado e, do outro lado, o SeteNave. No caminho,
quem passa é acompanhado, pelo lado esquerdo, por uma pequena área conservada para
a rizicultura. A estradinha curva para a esquerda e divide o rio do arroz. Completando
seu percurso, chega-se à lota – estabelecimento no qual são realizados os leilões de
133
peixe assim que chegam da pesca. E, deste ponto, ergue-se o porto palafítico com suas
embarcações atracadas ao longo de sua extensão pelo lado esquerdo, oposto, assim, às
raízes e plantas do sapal mais presentes em seu lado direito. Além deste desenho
espacial, surgem pequenas ruas com casas construídas em terrenos contíguos. Os
moradores dizem que o corte das ruas tentou respeitar os lotes tal como estes já existiam
antes de 1992.
Chamam atenção, na paisagem construída, as casas de capim. Este tipo de
construção não constitui a maioria das habitações do lugar. Pelo contrário, as casas de
capim hoje em dia são poucas quando comparadas às casas de alvenaria. O etnógrafo
não contou mais do que doze destas no povoado e mais algumas outras espalhadas pelas
estradas da região. Como já havia indicado Cristina Moço, na ocasião de nosso encontro
em Lisboa, as casas de capim eram as habitações originais dos carrasqueiros nos tempos
do arroz. O mesmo foi indicado no trabalho de Henrique Souto e ratificado pelos meus
interlocutores, várias vezes, ao longo de minha estadia no campo.
Casas de capim
Há mais do que uma simples oposição entre “passado e presente” ou “antigo e
novo” no contraste entre os dois tipos de habitação. Se as casas evidenciam, por um
lado, as transformações ocorridas no povoado desde o período de sua ocupação em
torno da rizicultura, por outro lado, funcionam como dispositivos através dos quais os
carrasqueiros falam sobre sua história, sobre suas percepções de tempo e, enfim, sobre
seus valores morais. Dito de modo mais sintético, a partir das casas, é possível ter uma
boa ideia dos processos e das representações sociais nos quais o ambiente ocupado –
seja o mar, seja a terra – e os grupos sociais estão imbricados.
134
A partir de 1836, um conjunto de propriedades rurais formou a Companhia das
Lezírias do Tejo e do Sado. Embora as terras não se enquadrassem entre as mais
produtivas do país, naquele período, foi sob o controle da Companhia que a rizicultura
começou a ser implantada na região ainda no século XIX. No ano de 1925 a Atlantic
Company – grupo de acionistas britânicos e portugueses – adquiriu a totalidade das
propriedades que formavam a Herdade da Comporta, o que incluía, em sua extensão, as
povoações da Carrasqueira, Torre, Carvalhau e da própria Comporta 137.
Casas de capim
Segundo os relatos dos carrasqueiros, os proprietários da Herdade não se
incomodavam que os trabalhadores fizessem das terras sua morada provisória. Alguns
afirmam que havia até mesmo incentivo para que seus antepassados ficassem próximos
aos arrozais junto com as famílias. Eram, por outro lado, impedidos de erguer casas com
qualquer material resistente, pois tal obra poderia caracterizar, com o passar dos anos, o
direito de posse sobre o lote construído. Por isso, os primeiros moradores utilizavam
capim seco e madeira nativa para a construção das habitações.
As casas de capim em geral não tinham área maior que 20 m2. Eram basicamente
compostas de um único cômodo no qual se abrigava toda família. O esteio era feito com
estacas de madeira extraídas de árvores da região como o pinheiro. O capim, após
alguns dias exposto ao sol, era fixado em posição vertical e amarrado no esteio para
formar as paredes externas. Em muitas delas a cozinha localizava-se fora da casa e não
havia banheiros. Mesmo muito simples, uma casa de capim, de acordo com os
137
SEIXAS: 1999, 41.
135
carrasqueiros, “aguentava bem o frio e nem chuva nem vento a derrubava”. Alexandre
certa vez me disse:
“Minha mãe criou sete filhos numa casa destas. Era outro tempo.
Imagine conviver todos juntos numa casinha destas, sem conforto,
sem nada. Por isso era só trabalhar e trabalhar. A casa era mais
para dormir e proteger-se do frio. Não era possível ficar em casa,
pois, como nós ficamos agora. Quem viveu em uma casinha
destas, nós, os mais antigos, sabemos dar valor ao que temos hoje.
Hoje é muito diferente cá nas vivendas. Feitas em alvenaria elas
são muito mais espaçosas, confortáveis, como tu vê. Só quem
viveu daquele modo antes, sabe do que eu estou a falar”.
A fala do pescador não é diferente das percepções que os outros carrasqueiros de
sua geração têm das casas de capim. Os habitantes do povoado que hoje estão com mais
de 50 anos de idade passaram, em sua maioria, a infância e mesmo parte da juventude
nas tais casas. Em primeiro lugar, a construção evidencia a relação dos carrasqueiros
com um tempo no qual a vida era considerada muito mais difícil, do ponto de vista
material. A escassez de recursos monetários – num período onde as famílias ainda
viviam dos parcos pagamentos pelo trabalho do arroz ou de outras atividades ligadas a
terra, mas também de remuneração muito baixa – era complementada com um relativo
acesso aos recursos naturais disponíveis.
No que diz respeito à terra, os proprietários concediam que os carrasqueiros
cultivassem pequenas hortas próximas aos lotes ocupados. A produção, pelo menos até
os anos de 1960, era basicamente para a subsistência das famílias sendo, em alguns
casos, uma parte era destinada ao pagamento pelo uso e fixação provisória nas terras da
Herdade138. Já os recursos estuarinos, começaram a ser explorados, somente para
subsistência, apenas nos períodos de interrupção ou entressafra do trabalho agrícola. É
importante ressaltar que a localização do povoado – entre o Rio e os campos de arroz –
e a inexistência de acessos rodoviários de qualidade, isolavam o povoado dos centros de
mercado na região. O centro urbano mais próximo era Setúbal, do outro lado do rio,
cuja travessia era realizada em barcas movidas a vapor.
138
Os relatos sobre as formas de contrato de pagamento pelo uso e permanência nas terras da Herdade da
Comporta são muito variados e complexos. Ouvi de alguns moradores que seus pais trocavam bens
agrícolas para permanecerem no local. De outros tantos, ouvi que a taxa era um “aluguer” pago em
Contos de Réis.
136
O isolamento foi diminuído com as construções das estradas Tróia-Comporta,
em 1968 e Comporta-Alcácer do Sal, em 1973. As obras facilitaram o acesso para
compradores de produtos agrícolas e de pescado à região da Comporta e,
consequentemente, à Carrasqueira já que a distância que os separa é de pouco mais que
5 km
139
. Além disso, uma importante transformação política de caráter nacional teria
implicações diretas sobre a organização social do povoado.
A Revolução dos Cravos, ou, como é vulgarmente mencionada, o “25 de Abril”
operou uma mudança estrutural no regime de propriedade de terras daquela região.
Nesta data e no ano de 1974, um golpe, protagonizado pelos militares de oposição ao
regime ditatorial do Estado Novo – que durou 41 anos –, iniciaria um processo de
democratização no país consolidado, anos mais tarde, pela nova Constituição de 1976.
Os anos seguintes ao golpe testemunharam várias mudanças de ordem política, jurídica
e administrativa por todo o país.
A partir deste período muitas empresas e terras foram estatizadas em Portugal.
Grande parte da Herdade da Comporta foi nacionalizada restando para a Atlantic
Company o direito de propriedade apenas sobre sua parte urbana – na qual se
localizavam os escritórios, maquinário, depósitos e outros bens construídos. Na área
marginal ao Sado, na qual a Carrasqueira está localizada, a maioria lotes ficaram sob a
administração da Câmara de Alcácer do Sal. Sem os impedimentos dos antigos donos
da Herdade e animados pelo clima de liberdade que contagiou o país, os carrasqueiros,
em meados da década de 1970, começaram a erguer as primeiras casas de alvenaria.
Pela ocupação e uso da terra, passaram, dessa forma, a pagar em dinheiro impostos para
a Câmara Municipal e não mais para a Atlantic.
As casas de alvenaria, assim, marcam, para os carrasqueiros, uma mudança
significativa na organização da vida prática. Este tipo de habitação, ao mesmo tempo
em que os fixa definitivamente à terra, portanto, ao lugar no qual desenvolvem suas
atividades de trabalho e de reprodução social, traz uma modalidade de conforto nunca
antes experimentada por aqueles que primeiro ocuparam o território.
139
SEIXAS: 1999, 43.
137
Vivendas
Se os carrasqueiros, desde os primeiros tempos, mantiveram uma ligação muito
próxima com o ambiente mediada pelo trabalho, a fixação permanente na terra e no
meio – com o advento da casa de alvenaria – ajudou a consolidar ainda mais a relação
das famílias com o lugar. Entre outras coisas, a casa de alvenaria trouxe para os chefes
de família, sobretudo, mais segurança sobre o futuro. Os acontecimentos pós 25 de
Abril trouxeram a solidez da morada e a certeza de que com trabalho poderiam honrar
os impostos junto à Câmara.
138
“Aqui antigamente não tínhamos vida além do trabalho não. Era
uma vida dura esta vida do máre. Não sabíamos até quando
poderíamos ficar, não podíamos fazer nada. Até porque não havia
nada aqui além de arroz para lá e umas pequenas hortas para cá.
Não sabíamos quando uma casa ia pegar fogo – como aconteceu
conosco naquela casa lá de cima que eu lhe mostrei. Era difícil
criar os filhos numa condição destas. O Hélio foi criado numa
destas casas. Ele não lembra porque era muito pequeno. Já a Dulce
já foi nesta casa aqui. Aí foi diferente. Mais conforto, tudo
organizadinho. Aí, nós que somos pais ficamos mais tranquilos
porque sabemos que os filhos estão mais tranquilos”.
O relato de Deolinda – que é pescadora e mãe de dois filhos – aponta para a
associação entre a dureza e a incerteza da vida no período das casas de capim. Falar
desta morada é falar de como a vida era. E isto é feito, na maior parte das vezes, em
contraste com as casas de alvenaria e as percepções da vida pós anos 70 e nos dias
atuais.
“Hoje em dia, Zé, isto aqui é uma belezinha! Os mais novos não
entendem. Olham estas cabanas espalhadas por ai e não entendem
mesmo como era. Agora, hoje não. Temos nossas vivendas.
Ninguém mais nos tira. Foram construídas com trabalho. E agora
que estamos todos velhos (risos) podemos, ao menos, morrer em
paz numa casa boa, não é, Zé? Ah, é muito melhor ter uma casinha
organizada, limpa. Poder receber as pessoas, assim como estou a
fazer com você. Fica tudo direitinho. Tudo no lugar. A vida hoje é
melhor que antigamente mesmo. Continuamos a trabalhar muito,
conforme tu tem visto por ai. Mas, ao menos temos nossa casinha.
Com boa cozinha, boas casas de banho, não é? E naquelas outras?
Não havia nada, nadinha! Só os turistas mesmo para gostar de ficar
lá. Mas, deve ser porque é só por uns tempos (risos!)”.
A fala de Fátima aponta duas categorias que estabelecem uma distinção
fundamental entre os dois tipos de habitação: cabana e vivenda. Ao longo do trabalho
de campo ouvi muitos carrasqueiros utilizando os termos cabana e casa de capim, para
nomear o tipo de habitação comum na área da Carrasqueira até 1974. Escutei também a
palavra vivenda toda vez que os moradores desejam nomear a casa atual, de alvenaria.
Colocadas lado a lado, as categorias, casa de capim e vivenda, não são somente
139
dispositivos que classificam edificações. São, antes de tudo, marcadores de tempos,
estilos de vida, e visões de mundos distintos em si mesmos.
Nas vivendas os carrasqueiros estão, definitivamente, ligados à terra. A mesma
terra ocupada pelos seus pais nas primeiras décadas do século XX. Foi lá que resistiram
à dureza do trabalho no campo, longe de seus lugares originais e de muitos de seus
familiares. Na mesma terra tiveram seus filhos e fazem questão de afirmar que os
criaram com dificuldade, entre outras coisas, devido à escassez material e de outros
serviços básicos.
Estas casas de alvenaria foram erguidas em um período de relativa prosperidade
na Carrasqueira. Além do clima político que se instaurou no país, pós 25 de Abril, é
possível identificar, de acordo com seus habitantes, alguns signos de que “bons tempos”
estavam chegando. Por um lado, os homens que estavam nas Forças Armadas – seja nas
frentes de batalhas das guerras coloniais, seja ocupando outras funções – foram
liberados do serviço militar e, aos poucos, retornaram para o povoado podendo assim,
junto com as mulheres, dar continuidade ao trabalho na terra e no mar. Por outro, data
também dos anos 70, segundo relatos locais, o período de maior prosperidade na pesca
artesanal desenvolvida no estuário. Além da apanha de bivalves, já desenvolvida pelos
primeiros habitantes para subsistência das famílias, a década é marcada por um aumento
significativo de pescadores atuando com redes e explorando maiores extensões dos
“máres do Sado”. Isto, associado ao incremento da infraestrutura viária, conforme
mencionado anteriormente rendeu para as famílias que se dedicavam à pesca bons
dividendos, pois, desde então, tinham como escoar a produção pesqueira uma vez que
os compradores conseguiam chegar mais facilmente ao povoado.
140
Este período de prosperidade, tal como percebem os carrasqueiros, ganha, com a
construção das vivendas, materialidade. A área das casas é de aproximadamente 150m 2.
São, em geral, grandes e bem divididas. Muitas possuem primeiro andar, sótão,
lavanderia e garagem para os automóveis. Cada membro da família tem o seu próprio
cômodo fora os outros ambientes (há casas com até três salões internos). As cozinhas e
banheiros (ou casas de banho) são azulejados. Os pisos variam entre a cerâmica, o
azulejo e o assoalho de madeira – qualquer coisa bem diferente da terra batida nas áreas
internas das casas de capim. Portas, janelas, venezianas e portões são cuidadosamente
bem acabados. As vivendas estão impecavelmente pintadas e os quintais, em sua
maioria, muito bem cuidados e adornados com plantas, flores e árvores frutíferas.
Algumas delas recebem, na fachada principal, uma placa com o nome da vivenda.
“Antigamente a vida era dura e nós não tínhamos recompensa.
Hoje em dia, a vida continua difícil. É trabalho em demasiado.
Mas, hoje, nós podemos dizer que temos algo para deixar para
nossos filhos. Temos nossa casa, nossos barcos. O que eles vão
fazer com isso? Eu não sei. Mas, casa para morar eles ao menos
terão”.
As vivendas são o palco para a reprodução social da família. Nas vivendas há
encontros, almoços e festas. Os carrasqueiros podem, com orgulho, receber parentes e
conhecidos vindos longe. Há espaço para todos e para o desempenho de várias
atividades em grupo, tais como, jogos, churrascos, brincadeiras, reuniões etc. As
construções são signos de estabilidade para as famílias. Observei situações nas quais
famílias locais que possuíam casas de alvenaria pouco cuidadas, sujas, mal acabadas ou
mesmo desorganizadas eram estigmatizadas por carrasqueiros que possuíam casas bem
141
cuidadas. Ou seja, o status da família é associado diretamente à estética e às condições
de conservação da casa. Tal como no relato a seguir feito por um pescador proprietário
de uma boa casa no centro da Carrasqueira:
“Está vendo lá aqueles dois? Estes ai não tem jeito! Gostam de uma
cerveja, de um vinho... não sabem a hora de parar. Ele, gosta de vinho.
Ela, gosta mesmo é da cerveja. Um dos filhos não é bom da cabeça. Já
viu a casa deles? Ai, ai, ai. Aquilo não existe! É tudo sujo e mal
cuidado. Aquilo não muda. Eles foram sempre assim e serão sempre
assim. São boas pessoas. Mas, serão sempre assim”.
E, realmente, a casa de alvenaria indicada chamava a atenção quando comparada
às outras. O casal citado tinha, no quintal da frente, um amontoado de coisas: motores
de barco e de motos sem uso, ferramentas, brinquedos, móveis velhos, um conjunto de
vasos sem plantas, vários cachorros e gatos que entrando e saindo a todo o momento do
recinto, pedaços de ferro e madeira para serem utilizados em alguma reforma entre
outros objetos. Parte da fachada da casa não estava pintada e as janelas eram mal
acabadas. Talvez este seja um bom exemplo para evidenciar a centralidade das casas na
vida cotidiana do povoado, bem como para nos aproximarmos dos juízos morais que os
carrasqueiros fazem sobre eles próprios. A tabela abaixo sintetiza o contraste entre as
qualidades atribuídas às habitações. São elas que mais aparecem nas conversas sobre o
este tema:
Casas de Capim Casas de Alvenaria
(Barracas)
(Vivendas)
Feio
Bonito
Provisório
Permanente
Inseguro
Seguro
Sem conforto
Confortável
Apertado
Espaçoso
Sujo
Limpo
142
Desorganizado
Organizado
As casas são, portanto, marcadores de status, na medida em que as
representações dos carrasqueiros sobre as elas estão intrinsecamente associadas às
qualidades morais das famílias. E, como marcadores sociais de tempo140, as casas
evidenciam as percepções que homens e mulheres do povoado têm acerca da “vida
antiga”, do “passado” ou “do início de tudo” sempre em contraste com a vida social
experimentada após os anos de 1970 até os dias de hoje. A tabela seguinte distribui
também de modo contrastivo e sintético, algumas destas percepções141:
Casas de Capim
Casas de Alvenaria
(Barracas)
(Vivendas)
Muito trabalho
Muito trabalho
Escassez material
Relativa abundância material
Menos gastos financeiros
Mais gastos financeiros
Mais recursos naturais disponíveis Menos recursos naturais disponíveis
(no estuário)
(no estuário)
Menos liberdade política
Mais liberdade política
Entretanto, se por um lado a existência contemporânea das casas de capim
lembra os carrasqueiros da dureza da vida em tempos pregressos e difíceis, por outro, há
uma versão desta habitação cujos usos e apreciações são de outra ordem.
140
Sobre os marcadores socais do tempo ver LEACH: 1974.
É importante ressaltar que estas são as percepções de homens e mulheres na faixa etária que se
encontra atualmente entre os 55 e os 75 anos. As percepções das gerações mais jovens sobre o tempo são
diferentes e, em ocasião oportuna, serão apresentadas nesta etnografia.
141
143
A região na qual se localiza a Carrasqueira tem sido bastante procurada por
turistas nas duas últimas décadas. Atraídos pelas belezas naturais do estuário e das
praias, pela gastronomia local e pela tranquilidade da vida longe das grandes cidades, os
carrasqueiros tem recebido contingentes expressivos de pessoas advindas de outras
regiões do país e mesmo de outras partes da Europa durante os meses de verão. Muitos
moradores, com o intuito complementar os ganhos da pesca e da lavoura, construíram
quartos e casas anexas às vivendas e os alugam aos turistas. O que impressiona os
carrasqueiros é que muitos turistas preferem alugar as casas de capim durante a estadia
na região. Por isso mesmo, alguns de meus interlocutores mantinham casas para estes
fins142.
Casas de capim para turistas
Para atender aos turistas, as casas sofrem algumas alterações. Por fora, as
habitações de aluguel estão sempre com a fachada impecável. O capim é novo e trocado
constantemente o que dá aspecto mais sólido e limpo à construção. As ripas de madeira
que formam o esteio são pintadas cuidadosamente. Mas, no interior da casa é que as
modificações chamam mais a atenção. Diferente da versão “antiga”, estas têm divisão
de cômodos, cozinha e banheiro com água encanada. Algumas possuem calefação. Os
móveis feitos em palha, madeira e outros materiais, ajudam a compor a rusticidade do
ambiente. O valor do aluguel destas casas de capim “turísticas” chega a ser três vezes
maior do que quando comparado às casas de alvenaria.
Certa vez, perguntei a um interlocutor se ele trocaria sua vivenda por uma casa
de capim destas reformadas. Ele disse:
142
Algumas casas são anunciadas em sites e blogs na internet. São nomeadas como “Cabanas” ou
“Chalés”. Cf. “www.alugocabana.blogspot.com”
144
“Olhe, eu não trocaria não. Está certo que estas dos turistas não é
como aquelas que nós morávamos e não tínhamos nada. Estas são
para ricos. Tem tudo. Mas, não trocaria o espaço da vivenda por
nenhuma casa de capim”.
Em outras ocasiões, provoquei outros carrasqueiros com a mesma questão. As
respostas não foram muito diferentes. Na verdade, muitas delas vinham recheadas de
ironias como quando ouvi:
“Eu nunca vou entender porque um turista com tanto dinheiro e que já
visitou tantos sítios faz a opção por alugar uma casa destas, oh pá!
Mas, deixe que eles achem que é bom. Assim, todos os verões eles
vem para cá e nós ganhamos nosso dinheiro em cima do mau gosto
deles. Sim, porque gostar de uma casa destas só pode ser de mau gosto
(risos)!”.
9.2 – A agricultura e as batatas doces.
A estrada que liga Tróia à Comporta é, como mencionado, margeada pelo sapal
do lado direito, e pelo o oceano, no lado esquerdo. Após alcançar a Comporta, a
paisagem é substituída, gradativamente, por extensos arrozais intercalados por
conjuntos de lotes nos quais é possível observar o cultivo de diversas hortaliças. É assim
quando passamos pela aldeia do Possanco e, enfim, chegamos a Carrasqueira. A
paisagem confirma a história da região: suas aldeias e pequenos povoados cresceram, ao
longo do último século, em torno do trabalho na terra.
Adentrando a Carrasqueira por esta estrada, o observador depara-se, em seu lado
direito, com uma grande área destinada exclusivamente ao cultivo de hortaliças. A
divisão em lotes – muito parecida àquela encontrada ao longo do caminho – mais se
assemelha a um conjunto de tapetes bem recortados e distintos quanto as suas cores e
desenhos. A mesma organização da terra dá-se, também, em paralelo à estrada que
segue até Alcácer.
De acordo com os relatos dos carrasqueiros, nos tempos das casas de capim,
algumas famílias mantinham pequenas hortas próximas a morada. Isto, entretanto, só
era possível na medida em que o terreno no qual as casas estavam construídas tinha
145
espaço, era fértil ou não era tão alagado a ponto de impedir o cultivo. Após o “25 de
Abril”, com a nacionalização e redistribuição das terras, as famílias locais tornaram-se
arrendatárias destes pequenos lotes podendo, enfim, desenvolver seus trabalhos
agrícolas sem a intervenção dos antigos donos das terras. Assim como nas áreas
ocupadas pelas vivendas, as famílias pagam anualmente, de acordo com o tamanho dos
lotes, uma taxa para a Câmara Municipal. Existem outros lotes espalhados pelo
povoado. Alguns moradores que trabalham na terra mantêm, junto aos lotes, pequenos
casebres feitos em madeira que funcionam como armazéns para o estoque da produção
colhida e para guardar as ferramentas e outros objetos.
Hortas
A mudança no regime de propriedade é percebida como algo muito positivo
pelos carrasqueiros, pois, diferente dos tempos da Atlantic, agora eles julgam ter
autonomia para plantar e vender como bem entendem. Uma fala de Zé Bacalhau chama
a atenção para isso:
“Isto é assim: eu tenho meu lotezinho. Tenho minhas
cebolinhas, meus pepinos e meus tomates. Faço minha horta e
vendo como eu quiser. Para isso, pago no banco uma quantia
para a Câmara. Mas não há ninguém aqui para dizer o que
tenho que fazer. Honro meus compromissos no banco! Tem
ano que ganho mais, tem ano que ganho menos e assim é
vida!”
Pude identificar entre o grupo de carrasqueiros com os quais convivi durante o
trabalho de campo, quatro modalidades de uso da terra: 1) cultivo de hortaliças para
subsistência, 2) cultivo de algumas hortaliças para subsistência e de outras para venda –
com especial destaque para a batata doce; 3) cultivo de hortaliças somente para venda;
146
4) subarrendamento dos lotes para outros agricultores. As duas primeiras modalidades,
associadas ao trabalho na pesca artesanal, são as mais comuns entre os carrasqueiros.
Zé Bacalhau na horta
Eles cultivam uma grande variedade de hortaliças, tais como, feijões, favas,
pepino, cenoura, agrião, coentro, couve, tomate, alface, nabos, entre outras, além de
vários tipos de tubérculos sendo, a batata doce, aquele que ganha atenção especial por
parte dos agricultores carrasqueiros. Isabel, que divide sua vida entre o mar e a terra
uma vez disse:
“A nossa batata doce é a melhor do país! Não há outro sítio em
Portugal capaz de produzir uma batata tão gostosa! Não é por
acaso que vem gentes de todos os sítios para comprar as nossas
batatas. Elas são mais gostosas, maiores e mais docinhas. Uma
delícia!”
Da produção agrícola é, certamente, a batata doce que se destaca. Sua fama corre
para além das fronteiras da região. Eu mesmo escutei por vezes em Lisboa avaliações
positivas sobre as batatas produzidas entre as terras da Carrasqueira e do Carvalhal. A
plantação do tubérculo começa ainda no verão, entre os meses de abril e junho, e sua
colheita é feita entre os meses de outubro e novembro. É também no mês de novembro
que acontece a “Festa da Batata Doce”. Realizada em um fim de semana, a festividade
envolve colaboração entre os moradores/produtores locais, e as Juntas de Freguesia da
Comporta ou do Carvalhal. Na ocasião se apresentam grupos folclóricos e artistas
locais. É comum a organização de um grande almoço de confraternização no qual são
servidos vários pratos elaborados a base de batata nas mais variadas versões: suflês,
recheada, cozida, frita, entre outras. A Festa é realizada anualmente de modo alternado,
ou seja, um ano no Carvalhal e outro na Carrasqueira.
147
Para muitas famílias carrasqueiras, há uma complementaridade entre os
trabalhos na lavoura e os trabalhos no máre. A articulação entre os as duas atividades –
a agricultura e a pesca artesanal – marca, para os carrasqueiros, uma distinção: a de que
“lá se desenvolveu uma aldeia de gente séria e muito trabalhadora”. Como é comum na
maior parte dos povoamentos rurais, quer no Brasil, quer em Portugal, ou em outras
paragens, os homens e mulheres, sobretudo das gerações mais antigas, trabalham até o
momento em que seus corpos aguentam. Por isso, não é difícil observar nos campos de
cultivo locais grupos de senhores e senhoras muito idosos cumprindo assiduamente,
todos os dias, suas jornadas de trabalho junto a terra.
As gerações mais velhas na Carrasqueira constroem a ideia de que a uma vida
saudável, tanto do ponto de vista físico quanto moral, está associada à dedicação
integral ao trabalho.
“Deus fez os homens e a natureza, não é? Pois, ele [Deus] deu a
possibilidade dos homens de viver da natureza. Mas a vida não é
fácil (risos!). Podemos viver da natureza, mas temos que trabalhar
a natureza. O peixe não chega a nossa mesa por vontade própria –
só nos filmes (risos!). As batatas ou os coentros também não
criam-se pela vontade deles [próprios]. Para termos isto tudo,
assim como tu estais a ver aqui, nós temos que trabalhar e muito!
Cá não há lugar para quem fica parado”.
148
Fátima reparando uma rede
Este relato de Fátima sobre o trabalho junta-se com os de outros carrasqueiros:
“Aqui é uma terra onde só se trabalha. Homens, mulheres e, no
meu tempo, até mesmos os miúdos, trabalhavam muito. A situação
melhorou, mas a quantidade de trabalho não diminuiu. A malta
mais nova, que hoje tem seus empregos longe da agricultura, ou do
máre, não sabe o que é trabalhar sem parar. Sem feriados ou finais
de semana. Trabalhar acompanhando os tempos da natureza é
muito mais complicado”.
Ou:
“Uma vida sem trabalhar é uma vida morta. Um homem ou uma
mulher sem seu trabalho é como se estivessem mortos. Não dá.
Sempre foi assim e assim será. Estes homens e mulheres com os
corpos assim curvados, os mais velhos, são resultados do trabalho
de uma vida inteira. Alguns deles até pouco tempo ainda faziam a
campanha no máre e os trabalhos na terra. Depois de uma certa
idade, já não é mais possível ir ao máre – é mais perigoso – e ai
ficam por aqui dedicando-se somente à agricultura e esperando a
hora de ir embora [hora da morte]”.
Estes relatos foram coletados ainda nas primeiras semanas de trabalho de campo.
Era inverno e o período de colheita da batata doce fazia com que as conversas,
inicialmente, girassem mais em torno da agricultura do que propriamente sobre a pesca
artesanal. Tomados em conjunto, eles apontam para uma relação bastante peculiar dos
carrasqueiros com a natureza mediada (e medida) pelo trabalho. As falas revelam
também a associação ente pesca e a agricultura, para o caso das famílias que se dedicam
às duas artes. Entretanto, o que mais chamou a atenção tanto na observação dos
149
trabalhos em terra, quanto na prática da pesca artesanal – tal como eu acompanharia
mais tarde – foi a associação entre os homens e as mulheres.
9.3 – A constituição dos grupos familiares, ou como se tornar camaradas.
A ocupação da Carrasqueira no século XX, conforme já foi exposto, deveu-se,
inicialmente, aos processos migratórios catalisados pelo trabalho nos arrozais das terras
alagadiças do Sado. Com a fixação das primeiras famílias de imigrantes o povoado foi,
aos poucos, crescendo. Entretanto, não se tratava mais de um aumento no número dos
grupos de imigrantes e sim da constituição de novos núcleos familiares a partir do
casamento entre os filhos dos primeiros ocupantes.
Na percepção de meus interlocutores mais velhos, a vida na Carrasqueira era,
mais do que nos dias de hoje, dedicada integralmente ao trabalho. Zé Bacalhau, ao falar
sobre a vida nos tempos das casas de capim, uma vez disse:
“Não tínhamos nada aqui no tempo dos meus pais. Apenas terra
para trabalhar. Um ou outro iam às ameijoas. Não tínhamos nem
um café [estabelecimento comercial] para nos reunirmos.
Tínhamos poucos recursos [dinheiro] e mesmo se tivéssemos mais
não teríamos onde gastar. Se quiséssemos alguma diversão
tínhamos que ir longe – até Alcácer ou Grândola. Não havia muito
o que fazer”.
A vida dedicada ao trabalho mobilizava toda a família. As crianças – muitas
delas já nascidas na carrasqueira – quando mais crescidas também eram incorporadas
nas frentes de trabalho. Os proprietários das terras não permitiam o trabalho de crianças
nos arrozais, mas, como foi dito por vários carrasqueiros, os “miúdos que tomavam
tamanho já ajudavam os pais com as lavouras e mesmo na apanha de mariscos”.
Naquele tempo ainda não havia escola na região e, do ponto de vista dos locais, os
filhos deveriam desempenhar os mesmos trabalhos dos pais ao atingirem a maturidade.
Desde cedo, portanto, as crianças da Carrasqueira já eram educadas para o
trabalho coordenadas pelos pais ou membros mais velhos das famílias. Assim, se
acostumaram com a associação das atividades realizadas no mar e na terra.
150
A socialização infantil dava-se, dessa forma, a maior parte do tempo dentro do
grupo doméstico. Com o amadurecimento, aos poucos, homens e mulheres eram
incorporados aos outros trabalhos na terra já sobre a tutela da Atlantic Company
compondo o grupo mais amplo de trabalhadores ligados à cultura do arroz que,
sazonalmente, desempenhavam atividades de apanha de bivalves no estuário do Sado143.
Até atingirem a juventude, a vida social dos rapazes e moças na carrasqueira se
restringia, basicamente, às relações familiares estabelecidas dentro do grupo doméstico.
Brincadeiras infantis, por exemplo, eram realizadas, em sua maioria, entre irmãos ou
primos de primeiro grau sempre nos espaços controlados pela família: a casa e suas
áreas exteriores. Os contatos entre as diferentes famílias fora das jornadas de trabalho
no campo ou no estuário eram escassos ainda que residissem espacialmente próximas.
Somente ao adquirirem mais idade os filhos – e posteriormente os netos – da primeira
geração de carrasqueiros conheciam mais de perto os jovens das outras famílias do
lugar. O ingresso no trabalho “fora da família”, neste caso, sinalizava para uma vida
mais autônoma em relação aos pais.
A já relatada escassez material obrigava as famílias a criarem algumas
estratégias para exploração dos recursos naturais do estuário a fim de aperfeiçoarem
seus ganhos. Para a apanha dos bivalves, por exemplo, era recorrente que duas ou três
famílias diferentes fossem possuidoras de uma única embarcação estabelecendo, com
isso, uma pequena associação particular para o desempenho da apanha nos parceis.
Assim, nos períodos propícios algumas famílias iam em conjunto – e junto com seus
filhos – ao trabalho nos mares.
O trabalho nos arrozais e no estuário dava, portanto, ao jovem carrasqueiro, a
chance de conhecer seu grupo par, ou seja, jovens de idade semelhante e pertencentes a
outras famílias. Uma fala de Joaquim aponta para a centralidade do trabalho como
catalisador de várias relações sociais na Carrasqueira:
“Como aqui só havia trabalho, as pessoas se conheciam,
namoravam e noivavam, pronto, no próprio trabalho. Hoje em
dia é diferente. Meu Rodrigo [filho] conheceu a noiva fora
143
É difícil precisar a idade de ingresso dos jovens no trabalho junto aos arrozais da Atlantic. De acordo
com relatos, estimo que a partir dos 14 anos alguns jovens já participassem de algum tipo de atividade
ligada à Companhia.
151
daqui e não foi em situação de trabalho. Mas antigamente,
como vivíamos para trabalhar nós conhecemos nossas
mulheres, pronto, no trabalho aqui na região.”
Assim, em situações de trabalho seja na terra, seja no mar, rapazes e moças da
Carrasqueira estabeleciam novas relações de amizade que poderiam, posteriormente,
transformar-se em noivado e casamento144. Por mais que histórias cada casal tenham
trajetórias particulares (como se conheceram, quanto tempo noivaram, quando e porque
decidiram casar-se, etc.) é possível identificar um padrão na constituição de um novo
grupo doméstico – pelo menos entre a geração que vai dos 50 aos 70 anos: a união
conjugal estabelece um novo grupo de pesca. Ou, como falado localmente, o casal “vira
camarada”.
“Eu fiz a minha vida toda aqui. Trabalhei em variadas funções
nos arrozais. Com a minha família eu ia sempre às ameijoas.
Ah... havia muitas. O trabalho era duro, mas ganhávamos bem.
Até que quando conheci a Deolinda, que não era daqui e
morava no Brejo-da-Carrasqueira, nos casamos. Foi ai que eu
comecei a pescar com as artes [redes]. Eu já tinha um dinheiro
e pude comprar um barco próprio e ter minha própria pescaria.
Foi assim que viramos camaradas.” Alexandre.
“Já pescava com meu falecido pai, assim como meu Rodrigo
faz comigo. A Minda já fazia a vida no máre. Sempre
trabalhou muito no máre com a família. Quando nos casamos
começamos a ir ao máre juntos. Deixamos de trabalhar com
nossas famílias para trabalharmos para nós mesmos. Criamos
nossos filhos no barco. Não neste, em outro. O Jorge e o
Rodrigo, ainda muito miúdos, iam conosco nas campanhas. Os
dois, como tu sabe, saíram pescadores também”. Joaquim.
“Minha vida foi toda no máre. Eu ia às ameijoas, aos búzios, às
ostras. Meu pai era pescador. Conhecia tudo isto aqui. Eu e
minhas irmãs [duas irmãs] sempre estivemos no máre.
Armênia e Mariana estão como eu a fazer a vida no máre até
agora. Meu marido é do Carvalhal. Eu que o trouxe para a vida
da pesca. Virou meu camarada (risos!). Acho até que se porta
144
A categoria “namoro” não é usada pela geração mais velha para definir o tipo de relacionamento
afetivo antes do casamento. Quando dois jovens publicizavam sua relação já eram considerados “noivos”
e o casamento mesmo era somente a consequência desta união.
152
bem para quem não fez a vida nestes mares (risos). Quando
casamos começamos a ir ao máre juntos também”. Tibía.
A categoria “camarada” é usada por homens e mulheres quando se referem aos
seus cônjuges. Ela atualiza ao mesmo tempo o status da união conjugal e a relação de
trabalho na pesca. Tanto que o tratamento por camarada só é utilizado por casais que
são pescadores ou pescadores e agricultores. Em nenhuma ocasião, no período em que
estive no campo, ouvi a categoria empregada por casais que não tinham relação alguma
com a pesca. O adjetivo antecedido pelo pronome possessivo “minha esposa” ou “ou
minha mulher” é pouco utilizado entre os carrasqueiros. O mais comum é a referência
“minha/meu camarada”. Recorrente em diversas situações em terra, tais como “minha
camarada está a espera para o almoço” ou os “parentes de minha camarada vêm nos
visitar neste final de semana”, seu uso não dissocia a parceria estabelecida no ofício
pesqueiro daquela firmada no casamento – união central para o desenvolvimento do
grupo doméstico.
Fátima e Virgílio. Foto: Marta Pita
Deolinda e Alexandre
Zé Carioca e Tibía
Joaquim e Minda. Foto: Marcelo Ribeiro
153
O termo camarada designa uma forma especial de correlação. Em muitos grupos
de pescadores que praticam a língua portuguesa, a palavra define o status daqueles que
pescam juntos. É comum que se reconheçam mutuamente como camaradas – ou pelos
correlatos parceiros ou companheiros. Mas, o termo não revela, de todo, a hierarquia
das funções desempenhadas na embarcação durante a faina. São, neste sentido,
camaradas de ofício, constituindo uma associação específica para o trabalho de captura
em mares, rios ou lagoas, no qual cada um conhece o deve ser feito. A hierarquia nas
funções ocupadas pode, em muitos casos, definir também as formas de partilha dos
ganhos da pesca. Em terra, por sua vez, a parceria pode se desfazer sendo somente
retomada nas ocasiões do trabalho embarcado.
A constituição de um grupo – ou uma companha – na maior parte dos povoados
onde se pratica a pesca artesanal, seja no Brasil ou em Portugal, é definida pelas
afinidades pessoais, relações de parentesco ou compadrio entre pescadores e pelas
qualidades técnicas dos indivíduos. Independente da natureza da filiação, o que deve ser
salientado, é que o modelo mais comum de companha admite, por exemplo, a troca de
seus membros por ocasião de doença, desentendimentos, morte, desinteresse pela
profissão ou qualquer outro motivo. Já o caso da Carrasqueira parece peculiar porque o
grupo de pesca é, em geral, formado somente pelo casal o que confere um caráter de
pouca ou nenhuma mobilidade entre os membros145. Assim, este modelo gera
importantes implicações.
A primeira delas é que todo o ganho com a pesca é revertido integralmente para
a casa. Isto é percebido pelos casais carrasqueiros como uma distinção quando
comparados com outros contextos. Nas palavras de Minda:
“Assim é bem melhor. Cá ganhamos juntos. E tudo vai para
casa, para a família. Não é como em outros sítios que os
camaradas fazem a partilha dos ganhos e cada um vai para seu
o seu lado. Por isso é melhor pescar com o marido ou com a
mulher, assim, podemos investir em nossas vivendas, ajudar os
filhos, organizar nossas coisinhas... É assim”.
Ainda que o grupo de pesca constituído pelo casal seja o padrão na Carrasqueira,
há também adaptações e substituições na composição dos grupos. Um bom exemplo é o
145
Não escutei nenhum relato de separação de casais das gerações mais antigas.
154
modo como as famílias de Alexandre e Deolinda, e Minda e Joaquim organizam sua
atividade pesqueira.
Minda e Joaquim fazem, junto com o filho mais novo, Rodrigo, a campanha na
costa, nos meses de inverno. Já nos meses quentes, ou seja, a partir do meio da
primavera e durante quase todo o verão, as atividades de captura são praticadas dentro
do estuário, ocasião na qual se dividem entre a pesca com o uso de redes e a apanha de
mariscos. Alexandre, por sua vez, há alguns anos, não pode contar com a participação
de Deolinda durante toda a campanha dos meses quentes – período considerado mais
rentável para a pesca desenvolvida no rio. Devido aos vários anos de dedicação à vida
no máre, Deolinda, conforme acontece com outros carrasqueiros desenvolveu um sério
problema de coluna. A pescadora queixa-se de muitas dores e o esforço corporal exigido
pela atividade, fez com que ela optasse por trabalhar como governanta em um hotel na
região de Troia nos meses de verão. Com isso, nos últimos quatro anos, durante os
meses de fevereiro a julho, Minda compõe o grupo de pesca com o irmão Alexandre
estabelecendo, dessa forma, uma camaradagem sazonal. Isso, ao mesmo tempo em que
Joaquim pesca dentro do estuário na companhia do filho Rodrigo.
Questionei, para meus interlocutores, em diferentes ocasiões, se era possível a
formação de um grupo de pesca contendo um homem e uma mulher que não fossem
casados. A maioria disse que não. Ao listar os pescadores e pescadoras logo os
identificavam como marido e mulher. Entretanto, havia sim a formação de um casal que
não era cônjuge – e que também não era lembrado pela maior parte dos carrasqueiros
com os quais conversei. Tratava-se de Armênia, irmã de Mariana, que pescava com seu
genro.
“Ah sim, é a Armênia, é verdade... Mas o homem é o genro dela,
estais a ver? Não qualquer homem, ora!”
A informação, proferida de modo veemente por Zé Pedra, reforça, por um lado,
que o grupo de pesca constituído por Armênia e seu genro é uma exceção na
Carrasqueira, e por outro, que só é possível constituir associação para pesca entre um
homem e uma mulher caso eles sejam parentes com papeis sociais bem definidos. Pelos
mesmos motivos não há problemas na filiação sazonal de Alexandre e Minda, pois, ao
fim e ao cabo, eles são irmãos.
155
Outra importante implicação deste modelo de companha é que há pouca ou
nenhuma rotatividade entre os membros. Salvando os casos de natureza semelhante aos
mencionados, na falta de um dos membros, a pescaria continua sendo praticada só que
de modo solitário. Normalmente, pelo que observei, as mulheres se queixam mais cedo
do que os homens de dores e problemas de saúde gerados pelo esforço de anos
dedicados à faina. Quando isso ocorre, os maridos, ainda que sozinhos, permanecem nas
atividades de captura e apanha. Os homens que vão ao máre desacompanhados de suas
camaradas, reclamam, basicamente, de três coisas: 1) o esforço físico empreendido é
maior quando estão sós, 2) os ganhos diminuem quando comparados aos rendimentos
dos outros casais ou mesmo aos seus próprios em períodos anteriores quando a parceria
ainda era praticada e, 3) sozinhos estão mais vulneráveis caso ocorram acidentes ou
contratempos durante a navegação e a faina. Não é comum que uma mulher continue
solitariamente a vida na pesca, mas, as irmãs Mariana e Armênia, por exemplo,
costumam desempenhar suas atividades, em geral, cada qual em seu barco.
Como pode ser observada, neste povoado a instituição do casamento tem
centralidade especial. É a partir dele que se organiza a atividade pesqueira. Ainda no
período em que a maior parte dos carrasqueiros dedicava-se à agricultura – nos
primeiros tempos das casas de capim – os casais estabelecidos já recrutavam os filhos
para as atividades de apanha no estuário. De acordo com a memória de meus
interlocutores, nos anos de 1960, aos poucos, os “novos casais” iniciaram a pesca com
uso de artes, prática que se massifica no povoado no decorrer dos anos setenta,
principalmente após o “25 de Abril”. O mesmo período também é considerado pelos
carrasqueiros como de demasiada prosperidade material. Muitos não têm nenhum
constrangimento de afirmar que foi o momento de suas vidas no qual ganharam mais
dinheiro. Puderam assim erguer suas vivendas, comprar seus primeiros automóveis,
proporcionar uma vida mais confortável para os filhos, adquirir outros bens de consumo
doméstico etc. Ou seja, todo patrimônio da família só pôde ser adquirido pelo esforço
conjunto de homens e mulheres, ou seja, dos camaradas.
A pesca de rede, considerada localmente a modalidade mais rentável embora
desempenhada pela maioria dos carrasqueiros somente nos meses quentes, é tarefa do
casal. E, neste sentido, reproduz a mesma organização do trabalho da terra no qual os
cônjuges são parceiros de trabalho. Nas representações dos carrasqueiros, as situações
156
de trabalho – na terra ou no estuário – não são dissociadas da “vida”. Dito de outro
modo, “trabalho” e “vida”, aparecem, em suas percepções, como partes do mesmo
mundo; contêm, assim, a mesma substância. Não há separação entre as duas categorias.
E, uma vida equilibrada, regrada e organizada depende, justamente, desta
parceria que é estabelecida tendo o casamento como ponto nodal. Tanto que homens
com mais de trinta anos que, por qualquer motivo, não casaram ou que não tenham uma
parceria estável com uma mulher, são vistos com ressalvas pelos carrasqueiros que
reproduziram o padrão descrito até aqui. Tal como o relato:
“Estais a ver aquele gajo lá? Nunca casou! Por quê? Não sei...
Nem tem uma companheira nem nada. Tem casa, dinheiro, mas
não tem mulher. Deve ter algo errado com ele, não acha? Todo
homem precisa de uma mulher e toda mulher precisa de um
homem”.
Vale ressaltar que o homem apontado é filho de pescador, nascido e criado no
lugar, não é homossexual e tem relativo sucesso como profissional autônomo no ramo
de vendas. Ou seja, mesmo que o indivíduo cumpra vários requisitos que atestam uma
vida digna, do ponto de vista dos carrasqueiros, o fato dele não possuir uma esposa e
filhos faz com que ele seja estigmatizado no povoado quando provocados a pensar sobre
estas questões. O julgamento moral, dessa forma, vai muito além das questões materiais.
Não constituir seu próprio núcleo familiar trás custos para os habitantes da
Carrasqueira.
Proponho, portando, que existe um continuum entre o núcleo do grupo familiar,
ou seja, o marido e a mulher (ou o pai e a mãe), e a pesca artesanal. As duas formas de
associação – o casamento e a camaradagem – são mecanismos complementares e
fundamentais que asseguram a reprodução social das famílias locais. Pelo menos dos
casais que atualmente estão na faixa etária dos cinquenta anos para cima.
10 – A pesca artesanal.
Para a compreensão da atividade pesqueira na Carrasqueira é necessário uma
descrição das formas através das quais os homens e mulheres do povoado se relacionam
157
com o ambiente. Como em qualquer outro grupo humano, seja este “moderno” ou
“tradicional”, mais urbano ou mais rural, a relação entre as pessoas e a dimensão
concreta da vida é balizada pela lógica das qualidades sensíveis. Como muito bem
argumentou Claude Lévi-Strauss em sua Ciência do Concreto, o mundo conhecido
pelos homens só é conhecido, de fato, através da experiência e do contato com aquilo
que é externo aos seus corpos146. Assim, os mecanismos que operam a lógica
classificatória dos grupos humanos passam, inequivocamente, pela experimentação da
vida e a pela exploração de tudo aquilo que está fora dos indivíduos – chamem isso de
Natureza, ou não.
Tal complexidade obriga o etnógrafo a fazer escolhas no momento de descrever
os hábitos, as práticas e a cosmologia de um grupo. Qualquer tomada de decisão em
etnografia é arriscada. Por um lado, porque os caminhos da interpretação são sempre
escorregadios. Matérias que julgamos ser importantes para um povo podem ser apenas
importante para o etnógrafo. Por outro, porque na tentativa que reduzir a complexidade
da “vida real”, corre-se o risco que perder os fluxos e as conexões presentes em sua
dinâmica – que quase nada depende da Antropologia para existir.
Considerando o tempo de permanência no campo entre os carrasqueiros e a
minha própria experiência em trabalhos passados com pescadores, optei por tentar
equalizar meus interesses de pesquisa com demandas que apareceram ao longo da
estadia em Portugal. Esta postura me fez retomar com os pescadores portugueses
antigos temas de trabalho ao mesmo tempo em que novos assuntos apareceram. Não por
mágica, é claro, mas pelo simples fato de que eles afetavam os carrasqueiros de algum
modo.
Como não há guia sobre como realizar o trabalho de campo e sim apenas
algumas recomendações para tal fim, escolhi a estratégia mais conhecida para quem
quer saber como pescadores se comportam: acompanhei suas atividades em terra e no
mar. A etnografia da pesca artesanal desempenhada no Estuário do Sado, tem o objetivo
de, a partir da descrição das práticas e das percepções dos carrasqueiros sobre seu
ofício, apresentar, ainda que de modo limitado e simples, os modos através dos quais
146
LÉVI-STRAUSS; 19-56: 1970.
158
estes homens e mulheres dão sentido ao mundo que é, ao fim e ao cabo, estruturado por
sua profissão.
10.1 – Embarcações.
De acordo com o Plano Estratégico Nacional para a Pesca Portuguesa (20072013), 91% da frota constitui a chamada “pequena pesca”. A categoria trata do conjunto
de embarcações que possuem tamanho inferior a 12 metros e atuam quer em águas
oceânicas – na costa – quer em águas interiores, ou seja, estuários e rios. A maior parte
desta frota registrada pela Direção Geral de Pescas e Aquicultura concentra-se na região
Central (23%) e no Algarve (21%) e tem, de acordo com o Plano, recebido especial
atenção por parte das políticas públicas por estar relacionada diretamente à pequena
economia local da qual dependem várias famílias portuguesas 147.
Em contagem informal, cerca de 300 embarcações, no mínimo, desempenham
atualmente atividades de captura no estuário do Sado. São pescadores oriundos em sua
maioria das regiões adjacentes ao rio que atracam seus barcos nos portos locais. A frota
de Setúbal desempenha a maior parte de suas atividades na costa. O contrário dos
pescadores carrasqueiros que, à exceção de uma família, praticam as atividades de
apanha e captura somente no interior do estuário.
Na Carrasqueira a contagem informal das embarcações alcança o número de 60.
Destas, entretanto, observei que menos de 50 são utilizadas na para a pesca local. É
possível verificar alguns barcos que descansam na beira do Sado em frente a pequena
estrada que liga o povoado ao porto. Trata-se de barcos à espera de reparos ou
aguardando pelo licenciamento concedido pela DGPA. Há também os barcos “que
estão a morrer”, como dizem os carrasqueiros, pois já não tem mais valor de venda,
quer pelo seu estado de conservação, quer pelo tempo de uso. Por isso, seus donos os
abandonam no estuário. Aos poucos, com a deterioração da madeira, as embarcações se
amalgamam ao ambiente estuarino formando parte da paisagem e constituindo, tal como
as ruínas do porto, uma memória arqueológica da atividade pesqueira.
147
PLANO NACIONAL PARA A PESCA (2007-2013).
159
A frota da Carrasqueira é constituída por embarcações feitas em madeira. A
maioria dos barcos é do tipo “caçadeira”, possuem em média 7,0m de cumprimento e
contam com motor de popa movido à gasolina. Há também as embarcações
classificadas como “boca fechada” ou “boca aberta” que tem de 9 a 11 metros, da proa a
popa, e cujo motor, em geral movido a gasóleo [óleo diesel], é fixado no centro. Estas
têm maior tonelagem e possuem convés e porões.
As cores e os estilos das pinturas variam bastante de um barco para outro. Há
uma predominância na cor azul e vermelha e verde. Mas, é possível encontrar
embarcações de cor branca ou amarela. Cores mais fechadas como o preto e o cinza são
utilizadas apenas para os acabamentos ou para a escritura dos nomes e números de
registro. Se não há um padrão que incida sobre as cores, de um modo geral, é possível
ao menos identificar semelhanças nas pinturas dos barcos pertencentes a uma mesma
família. Questionados sobre as cores, os carrasqueiros normalmente mencionam que são
preferências sem importância. Entretanto, creio que a escolha das matizes e sua
predominância nas embarcações dos grupos familiares marca uma distinção entre elas.
O relato de Manuel sobre as cores parece apontar nesta direção:
“Pode ver: ‘Senha’ sempre pintou seus barcos de azul. Joaquim pinta
os seus de verde, verde e branco. ‘Pega-Rija’ prefere o vermelho. São
todos diferentes, oh pá! Eu sempre pintei o meu de azul. Já o comprei
assim e o mantive, pronto!”
160
Maria e “Pega Rija” pintando o barco ‘Moitinha’
“Caçadeira”
“Boca aberta”
“Boca Fechada”
161
Barcos atracados no porto palafítico
Se as cores atendem às preferências estéticas dos proprietários que, em sua
maioria, optam pela manutenção de certo número delas, para os nomes das embarcações
opera-se outra lógica. A maior parte da frota local foi comprada de proprietários de
outras regiões do país, ou seja, não foi construída na Carrasqueira. Os pescadores, ao
adquirirem as embarcações recebem também o nome e o número de matrícula. Todos os
pescadores com os quais travei relação mantiveram os nomes originais.
“Zé, o nome do barco é como o nome de uma pessoa. É a alma da
pessoa. No caso, é alma do barco. Como ele foi feito. Como ele é.
As pessoas mudam as cores, fazem reparos, colocam novas peças.
Mas o nome não. Este fica como está. E dura toda vida do barco.
Tu já viste alguém mudar de nome? [risos]. A pessoa passa por
esta vida com este nome. O barco também”.
Esta foi a explicação dada por Manuel quando, uma vez, eu o questionei sobre o
nome de sua caçadeira. A idéia de que o barco tem uma alma ou uma personalidade e
que ela é marcada de modo inequívoco pelo nome é comum não apenas entre os
carrasqueiros. Na ocasião de uma visita ao povoado de Nazaré – conhecida vila de
pescadores da costa centro-norte portuguesa – durante os festejos pascoais de 2011,
escutei de um velho nazareno:
“Barcos são como pessoas: tem identidade e história. E, assim
como nós, nasce, recebe um nome e vive sua história. Depois,
como é o ciclo natural das coisas, morre...” Paulo.
Em etnografia já se escreveu muito sobre as representações que as povoações de
pescadores têm sobre os instrumentos de trabalho que constituem o universo dos ofícios
162
haliêuticos. Os significados que os homens dão aos seus barcos e apetrechos variam
entre os grupos. Entretanto, tal como no caso da Carrasqueira, a descrição destas
percepções sobre a cultura material evidenciam que a importância de tais objetos na
vida coletiva transcende o simples uso instrumental. Lembra, neste sentido, o capítulo
IV dos Argonautas o qual Malinowski intitula “Canoas e Navegação”. O etnógrafo
descreve a complexa relação entre os trobiandeses e suas embarcações apontando para
suas as implicações simbólicas e práticas:
“(...) pois um barco, seja ele feito de casca de árvore ou de
madeira, de ferro ou de aço, vive a vida de seus navegantes e, para
o marinheiro, representa mais que um simples pedaço de matéria
moldada. Para o nativo, não menos do que para o marinheiro
branco, o barco está envolto numa atmosfera de romance,
construída de tradições e experiências pessoais. É um objeto de
culto e admiração, uma coisa viva que possui personalidade
própria”.
148
10.2 – Máres e Marés: os carrasqueiros e suas categorias.
“Fiz a minha vida toda no máre”. Esta é uma das frases mais repetidas na
Carrasqueira por aqueles que dedicaram a maior parte de suas vidas ao trabalho de
apanha e de pesca no estuário do Sado.
Máre quer dizer mar. O sotaque alentejano, que também é praticado no litoral,
alonga a última sílaba nas palavras terminadas em “r” acrescentando, ao final, a letra
“e”. A inflexão faz com que vocábulos como investigador, professor ou navegador, por
exemplo, foneticamente tornem-se “investigadoire”, “professoire” e “navegadoire” na
boca dos locais. A opção por manter a grafia aproximada ao fonema, ao longo do texto,
deve-se à centralidade que tal categoria tem para os carrasqueiros. Assim temos, ao
invés de mar, már[e] transformado em paroxítona.
Mas, máre não é qualquer mar. As águas oceânicas nem sempre são chamadas
de máre pelos carrasqueiros. Quando se referem a esta porção a denominam, mais
comumente, de costa. Por costa os carrasqueiros definem a extensão que vai da região
148
MALINOWSKI: 85, 1984.
163
da Arrábida até Sines. Uma observação no desenho litorâneo revela uma característica
peculiar a esta porção continental: ela é constituída por um corte côncavo que torna
atividade pesqueira em águas oceânicas um pouco menos arriscada quando comparada
àquela desenvolvida no norte do país no qual o continente está em posição mais aberta
para o Atlântico. “Aqui é como um reduto. É costa, mas as águas não são tão agitadas
como no norte”, diz um pescador 149.
Para os carrasqueiros o Sado é o máre. Em uma primeira acepção, a categoria
redefine as qualidades daquilo que os biólogos classificariam como rio ou estuário e
também inclui o movimento, o fluxo e o volume das águas oceânicas. Os pescadores
distinguem o Atlântico próximo [costa] do estuário [águas interiores, rio]. Mas ao
utilizarem a categoria máre associam as duas porções de modo dinâmico e
complementar.
Na prática, os horários de saída e chegada ao porto palafítico são definidos pela
altura do máre, ou seja, são determinados pelo volume de água dentro do estuário. Em
vocabulário náutico, o ponto mais alto que pode ser alcançado pelo mar chama-se
“preia-mar” [aprea-máre], que, para o caso deste estudo, consiste no nível máximo
atingido pela água com a entrada das correntes oceânicas no estuário do Sado. É
justamente neste nível que os pescadores podem entrar e sair do porto. Em oposição há
o “baixa-mar” [baixa-máre] ponto que define o nível mínimo das águas em movimento
vazante para o oceano. Mesmos as caçadeiras – que são embarcações mais leves em uso
na Carrasqueira – não têm autonomia para navegar por todo estuário em condições de
baixa-máre e também estão submetidas ao volume das águas para a entrada e saída do
porto.
149
Por este motivo, de acordo com meus interlocutores da MUTUA dos Pescadores e mesmo nos relatos
dos carrasqueiros e pescadores de outras zonas, a região norte concentra até os dias de hoje o maior índice
de acidentes com barcos pesqueiros quando comparada a outras regiões do país.
164
“Aprea-máre”
“Baixa-máre”. Foto: Andreia F. Dias
Esta dinâmica define também outras atividades. Há implicações fundamentais
nos horários propícios para se largar as redes e para colhê-las, pois o movimento das
espécies aquáticas também é associado ao movimento das águas – conforme será
apresentado mais a frente. O mesmo acontece com a pesca que demanda o uso de
armadilhas. Outra importante influência do nível do máre nas atividades estuarinas
ocorre com na apanha de ameijoas e outros bivalves. Os parceis ficam expostos apenas
por cerca de 3 horas em média nos períodos entre o baixa-máre e o aprea-máre,
obrigando, assim, os apanhadores a organizarem os trabalhos sempre submetidos à
dinâmica das águas.
O máre aparece como uma categoria que define um lugar e um conjunto de
atividades. Quando os carrasqueiros dizem “Já fui ao máre hoje” significa que
desempenharam uma ação de trabalho – que pode ser a pesca com artes, armadilhas ou
apanha – e que houve um deslocamento da terra para outro lugar com qualidades
específicas. É possível identificar, por contraste, as diferenças do trabalho no máre e em
terra. Os dois ambientes são percebidos pelos carrasqueiros como fontes de recursos
desde que haja trabalho empregado tal como ouvi de Minda e de vários outros
moradores, “Cá temos tudo. Nos máres e nas terras. Mas há de se trabalhar, estais a
ver? Nada vem de graça!”. Eles também apontam que há um controle relativo dos dois
ambientes por aqueles que dedicam suas vidas ao trabalho no máre e o trabalho na terra.
Entretanto, máre e terra são governadas por uma lógica que não depende da vontade dos
homens. Possuem, neste sentido, movimentos e temporalidades próprias, tal como
chama a atenção Zé Bacalhau ao falar das hortas: “Cada hortaliçazinha tem seu tempo.
Seu tempo de semear, de esperar, de colher. Temos que ter paciência (que vem apenas
165
com a idade [risos]). Caso venha uma chuva ou coisa assim podemos perder tudo!
Como já aconteceu! Pois então, temos que esperar e fazer tudo outra vez... Isto é
assim”.
Para o máre, ficam as palavras de Zé Sardinha, que mesmo longe da profissão de
pescador há mais de dez anos, argumenta que “Para fazer a vida no máre, Zé[i], tem
que ter uma boa cabeça. Porque o máre ninguém controla. Só Deus. Tudo tem seu
modo de ser no máre. Mas às vezes, tudo muda no máre também: o peixe não vem, vem
uma tempestade, um mau tempo... quem sabe?”
Zé Sardinha pintando o barco do filho
Os relatos apontam que o trabalho no máre é mais rentável financeiramente
quando comparado ao trabalho em terra – mesmo com o investimento em equipamentos
(barcos e apetrechos) e combustível. Entretanto, os carrasqueiros asseguram que a vida
no máre é mais arriscada do que a vida em terra.
“Quando estamos aqui em nossas terrinhas, todos estão vendo
uns aos outros. Se alguém tem problemas, sente-se mal,
desmaia, por exemplo, podemos socorrer. Já no máre, isto
torna-se muito mais difícil. Ah, lá é muito maior e não nos
vemos todo o tempo”. Zé Carioca.
Ou:
“Se o tempo muda e vem uma tempestade, muitas vezes não há
o que fazer. Só rezar! Não tem como atracar o barco. Foi como
aconteceu conosco. Acreditávamos que havia tempo para
retornarmos à Carrasqueira e quando vimos, o barco estava a
encher de água e nós salvamos por pouco. Em terra já é
diferente: quando uma tempestade aproxima-se, não há
166
problema. É parar o serviço e voltar para casa e esperar a chuva
ir embora”. Deolinda.
O deslocamento torna a ida ao máre uma aventura cotidiana. Como é comum
entre pescadores artesanais de diversos lugares, a ideia do encontro com o
“desconhecido” ou com o “inesperado” é parte constituinte do ofício. Ainda que os
praticantes reúnam as melhores condições para a faina – conhecimentos profissionais e
equipamentos em bom estado de conservação e uso – a capacidade de controle sobre o
máre é, ainda assim, muito limitada. As respostas às adversidades repentinas como uma
mudança climática, por exemplo, podem ser inúteis dependendo da intensidade da
mesma ou da localização do barco no momento em que o fenômeno ocorre. Estar no
máre significa não estar em terra. Dito de outro modo significa estar em um ambiente
que, mesmo conhecido por um experiente pescador, reúne, em si, características muito
mais dinâmicas e incontroláveis do que àquelas atribuídas à solidez da terra firme. Ouvi
em Portugal, inúmeras vezes, a mesma máxima que circula entre pescadores brasileiros:
“Máre não tem cabelos” – o que indica a dificuldade de salvamento em situações de
naufrágio ou afogamento, pois, diferente da terra, não há firmeza nos elementos que o
constituem. Significa que não há coisa sólida na qual se agarrar 150.
Joaquim e Rodrigo olhando o máre
Os carrasqueiros identificam o máre como uma fonte de recursos e um lugar de
trabalho. A experiência com este ambiente faz com que conheçam seu funcionamento e
identifiquem os elementos que o compõem. Em suas narrativas o associam muitas vezes
a imagem de um patrão, no sentido de que é ele, o máre, quem determina a forma e o
150
Em Ponta Grossa dos Fidalgos, chama a atenção que mesmo desenvolvendo atividades na Lagoa Feia,
os pescadores também dizem “Mar não tem cabelo”. Há ainda a variação “Água não tem cabelo”, mas é
menos utilizada.
167
tempo de trabalho. Aqui não está em jogo a figura de um patrão convencional,
personificado no proprietário das terras, como nos tempos mais pregressos. E sim, a
representação de um patrão que define, de maneira impessoal e impositiva, suas
próprias regras: o tempo de cheia e da vazante – que determina o tempo das jornadas, a
temperatura do ambiente, a incidência dos ventos e o movimento dos animais.
Minda costuma dizer: “Vamos embora que o patrão já está a nos expulsar!”
toda vez em que ela está apanhando ameijoas em algum parcel e a água começa subir no
aprea-maré. Ou Fátima, que de modo um tanto quanto resignado, relata que “Cá é assim
mesmo. E não há o que fazer, é o máre quem manda. Ele nos manda entrar e sair. Ele é
quem dá tudo. E nós não podemos fazer nada... só aceitar as coisas mesmo”.
Minda e o máre.
Outra importante categoria que constitui o universo da pesca artesanal na
Carrasqueira é maré. Se engana o leitor que identificar, de imediato, máre e maré como
sinônimos. Está última é para os carrasqueiros, bem como para pescadores de outras
regiões de Portugal, uma categoria que remete a uma sequência de atividades ligadas ao
trabalho, seja ele de captura de peixes ou apanha de mariscos. Mas, além disso, define
uma unidade que organiza a passagem do tempo.
Quando os carrasqueiros dizem que fizeram uma maré de ameijoas, eles indicam
que estiveram trabalhando em um parcel na apanha dos bivalves durante o tempo em
que o nível da água permitiu tal empreendimento – enquanto os parceis ficam
descobertos. Entre o baixa-máre e o aprea-máre, os parceis nos quais localizam-se os
bivalves ficam expostos, em média, por três horas. Assim, uma maré não é apenas uma
porção de água e sim uma unidade de tempo associada ao trabalho. A mesma categoria
168
é utilizada para a pesca com redes ou armadilhas: “Fizemos hoje uma boa marezinha de
chocos!”
Zé Carioca
É possível fazer até mais de uma maré em cada 24h. A atividade, entretanto,
depende do escoamento da água e da disposição física dos pescadores.
“Eu, com 50 anos de idade, apenas consigo fazer uma maré de
ameijoas por dia. A malta mais nova – mas a malta mais nova que
é trabalhadora! – faz até três marés. Ganha-se dinheiro, ora, mas
estraga-se o corpo todo...” Alexandre.
A diferença entre uma maré de bivalves e outra de peixes é que a primeira é
definida pelo tempo gasto na apanha em cada parcel e a segunda pelo tempo de saída e
chegada da pesca – independente da quantidade de redes, armadilhas ou lugares
explorados ao longo do estuário.
É muito comum que os pescadores façam as duas marés de modo associado.
Depois de largarem as redes em locais específicos – normalmente a procura de chocos
ou linguados – homens e mulheres seguem até os parceis descobertos pela água e
trabalham “o tanto quanto o máre permitir” na apanha de ameijoas. Quando os parceis
desaparecem no prea-máre eles retornam para os locais nos quais deixaram suas redes e
as colhem. Os parceis são localmente chamados de cabeças, cabeços ou simplesmente
máres151.
Entretanto, diferente da pesca com uso de redes ou armadilhas, a apanha
depende de certas condições hidrológicas para ser realizada. Em períodos de maré
151
Mais a frente serão apresentados dados mais detalhados sobre estas categorias.
169
morta, que acontecem duas vezes em cada mês lunar – ou seja, durante os quatro ciclos
cumpridos pela lua –, não é possível acessar os parceis. Isto porque, como dizem os
pescadores, “a água corre pouco” e os parceis permanecem cobertos pela água o
suficiente para impedir o trabalho. O mesmo período também não é tão propício para a
pesca com o uso de redes, pois, com a água “mais parada o peixe movimenta-se pouco
e não vai até as redes”. Mesmo assim, com a maré morta, nas temporadas de choco, os
pescadores não deixam de ir ao máre, ainda que não possam ir às ameijoas. Já nos
períodos de maré viva, influenciada pela lua nos quadrantes nova e cheia, o movimento
das águas é mais intenso e com isso, de acordo com os pescadores, os peixes “andam
mais” tornando a captura um pouco mais facilitada e a maior parte dos parceis
descobertos durante o baixa-máre.
Também é costume perguntar para os outros pescadores como foi a maré como
no diálogo a seguir:
“- Como foi a maré, compadre?
-Pequenina. Mas é o que há.
-Pequenina quanto?
-Ah... uns 50 quilos de ameijoas, da grada. Não tinha muita
coisa para lá. Vai melhorar!”
Assim, a maré boa significa que a apanha ou a pesca foram bem sucedidas. Isto
ocorre quando as capturas conjugam – para o caso dos peixes e moluscos, por exemplo
– as espécies mais valorizadas, como o choco, o robalo ou o linguado, com quantidades
consideradas rentáveis.
“Não adianta fazer uma maré e trazer 100 quilos de
encharrocos ou garrentos [similar à tainha brasileira e com
pouco valor de mercado]. Não vamos vender nada, vamos ter
trabalho e no máximo vamos distribuí-los entre nossos
conhecidos. E o dinheirinho que é bom? Nadinha, nadinha!”
Há outros usos das categorias máre e maré que serão apresentados ao longo da
etnografia sobre a pesca artesanal desenvolvida no Rio Sado. Por hora, é importante
assinalar que, em seus usos mais comuns, máre indica um lugar com qualidades
170
específicas e maré indica uma unidade de tempo associada ao trabalho de apanha e
captura.
10.3 – A apanha.
Em praticamente toda costa portuguesa e em suas águas interiores há atividades
de “apanha”. Trata-se do trabalho corporal desempenhado por homens e mulheres em
idades variadas – na maioria dos casos realizados com algum tipo de ferramenta – que
tem por objetivo remover animais marinhos que habitam fundos arenosos ou de lama.
No estuário do Sado as populações locais se dedicam à apanha de bivalves como as
ameijoas, as lambujinhas, os berbigões, os canivetes, as ostras e os búzios entre
outros152. Tais mariscos são muito utilizados na culinária lusa e alguns deles, como as
amêijoas e as ostras, encontram-se entre os mais apreciados frutos do mar na Europa.
Em determinadas épocas do ano, mais precisamente entre junho e agosto, os habitantes
da região do Sado dedicam-se também à apanha de minhocas – poliquetas utilizadas
como isca que possuem valores considerados altos para compra e venda no mercado da
pesca esportiva ou lúdica.
Na maior parte dos povoados, homens e mulheres desempenham a atividade de
apanha associada a outras, como a pesca, a agricultura ou mesmo participando do setor
de serviços ligadas ao turismo e aos distritos mais urbanizados. A apanha, como é
localmente chamada, é classificada pelo estado como Marisqueio e regulamentada
através da Direção Geral de Pescas e Aquicultura (DGPA), órgão responsável por emitir
o Cartão de Mariscador 153.
152
A etnografia apresenta as classificações utilizadas pelos pescadores locais. As taxonomias científicas
definem, para o grupo dos bivalves, o seguinte: amêijoa-macha ou ‘da cabeça’ (Venerupis pullastra),
amêijoa-japônica (Ruditapes philippinarum), lambujinha (Scrobricularia plana), berbigão (Cerastoderma
edule), canivete (Solen spp e Ensis spp), ostras (Crassotrea gigas), búzios (Bolinus brandaris). E para o
grupo das poliquetas, a minhoca (Marphysa sanguinea). Cf: FRANCA, MARTINS & CARNEIRO, 2001.
153
A apanha de bivalves é regulamentada no Decreto n. 11/80 de 07 de maio e a apanha de poliquetas é
regulamentada pela Portaria n. 254/79 de 31 de maio. Cf. Anexos “5” e “6”, respectivamente.
171
Ostras e canivetes
Ameijoas
No caso dos bivalves, por exemplo, a relativa abundância da maior parte dos
animais conjugada com o baixo investimento em equipamentos para realizar a atividade
– certos tipos de apanha não exigem nem mesmo ferramentas – atraem, além dos
sitiantes das regiões, uma mão de obra que dedica-se sazonalmente ao trabalho
mobilizada por diversos fatores, tais como, desemprego temporário, aumento na
demanda pelos mariscos em período de festa ou pelo simples complemento da renda
familiar 154.
Em minha estadia entre os carrasqueiros tive oportunidade de acompanhar suas
atividades de apanha realizadas durante os períodos de inverno e primavera nos anos de
2010/11. Não apenas acompanhei meus interlocutores como também, incentivado por
eles, participei das atividades. A etnografia a seguir textualiza alguns destes momentos
154
De acordo com os estudos desenvolvidos pelo IPIMAR, “O poder de recuperação dos bancos de
moluscos bivalves, em repouso, consequência do rápido crescimento dos indivíduos destas comunidades,
permite que esta actividade suporte, aparentemente, a forte pressão humana”. Ver FRANCA, MARTINS
& CARNEIRO: 2001, 66.
172
nos quais o etnógrafo trocou, muitas vezes, a caderneta de campo e a máquina
fotográfica pelo sacho, na apanha de ameijoas e pelas bisnagas de sal – na apanha de
canivetes.
10.4 – A apanha de canivetes.
Na Carrasqueira, como já foi descrito, as mulheres são camaradas dos homens
no máre. Desempenham, assim, funções de modo autônomo e desenvolto que,
comumente, na maior parte dos povoados de pescadores artesanais, quer no Brasil, quer
em Portugal, são considerados de responsabilidade masculina. Ao conhecer, ainda no
final de 2010, o casal Zé Carioca e Tibía, me aproximei mais das questões que
envolvem esta forma de cooperação.
Numa manhã fria de janeiro de 2011, como de costume, acordei cedo e resolvi
caminhar até o porto palafítico. A temporada do choco só começaria em fevereiro, mas
os carrasqueiros, naquela altura, já estavam ocupados com a pintura e reparo das
embarcações, conserto dos motores, bem como dos apetrechos de pesca. Próximo ao
porto ou a lota era sempre mais fácil iniciar uma conversa com pescadores.
Chamou minha atenção uma dupla que trabalhava no reparo de um grande barco
azul em uma das margens do Sado. De longe pareciam dois homens. Mas, ao me
aproximar reparei que um deles era, na verdade, uma mulher. Tibía estava vestida de
calça jeans, boné e uma camisa justa. Assim como as outras mulheres da Carrasqueira,
seu biotipo é forte, acentuando braços e troncos de alguém que desempenha trabalhos
manuais que exigem muito esforço corporal.
O casal trabalhava na pintura e vedação do barco de Mariana – irmã de Tibía. Ao
mesmo tempo, estavam reparando o barco de outro carrasqueiro. Na dupla, quem dava a
173
ordem era a mulher. No momento que cheguei, eles estavam aplicando breu155 no fundo
de um das embarcações: “Zé [Carioca], cadê o ‘lúmen’? Pega lá, homem! Vamos
trabalhar! Cadê o isqueiro?” O marido, ás vezes resmungava, mas seguia atentamente
as instruções de Tibía enquanto fumava um cigarro.
“Sabes por que ela faz quase todo o serviço? Porque ela é muito
melhor do eu nisto, sabe? Tibía nasceu aqui e foi criada nestes
máres que estais a ver. Ela e as irmãs. Ela aprendeu com o pai a
arte da carpintaria. Desde pequena tornou-se pescadora. É muito
boa em trabalhos manuais, com madeiras e estas coisas. É sim...”
E a mulher completa:
“Fui eu quem o trouxe para cá (risos). O coloquei para trabalhar no
máre comigo logo quando nos casamos, não é Zé?”.
Zé Carioca é natural do Carvalhal. Veio morar na Carrasqueira ainda menino
Até casar-se com Tibía nunca tinha pescado, mas desempenhava várias ocupações, a
maior parte delas ligadas à área da construção civil. A camaradagem, como na maior
parte das famílias locais, foi estabelecida a partir do casamento e durava até então. Ao
longo da conversa, Carioca explicou as preferências do casal em relação aos recursos da
apanha e seu ponto de vista sobre o mercado:
“Preferimos apanhar as ostras porque rende mais um dinheirinho e
temos bons compradores. Quando não há ostras, vamos às
ameijoas ou aos canivetes mesmo. Estes sim dão todo ano!
Quando não há aqui na frente, vamos à procura de outros sítios,
pronto! O problema é que há muita malta na apanha e o valor do
quilo torna-se mais baixo. Cá temos que fazer um pouco de tudo.”
O pescador me levou próximo às caixas de ostras que tinham apanhado no dia
anterior e que estavam ali, nas margens do Sado esperando, ainda vivas, para serem
vendidas. Com orgulho, Zé Carioca disse: “Temos perto de 90 quilos ai. A venda já esta
acertadinha, ora! (risos)”.
155
Betume artificial composto de sebo, pez, resina e outros ingredientes, usado para dar acabamento e
cobrir costuras nos tabuados das embarcações.
174
Zé Carioca e Tibía
A habilidade de Tibía com as ferramentas usadas no reparo dos barcos
impressionava. Zé Carioca desempenhava claramente a função de um assistente. Já
Tibía, muito concentrada, falava pouco enquanto trabalhava. O homem conversava todo
o tempo. Pareceu, à primeira vista, interessado nos assuntos sobre a pesca e a vida dos
pescadores carrasqueiros. Mas, quando o assunto aprofundava, seja sobre o regime
hidrológico, seja sobre o elenco de espécies encontradas no estuário, por exemplo, o
homem dizia: “Ah isso é ela quem sabe...”
Depois deste dia, tive vários encontros com Zé Carioca e Tibía. No porto, na
casa deles ou mesmo nos cafés. Os dois sempre mostraram muito interesse pelas
conversas e pelos exercícios que propus. Em uma destas ocasiões, ainda na primeira
semana que nos conhecemos Tibía elaborou em conjunto com sua irmã Mariana um
mapa dos máres. E foi justamente depois desta atividade, ali mesmo nas margens do
Sado, que Zé Carioca me surpreendeu com um instigante convite: “queres ir às ostras
conosco amanhã?”. Aceitei de pronto o convite. Seria aquela minha primeira chance de
observar os carrasqueiros durante uma atividade de apanha. Imaginei que acompanhálos, in loco, no exercício da profissão me aproximaria, cada vez mais, deles – como
aconteceu ao longo dos anos de pesquisa em Ponta Grossa dos Fidalgos.
No outro dia, por volta das 7:00h, conforme o combinado, segui até o Café da
Joana. O estabelecimento é o único que abre as portas ainda de madrugada. Localiza-se
bem no centro da Carrasqueira. Joana, a proprietária – uma mulher forte e simpática –
serve café, sanduiches [sandes], bolos e outras iguarias, para pescadores e trabalhadores
antes de iniciarem suas jornadas laborais. Aproveitei para tomar um café quente antes
de meus interlocutores chegarem, pois o termômetro marcava dois graus centígrados.
175
Com quase meia hora de atraso, o casal chegou ao Café. Zé Carioca entrou no
recinto desculpando-se: “a mulher quis dormir mais...” Ao tomar um café, como
sempre faz antes de ir ao máre, Carioca comenta a preocupação com a altura da água.
“O baixa-máre é cedo hoje. Se calhar, não conseguiremos atravessar até as ostras!”
Ao chegarmos ao porto e o casal constatou a impossibilidade de atravessar até o
ponto no qual as ostras estavam. Só neste momento eu entendi que eles não iam colher
as ostras e sim pegar algumas caixas de plástico onde os mariscos estavam alocados. A
apanha tinha sido realizada dois dias antes. A opção por deixar as caixas no máre era
para fazer com que as ostras ficassem vivas até o momento da venda. Sem poder
navegar até que a maré enchesse novamente, Tibía reelaborou os planos: “Vamos aos
canivetes, pois! Mais tarde voltamos e pegamos estas ostras!”.
Após a determinação da mulher, entramos no carro. Um pouco mais
comunicativa do que de costume ela emendou:
“Está vendo Zé, vida de pescador é assim. Somos reféns do máre.
Se ele não quiser, não podemos entrar. Não é fácil. Aí, temos que
criar alternativas. Ficar parados é que não podemos!”
A ideia era alcançar um bom parcel de canivetes na região conhecida como
Caldeira de Tróia. O caminho pela estrada é o mesmo para quem segue até Tróia.
Durante o trajeto, Zé Carioca apontava até onde iam as terras do Espírito Santo – grupo
econômico que mantém a propriedade das terras de parte desta região – e de Belmiro de
Azevedo, empresário de destaque em Portugal, proprietário de uma rede de
hipermercados, uma empresa de telecomunicações e um jornal. De acordo com os
pescadores, o empresário tem sido responsável pela transformação de Tróia em um
novo polo turístico de luxo e vem incentivando urbanização da região bem como a
construção de hotéis e resorts.
“Antigamente, podíamos parcar [estacionar] o carro em qualquer lugar aqui.
Agora, olha como isto é!” argumenta Zé Carioca com de modo veemente. É possível
entender a queixa do pescador. Toda a estrada tem, ao longo de todo o acostamento,
pequenas estacas de madeira em formato cilíndrico que impedem o estacionamento de
176
qualquer automóvel156. A obra faz parte das transformações empreendidas na região
após os investimentos do empresário Belmiro de Azevedo. Meus interlocutores avaliam
positivamente as melhorias no desenho e sinalização da estrada, mas reclamam do
excesso de controle de certos espaços que “antigamente” utilizavam sem
constrangimentos157.
Caldeira de Tróia
Tibía encontrou um lugar onde algumas destas estacas tinham sido arrancadas. E
ela comentou: “Ah, mas a malta arranca as estacas. Mas isto não significa que o parcel
seja aqui. Aqui é só para parcar. Lá dentro ainda vamos andar muito [risos]”. Com o
carro estacionado, nós três descarregamos botas, baldes, e uma sacola com bisnagas de
sal. O material era o suficiente para a apanha dos canivetes. O sacho seria utilizado
apenas caso fossem encontradas ameijoas neste parcel – embora não fosse este o
objetivo principal.
156
A exceção de motocicletas.
“Antigamente”, neste caso, é para marcar o período de tempo antes das reformas empreendidas pelo
grupo de Belmiro de Azevedo o que remonta os últimos quinze anos aproximadamente.
157
177
Depois de atravessarmos um extenso pinheiral, chegamos, enfim, a Caldeira de
Tróia. Trata-se de um grande parcel que fica exposto em condição de baixa-máre. Do
Sado sobra apenas um filete de água que pode ser facilmente ultrapassado nas primeiras
horas da maré seca. O resto é areia. A paisagem também é composta por uma espécie de
cemitério de embarcações. Algumas semelhantes aos modelos utilizados na pesca
artesanal local e outras notadamente para uso de lazer. Zé Carioca explicou que, no caso
dos barcos de passeio, muitos proprietários não conseguiam mais pagar os valores
cobrados pelas marinas locais e por isso deixavam as embarcações “morrerem”
naquelas margens – já que muitas não tinham mais valor de mercado.
O lugar é considerado um bom lugar para a apanha de canivetes. Ao longo de
todo o parcel avistei homens e mulheres trabalhando. O casal relatou que aquelas
pessoas eram “da região”, ou seja, residiam em Setúbal, Faralhão, Comporta e outras
localidades próximas. Mas, nos meses de verão, parceis como este são explorados por
pessoas de lugares mais distantes. Famílias inteiras vêm em busca dos bivalves.
O canivete é um bivalve fino e longo que lembra uma caneta ou um canivete
mesmo. Os maiores exemplares chegam a 10 cm. A casca esconde o “bicho”, tal como
chamado localmente. Vivem enterrados na areia. A técnica para capturá-los é
relativamente simples: basta borrifar sal nos buraquinhos feitos por eles e que ficam
espalhados na superfície do parcel. O sal irrita os animais e os obriga a subir. No
momento da emersão, são capturados. Tais buraquinhos são chamados pelos
carrasqueiros de olhos.
O que parece simples na descrição não o é na prática. Os olhos, facilmente
avistados na areia, nem sempre são obra dos canivetes – podem ter sido feitos por outros
organismos. Ou seja, um indivíduo com pouca competência para a apanha perde muito
tempo procurando os lugares nos quais os canivetes realmente estão além de desperdiçar
grande quantidade de sal.
Assim como a pesca, a apanha é uma atividade que requer concentração e
paciência. Em geral, é desenvolvida em silêncio mesmo que realizada em casal ou em
grupos. O esforço físico é considerado grande mesmo por aqueles que costumeiramente
a fazem. É preciso passar a maior parte do tempo com o corpo em pé, inclinado para
frente e olhando para a areia a maior parte do tempo com o objetivo de identificar os
178
olhos. Como existem olhos muitos próximos uns dos outros, os apanhadores borrifam
sal em vários deles seguidamente até que os canivetes alcancem a superfície.
Zé Carioca e Tibía apanhando canivetes
Neste momento, o apanhador tem que ser rápido. Quando aponta na superfície
de areia, o canivete não demora mais que cinco segundos, em média, para se enterrar
novamente. “Não adianta nem colocar mais sal que agora ele não sai daí por nada!Ele
já sabe que queremos pegá-lo”, explicou-me Zé Carioca. O momento da apanha
caracteriza-se, assim, por uma coordenação de procedimentos: borrifar o sal nos olhos,
esperar os canivetes subirem, apanhá-los com as mãos, alocá-los no balde. Tais
procedimentos são repetidos durante todo o tempo que o máre permitir, ou seja, até o
momento em que os parceis estejam descobertos pela água.
Enquanto Tibía trabalhava sozinha do outro lado do parcel, Zé Carioca me
explicava com detalhes as técnicas de apanha. Muito paciente e didático, o pescador
realizava o trabalho notadamente em ritmo mais lento para que eu pudesse acompanhálo. Enquanto apanhava, me mostrava a diferença entre os olhos espalhados pela areia.
179
“Os olhos dos canivetes estão sempre juntos e tem tamanho quase sempre igual, Zé.
Olha aqui ó”, e apontava.
Nas primeiras investidas eu tive muita dificuldade na apanha. Por um lado pela
posição corporal que exigia muito esforço nos quadris, pernas e coluna. Por outro,
porque o meu olhar de neófito não identificava com precisão os buraquinhos feitos
pelos canivetes e me fazia perder muito tempo na procura pelos olhos certos. Isso, sem
contar minha inabilidade no manejo da bisnaga de sal – ora borrifava muito, ora
borrifava pouco.
Zé Carioca observava minha dificuldade e argumentava que era apena uma
questão de treino “como tudo na vida”. Como incentivo, lembrou que ele próprio não
foi criado no máre, mas o tempo ao qual se dedicava as atividades de pesca e apanha já
o faziam conhecer os procedimentos. E ele realmente mostrava certa desenvoltura para
tal coisa, estabelecendo associações entre elementos e tecendo comentário sobre o
comportamento dos canivetes:
“Para saber onde estão [os canivetes] deves olhar com cuidado para
saber em que direção a água está correndo. Sim, porque são como
peixes, ora! Vivem do movimento da água, os safados! [risos]. Olha: a
esta hora já entramos em aprea-máre, então a água corre de lá pra cá.
Eles estão cá então! Eles acompanham o movimento. Não nasci com
todas estas informações, estais a ver, mas estive sempre a aprender
com o tempo e com a camarada!”
O resultado de minhas investidas foi parco se comparado a de meus
interlocutores. Quando o parcel começou a ser coberto e a água, na maior parte dele, já
chegava em nossas canelas, Tibía gritou de longe: “vamos embora!”. A mulher, que
trabalhou a maior parte do tempo afastada de nós tinha dois baldes cheios de mariscos
que pesavam, juntos, aproximadamente, 8 quilos. Zé Carioca, que dividiu sua atenção
entre a apanha e as explicações ao etnógrafo, encheu apenas um. De minha parte, um
balde com menos de um quilo era o meu total. Para me animar, Carioca disse: “Foste
bem Zé! Já garantiu o jantar! Isto, mais tarde, com uma cervejinha... [risos]”
180
Resultado de minha maré
Tibía, no caminho de volta, ainda procurou algumas ameijoas. Mas, de acordo
com o casal, há tempos que neste parcel só se encontram canivetes. Mesmo assim, os
dois não consideraram a máre boa.
“Uma boa maré de canivetes deve ter pra ai mais de dez quilos... Cá
não houve muitos. Chegamos um pouco tarde e a malta [que já estava
lá] já havia apanhado a maioria. Ou, eles [os canivetes] não
apareceram todos hoje, vai saber... Mas isto é assim: um dia
apanhamos mais outro dia apanhamos menos... E vamos em frente,
não é? Esta é a vida! Agora, vamos as ostras!”.
Antes de chegarmos ao carro, Zé Carioca deu algumas dicas de como preparar os
canivetes. Disse que o marisco ficava muito bom quando preparado com massa
[macarrão], arroz, ou mesmo na brasa. A quantidade total de minha apanha era o
suficiente para uma porção individual em qualquer uma das modalidades. A conversa
inclinada para a gastronomia dos canivetes, associada ao esforço físico da atividade e ao
horário do almoço que se aproximava, me abriu o apetite. Entretanto, o casal assinalou:
“Ainda não paramos de trabalhar! Temos que ir às ostras!”
Chegamos à Carrasqueira por volta de meio dia. Tibía disse que eu poderia ir
para casa almoçar e que poderíamos continuar as conversas na parte da tarde. Antes,
eles ainda tinham que pegar as caixas de ostras que estavam alocadas em um ponto do
Sado próximo ao Porto Palafítico. Eu insisti em acompanhá-los. E foi assim. A metade
do primeiro dia de trabalho consistia, ainda, em chegar até as caixas de ostras utilizando
um pequeno barco à remos. Ajudei meus interlocutores na tarefa. Os mariscos já tinham
destino: um comprador que, segundo Zé Carioca, os atravessava para a Espanha.
181
De tarde o casal iria continuar os reparos na embarcação. No mesmo lugar onde
eu os havia encontrado a primeira vez. Disse para eles que voltaria mais tarde para
acompanhar os consertos. E voltei. Mas antes, fui para casa pensando: “como esta gente
trabalha sem parar”. Não tinha ideia ainda, do que estava por vir.
10.5 – A apanha de ameijoas no Tejo.
Em fevereiro de 2011, optei por alugar a casa “de cima” de Alexandre. Nos dois
meses anteriores eu havia me instalado em um quarto com banheiro que se localizava no
andar térreo de sua vivenda. A casa de cima era normalmente arrendada para famílias de
turistas ou grupos de trabalhadores, pois era ampla, possuía três cômodos e uma
cozinha. Depois de uma negociação que levou em conta minha permanência na baixa
temporada (inverno e primavera) e a condição de estar a maior parte do tempo sozinho
(o que diminui os gastos totais com energia e água), acertei com meu “senhorio” um
valor ajustado as minhas possibilidades orçamentárias.
A partir de então, substitui as incursões semanais na Carrasqueira pela estadia
full time158 no povoado. Melhor instalado, a minha nova morada reunia boas condições
para que eu desempenhasse com mais afinco a pesquisa empírica. Fiz questão de dizer a
todos os carrasqueiros com os quais já travava contato que, a partir de então, eu morava
lá. Seguindo as recomendações mais elementares da Antropologia – extremamente útil
em casos de pesquisa como o meu –, acreditei que, residindo na Carrasqueira, poderia
intensificar o trabalho de campo e, ao mesmo tempo, ganhar mais rapidamente a adesão
dos pescadores e moradores em geral ao meu projeto.
Entretanto, há coisas na relação entre o etnógrafo e seus interlocutores que não
muda quase nunca. Coisas que não dependem de avanços metodológicos e teóricos da
disciplina. Percebi várias vezes o sentimento de desconfiança e suspeição de alguns
carrasqueiros acerca da minha presença e sobre os reais objetivos de meu trabalho. O
que um brasileiro estaria fazendo ali, longe de casa e da família? Que tipo de pesquisa
[ou investigação] era esta na qual o sujeito pergunta coisas sobre a pesca, sobre a vida
158
Me estabeleci na casa entre os meses de fevereiro e junho. O valor mensal do aluguel era de 250,00
Euros incluindo energia e água.
182
das pessoas e tira fotografias? Era óbvio que minha presença na Carrasqueira, pelo
menos nos meses iniciais, causava estranheza e dúvidas entre meus interlocutores.
Pensei por um tempo que a estranheza talvez fosse pelo fato de ter sido o
primeiro homem brasileiro na localidade que não era turista e nem trabalhador no setor
de serviços ou da construção civil159. Outra coisa que os intrigava era o formato da
pesquisa. Os carrasqueiros estavam muito acostumados a receber redes de televisão – de
Portugal e de outros países europeus – em busca de informações sobre a vida social do
povoado ou sobre o trabalho das mulheres no máre. Também recebiam pesquisadores de
universidades ou órgãos do Estado, mas, de acordo com os relatos, os procedimentos
metodológicos resumiam-se a aplicação de questionários e estadias demasiado curtas
por parte dos profissionais.
O ceticismo sobre a presença do etnógrafo pode não ter desaparecido por
completo. Mas, certamente, muitas das impressões dos carrasqueiros foram mudando ao
longo do trabalho de campo. Sobretudo entre o meu grupo de interlocutores mais
próximos – àqueles com os quais tive mais encontros e com os quais estive mais tempo
no máre.
Acompanhar e trabalhar com os carrasqueiros no máre foi fundamental para a
etnografia e para o estreitamento das relações pessoais. Alexandre, por exemplo, ainda
em 2010, julgou que eu não fosse capaz de acompanhar os ritmos de trabalho no máre –
quer na pesca, quer na apanha. Nos dois primeiros meses de pesquisa, insisti com o
pescador para acompanhá-lo na apanha de ameijoas – já que a temporada do choco só
começaria em fevereiro. Ele, de modo muito habilidoso e gentil, me dizia que o trabalho
começava muito cedo, que ainda estava muito frio, que era longe, que não “pagava a
pena” [valia a pena] observar a atividade durante o inverno. Naquele momento, não
consegui convencê-lo de que eu estava acostumado com a dureza e os ritmos da vida
pesqueira por conta dos anos de pesquisa na Lagoa Feia. E nem que, para o tipo de
159
A região da península de Setubal, na qual se encontra a Carrasqueira, tem recebido nos últimos 10
anos imigrantes brasileiros, gauleses, africanos e leste europeu em busca de trabalho na construção civil
animada pelo crescimento do turismo. Alguns também ocupam postos subalternos ligados às atividades
portuárias e de serviços. Me aproximei nos últimos meses da pesquisa de um grupo de jovens mineiros
que moravam na Carrasqueira e trabalhavam em obras em Setúbal, Tróia e na própria localidade. Dois
deles já estavam em Portugal há mais de quatro anos e não pensavam em voltar para o Brasil.
183
estudo que eu me propunha, era fundamental acompanhar os pescadores mesmo em
condições de trabalho pouco favoráveis.
Não foi por acaso que somente depois de minha estadia “definitiva” na
Carrasqueira – e depois de muita insistência – que meu senhorio e interlocutor fez o
convite que tanto esperava: “Zé[i], queres ir às ameijoas conosco amanhã? Vamos
abalar [partir] bastante cedo!”
***
A apanha de ameijoas, em geral, é realizada pelos carrasqueiros no estuário do
Sado. Há aqueles que só se dedicam à apanha e não praticam pesca com uso de redes ou
armadilhas. Mas, a maioria das famílias de pescadores, conjuga as atividades de captura
com a apanha, desempenhando as mesmas de modo associado durante o trabalho no
máre. Minha primeira incursão na atividade de apanha destes mariscos, entretanto, não
aconteceu no Sado. Foi no estuário do Tejo, mais precisamente na região de Montijo,
onde acompanhei o trabalho de meus interlocures e, além disso, participei da apanha
com eles.
O mês de fevereiro estava muito frio e chuvoso. Por isso, a primeira
preocupação de Alexandre, ao me convidar para ir às ameijoas, foi com minha
vestimenta. Na véspera de nossa ida, experimentei botas de cano longo, casaco de
oleado e, é claro, uma peça que me acompanharia em todas as incursões marítimas dali
em diante, o “casaco de pescador” – uma jaqueta flanelada que suporta bem as baixas
temperaturas às quais os pescadores são submetidos durante a faina nos meses frios e
mesmo na primavera.
Antes de ir dormir, Alexandre bateu a porta de minha casa para confirmar nossa
ida e os horários: “Então é isto, Zé[i]! Abalamos daqui às 3:30h. Chegamos no Montijo
por volta das 5:00h. O baixa-máre amanhã é às 6:00h”.
Era mais trabalhoso ir ao Montijo do que apanhar ameijoas dentro do próprio
estuário do Sado. Mas, a opção pelo Tejo era justificada pela quantidade e qualidade dos
mariscos encontrados lá. Os parceis reuniam grande quantidade de ameijoas do tipo
“macha” e “japônica”. A região fica a cerca de 65 quilômetros de distância da
Carrasqueira. É preciso tomar a estrada até Alcácer do Sal e seguir rumo à Setubal.
184
Montijo é um pequeno distrito que se localiza ao pé da Ponte Vasco da Gama que liga
esta porção de Setúbal até Lisboa. Homens e mulheres de várias regiões do país se
dedicam à apanha nesta parte do estuário do Tejo160. A concentração da atividade
catalisa, nos períodos propícios para a apanha, vários compradores de marisco fresco
advindos de vários lugares Portugal.
“Só paga a pena ir até o Montijo se forem mais de duas pessoas.
Assim dividimos o gasóleo e fica melhor, podemos ganhar mais com a
venda das ameijoas. Tenho feito há algum tempo as marés com meu
irmão Manuel. Às vezes, outras pessoas nos acompanham. Deolinda,
quando não está a sofrer da coluna ou quando não está a trabalhar no
hotel, também vai. Outras vezes, vai minha outra irmã. O bom é que
vendemos tudo lá mesmo. Quase sempre...” Alexandre.
Chegar até o Montijo, de carro, é só o início. É preciso caminhar por cerca de
quatro quilômetros, geralmente com água entre as canelas e o joelho, para alcançar um
pequeno barco de fibra que, finalmente, nos transporta até os parceis. O cálculo de todo
o trajeto é feito sempre de acordo com a altura das águas oceânicas. É preciso estar em
cima dos parceis antes do baixa-máre para otimizar o tempo gasto na apanha. Por isso,
os horários de saída e chegada e mesmo o tempo de exploração dos cabeços varia
diariamente.
Tive a oportunidade de acompanhar seis marés seguidas realizadas por
Alexandre e Manuel na penúltima semana de fevereiro. A medida equivale a seis dias
de trabalho ininterruptos indo para o Montijo de madrugada e retornando à Carrasqueira
após a apanha e a venda. Em alguns destes dias estiveram conosco Deolinda, Danúbio –
amigo de Alexandre e habitante de um distrito próximo – e Carlinhos, morador da
Carrasqueira. Ao calcular o tempo gasto na estrada, contabilizando a ida e a volta, a
chegada e saída dos parceis, a apanha e a venda, o período dedicado ao trabalho chega
próximo às 11 horas por dia.
A primeira das marés foi certamente a mais difícil. As condições climáticas
tornavam o trabalho muito mais complicado. O frio que caracteriza esta época do ano
no Atlântico Norte tinha a companhia de muito vento e chuva. Alexandre pensou
mesmo em desistir da maré naquele dia:
160
A maioria deles sem licença formal para desempenhar a atividade de apanha.
185
“Semana passada ventou tanto que perdemos nosso barco. Quando
chegamos para fazer nossa marezinha tivemos que procurá-lo. Estava
longe, sujo e cheio de água, embaixo de um dos pilares da ponte. O
vento soprou e levou tudo. O nosso barquito e os de outros
pescadores. Perdemos o motor. Agora temos que comprar outro. E
tome a trabalhar! É um gasto atrás do outro! Não pára! É a vida de
pescador!”
O mau tempo preocupava Alexandre e Manuel. Além de dificultar a apanha, a
perda do motor fazia com que os homens tivessem que remar, das margens do Montijo,
até os parceis. Só no fim destas marés os irmãos adquiriram outro motor. Tudo isso
tornava o trabalho muito mais exaustivo. De meu lado, a chuva e o vento não
permitiram que eu carregasse o caderno de campo ou a máquina fotográfica.
Inicialmente, pensei que iria apenas observar meus interlocutores. Sem instrumentos de
etnógrafo, não me restava muita opção: apanhar as ameijoas junto com eles.
Depois de remarmos até o parcel, Alexandre e Manuel caminharam para
diferentes direções e se afastaram. Fiquei próximo ao Danúbio que, para minha
surpresa, apesar ter me conhecido naquele mesmo dia, teve iniciativa de me explicar
com cuidado, como se dava a apanha:
“Tu deves olhar para baixo todo o tempo. E ver onde elas estão. Há
muitas ostras e casas de mariscos [cascalho]. Isto pode confundir, ás
vezes. Olhe lá, onde você está vendo a ameijoa?”
O teste era inteligente. Um olho treinado identifica facilmente a ameijoa que
deve ser apanhada no meio de todo aquele conjunto de cascalho. Danúbio me
questionava. Aguardava meu posicionamento e depois me indicava precisamente onde
estava o marisco. Ele desempenhava toda a ação, aparentemente, sem dificuldades. Um
leigo, como eu, só observaria uma extensão de areia coberta por mariscos quebrados ou
mortos, pedaços de ostras, berbigões, conchas etc. Já o olhar experimentado de Danúbio
distinguia, dentro daquele mosaico de cores e formas, exatamente a localização de seu
alvo.
186
Apanha em dia de chuva
Identificar os mariscos, entretanto, não é o suficiente. Até é possível fazer uma
boa maré de ameijoas ao lanço – ou seja, apanhar somente os mariscos que estão, por
qualquer motivo, desenterrados. Mas, o trabalho de apanha consiste mesmo em cavar,
utilizando o sacho, a superfície dos parceis, até o ponto no qual as ameijoas estão. O
procedimento combina força física, agilidade e rapidez dos movimentos.
Assim como na apanha dos canivetes, homens e mulheres passam a maior parte
do tempo com os pés no chão e o corpo inclinado para frente em ângulo de 90 graus. A
187
ação de cavar também tem sua especificidade. Com o braço esticado, o apanhador
segura o instrumento de modo firme e o finca na areia. Uma vez enterrado, é preciso
puxar para trás a quantidade de areia fatiada pelo sacho. As ameijoas, em geral, estão a
cinco centímetros da superfície. Mas, esta profundidade pode variar de acordo com as
características dos cabeços – areia grossa, areia fina ou areia combinada com lama – e
com a intensidade e o fluxo das águas que arrastam mais ou menos os sedimentos.
Ao jogar a areia para trás em busca dos mariscos, o apanhador parece mais
penteá-la. A escavação é repetida de modo praticamente ininterrupto. Em uma mão o
sacho empunhado com força e rapidez penteia a areia. E, de modo paralelo, a outra mão
seleciona os mariscos descobertos e aloca-os no balde.
“Temos os olhos e os ouvidos treinados. Para cada puxada [com o
sacho] eu escuto quando ele bate nas ameijoas boas. Sei qual o
barulho que faz. Sei a diferença do barulho do sacho nas ameijoas
boas, vivas, e quando ele bate nas ostras ou nos mariscos mortos. É
preciso ter esta ciência!” Alexandre.
Nas marés seguintes, palco de dias ensolarados e sem vento, decidi me dedicar
com afinco à apanha. A câmera fotográfica e o caderno de notas praticamente não
saíram dos meus bolsos. Como um aprendiz, confrontei as explicações que havia
recebido de Danúbio na primeira maré, com o trabalho feito na prática. Era um modo de
testar teoria e, ao mesmo tempo, submeter meu corpo aos mesmos esforços suportados
pelos pescadores. Sentia-me fisicamente bem para participar da apanha. A posição era,
de fato, incômoda, mas sinceramente não sofri com dores ou incômodos musculares.
Entretanto, os resultados das minhas investidas, quando comparados aos de Alexandre e
Manuel, eram ínfimos. Enquanto cada um deles apanhava, por maré, mais de cinquenta
quilos de marisco, eu não passei, nos primeiros dias, de dois ou três quilos.
Caminhando até os parceis
188
Esta metamorfose de etnógrafo em apanhador era incentivada pelos meus
parceiros. Perguntei pouco nas primeiras marés. Observei muito. E trabalhei muito. O
método era tentar repetir os procedimentos de Alexandre e Manuel. O primeiro, mais
forte e ágil, cavava sem parar. E, quando eu estava perto, falava sem parar também. O
conteúdo era quase sempre jocoso com o etnógrafo. Alexandre, sempre que podia,
associava às ameijoas aos órgãos genitais femininos. Descobri, com o tempo, que tal
associação é comum entre pescadores da Carrasqueira e de outros lugares.
“Sabe por que o Zé[i] encontra poucas ameijoas? Porque ele não gosta
das ameijoas portuguesas! Eles só gosta das ameijoazinhas brasileiras,
que ele já conhece. Mas, o Zé[i] está agora em Portugal então tem que
gostar das ameijoas daqui!”
Ou
“Zé[i], tu sabes que a malta mais nova já não gosta tanto assim de
ameijoas, não é? O mundo está muito mudado. Agora, sobram
ameijoas em todos os cantos. Eu, se fosse mais novo, faria uma festa.
As ameijoazinhas gostam de homens mais velhos e fortes, pois a malta
mais nova só que saber de drogas e bebidas e estas coisas. Não sabem
mais como tratar as ameijoas”
Alexandre
Outra característica bastante ressaltada no trabalho de apanha é a disposição.
Para os homens, a disposição para o trabalho vem associada com noções de força e
virilidade. Acreditam, portanto, que não é um trabalho que pode ser desempenhado por
189
qualquer homem. A apanha é ofício somente daqueles que reúnem estas qualidades
evidenciadas no máre e que acompanham tais homens em todas as esferas da vida. Já as
mulheres – que desempenham a apanha exatamente do mesmo modo que os homens –
são classificadas como sérias e muito trabalhadoras. Assim, fica mais fácil compreender
o valor moral atribuído ao trabalho cotidiano, sobretudo este que submete os corpos dos
carrasqueiros, a esforços surpreendentes por toda uma vida. Vale lembrar que a geração
de Alexandre e Deolinda, ou seja, dos casais com mais de cinquenta anos, trabalhou nos
máres desde pequenos com suas famílias. A concepção de um mundo no qual trabalho e
vida em geral não se dissocia, foi construída com estes homens e mulheres ao longo de
sua formação. Ou seja, os julgamentos morais que atribuem qualidades tais como, “ser
um bom homem” ou “ser uma mulher respeitável” estão intimamente ligados à
dedicação e à energia disposta nos marés, seja na apanha, seja na pesca, como veremos
mais a frente.
Insisti na apanha. Meus resultados melhoravam com o passar dos dias. Nas duas
últimas marés cheguei a marca dos cinco quilos. Alexandre, Manuel e Carlinhos
passaram dos sessenta quilos cada um.
Alexandre e Carlinhos
O toque de recolher é dado pelo máre. Na medida em que a água sobe no
estuário do Tejo os apanhadores começam a deixar os cabeços. Dependendo da altura da
água, os carrasqueiros fazem a separação dos mariscos ali mesmo em cima dos
190
parceis161. É preciso dividi-los em dois grupos: ameijoas miúdas (ou pequenas) e
ameijoas gradas (grandes ou graúdas). Também aproveitam para descartar mariscos
quebrados ou mortos. Durante a apanha é impossível fazer o descarte, pois a triagem
despenderia muito tempo.
Depois de separados os mariscos são lavados. A lavagem retira o excesso de
areia grudada em suas cascas e é feita com auxílio de um saco de fio trançado. Os sacos
cheios de ameijoas são afundados três ou quatro vezes nas águas do Tejo até que fiquem
todas limpas. Em seguida, os animais são distribuídos por mochilas e sacos, de modo a
acomodar melhor seu peso. A distribuição do peso é importante porque os carrasqueiros
ainda têm que deixar os parceis utilizando o pequeno barco de fibra e caminhar os
quatro quilômetros de volta às margens do Montijo. Só que agora, é óbvio, carregando
os resultados da apanha – o que torna a tarefa muito mais exaustiva.
Alexandre e Carlinhos lavando as ameijoas
O retorno à margem do estuário é marcado pelo silêncio. O cansaço físico depois
de quatro horas de apanha é notório dos rostos e corpos dos pescadores. A chegada ao
porto de Montijo marca o final da maré, mas não encerra de todo o trabalho. É preciso
vender os mariscos. Naquela altura, eu ainda não havia percebido a complexidade que
marcava a venda do pescado em Portugal. O estacionamento da praia fluvial em
Montijo se transformara, em dias de maré, numa verdadeira praça de mercado. Menos
barulhenta
que
as
conhecidas
feiras-livres
brasileiras
o
cenário,
tinha,
comparativamente, características semelhantes: aglomerados de gente, sacos de
161
Quando a água sobe muito, encobrindo toda a extensão dos parceis, a triagem é feita em terra na
chegada ao porto em Montijo.
191
ameijoas carregados de um lado para o outro, circulação de dinheiro em espécie e
pequenos leilões.
10.6 – A centralidade do choco e suas implicações.
Participar das marés de ameijoa já fazia parte de meu cotidiano na Carrasqueira.
As repetidas idas ao Montijo com Alexandre e Manuel, iniciadas em fevereiro, foram
fundamentais para me aproximar das práticas pesqueiras dos meus interlocutores, além
de fazer com que eu estabelecesse novos contatos com outros pescadores.
Propositalmente, fiz questão de contar para as pessoas das incursões ao Montijo.
Comparado aos primeiros meses de pesquisa etnográfica, naquela altura, eu já manejava
um pouco melhor o vocabulário pesqueiro: os nomes dos locais mais propícios à pesca,
dos equipamentos, dos animais do estuário e reunia boas informações sobre as
temporalidades das espécies, o movimento das águas, entre outros elementos. Estava
longe de ser um expert, mas já conseguia participar com mais propriedade nas conversas
sobre a pesca artesanal. A proximidade com as atividades de apanha reforçou meus
laços com homens e mulheres os quais já conhecia e me credenciou positivamente com
novos interlocutores que, a todo o momento, me convidavam para ir ao máre com eles.
As dúvidas que mobilizavam alguns de meus interlocutores sobre minha
capacidade ou resistência em acompanhar os trabalhos no máre foram assim, pouco a
pouco, desfeitas. Quando não estava no máre, uma de minhas tarefas era contrastar
minhas experiências e os meus dados com outros pescadores e pescadoras em terra. Eu
frequentava o povoado desde novembro de 2010. Desde então, observei muitas famílias
carrasqueiras dividindo-se entre os trabalhos na lavoura e a apanha de bivalves.
Acompanhei, também, a preparação de seus equipamentos – barcos, redes e armadilhas
– para aquela que, no estuário do Sado, é a apoteose das artes: a pesca de Choco.
10.6.1 – Os meses quentes e os meses frios.
Em fins de fevereiro, os pescadores do povoado não escondiam a ansiedade.
“Vai começar o tempo de irmos aos chocos!”, era uma das frases mais pronunciadas no
192
local. Normalmente, de fevereiro até maio, os chocos deixam as frias águas oceânicas e
adentram no estuário para desovar. Alguns pescadores o capturam até fins de junho. O
período pode variar de acordo com certas condições ambientais. A região da península
de Setúbal é, ainda nos dias atuais, grande produtora de arroz, e a água doce utilizada
em seu cultivo quando despejada no estuário dificulta a entrada do animal. O mesmo
motivo, de acordo com os pescadores, pode ser responsável pelo retorno prematuro do
choco ao oceano.
Choco
A época do Choco é também a época de condições climáticas consideradas mais
agradáveis. É notável que os dias mais quentes e ensolarados encantam os carrasqueiros.
Zé Bacalhau, com a autoridade de seus quase cinquenta anos dedicados ao trabalho no
máre reforça esta ideia:
“Ah, os meses quentes... Ai sim isto fica uma belezinha! A
Carrasqueira fica mais bonita. Gentes para todos os lados. É turista,
comprador, pescador. É bom ir ao máre nos meses quentes. Acho que
as pessoas ficam até mais alegres nos dias sol. E para pescar então?
Não há coisa melhor! Os dias são mais longos. Podemos trabalhar
mais, fazer mais marés, sem aquele frio e aquela escuridão. O Zé vai
ver. Vocês não tem frio lá no Brasil, não, não é mesmo? A vida de
pescador lá deve ser um pouco melhor [risos]”
A distinção entre os meses quentes e os meses frios, comentada por Bacalhau é
reconhecida por praticamente todos os moradores da Carrasqueira, sejam eles
pescadores ou não. Os meses considerados quentes vão de março até agosto, que
engloba as estações da primavera e do verão na Europa. Já os meses frios vão de
setembro até fevereiro e concernem às estações do outono e inverno. É importante
193
ressaltar que os carrasqueiros, em geral, não usam as nomenclaturas das estações do ano
para definir a passagem do tempo nem as condições climáticas referentes aos meses. Ao
se referirem aos meses quentes ou frios, meus interlocutores utilizam um sistema
classificatório que leva em conta aquilo que Lévi-Strauss chamou de a lógica das
qualidades sensíveis162. É a experiência sensível com as condições climáticas e sua
associação com outros elementos que vão apontar os limites sobre quando começam e
quando terminam os períodos.
Zé Pedra, por exemplo, considera que fevereiro já é um mês quente163:
“Ora veja, se os chocos estão a entrar, e se os dias estão ensolarados é
como se fosse um mês quente! Porque assim tu vais ver esta gente
toda para cima e para baixo a pescar. Não é como em novembro ou
dezembro que a malta toda ‘bate os queixos’ para ir às ameijoas aqui
na frente ou no Montijo!”
Ou seja, a entrada do choco no estuário associada aos dias mais estáveis é um
marcador, ainda que variável, do início de uma nova temporada. Período no qual as
atividades sociais ganham novas configurações. Por um lado, pela dedicação de parte
das famílias carrasqueiras à pesca com o uso de artes e, por outro, porque os meses
quentes são também o período maior freqüentação turística da região, tendo seu apogeu
entre junho e agosto.
10.6.2 – Algumas formas de classificações dos bichos.
O contato cotidiano com o ambiente bem como a exploração de seus recursos
naturais faz com que os carrasqueiros desenvolvam uma relação muito próxima com os
elementos que constituem o ecossistema estuarino. É muito comum que as populações
que estabelecem este tipo de relação possuam formas particulares de classificar tais
elementos. Formas estas que são ajustadas às suas experiências práticas e aos seus
sentimentos morais. Funcionam mesmo como um filtro através dos quais homens e
mulheres, socializados praticamente nas mesmas condições, enxergam o mundo ao
162
Lévi-Strauss: 1970.
No ano em que fiz trabalho de campo, fevereiro foi um mês de condições climáticas muito instáveis.
Entretanto, o comentário de Zé Pedra fez referência contrastiva com o mesmo mês em anos anteriores.
163
194
mesmo tempo em que dão sentido a ele. As percepções sobre a passagem do tempo, os
nomes conferidos às espécies que constituem a fauna e flora, a classificação e as formas
de uso dos espaços estuarinos são, para “os nativos”, a forma objetiva de lidar com a
vida. Para o antropólogo, este conjunto de coisas é uma evidência de como os grupos
sociais pensam e agem sobre o mundo.
Percebi, de início, a centralidade da pesca do choco na vida social carrasqueira.
Mas, antes de participar da faina propriamente dita, explorei o que meus interlocutores
diziam sobre o molusco. A começar pelo choco, forcei conversas que versavam sobre os
animais aquáticos, seus nomes, seus hábitos e outras características. Para minha
surpresa, meus interlocures não classificam o choco como molusco, tal como indica da
taxonomia proposta pela Biologia Marinha, mas sim como peixe164.
“O choco é um peixe muito inteligente. Não é muito ágil, mas é
inteligente. Vivem muito tempo porque são bons em camuflagem. São
como camaleões, mas vivem dentro d’água. Já viste aquela tinta
[preta] que eles soltam quando os puxamos do máre. Aquilo os ajuda
para esconderem-se dos peixes maiores. E mesmo de nós, pescadores.
Sim, porque quando sentem-se ameaçados eles soltam a tinta e nós
não os enxergamos. É o tempo certo para eles fugirem!” Manuel.
Diversos relatos atribuíam aos chocos qualidades, tais como, timidez,
sagacidade, inteligência, beleza entre outras. Os mesmos relatos associam o
comportamento do choco ao dos seres humanos:
“Ah, os chocos são como nós, sentem frio. Por isso, vem até estes
máres de cá, porque são mais quentes que as águas lá da costa.
Quando chegam aqui, procuram os esteios e as plantas para se
agasalharem, igual nós fazemos nos meses frios: colocamos casacos e
mais roupas, não é mesmo?” Diamantino.
“E quem não gosta de namorar? Chocos gostam também. Todos os
anos chegam até aqui para namorar! Namoram, casam e tem filhos, os
choquinhos!” Zé Pedra.
“São inteligentes estes chocos. Acho que até mais do que os
pescadores. Temos que ter as redes certas e preparadas para eles. Por
isso usamos as alvitanas, que são estes panos aqui. Funcionam como
164
São identificados como Moluscos Marinhos da classe Cephalopoda, ordem Sepiida.
195
bolsos. Os chocos, quando se enredam, fazem movimentos circulares
para tentar escapar do pescador. Já com as alvitanas, não há
possibilidade que eles saiam” Alexandre.
Mas, porque o choco é classificado como peixe? E sobre outros animais
aquáticos? Qual a lógica que classifica e distingue suas qualidades e características
fundamentais? Explorando mais o assunto, provoquei os carrasqueiros a elaborarem
listas com o elenco de animais que podem ser encontrados no estuário. Propositalmente,
de início, não os questionei sobre quais seriam os peixes, os mamíferos, os moluscos, ou
os crustáceos. Elaborei, ainda durante o trabalho de campo, um modelo que representa
este exercício classificatório:
Os carrasqueiros dividem os animais aquáticos em três categorias centrais, (às
vezes usam a palavra ‘animal’, às vezes usam o termo ‘bicho’), quais sejam os bichos
da terra, bichos da água e bichos em geral.
Os bichos da terra são, basicamente, os mariscos, as poliquetas e alguns
crustáceos. Trata-se, dessa forma, de ostras, ameijoas, canivetes, mexilhões, minhocas,
búzios, barbigões, camarões165 e caranguejos como as sapateiras166 e navalheiras167. À
exceção dos camarões, todos são apanhados com a mão ou com auxílio de instrumentos.
165
Aristeus antennatus.
Cancer pagulus.
167
Necora puber
166
196
Os caranguejos às vezes são capturados quando se enroscam nas redes que descansam
na água a espera de outras espécies168.
O conjunto dos bichos da água define as espécies que, em sua maioria, entram
do oceano para o Rio Sado. Os mais lembrados pelos carrasqueiros são os linguados, o
robalo, a dourada, o garrento, o alcorrais, as raias, o olhavo, os sargos, a safia, a enguia,
o salmonete, o charroco, a tremelga, o ratão, entre outros169. Nesta categoria, o que
chama a atenção é a classificação das lulas, dos polvos e do choco, conforme já
indicado, como peixes quando, em sua taxonomia científica, os três são considerados
moluscos marinhos170.
Linguado
Camarão
168
A pesca de caranguejo utilizando o covo – um tipo de armadilha – é bastante praticada do estuário do
Sado.
169
Em sequência: Solea spp., Dicentrarchus labrax, Sparus aurata, Liza aurata, Diplodus annuaures,
Raja ssp., Mugil cephalus, Diplodus spp., Diplodus vulgaris, Anguilla Anguilla, Mullus surmulestus,
Batrachoides spp., Torpedo torpedo, Dasyatis pastinaca.
170
Em sequência: Loligo spp., OCTOPODIDAE, Sepia officinalis.
197
Sapateira
Tainha e Navalheira
Já os bichos em geral são aqueles que habitam o estuário ou suas proximidades,
sejam elas alagadas ou secas, e que não se enquadram nas categorias da terra nem da
água. Este grupo reúne, portanto, os golfinhos roazes, as lontras, a doninha, o texugo, a
geneta, o javali e o grande elenco de aves que habita, ainda que sazonalmente, a
região171.
O modelo elaborado é uma tentativa de organizar as interpretações dos
carrasqueiros sobre as distinções e qualificações atribuídas aos animais que habitam o
estuário e, portanto, fazem parte do mundo prático de pescadores e não pescadores.
Trata-se, portanto, de um esquema criado pelo etnógrafo de apresentar a lógica de um
sistema classificatório que é, em si, bastante complexo. Não há acordo, por exemplo,
entre os carrasqueiros com os quais conversei sobre se o camarão e o caranguejo podem
171
Em sequência, os mamíferos: Tursiops truncatus, Lutra lutra, Mustela nivales, Meles meles, Genetta
genetta, Sus s. scrofa.
198
ser classificados como mariscos ou peixes. Esta indefinição dificulta a associação destes
animais aos conjuntos de bichos da terra ou de bichos da água, somente.
“Olha, veja se eu não tenho razão: caranguejo anda em cima da areia.
Suas patinhas estão todo o tempo tocando na areia, estais a ver? Ele
até sabe nadar e tudo mais, mas anda, de um lado para o outro, como
tu viste, na areia, no fundo. Para mim é como se fosse um marisco, só
que não vive enterrado”. Alexandre.
“Caranguejo? É peixe, ora. Tudo que nada é peixe. Caranguejo nada.
Camarão nada. Ameijoa não nada. Nem berbigão, Nem canivete.
Estamos certos de que eles não ficam lá parados. Movimentam-se
conforme a maré. Mas é outro tipo de movimento”. Zé Carioca.
Parece-me assim, que há um eixo intermediário entre “ser peixe” ou “ser
marisco” que, de acordo com as interpretações dos carrasqueiros, dota animais como
camarões e caranguejos de características existentes tanto no conjunto bichos da terra
quanto no grupo dos bichos da água. Podem, assim, associar o caranguejo ao grupo dos
mariscos, por passar a maior parte de sua vida, assim como os mariscos, “na areia”. Ou,
o animal pode ser classificado como peixe porque “também sabe nadar”
172
. Tal
interpretação não se trata de uma contradição classificatória, simplesmente. Ela aponta,
antes de tudo, para o dinamismo inerente a este sistema nativo que pode admitir
associação de elementos que não encontram relação em outros sistemas, muito próximo
daquilo que Émile Durkheim definiu como classificações politéticas 173.
O mesmo ocorre com o camarão. O animal aparece em alguns relatos como
peixe ou como marisco, mas nunca como crustáceo174. A identificação com os peixes –
e por isso, com o conjunto de bichos da água – é explicada pelo movimento também:
“camarão nada como peixe, Zé[i]”. Já a associação do camarão com os mariscos é dada
172
Há uma antiga cantiga de roda infantil, tal como identificada por Sílvio Romero cujo verso principal
aponta a mesma ambigüidade classificatória para o caranguejo: “Caranguejo não é peixe/Caranguejo
peixe é/Caranguejo só é peixe na vazante da maré”. Em uma de suas variações a palavra “vazante” pode
vir substituída por “enchente”. Cf: ROMERO: 1954.
173
Uma análise detalhada sobre este assunto foi elaborada em “Formas Elementares da Vida Religiosa”
por Émile Durkheim publicado pela primeira vez em 1912. O autor define e confronta as classificações do
tipo monotéticas e politéticas, sendo as primeiras baseadas no princípio de classes no qual todos os
objetos apresentam um conjunto padrão de atributos e as segundas fundamentam-se na noção de
semelhança familiar e qualidades intra-classe entre os objetos, o que permite, neste sentido, o uso de
metáforas e associações mais dinâmicas.
174
Em latim, camarão [cammãrus] significa caranguejo do mar. Em Portugal, marisco é uma designação
genérica que inclui, por exemplo, alguns crustáceos como o caranguejo e o camarão. Sobre o assunto,
conferir em RAMONELL: 1985.
199
porque também “andam” na areia e o seu exoesqueleto, que forma uma espécie de
carapaça, faz com que sejam agrupados categoricamente ao grupo das ameijoas, dos
búzios e dos canivetes.
“O camarão tem cabeça, olhos, corpo, rabo, igual aos peixes. Mas tu
já pegaste em um camarão? Os bigodes lembram até os de um bagre.
Ele tem uma casca igual aos mariscos. Quando os comemos, são
servidos como mariscos também, como é o caso do arroz de mariscos
ou de longueirão”. Fátima.
O dinamismo classificatório não para por ai. A definição dos polvos, lulas e
chocos como bichos da água pode ser explicada porque estes “moluscos” são nadadores
e movimentam-se, sazonalmente, da costa para o estuário assim como a maioria das
espécies peixes. Mas, a afirmação repetida localmente de que “nem tudo que nada é
peixe” torna o entendimento sobre os princípios classificatórios deste conjunto um tanto
mais complexo:
“Os chocos nadam. Nadam como peixes. E nadam melhor do que as
lulas e do que muitos peixes mesmos! Já os golfinhos e lontras nadam
também. Ah, mas já não são peixes, não senhor! Nadam como peixes,
mas não são peixes. São outras qualidades de animais” Joaquim.
“Estes golfinhos... Não são peixes, pois. Eles são bonitos, os turistas
gostam de vir aqui para vê-los. Nadam e brincam por estes máres, tu
já viste? Mas, não os comemos. Pelo menos, a maioria da malta não os
comem. Antigamente, até os caçavam. Mas comer, comer mesmo era
difícil!” Minda.
Relatos como estes de Joaquim e Minda me levaram a acreditar que os bichos da
água são definidos a partir de quatro variáveis: 1) capacidade motora de nadar, 2) o
trânsito entre as águas oceânicas e o estuário e, 3) o uso vulgar das espécies na culinária
e, 4) o valor comercial atribuído às espécies. Desse modo, os golfinhos, encaixam-se
apenas nas duas primeiras variáveis e as lontras podem ser enquadradas somente na
primeira. Estes animais não são percebidos como peixes e, ao mesmo tempo, são
agrupados no conjunto mais genérico de bichos em geral.
200
Por fim, à divisão dos bichos nos três conjuntos apresentados estão associadas
distintas formas de apropriação que marcam a relação homem/animal em sua dimensão
mais prática.
A atividade de apanha define a forma como os carrasqueiros se apropriam dos
chamados bichos da terra, ou seja, da maioria dos mariscos, moluscos bivalves e
poliquetas, a exceção dos camarões e caranguejos – embora os últimos possam ser
capturados com as mãos em alguns casos. Já a pesca com o uso de artes e armadilhas é
a ação de captura que caracteriza a relação entre os homens e os todos os animais
classificados como peixes. Ainda que enguias possam ser capturadas com as mãos
quando encontradas em porções alagadiças do estuário e mesmo os chocos, em alguns
casos – tal como será apresentado mais a frente – também podem ser apanhados sem o
uso de redes, a pesca é, par excellence, a ação e o método utilizado na relação dos
homens com os bichos da água. E, é somente através da caça que os carrasqueiros
podem se apropriar dos bichos em geral, sejam eles os golfinhos, os mamíferos
quadrúpedes ou as aves.
11 – A pesca de choco.
Este complexo exercício classificatório é, antes de qualquer coisa, reflexo da
complexidade da vida carrasqueira. A articulação entre as atividades agrícolas e as
atividades no máre, no que diz respeito às suas temporalidades e mesmo à natureza do
trabalho em cada um dos casos revela isto. Na prática, a exploração dos recursos
naturais por parte significativa das famílias carrasqueiras, cujo início deve ter se dado,
aproximadamente, em meados do século passado, fez com que homens e mulheres
desenvolvessem técnicas pesqueiras adaptadas ao meio estuarino bem como às espécies
mais propícias a captura. Neste sentido, a engenhosidade humana teve que dar conta da
diversidade ecossistêmica que caracteriza a região do Sado elaborando assim, um
extenso elenco de instrumentos.
As artes e apetrechos de pesca utilizados no estuário pelos carrasqueiros e por
outros grupos que habitam a região foram detalhadamente descritos no volume
“Contribuição para o conhecimento das artes de pesca utilizadas no Rio Sado”
201
publicado pelo IPIMAR, no ano de 2004, dentre os quais se destacam o enxadão, a pá, o
podão, a fisga, o trole ou espinhel, a toneira, o alcatruz, o botirão, a nassa, o galrricho,
a tapa-esteiros, a tela, o camaroeiro, o chinchorro, o ancinho de ameijoa, o arrasto, a
suberta, a caçoeira e o zurro175. Para captura do choco, os pescadores utilizam redes
denominadas branqueira e solheira. Há também aqueles que se dedicam à faina do
peixe com o auxílio de armadilhas chamadas de covos.
Até o início do mês março, eu só conhecia alguns destes instrumentos enquanto
os mesmos descansavam nas casas de meus interlocutores ou quando passavam por
reparos. Com a chegada dos meses quentes e as notícias da entrada do choco no
estuário, o povoado se agitava para o começo da temporada de pesca com o uso de artes.
E foi mais uma vez, a partir de um convite formulado por Pai do Céu, que eu estava
prestes a ir ao máre – mas agora para acompanhar a pesca propriamente dita. Dias após
as já relatadas marés de ameijoas no Montijo, em uma de nossas conversas, Alexandre
me provoca: “E o Zé[i]? Vai ou não vai ser meu camarada na campanha deste ano?”
A provocação era, na verdade, produto de uma preocupação. Deolinda estava
sofrendo bastante com dores na coluna. Em janeiro de 2011, passou quinze dias em
Lisboa internada em um centro de tratamento com acompanhamento intensivo, fazendo
sessões de massagem e fisioterapia. Ainda no Montijo, em fevereiro, mesmo sem
participar de todas as marés, Deolinda já se queixava das dores:
“Isto é assim, para alguém como eu, que tem problema de coluna, a
pesca exige até mais de nosso corpo do que a apanha de ameijoas. Isto
porque o barco nunca está parado. Ele está sempre a subir e a descer.
Força muito mais minha coluna do que nas marés de ameijoas, pois lá
estamos sempre com os dois pés no chão.”
Assim, como ocorrido em anos anteriores, Alexandre precisava contar com outro
(a) camarada, caso quisesse, além das ir às ameijoas, fazer as marés de choco, pois
Deolinda, para completar a renda familiar, desempenhava no período do verão o
trabalho de governanta em hotéis na região de Tróia – um serviço menos custoso para
seu corpo já debilitado pelos anos de pescaria. Pai do Céu, portanto, esperava contar
175
Cf. MARTINS, CARNEIRO & REBORDÃO: 2004. Tal publicação descreve as formas de utilização
das artes, disposições gerais sobre licenciamentos e é acompanhada de uma cuidadosa apresentação de
seus planos técnicos.
202
com Minda, sua irmã que, assim como ele, dedicava-se a vida no máre desde pequena
junto com a família.
Porém, Minda é camarada de Joaquim, seu marido. Com ele a pescadora faz a
campanha do inverno na costa e a campanha do verão no estuário176. O casal é
acompanhado ainda pelo filho Rodrigo. É justo por este motivo que, para a temporada
do choco em águas interiores, Minda pode estabelecer uma camaradagem pontual com o
irmão, ao mesmo tempo em que Joaquim e Rodrigo fazem a campanha na Nau do
Sado177.
“Espero que a Minda faça a campanha comigo este ano novamente.
Pois, ir ao máre só já não é bom. É perigoso, pois se acontece algo não
temos a quem recorrer. Além do mais é muito trabalho para um gajo
sozinho. Não posso contar sempre com a Deolinda, pois o problema
de coluna é bastante sério. Além disso, a Minda é uma ótima
pescadora. Fez toda a vida no máre desde quando éramos miúdos.
Casou-se com Joaquim que fez toda vida no máre também. Veja os
filhos, o Jorge e o Rodrigo, saíram todos pescadores também”.
Alexandre.
E foi assim mesmo. No início de março, Alexandre estava com seu conjunto de
redes organizado para o início da campanha. E Minda o acompanharia durante em todos
os meses da campanha. Naquela altura, mal sabiam eles que o etnógrafo logo se
transformaria em camarada também.
***
“É o máre quem manda em tudo aqui”, disse-me Alexandre na véspera de
minha primeira pescaria. Tal afirmação, exaustivamente repetida pelos carrasqueiros,
não era um exagero. Toda logística pesqueira dependia, diretamente, das condições do
máre. Por isso, não havia um pescador que não possuísse a tão necessária “Tabela das
Marés” produzida, anualmente, pelo Instituto Hidrográfico Português. Os horários de
saída e chegada da faina, bem como o tempo de deslocamento até os locais propícios
para largar as redes tem que ser calculados diariamente com base na altura da água e nas
176
O termo campanha designa uma certa quantidade de tempo dedicada à atividade da pesca. Neste caso,
campanha de verão refere-se aos meses quentes e campanha de inverno enquadram os meses frios.
177
Nome de um dos barcos da família e o único atualmente na Carrasqueira que possui licença para
navegar na costa.
203
condições da maré. Informações estas que são encontradas, em modo de estimativa, na
Tabela.
“A tabela ajuda muito, é fundamental. Porque nos dá uma boa ideia
das coisas, estais a ver? É uma ferramenta para o pescador. Mas a
tabela não avisa quando a maré atrasa, ou quando o tempo muda e
mudam os ventos. Nem avisa quando vem uma tempestade. É apenas
o pescador, lá, na hora, que vê e sente estas coisas”. Joaquim.
O mês de março chegou. Os chocos chegaram com ele. Chegaram também
longos dias de sol e céu límpido, praticamente sem nenhuma nuvem, que contrastavam
com o frio intenso das primeiras horas da manhã. Na medida em que corria o dia, o sol
elevava um pouco a temperatura, embora os ventos oceânicos lembrassem, a todo o
momento, que estávamos numa primavera do Atlântico Norte.
“Zé[i], não se engane, homem! Agasalha-te! No máre, até quando está quente,
está frio!”. E foi seguindo esta recomendação de Alexandre que, junto com ele, pedalei
de bicicleta até o porto palafítico. Eram 7:00h da manhã. O termômetro marcava seis
graus. Como todos os envolvidos com a pesca estão submetidos aos horários do máre, a
saída para a faina aglomera a maior parte dos pescadores no porto. Homens e mulheres
chegam de carro, moto ou bicicleta. A distância do porto até o primeiro renque de casas
do povoado não chega a um quilômetro de distância, mas há aqueles que moram mais
afastados. Os automóveis tornam mais fáceis o transporte de qualquer apetrecho que,
por ventura, tenha que ser levado para barco. Além disso, no retorno, dependendo dos
resultados da faina e das estratégias de venda do pescado, muitos carrasqueiros
precisam transportar os peixes para algum lugar.
Ainda que o porto reúna, quase ao mesmo tempo, pescadores e pescadoras que
se preparam para mais um dia de trabalho no máre, escutei pouca ou nenhuma conversa
entre eles. A organização dos barcos é acompanhada de um silêncio que poucas vezes é
interrompido por alguma saudação entre conhecidos ou alguma informação relevante
sobre a pescaria. Os pescadores que possuem as caçadeiras podem deixar o porto com
um fio de água na última hora e meia antes do baixa-máre, pois tratam-se de
embarcações consideradas leves. Já para aqueles que possuem barcos boca fechada com
motor de centro, é necessário um maior volume de água o que obriga seus proprietários,
normalmente, a deixarem o porto no mínimo duas horas antes do baixa-máre. Era o que
204
acontecia com os barcos de Alexandre, Joaquim, Pega-rija, Diamantino e Henrique, por
exemplo.
Quando chegamos ao porto, Minda estava a nossa espera. De maneira jocosa,
disse para mim e Alexandre que já nos aguardava há horas, tomando conta do máre
para ver se ele não ia atrasar naquele dia.
Minda é uma mulher forte e muito falante. Certamente uma de minhas
interlocutoras mais qualificadas. Muito disposta ao trabalho, relatava, sempre que podia,
seu orgulho em ter feito toda a vida no máre e de ter criado os filhos com os ganhos da
pesca. Jorge, seu filho mais velho, é casado e mora em Setúbal, onde é mestre de pesca.
Desenvolve, junto com sua companha, as atividades de captura na costa, durante todo o
ano. Rodrigo, o mais novo, pesca com ela e Joaquim em suas campanhas na costa e no
estuário. Em todas as pescarias em que estive embarcado, dali em diante, Minda sempre
se mostrou muito atenciosa e disposta a conversar sobre os assuntos mais variados.
Minda e Alexandre
Depois de uma rápida verificação no motor, Alexandre sinalizou a nossa partida,
desatando os nós das cordas que mantém o Genoveva atracado à ponte do porto.
Estávamos prontos. E eu, de minha parte, extremamente ansioso para acompanhar pela
primeira vez a pesca de choco nos máres do Sado. O frio daquele início de manhã, ainda
que ensolarada, se acentuava conforme o barco navegava. Enquanto Minda ia sentada
em frente à escotilha do motor colocando luvas e aventais, eu me posicionei ao lado de
Alexandre na cabine de comando para me proteger dos ventos.
A pesca de choco é realizada com uma rede chamada localmente de solheira.
Trata-se de uma arte de tresmalho de fundo, ou seja, ela é posicionada na água, em
205
pontos específicos, para que o peixe, ao passar pelas malhas, fique preso. Seu desenho
também favorece a captura de linguados e raias.
Os carrasqueiros consideram que uma rede tem de 200 a 250 metros de
comprimento de uma ponta a outra. A solheira, particularmente, é constituída por três
panos retangulares e sobrepostos. Os panos exteriores possuem uma malhagem larga.
São denominados de alvitanas e tem, em média, 400 mm. Já o pano do meio, chamado
de miúdo é feito de malhagem menor, normalmente superior a 65 mm178. A presença
das alvitanas é fundamental para a captura de espécies como o choco, pois, uma vez
enredados no miúdo, os animais tentam escapar a todo custo e são justamente os outros
dois panos sobrepostos que os impede de se soltarem.
Sua altura, calada, é de aproximadamente 1 metro. Devido à grande
profundidade encontrada em parte do estuário, as redes são caladas com âncoras e bóias.
Uma vez largada ao máre, a ancora finca a rede no fundo estabilizando, dessa forma, a
tralha inferior no qual estão também fixados os chumbos. Por sua vez, a bóia principal
estica os panos para cima, além de indicar onde começa e termina a rede. A tralha
superior recebe, ao longo de sua extensão, pequenas bóias ou pedaços de isopor que tem
o objetivo de manter a rede em posição vertical.
178
De acordo com o Regulamento de Pesca do Rio Sado, a malhagem mínima do miúdo é de 80 mm.
Muitos pescadores optam por não utilizar a solheira com esta malhagem. Esta questão será discutida com
mais propriedade na parte seguinte desta tese.
206
Como é comum entre grupos de pescadores, a definição dos pontos nos quais as
redes serão largadas leva em conta uma associação de fatores, tais como, a espécie que
se deseja capturar e as condições ambientais no momento da faina. Além disso, o
pescador, para obter bons resultados em suas investidas, tem que ser bom conhecedor da
topografia submersa do estuário, bem como do comportamento e dos hábitos das
espécies procuradas.
“Os chocos gostam de ficar sempre próximos aos bancos de areia.
Porque encontra lá tudo que precisa. Tem comida, porque os camarões
e outros pequenos peixes vivem por lá também. Estes parceis são
sempre cheios de coisas que eles gostam. Podem enroscar-se na
vegetação para protegerem-se do frio. Por isso, temos que conhecer o
que está cá no fundo como a palma de nossas mãos”.
Apesar da grande extensão do estuário, é possível observar, em condição de
maré baixa, alguns dos tais altos de areia indicados por Alexandre. Entretanto, toda a
navegação até o ponto no qual as redes devem ser largadas é feita, muitas vezes, na
escuridão da madrugada, exigindo do pescador muita destreza na condução do barco
para que não encalhe ao encontrar alguns destes acidentes. Eu mesmo tive a
oportunidade de estar embarcado com frequência nestas condições e me impressionei
com a desenvoltura de meus interlocutores ao leme. As referências de localização eram
dadas somente pelos pontos de luz em Setúbal e por algumas varas fincadas próximas
aos acidentes indicado as porções mais rasas do Sado.
A chegada ao ponto de pesca é marcada, sonoramente, pela diminuição das
rotações do motor. Dependendo das condições da maré é necessário aguardar a enchente
para largar as redes. Na pesca de choco e em condição de maré morta, em geral, os
207
pescadores optam por largar as redes duas horas antes do aprea-máre, ou seja, na
enchente, antes da água atingir seu nível máximo naquele dia. Depois, as recolhem uma
hora após o início da vazante.
“Nas marés mortas as águas correm pouco. Isso significa que os
peixes andam pouco também. Porque os chocos normalmente se
movimentam
porque
tem
fome,
mas
também
porque
são
impulsionados pela correnteza. Pelo vai e vem das águas. Por isso,
deixamos as redes mais tempo. Para arriscar pegá-los mesmo assim.”
Joaquim.
Já em condição de maré viva, os carrasqueiros largam as redes cerca de uma
hora ainda na vazante, e as recolhem com uma hora de enchente. As marés vivas
possibilitam a realização de até duas pescarias por dia ou a conjugação de uma maré
dedicada às artes e outra à apanha de mariscos durante o tempo em que os parceis estão
descobertos pela água, é claro.
“Ah, o pescador prefere as marés vivas, sim. É muito melhor. A água
corre mais, e tudo fica a movimentar-se. Os peixes andam mais, oh
pá! Nós e eles [os peixes]. Veja mesmo os cabeços [parceis]: a água
escorre mais e por isso, podemos trabalhar mais também. É muito
melhor!” Zé Bacalhau.
A operação de largar as redes é bastante engenhosa. No caso da faina realizada
com dois pescadores e em embarcações de boca fechada, um dos camaradas fica
responsável pelo leme e por controlar a velocidade da embarcação. É ele quem vai
indicar em que momento as redes devem ser largadas. Após seu comando, o outro
camarada, posicionado a bombordo, na popa do barco, lança a ancora e em seguida a
bóia com o objetivo de calar a ponta das redes. Como as peças estão acondicionadas no
convés da embarcação e prontas para irem à água, o mesmo camarada deve acompanhar
atentamente a descida da rede e cuidar para que elas, por qualquer motivo, não embolem
durante este processo. O tempo gasto com a largada varia de acordo com a quantidade
de redes. Em média, os pescadores despendem 40 minutos para realizar esta tarefa.
208
Zé Pedra
Com os pescadores que desempenham a faina sozinhos em suas caçadeiras, o
procedimento é semelhante. A diferença é que o mesmo pescador fica responsável por
coordenar a direção e a velocidade da embarcação com a largada da rede. Pude
acompanhar as marés com Zé Pedra que há cerca de quinze anos faz a campanha deste
modo.
“Não me sinto sozinho não, tu sabes? Estais a ver ali meu camarada?
É sim, é aquele meu camarada [neste momento o pescador aponta
para o alador, uma engenhoca movida à gasolina que tem a função de
colher a rede]. Ah, pois é um belo camarada! Melhor que as
mulheres. Não reclamam do tempo, do trabalho, de fome, nem de
nada! Fui eu quem instalou o primeiro alador em barcos cá na
Carrasqueira!” Zé Pedra.
Largando e colhendo a rede
209
Uma vez no máre, as redes permanecem, em posição de espera, por períodos que
variam de 4 a 8 horas, dependendo das condições ambientais ou por escolha dos
pescadores. Como na pesca carrasqueira a maior parte das companhas é formada por
casais, há uma relativização nas posições e responsabilidades de cada indivíduo
enquanto estão embarcados. Na maioria dos casos, o homem é responsável pela
condução da embarcação e pela escolha do local onde as redes serão largadas. As
mulheres, por sua vez, têm a incumbência de largar e colher as redes – o que implica no
manejo de ancoras e bóias com o barco em movimento. Isso não impede, entretanto, que
as posições se invertam. Acompanhei casais, por exemplo, em que as mulheres
dominavam claramente mais conhecimentos sobre locais privilegiados para a pesca do
que os próprios homens. Em certas ocasiões, presenciei discussões acaloradas entre
casais sobre certos procedimentos de pesca. Talvez, por isso, neste modelo particular de
companha, categorias como mestre ou dono da pesca não sejam reconhecidas pelos
carrasqueiros.
“As mulheres na Carrasqueira são muito trabalhadoras. Nós
acompanhamos nossos maridos na faina. Criamos, com eles, nossos
filhos dentro destes barcos. Estamos lado a lado com eles. A pesca é
dos dois. É igual. Um ajuda outro e, ao final, levamos tudo para casa
mesmo! Já passou o tempo das mulheres serem mandadas pelos
maridos. Cá na pesca ou em qualquer lugar neste mundo. Agora
estamos iguais. Trabalhamos igual!” Minda.
210
“Por estas terras não há esta coisa de mestre não! Eu sei sobre a vida
no máre tanto quanto meu marido. Às vezes acho até que sei mais!
[risos]”. Maria Glória.
“É tudo dividido sim. No trabalho é tudo divido. Eu sei um
pocachinho
[pouquinho],
ela
[Minda]
também
sabe
outro
pocachinho... Viveu estes anos todos ao máre, não é? Pronto! É igual,
não há diferença dentro do barco!” Joaquim.
Deolinda
Minda
Colher as redes não significa apenas puxá-las para cima do barco, simplesmente.
O primeiro movimento consiste em identificar a bóia e, com a ajuda de um gancho,
puxar a corda que a prende na ancora. Com rapidez, um dos camaradas, geralmente a
mulher, tem que puxar a ancora, acondicioná-la junto com a bóia na proa da embarcação
e desatar os nós que as prendem às tralhas das redes. Toda a ação é realizada com o
211
motor em baixa rotação ou em ponto morto dependendo das condições da maré. Nos
barcos que possuem alador, um dos camaradas é responsável por ligá-lo e por enrolar as
tralhas das redes em seu eixo giratório. Nos barcos sem a máquina, o camarada começa
a colher logo em seguida à puxada da âncora.
“O alador facilita muito o trabalho do pescador. Mas não é tão
simples. É preciso ficar muito atento a esta máquina, pois é comum
que o lixo e mesmo alguns peixes que vem demasiado enredados,
possam agarrar nas engrenagens. Se isto acontece, parte-se a rede ou
mesmo, como eu mesma já vi, quebra-se o alador. É perigoso para
quem estiver perto e um prejuízo para o dono do barco!” Minda.
Alador
A colheita de rede, que muitos carrasqueiros chamam de alagem, é um processo
extremamente trabalhoso. Ela dá início a três ações realizadas em sequência: puxar as
redes, retirar os peixes capturados e safá-las. Um dos camaradas fica próximo ao alador,
evitando os problemas relatados por Minda. Para isso, é necessário manter a tralha
superior esticada enquanto a máquina estiver trabalhando. Já o outro camarada,
212
posiciona-se na popa do barco e inicia a retirada das espécies. A velocidade da alagem
dificulta a retirada de todos os peixes. Principalmente quando são capturadas espécies
como o charroco, a tremelga e o ratão:
“Temos que ter cuidado, estais a ver? Pois não podemos tirar o ratão
de qualquer maneira. Ele tem um ferrão aqui ó que quando pega em
alguém dá uma febre de 24 horas. Deolinda já machucou-se com um
destes. Também é preciso ter cuidado com as tremelgas. Elas tem uns
olhinhos que são um perigo. Dão choques elétricos e não é bom
[risos]. Algumas raias, quando capturamos, também são perigosas. O
problema dos charrocos, como já viste, é que eles são grandes e tem o
corpo todo falhado por isso agarram-se às redes e é difícil retirá-los.
Mas para tudo nesta vida há uma técnica!”
Chocos e na rede e alcorraz no balde
Charroco, choco e tremelga na rede
Os peixes são acondicionados em baldes de trinta ou quarenta litros de
capacidade, chamados pelos carrasqueiros de latões. Na separação das espécies ao
menos um latão é destinado aos chocos. Dependendo da pescaria, caso sejam capturados
213
espécies como linguado ou robalo, estes são alocados de modo separado também. O
solheira também captura alcorrazes, garrentos e salmonetes. Estes são organizados junto
dos charrocos – espécie que, para descontentamento dos pescadores – tem aumentado o
número de indivíduos no estuário, ano após ano179.
Os pescadores, no momento da alagem, organizam as redes da seguinte maneira:
deixam no chão do barco as partes nas quais ainda há peixes que não foram retirados e
descansam no costado as partes onde estão espécies de difícil retirada bem como o lixo.
Com todo o material em cima do barco, inicia-se, portanto, a última parte do processo: é
o momento de safar as artes.
Safar significa limpar as redes e, em seguida, organizá-las de modo cuidadoso
para que estejam corretamente posicionadas no chão do barco e possam largadas na
faina seguinte. A limpeza consiste na retirada do restante das espécies e no descarte do
lixo reunido em suas malhas. São classificados como lixo, pelos carrasqueiros todo tipo
de vegetação estuarina, cascalho, conchas, mariscos e ostras, resíduos plásticos, tais
como garrafas pet, caixas e copos de plástico e pequenos caranguejos que embolam nas
redes. Os pescadores safam as redes utilizando um martelo com cabo de madeira e
cabeça de borracha com o objetivo de esmagar o cascalho e os caranguejos. Ou,
executam a mesma ação pisando nas redes com suas galochas.
“Dependendo da maré junta-se muito lixo nas redes. Isto dificulta
muito o trabalho do pescador que já não é simples, como estais a ver.
Se mudar a maré ou o vento é isto que acontece. Agarra-se de tudo nas
redes. O trabalho fica muito mais demorado, porque se não safarmos
as redes acontecem duas coisas: elas estragam mais rápido e, ao irem
ao máre muito sujas, os peixes não emalham. Eles não gostam de
redes sujas! Não são bobos estes peixes [risos]!”
A ação de safar as redes anuncia, também, que o dia de trabalho, ou a maré, está
chegando ao fim. Durante o regresso à terra, que pode demorar até uma hora e meia,
dependendo de onde foi realizada a pescaria, um camarada vem safando a rede enquanto
179
O charroco é um peixe com quase nenhum valor de mercado. Quando são capturados, normalmente,
não são comercializados. Os carrasqueiros os usam para consumo próprio, preparando grelhados ou
utilizando sua carne em pratos como a “caldeirada”. Quando os capturam em grande quantidade,
costumam distribuir para amigos e familiares ou trocá-los, aos quilos, por frutas, verduras e outros bens
de consumo alimentício.
214
o outro pilota a embarcação. No caso dos carrasqueiros que pescam a sós, a safagem e a
retirada dos peixes é realizada, quase toda, com a embarcação atracada no porto.
Safando a rede no máre
Safando a rede no porto
Percebi que minha presença no Genoveva Luisa, acompanhado Alexandre e Minda,
foi marcada por dois momentos distintos, mas igualmente importantes. No primeiro
mês, embarquei praticamente todos os dias e levei comigo o caderno de notas e a
máquina fotográfica com o objetivo de registrar, in loco, o trabalho de meus
interlocutores durante a faina. Inicialmente, todo o universo de coisas que envolvia a
pesca do choco – as temporalidades, as técnicas, o uso dos instrumentos, a divisão das
tarefas, os procedimentos – eram muito estranhos para mim. Isso porque meu
conhecimento empírico sobre a pesca artesanal limitava-se à observação empírica das
atividades de meus interlocutores na Lagoa Feia e às leituras de etnografias e pequenos
215
manuais que versavam sobre o assunto. Assim, creio que meus primeiros passos foram
de um etnógrafo que, com muitas limitações, tentou apreender aquele conjunto de
novidades, ao qual estava sendo apresentado, dia a dia, durante os períodos em que
estive embarcado.
Mas, aos poucos, comecei a trabalhar como um camarada. Esta “transformação”
de etnógrafo em pescador, contou, obviamente, com a enorme paciência de Minda e
Alexandre. Resolvi, ao invés de provocar os assuntos, tomar notas e tirar fotografias,
abandonar meus instrumentos mais usuais, e participar das pescarias. Tanto que, muitas
vezes, fui ao máre, desacompanhado do caderno e da máquina fotográfica. Naquela
altura, eu já tinha minhas próprias roupas de trabalho – uma calça jeans, algumas
camisas, dois casacos e um par de botas – destinada somente às idas ao máre.
O tempo passava. E os carrasqueiros, de modo jocoso, diziam coisas como “o
Zé[i] virou pescador mesmo!”, “o brasileiro vai comprar um barco e ficar cá na
Carrasqueira” ou “o Zé[i] está a gostar tanto da vida no máre que não vai mais voltar
para o Brasil”. Estes comentários eram proferidos por aqueles com os quais eu pescava
e também pelos carrasqueiros que me viam, cotidianamente, envolvido com as
atividades pesqueiras.
No Genoveva Luisa, fiquei responsável, muitas vezes, pelo alador. Minha
função consistia, primeiramente, em puxar para cima do barco, as ancoras e as bóias da
rede. Era preciso desatar os nós que as uniam às tralhas. Com a ponta das tralhas nas
mãos, o passo seguinte era ligar o alador e fixar as tralhas no cilindro giratório do
aparelho. Em seguida, eu me posicionava entre o aparelho e o costado lateral do
Genoveva Luisa puxando as redes de modo a mantê-las, sempre, esticadas para que não
enrolassem na engrenagem do aparelho.
Enquanto isso, Minda, posicionada na popa do barco, se ocupava da retirada dos
peixes com a ajuda de Alexandre. A pescadora muitas vezes gritava: “Oh Zé[i],
cuidado com o rosto. Pois nesta puxada podes vir a se machucar com pedaços de ostras
e outras coisas, heim!”. O trabalho no alador é cansativo para os braços. A obrigação de
manter as redes esticadas faz com que os movimentos da puxada sejam realizados de
modo repetitivo e sem intervalos até o final de cada conjunto. É também a função na
qual o pescador mais se suja. Isso porque os chocos, geralmente, saem da água
216
expelindo um líquido preto e viscoso – o mesmo que usam para se camuflar de seus
predadores. Ao girarem no alador, os animais borrifam o líquido para todos os lados.
No retorno à terra eu me dividia em outras duas funções: ora auxiliava na
retirada de peixes e safagem das redes, ora na direção do leme. O trabalho de limpeza
das redes me interessava porque era sempre acompanhado de conversas nas quais eu
poderia provocar os carrasqueiros sobre o que eles achavam do trabalho na pesca, da
natureza e de muitos outros assuntos. Entretanto, a pouca prática no manejo desta tarefa
fazia com que eu a desempenhasse de modo devagar e desajeitado. Talvez por isso
Alexandre, por muitas vezes, tenha me dado o leme e a determinação de pilotar a
embarcação até a Carrasqueira enquanto ele e Minda safavam as redes.
Mesmo com a chegada ao porto o trabalho continuava. Depois de atracar o
Genoveva Luisa, eu e Alexandre carregávamos os pesados latões de peixes até a lota ou
até o carro de Minda. Quando eu não estava, era a pescadora que, junto com o irmão,
pegava no pesado. Era preciso, ainda, retornar ao barco e terminar a limpeza das artes.
Dependendo da hora do dia a tarefa era interrompida pelo almoço sendo retomada logo
em seguida.
O fim da maré era marcado por uma imagem: homens e mulheres safando redes
dentro de seus barcos atracados no movimentado porto palafítico. Eram pescadores e
pescadoras organizando seus apetrechos para a faina do dia seguinte. Como se chocos e
pescadores estivessem unidos em um único ciclo marcado pela temporalidade das
campanhas anuais. O passar do tempo consolidava os dias ensolarados dos meses
quentes. E a imagem, do fim das marés diárias, repetia-se.
Foi em uma destas ocasiões, depois de um dia embarcado, ali mesmo no porto
palafítico, que pedi a Manuel para acompanhá-lo no Fugitivo. Eu tinha um interesse
especial em ir ao máre com o irmão de Pai do Céu, pois ele era um dos poucos
carrasqueiros que praticava a pesca de choco com o uso de armadilhas. Meu pedido foi
aceito com um sorriso no rosto acompanhado de “Se o Zé[i] agora é pescador, não há
problemas em ir comigo aos chocos!”
***
217
No elenco de instrumentos que dispõem os carrasqueiros, as redes, atualmente,
estão, sem dúvida, entre os mais utilizados na pesca praticada no Sado. Mas, há
também, pescadores que se dedicam às atividades de captura utilizando, ao invés das
redes, armadilhas. É o caso das nassas – redes com estrutura desmontável para captura
de enguias –, dos alcatruzes – armadilhas de abrigo para a apanha de polvos – e dos
covos – estruturas semelhantes a gaiolas que se destinam à pesca de choco ou
caranguejos.
Manuel divide-se entre as atividades de pesca, apanha e no plantio de hortaliças.
Há alguns anos, vem fazendo as campanhas no máre sozinho. Sua mulher, assim como
outras no povoado, sofre de dores musculares e problemas ósseos devido aos anos
dedicados intensamente a pesca. O pescador, com pouco mais de 45 anos, também se
queixa de dores, mas argumenta que não pode ficar parado e tem participado, todos os
anos, da temporada do choco. Diferente de seus colegas de profissão, Manuel utiliza o
covo na captura dos animais180.
“Eu já estou acostumado, sabes, Zé[i], com estas armadilhas. Venho
aqui, faço minha pescaria, volto... Não gosto da pesca com artes. Já
pesquei, mas não gosto. Ah, é muito trabalhoso! Este aqui [o covo]
cobra muito esforço, é verdade. Mas, a manutenção é menos
trabalhosa, pois! Veja quantas artes tem meu irmão ou Joaquim! E
para safar aquilo tudo? Prefiro os covos.”
A armadilha trata-se de uma armação de ferro em formato paralelepípedo que
possui, em média, 20 cm de altura, 40 cm de largura e 60 cm de comprimento, coberta
180
O uso de covos é permitido, de acordo com o Regulamento de Pesca do Rio Sado, tal como versa na
Portaria 562/90 de 19 de julho. Entretanto, na tentativa de conter a pressão humana sob o ambiente
estuarino, a Direção Geral de Pescas, há alguns anos, não tem liberado novas licenças para o uso de covos
nesta região. Mais sobre o assunto será discutido na Parte 3 desta tese.
218
por uma rede plástica com malhas quadradas que podem variar de um a dois
centímetros. Há na estrutura, uma abertura oval, em forma afunilada, chamada
localmente de endiche é o orifício por onde os animais entram. Tal abertura pode vir na
base da armadilha no meio da rede plástica, dependendo do modelo. Na base da
estrutura há uma tampa por onde o pescador retira o animal quando capturado. A arte,
tal como é utilizada pelos carrasqueiros, possui, ainda, uma corda com cerca de três
braças181 que liga a peça a uma bóia.
A preparação para a campanha do choco é um pouco diferente para os
pescadores que usam a armadilha. É preciso, primeiramente, limpá-las, bem como
reparar suas telas plásticas. Cada covo dura, em média, sete anos. Quando a estrutura de
ferro da armadilha está muito enferrujada ou corroída pela maresia é necessário fazer
sua substituição por outra completamente nova. Manuel relatou que um covo custa de
25 a 30 euros e é feito por artesãos e ferreiros de povoados próximos. Caso as redes
plásticas estejam com muitos buracos é possível trocá-las.
Os carrasqueiros usam como engodo, dentro dos covos, pequenos ramos de
aroeira
182
. Para isso, procuram os arbustos nos lugares menos alagados do sapal. Eu
mesmo acompanhei esta tarefa, realizada por Manuel e Geraldo, nas proximidades da
base militar de Tróia. De caminhonete, os pescadores ocupam uma manhã para ir até o
181
A medida de cada braça é equivalente a um metro, aproximadamente.
Arbusto da família Anacardiaceae. A espécie encontrada em Portugal é a Pistaceas lentiscus L. Cf:
LORENZZI: 2002. Já aqueles que utilizam o covo para captura de caranguejos usam como isca pedaços
de sardinha, peixe-espada, garrento entre outras espécies
182
219
local onde se encontram os arbustos. Com auxílio de um facão, eles cortam a quantidade
aproximada de ramos que vão usar, pelo período de quinze a vinte dias, dentro de cada
armadilha. Há, neste caso, mais um exemplo da associação entre os conhecimentos do
ambiente – as propriedades de espécies da flora – com os hábitos e gostos dos animais
estuarinos.
“Usamos os ramos [de aroeira] porque as fêmeas gostam. Elas
procuram os raminhos e colocam suas ovas. Mas não é só isto, pronto.
Quando entram nos covos já não conseguem mais sair. Ficam presas.
Aí, acabam por atrair os machos. Às vezes, quando puxamos os covos
estão lá uma fêmea e dois ou três machos! Acho que estes bichos são
como os homens: gostam mesmo é de namorar!” Manuel.
Ramos de aroeira no barco
Como na outras modalidades, a pesca com uso dos covos está submetida ao
regime das marés. Com o Fugitivo, uma caçadeira azul e vermelha, Manuel costumava
deixar o porto palafítico cerca de uma hora e meia antes do baixa-máre. A navegação
até o ponto no qual o pescador deixava suas armadilhas naquela temporada durava
aproximadamente uma hora. Seu motor de popa de 30 hp fazia a caçadeira cortar as
águas do Sado como uma lâmina em dias sem vento. Já nos dias mais instáveis e com
ventos soprando no quadrante norte, a viagem tornava-se uma verdadeira aventura com
o barco quebrando as ondas que nasciam em sua frente.
“Estais a ver a bóia, Zé[i]?”, gritava Manuel da popa do Fugitivo sempre que
chegávamos perto da área de pesca. A bóia, que na verdade é um galão de plástico de 20
litros, trás em letras garrafais a inscrição do barco e marca onde os covos estão
220
submersos. Quando começou a campanha daquele ano, o pescador teve que trazer, aos
poucos, as 150 armadilhas que usa: “passei quase uma semana apenas trazendo os
covos para cá.”
A bóia, calada com uma ancora semelhante à de uma rede, marca o início de
uma linha imaginária. A operação consiste em submergir os covos sequencialmente e
em posição de linha reta, com quarenta braças de distância de uma armadilha para outra.
Pequenas bóias amarradas a cada um dos covos indicam onde eles estão. Manuel dividiu
suas armadilhas em três conjuntos com aproximadamente cinquenta peças cada um.
Devido às condições climáticas, às mudanças no regime de ventos ou mesmo ao volume
de água das marés, algumas armadilhas podem ser arrastadas para longe, desfazendo a
linha imaginária inicial.
“Eu já encontrei alguns de meus covos longe daqui. Ou encostados
nas margens, ou mesmo a quilômetros de distância. Com o máre, não
há de brincar!”
Encontrar a linha de covos e segui-la com alguma coerência não é tarefa fácil.
Em primeiro lugar, porque o pescador tem que contar com um olhar bem treinado para
enxergar as bóias na imensidão daqueles mares, principalmente em dias de águas mais
agitadas. É preciso também manejar com destreza mecanismos de referência espacial.
Como ocorre na Lagoa Feia e em outros lugares, os carrasqueiros usam como pontos de
referência, acidentes geográficos e elementos da paisagem que compõem do estuário.
“Isto é assim: estamos no Cavalo [nome que designa àquela porção do
estuário]. Isso eu já sei. Agora eu tenho que olhar lá para frente [neste
momento, o pescador aponta], lá para onde está uma das chaminés da
SeteNave [estaleiro localizado no conselho de Setúbal e que pode ser
observado em vários pontos do estuário]. Aqui ao lado há estes
pinheiros, estais a ver? Pronto, eu sei que daqui para frente, estão
meus covos, mais ou menos nesta linha reta cá”.
Quando os covos são localizados é hora de começar a alar, ou seja, é o momento
de retirá-los da água183. Manuel aproxima a embarcação das armadilhas. Usando um
gancho, o pescador iça a bóia e puxa o covo para cima do barco. A estrutura pesa cerca
183
Alguns carrasqueiros usam o verbo “alar” para designar a retirada dos covos da água. Assim como
fazem com as redes. Outros utilizam o verbo “puxar” para nomear a mesma ação.
221
de cinco quilos, mas, com a força da água, a tarefa torna-se mais penosa. Até visualizar
toda a armadilha, é difícil saber se algo foi capturado. Os chocos que adentram os covos
são de tamanhos e pesos variados. Em muitos casos, são capturados mais de um por
unidade. Também é comum que outras espécies – tais como o charroco, a safia, e o
alcorrais – entrem nas armadilhas para comer os chocos que estão presos e também não
consigam sair.
Depois de retirado da água, o covo é apoiado em um banco de madeira com
cerca de sessenta centímetros de altura localizado na proa da embarcação. Caso algum
choco tenha sido capturado, o pescador abre a tampa da armadilha e o retira com as
mãos. É preciso ter cuidado ao pegar o peixe, pois a espécie possui um mecanismo na
região bucal, semelhante a uma pequena serra, e pode morder o pescador. Uma vez
retirado, o animal é colocado em um latão. Antes de largar o covo na água novamente, é
preciso limpa-lo com um escovão para retirar o limo, as ovas, o cascalho e qualquer
outro tipo de sujeira que impeça novos chocos de se aproximarem. Se for preciso, é
também neste momento que os ramos de aroeira já desgastados pelos dias na água são
substituídos por outros. Os ramos são amarrados com pequenos fios plásticos no interior
da armadilha.
Manuel alando os covos
222
O processo de alagem, retirada do peixe, limpeza da armadilha e sua devolução
para a água é feito em pouco mais de 40 segundos, em média. Manuel, que pesca só,
precisa deixar o motor do barco em ponto morto para realizar a tarefa. Após o retorno
do covo à água, o pescador apruma o barco em direção a próxima bóia e, ao alcançá-la,
recomeça a tarefa. A armadilha retirada da água é devolvida no lugar da próxima que é
alada, fazendo com que o conjunto esteja, dia a pós dia, em movimento, ainda que
dentro da tal linha imaginária. A ação se repete até o pescador concluir todo o circuito.
Assim como quando estive embarcado com Alexandre e Minda, as primeiras
marés com Manuel foram também as lições iniciais sobre mais uma técnica pesqueira
desconhecida para mim. Entretanto, mais rápido do que com o casal, guardei o caderno
de campo e a máquina e passei a maior parte tempo, em quase todas as pescarias que
acompanhei, auxiliando Manuel. Minha função consistia em içar as bóias e puxar os
covos para cima do barco. Enquanto isso, o pescador podia avançar mais rapidamente
até a próxima bóia. Com o covo em cima da embarcação, eu retirava os chocos – e
outros peixes – capturados e os colocava nos latões. Ao mesmo tempo, Manuel limpava
as armadilhas para, em seguida, devolvê-las à água. Estas ações coordenadas, quando
desempenhadas por duas pessoas, notadamente reduziam o tempo total gasto na
pescaria.
223
Após a inspeção de todos os covos, chegamos, enfim, à outra grande bóia que
marcava o final das armadilhas. Testemunhei o conhecido binômio abundância e
penúria tão marcante na vida de pescadores artesanais. Houve dias em que eu e meu
interlocutor voltamos à Carrasqueira com quase quarenta quilos de choco – volume de
pescado considerado bom para os padrões atuais de captura. Já em outros tantos,
voltamos com menos de quinze quilos. Na ocasião do último resultado, Manuel também
repetia uma velha frase praticada entre pescadores que exprime, metaforicamente, sua
decepção com a caçada: “Hoje não pagamos nem o gasóleo”.
As repetidas idas ao máre com Manuel tornaram natural certos procedimentos.
Além de ajudá-lo na pesca, era comum que eu conduzisse o Fugitivo até a Carrasqueira
enquanto ele lavava e organizava o barco. Se estivesse sozinho, tais tarefas seriam
empreendidas apenas no porto. Dependendo do tempo gasto com os covos e da altura
das águas, muitas vezes éramos obrigados a parar, próximo ao povoado, à espera da
enchente. Era a ocasião para um lanche, cuidadosamente preparado pela camarada de
Manoel. O cardápio alternava frutas, sanduíches e enchidos portugueses, acompanhado
de sucos em caixinha. Um dia, para minha surpresa, o pescador sacou uma garrafa pet
de Guaraná Antártica e disse: “Este é para o amigo Zé[i] lembrar da terra dele! E para
selar a nossa amizade já que és praticamente meu camarada!”. O refrigerante estava
224
guardado em uma mochila, ali no chão do barco, há pelo menos seis horas. Brindei com
o pescador aquele copo de guaraná quente e o agradeci emocionado.
Ao final daquele lanche falei mais como pescador do que como etnógrafo:
“vamos embora Manuel, porque ainda temos que levar os peixes na lota!”
12 – Entre chocos, linguados e mapas.
Minha estadia na Carrasqueira pode ser dividida em três etapas. A primeira
parte, que consistiu nos períodos de novembro de 2010 a fevereiro de 2011, foi o
período exploratório no qual me apresentei aos moradores, estabeleci contatos e construí
minhas primeiras impressões sobre o lugar e as possibilidades da etnografia. Nesta fase,
como já foi dito, alternei estadias em Lisboa com semanas inteiras na aldeia. Se
fevereiro, para os carrasqueiros, marca o início da temporada do choco e o fim dos
meses frios, para mim definiu o período que julgo ter sido o mais fundamental. Foi a
partir deste mês que estabeleci residência permanente na aldeia e acompanhei a apanha
de ameijoas no Montijo. As duas coisas, a moradia e a participação nas atividades do
máre, mobilizaram a atenção dos pescadores bem como facilitaram a adesão dos
mesmos à pesquisa. Considero, por fim, que no período que vai de março a junho – o
terceiro – me dediquei quase integralmente à observação direta dos carrasqueiros,
embarcado com eles, no exercício cotidiano da pesca artesanal.
De março em diante, ir ao máre, com meus interlocutores tornou-se comum.
Quando eu era avistado em terra por algum carrasqueiro conhecido normalmente
escutava: “O Zé, não vais ao máre hoje?” No Sado estive, desde então, embarcado com
Alexandre e Minda, Zé Carioca e Tibía, Manuel, Zé Pedra e Joaquim e Rodrigo. Com a
última dupla, passei a maior parte do tempo nos últimos três meses de pesquisa. Pude,
por isso, aprofundar alguns temas que acompanhavam as conversas estabelecidas com
outros interlocutores, seja em terra ou nos máres.
Joaquim e sua família atualmente são os únicos na Carrasqueira que praticam a
pesca artesanal na costa e no estuário. Nos meses de frios, ele, Minda e Rodrigo,
pescam em águas oceânicas entre Sines e Setúbal. Já nos meses quentes, a família
trabalha em águas interiores. Não consegui acompanhar a pescaria na costa porque
225
quando os conheci já estavam se dedicando à campanha do choco. Após uma mediação
feita por Minda, em meados do mês de março, comecei a embarcar com o pai e o filho
na Nau do Sado.
O pescador foi um verdadeiro mestre para o etnógrafo. Joaquim era um sujeito
de temperamento calmo, fala baixa, sempre muito didático e educado. Ele entendeu de
pronto meu interesse em discutir os conhecimentos que os pescadores detinham sobre o
ambiente. Também era muito reflexivo sobre as condições de vida na Carrasqueira.
Elaborava, ainda, boas comparações entre a pesca em águas oceânicas e a faina
estuarina.
Joaquim
O pai e o filho dedicavam-se à campanha do choco e, quando a maré dava
condições, apanhavam mariscos – assim como os outros carrasqueiros. Entretanto, a
experiência de Joaquim nas “duas” pescas, adquirida, ao longo de anos, fazia com que o
pescador arriscasse também a captura de outra espécie que adentrava do oceano para o
rio no período dos meses quentes: o linguado.
“Os linguados são muito valorizados cá em Portugal. Há muitos por
ai. Mas, não é qualquer pescador que os apanha, disso eu tenho
certeza. Veja só se Pai do Céu os apanha? [risos] No máximo uns dois
226
ou três [risos]. A malta por ai só quer as coisas mais fáceis. Capturar
os linguados é mais difícil que os chocos. Primeiro, porque há muito
mais chocos nestas águas [interiores] do que linguados. Segundo,
porque o linguado é um peixe mais difícil mesmo. Até para pegar
neles, como as mãos, depois de capturados, é mais difícil. Estes que
aparecem nestes máres parecem uma lixinha assim, mas, ao mesmo
tempo escorregam quando tentamos agarrá-los”. Joaquim.
Joaquim e Rodrigo
Acostumado a capturá-lo na costa, o pescador explica a diferença de
comportamento do peixe nos diferentes ambientes:
Na costa eles têm mais espaço. Tem mais água, estais a ver? Eles
nadam mais. Lá [na costa], é importante saber onde eles estão. Eu
conheço bons sítios [lugares] onde há linguados. Marco todos em meu
GPS e volto lá. Cá dentro é diferente, pois. Variam de sítio por causa
da comida. É preciso prestar a atenção nos parceis quando a maré está
baixa. Os linguados ficam por cima dos parceis porque ali há tudo que
eles precisam. Como eles estão sempre a rastejar pelos parceis –
porque tu sabes que o linguado é assim deitado [mostra com a mão]
com a cabeça e os olhos para cima e a barriga e a boca para baixo.
Eles fazem a cama. A malta aqui chama a cama dos linguados.
Quando aparecer, eu mostro. Parecem até pegadas de gentes. Bom, é
preciso ver onde estão as camas e saber como a água se movimenta –
onde vaza e por onde enche – porque é certo que eles vão acompanhar
o movimento das marés. É preciso saber isso porque se não colocamos
as redes do lado errado e não apanhamos nada!”
227
Na ocasião de uma maré de canivetes, onde estivemos eu, Rodrigo e Joaquim,
pude ver as tais camas. Realmente se parecem com pegadas humanas, já que o linguado
é uma espécie bentônica, ou seja, vive a maior parte do tempo junto ao fundo, encontra
no Sado um ambiente propício para alimentação e desova. As camas são, portanto, as
marcas que os linguados deixam no fundo arenoso do estuário. “Amanhã, Zé, vamos
largar estas redes aqui. Se estiver certo, podemos fazer uma boa maré de linguados,
não é mesmo?”. Foi o último comentário de Joaquim antes voltarmos para a Nau do
Sado que estava ancorada ao norte daquele parcel.
Proa da “Nau do Sado”
Para a captura do linguado pode-se utilizar também a solheira com a diferença
que o tamanho das malhas é menor quando comparada às artes em sua versão para a
costa.
“Não paga a pena utilizar a mesma malhagem cá para dentro. Temos
que usar ai 60 [milímetros] ou 70 se quisermos pegar alguma coisa. Lá
fora, é o contrário. Podemos largá-las com 80 ou 90 que ainda assim
capturamos. Lá [na costa] os pegamos maiores!”
228
A estratégia para a captura é a seguinte: após identificar o parcel, o pescador
larga as redes durante o baixa-máre em frente aos bancos de areia. A ideia é que o peixe
seja capturado quando voltar ao mesmo parcel, na ocasião do aprea-máre. “Se eles
estiveram por aqui, é quase certo que voltem”, dizia Joaquim. Mas, o posicionamento
das redes tem que ser combinado com a direção das águas, como explica o pescador:
“Se for uma maré viva e ela estiver vazando para lá, para o sul, eu
preciso colocar as redes depois do parcel, porque se não os peixes
todos passam de lado e não pegamos nada! As redes têm que formar
algo como uma barreira para os linguados. Se não, a água escorre, e
eles vão embora com ela!”.
Depois da apanha de canivetes e da conversa no parcel, provoquei meu
interlocutor. Disse que amanhã seria o “teste daquela teoria”. Ele riu e me respondeu:
“É Zé, esta é a teoria do pescador. Amanhã vamos ver. Mas tu sabes que, mesmo com
tudo isso, pode dar tudo errado. Num dia ganhamos, noutro perdemos. É assim. É a
vida! [risos!]”
O resultado da maré estava estampado no sorriso de Joaquim. No dia seguinte a
conversa, pai e filho capturaram perto de quarenta quilos de linguado justamente
naquele ponto onde, no dia anterior, avistamos as camas do peixe. Orgulhoso da
investida, ele comenta: “Estais a ver os linguaditos, Zé? Que beleza, não? Poderia não
229
ter dado nada também, acontece... É a sina do pescador. Mas é preciso arriscar, não é
mesmo?”
***
Os conhecimentos de Joaquim e sua boa disposição para interlocução me
fizeram, ao longo do tempo, provocá-lo ainda mais. O pescador falava com
desenvoltura sobre as espécies marinhas e os lugares por onde elas “andavam”. Assim,
retomei um assunto que já vinha desenvolvendo com outros interlocutores: a toponímia
do ambiente estuarino. Comum entre vários grupos pescadores artesanais, os
carrasqueiros, a todo instante, mencionavam lugares espalhados pela extensão do
estuário. Tratavam-se, como no caso da Lagoa Feia analisado anteriormente, de porções
do ambiente que recebiam nomes e qualidades que as particularizavam e as distinguiam
umas das outras.
Optei em Portugal pelo mesmo método que utilizei com os pescadores
pontagrossenses. Estimulei os carrasqueiros a falar dos nomes de lugares conhecidos,
bem como indicar sua localização aproximada, confeccionando, em cartolinas, mapas
que representassem o Rio Sado. Se meu palpite estivesse certo, este exercício, que
misturava toponímia e representação espacial, poderia ser um bom pretexto para meus
interlocutores portugueses falarem sobre o ambiente, as espécies, os conhecimentos e, é
claro, sobre as disputas pelos espaços de pesca.
O primeiro mapa, tal como mencionado, foi elaborado por Tibía e Mariana ainda
no início do ano de 2011. Ele foi desenhado por Tibía e os nomes dos lugares foram
resultado dos diálogos dela com a irmã. A atividade aconteceu na margem do Sado,
próximo ao porto palafítico e foi acompanhada atentamente por mim e por Zé Carioca.
Tibía queixou-se da memória. Disse que conhecia muitos outros lugares além daqueles
que identificou em seu desenho.
230
Tibía e Mariana
O mapa das pescadoras elencou os seguintes nomes: Boca da Comporta,
Carraca, Garrentos, Catita, Esteiro de Ameijoa, Esteiro da Raposa, As Coroas, Os
231
Cabeços dos Pobres, Patão Grande, Patão Pequeno, As Palhas, Esteiro dos Olhos,
Esteiro Fundo, Resmaninho, As Garças, Ilha, Ilha do Cavalo, Cavalo, Ostrão, Olho de
Boi, Cachopos, Moita, Setenave/Lisnave, A lota, O Cais, Pinheiro Francês, Mar de
Seba e Silveirinhas.
Tibía e Mariana disseram conhecer todos estes mares. Na companhia do pai –
pescador já falecido – aprenderam desde pequenas a explorar os recursos marinhos
naquele estuário. Mas, assim de pronto, diziam que era difícil lembrarem todos os
nomes. Eu as expliquei que não havia problema. O exercício tratava-se, apenas, de uma
forma de registro daquelas informações que não substituía o conhecimento prático que
elas tinham sobre o Rio Sado.
O segundo mapa foi elaborado por Alexandre e Deolinda na sala de sua casa. O
pescador, inicialmente, não se sentiu à vontade para riscar a cartolina e por isso pediu
que eu o fizesse enquanto ele rememorava os nomes. Um pouco reticente sobre a
atividade, Alexandre não desenvolveu muito o assunto. Somente com a chegada
inesperada de Deolinda ao recinto que o mapa ganhou mais contornos e mais nomes.
Animada em falar sobre a toponímia, Deolinda lembrou-se de mais lugares que o
marido. O mapa do casal identificou Boca da Comporta, Seixola, Catita, Mar do Zé
Maria, Cavalho (ilha), Esteiro Fundo, Mar do Julio, Mar do Vitorino, Coroas, Mar do
Zezinho, Rabo de Bacalhau (Mar do Zé Brás), Mole da Assoeira, Ratão (Mar do
232
Antonio Bacalhau), Seba, Chinelo, Furado, Resmaninho, Furadinho, Cau do Meio,
Garrentos (Mar do Mosca), Ergueira da Ilha, Palhas, Garças (Mar do Antonio),
Cabeça Nova, Longa, Carraca e Escama Ferro.
Uma comparação entre os dois mapas revela que lugares como Boca da
Comporta, Esteiro Fundo, Cavalo, Garrentos, Resmaninho, Palhas, Garças, Carraca,
Coroa e Cais aparecem em ambos. Julguei, inicialmente, que entender esta toponímia
era importante para que eu, uma vez embarcado junto com meus interlocutores, pudesse
manejar, minimamente, algum conhecimento sobre tais lugares espalhados pelo
estuário. Meu desejo, no entanto, era retirar mais implicações deste exercício para a
etnografia do que apenas colecionar um elenco de nomes de lugares. Por vezes, fiquei
em dúvida se me faltava imaginação sociológica para pensar tais questões, se existia
uma lógica classificatória semelhante à descrita para o caso da Lagoa Feia ou se,
simplesmente, aquilo tudo não era de nenhuma relevância para os carrasqueiros.
No entanto, ao analisar junto com Joaquim os mapas feitos por Tibía e Mariana e
por Alexandre e Deolinda, as questões sobre os direitos de pesca surgiram, pela
primeira vez, de modo mais articulado no trabalho de campo.
Além da reflexão sobre os mapas dos colegas, Joaquim ficou responsável por
desenhar aquela que seria a terceira carta. E o fez entre uma largada de rede e outra. A
cobertura da casa de máquinas da Nau do Sado serviu como mesa de desenho para o
pescador. Creio que influenciado por nossas conversas sobre as dificuldades da
navegação no estuário e a complexidade de sua topografia submersa, Joaquim chamou a
atenção em seu mapa, para os acidentes geográficos invisíveis aos olhos de quem não
conhece aqueles mares.
233
“Estais a ver, Zé, estes nomezinhos aqui? [apontando para pontos no
mapa de Alexandre e Deolinda]. Mar de Zezinho, Mar de Antonio,
Mar de Vitorino... São todos mares de pescadores daqui da região.
Alguns nem são da Carrasqueira. É que o gajo pesca tanto por estes
lados que é como se o mar o pertencesse. Ai, a malta diz: mar de
fulano, mar de sicrano...” Joaquim.
Joaquim elaborando o mapa
As palavras do pescador confirmaram minha suspeita. Eu estava ali diante de um
fenômeno comum entre grupos de pescadores artesanais. Tratava-se de mais uma forma
de apropriação do espaço pesqueiro que evidenciava algum tipo de propriedade sobre
ele. Restava, portanto, ao etnógrafo, saber que implicações ela tinha sobre a prática da
atividade ali desenvolvida.
234
“Há uns gajos que são abusados. Nunca mudam de sítio. Chova ou
faça sol eles estão lá a marcar sítio! Pensam mesmo que são donos,
pronto. E ainda por cima, ninguém pode chegar perto, porque eles não
gostam. Há gentes assim! São muitas vezes aqueles que menos
arriscam, estais a ver? Pescam sempre do mesmo jeitinho e no mesmo
sítio”
Não há, na concepção dos carrasqueiros, uma medida exata para definir onde
começa e termina a área que pode ser explorada por um barco de pesca. Ouvi relatos,
por exemplo, que diziam que a medida é o raio das redes. Esta área, portanto, só poderia
ser explorada pelo dono das artes. A simples aproximação de outra embarcação com o
objetivo de pescar nas proximidades pode gerar, de acordo com esta teoria,
constrangimento entre pescadores de companhas diferentes.
Entretanto, o que mais escutei como fator gerador de conflitos entre pescadores
que utilizavam redes não foi tanto a distância de uma pescaria para outra. O
posicionamento das artes era visto, pela maioria de meus interlocutores, como o
principal problema. Joaquim, certa vez, desenhou em uma folha para que sua descrição
ficasse mais clara184:
“Olha bem, se eu largo minhas artes aqui, entre um banco de areia e
um esteio, é porque eu espero que os peixes nadem para cá no baixamáre, estais a ver? Pronto, se um gajo mal intencionado coloca as
artes dele em paralelo a minha – e se ele for pescador ele sabe que o
baixa-máre, normalmente, empurra os peixes para o sul – ele apanha
todos os peixes porque, ao final, as artes dele estão em frente as
minhas. Percebes? O peixe não passa. Fica primeiro nas dele”.
Nos dias seguintes à explicação de Joaquim, observei, na prática, o desenrolar de
briga entre Minda e um pescador da Gâmbia. Depois de largar as redes junto com
Alexandre, a dupla aproveitou as condições da maré – que estava viva naquela semana –
para apanhar ameijoas em um parcel relativamente distante de onde estavam suas redes.
No caminho até o parcel, Minda comentou:
“Tem um homenzinho ai que gosta de colocar as artes dele para
atrapalhar os outros. Veja só! Há poucas semanas, ele colocou as artes
184
A folha era o verso de uma nota fiscal de pescado [chamada em Portugal de ‘talão’] em tamanho A4
aproximadamente. O documento original foi perdido pelo etnógrafo.
235
em frente as nossas! Bem em frente mesmo! Ele pensa que não nos
importamos porque o Alexandre não disse nada na altura. Se o
homenzinho estiver lá ele [o pescador da Gâmbia] vai ouvir!”
No retorno da apanha, ao chegar perto das redes, Minda apontou:
“Olha lá, olha lá, não falei! Olha ele lá! Ah, mais hoje este gajo vai me
ouvir. Sou pescadora! Larguei minhas redes aqui primeiro e ele não
pode me desrespeitar assim! Não faço isso com os outros, nem da
Carrasqueira, nem de nenhum outro sítio, não quero que façam isso
comigo, oh pá!
A pescadora parecia mesmo querer tirar satisfação com o tal sujeito. Por isso,
ordenou que eu assumisse o leme para que, propositalmente, ela e Alexandre pudessem,
ao colherem as redes, passar o mais perto possível do pescador. Para minha surpresa,
Alexandre, sempre muito falador e jocoso, ficou quieto. Já a irmã, nitidamente
enfurecida com a atitude do outro pescador, desferiu:
“O que o senhor pensa que está a fazer? Porque não pesca em outros
sítios? Há muitos máres por ai, meu senhor. Não faça isto. O senhor
acha que é certo? Eu sou pescadora! Eu exijo respeito, meu senhor. O
senhor não pode colocar suas redes cá perto das minhas! Está a
sabotar minha pescaria? Pensas o senhor que és mais esperto. Não há
ninguém mais esperto que ninguém, pois saiba!”
O intruso, também colhia suas redes. Deve ter largado as artes pouco tempo
depois que o Genoveva Luisa deixou o local rumo ao parcel de ameijoas. Fazendo-se de
desentendido, o pescador não respondeu nada a Minda. Esta por sua vez, continuou
esbravejando do momento em que colhia as redes até o retorno a terra.
O caso acima se assemelha ao conhecido “direito a vez” ou “direito de vez”
comum em regiões nas quais se desenvolve pesca artesanal próxima à costa ou dentro
de lagunas e estuários. No modelo encontrado no Sado, que eu chamarei aqui de “direito
de chegada”, se um pescador alcança primeiro do que outros uma área de pesca, ele tem
o direito de explorar exclusivamente o lugar – ao menos naquele dia185. Para que possa
fazê-lo novamente, na próxima maré, o mesmo pescador tem que chegar primeiro no
185
Não tenho dados sobre as percepções dos pescadores de outras aldeias situadas no estuário. Por isso,
reforço, que esta é percepção dos carrasqueiros com os quais travei relações ao longo do trabalho de
campo sobre as formas de apropriação dos espaços de pesca.
236
mesmo lugar. Ao identificarem uma boa área piscosa, muitos pescadores optam por
dormir, de um dia para o outro, nos porões ou no próprio chão do barco, a fim de
garantir a exploração particular da área.
Pernoitar no máre não garante de todo a exclusividade da pesca – conforme
apresentado acima – mas, sem dúvida restringe a possibilidade de que, no dia seguinte,
outra companha largue as redes em parceis e outros locais identificados como boas
áreas para captura. A toponímia revela, portanto, que o Mar de Antonio, Mar de Zezinho
ou Mar do Mosca, por exemplo, são áreas demasiadamente exploradas por estas
pessoas. Mar – categoria tão central na vida carrasqueira – ganha aqui mais outra
acepção: designa uma área explorada por determinado pescador ou grupo que possui um
direito de uso provisório sobre ela. Direito este que só pode ser vindicado com base na
antecedência. Assim, o precursor – ou seja, aquele que chega antes – anuncia sua
presença no máre, em última instância, com a largada das redes.
Esta etiqueta de apropriação dos espaços é percebida de modo ambíguo pelo
carrasqueiros. Se por um lado meus interlocutores entendem e reproduzem este modelo,
por outro, aqueles pescadores que nunca “deixam” seus máres são estigmatizados como
egoístas ou preguiçosos. Ouvi muitas vezes de Joaquim, Zé Pedra e Alexandre,
referências a ideia de que “pescador deve se arriscar e procurar outros máres todo tempo
ao invés de explorarem sempre a mesma área”. Há, nesta ambiguidade, certamente, uma
tensão entre a etiqueta conhecida (e reconhecida) por todos e uma concepção do que é
“ser um pescador” – sujeito que arrisca, explora, se aventura; aquele que ganha, mas
que perde também.
Em meus dias finais de trabalho de campo, no início do mês de junho,
acompanhei em um café frequentado por pescadores, uma acalorada discussão sobre
este assunto. Estavam em uma das mesas, entre cervejas e licores, Virgílio, Joaquim,
Henrique e Paulo, este último, irmão de Zé Pedra. Por conta própria, Joaquim retomou o
tema dos mapas. Gabava-se, para os colegas, que tinha elaborado o mapa mais completo
dos máres do Sado. Eu confirmei acenando positivamente com a cabeça.
Neste momento, Virgílio, provocou Joaquim e disse: “E conheço mais estes
máres que tu, homem! Ando por eles há muito tempo e tu sabes!”. Depois da
provocação, Joaquim mudou. O pescador deixou de lado a fala mansa e pausada e
237
retrucou Virgílio com forte entonação: “Andas onde? Andas onde? Tu és mais velho
que eu e isto é verdade. Pescas há mais tempo que eu e isto é verdade! Mas não
conheces mais máres do que eu não senhor!”. E completou:
“E tu sabes, Virgílio, que esta malta toda aqui sabe que tu sempre
pescas no mesmo sítio há anos. Não sai de lá por nada! Vai e volta.
Ficas lá, a dormir e tudo, para não deixar ninguém pescar! Como tu
conheces mais este Sado do que eu? Imagina! Eu ando cá dentro e na
costa. E tu? Chegas com tua mulher apenas aqui na Raposa [nome de
lugar]! A malta toda sabe e já está a falar mal.”
Aproveitando a discussão, provoquei os dois a elaboraram outro mapa que
indicasse o tal local explorado por Virgílio. Rapidamente, Zé Pedra, que observava o
debate de longe, chegou à mesa com uma folha de papel em branco tamanho A4.
Joaquim logo rabiscou uma pequena carta e, enquanto desenhava, disse em voz alta:
“Eu provo agora o que estou a dizer!”
Encontro de pescadores e discussão sobre os espaços de pesca
Com o desenho pronto, Joaquim desafiou o colega:
“E então, senhor? Não é ai mesmo que pescas há anos? Que outros
mares tu conheces que não estes? Se conheces, escreves! Vai! O Zé
está aqui conosco a acompanhar toda a pesca. Ele quer saber se tu
sabes ou se tu só sabes falar! Vai, desenha o que tu sabes ai!”
Virgílio não acrescentou nada ao mapa. O pescador ficou claramente
desconcertado com o rumo da discussão. Continuou, já com pouco crédito frente aos
238
colegas do café, insistindo que conhecia outras partes do estuário e que, diferente do que
Joaquim o acusava, pescou em vários sítios diferentes ao longo de sua vida. Por fim,
antes de deixar o recinto, Virgílio disse, mais uma vez, que me levaria ao máre com ele
até meu retorno ao Brasil. O pescador nunca fez isso.
“Estais a ver, Zé? Tu tens andado comigo há tempos por estes mares.
Eu sei do que falo. Ele [Virgílio] está certo. É o mar dele. Não é? Mas
não o divide com ninguém. Nem arrisca a pesca em outros sítios, oh
pá! Assim é muito fácil!” Joaquim.
A disputa sobre quem conhece empiricamente mais ou menos lugares no
estuário, revelou, ao etnógrafo a maneira como os carrasqueiros se posicionam, do
ponto de vista moral, em relação às regras que organizam o acesso aos recursos
pesqueiros. Zé Pedra, que acompanhou toda a discussão sem fazer nenhum comentário,
já havia falado, em outra ocasião, que considerava Virgílio um sujeito egoísta pela
forma como se comportava no máre. Tanto que, por conta de uma briga ocorrida no
estuário por motivos que também envolviam os limites da área de captura, os dois
pescadores, atualmente, praticamente não se falavam mais186.
A ambiguidade que envolve as avaliações nativas sobre esta etiqueta e o caráter
provisório da propriedade dos máres foi observada, na prática, em diversas situações.
186
Cabe ressaltar que tais etiquetas esquematizam um modelo semelhante àquilo que Pierre Clastres
chamou de “controle não coercitivo”, uma vez que o próprio grupo participa, ao mesmo tempo como
formulador e fiscalizador das normas sem a ingerência, neste caso, de órgãos administrativos formais. Cf:
CLASTRES: 1988.
239
Duas delas serão destacadas nas notas a seguir. Elas evidenciam os conhecimentos, as
estratégias, as tomadas de decisões e, sobretudo, a dimensão competitiva do ofício de
pescador.
13 – Notas187.
13.1 – Os chocos do Gâmbia.
Lá se foi mais um dia de trabalho com Manuel. Percebo que o pescador gosta,
cada vez mais, da minha presença no barco. Talvez porque agora eu faça menos
perguntas do que início e, sem dúvida o ajudo com mais desenvoltura. Por mais que
Manuel diga que está acostumado a fazer a campanha do choco desacompanhado de sua
camarada, estar no máre sozinho requer muito mais esforço e é, por vezes, muito mais
perigoso.
Hoje Manuel me mostrou uma forma alternativa de capturar chocos. Após nossa
maré costumeira, o pescador me disse que ia “apanhar uns chocos com as mãos”.
Primeiro, julguei que era brincadeira. Me enganei. Manuel apontou a proa do barco para
a direção do Pinheiro Frances. Não entendi bem se era o Pinheiro Frances ou o Cavalo.
Não importa. Encostamos o Fugitivo. Descemos seguimos até a areia com água a altura
da canela. Esta parte do estuário era similar a um “canto”. Uma extensão de areia dura
descoberta pela água que se juntava a uma porção mais mole. Dali até o pinheiral dois
braços de água se abriam a partir de uma bifurcação. Pareciam dois córregos. Era
possível ver onde o máre entrava e por onde ele escapava. A vazante era responsável
por criar este ambiente provisório.
“Estais a ver, Zé[i], ali? Sabes o que são aquelas coisas?”. Eu respondi que
eram ramos de aroeira. Aparentemente um pouco maiores do que aqueles usados por
Manuel dentro dos covos. Ele disse que sim. “Sabes o que tem lá nos ramos?Chocos a
nos esperar!” O pescador terminou a fala com uma gargalhada, como de costume.
Os ramos estavam fincados na areia em uma distância de quatro a cinco metros,
aproximadamente, de um para outro. A maré baixa destapava parte de sua folhagem
aparentemente desgastada pelos dias em submersão. O fundo do córrego era de areia
187
Os textos dos tópicos a seguir (13.1 e 13.2) são reproduções, com poucas alterações, retiradas de meu
diário de campo.
240
bastante mole – o que tornava a caminhada por ali uma tarefa árdua. Por isso, Manuel
propôs que eu ficasse na areia dura enquanto ele andava pelo córrego.
Os chocos, sobretudo as fêmeas, são atraídas para os ramos. Como os pescadores
daqui dizem, “elas gostam do quentinho”. O método parece simples. O pescador anda
cuidadosamente até o ramo para não assustar o peixe e se agacha em frente ao ramo. Ai,
ele apalpa a base da planta e identifica se há algum choco lá. Caso encontre, é preciso
ser rápido para agarrar o bicho antes que ele fuja. Os chocos, quando se sentem
ameaçados, soltam uma tinta preta que funciona como uma espécie de camuflagem.
Uma vez esguichada na água, a tinta de espalha e torna-se praticamente impossível
apanhá-lo. É o momento da fuga.
Manuel foi apalpando a base de todos os ramos. Em praticamente todos havia
chocos. Em alguns deles até mais de um. Alguns bichos eram grandes, com mais de
dois quilos. O pescador fazia a inspeção e arremessava os peixes em minha direção para
241
que eu os apanhasse. Meu trabalho era colocá-los em uma redinha no formato de um
saco e continuar andando, paralelo ao Manuel, só que na areia dura.
Poucos chocos conseguiram fugir. Manuel demonstrava muita habilidade para
apanhá-los com as mãos. No final da inspeção das duas fileiras de ramos – nos dois
córregos – o saldo tinha sido quase o mesmo da captura com os covos naquele dia:
aproximadamente trinta quilos de peixe. Juntando as duas pescarias (com os covos e
com as mãos) Manuel tinha no barco quase sessenta quilos de choco para vender assim
que chegasse à Carrasqueira.
Fique impressionado com a técnica. No caminho de volta até o barco, perguntei
ao Manuel quem tinha colocado aqueles ramos ali (até o momento eu pensava que os
ramos eram dele). O pescador me respondeu: “São de um homem da Gâmbia! Os meus
estão para lá! Por isso, não podemos demorar muito aqui!”
13.2 – As enguias em Escama Ferro.
Hoje foi meu último dia no máre. E que bom que foi com Joaquim e Rodrigo.
Nos últimos meses estive embarcado, várias vezes, com o pai e o filho. Mas hoje não foi
um dia de pesca comum. A maré do choco foi acrescida de um gran finale que, tanto
para mim, quanto para eles não estava no script. A situação que observei me disse muito
sobre o que é a vida de pescador: um misto de conhecimento, sagacidade e
oportunismo.
A pesca já tinha sido deveras cansativa. O dia estava muito quente e o sol não
deu trégua. Os meses quentes – como chamam os carrasqueiros – eram realmente
quentes! Nem lembravam àqueles das baixas temperaturas no início do trabalho de
campo. Joaquim conferiu com Rodrigo se ele havia trazido o chinchorro188. O menino
disse que sim. O pescador mais velho me olhou e disse: “Zé, se eu estiver certo, tu vais
ver uma coisa que nunca filmastes! Vamos apanhar umas enguias no Escama Ferro!”
Após a alagem do último conjunto de redes, nos transferimos para o barco de
apoio da Nau do Sado. A região onde estariam as enguias, de acordo com Joaquim, era
188
Pequena rede de arrasto que pode ser utilizada em terrenos alagados ou onde a água estive em baixa
profundidade. Seu formato, quando esticada nas duas pontas, lembra um saco.
242
muito alagada e o grande barco não poderia encostar sem risco de ficar encalhado.
Enquanto Joaquim fincava ancora, Rodrigo desceu com o chinchorro nas mãos e eu com
um latão. “Se elas estiverem ai – porque isto nunca sabemos ao certo, pronto! – vamos
apanhá-las com estas artes”. O pescador acertou e errou ao mesmo tempo. Acertou
porque as enguias estavam lá. E errou porque, devido às condições do terreno e outros
fatores, era impossível usar o chinchorro.
“Elas gostam de ficar por aqui. É alagadiço, tem pouca água e elas
ficam tomando banho de sol. São umas descansadas! Estais a ver
aqueles
tubos
[canos
de
PVC
com
aproximadamente
de
aproximadamente um metro de comprimento] creio que estejam lá...
Vais ver uma luta, oh Zé!”
Era extremamente difícil caminhar naquele terreno. Nunca, naquele estuário,
eu havia andado em solo tão mole. A cada passo, a perna afundava até em cima do
joelho. Parecia inútil dar um passo a frente. Joaquim chegou mais próximo do primeiro
tubo. Eu e Rodrigo estávamos praticamente atolados um pouco mais para trás. O
pescador levantou o tubo e pediu uma faca. Rodrigo disse que estava no barco. Eu
emprestei meu canivete. Joaquim forçou a saída da enguia. O bicho, meio cobra, meio
peixe, rastejava-se com muita rapidez pelo alagado. O único modo de pegá-la era
atingindo-a com um golpe mortal na cabeça. Por isso o uso da faca.
A estratégia de Joaquim mudou. O pescador percebeu a dificuldade de pegar as
enguias no alagado onde estavam os tubos e resolveu, então, arremessar, um por um,
para perto de onde eu e Rodrigo estávamos. O terreno onde pisávamos era uma mistura
de areia e lama um pouco mais sólida – por incrível que pareça – se comparado a porção
na qual Joaquim estava.
243
Havia em Escama Ferro doze tubos. Havia enguias em todos. Em dois deles
Joaquim e Rodrigo encontraram duas enguias. De todo o conjunto, apenas um bicho
conseguiu escapar. A tarefa era uma luta mesmo. Foi quando entendi a estratégia
elaborada por Joaquim instante antes de chegarmos lá. Era preciso retirar as enguias dos
tubos, segurá-las com as mãos e desferir o golpe mortal. Somando-se a isso, é claro, as
dificuldades de movimento impostas pelas condições do terreno.
No final todos estávamos muito sujos e cansados. O resultado da luta foram
quase dez quilos de enguias capturadas. Joaquim me relatou que os tubos não eram dele.
Disse que outro pescador os havia colocado lá. Disse, sorrindo, que tínhamos um
segredo agora.
“É isto, oh Zé! Gostaste? Nunca tinhas visto? É a ciência do pescador,
pois! Eu sabia que elas estavam por aqui. Alguém podia ter apanhado
antes, é verdade A malta vai nos ver com estas enguias na
Carrasqueira. Não digas, pois, que as apanhamos no Escama Ferro!
Deixa a malta pensar o que quiser [risos]. Quem quiser que venha até
244
aqui, não é mesmo? Pronto! És meu convidado para um ensopadinho
de enguias e uma cervejinha mais tarde!
Enquanto navegávamos de volta para a Carrasqueira, Joaquim limpava as
enguias. O pescador separou a parte destinada ao nosso ensopado. A outra parte seria
vendida na própria aldeia.
14 – A venda de peixes e suas implicações.
Na maioria dos povoados pesqueiros o trabalho não cessa com a chegada em
terra. Uma parte fundamental desta atividade profissional – para além das técnicas de
captura, dos conhecimentos naturalísticos e da manutenção dos equipamentos – é a
venda do pescado.
“Aqui na Carrasqueira não temos patrão. Mas também não temos
empregados. É bom e é ruim. A parte ruim, o melhor, não ruim, mas,
como dizer, difícil, é que além de pescarmos, temos que nos
preocuparmos com a venda também”. Minda.
A partilha dos ganhos da pesca é, conforme apontado anteriormente, em geral
destinado à casa, como dizem os carrasqueiros. Como a maioria das companhas é
constituída por casais, os carrasqueiros consideram que o investimento material e físico
na pesca é, igualmente, dos dois camaradas. No caso de homens e mulheres que
desenvolvem as atividades solitariamente, os ganhos são destinados à casa do mesmo
245
modo. Na companha de Joaquim e Minda – que ordinariamente é composta pelo casal
em conjunto com o filho Rodrigo – O ganho é divido em quatro partes, sendo uma para
o menino, uma para Minda, uma para Joaquim e outra para o barco. O pescador explica:
“Veja bem: acho justo o que pagamos ao meu Rodrigo. Ele anda
embarcado e pesca sempre conosco. Tem o ganho dele, certo? É uma
quarta-parte, entendeste? Do total da venda. Como ele ainda mora
conosco, em nossa casa, ele acaba por ganhar as outras partes
indiretamente, estais a ver? Porque ai ele fica com a parte dele, e
indiretamente com as outras três. Não é mal. Sabemos que é um
trabalho duro e por isso a malta mais nova já não quer mais saber de
pesca, como tu estais a ver. Mas não podem dizer que é injusto. Pois
se há algum problema com o barco, sou eu quem pago. Se as artes
precisam de reparo, sou eu quem pago. O gasóleo sai da parte do
barco. Não, não é mal. Além do mais é o que ele sabe fazer. Ganha o
dinheirinho dele e não tem que ouvir desaforos de patrão nenhum”.
Se o modelo de companha encontrado na Carrasqueira faz com que a divisão dos
ganhos pareça relativamente simples, a venda do pescado propriamente não é. Assim
como a exploração dos recursos pesqueiros no Sado – que envolvem uma complexa
articulação das temporalidades do ambiente e das espécies aquáticas, bem como uma
associação de diferentes formas de captura – a vendagem de peixes requer dos
pescadores habilidades para avaliar situações e elaborar cálculos sofisticados.
Ao acompanhar meus interlocutores, após as atividades de captura, percebi que
há três modalidades praticadas na chamada primeira venda do pescado, ou seja, aquela
realizada quando o peixe ou o marisco chegam ainda vivos ou frescos do mar ou do rio.
Tratam-se, portanto, da venda em Lota, da venda ao Comprador e da venda à Candonga.
14.1 - A Lota.
Desde 1956, criada a partir de um Decreto de Lei, a Docapesca é uma empresa
do setor empresarial do Estado português que tem como objetivo a exploração
comercial das atividades pesqueiras e portuárias189. Sua atuação se deu primeiro na
capital Lisboa e depois, ao longo do tempo, em todo o país. Com o passar dos anos, a
189
Cf. Anexo “7”.
246
Docapesca ficou responsável por explorar e incrementar o serviço de vendas de pescado
em praticamente toda costa portuguesa. Depois do 25 de Abril de 1974, a empresa teve
a incumbência de construir frigoríficos em entrepostos importantes no país com objetivo
de estruturar a comercialização do pescado. Da mesma década data a construção dos
primeiros armazéns de vendas, ainda sobre a sigla SLV, que significava Serviço de
Lotas e Vendagens. Assim, a Docapesca adquiriu a exclusividade na prestação de
serviços da primeira venda – ou seja, a venda do peixe fresco recém-chegado dos mares
ou rios – e a exerce organizando um sistema de leilão.
Os leilões são realizados nas Lotas, que são edificações semelhantes a armazéns
onde se encontram os funcionários da Docapesca, que organizam a atividade, os
pescadores e os compradores previamente cadastrados. Ao deixarem o pescado nas
Lotas, além de receberem os ganhos pela venda em leilão, os pescadores formalizam e
quantificam sua produção para o Estado. Isto tem implicações diretas com a renovação
ou não das matrículas de mariscador bem como a dos barcos de pesca local. Para ter o
direito de exercer a profissão de mariscador, cada indivíduo tem que vender na Lota, por
ano, 2.000,00 euros em valor bruto. Para renovar a matrícula do barco, o proprietário
tem deixar em Lota, por ano, 6.000,00 euros em peixe190. Com matrícula da embarcação
em dia, o pescador também pode solicitar ao Estado subsídios para a compra de óleo
diesel, aquisição de novos motores, incrementos nos barcos e outros materiais. Até o
mês de janeiro de 2011, os descontos para os seguros sociais, como a aposentadoria
[reforma], por exemplo, eram feitos exclusivamente através da Lota. Eram, assim,
subtraídos 10% do valor bruto das vendas. Desde então, os pagamentos são feitos
autonomamente, por pescador independente da produção, com referência ao valor do
salário mínimo português191.
Em Lota, há mais descontos. A taxa de serviço para o uso do estabelecimento é
de 4% para barcos com motor a óleo diesel e 2% para barcos com motor à gasolina.
Ambos taxados sobre os valores brutos das vendas. O desconto para aqueles que são
190
Estas metas são estabelecidas e administradas pela Direção Geral de Pescas e Aquicultura – DGPA,
órgão ligado ao Ministério da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas.
191
Em conversa realizada no dia 27 de maio de 2011, o Sr. Carlos Prata, membro da Associação de
Pescadores Artesanais de Setúbal e Gestor da Cooperativa BivalMar, me explicou sistema de contribuição
iria passar em, breve, por nova modificação. Por isso, resolvi trabalhar com os dados tais como eles se
apresentavam no período da pesquisa de campo. O valor do salário mínimo em Portugal é de 486,00
Euros.
247
ligados à Associação é de 1%, valor que a Docapesca repassa para a conta do grêmio 192.
Os compradores cadastrados para participarem dos leilões em Lota também são taxados
em 9% no valor da compra.
Lota da Carrasqueira
Na Carrasqueira, entretanto, não há uma Lota, propriamente dita. A Lota mais
próxima é a de Setúbal, na entrada do Rio Sado. O que existe no povoado é um Posto de
Vendagem – ainda que seja designado pelos pescadores locais como Lota. Um Posto de
Vendagem é uma instalação de tamanho menor que a Lota. Normalmente localiza-se em
lugares afastados dos grandes portos pesqueiros nos quais a produção é menor assim
como o número de compradores também. Mas, do ponto de vista administrativo, seu
funcionamento é idêntico à Lota, tal como descrito anteriormente.
Os pescadores que acompanhei, ao longo do trabalho etnográfico, se queixavam
que na Lota do povoado não há leilões como na Lota de Setúbal. “Aqui, Zé, não temos
leilões! É um absurdo! Nosso peixe não encontra concorrência. São sempre os mesmos
a comprar”. Ou:
“Sem os leilões a mais valia do quilo fica muito baixa. Não paga a
pena o trabalho do pescador. Com a mais valia do quilo baixa e mais
os descontos... não dá. Querem acabar com os pescadores artesanais
assim”.
192
Na Carrasqueira não há associação profissional. Alguns pescadores são ligados à Associação de
Setúbal. A contribuição para a Associação pode variar um lugar para outro.
248
Outras reclamações dirigiam-se não apenas aos baixos valores obtidos na
primeira venda, mas também ao fato de que na Lota da Carrasqueira, muitas espécies
não tem valor de compra. “Em Setúbal e em outras Lotas, tudo que é capturado tem
comprador: raias, garrentos, charrocos, safias, liguados. Aqui não! São só chocos e
ameijoas”. Escutei também queixas sobre as metas fixadas pela DGPA para a
renovação das matrículas e licenças:
“Eles [DGPA] não entendem que cá na Carrasqueira não pescamos
todo o ano. Muitos fazem apenas a campanha do Choco que são
quatro meses, se calhar, três... Como tem pouco peixe, procuramos
estar a fazer outras atividades e não atingimos as metas”.
Manuel Charuto e Leonardo
Ameijoas
249
Pesagem de ameijoas na lota
Tal como observei ao longo de minha estadia, nos dias de hoje não há leilões. Os
pescadores, depois de atracarem os barcos no porto, rumam para a Lota. Lá, seus latões
de peixe são pesados numa balança e Leonardo, funcionário da Lota e morador da
Carrasqueira, marca num papel o número correspondente à inscrição do barco e os
quilos do pescado. O pagamento da produção é realizado sempre nas sextas-feiras. Ao
receberem o dinheiro, os pescadores também recebem uma nota fical que indica o valor
da venda semanal com todos os descontos. No período em que eu fiz o trabalho de
campo, apenas um comprador estava em atividade. Outro comprador conhecido passava
por problemas pessoais e nesta temporada estava ausente das vendas.
Cartaz da Inspeção Geral de Pescas fixado na parede da Lota
Do Sado até o consumidor final, há um circuito realizado pelo pescado. A
primeira etapa é a venda na Lota. Depois, o peixe e/ou os mariscos seguem para as
chamadas praças que podem ser mercados abastecedores – como o conhecido mercado
de São Julião do Tojal na região de grande Lisboa –, peixarias ou restaurantes longe da
250
Carrasqueira. Do mercado abastecedor, ele ainda cumpre mais outras etapas até chegar
ao consumidor final. Pode ser comprado por grandes redes de supermercados nacionais
ou por comerciantes estrangeiros que vão atravessá-los até países como Espanha, França
ou Bélgica.
Ao cumprir este circuito, de praça em praça, o valor do peixe aumenta
gradativamente. Um quilo de Choco deixado pelo pescador na Lota é negociado em
média por 3,50 euros. O prato elaborado com o molusco para uma pessoa em qualquer
restaurante mediano na cidade de Lisboa não é servido por menos de 15 Euros.
O pescador participa da primeira venda. Ele é o vendedor, mas não é ele quem
define o valor de seu pescado. Na Carrasqueira, como não há leilão, o valor do quilo é
definido por uma avaliação que o comprador faz do mercado, ou seja, um cálculo que
leva em conta as trocas em outras praças. Por isso, é um preço variável de acordo com a
oferta (dos chocos, por exemplo) e a demanda do mercado (as praças). A demanda das
praças pode variar de acordo com a época do ano. O comprador da Carrasqueira
participa, portanto, como comprador na primeira venda e como vendedor na segunda. E
assim se desenrolam as tensões entre os pescadores que julgam que o valor do quilo está
sempre aquém do trabalho e do investimento na pesca e dos compradores que
argumentam que tem que comprar na Lota e vender a um preço rentável para ele, e
aceitável nas praças de mercado fora dali.
14.2 – O Comprador.
Em outra modalidade de venda surge o Comprador193. Não o comprador da Lota
apresentado há pouco. Mas o Comprador autônomo. Em muitas regiões costeiras de
Portugal, em períodos de grande pesca, os Compradores aparecem em busca do peixe
ou do marisco fresco. Este personagem, por exemplo, é o responsável pela compra das
ameijoas no Montijo.
Em períodos de maré viva, muitos pescadores – e não pescadores – advindos de
várias regiões de Portugal fazem a campanha do inverno na região estuarina do Tejo.
193
Para diferenciar este comprador daquele que participa dos leilões da Lota, farei referência utilizando
letra maiúscula no início da palavra.
251
São também nestes períodos que os Compradores aparecem. Com suas caminhonetesbaú, localmente chamadas de carrinhas, equipadas com frigoríficos e balanças de
precisão, eles esperam na beira do Rio a chegada dos mariscadores ao final das máres.
No Montijo, as caminhonetes ficam no estacionamento da praia fluvial.
Depois da apanha, a primeira tarefa feita pelos mariscadores quando chegam a
terra é separar por sacos as ameijoas miúdas [pequenas ou médias] das ameijoas gradas
[grandes]. O valor do quilo na venda é distinto. No inverno de 2010/11, os Compradores
pagavam, em média, 2,00 euros pelas gradas e 3,00 euros pelas miúdas. Perto do
período natalino houve um pequeno aumento no valor do quilo subindo para 3,00 e
4,00, respectivamente. Alexandre e Manuel tinham a expectativa que perto do período
do Carnaval do ano passado o valor do quilo sofresse um aumento. Isso não ocorreu.
O valor do quilo é definido pelo grupo de Compradores. Aqui, em geral, há uma
afinação entre estes agentes nas regiões onde se realizam as compras. Isso faz com que
valor do quilo não sofra variações por Comprador. Quando há algum aumento no valor
– como no caso dos períodos de festas – todos os compradores elevam juntos. A mesma
lógica também funciona para baixar o valor. O pescador nesta modalidade, não
barganha o preço do quilo nem assiste sua produção ser negociada em leilões. E,
dependendo do dia, ainda pode correr o risco de não vender seus mariscos caso o
Comprador tenha alcançado sua meta, tenha gasto todo o dinheiro ou simplesmente não
tenha ido ao Montijo. Entretanto, aqui o pescador recebe o valor bruto em cash assim
que encerra seu trabalho diário. Acompanhei pescadores que lucravam de 80,00 a
100,00 euros por dia com a apanha dos bivalves. Eu próprio tive a oportunidade de
experimentar a atividade. Em uma de minhas melhores performances, lucrei 10 Euros
ao final da maré. Diferente de meus interlocutores, a minha falta de habilidade com o
sacho me possibilitou apanhar somente 5 quilos da ameijoas neste dia.
É bom ressaltar que o Comprador trabalha por encomendas. Ele pode ter, por
exemplo, uma encomenda de uma tonelada de ameijoas feita por um supermercado
espanhol. Quando atinge esta meta, ao final de quatro ou cinco marés, ele só volta ao
Montijo quando houver mais encomendas. Normalmente os Compradores que se
deslocam para as regiões mais propícias à exploração dos bivalves são profissionais
autônomos. Não trabalham como nota fiscal. Não se preocupam se os mariscos ou
252
pescados estão dentro dos tamanhos mínimos permitidos. Também não cobram que os
pescadores/mariscadores sejam legalizados. São, neste sentido, intermediários informais
que levam bivalves ou peixes diretamente do local de captura até outros compradores
que são, em sua maioria, em mercados, restaurantes e hotéis em várias regiões do país
ou mesmo fora de Portugal.
Os pescadores queixam-se dos valores do quilo. Eles os consideram baixo para o
trabalho exaustivo que é a apanha. “Estais a ver como é? Estamos cá desde as 4 da
manhã, longe de casa, dando cabo da coluna, para vender as ameijoas a este valor!”,
diz um de meus interlocutores. Ou:
“Já houve anos em que eu as vendia aqui por 5,00 ou 6,00 euros o
quilo. Agora eles só fazem é baixar. Quem vem às ameijoas sabe a
dificuldade do trabalho. É para poucos. Há muito esforço. Tem que
trabalhar muito para ganhar. Para muitos, que são doentes ou tem
problemas, não paga a pena vir até aqui”. Deolinda.
Mas, praticamente todos consideram que o trabalho pago em dinheiro, no dia
sem as taxas é muito satisfatório: “Ah é melhor, é melhor. Saímos daqui com
dinheirinho na mão. Trabalha, recebe! Deveria ser assim sempre em tudo o que
fazemos”.
14.3 - A Candonga.
Além dos dados que coletei embarcado, na companhia de meus interlocutores
principais, observei atividades em terra e conversei com muitos pescadores. Desde o
início de minha estadia na Carrasqueira, ao falaram das dificuldades da vida dedicada à
pesca, sempre mencionavam os baixos valores do pescado na primeira venda em Lota.
Este foi, e continuou sendo, um dos assuntos mais recorrentes. Meus interlocutores mais
próximos começaram a me falar das estratégias para se conseguir mais vantagens na
venda do peixe fresco. Foi quando ouvi as primeiras vezes a palavra Candonga.
“Ah, Zé[i], o pescador tem que dar o seu jeito. Às vezes temos que
vender à Candonga mesmo”. Se não fosse a venda à Candonga o
pescador da Carrasqueira já estaria morto! Apenas assim ganhamos
mais um dinheirinho, não é?”
253
Não compreendi logo do se tratava a tal Candonga. Primeiramente porque
Candonga, para mim, era apenas uma palavra de origem africana a qual eu não sabia o
significado. Em segundo lugar, porque enquanto os pescadores se referiam a esta
modalidade de venda eu mal tinha dados sobre o funcionamento da Lota. E, para
complicar mais ainda, a vendagem de peixes em Portugal parecia muito mais complexa
do que aquela que eu estava acostumado a acompanhar no Brasil, sobretudo em meu
estudo de caso no Rio de Janeiro.
Candonga é uma expressão da língua Kimbudu. Assim como ocorre em
Angola,194 em Portugal ela identifica negociações que são consideradas, por grande
parte da sociedade nacional, clandestinas, informais ou mesmo ilegais em alguma
medida. Tal modalidade é encontrada em muitas regiões do país e define distintas
relações comerciais. Os bens trocados nestas relações são variados: ingressos para jogos
de futebol vendidos fora das bilheterias, entradas para concertos musicais vendidos fora
das casas onde se realizam ou bebidas e iguarias vendidas nas ruas depois do
encerramento do comércio etc.
Canivetes, alcorrazes e enguias
Na Carrasqueira – como em outros povoados pesqueiros portugueses – a
Candonga define a primeira venda, ou seja, a venda do peixe fresco, realizada fora da
Lota. Mas, nem toda venda fora da Lota pode ser considerada uma Candonga. Um
exemplo é a modalidade do Comprador apresentada anteriormente. Para ser considerada
uma Candonga, a venda precisa ter algumas características, as quais apresentarei a
seguir. Entretanto, há um fator que marca uma diferença crucial em comparação com as
modalidades já descritas: na Candonga é o pescador que tem autoridade para definir o
valor do quilo. É ele quem dá o primeiro lance. E é ele quem dirige a negociação.
194
A categoria foi trabalhada por SANTOS:1990 e LOPES: 2004 no contexto angolano pósrevolucionário.
254
Uma pescadora me diz:
“É assim, Zé[i], eu chego no cais com meu pescado fresco e muitas
vezes aparecem pessoas querendo chocos, linguados, ameijoas, raias –
para fazer caldeiradas, raias e charrocos ... Isso nos meses mais
quentes. Aí, eu digo o valor do quilo. O quilo do choco eu peço 6,0
Euros. Para os linguados eu peço 15,00. Se a pessoa quiser leva. Se
não, não vendo para ela. Deixo na Lota ou vendo para outro que
aparecer”.
Mas, a negociação da Candonga é mais complexa do que esta descrição nativa.
Ela envolve corporalidades e oralidades especiais. Além disso, na Candonga é possível
usar várias estratégias para convencer o potencial comprador. A venda conta bastante
com as habilidades do pescador/comerciante durante a negociação. Eu próprio, só tive
uma ideia mais substancial do que era a venda à Candonga, para além das descrições
que tinha escutado, quando participei e observei.
A seguir, apresento duas situações onde a Candonga foi a modalidade de venda
que prevaleceu. A primeira retrata, sob a forma de diálogo, a venda de ameijoas em
Montijo. Já a segunda, observei no cais da Carrasqueira, após o retorno de uma boa
pescaria. Ambos os textos são fragmentos literais retirados de meu diário de campo:
14.4 – Candonga “1”
“Certa vez, após voltar da maré, três carrasqueiros estavam separando as
ameijoas para vender aos compradores como de costume. Muitos desses compradores
atravessam os mariscos até a Espanha onde ele é bastante apreciado. Durante a
triagem, um casal de velhos se aproxima. O velho observa os três homens enquanto
estes permanecem concentrados no trabalho.
– Quanto tá o quilo? – pergunta o velho.
– 3,0 Euros – responde um dos pescadores sem desviar o olhar do trabalho e
parecendo pouco interessado na conversa.
– 3,0 Euros? Tudo isso?
255
– O senhor pode perguntar a qualquer um. É a valia do quilo. É como nós
vendemos.
O velho faz cara de dúvida. Olha para a velha – notadamente sua esposa – e ela
faz sinal de positivo com a cabeça.
– O senhor tem três ou quatro quilos ai?
O pescador levanta um dos sacos que ainda não tinha passado pela triagem e
diz:
– Este tem quatro quilos!
O velho, ainda desconfiado, levanta o saco de ameijoas, ri alto e retruca:
– O que? Aqui não tem quatro quilos, meu senhor. Se calhar tem três!
– Três e meio para quatro – diz o pescador sem olhar para o velho e ainda
separando as ameijoas de outro saco. O velho olha para a mulher novamente. Ela
responde positivamente e complementa puxando assunto sobre qual a melhor maneira
de prepará-las.
–15 Euros e leva tudo – diz o pescador.
– 15? Mas aqui há menos que quatro quilos! Não posso pagar quinze! 12 Euros
e eu levo!
Atento a separação dos mariscos e mais atento ainda a negociação, o pescador
responde rapidamente sem olhar para o velho:
– 12 e meio [12,50].
O velho, aparentemente convencido do negócio pergunta se a mulher tem
moedas. Ela tinha. Ele estende a mão para pagar ao pescador e ele diz:
– Pague a este senhor! – E indicou com o dedo para a direção do pescador mais
novo que o ajudava na separação das ameijoas e escutava atento o desenrolar da
negociação.
256
O pescador mais novo sorri e agradece ao velho que vai embora com a mulher e
um saco de três quilos e pouco de mariscos frescos.
O pescador mais velho sorri e diz para o neófito195:
– Viste? Esta é a venda à candonga...”.
14. 5 – Candonga “2”
“Enquanto Juvenal estava na lota, chegaram ao barco Marcos e Maria. Os dois
vestiram as luvas e começaram a ajudar na limpeza das redes. O pescador volta rápido
e comenta:
– Uma velhota perguntou-me se tínhamos 30 quilos de choco porque ela quer
levar agora!
Gabriela responde que 30 quilos não tinham, porém, talvez uns 10 ou um pouco
mais.
Pouco tempo depois a velha se aproxima. Uma senhora forte e falante muito
parecida com as moradoras da Carrasqueira. Estava acompanhado de um senhor, seu
marido, muito magro e fraco. Devia ser doente.
– Boa tarde, senhores. Ainda há chocos – pergunta a velha.
No grupo é Gabriela quem toma a iniciativa e responde começando, assim, a
negociação:
– Há sim senhora! Quanto a senhora quer levar?
– Ah... Uns trinta quilos – responde.
– Trinta não há. Temos pouco mais de dez. Já vendemos a maior parte na lota.
Mas a senhora não vai encontrar ninguém com trinta quilos, não. Somos obrigados a
fazer a venda em lota e a esta altura quase todos já venderam – reforça Gabriela.
195
O neófito era o etnógrafo. Foi ele quem apanhou naquele dia pouco mais de três quilos do marisco.
Seus camaradas apanharam mais de trinta quilos cada um. O etnógrafo ficou com o dinheiro e observou a
primeira venda à candonga.
257
Interessante a estratégia de venda da pescadora. Ela sabia que naquela semana
as marés não tinham dado mais de 40 ou 50 quilos por barco. E sabia que os
pescadores têm que fazer venda em lota por causa dos descontos e das metas. Esta
informação colocada assim é praticamente um “pegar ou largar” os quilos de chocos
que ainda estavam no barco de Juvenal.
– Ai, mas eu preciso de 30... Vou ver se consigo mais alguma coisinha com seus
colegas ali – lamenta a velha.
– A senhora pode ficar à vontade – disse Gabriela – Mas será muito difícil! A
esta altura está tudo vendido. Veja lá!
– Vou ver ali e volto cá para comprar os chocos dos senhores – garantiu a
velhota – Quanto está o quilo?
– Está 5 Euros, minha senhora – responde firme Gabriela.
No momento em que a velhota se afasta, Juvenal e Gabriela comentam a
negociação.
Poucos minutos depois a velhota retorna. Ela conseguiu 10 quilos com outro
casal. Enquanto isso o balde de Juvenal e Gabriela enchia-se de chocos. Parecia ter
mais animais na rede do que eles previam. A velhota e seu marido aguardaram
pacientemente os quatro pescadores terminarem a limpeza de toda a rede. Nenhum
pescador fez mais esforço ou pareceu trabalhar mais rápido por conta da venda.
“Fingir que não está nem ai para a venda” parece ser uma estratégia.
– Olhe, aqui tem quase 20 quilos. Tem 18 ou 19 – disse Gabriela quando o
balde mostrava-se quase cheio –100 Euros e a senhora ainda leva uns charrocos, muito
bons para caldeirada!
A velhota fez cara de dúvida. Antes de reclamar (pois não haviam 20 quilos de
choco para justificar o 100 Euros) Gabriela aumentou a oferta:
– E leva também uns garrentos. Peixe branco. Dos bons! Aproveito e faço para
senhora o quilo do linguado a 4 Euros. Muito abaixo do que cobram por ai. Leve tudo.
Temos 3 quilos aqui – disse Gabriela fechando a oferta.
258
A velhota olhou para o marido. Ele disse que por ele estava bem. Assim, o
negócio foi fechado.
Eu subi com o latão de chocos até a ponte. Os charrocos estavam por cima. Os
linguados e os garrentos me foram dados dentro de um saco plástico. Gabriela
perguntou se eles tinham como levar. A velhota indicou o carro que estava estacionado
ao lado da lota. Eu me ofereci para ajudar. Enquanto me organizava com o peso a
velha pagava a Gabriela que tinha coordenado toda a venda. A compradora saiu
satisfeita, pois conseguiu, na ida à Carrasqueira, comprar quase 30 quilos de chocos e
ainda levou para casa de graça alguns charrocos e garrentos. E comprou o linguado
por um preço considerado muito baixo para primeira venda. Gabriela e Juvenal
fizeram uma venda à candonga na qual faturaram cash e sem descontos 112 Euros. E
eu fui com todo peso até o carro dos velhotes deixar os peixes”.
A venda à Candonga se distingue das outras modalidades, em primeiro lugar
porque é o pescador quem estabelece o valor inicial do quilo. Em muitos casos, o
pescador arredonda o peso para cima: se há quatro quilos e meio ele diz que há cinco; se
há trinta e oito quilos ele diz que tem quarenta. Quando indagado pelo comprador sobre
a precisão do quilo, o pescador usa argumentos como “Olhe lá, os peixes estão frescos.
Acabaram de chegar do máre. Não há peixes mais fresquinhos que estes...” Ou, como
aconteceu no caso narrado, o pescador adiciona à venda outras espécies que
praticamente não tem saída comercial:
“Levas também uns charrocos. Olhe só! Levas cinco charrocos
grandes. É uma bela caldeirada. Levas uns garrentos também. Para
fazer fritinho e beber com uma cervejinha!”
No final da negociação, o comprador sai com uns poucos quilos a menos do que
pagou, entretanto com mais peixes do que desejava comprar. Para o pescador, o
faturamento veio do valor/quilo dos chocos ou linguados – pois as outras espécies não
seriam deixadas na Lota. Poderiam ser utilizadas para consumo próprio ou distribuídas
entre vizinhos e parentes mais velhos que não vão mais à pesca por doença ou
aposentadoria.
259
Na Candonga, pagamento também é cash e livre das taxações da Lota. Também
não há constrangimentos com os tamanhos mínimos permitidos. Com uma boa maré, o
pescador pode deixar parte do pescado na Lota e a outra parte vender à Candonga – as
duas modalidades conjugadas foram as mais observadas ao longo do trabalho de campo.
É uma maneira de otimizar o lucro e ao mesmo tempo alcançar o número de vendagem
estipulado pela DGPA podendo, assim, renovar as licenças de pesca para o ano
seguinte. Outra vantagem, do ponto de vista dos pescadores, observada nesta
modalidade é que não há intermediários. Enquanto a Lota é uma empresa mediadora
entre ele e o comprador cadastrado e o Comprador (da segunda modalidade) é um
intermediário entre o pescador e uma praça, na maioria dos casos, na Candonga o
pescador vende diretamente ao consumidor final.
14.6 - As modalidades de venda e “le calcul sauvage”196.
O esquema a seguir foi elaborado ainda durante o trabalho de campo e discutido
com alguns pescadores. Ele expõe, de modo sintético, as características presentes nas
três modalidades de venda e as quais nos ajudam a interpretar as motivações dos atores,
sobretudo dos pescadores, em cada uma delas.
196
O título do tópico é uma referência ao capítulo Suplemento à Viagem de Cook; ou “Le Calcul
Sauvage” escrito por Marshall Sahlins em seu Ilhas de História Cf. SAHLINS: 1990.
260
A venda em Lota, do ponto de vista dos pescadores, tem algumas características
previsíveis e conhecidas à priori. Na Lota da Carrasqueira (que é um Posto de
Vendagem), atualmente não há leilões, o que faz com que aja pouca variação no valor
do quilo. Não há negociação na qual os pescadores participem. Os pescadores sabem
que ao deixarem o pescado lá, serão descontados pela prestação de serviço da empresa,
pois esta tem a função de estabelecer a mediação entre eles e os compradores. Ao
mesmo tempo, reconhecem que sem o desembarque em Lota, não atingem as metas
estipuladas pela DGPA e têm dificuldades para renovar matrículas de barcos ou licenças
de mariscador ao final de um ano de atividades. O pagamento efetuado pela Lota da
Carrasqueira, incluindo os descontos, é feito em dinheiro uma vez por semana e a
empresa emite recibos e notas fiscais.
A venda feita para o Comprador de ameijoas apresentada no caso do Montijo
estabelece uma situação mais ou menos previsível. Os pescadores sabem que não há
descontos e que o pagamento é feito no ato da venda – ainda que reclamem dos baixos
valores pagos por quilo. Correm o risco, entretanto, de fazerem uma boa maré e ao
chegarem ao local de venda, não encontrarem o Comprador ou a este não interessar
comprar mais naquele dia. A característica mais importante aqui é que o pescador não
261
pode negociar o valor do quilo das ameijoas. Este é sempre estipulado pelo grupo de
Compradores de acordo com os períodos do ano, os mercados e as regiões nas quais
atuam. Não há taxas, nota fiscal ou qualquer tipo de regulação oficial sobre esta venda.
Já a Candonga é a modalidade de venda que trás as características mais
ambíguas e é mais imprevisível se comparada às duas anteriores. Imprevisível porque,
na maior parte dos casos, não é possível prever “se” e “quando” ela vai acontecer. E é
imprevisível também porque quando a situação ocorre ninguém sabe, à priori, se a
venda vai se concretizar. Pode-se conseguir efetuar uma venda em valor bruto mais
rentável do que nas outras modalidades ou pode-se não vender nada. Conforme
apresentado, não há taxas, notas e nenhuma regulação oficial. Aqui, entretanto, o
pescador tem autoridade sobre o primeiro lance da venda e encaminha a negociação de
acordo com seus interesses e habilidades. É sempre uma situação nova cada vez que
acontece, pois o pescador tem que ser astuto o suficiente para fazer a proposta inicial,
negociar com vários recursos (outros peixes ou mariscos, por exemplo) e sentir, a partir
da conversa e da observação, até quanto o comprador está disposto a pagar.
A participação dos pescadores nestas modalidades de venda está associada a um
cálculo particular das perdas e dos ganhos sobre o que eles podem obter em cada uma
delas em separado ou mesmo em conjunto – como o caso da Candonga do cais onde a
maré foi tão produtiva que os pescadores deixaram parte na Lota e negociaram o
restante.
Há importantes variáveis na construção deste cálculo. Eles levam em
consideração a quantidade de recursos marinhos que capturam em cada maré. Em geral,
os pescadores têm alguma previsibilidade sobre o quanto vão capturar em uma saída
para o mar. Mas, não controlam isto de todo. Devido a vários fatores, podem ser
surpreendidos por uma maré fraca, como dizem na Carrasqueira, obtendo algumas vezes
resultados de uma pesca que não cobre nem o investimento da gasolina naquele dia –
conforme a etnografia apresentou. Já uma boa maré possibilita deixarem o pescado em
Lota ao mesmo tempo em que podem praticar a Candonga com o objetivo valorizar o
quilo do pescado e, por consequência, obterem mais lucro.
Os meses quentes são mais propícios para as vendas à Candonga associadas à
venda em Lota. É o tempo de mais fartura de peixes no Sado. Além da migração de
262
certas espécies oceânicas para dentro do estuário é também o período de mais consumo
de peixes em bares e restaurantes da região. Muitos turistas, por exemplo, compram
peixe fresco para prepará-los em casas alugadas na Carrasqueira. Em resumo, para
quem faz a vida no máre, os meses quentes são períodos de abundância e permite que os
pescadores possam escolher qual das modalidades de venda lhes são mais interessantes
ou mesmo desempenhá-las de modo conjugado.
O mesmo cálculo pode ser feito para a venda com o Comprador. Nos meses de
inverno, onde a maior parte da campanha das ameijoas é realizada em Montijo, muitos
pescadores apanham e vendem tudo que podem ao Comprador. Já nos meses de verão
nos quais realizam no mesmo dia, marés de ameijoas e de chocos no Rio Sado, muitos
pescadores optam por deixar as ameijoas na Lota para, mais uma vez, fazer vendas e
poder renovar suas licenças de mariscadores.
***
Durante dez meses estive em Portugal. De outubro de 2010 até junho de 2011
pude observar de perto o modo como homens e mulheres da Carrasqueira desenvolviam
suas atividades haliêuticas e organizavam sua vida social. Tive, portanto, um acesso
privilegiado, na qualidade de viajante e de etnógrafo, às interpretações carrasqueiras que
dão sentido a sua existência como grupo alicerçado num fator que, dentre outros, talvez
seja o que mais lhes confira unidade: o trabalho no máre.
A descrição da pesca artesanal realizada entre os carrasqueiros – da preparação
dos equipamentos antes mesmo da campanha do choco até a venda do pescado –
evidencia uma característica fundamental das populações que se dedicam a este tipo de
atividade extrativista: elas, a todo o momento, têm que dar respostas às inconstâncias e
às instabilidades da vida.
Tal ofício – marcado, notadamente, por um alto grau de imprevisibilidade e
incerteza – exige de pescadores artesanais respostas constantes aos mais variados tipos
de questões: a relação com o ambiente e com tudo aquilo que o constitui é marcada por
ajustes, adaptações, estratégias, movimentos que, etnograficamente, chamam a atenção
para a dinâmica e para a complexidade daqueles que se dedicam a faina.
263
A pesquisa realizada entre os pescadores de Ponta Grossa dos Fidalgos –
observados em suas atividades por quase dez anos – e a etnografia entre os
carrasqueiros aqui apresentada, atesta, cada vez mais, o quanto estes grupos são críticos,
reflexivos e donos de seus próprios destinos. Muito mais do que podemos imaginar.
Estas disposições, no entanto, não existem sem custos. E é isso que será
apresentado na Parte seguinte desta tese.
264
III. “A POPA”
(ou Quanto Custa Ser Pescador Artesanal?)
265
1 – Sobre as etnografias.
As etnografias apresentadas descrevem a pesca artesanal como a atividade
profissional que mobiliza a maior parte dos moradores de dois povoados – um no Brasil
e outro em Portugal. Na Proa foram apresentados dados de pesquisa, bem como
reflexões sobre eles, com base nos quase dez anos de frequentação em Ponta Grossa dos
Fidalgos. Neste período, a pesquisa entre os pontagrossenses foi marcada por idas e
vindas. Alternou, conforme apresentado, meses inteiros no campo com visitas de fim de
semana. Acompanhou, assim, minha formação acadêmica, pois sua origem confunde-se
com os anos iniciais de graduação.
O Meio descreve minha experiência etnográfica no povoado da Carrasqueira
ocorrida entre 2010 e 2011. Possui, por isso, uma temporalidade distinta da etnografia
brasileira, uma vez que foi realizada em período corrente de aproximadamente nove
meses, seis dos quais, tive a oportunidade de residir full time no lugar. Mas, não é
somente o tempo dedicado ao campo que distingue as duas etnografias. A composição
do texto – escrito em gênero próximo ao relato de viagem – foi a forma que encontrei
para organizar, minimamente, as experiências as quais fui submetido ao longo dos
meses que passei na costa portuguesa. A escrita da Proa, como pôde constatar o leitor,
não foi marcada por este estilo.
O trabalho de campo de longa duração é um instrumento conhecido e
notabilizado na Antropologia moderna. Etnógrafos como Raymond Firth, Victor
Turner, Marcel Griaule e Oscar Lewis, por exemplo, observaram, por décadas, a vida
coletiva de grupos sociais circunscritos em territórios mais ou menos definidos197. Tal
perspectiva fornece ao pesquisador uma oportunidade privilegiada de acompanhar, in
loco, as dinâmicas das transformações sociais distribuídas em um largo período de
tempo. Foi isto que, de algum modo, aconteceu na pesquisa de Ponta Grossa dos
Fidalgos. Os quase dez anos de etnografia – realizada por mim e por outros colegas
pesquisadores – foram marcados por pequenos contratastes entre o assentamento
pesqueiro que conhecemos nos dias atuais e àquele descrito no material produzido por
Luiz de Castro Faria há cerca de sessenta anos. Especificamente no que diz respeito à
pesca, a comparação dos dados revelou mudanças nas práticas de captura, na percepção
197
FIRTH: 1946; TURNER: 2005; GRIAULE: 1969; LEWIS: 1959 e 1976.
266
dos pescadores sobre o ambiente lacustre, bem como suas relações com os elementos
que o constituem. Entretanto, há muito mais implicações que podem ser retiradas deste
contraste do que as apresentadas na Proa.
O Meio, por sua vez, não traz esta perspectiva. Não foi elaborada nenhuma
etnografia, anterior a minha, sobre o modo de vida dos carrasqueiros. O mais próximo
disto foi a pesquisa de campo realizada pelo geógrafo português Henrique Souto cuja
parte de sua análise sobre a região da Carrasqueira foi apresentada no livro
“Comunidades de Pesca Artesanal na Costa Portuguesa na Última Década do Século
XX” e em um artigo publicado em periódico198.
O tempo aparentemente curto – quando comparado aos anos de pesquisa no
Brasil – sugeriu, inicialmente, que a observação da atividade pesqueira tal como
realizada no estuário do Sado, poderia ser utilizada nesta tese apenas como um breve
contraponto à etnografia dos pescadores de Ponta Grossa dos Fidalgos. Ou seja, como
um exercício modesto de comparação que pudesse aproveitar o estranhamento do meu
olhar sobre a pesquisa brasileira provocado pelo deslocamento da viagem a Portugal e
pela estadia na Carrasqueira.
Entretanto, a imersão no trabalho de campo experimentada na Carrasqueira –
não planejada a priori – motivou a tentativa de elaborar um texto cuja comparação dos
dados etnográficos seria seu epicentro. Levando em conta as diferenças em relação à
natureza das duas pesquisas empíricas – quais sejam, os períodos de observação direta,
o tratamento conferido aos textos etnográficos e mesmo as reflexões extraídas de cada
uma delas –, encontrei, nos dois casos, pontos comuns que, ao serem contrastados,
podem fornecer boas chaves de interpretação sobre o modo de vida de pescadores
artesanais.
Os últimos anos de pesquisa de campo em Ponta Grossa dos Fidalgos – 2009 e
2010 – foram marcados por uma característica, ou melhor, uma condição: eu estive a
maior parte do tempo embarcado com meus interlocutores. Algo semelhante ocorreu em
Portugal. Após minha residência na Carrasqueira, trabalhar embarcado com meus
interlocutores lusitanos tornou-se uma atividade cotidiana. Pude, por isso, observar de
198
Cf: SOUTO: 2007 e 2000, respectivamente. O livro trata-se de um amplo estudo sobre povoados
pesqueiros na costa portuguesa. Não é um estudo de caso intensivo sobre a Carrasqueira.
267
perto a faina, acompanhar seus ritmos e, junto com os pescadores, me submeter às
experiências sensíveis provocadas pela atividade. Além das inúmeras conversas em
terra com pontagrossenses e carrasqueiros, a condição de estar constantemente
embarcado – e mesmo de ser reconhecido como camarada, no caso português – me deu
a oportunidade de observar processos que, entre pescadores, só ocorrem durante a
prática do ofício pesqueiro, seja em mares e ou lagoas.
A descrição das atividades de captura evidenciou como pontagrossenses e
carrasqueiros se relacionam com o ambiente em que vivem e trabalham. Mais do que
uma atividade desempenhada para suprir sua subsistência material, a dedicação à pesca,
nos dois casos, revela, através da etnografia, um mundo repleto de significados
conferidos por aqueles que a praticam. Entretanto, esta weltanschauung, que, em muitos
aspectos, singulariza a existência destes grupos, quando confrontada com outras formas
de pensar e administrar a vida coletiva, encontra problemas.
Tanto pontagrossenses quanto carrasqueiros têm suas atividades profissionais
submetidas a um conjunto de regras. Parte delas, formam aquilo que se convencionou
chamar, na literatura antropológica, de direito costumeiro e compõem o conjunto de
normas e etiquetas conhecido, relativamente, por todo o grupo social. São transmitidas
informalmente, de geração para geração, com pequenas adaptações e, em geral, estão
inscritas na prática e são ratificadas pela tradição. O direito costumeiro não se constitui,
entretanto, em um todo homogêneo. Suas etiquetas são passíveis de interpretações
variadas mesmo dentro de grupos sociais considerados pequenos, o que implica, em
certas situações, em casos de constrangimento ou mesmo conflitos abertos199.
Outro conjunto de normas que se abate sobre carrasqueiros e pontagrossenses –
ou sobre qualquer outro grupo social que exista sob a égide de um Estado Nacional –
aparece, na maioria dos casos, sob a forma de regulamentações oficiais promovidas por
diversos tipos de instrumentos jurídico-administravos.
A observação in loco das práticas pesqueiras – tal como apresentadas na Proa e
no Meio – foi marcada por uma série de queixas e reclamações elaboradas por
pescadores brasileiros e portugueses sobre a forma como certos mecanismos
regulatórios afetam sua atividade profissional. Me interessei, portanto, em compreender,
199
Cf: MAUSS: 2002.
268
nos dois casos estudados, as percepções que meus interlocutores tinham sobre as
regulamentações oficiais que incidiam sobre as regiões exploradas por eles.
O contraste entre suas percepções sobre este assunto será apresentado, aqui, na
Popa. O artifício da comparação, elaborada a partir dos dados etnográficos coletados em
cada uma das pesquisas, tem o modesto objetivo de entender como pescadores
artesanais no Brasil e em Portugal respondem a problemas de natureza parecida. Dito de
outro modo, a comparação pode mostrar em que medida pontagrossenses e
carrasqueiros se aproximam ou se distanciam, na qualidade de pescadores artesanais, ao
mesmo tempo em que torna mais visível a relação dos grupos estudados com as
políticas públicas e com os mecanismos regulatórios promovidos por órgãos
administrativos dos dois Estados Nacionais.
Por fim, na Popa tentarei responder à questão Quanto Custa Ser Pescador
Artesanal?
2 – As queixas.
2.1 – Em Ponta Grossa dos Fidalgos.
As primeiras visitas ao povoado de Ponta Grossa foram caracterizadas por muita
informalidade em relação aos procedimentos metodológicos. Naquela altura, além do
material produzido por Castro Faria, eu não tinha muitas informações sobre os
pescadores. Além do conhecimento de algumas etnografias realizadas em outras terras
de pescadores, o que marcou o período inicial do trabalho de campo foi, sem dúvida, a
ausência de questões formuladas a priori. Por isso, a postura mais razoável que poderia
ser adotada era deixar meus novos interlocutores relativamente à vontade para falarem
sobre os assuntos que mais os interessavam.
E, dentre vários assuntos, foi assim que ouvi as primeiras queixas e reclamações
sobre o IBAMA. Ainda sem entender do que elas se tratavam, as interpretações dos
pescadores acerca da atuação do órgão na região da Lagoa Feia evidenciavam que ali
havia algum tipo de problema. Conversas que tinham como temas as técnicas
pesqueiras, os ritmos de trabalho e a temporalidade das atividades haliêuticas associadas
269
às temporalidades do ecossistema lacustre, quase sempre evocavam a figura do órgão.
Escutei de muitos pescadores em diferentes situações relatos como:
“Aqui funciona é assim. Eles sempre acham que conhecem mais a
Lagoa do que o pescador”.
“Ao invés de nos deixar trabalhar em paz, porque aqui só tem
trabalhador, eles preferem passar e pegar tudo. Nossas redes, nossas
coisas, até mesmo nossos peixes”. Porque não vão fiscalizar os
grandes, ou os ricos? Não, eles querem o que é mais fácil. E vem
fiscalizar os pequenos. Somos pobres! Os pescadores aqui pescam
para alimentar as famílias”
“No período da pesca proibida, o IBAMBA anda esta Lagoa toda aí
atrás de nós. É como se nós estivéssemos cometendo um crime,
matando alguém. Eles nos abordam armados, como fazem com
criminosos. Ai, eu te pergunto? Tem criminoso aqui? Pesca virou
crime quando? Meu avô pescou aqui. Meu pai pescou aqui. Meus tios
também. E agora é crime pescar?”
“O meio-ambiente, às vezes, vem aqui e pega nós todos. Querem saber
se as redes são miúdas ou não. Se os peixes estão pequenos ou não.
Não tem muita conversa com eles. Eles chegam e levam tudo”.
Estas formulações foram coletadas ainda na fase inicial da pesquisa de campo
em Ponta Grossa. Elas foram o ponto de partida para o texto “Tempo(s) Ecológico(s):
Um relato das tensões entre pescadores artesanais e IBAMA acerca do calendário de
pesca na Lagoa Feia – RJ”, defendido no ano de 2007, como dissertação de mestrado.
A discussão, retomada parcialmente na Proa, expõe os dissensos em torno dos usos do
espaço lacustre bem como de suas temporalidades organizadas a partir do cruzamento
de três calendários de pesca.
Os anos de 2009 e 2010 foram, no entanto, particularmente relevantes para a
pesquisa. Após um período de quase dois anos sem frequentar o povoado pesqueiro, tive
a oportunidade de intensificar a etnografia sobre as percepções que os pontagrossenses
tinham do órgão para além daquelas apresentadas em Tempos(s) Ecológico(s). Durante
dois verões, nas ocasiões de minha estadia no povoado, acompanhei alguns de meus
interlocutores desempenhando suas atividades justamente nos períodos em que o
Instituto proíbe, para aquela região, a captura de espécies aquáticas com o uso de redes.
270
Para minha surpresa, naquela altura, o constrangimento que muitos pescadores
tinham – ao longo dos anos iniciais de pesquisa – de me levarem embarcado durante os
meses proibidos para a captura, deu lugar a convites formulados com tons de
naturalidade. Creio que esta mudança de postura deveu-se ao tempo em que me
dediquei ao trabalho de campo aliado à confiança construída ao longo dos anos de
trabalho em conjunto com eles.
A partir de 2009, portanto, além das conversas sobre o IBAMA, em terra, eu tive
oportunidades privilegiadas de observar, na Lagoa, as pescarias e os pescadores.
Aproveitei estas ocasiões para provocá-los sobre o porquê dos problemas com o órgão.
Uma das questões que mais dirigia a interlocução, enquanto estávamos embarcados, era:
por que eles não paravam as atividades de captura mesmo sabendo que eram proibidas
legalmente? Suas respostas eram de natureza variada. Mas, destaco abaixo, três
formulações que julgo representar os pontos de vista mais recorrentes sobre o assunto:
“Preciso alimentar meus filhos. Levar dinheiro para casa. Se eu parar,
quem vai fazer isso por mim? O IBAMA? Não espero”.
“Nesta Lagoa não falta peixe! Falta é pescador! Dos bons! Peixe,
sempre teve e sempre vai ter. Às vezes mais, às vezes menos. Dizem
por aí que vai acabar. É verdade que não temos mais robalos como
tínhamos antes. Ou tainhas destas grandes que vem do mar. Mas isso
não é culpa do pescador. Quem modificou esta lagoa toda aqui foram
os fazendeiros, colocando diques por todos os lados, como você já
viu! O peixe não vai acabar. E se acabar, também, paciência. Não
dizem que tudo vai acabar um dia? Até o mundo vai acabar, ué!”.
“Ninguém pode dizer o que fazer na Lagoa. Quem você acha que
manda na Lagoa e na natureza? Nós homens? Não! O meio-ambiente?
Também não! Quem manda é Deus. Ele é quem dá o peixe. É ele
quem inunda e seca isto tudo aqui. Então não é polícia ou IBAMBA
nem ninguém que vai dizer se eu posso pescar ou não. Eu sou
pescador e Deus sabe disso! Não sou bandido! E é isso que importa”.
As respostas coletadas nos últimos anos, quando tomadas em conjunto, não se
diferenciam muito daquelas reclamações proferidas no início da pesquisa. Entretanto,
uma análise mais detalhada dos dados sugere um padrão. Quando questionados, os
271
pescadores baseiam seus argumentos em três eixos os quais chamarei de 1) material, 2)
conhecimento e 3) divino.
As justificativas para a transgressão que se enquadram no eixo material
articulam uma ideia de necessidade ligada ao provimento de comida (peixe) ou dinheiro
(ganhos obtidos com as vendas do pescado) para a família. Mesmo pescadores que estão
cadastrados na Colônia e que, por este motivo, estão aptos a receberem o Seguro Defeso
em períodos nos quais a pesca está proibida pelo IBAMA, reclamam do baixo valor das
mensalidades quando comparadas ao ganho corrente da atividade. Outros reclamam do
atraso nos pagamentos “da Federal” que muitas vezes são iniciados – conforme pude
constatar em 2009 – dois meses após o início do Defeso. “Assim não posso parar, Zé!
Ninguém olha pelo pescador!”, disse-me um interlocutor experimentado.
O eixo do conhecimento é mais complexo. É formado por argumentos que
chamam a atenção para a figura do pescador como detentor de uma técnica ad hoc – um
saber profissional específico que o distingue até mesmo de outros colegas, e cujo sua
experiência e desempenho o credenciam para explorar os recursos disponíveis na Lagoa
em qualquer circunstância. “Ser pescador de verdade”, “ser pescador mesmo” ou “ser
pescador bom”, são percepções nativas associadas a esta ideia. É por isso mesmo uma
categoria identitária em constante disputa. Só um “pescador de verdade”, de acordo com
os pontagrossenses, conhece profundamente o ecossistema e por isso tem autoridade
para explorá-lo, mais do que qualquer outra pessoa ou entidade. As implicações deste
eixo serão retomadas mais à frente.
Próximo ao eixo do conhecimento, mas formulado em outras bases, está o
divino. Seus argumentos levam em conta que o provedor da Lagoa – e da vida em geral
– é Deus. Por isso mesmo, ninguém no plano intra-mundano tem autoridade para se
sobrepor à vontade divina. Nenhum indivíduo ou instituição administrativa podem estar
acima dela. Entretanto, para poder usufruir da provisão, o pescador tem que conhecer o
ambiente, as espécies aquáticas e as técnicas de captura. É como se “ser” pescador
artesanal – o que para muitos de meus interlocutores é considerado um dom – lhes
conferisse autoridade para que desempenhem suas atividades de captura como bem
entenderem. Assim como no eixo do conhecimento, uma categoria identitária é
272
acionada, mas neste caso, ela está associada a uma dimensão sobrenatural da vida que
os coloca mais perto de Deus, acima do IBAMA.
2.2 – Na Carrasqueira.
Nos primeiros meses na Carrasqueira me preocupei em estabelecer contato com
os pescadores o mais rápido possível. Conforme assinalado no Meio, a hospedagem na
casa de Alexandre facilitou este processo. Entendi logo que o fim dos meses frios era o
principal período de preparação para a temporada do choco. A observação das
atividades em terra me aproximou – ainda que de modo superficial – do universo da
pesca artesanal no povoado. E, me aproximou também, das avaliações que os
pescadores faziam de suas próprias vidas.
Influenciado pelo problema de pesquisa trabalhado no Brasil, não perdia a
oportunidade de perguntar aos meus novos interlocutores sobre a existência de algum
tipo de proibição ou regulações que os impediam, em algum momento, de pescarem no
Sado. Para minha surpresa, sem muita precisão, a maioria dos carrasqueiros com os
quais conversei no início do trabalho de campo mencionava o período de proibição
estabelecido para captura de minhocas e algumas restrições à apanha de mariscos
quando, por qualquer motivo, eram considerados impróprios para o consumo pelas
autoridades portuguesas. Não havia, portanto, como no caso brasileiro, um período de
suspensão total das atividades de captura com o uso de redes que fosse estabelecido
anualmente.
Naquela altura, eu já tinha conhecimento que a região estuarina era coberta por
alguns dispositivos jurídicos200. E que dois deles, especificamente, tinham influência
direta na relação dos carrasqueiros com o ambiente. No texto da Reserva Natural do
Estuário do Sado, o Artigo 8º regulamenta, por exemplo, a caça das espécies nativas e o
Artigo 10º regulamenta o policiamento e a fiscalização na região que compreende os
conselhos de Setúbal, Alcácer do Sal, Grândola e Palmela. Já o Regulamento da Pesca
no Rio do Sado oficializa as artes permitidas, as formas de conservação e venda do
200
São eles a Reserva Natural do Sado, Sítio Ramsar e Zona Especial de Conservação e a
Regulamentação para a pesca no Estuário do Sado.
273
pescado, tipifica as embarcações e o número de seus tripulantes, regulamenta sistemas
de socorro e segurança marítima entre outras importantes ações.
Os pescadores com os quais travei relação no início da estadia portuguesa não
pareciam se incomodar com estas regulamentações. Entretanto, a experiência adquirida
na pesquisa entre os pontagrossenses, associada a outros casos estudados por
etnógrafos, me fazia desconfiar desta aparente passividade.
Ainda no final do ano de 2010 estabeleci interlocução com Zé Pedra. O pescador
dividia sua atenção entre o trabalho no máre e a administração do Café dos Pescadores
herdado do pai. Zé Pedra foi quem formulou, de modo veemente e sistemático, as
primeiras críticas aos órgãos portugueses envolvidos com a administração da pesca
artesanal:
“Já fostes tu em outras comunidades piscatórias na costa portuguesa?
Comunidades de pesca artesanal? Pois se fores, vais ver que não há
mais jovens a pescar... Só há velhos ou gente da minha idade
[quarenta e cinco anos]. Olha para cá, para a Carrasqueira. Só há um
jovem destes que ainda é pescador. É o Rodrigo [filho de Joaquim e
Minda]. A malta mais nova não quer saber mais disso. Eu tenho dois
filhos homens. O mais novo até gosta de ir ao máre comigo. Se queres
saber, eu não desejo o mesmo destino que o meu para ele. Quero que
ele estude e faça outros trabalhos. Ser pescador artesanal neste país?
Não há mais possibilidade! O governo nunca nos ajudou. Ao
contrário, parece até que querem acabar com a pesca nestas costas,
pá!”
Logo percebi que o pessimismo de Zé Pedra em relação ao futuro da atividade
encontrava eco nas palavras de vários outros interlocutores no povoado. De um modo
geral, os carrasqueiros avaliam que a pesca artesanal trouxe prosperidade econômica
para as gerações mais antigas – conforme a etnografia apresentada no Meio. Meus
interlocutores que se encontram na faixa etária acima dos cinquenta anos,
aproximadamente, acreditam que os anos mais lucrativos para aqueles que
desempenhavam trabalho no máre foram as décadas de sessenta e setenta.
A vida dedicada à faina sempre foi considerada dura, mas:
274
“(...)
antigamente
trabalhávamos
tanto
quanto
hoje,
porém,
ganhávamos mais. Estas vivendas todas foram erguidas com os
trabalhos nestes máres. Agora, se malta mais nova trabalhar no máre,
o que ira conseguir? É... está muito mais difícil ser pescador agora...”
Minda.
As dificuldades acerca do ingresso ou manutenção das camadas jovens no
ofício pesqueiros talvez seja o exemplo mais visível, para os carrasqueiros, de que a
continuidade da atividade está ameaçada. Em suas elaborações sobre o assunto, são
atribuídas a uma série de fatores que não podem ser pensados isoladamente. Tomadas
em conjunto, as reflexões evidenciam as condições nas quais se pratica a pesca artesanal
nos dias de hoje, ao mesmo em que tentam encontrar justificativas para seu suposto
declínio. Os fragmentos abaixo reúnem alguns dos argumentos mais utilizados por
pescadores e pescadoras com os quais conversei:
“Na vida de hoje em dia há muito mais gastos do que antigamente.
Hoje a malta mais nova quer ter tudo: computadores, telemóveis
[telefone celular], automóveis, tudo. Querem também mais dinheiro
para o lazer. Há muito mais o que fazer do que no meu tempo de
moço. Ou seja, há muito mais com o que gastar dinheiro”.
“Tudo está mais caro do que antigamente. Há mais inflação, mais
contas para pagar. Só não há mais dinheiro no bolso do pescador, não
é? Pelo contrário, aumentam todos os preços: dos combustíveis, dos
equipamentos, das artes, da manutenção. Já a valia do quilo, pelo
menos aqui na Carrasqueira, continua baixo. Quando aumenta,
aumenta devagarzinho, devagarzinho...”
“Se o pescador não andar com tudo certo, com todos os documentos
em dia, ele é multado pela Polícia Marítima. Os valores são altos,
estais a ver? Não é de brincadeira. E as metas? Se não cumprirmos as
metas deles, não podemos renovar nossas licenças. E ai como
fazemos? Porque trabalhar sem autorização é ilegal e podemos ser
multados por isso, não é?”
“Eles pensam que vida de pescador é fácil. Talvez porque nunca
tenham pescado! Nunca pescaram mesmo, afinal, estes políticos. Que
pegam nosso dinheiro, nos cobram impostos e eu, que sou pescadora
artesanal, que trabalho nestes mares, tenho que provar se sou
275
pescadora ou não para continuar a trabalhar no ano seguinte. Não acho
justo!”
Se, por um lado, os carrasqueiros julgam que as novas necessidades da “vida
moderna” – principalmente aquelas relativas ao consumo – não podem ser supridas
materialmente com os ganhos da pesca artesanal nas condições atuais, por outro,
segundo eles, o declino na atividade deve-se, em muito, à maneira como certos órgãos
do Estado administram o setor pesqueiro no país. Neste ponto, o estoque de queixas
sobre a atuação de órgãos como a Direção Geral de Pescas e Aquicultura, a DocaPescas
e a Polícia Marítima assemelham-se às reclamações dos pontagrossenses em relação ao
IBAMA. Assim como na pesquisa brasileira, embarcar com meus interlocutores foi de
extrema importância para observar, na prática, como lidavam com as regulamentações
oficiais e com a fiscalização na prática.
Mas, porque as avaliações de pescadores brasileiros e portugueses sobre a
atuação de órgãos administrativos, nos dois casos estudados, mostraram-se, comumente,
tão negativas como sugerem os relatos? O que existe na cosmologia e nas práticas
destes pescadores que torna tão difícil a aceitação de normas oficiais que afetam suas
atividades profissionais?
3 – Escrutinizando a cosmologia pesqueira, ou do que o mundo é feito?
Quando a aplicação de leis e regulamentações que versam sobre a conservação
dos recursos naturais envolve as chamadas populações tradicionais201, estas não se
constituem como um receptor passivo de tal legislação e do controle oficial. Ao
contrário, em geral, as populações têm uma atitude ativa em relação à presença dos
agentes conservacionistas principalmente quando estes não correspondem, por variados
motivos, às suas expectativas tal como vem sido demonstrado por uma ampla literatura
antropológica sobre o assunto202.
201
No Brasil, a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades
Tradicionais define a partir do Decreto n. 6.040, de fevereiro de 2007, estes grupos como “(...)
culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização
social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural,
social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e
transmitidos pela tradição”. Cf. Anexo “8”.
202
Cf: LOBÃO: 2010; FILGUEIRAS: 2008; PRADO 2006, MELLO & VOGEL: 2004; MOTA: 2003.
276
Ao não concordarem com normatizações que definem modos e limites para a
exploração de espaços considerados de relevância ecológica, tais populações, em geral,
criam estratégias atualizadas com seus interesses para lidar com estas contingências. As
avaliações sobre as normas bem como as repostas práticas dadas à atuação de órgãos
estatais que as formulam ou fiscalizam podem variar bastante de acordo com o contexto.
O que temos observado em contextos nacionais marcados por uma tradição política e
administrativa de característica centralizadora e hierarquizada – como no caso de
Portugal e Brasil – é que, historicamente, as normas jurídicas são formuladas em
instâncias aparentemente desconectadas das práticas que constituem os sentimentos
morais das sociedades. Portanto, a distância entre as normas [oficiais] e as práticas
[sociais] pode, em muitas situações concretas, gerar tensões, constrangimentos,
desacordos e conflitos entre grupos sociais estabelecidos e órgãos ligados à
administração da vida pública203.
Neste aspecto, os dois casos apresentados nesta tese têm características que os
aproximam. A publicação anual de uma Portaria Normativa que proíbe a pesca com o
uso de redes na região que compreende a Lagoa Feia tem sido realizada sem qualquer
tipo de consulta aos pescadores de Ponta Grossa dos Fidalgos ou de Quissamã. Por
outro lado, os dispositivos jurídicos que incidem sobre a região estuarina do Sado – a
Reserva Natural e o Regulamento de Pesca – também foram elaborados sem a
participação dos pescadores artesanais locais, de acordo com meus interlocutores
portugueses.
Frases como “o IBAMA está na Lagoa” ou “a DGPA não entende nada de
pescadores artesanais” atestam que meus interlocutores entendem, de algum modo, que
tais órgãos exercem influência sobre suas práticas haliêuticas. Os pescadores podem, em
sua maioria, não conhecer em detalhes as normas ou suas sanções. Mas, sem dúvida,
reconhecem a existência de mecanismos regulatórios. Pude observar tanto no caso
brasileiro quanto no caso português, como pescadores artesanais incorporam, ao seu
modo, tais mecanismos regulatórios em suas práticas profissionais. Dito de outro modo
a etnografia evidenciou, como eles atualizam, em seus termos e de acordo com seus
interesses, a relação com o IBAMA, a DPGA e a DocaPescas. Em Ponta Grossa dos
Fidalgos, a problemática em torno das normatizações se concentra nas práticas de
203
Cf: VIANA: 1974; FAORO: 1975; DA MATTA: 1976, 1985; KANT DE LIMA: 2000, 2005;
CARDOSO DE OLIVEIRA: 2002; LOBÃO: 2010; MOTA: 2004, 2009.
277
captura desenvolvidas na Lagoa Feia. Já na Carrasqueira, além da atividade pesqueira,
há também, conforme descrito no Meio, um conjunto de disposições legais que afetam a
venda do pescado.
Vejamos, portanto, como pescadores dos dois povoados elaboram suas ideias
acerca do [que entendemos como] mundo natural ou do ambiente ao qual estão ligados
pelo ofício. Seus relatos revelam uma sofisticada combinação de elementos capazes de
construir uma weltanschauung que só pode ser compreendida a partir do momento em
que nos afastarmos, ainda que provisoriamente, de nossas ideias mais elementares sobre
natureza, cultura e tempo. Uma descrição detalhada da cosmologia pesqueira pode
indicar em que termos, órgãos estatais, normatizações e mecanismos regulatórios são
percebidos por estes grupos.
Luiz na Lagoa Feia
278
3.1 – A Comunidade de Vida
Na organização da vida social, muitos grupos podem atualizar, em suas próprias
categorias do pensamento, eventos ou instituições que, em principio, não fazem parte de
suas experiências práticas. Certos processos apenas podem ser entendidos como
“exteriores” à vida de uma coletividade, na medida em que o grupo social cria limites
mais ou menos definidos, sobre quem ele é e onde – fisicamente – ele vive. Se LéviStrauss estiver certo, sua assertiva de que toda cultura é etnocêntrica, o processo de
interação social, sob variadas formas, é o motor através do qual estes limites são
estabelecidos204.
Entretanto, trabalhar com esta hipótese é, em certa medida, admitir, o conhecido
dualismo metodológico entre o ético e o êmico tal como foi apropriado pela
Antropologia na segunda metade do século XX205. A dimensão êmica da experiência
coletiva é aquela interna ao grupo social. Seria o espaço de construção dos modelos
nativos de entendimento do mundo no qual estão esquematizadas lógicas, crenças e
interpretações que dão sentido à sua vida prática. Ela é prescritiva, pois sua existência é
contingente à cultura do grupo e é reproduzida através de suas instituições.
Mas, um dos maiores desafios impostos aos etnógrafos nos dias de hoje, é como
definir o que é realmente êmico para uma coletividade? No momento em que a
disciplina antropológica vem analisando processos sociais cada vez mais complexos, as
barreiras sobre onde “começam” e onde “terminam” um grupo, uma cultura ou mesmo
uma cosmologia estão cada vez mais difíceis de serem identificadas206.
Existe, entretanto, uma saída possível. E ela não abandona o método precípuo da
disciplina, qual seja, a etnografia. É necessário, dessa forma, descrever as categorias de
pensamento dos grupos sociais sem a preocupação, a priori, em definir os elementos
que constituem o mundo “deles” e aqueles que fazem parte do “nosso”. Se não,
corremos o risco de reproduzir dicotomias como ético/êmico, nós/eles, natureza/cultura,
magia/ciência, saber/conhecimento, tradicional/moderno, material/existencial, entre
outras, que marcaram, por tanto tempo, as mais conhecidas teorias antropológicas.
204
LÉVI-STRAUSS: 1976.
Dualismo este que foi amplamente difundido pela corrente do Materialismo Cultural que tem Marvin
Harris (1975) e Marshall Sahlins (1972) como dois de seus maiores expoentes.
206
Cf. WAGNER: 2010; BARTH: 2000; ROSALDO: 2000. KUPER: 2002.
205
279
Um dispositivo analítico encontrado por Mello & Vogel no estudo sobre o
povoado de pescadores de Zacarias, no Rio de Janeiro, foi retomar, sob outra ótica, a
noção de bios [vida] e koinoein [ter algo em comum] formulado por Moebius – famoso
biólogo alemão do final do século XIX207. Em sua versão ecológica, o conceito ficou
conhecido na literatura como biocenose e ressalta as formas de vida em comum de seres
que habitam uma região particular. Ou seja, identifica a complexa articulação de
plantas, animais, micro-organismos e outros elementos num meio circunscrito que pode
ser, por exemplo, uma floresta, um estuário ou uma restinga.
A visão de um ecólogo sobre o meio ambiente natural hierarquiza os elementos
que o constituem, define suas propriedades e distingue seus objetos. Não é, neste
sentido, muito diferente do olhar que pescadores podem ter sobre mares, lagoas, ou
qualquer outro biótopo os quais conhecem a partir de sua experiência profissional. Mas,
diferente de um cientista, que usa as categorias de sua própria disciplina para identificar
e definir os elementos que podem, ou não, constituir a biocenose de um lugar, a
etnografia tem mostrado que pescadores artesanais formulam suas noções sobre o meio
ambiente a partir de analogias e associações extremamente complexas que extrapolam
as classificações ecológicas mais correntes.
É possível, portanto, admitir que grupos de pescadores artesanais, em geral,
formulem um conceito de Natureza como algo semelhante a uma comunidade de vida.
Teorizam, assim, sobre as formas de interação dos seres que a constituem, só que o
fazem em seus próprios termos. Os seres que habitam este universo nativo não podem
ser dispostos em categorias tradicionais da ecologia ou da biologia, simplesmente. Para
carrasqueiros e pontagrossenses há uma mistura entre os universos natural/social e
social/sobrenatural atualizada na percepção que têm da natureza e objetivada nas suas
práticas haliêuticas. A etnografia evidenciou que a identificação dos seres que compõem
a comunidade de vida, do ponto de vista, nativo incorpora impreterivelmente esta
mistura.
Esta percepção transcende a ideia da lagoa, por exemplo, como um ecossistema
fechado e equilibrado, e põe em evidência elementos com relações em permanente
processo de reformulação no qual se consideram os conhecimentos locais, as técnicas de
207
Cf: MELLO & VOGEL: 2004.
280
pesca e as relações sociais em torno desta atividade profissional. Ao fim e ao cabo, os
próprios pescadores se incluem como parte ativa desta comunidade de interação. A
tarefa da etnografia, neste sentido, foi descrever o que pescadores brasileiros e
portugueses dizem sobre o ambiente e aquilo que fazem com ele. Dito de outro modo, o
interesse foi entender que lugares ocupam os seres que habitam a comunidade de vida e
quais funções eles desempenham. O esquema abaixo sintetiza o conceito:
Pescadores
Artesanais
Peixes
Deus
Outros
Animais
Flora
COMUNIDADE DE VIDA
(AMBIENTE FÍSICO + PRÁTICAS SOCIAIS)
ESTUÁRIO DO SADO
LAGOA FEIA
Entidades
Sobrenaturais
Agentes de
Fiscalização
Órgãos
Oficiais e
Legislações
3.2 – “A pesca como um jogo”
Uma metáfora que ouvi muitas vezes durante o trabalho de campo no Brasil e
em Portugal caracteriza a pesca artesanal como um jogo. Desta máxima, derivam outras
associações. A ideia do jogo trás junto a definição de onde [em que lugar] ele é
praticado, quem são os participantes e quais são as regras.
281
“Isto é assim. É como um jogo mesmo. Eu posso ganhar e perder.
Ganho quando a pesca é boa. Ganho dinheiro posso comprar minhas
coisinhas, tudo direitinho. Perco quando a pesca é ruim. Isto não
significa que eu perca na vida. Não! No outro dia eu vou lá e ganho
novamente. Temos que nos acostumar como isso. A vida é como um
jogo. A vida na pesca também” (Alexandre, Carrasqueira)
“Só pode participar disto quem sabe! Quem conhece as regras! Digo,
quem conhece a pesca, a lagoa, os peixes e tudo. Quem sabe como é
fazer isto aqui todo dia. Porque hoje em dia, não é como no meu
tempo. Hoje o cara vem até a lagoa e acha que é pescador. Não é não!
Pescador tem que conhecer como as coisas funcionam. Tem que saber
sim!” (Dodô, Ponta Grossa dos Fidalgos).
“Acho mesmo que pescador é um bicho competitivo. Ao ponto de
furar o olho do outro! É! Ajuda só mesmo aqueles que pescam com
ele. Já ajudar os outros? Ah, isso é mais difícil. É como um time de
futebol. Você joga e ajuda seu time. Porque você quer na verdade
ganhar do outro time! Não é? Ninguém gosta de perder! (Neguinho,
Ponta Grossa dos Fidalgos).
Estas elaborações se conectam com as regras do direito costumeiro apresentadas
nas partes I e II deste texto, para cada caso. O conjunto de etiquetas que organiza o
acesso aos recursos pesqueiros, bem como aos espaços mais propícios para a captura,
estabelecem limites para a atuação dos grupos de pesca ou companhas. Os pescadores
conhecem seus princípios. Mas, de todo modo, isto não significa que as mesmas sejam
cumpridas à risca. Interpretações ambíguas sobre as etiquetas e mesmo transgressões
instrumentalizadas são motivos para tensões e conflitos entre. É um jogo, portanto,
porque há regras que devem ser conhecidas e praticadas pelos envolvidos.
Mas, quem participa deste jogo? Primeiramente, os relatos apontam para um
jogo motivado pela disputa entre as companhas ou grupos de pesca. A competição se
estabelece a partir da combinação de três fatores: a quantidade do pescado, a
quantidade do mesmo e o desempenho do pescador. A quantidade de pescado é contada
em quilos ou em unidades. No caso de Ponta Grossa, a unidade é a caixa – engradado
de plástico, semelhante aos utilizados em feiras-livres que quando estão cheios de
peixes chegam a pesar vinte quilos. Já na Carrasqueira trata-se do latão que em seu
limite conta vinte e cinco quilos de pescado. A qualidade das espécies capturadas é um
282
fator de distinção neste jogo que pode ou não aparecer associada à quantidade. Na
Lagoa Feia, vinte quilos de robalo são mais valorizados do que quarenta quilos de
traíras ou acarás. No Sado, por sua vez, capturar dez quilos de linguados é mais
desejável do que quarenta quilos de charrocos. Em ambos os casos, a qualidade das
espécies atualiza a hierarquia dos peixes, de acordo com as avaliações locais que tem
como base o conhecimento empírico do funcionamento do mercado – tal como
apresentado no Meio, para o caso português. Tanto a quantidade quanto a qualidade,
como resultado das capturas, estão associadas ao desempenho do pescador como um
mestre do ofício. Entre os praticantes, apenas o exímio conhecedor das artes pesqueiras
tem habilidade suficiente para mobilizá-las com precisão e obter bons ganhos. O melhor
jogador, portanto, é aquele que melhor se desempenha no exercício da pesca artesanal.
Há, entretanto, uma característica associada ao desempenho: um bom pescador
só pode mobilizar técnicas que lhe deem bons resultados porque seus conhecimentos
são um dom. Deus, ou forças que estão além de do controle dos homens, são
responsáveis pelo funcionamento das coisas mundanas e pelo desempenho afortunado
dos pescadores. Quando um pescador de dons reconhecidos falha em alguma investida,
há a ideia comum de que a penúria é um ensinamento divino. Por isso, o pescador
experimentado deve ter calma e paciência para esperar outra nova oportunidade.
Este jogo não atualiza a competição apenas entre pescadores. A metáfora aponta
para outras direções e incorpora novos personagens. É comum que os pescadores falem
da relação entre eles e os órgãos estatais estabelecendo a mesma analogia:
“Ah, aqui é assim! É como gato e rato! Um jogo ou uma perseguição!
Se estou na Lagoa e escuto um motor [da lancha da fiscalização
ambiental] – motor de lancha, não estes do barco – a primeira coisa
que eu faço é me esconder nas tabuas [vegetação] até eles passarem.
Eles não podem me ver de longe por causa da cor do barco. Mas eu
escuto o motor e me adianto! Não sou bobo! É como gato e rato!”
(Ponta Grossa dos Fidalgos).
“Estamos sempre preparados, não é? Ninguém gosta de encontrar a
Polícia Marítima. Nem aqueles que estão com tudo certinho. Porque
eles sempre vão dizer que tem algo errado. É um extintor de incêndio
que não está no lugar certo, é uma vírgula no documento do barco”.
Prefiro não os encontrar. Quando sabemos por que sítios eles estão
283
andando, procuramos outro. São eles contra nós e nós contra eles,
fazer o que, não é mesmo?”(Carrasqueira).
Genoveva Luisa nos máres do Sado
Aqui, os pescadores constroem a ideia de que os agentes de fiscalização das
atividades são oponentes na medida em que percebem sua presença como algo negativo.
Precisam, desse modo, criar estratégias para evitar, o tanto quanto possível, os
encontros, no máre ou na Lagoa, com eles. Em Ponta Grossa, por exemplo, meus
interlocutores que não param suas atividades no período proibido pelo IBAMA, mudam
os horários de saída e chegada da pesca. Optam, na maioria das vezes, pela pesca
durante a madrugada, pois argumentam que “o IBAMBA” ou o “meio ambiente” não
anda pela Lagoa nestes horários: “Eles não conhecem isso aqui. Não é fácil navegar
nesta lagoa sem iluminação. Por isso, quando aparecem, é mais perto do início do dia.
Nunca de noite [madrugada].
284
Os carrasqueiros, por sua vez, acreditam que a Polícia Marítima está sempre em
desconfiança quanto às suas práticas, às condições nas quais se encontram os
equipamentos pesqueiros e aos documentos que permitem o exercício legal da
profissão. A maior parte dos carrasqueiros com os quais conversei faz questão de
afirmar que andam “sempre em dia” com as exigências da DGPA – as mesmas que são
fiscalizadas pela Polícia. Entretanto, pude observar estratégias formuladas pelos
pescadores para burlar algumas normas. Alguns pescadores utilizam a solheira com
malhagem inferior aos oitenta milímetros permitidos pelo Regulamento de Pesca. Mas
não o fazem em toda a extensão das redes. Intercalam, cuidadosamente, malhagem de
sessenta ou setenta milímetros com aquela permitida. Caso os agentes queiram
inspecionar o tamanho das malhas, os pescadores mostram apenas a parte do pano no
qual o tamanho é de oitenta milímetros.
“Eu as intercalo. Não uso tantos miúdos abaixo de 80 milímetros não.
Mas, se eu não fizer isto, corro o risco de fazer uma maré e voltar sem
nada. Isto é que não pode! Então faço assim. Eles são espertos
conosco. Por qualquer coisa aplica-nos logo uma coima [multa]
altíssima! Temos que ser espertos com eles também”. (Carrasqueira).
O campo no qual este jogo é disputado é, num caso, a Lagoa, e no outro, os
máres do Sado. Os jogadores são os pescadores e os agentes de fiscalização. Isto define
do ponto de vista dos pescadores, os limites físicos que constituem sua comunidade de
vida. E, além disso, sublinha alguns dos “seres” que estão em constante interação e cuja
movimentação está, sempre, afetada pelo outro nestes espaços.
Mas há outro elemento dotado de características especiais. Elemento este que é
também investido de agência, vontade e temperamento. Se o incorporamos na metáfora
do jogo – como fazem os pescadores – creio que seja possível elevá-lo ao estatuto de
jogador assim como os outros atores. Me refiro, aqui, ao peixe.
3.3 – “O peixe sempre vence”
As percepções que os grupos humanos têm da vida animal e vegetal tem sido,
novamente, matéria de interesse para a Antropologia nas últimas décadas. Diferente de
abordagens antigas que reproduziam nos modelos nativos a distinção cartesiana entre o
285
que é humano e o que é animal, novas contribuições têm chamado a atenção para a
complementaridade destes dois domínios. Um bom exemplo disso é coletânea
organizada por Tim Ingold intitulada “O que é um animal?”. Em sua introdução, o
antropólogo assinala que:
“Todas as sociedades humanas, passadas e presentes, coexistiram com
populações de animais de uma ou várias espécies. Ao longo da
história, pessoas têm, de maneiras variadas, matado e comido animais
ou, em ocasiões mais raras, têm sido mortas por eles; ou incorporaram
animais em seus grupos como estimação ou cativos; utilizaram suas
observações da morfologia e do comportamento animal na construção
de seus próprios projetos para viver”208.
A pesquisa empírica entre pescadores revelou que a relação deste grupo com os
animais que compõem sua comunidade de vida é bastante complexa. As interpretações
nativas sobre o funcionamento da vida animal – tal como apresentadas em classificação
dos bichos na Carrasqueira – evidencia, como a distribuição das espécies é feita em
conjuntos relativamente fluidos, mas que são formulados por uma lógica associativa que
trabalha dinamicamente qualidades atribuídas aos animais.
Para isso, características que definem os limites entre homem e animal são
misturadas de modo a dar ordem a este mundo. Traços daquilo que é comumente
associado ao comportamento humano indica, por exemplo, como se comportam certos
peixes: “O choco é tímido. Mas é esperto. Gosta de namorar. É como nós”, ou “A
traíra é um peixe tinhoso. Igual a mulher brava! Para pegar, temos que saber lidar com
ela!”.
O inverso também ocorre. Quando características dos animais são utilizadas para
qualificar pessoas. “Adoro ameijoas. Adoro ameijoas novinhas. E todo homem tem que
ter suas ameijoas, não é mesmo? Os mariscos aparecem como referencias à mulher ou
aos órgãos genitais femininos. Em Ponta Grossa, quando alguém comenta “Ih! Lá vem
o morobá...” significa que se aproxima um homem considerado chato, ou que a sua
presença “contamina” o ambiente – já que o morobá é um peixe que não tem valor
comercial, é difícil de ser retirado da rede e ao nadar turva a água o que pode dificultar a
captura de outras espécies. O mesmo acontece com o charroco na Carrasqueira. A
208
INGOLD: 2007, 129. Grifo meu.
286
espécie é considerada localmente como feia (semelhante a um sapo de grandes
dimensões) e praticamente não tem valor comercial. Observei muitos de meus
interlocutores se tratando por “charrocos” – um modo jocoso desqualificar o outro.
Há mais coisas envolvidas na relação entre pescadores e peixes. A interpretação
que pescadores fazem sobre o comportamento das espécies aquáticas as dota de uma
agência especial. Acreditam que, assim como eles, os peixes estão constantemente
avaliando as situações e respondendo a estímulos dos mais diversos.
“Pensam por ai que cachorro é o bicho mais esperto do mundo, não é?
Mas o peixe é bicho sabido demais. É tão sabido que nem o homem
consegue domar ele. Sabe quando vai ser pego. Mas sabe também ser
esperto o suficiente para fugir. Assim mesmo como nós fazemos!”
(Doba, Ponta Grossa dos Fidalgos).
“Nós escutamos o motor deles [lancha do Batalhão Florestal]. Com o
peixe é igual: eles escutam nossos motores e se escondem. Se a água
estiver alta é pior ainda. Eles têm mais espaço para andar e se
esconder” (Neguinho, Ponta Grossa dos Fidalgos).
“Deus deu a inteligência para todo mundo. Tudo que habita aqui, pelo
menos eu penso assim, tem inteligência. Digo tudo que é vivo e se
movimenta, lógico! Uma pedra não é inteligente. Mas o peixe é. E
pode fazer da pedra sua casa, ou sua cama, ou esconderijo, ou pode
comer o limo que gruda nela. Todo peixe tem uma característica. Uns
são mais inteligentes outros menos. Mas todos são espertos para fugir
do pescador! O problema é que pescador é inteligente também! Ai,
vira uma disputa, né?” (Luiz, Ponta Grossa dos Fidalgos).
Os relatos dos pescadores associam características humanas ao comportamento
dos peixes. Traços dos dois universos – humano e animal – são misturados. Diferente
do biólogo, que acredita que o peixe responde a estímulos de modo instintivo, os
pescadores julgam que o comportamento das espécies assemelha-se aos seus porque
ambos, pescadores e peixes, são seres feitos da mesma natureza. As suas existências no
mundo têm origem nas mesmas fontes e participam cada um com suas qualidades, da
mesma comunidade de vida.
“Eu pesco porque eu tenho que comer e alimentar minha família. O
peixe também tem que comer. Faz a mesma coisa que eu. Ele vai
287
comer outros peixes ou outras comidas. Mas, ele igual a nós. Quando
ele come, cresce e cria outros peixes. Ele pode passar a vida toda sem
ser pescado. Ele pode vir a morrer de velho e não ser pescado. Ele vai
lutar pela vida dele e eu vou lutar pela minha. Isto é assim, sempre foi
assim e nunca vai mudar! É a lei das coisas.” (Joaquim, Carrasqueira).
Uma vez mais, a ideia da luta é vindicada, tal como no relato de Joaquim. Aqui
ela envolve o homem e o peixe. Na situação da pesca, os dois fazem parte do mesmo
mundo, pois ambos têm do ponto de vista dos pescadores, as mesmas qualidades.
Para o pescador, o peixe é um recurso, na medida em que sua venda nos
diferentes mercados é convertida em valores monetários. É, além disso, um alimento e,
neste sentido, é a forma mais básica de provimento alimentar das famílias de
pescadores. Por fim, o peixe é alguém com quem se estabelece uma interação mediada
pelo interesse da manutenção da vida. Um ente que deve ser respeitado – pois sem sua
existência também não existiriam pescadores – mas alguém que pode ser abatido numa
disputa considerada justa. O pescador lê e interage com o mundo, de acordo com seus
conhecimentos sobre ele. Para os pescadores, o peixe também “lê” o mundo e interage
com os outros elementos da comunidade de vida (outros peixes e outros pescadores, por
exemplo) com os mesmos aparatos209.
Uma fala de Zé Pedra, proferida na Carrasqueira, por ocasião de uma conversa
sobre o futuro do “meio-ambiente”, condensa a interpretação sobre a sinergia
estabelecida entre peixes e pescadores:
“Tu já pensaste numa coisa, Zé? Eu sou pescador. Pesco desde miúdo
e estes peixes não acabaram. Uma hora tem mais outra hora tem
menos. Mas não acabaram por certo. Todos falam por todos os lados
que os peixes estão a acabar. Enganam-se! Há peixes sim, senhor! O
pescador, por melhor que seja nunca vai pescar todos os peixes do
mundo. Nem todos os pescadores do mundo, caso trabalhassem em
conjunto, também não iam fazer isso. Quando tu vais ao máre e não
trazes nada, naquele dia, o peixe ganhou. Estais a ver? Na verdade,
tanto faz o gajo pescar vinte ou duzentos quilos. Nunca irá pegar
todos. No fim, o peixe sempre vence!”
209
Um estudo de caso de abordagem perspectivista que, entre outros assuntos, discute elaborações
indígenas sobre o mundo social e animal pode ser encontrado em LIMA: 2005.
288
Argumento semelhante foi elaborado por Dodô, na ocasião de uma pesca na
Lagoa Feia:
“Tem por aí muito mais peixes do que podemos pescar. E a vida de
pescador é assim: eu ganho e perco o tempo todo. Os peixes também.
Ganham ou perdem. É a vida mesmo. Já tive vezes que pescar doze
horas de anzol de bóia. Para pegar sabe quanto? Cinco quilos de traíra.
Sabe quem ganhou naquele dia? Não? Eu sei. O peixe ganhou! Porque
eu sabia que elas tavam lá num canto que eu sempre pesquei. Por que
justamente naquele dia não arrumei nada? Não mudou o vento, não
mudou a água. Nada! Ele [o peixe] foi mais esperto que eu.
Acontece!”
Se a pesca é um jogo, para meus interlocutores, em suas falas podemos destacar
seus principais participantes. São eles os próprios pescadores, os agentes de fiscalização
ambiental e os animas aquáticos, em especial, os peixes. Os três coletivos estão em
constante interação, animando, em conjunto com outros elementos, a comunidade de
vida da qual, cada um ao seu modo, faz parte. A metáfora do jogo aqui, tomada de um
modo mais específico, não sugere, de pronto, quem ganha ou quem perde – mesmo que
isto esteja no horizonte de todo jogador, em geral, e apareça, constantemente, na fala
dos pescadores. Me parece mais apropriado pensar o jogo em questão como um jogo de
linguagem – na medida em que ações das partes envolvidas comunicam, muito mais do
que resolvem as disputas210. É justamente a comunicação entre as partes que os
aproxima e os distancia, marcando assim, o balanço variável de suas relações.
3.4 – Algumas noções nativas de previdência.
Tanto as portarias normativas emitidas anualmente pelo IBAMA, quanto o
Regulamento de Pesca do Rio Sado enquadram-se, cada uma ao seu modo, no conjunto
de dispositivos legais que têm o objetivo de limitar a exploração dos estoques de
recursos naturais, em cada ecossistema, de modo a garantir seu acesso para as futuras
gerações humanas. Tais dispositivos atualizam as formas de controle e utilização de
áreas de interesse ambiental com limites definidos. As portarias do IBAMA afetam
chamada bacia hidrográfica do leste, no Brasil, área que compreende quatro unidades
210
Conferir os comentários sobre os Jogos de Linguagem de Wittnguenstein em TAYLOR: 2000.
289
federativas. Já o Regulamento de Pesca do Sado é particular à extensão do Rio e
incorpora quatro conselhos municipais que o tangenciam. No Brasil e em Portugal,
existem códigos mais amplos dos quais derivam estas formas mais localizadas de
controle dos espaços de interesse ambiental. 211
Aparece embutida nestas normas, a ideia de que a ausência de mecanismos que
controlem o uso dos recursos marinhos pode afetar objetivamente o desenvolvimento
pleno de seres das mais diversas espécies aquáticas. Quadro este que, em longo prazo,
pode fazer com que muitas espécies diminuam sensivelmente o número de indivíduos
ou, na pior hipótese, deixe de existir. Qualquer um dos prognósticos é percebido como
nefasto pela maioria dos ecologistas porque, em sua perspectiva, mudanças abruptas na
constituição e no desenvolvimento de espécies aquáticas podem acarretar desequilíbrios
irreparáveis aos ecossistemas nas quais elas se encontram. Os efeitos ecológicos, neste
sentido, se dariam tanto em sua dimensão “natural” quanto na “social”, pois, entre
outras coisas, tais recursos poderiam ser utilizados pelo homem para vários fins.
Portanto, as legislações, tal como se apresentam, trazem, em si, duas importantes
noções: por um lado, o reconhecimento da escassez da maioria dos recursos naturais,
em especial, das espécies aquáticas. Por outro, ancorada no problema da escassez, há
uma construção sobre o futuro da natureza e dos elementos que a compõem. Grande
parte da discussão ecológica contemporânea, independente de qual corrente de
pensamento faça parte, tenha estes dois pilares como referência: escassez e futuro212.
A etnografia tem mostrado, entretanto, que as noções de tempo tal como
formuladas por vários grupos humanos, podem variar bastante de acordo com contextos,
interesses e experiências coletivas213. Em muitos casos – como os analisados nesta tese
– as noções de escassez e futuro formuladas por pescadores artesanais possuem
características diferentes daquelas que informam a legislação ambiental vigente.
211
No Brasil trata-se da Lei de Política Ambiental 6.938/81 e em Portugal a Legislação Sobre Pesca e
Aquicultura de 19 de fevereiro de 2010. Cf. Anexos “12” e “13”, respectivamente.
212
Cf. BRUSEK: 2001; ACSELRAD: 1995.
213
Conforme discutido na Proa para o caso brasileiro.
290
3.4.1 – Abundância e penúria
Entre pescadores artesanais, só é possível entender a noção da abundância
quando esta é contrastada com a noção de penúria. Categorias que, neste sentido, são
duas faces da mesma moeda. São condições que estruturam toda a vida de um pescador.
Experiências vividas no cotidiano da faina que fazem com que compreendam a pesca –
e sua própria existência social – como uma gradiente que opera para cima e para baixo
marcando, dessa forma, o balanço de sua trajetória no mundo. Tal como Mello & Vogel
identificaram na pesca lacustre em Maricá:
“Todo pescador sabe que há dias ruins, quadras ruins, tempos de
penúria. Por mais e melhor que se pratiquem as pescarias, os esforços
permanecem vãos. Nada lhes é, pois, mais estranho do que a ilusão
edênica, quando é levado a considerar, reflexivamente, o seu modo de
vida que, todo ele, repousa sobre as vicissitudes da pesca lagunar”.214
Vicissitudes estas encontradas não somente na pesca de águas interiores, mas em
todo ambiente ou ecossistema sobre o qual o homem tem relativa capacidade de
controle. É possível, tanto utilizando instrumentos de alta tecnologia quanto se baseando
em conhecimentos naturalísticos antever, em muitos casos, mudanças atmosféricas ou
hidrológicas que podem afetar, objetivamente, as condições nas quais a pesca é
realizada, já que tais fenômenos incidem sobre o comportamento das espécies aquáticas.
Para os pescadores, o ambiente natural tem uma lógica que eles entendem por
meio dos conhecimentos adquiridos através de sua experiência e observação. Mas,
aquilo que “move” a natureza está, para eles, fora do alcance e do controle dos homens.
Os movimentos das águas, a incidência dos ventos ou o comportamento das espécies
são a dimensão objetiva de algo que não pode ser visto, quais sejam, a vontade divina e
forças sobrenaturais. Sabem, assim, que sua intervenção, diante deste quadro, é muito
limitada.
Do mesmo modo, é percebida a dualidade abundância e penúria. Por mais que
um bom pescador reúna atributos técnicos reconhecidos e mesmo que seja considerado
por outros colegas de ofício, um mestre da arte pesqueira, a incerteza quanto aos
214
MELLO & VOGEL: 2004; 298.
291
resultados cotidianos da captura é uma característica presente na sua trajetória
profissional.
“Tanto faz pescar aqui quinze quilos de choco ou quarenta ou oitenta.
Tem dia que não apanhamos nadinha. E ainda dizem por ai que vida
de pescador é fácil. Quando não pegamos nada quem paga nosso
gasóleo? E o nosso esforço? Por isso, para ser pescador tem que se ter
paciência. Quando uma maré não dá, outra dá. Há uma verdade sobre
as coisas: ‘há muito mais marés que marinheiros’ [ditado popular].
Portanto, um pescador que não souber conviver com isto, que for
muito ansioso ou que acha que pode ganhar tudo sempre, este ai não é
pescador! (Alexandre, Carrasqueira)”
Ou, como reafirmava Dodô em Ponta Grossa:
“Eu não já lhe disse. Tem dia que é o peixe que ganha! Nós
pescadores, não ganhamos nada. Temos é que agradecer [a Deus]
mesmo assim porque fomos e voltamos vivos e bem. E que temos
saúde para continuar e tentar a pesca no dia seguinte. Isso sim”.
As narrativas indicam que os pescadores aceitam com resiliência os resultados
da pesca. Percebem que têm o dom de serem pescadores – objetivados em seus
conhecimentos naturalísticos e na energia que despendem para realizarem seu ofício. O
usam, portanto, para prover o sustento material de suas famílias. Mas sabem que o
funcionamento das coisas do mundo não depende diretamente deles. E que tanto faz um
dia ganhar muito e outro dia não ganhar quase nada215.
Suas noções sobre abundância e penúria podem, dessa forma, nos levar a
discussão em torno da escassez.
Quando questionados sobre se há ou não escassez de peixes, muitos de meus
interlocutores constroem argumentos como216:
215
Entendem, ao mesmo tempo, que o mercado também funciona independente de suas vontades. Uma
instituição que foge, nesse sentindo, ao seu controle. Para uma discussão sobre escassez e raridade
associadas aos sistemas econômicos ver “A Racionalidade dos Sistemas Econômicos” em GODELIER:
1969.
216
Há também argumentos que chamam a atenção para a diminuição das quantidades e para mudança na
qualidade das espécies. Nestes casos, a intervenção descuidada do homem – pescador ou não – no meio é
a justificativa principal para estes fenômenos. Entretanto, me interessa aqui destacar somente as
elaborações que, de algum modo, relativizam a ideia de escassez ou finitude dos peixes, pois são elas que
292
“O peixe não acaba! Pode acabar num lugar e aparecer em outro. Pode
aparecer ou desaparecer. Mas acabar o peixe não acaba não! Ah, tem
muito peixe. É mais fácil o pescador se acabar, na cachaça do que o
peixe se acabar na Lagoa [Feia]! Escute o que eu tô te dizendo!”
(Pudim, Ponta Grossa dos Fidalgos).
“Olhe, tenho para mim que, se todos pescarem muito em todos os
lugares, o peixe pode desaparecer ou diminuir. Mas, cá na
Carrasqueira, não pescamos tanto assim, estais a ver. Olha a
quantidade de pescadores hoje! As pessoas estão a sair da vida da
pesca por outras razões. Mas não podem dizer por ai que não há mais
peixes! Isso é mentira!” (Minda, Carrasqueira).
“O que tem por ai, Zé, é gente preguiçosa. Aqui em Ponta Grossa,
quase ninguém pesca de anzol de bóia. Sabe por quê? Porque é muito
mais cansativo. Exige muito mais talento e força do pescador. A turma
só quer saber de rede de espera [minjoada] porque já não se pode
trolhar em toda a Lagoa [Feia] como no tempo dos antigos. Então eu
lhe digo: tem é preguiçoso. E não falta peixe!” (Cau, Ponta Grossa dos
Fidalgos).
“O bom pescador sempre vai encontrar o peixe onde ele estiver”
(Joaquim, Carrasqueira).
As ideias sobre a escassez do pescado, nos tempos atuais, são contextuais. Em
primeiro lugar, são formuladas a partir da perspectiva da comunidade de vida, tal como
apresentada anteriormente. Isso significa dizer que para a maioria dos pescadores, os
peixes não são finitos, porém, o “mundo” habitado por eles é. E o mundo no qual estes
pescadores habitam, em conjunto com peixes e outros elementos, é o mundo de suas
experiências práticas – onde vivem, interagem e desenvolvem suas atividades
profissionais. É este universo que os interessa.
Por isso, nesta perspectiva, muitos dos discursos de preservação ambiental que
versam sobre este assunto, parecem vazios de sentido ou distantes para meus
interlocutores. Seus relatos mostram que a constituição desta comunidade de vida é
marcada pela trajetória dos elementos reconhecidos como participantes de uma teia de
interações circunscritas a um espaço com limites relativamente fechados. E por isso
entram em contraste com certos princípios que existem na ecologia moderna e que são refletidos, como
nos casos estudos, nas legislações que incidem na pesca artesanal.
293
marcado pela proximidade. Seja na Lagoa Feia ou no Rio Sado. A “escassez do estoque
pesqueiro na Europa Continental” e a “diminuição dos indivíduos novos das espécies
nativas do centro do Brasil” são informações que, mesmo vinculadas em Programas de
conservação ambiental formulados por órgãos oficiais, parecem, para eles, bastante
longe de suas experiências objetivas com a natureza.
Minda no alador
3.4.2 – Presente e futuro
Talvez por isso recaia, ainda, sobre muitas populações pesqueiras a ideia de que
elas são “predadores da natureza” ou “imprevidentes”. Suas percepções sobre o que são
os recursos naturais, suas quantidades e seu destino muitas vezes estão em desacordo
com as lógicas de preservação ambiental formuladas sob outras bases compreensivas –
as mesmas que informam parte significativa da legislação sobre o assunto.
294
É comum que os atuais mecanismos regulatórios sejam influenciados por uma
noção de futuro construída conjunturalmente. A modernidade trouxe consigo a ideia de
que, a partir da ciência, do cálculo e do planejamento racional, o futuro pode ser
relativamente controlado. Estes elementos forneceram ao “homem moderno” um pouco
mais de segurança em relação à vida e, além disso, lhe dão, supostamente, a capacidade
de projetar, em bases consideradas sólidas, os rumos para algo que ainda não
experimentou; para um tempo que ainda será feito. Daí vem toda a concepção de que
uma intervenção política instrumentalizada pode garantir que o futuro da sociedade
humana seja marcado por menos sofrimento coletivo tal como ela experimentou em
outros períodos. 217
Entretanto, esta concepção abstrata de futuro não se encaixa, semanticamente,
nas percepções que grupos de pescadores artesanais têm sobre estes assuntos. Seguem
alguns relatos:
“Presente para mim, é aqui e agora. O passado já passou. Era melhor,
né? Agora o futuro... ah! Este ninguém sabe. Pra mim não existe. Pode
existir para meus filhos e netos, talvez. Pra mim não. Por que vou
morrer logo, né? Pescador morre velho, mas morre! (Maneco, Ponta
Grossa dos Fidalgos).
“No futuro, tudo isso vai se acabar mesmo. Eu vou me acabar, você
vai se acabar. Tudo vai! É a lei da vida. Uma hora estamos vivos,
outra morremos. Novo ou velho. Mais acho que a gente morre mais de
velho mesmo. Com a natureza é igual: podem tentar controlar, fazer o
que quiser. Ela vai acabar também. Não agora, mas vai acabar sim!
Nada é pra sempre neste mundo!” (Cáu, Ponta Grossa dos Fidalgos).
“Não deixamos nada para os nossos filhos além de educação para
seguir a vida adiante quando já não estivermos mais cá neste mundo.
Trabalhamos agora para deixar para eles uma vida um pouco melhor
do que foi a nossa. Porque a nossa foi muito dura. Deixamos uma
vivenda, o barco – caso queiram vender – umas terrinhas e só. Porque
nunca sabemos mesmo como vai ser o futuro” (Deolinda,
Carrasqueira).
217
Cf. GIDDENS: 1991; 2007.
295
Tomados em conjunto, os relatos sugerem certo fatalismo em relação ao futuro.
Por um lado, uma ideia compartilhada de que “tudo vai acabar mesmo” e que não há
como conter, por voluntarismo, esta condição. Por outro, se não existe uma noção que
projete “a sociedade” neste tempo que ainda não chegou, entre os pescadores, a
concepção sobre o futuro recai sobre a existência, objetiva, das gerações mais novas. A
ideia do tempo aqui é marcada por um corte geracional entre os pais e os filhos sendo, o
primeiro grupo protagonista do presente e o segundo, de um tempo que está por vir. Não
é, portanto, a sociedade com suas qualidades abstratas que vai figurar no futuro e para a
qual os recursos naturais escassos devem ser assegurados. O que esta em jogo aqui é a
reprodução social e material da família. Isto é o futuro para eles.
No caso dos pescadores da Carrasqueira, onde, conforme apresentado, quase não
há renovação de quadros na pesca artesanal local, os pescadores ressaltam, de variadas
formas, o desejo de deixar para seus filhos outro tipo de patrimônio que não os recursos
naturais:
“Daqui há pouco tempo não restarão mais pescadores aqui, como
estais a ver. Somos os últimos. Já não importa se teremos peixes ou
não. Isto vai virar um lugar de turistas. Estou a dizer. Venha aqui
novamente daqui ha alguns anos para veres. Estou certo. Algumas
gentes vão manter seus barcos para passear com os turistas e só. Os
peixes, se não vierem de outros lugares, podem vir da aquicultura. É,
isto é assim” (Diamantino).
“Não podemos deixar quase nada do mundo para nossos filhos,
porque estas coisas não nos pertencem. De quem são os peixes, as
plantas e tudo mais que está por ai? São de Deus, pois. Do mundo!
Não temos nenhum controle sobre isso. Se Ele quiser acabar com tudo
aqui, de uma hora para outra, acaba. O que podemos fazer? Nada! Por
isso eu digo: só podemos deixar para nossos filhos a vontade de lutar
pela vida, de ser certo, gente correta, trabalhadora. Este é o
patrimônio. Não é natureza nem nada!” (Fátima).
Mesmo em Ponta Grossa dos Fidalgos, onde há mais jovens envolvidos com a
pesca do que no povoado português, tal percepção não difere tanto. Nas palavras de
Dodô:
296
“Criei oito filhos com a pesca. Construí duas casas. Vão ficar para
eles. Bolê e Julio devem ficar com meu barco e minhas coisas. São os
únicos que pescam agora. Não sei se vão continuar pescando. Julio diz
que não quer, que quer trabalhar em Campos ou outro lugar. Vamos
ver. O certo é que já fiz minha parte. Tenho a consciência tranquila!
Se o mundo acabar, se o peixe acabar aí já não é comigo, né? Com
alguma coisa eles ficaram.”
A natureza é para os pescadores dos dois povoados uma comunidade de vida da
qual fazem parte em conjunto com outros elementos. Mas é também considerada uma
fonte de recursos. Para os carrasqueiros “o máre é um lugar de trabalho”. Para os
pontagrossenses, “é o trabalho duro de pescador na Lagoa Feia que sustenta a vida”.
O peixe, por sua vez, conforme apontado antes, é um símbolo complexo. De acordo
com cada situação ele pode ser percebido de um modo: como um recurso monetário,
como um alimento ou como um adversário do pescador.
Em resumo, os chamados recursos naturais para os pescadores constituem uma
realidade que se objetiva no tempo presente. Não demonstrar preocupação ou interesse
na sua conservação para o futuro “da sociedade” não os torna, simplesmente,
imprevidentes. Nesta ótica, consideram que não podem prever o que vai acontecer com
peixes, mariscos e outros animais aquáticos em um tempo que ainda não
experimentaram. Sua única ligação com este tempo se objetiva através da existência dos
filhos. Consideram, portanto, que tem responsabilidade com a criação da prole, tanto do
ponto de vista material quanto moral. Entretanto, como apontam os relatos, não
associam a continuidade, ao longo do tempo, dos recursos naturais aquáticos, por
exemplo, com a continuidade da família.
Jonathan e Bolê na Lagoa Feia
297
4 – O que é o IBAMA para os pontagrossenses?
Para a insatisfação dos gestores públicos bem como dos agentes de fiscalização,
o IBAMA não é percebido, pela maioria de meus interlocutores em Ponta Grossa, como
uma autarquia federal dotada de personalidade jurídica de direito público vinculada ao
Ministério do Meio Ambiente. De acordo com a experiência dos pescadores, a
existência do IBAMA, na Lagoa Feia, é antes de tudo, fantasmática. O órgão muitas
vezes é representado como um ente que habita a Lagoa embora nem sempre possa ser
observado.
Há momentos – principalmente nos períodos de defeso – em que a certeza de sua
presença
no
ambiente
lacustre
modifica,
objetivamente,
temporalidades,
comportamentos e estratégias no desempenho da atividade pesqueira. Em minhas
estadias no povoado durante o período no qual a pesca esteve proibida legalmente,
principalmente nos anos de 2009 e 2010, pude observar que as atividades de captura não
paravam totalmente. Não apenas observei como também acompanhei meus
interlocutores mais próximos, embarcando com eles na Lagoa, em muitas destas
ocasiões.
Esta existência fantasmagórica do IBAMA pode ser atestada, do ponto de vista
dos pescadores, através de relatos como:
“Eu, por exemplo, nestas épocas [de novembro a fevereiro ou quando
há alguma outra proibição sazonal por qualquer motivo], prefiro sair
para pescar ainda de noite. Eles não sabem andar nesta Lagoa de noite,
não! Só nós pescadores é que sabemos. Aí vou, como agora, colho
minha rede. Se tiver bom de peixe eu deixo ela lá e volto no dia
seguinte. Se não, eu subo, e levo ela para outro lugar. Não para muito
longe, porque aí é arriscar demais, né? Eu prefiro ir no certo. Já
aconteceu d’eu chegar no dia seguinte e minha rede não está lá. Sabe
por que? Porque o meio-ambiente veio e levou. Imagina se eu
estivesse junto?”
“Já me escondi várias vezes [risos]. É escutar o barulho do motor do
IBAMA e ir direto para as tabuas! Esperar eles passarem e voltar ao
trabalho. Porque eu to trabalhando, não tô fazendo nada errado. Errado
298
é roubar! Eu sou pescador! Medo deles, todo mundo tem. Mas não dá
pra ficar parado em casa.”
“É como se fosse uma coisa que tá lá. Que ninguém conhece direito,
mas tá lá. Alguns já viram, outros só ouviram. Todo mundo sabe que
eles tão por aqui. Por isso o cuidado para pescar por agora. De repente
alguém chega gritando em Ponta Grossa ‘os IBAMBAs tão na Lagoa’.
Ai as mulheres ficam todas desesperadas, achando que os homens vão
ser pegos ou presos. Vão tudo lá pro porto da beirada pra tentar ver
alguma coisa. Inútil, porque esta Lagoa é grande demais. É como se
aparecesse uma assombração e viesse te pegar. É assim que nos
sentimos”.
Tal como identificado em uma ampla literatura sobre o tema, a pesca é
considerada uma atividade caracterizada por riscos, perigos e incertezas. Os pescadores
de Ponta Grossa consideram que diversos fatores provocam incertezas. Existem aqueles
considerados naturais, como por exemplo, a mudança no regime hídrico da lagoa, o
regime de chuvas e o clima, as mudanças ambientais que acompanham cada uma das
estações.
Por outro lado, como apontado anteriormente, os pescadores reconhecem a
atuação de elementos numinosos, ou seja, forças não apenas naturais, mas sobrenaturais
que atuam na Lagoa. Consideram, assim, que somente o “pai do céu” ou “Deus” sabe a
quantidade que vão capturar em um dia ou mesmo se vão capturar algo. É comum se
escutar, mesmo dos pescadores que entram sozinhos na Lagoa: “Nunca vou sozinho.
Vou e volto sempre com Deus” 218.
Entre os fatores que entram na categoria do numinoso se encontra a sorte como
força que interage com cada pescador em particular, dando fortuna ou desgraça de
acordo com o momento, tanto para pescadores antigos quanto para os novatos. Mesmo
assim, os pescadores possuem certa margem de ação ao usar corretamente as técnicas
adquiridas com anos de experiência profissional. Dessa forma, minimizam o risco de
sairem para pescar e voltarem sem peixes.
218
Na Carrasqueira, ideias semelhantes sobre a presença de Deus como um “camarada” que os
acompanha é muito comum entre pescadores que desempenham suas atividades sem suas mulheres no
barco.
299
A vida de pescador artesanal é, portanto, considerada por eles como dura e
perigosa. O perigo é uma condição inerente ao ofício. É percebida como perigosa,
porque, em sua prática cotidiana, os pescadores são submetidos a um leque de situações
nas quais o dualismo entre a vida e a morte torna-se aparente. Muitas coisas podem
acometer pescadores no desempenho de suas atividades haliêuticas. Por mais que
existam vicissitudes nas técnicas pesqueiras ou na constituição do ecossistema lacustre,
ao longo do tempo, ser pescador artesanal significa conviver com esta condição.
Se o perigo é uma condição inerente ao ofício pesqueiro, dela deriva um estoque
de riscos que caracterizam a atividade: navegar a noite sem o auxílio de aparelhos
sofisticados que indiquem a localização do barco, morrer afogado, capturar poucos
peixes em uma investida, sofrer todo tipo de acidente com os equipamentos, ser
surpreendido por uma mudança climática súbita, ver ou ter experiências com espíritos
ou assombrações, trabalhar sem nenhum tipo de assistência do governo (para o caso dos
pescadores não cadastrados na Colônia de Pesca), entre outros.
De acordo com Giddens, os riscos aproximam os sujeitos dos fenômenos ou
acontecimentos219. Mas, diferente do perigo, as situações consideradas arriscadas
fornecem a possibilidade de cálculo para sujeitos, neste caso, os pescadores. Dito de
outro modo, frente aos riscos, os pescadores têm possibilidades de intervenção e de
eleição porque eles não são condição e sim contingência.
“Eu sei o que pode acontecer se eles me pegam. Vão tomar minhas
redes e até meus peixes. Um amigo lá do Ingá [localidade de Ponta
Grossa] perdeu pra eles uma caixa cheinha de cumatã [espécie de
peixe]. Outro foi para a delegacia lá em Quissamã. Foi multado e teve
tudo apreendido. Tempos depois é que foi pegar tudo lá. Acho que a
rede era miúda, não lembro”.
“Os barcos aqui são quase todos verdes. Isso dificulta que nos vejam
de longe. Fica tudo sumido na Lagoa. Ninguém enxerga ninguém de
longe com a tinta verde. Nem meu vizinho os IMBAMA!”
“Todo pescador que vem pescar sabe o que pode encontrar aqui. Sabe
que pode morrer sozinho sem ninguém ver. Sabe que pode encontrar
219
GIDDENS: 1997 e 2001.
300
os homens. Que pode encontrar tudo. Eu já encontrei um saco com
uma ossada lá perto do Cantão de Baga [lugar na Lagoa]”.
“Já vi mula sem cabeça, espírito, muita coisa já vi aqui. Quando eu
vejo, ou sinto, começo a rezar pra Jesus porque só ele é que está do
meu lado. Se você conversar com mais gente vai ver que todo mundo
já viu de tudo aqui e mesmo assim não pára de pescar”.
Fundamentalmente, minha interpretação é que o encontro com o IBAMA na
Lagoa é percebido, pelos pescadores artesanais, como mais um risco dentre os muitos
que enfrentam na faina cotidiana.
Os cálculos para evitar este encontro indesejado, conforme apontam os relatos e
de acordo com que observei, vão desde uma mudança no horário da realização das
pescarias (em períodos proibidos legalmente há uma preferência em sair de madrugada
ou pela manhã muito cedo) até uma atenção visual e auditiva redobrada para ver ou
escutar a possível aproximação de uma “lancha do IBAMA” – o que caracteriza uma
mudança corporal e sensível. Ao saírem para pescar nos períodos proibidos, os
pescadores estão elaborando cálculos sobre as consequências de um possível encontro.
Operam, neste sentido, uma racionalidade que só pode ser compreendida em termos de
suas experiências particulares com o meio, ou melhor, com os elementos constituintes
da comunidade de vida. A conduta que assume este risco é a mesma que assume outros
tantos inerentes ao ofício pesqueiro.
Na prática, a fiscalização raramente é operada pelo IBAMA que para toda região
norte do estado do Rio de Janeiro possui apenas três fiscais. De acordo com a legislação
ambiental brasileira, a fiscalização deste tipo de ecossistema deve ser feita pelos
municípios que podem solicitar apoio logístico aos Batalhões da Polícia Militar do
Estado do Rio de Janeiro. As ações de fiscalização das atividades pesqueiras no
ambiente da Lagoa Feia, historicamente, têm recebido apoio do Batalhão de Polícia
Florestal.
Se a pesca, tal como a etnografia tentou mostrar, é mesmo um ofício que se
desenvolve em contextos de interação marcados por incertezas e nos quais pescadores
artesanais, mobilizando seus conhecimentos naturalísticos, assumem permanentemente
riscos, o encontro com o IBAMA (o IMBABA, o meio ambiente, os homens ou a
301
polícia) é incorporado como mais um risco a ser calculado. A racionalidade pesqueira
inclui, na sua lógica, a onipresença ou a presença fantasmática do IBAMA tal como faz
com outros elementos presentes na comunidade de vida.
“(...) a aceitação do risco é também condição para o entusiasmo e
aventura – pense nos prazeres que certas pessoas obtêm dos prazeres
de jogar, de dirigir em velocidade, do aventurismo sexual, ou do
mergulho de uma montanha russa num parque de diversões (...)”. 220
Enfrentar o IBAMA é como enfrentar as dificuldades presentes no cotidiano da
vida de um pescador, como sugere um de meus interlocutores mais próximos:
“Pescador que é pescador enfrenta até o diabo, como é que não vai
enfrentar o IBAMA?”
Na metáfora do jogo, o IBAMA – materializado nos agentes de fiscalização
ambiental – é mais um adversário a ser enfrentado. Os pescadores conhecem,
relativamente, seus movimentos e suas estratégias. Podem, mesmo assim, ser
surpreendidos por uma jogada ou truque inesperado. Por isso criam, constantemente,
mecanismos para não dar chances de vitória ao oponente. E o pescador que não foge do
jogo – ou do enfrentamento – constrói, desse modo, uma identidade distinta: percebe-se
e é percebido pelo grupo como um special player; como alguém que tem conhecimento
das regras do embate e que, sobretudo, tem sagacidade suficiente para ganhar mais do
que para perder. Une-se, enfim, na persona do pescador, um pouco de jogador e um
pouco de aventureiro.
“Ah, quem não arrisca não petisca! Sou pescador. Estou vivo para
isso. E vou até onde for preciso atrás do peixe!”
“Ninguém sabe se quando sai para a pesca vai voltar. A vida de
pescador é assim. Aqui é uma lagoa. Mas como você vê, é como se
fosse um mar. Já perdemos amigos afogados aqui. Outros já ficaram
aleijados. Mas não paramos de pescar. É a vida, né? Somos
pescadores. E temos que enfrentar tudo isso!”
Assim, muitos pontagrossenses definem que o trabalho na pesca não é para
“qualquer um”. Diversos adjetivos são utilizados por eles para definir um bom
220
GIDDENS: 2001: 34.
302
pescador: “Pescador tem que ser corajoso, homem, inteligente, forte, sagaz, rápido,
pensar rápido, ser sabido e ter fibra”. Adjetivos como “bicha”, “afeminado” ou
“covarde” são utilizados para definir um pescador que não enfrenta a Lagoa nem os
riscos da pesca. Deste modo, definem que ser pescador artesanal na Lagoa Feia requer
um leque de características específicas. Estas características parecem produzir uma
racionalidade particular a este grupo profissional. A presença do IBAMA bem como da
legislação ambiental que afeta a área da Lagoa Feia é, desse modo, incorporada, em sua
dimensão prática, na comunidade de vida da qual os pescadores artesanais fazem parte.
5 – O que é a Polícia Marítima para os carrasqueiros?
A Polícia Marítima é a instituição responsável por fiscalizar o cumprimento das
leis e demais regulamentações na área de jurisdição marítima em Portugal. No que diz
respeito à pesca, a Polícia é o braço fiscalizador das normatizações emitidas pela
Direção Geral de Pescas e Aquicultura. Sua área de atuação é estabelecida de acordo
com os Departamentos Marítimos de cada região do país – norte, centro e sul na porção
continental e Madeira e Açores na porção insular – que integra, entre outros órgãos, a
Capitania dos Portos. O estuário do Sado está sob a jurisdição da Polícia Marítima de
Setúbal.
Diferente do caso brasileiro, a presença da Polícia no estuário não é
fantasmática. Ao contrário, as lanchas pilotadas por seus agentes estão a todo o
momento navegando pelas águas do Rio. Os encontros entre pescadores e policiais são
muito frequentes. Percebi, portanto, logo no início do trabalho de campo, como esta
instituição afetava a atividade pesqueira na Carrasqueira nas questões mais elementares.
Ainda no final do ano de 2010, quando eu observava a preparação dos barcos e
redes para início da temporada do choco, não perdia a oportunidade de expor aos meus
interlocutores meu desejo de acompanhar as pescarias embarcando com eles. Para
minha surpresa, quase todos diziam que isto seria difícil, pois para estar a bordo, eu
deveria ter um documento ou licença que permitisse tal feito. A maioria das
embarcações da Carrasqueira está matriculada na DPGA. Isto significa, entre outras
coisas, que só podem navegar com a quantidade de tripulantes indicada no documento.
303
Além disto, por se tratar de uma licença para desenvolver somente atividades
profissionais, os tripulantes têm que ser pescadores ou mariscadores e também precisam
ser cadastrados no órgão221.
Inicialmente, não levei a sério a exigência de meus interlocutores. Minha postura
estava baseada em anos de trabalho de campo na Lagoa Feia nos quais nunca me foi
solicitado, pelos pescadores de lá, o porte de nenhum documento. O que julguei como
formalismo exagerado dos meus novos interlocutores portugueses revelava, entretanto,
algo sobre a forma de atuação de um importante órgão de estado e sua relação com a
pesca artesanal ali desenvolvida.
“Zé[i], podes fazer qualquer pergunta sobre as pescas e outros
assuntos. Mas não posso levá-lo embarcado. Se a Polícia Marítima nos
pegar eu levo uma coima [multa] das grandes, porque tu não tens
autorização para estar no barco”.
Alexandre foi um dos primeiros que me alertou para este problema. O pescador
argumentou que já havia levado multa por diversos motivos ao longo de sua trajetória
profissional. Por isso, hoje em dia, ele faz questão de andar com tudo certo, ou seja,
portando os documentos e seguindo as normas da DGPA – por mais que não concorde
com todas elas222.
“É norma, então temos que seguir não é? Há muitos por aí que estão a
andar sem cédulas ou sem a matrícula da embarcação. Estes têm que
fugir todo tempo da Polícia. Porque se forem pegos – Nossa Senhora!
– é coima na certa. E das altas!”.
Desde as primeiras conversas, os relatos de muitos pescadores indicavam que a
Polícia Marítima estava sempre presente nos máres do Sado.
“Ah, estão [a Polícia] por todos os lados destes mares sim, pá! Aqui e
lá. Sempre com suas lanchas muito rápidas. Se nos observam de
longe, fazem sinal e pedem para pararmos. Aí, temos que mostrar tudo
como está. Os documentos, o barco, os equipamentos... é por ai”.
221
Em Portugal, a cédula de pescador profissional, nas suas variadas modalidades, só é emitida após a
feitura e conclusão de cursos no Centro de Formação Profissional das Pescas e do Mar, o FOR-MAR. Já
para o caso do marisqueio, os pedidos de licença têm que ser encaminhados diretamente para a DGPA.
222
O Decreto de Lei n. 45/ 2002 estabelece o Sistema de Autoridade Marítima e o Regime de ContraOrdenações no qual, entre outras coisas, elenca situações de infração legal que ocorram em domínio
público marítimo, bem como estipula em valores aproximados as multas. Cf. Anexo “9”.
304
“Não gosto deles! Sei que estão a fazer o seu trabalho. Mas não gosto
deles. Aparecem a toda hora. Quando chegam ao barco começam a
querer ver e perguntar sobre tudo, como seu eu fosse um bandido, um
malandro, ora! Estou a fazer meu trabalho! Não gosto de ninguém a
me regular, ora!”
“Aparecem principalmente nos meses quentes, porque sabem que a
malta está na temporada do choco. Olha... não são bobos. É nesta que
aplicam uma coima aqui outrazinha ali. Os grandes vão ficando com
mais dinheiro e o pescador? Cada vez com menos. O pescador só
perde. Não aparece dinheiro do estado ou da DGP na conta do
pescador, estais a ver? Agora tirar do pescador, isso é mais fácil,
pois!”
Resolvi, portanto, providenciar algum tipo de autorização para poder embarcar
com os carrasqueiros e ver, de perto, as atividades pesqueiras além de observar como se
estabeleciam a relação entre eles e a Polícia Marítima. Para isso, me dirigi até a
Capitania dos Portos de Setúbal no intuito de me apresentar como pesquisador e
solicitar uma licença223. No dia 18 de março de 2011, fui atendido por uma agente da
Capitania. Expliquei o objetivo de minha visita. Deixei cópias de vários documentos tais
como passaporte, visto de residência temporária, carteira da associação profissional do
Brasil e o projeto de pesquisa que estava desenvolvendo. A Capitania me concedeu
licença para “embarcar em diversas embarcações de pesca da Carrasqueira, tendo
como finalidade a recolha de dados para realização de trabalho antropológico” –
documento válido até o final do mês de junho daquele ano224.
A agente me instruiu que toda vez que eu fosse embarcar com os carrasqueiros
era necessário avisar, via e-mail ou pelo telefone, à Capitania o número de matrícula do
barco, o horário de saída, bem como o nome de seu proprietário. Argumentei com a
senhora que isto seria difícil por dois motivos. Em primeiro lugar, porque meu acesso à
internet na Carrasqueira era muito limitado. O sinal da banda larga chegava ao povoado
com baixa intensidade e era comum passar dias sem acessar a rede. Além disso,
expliquei que um trabalho etnográfico tem caráter imprevisível. Eu poderia acertar uma
saída para o estuário na ocasião de um café, tarde da noite, e zarpar com os pescadores
223
224
Em Portugal o Capitão do Porto é também o comandante local da Polícia Marítima.
Cf. Anexo “10”.
305
na mesma madrugada – o que impossibilitaria o envio das informações no horário de
funcionamento da Capitania225.
Meus argumentos não foram suficientes. A agente advertiu que esta era uma
medida de segurança para, no caso de qualquer incidente, a Polícia saber com quem eu
estava a bordo e a que horas eu deixei a terra. Voltei ao povoado com minha licença. O
documento foi festejado pelos pescadores. Se antes, meus interlocutores mais próximos
mostravam-se pouco motivados a me levar para a pesca, com a licença minha presença
nos barcos foi, algumas vezes, disputada pelos pescadores.
Desde fins de março, portanto, comecei a observar, embarcado, as atividades
haliêuticas dos carrasqueiros, tal como relatado no Meio. Se compararmos com o caso
da Lagoa Feia, a fiscalização da Polícia Marítima portuguesa é, de fato, mais ostensiva.
Ainda em fevereiro de 2010, enquanto participava das marés de ameijoas no Montijo, a
preocupação de encontrar os agentes era constantemente comentada pelos meus
interlocutores. No estuário do Tejo, por exemplo, durante o trabalho de apanha, era
comum observar lanchas da Polícia atravessando o Rio de um lado para outro. Neste
período os agentes apreenderam várias ganchorras – uma espécie de garfo utilizado
para capturar bivalves em águas mais profundas – na posse de grupos de homens que
também exploravam o estuário226. O receio de meus interlocutores era, particularmente,
com as condições de minha presença:
“Zé[i], se a Polícia aparecer aqui, tu largas o sacho de lado e diz que
estás apenas a tirar fotos para tua investigação! Não podes apanhar
ameijoas por aqui!”
Conforme também relatado no Meio, apanhei ameijoas no Montijo junto com os
pescadores. Legalmente, eu não tinha autorização para realizar tal atividade porque não
possuía o cartão de mariscador – cédula que todos os meus interlocutores portavam. A
falta do documento, portanto, era a principal preocupação deles. Ao conversar com
outros grupos de homens e mulheres, principalmente no momento da venda para o
Comprador, ao final da maré, percebi que a maioria não vivia exclusivamente de
225
Ver no Anexo “11” um dos emails enviados para Capitania dos Portos de Setúbal.
De acordo com a legislação vigente em Portugal, só é permitida a captura de 80 quilos de ameijoas por
dia com a utilização deste instrumento.
226
306
ocupações extrativistas como a pesca ou a apanha e nem possuía licença para
desempenhar tal trabalho227.
O reconhecimento da autoridade da Polícia Marítima não impede, entretanto,
que os pescadores da Carrasqueira formulem e desempenhem certas estratégias para, de
algum modo, burlar regras oficiais que consideram injustas ou que, de seu ponto de
vista, atrapalham as práticas pesqueiras. Mesmo os meus interlocutores que costumam
ir ao máre com a documentação em ordem e cujos equipamentos de trabalho estão de
acordo com as exigências legais, relatam que não gostam de encontrar a Polícia.
“Eu procuro andar com tudo direitinho. Matrícula do barco,
documentos tudo! Mesmo assim, não gosto de cruzar com eles não.
Porque esta coisa toda de revistar é muito ruim. É como provar todo o
tempo que está tudo bem, está tudo em ordem, pá! Parece que eu estou
a dever algo, estais a ver?”
“Uma vez a Polícia me parou. Lá perto de Setúbal. Tudo bem. Estava
eu com as artes certas. Tudo certo. Aí, eles pediram para ver os peixes.
Eu mostrei. Viram os canivetes. Porque eu tinha feito, mais a minha
camarada, uma marezinha de canivetes. Então, o polícia me disse que
eu não podia levar os canivetes porque eram pequenos. Eu disse que
era para somente para comer, que ali não havia quantidade nem para
vendê-los. Não houve conversa. O polícia mandou que eu jogasse
todos eles no máre. Viraram comida de peixe e não de pescador! Sorte
que não me aplicaram uma coima!”
Há também relatos nos quais pescadores mesmo cometendo alguma infração,
coseguiram, por meio do diálogo, convencer os agentes a não serem multados:
“Os homens pegaram-me uma vez. Estava com artes proibidas pelo
Regulamento. Nestas ocasiões, não adianta brigar. O valor da coima
vai de acordo com grau de nervosismo do pescador na conversa com o
polícia. Porque se tu brigas, o gajo não gosta e vai começar a dizer que
teu barco tem mais problemas, que tua documentação tem algo que
falta, tu sabes... Neste dia eu estava de cabeça tranquila, graças a
Deus. Porque, normalmente, eu sou nervoso. Conversei, pedi
227
Atrás do porto de Montijo havia um grande acampamento de ciganos. Observei e conversei com
algumas famílias que trabalhavam na apanha para consumo próprio e para vender aos Compradores.
Nenhum de seus membros possuía carteira de mariscador ou qualquer outro tipo de licença oficial. O
mesmo ocorria com portugueses advindos de outros lugares do país.
307
desculpas, disse que não aconteceria mais. Sabes o que houve? Não
fui multado!”.
Mesmo assim, a maioria dos pescadores diz que praticamente não há
possibilidade de negociação das multas em situações flagrantes. Em geral, no caso de
identificarem alguma irregularidade nos equipamentos, documentos ou procedimentos
de pesca, os policiais aplicam a multa e o pescador que considerá-la injusta pode, por
direito, recorrer da mesma junto à Capitania dos Portos de Setúbal.
Embarquei com os carrasqueiros de março até junho de 2011. Em todo este
período, nenhum dos barcos nos quais estive foi parado pela Polícia. Se contarmos todo
o período em que estive no campo, não ocorreu nenhum tipo de suspensão legal das
atividades de captura com redes ou impedimentos que afetassem a apanha de
bivalves228. Observei, entretanto, que muitos de meus interlocutores praticavam suas
atividades mesmo sabendo que alguns de seus procedimentos poderiam ser entendidos
como ilegais pelos agentes.
“Aqui eu tenho perto de 150 covos. Atualmente, eles [DGPA] só
permitem que cada pescador tenha no máximo 50. Eu continuo a
pescar com os meus 150. Se eu utilizar a quantidade que eles querem
não paga a pena vir ao máre. Veja só o que estou a pegar com os 150!
Pouco mais de 20 quilos na média. Esta temporada está fraca. Às
vezes mais, às vezes menos. Acho que tem muita água doce a descer
destes arrozais. Se calhar é melhor ficar em terra!”
Questionei se o pescador já havia sido multado pelo excesso de armadilhas. Ele
respondeu que:
“Por isso mesmo não! Já fui multado porque um covo meu foi
encontrado perto da Caldeira de Tróia. Não imagino como isto foi
parar lá. Algum gajo pirata deve ter pego e deixado lá. A Polícia o
encontrou e pela numeração [indicada na boia de cada armadilha]
descobriram que era meu. Dias depois, recebi um telefonema. Era da
228
Além do Regulamento de Pesca do Rio Sado, a única ação restritiva normatizada pela DGPA que tinha
influência nas atividades carrasqueiras era o defeso das minhocas.
308
base militar de Tróia. Meu covo estava lá. Tive que pagar a multa para
retirá-lo de lá”229
O mesmo pescador complementa o relato apontando aquilo que considera ser um
problema para a prática desta modalidade de pesca:
“Antigamente não era assim. Mas hoje, podemos ser multados
simplesmente por cortar os raminhos de aroeira que colocamos dentro
do covo. Porque agora toda área do estuário é de Reserva. Pra quê? E
já não se pode fazer mais nada e nem retirar mais nada sem que a
Polícia reclame. Eu vou lá, corto os ramos e volto rápido para
ninguém ver, entendes? Agora, eu te pergunto: sem os ramos, como
vamos capturar os chocos com as armadilhas? É quase impossível!
Daqui há pouco vão nos proibir de pescar também como já fazem em
outros lugares, pá!”
Já outros pescadores utilizam, em parte de seus panos de rede, malhagem de
numeração inferior à permitida pelo Regulamento:
“Eu mesclo as malhagens sim. E praticamente toda malta faz isso
aqui. Não só na Carrasqueira. No Faralhão e na Gâmbia também! Se
não fizermos isto, muitas vezes não pagamos nem o gasóleo, Zé[i]. Os
peixes estão menores mesmo. Não é em todas redes, claro! Mas
fazemos isto para poder garantir alguma coisa. Se não, quem garante?
Além disso, se a Polícia Marítima medir vão ver que estamos com a
malhagem permitida. Isto é assim: neste país, ninguém olha pelo
pescador. Só Deus!”
Há também problemas que dizem respeito às matrículas das embarcações. De
acordo com a legislação de pesca em Portugal, para a renovação das matrículas é
necessário atingir anualmente a meta de seis mil Euros em venda nas Lotas. Caso as
vendas em Lota não alcancem este valor, a matrícula do barco não é renovada e o
pescador fica legalmente impedido de praticar suas atividades profissionais. Muitos de
meus interlocutores queixam-se da dificuldade de cumprirem a meta de vendagem, pois
a pesca com o uso de redes é, em geral, realizada apenas durante a temporada do choco,
ou seja, por no máximo cinco meses. Além disso, conforme apresentado no Meio,
229
De acordo com o Regulamento, os covos tem que ser dispostos em linha. O final de cada linha deve ter
a indicação de uma bóia com o número de matrícula do barco. Não é permitido submergir vários covos
em diferentes pontos do estuário.
309
muitos carrasqueiros fazem a opção de vender à Candonga com o objetivo de barganhar
valores mais altos pelo quilo do pescado quando comparado ao praticado em Lota. Se
forem pegos pela Polícia, com a matrícula desatualizada, os pescadores são multados230.
“No fundo nós corremos deles todo tempo, todo tempo! Não importa
se está tudo certo ou meio certo. Ninguém aqui quer ser parado a todo
tempo e ainda correr o risco de tomar coimas e tal. Não queremos. Já
estamos acostumados com esta vida, sim. Pescador, tu sabes como é.
Não sei se no Brasil é assim. Não gostamos de patrão. Se não,
poderíamos estar em outros serviços, estais a ver. Não gostamos de ser
mandados – porque quem manda em tudo cá é o máre e a vontade de
Deus, estais a ver? Então é assim. Eles querem nos aplicar as coimas e
nós queremos escapar deles, ora!”.
Assim como no caso brasileiro, a maioria de meus interlocutores portugueses
evidencia, em sua relação com os agentes de fiscalização, o caráter de enfrentamento
que parece marcar a o modo de vida de pescadores artesanais. Reconhecem, a sua
maneira, a presença e mesmo a autoridade da Polícia Marítima como órgão oficial que
tem a prerrogativa de fiscalizar suas ações de acordo com as normas estipuladas pela
DGPA. Mas, ao mesmo tempo, criam estratégias e subterfúgios para desempenharem
suas atividades pesqueiras da maneira que julgam ser mais adequadas aos seus
interesses. Neste sentido, tal como os pontagrossenses, avaliam, cotidianamente, os
riscos de suas escolhas ações e movimentos. Nos dois casos, a presença dos agentes de
fiscalização é atualizada, pelos pescadores como mais um elemento constituinte da
comunidade de vida da qual fazem parte.
6 – Quanto custa ser pescador artesanal?
Na Proa e no Meio, a etnografia tentou apresentar os principais aspectos que
constituem o ofício da pesca artesanal tomados do ponto de vista de pontagrossenses e
230
Quando não atingem as metas de venda, alguns carrasqueiros procuram a Associação de Pescadores
Artesanais de Setúbal. Esta, por sua vez, quando solicitada, representa os pescadores junto à DGPA. Para
tanto, a Associação apresenta um elenco de justificativas tais como o caráter sazonal da pesca no
povoado, doenças ou incidentes que, por ventura, os impediram de trabalhar ou mesmo a escassez do
pescado no estuário. Normalmente, tais justificativas são aceitas pelas DGPA, sem muitos problemas, tal
como confirmaram ao etnógrafo duas funcionárias desta Instituição e o Sr. Carlos Prata – líder da
Associação em Setúbal. Mesmo assim, pescadores queixam-se da morosidade dos processo e reclamam
por ter que provar ao estado que desenvolvem regularmente suas atividades profissionais.
310
carrasqueiros. A partir da observação direta e sistemática das atividades pesqueiras foi
possível descrever as técnicas, os conhecimentos naturalísticos, os modos de
organização para o trabalho, as percepções sobre o tempo, as etiquetas ou formas de
direito costumeiro tais como experimentados e praticados por estes dois grupos de
pescadores.
Os anos de pesquisa empírica entre os pontagrossenses somados ao convívio
(menor, mas não menos intensivo) com os carrasqueiros ratificam, para mim, a ideia de
que a centralidade da pesca artesanal, nos dois casos, constituiu, de fato, um modo de
vida particular às experiências que estes grupos têm com o ambiente no qual
estabelecem suas relações sociais mais elementares. Mas, tal modo de vida, em muitas
situações, parece desajustado às expectativas embutidas em políticas públicas e
regulamentações oficiais que entendem o chamado “meio-ambiente” como um bem
comum que deve ser administrado de maneira sustentável, tanto ecologicamente quanto
socialmente.
6.1 – “Custa” desempenhar outras atividades conjugada à pesca.
A pergunta que esta tese tenta responder, sobretudo aqui na Popa, é Quanto
Custa Ser Pescador Artesanal?, em um período no qual a preservação do meio
ambiente tem se tornado, cada vez mais, um problema público231. A preocupação com a
preservação do meio ambiente – que tem marcado parte considerável da agenda política
internacional nas últimas décadas – aliada às políticas de gestão do território, têm se
refletido em mecanismos jurídico-administrativos formulados por cada um dos estados
nacionais aos quais estas populações estão submetidas. É comum, como a etnografia
tentou apresentar, a percepção entre pontagrossenses e carrasqueiros de que os estados
ou seus agentes, seja no Brasil ou em Portugal, têm atuado de modo a limitar o trabalho
na pesca artesanal.
“Eles querem é acabar com a pesca artesanal. Daqui há uns anos, as
comunidades piscatórias deixarão de existir. Só ficará a grande pesca,
a pesca continental. Esta sim. Agora, o pescador local, suas famílias,
suas coisinhas? Ah! Isto daqui há pouco acaba se continuar assim. O
231
Sobre a constituição de um problema público ver DEWEY: 1988.
311
peixe não acaba. Mas a vida de pescador artesanal acaba!” (Zé Pedra,
Carrasqueira).
“Já proíbem tudo, ué! Não podemos pescar quando quisermos, temos
que ter cuidado onde se coloca as redes. Eles acham que o pescador
vai viver como? De quê? Não pagam o defeso. É uma politicagem só!
Reclamam se o pescador, além de pescar, faz outra coisa. É difícil...”
(Doba, Ponta Grossa dos Fidalgos).
Tanto pontagrossenses quanto carrasqueiros se percebem como pescadores
artesanais. Por mais que na Carrasqueira, além da pesca com o uso de redes, a lavoura, a
apanha de bivalves e poliquetas também sejam atividades fundamentais para o povoado,
meus interlocutores se reconhecem como uma comunidade piscatória. Nas palavras de
Minda:
“Cá somos uma comunidade piscatória. Homens e mulheres trabalham
duro nos máres aqui. Só que nós somos uma comunidade piscatória no
qual há também outras coisas. Vamos às ameijoas, às pinhas, às
batatas doces... fazemos de tudo porque aqui têm gentes que são muito
trabalhadoras. Mas todos sabem que foi a pesca que ergueu a
Carrasqueira. Todas estas vivendas bonitas que estão cá hoje foram
construídas pela pesca, por gente pescadora!”
A categoria pescador, para os carrasqueiros, inclui todas as atividades realizadas
nos máres do Sado – seja a captura com o uso de redes, seja a apanha de animais
marinhos. Mas, tais atividades não aparecem dissociadas da atuação dos moradores em
outras frentes de trabalho, assim como argumenta Minda. Nem faz com que eles se
sintam “menos pescadores” quando comparados com povoados portugueses nos quais a
única fonte de renda vem da pesca:
“No norte, muitas comunidades piscatórias só pescam e pescam
praticamente todo o ano. Mas também, lá não há nada! Só o máre. Cá
não, temos o máre, verdade, mas temos também as hortas, as pinhas, e
outros serviços. Já tivemos o arroz. Estamos perto de Setúbal e
Lisboa. Há muito trabalho na construção por estes rincões. Veja em
Tróia, por exemplo. Mas isto não faz de nós menos pescadores do que
ninguém!” (Zé Sardinha, Carrasqueira).
312
Há, portanto, o reconhecimento, principalmente entre as gerações mais antigas,
de que a Carrasqueira “se fez” com a pesca artesanal. Antes do 25 de Abril, as primeiras
gerações se constituíam como um aglomerado de imigrantes que viviam do trabalho na
terra sob o controle da Atlantic Company. As transformações políticas que se abateram
sob o país nos anos setenta associadas às possibilidades de explorar mais livremente,
tanto o espaço marinho quanto o terrestre, reforçaram a ligação das famílias
carrasqueiras com o lugar ao mesmo tempo em que a dedicação aos trabalhos em novas
condições lhes conferiu, cada vez mais, de acordo com suas percepções, autonomia.
O orgulho de ser gente pescadora e trabalhadora é reforçado, também, com
base na estética do lugar. O porto palafítico, os barcos coloridos e bem cuidados,
homens e mulheres tecendo ou reparando redes nos quintais das casas são alguns
elementos que reforçam, para eles, a distinção de que são pescadores artesanais. Tanto
que estes e outros elementos, de acordo com os carrasqueiros, são de interesse dos
turistas que visitam o povoado nos meses de verão. Conforme argumenta Diamantino:
“Os turistas vem aqui porque querem ver a região que é bonita.
Querem ver os pescadores, os barcos, o porto palafítico que é o único
da Europa. Querem comer um choquinho frito ou estufado... o melhor
de todo o país. Eles vem à procura disso. É mesmo o que temos aqui!
Isto é uma terra de pescadores, pá!”
Em Ponta Grossa dos Fidalgos, por sua vez, não há apelo turístico para além da
frequentação, nos fins de semana do verão, de moradores advindos de outras regiões da
baixada
campista.
Mas,
assim
como
na
Carrasqueira,
meus
interlocutores
constantemente marcam como signo distintivo do povoado a relação que possuem com
a Lagoa Feia mediada através do exercício da pesca artesanal.
“Aqui é um povoado de pescadores! Como este não tem nenhum outro
aqui na baixada. Olha esta Lagoa! Conhecemos ela todinha!
Pescadores daqui são os melhores da região! Este povo todo foi criado
aqui pela pesca. Não tem ninguém aqui que não tenha pelo menos o
avô que foi pescador. Pode perguntar. Tirando um ou outro. Tem
gente agora que até vem morar aqui, que não é da terra, e veio pra cá
em busca de tranquilidade. Já foi mais tranquilo aqui. Mais ainda é se
você comparar com Campos e outros lugares. Mas Ponta Grossa é
lugar de pescador. Você mesmo já sabe disso porque aquele outro
313
professor pesquisou nós também, não foi? [referindo-se ao trabalho
que Castro Faria realizou no povoado no final da década de trinta e
que foi apresentado para os pescadores na retomada de pesquisa no
ano de 2002]” (Nilson, Ponta Grossa dos Fidalgos)
A localização espacial de Ponta Grossa – uma ponta elevada entre a Lagoa Feia
e uma extensa baixada alagadiça – numa região marcada historicamente por concentrar
muitas atividades rurais fez com que seus habitantes, desde os tempos mais remotos, se
dividissem entre a pesca artesanal lacustre e trabalhos nas grandes fazendas de seu
entorno. Ou seja, por mais que a pesca tenha, ainda nos dias hoje, centralidade na vida
do povoado, é e sempre foi comum, a participação dos pontagrossenses na economia
canavieira – no plantio, corte e processamento – na pecuária extensiva e em demais
trabalhos nas lavouras locais.
A maioria de meus interlocutores dedica-se integralmente à pesca. Mas, a
conjugação das atividades é, neste povoado fluminense, bastante recorrente também. O
modo como ela se estabelece para cada pescador, particularmente, depende de uma série
de fatores que decorrem de suas trajetórias e de suas preferências pessoais. Há aqueles
que se dedicam à pesca e, ao mesmo tempo, são donos de pequenos estabelecimentos
comerciais (barbearias e bares, por exemplo). No período de defeso normatizado pelo
IBAMA, há aqueles que decidem por não pescar e procuram trabalho nas usinas da
região. Muitos são pescadores e funcionários part time da prefeitura municipal de
Campos dos Goytacazes desempenhado variadas funções. E, há outros tantos que
conjugam, durante todo o ano, atividades pesqueiras com “bicos” ou ocupações parciais
em fazendas próximas.
Os relatos daqueles que se dedicam integralmente à faina, tomados em conjunto
com aqueles formulados por pescadores que desenvolvem outras atividades revelam, no
entanto, uma percepção comum: que a pesca é a ocupação que mais lhes confere
autonomia sobre vida:
“Não há nenhum outro trabalho como a pesca, Zé! É isso que eu tento
dizer para meus filhos. Se eles quiserem seguir a vida deles de outro
jeito tudo bem. Mas sempre digo. Aqui na pescaria não temos patrão.
Temos que temer a Deus, somente. Respeitar o que ele tiver guardado
pra gente. Isso é em todo lugar. Mas não temos que ouvir ordem de
um homem que é igual a gente. E que se acha melhor porque é gerente
314
ou diretor de uma usina. Na pesca, temos que respeitar a vontade de
Deus, trabalhar muito, acompanhar as coisas como são. Mas ser
pescador, viver disso, ter isto, ninguém tira. Só quando eu morrer!
Aqui [na pesca] sou eu comigo mesmo. Com Deus também, mas com
a minha própria responsabilidade” (Dodô).
“Eu já fiz de tudo. Já até sai de Ponta Grossa, viajei e voltei. E digo:
não tem vida melhor que vida de pescador. É sofrida? É! Todo mundo
sabe. Mas é coisa que tá na gente. E nosso ganho é nosso ganho. É o
que a gente sabe fazer. É de acordo com que o Deus quer. A gente não
fica dependendo de dinheiro dos outros, de coisas que são dos outros.
Eu tenho o bar também porque o gasto é grande, tenho Hélen [filha],
Helinha [mulher] e você sabe como é! Família gasta muito! Então eu
fico na pesca com Washington [enteado] e no bar aqui com Helinha!
Trabalho muita coisa, muita coisa! Mas a vida que eu não troco é a de
pescador”. (Doba)
Ou seja, entre meus interlocutores carrasqueiros e pontagrossenses existe a
percepção da pesca artesanal como signo de independência das coisas “dos homens”, ao
mesmo tempo em que a inscrição na atividade os distingue como um grupo de experts
que possuem conhecimentos especiais sobre a natureza e sobre a vida de uma maneira
geral. Na hierarquia dos trabalhos possíveis, a pesca ocupa, sem dúvida, para os dois
grupos estudados, o lugar de maior relevância. Seus valores, julgamentos morais e
interpretações sobre a vida são construídos com base neste registro. Sua relação prática
com o ambiente físico esquematiza e é esquematizada por esta condição e é nesta
dialética que conferem sentido ao mundo. Por isso, talvez, a dificuldade destes sujeitos
em se perceberem tolhidos ou limitados, em muitas situações concretas, das atividades
de captura, tal como versam algumas das normatizações apresentadas neste estudo.
Enfim, o que está em jogo, para estes pescadores, mais do que uma ajustamento
possível às determinações de órgãos oficiais é a manutenção da autonomia para que
desempenhem suas atividades profissionais – seja na Lagoa ou no Estuário – da maneira
que consideram mais adequadas às suas experiências, seus conhecimentos e suas
histórias.
315
6.2 – “Custa” transgredir normas oficiais de preservação ambiental.
Atualizar a fiscalização ambiental nos termos de sua comunidade de vida não é
um exercício simples para os pescadores. A maioria com os quais convivi, nos dois
povoados, qualificam as regras oficiais que afetam as atividades de captura como
injustas, demasiadamente restritivas ou desencaixadas da realidade que conhecem. Tais
formulações, no entanto, os colocam diante de um problema: a transgressão.
Do ponto de vista prático, o desempenho das atividades de captura exige que os
pescadores reconheçam o perigo como uma condição inerente ao trabalho. Dele,
conforme demonstrado anteriormente, deriva um elenco de riscos que podem ou não ser
assumidos pelos praticantes deste ofício. Podem, por exemplo, optar por ir ao máre,
mesmo em condições atmosféricas extramente desfavoráveis configuradas em
tempestades ou ventanias muito fortes. Ao assumir este risco, por qualquer motivo, o
pescador sabe que está mais exposto a incidentes como naufrágio ou afogamento do que
quando vai ao máre em dias considerados mais brandos.
O cálculo, neste caso, embute possíveis prejuízos com os equipamentos de
trabalho – sobretudo barcos, redes ou armadilhas. Além disso, é incorporado neste
cálculo o valor de sua própria vida, pois uma vez acometido por qualquer incidente
provocado pelas condições climáticas, o desfecho da situação pode ser trágico e fatal,
qual seja, a morte do pescador. Completam, portanto, as variáveis deste cálculo, a
responsabilidade que o pescador tem – ou não – com sua própria vida e para com a vida
daqueles que dependem dele direta ou indiretamente.
A escolha por pescar com redes entre os meses de novembro e fevereiro, na
Lagoa Feia, ou utilizar mais armadilhas do que o número determinado por lei, no
estuário do Sado, também estão na lista de riscos assumidos, mas seu cálculo implica
uma operação distinta da apresentada acima. Ao tomarem a decisão de pescar nos
períodos
proibidos
oficialmente
ou
usar
artes
consideradas
ilegais,
tanto
pontagrossenses quanto carrasqueiros sabem que podem ser pegos em flagrante pelos
agentes de fiscalização. Sabem também que o encontro indesejado pode acontecer de
modo relativamente inesperado, ainda que utilizem técnicas e estratégias para evitá-lo o
tanto quanto puderem. O desfecho de um encontro com o IBAMBA ou com os Polícias
316
não resulta, entretanto, na morte física do pescador. Os cálculos, neste caso, embutem os
constrangimentos morais da transgressão.
“Às vezes acontece mesmo. Nós todos sabemos que pode acontecer. A
gente faz de tudo para não ser pego. Mas, acontece. O meio ambiente
leva nossas coisas e fica dando sermão na gente. Dizendo que a rede
não pode ser esta, ou que você não pode pescar até o final do defeso.
Eles entendem disso? Entendem nada! Não tem um pescador ou
alguém que saiba andar nesta Lagoa, lá. Por isso, mesmo quando a
turma é pega por aí, passa um tempinho, e volta todo mundo pra
Lagoa de novo” (Pescador pontagrossense).
“Não somos bandidos nem malandros, pá. E ficamos ouvindo os
polícias falarem de como deve ser isto ou como deve ser aqui. É um
absurdo. Muitas vezes é por conta de uma vírgula no documento ou
uma licença que não ficou pronta. Mas eles não querem conversa.
Querem nos dizer o que fazer. E querem aplicar as coimas, claro!”
(Pescador carrasqueiro).
“É quando perdemos, né Zé[i]! Tu já sabes! Ninguém gosta de levar
coimas. Mas ninguém vai deixar de pescar também. Quando levas
uma coima passas um tempo assim meio preocupado... mais
cuidadoso, digo. Mas depois, com o tempo, volta tudo ao que era.
Porque eles vão continuar atrás de nós. E nós, mesmo quando estamos
no certo, não queremos encontrar com eles. Certos ou não, não
queremos, estais a ver. E a vida de pescador é esta mesmo que estais a
ver aqui. Mata-se um leão por dia! Se fizéssemos tudo como mandam
já não teria um pescador cá na Carrasqueira. Tu terias que ir a outro
sítio para fazer teu investigo”.
“Ninguém quer perder! Nem eles nem nós. Eles tentam fazer o deles.
Nós, fazemos nossa parte. Quem for menos habilidoso perde! Os
melhores pescadores, sem dúvida, perdem menos”. (Pescador
carrasqueiro)
Os pescadores entendem que serem pegos cometendo atos qualificados como
infrações, de acordo com normatizações do IBAMA ou da DPGA, faz parte dos
processos de interação inerentes ao mundo que experimentam quando participam da
comunidade de vida. Parece que pior do que as implicações jurídico-formais das
transgressões (notificações, aplicações de multa ou abertura de processos), aplicadas a
317
cada caso especificamente, os pescadores não gostam de “perder” para os fiscais.
Atualizam, neste sentido, a metáfora do jogador que não admite a derrota para um
adversário por mais qualificado que ele seja.
No caso português, os órgãos que administram a pesca artesanal local exercem
um controle mais forte deste setor do que no caso brasileiro. No que diz respeito à
fiscalização, por exemplo, pude observar que a presença da Polícia Marítima é uma
realidade objetiva no cotidiano dos pescadores estuarinos se comparada ao caso
analisado na Lagoa Feia. Há, entre os pescadores portugueses, demasiada preocupação
em seguir as normas emitidas pela DGPA – ainda que não concordem com a maioria
delas – como evidenciou a problemática em torno de minha licença para embarcar. Para
completar consideram que, uma vez autuados, dificilmente conseguem se livrar da
multa, o que talvez faça com que estes pescadores estejam mais atentos às exigências
legais que regem as atividades de captura.
Em Portugal também há bastante controle estatal sobre a venda do pescado
fresco. Como foi descrito no Meio, os pescadores são obrigados a deixar seu pescado
nas lotas administradas pela DocaPescas – empresa responsável por organizar leilões
em todo território nacional – para que possam ser feitos os descontos para a Segurança
Social e para que comprovem ao estado sua atuação profissional através das quantidades
vendidas. Tal exigência faz com que os pescadores portugueses desenvolvam outras
modalidades de venda, fora das lotas, pois julgam que o sistema oficial de vendagem é
quase sempre injusto devido aos baixos valores pagos pelo quilo do pescado nestes
leilões.
Ou seja, tanto na pesca propriamente dita, quanto na vendagem, os pescadores
portugueses têm que elaborar estratégias de transgressão das normas vigentes para
continuar desempenhando suas atividades profissionais de modo que ainda seja
rentável.
“Se o pequeno pescador não der seu próprio jeito, não será o governo
que vai ajudar-nos. Por isso temos que pescar muitas vezes de modo
clandestino, vender à candonga, porque se não o pescador morre de
fome!” (pescador carrasqueiro).
318
Já no caso brasileiro, tal como analisado em Ponta Grossa dos Fidalgos, a
fiscalização ambiental é bem menos ostensiva quando comparada ao que ocorre em
Portugal. Em períodos de proibição legal das atividades de captura, meus interlocutores
esforçam-se para evitar um possível encontro com os agentes. Julgam, na maioria dos
casos, que não estão fazendo nada de errado. Esta autoridade, segundo eles, é conferida
pelos anos de experiência dedicados à pesca. O IBAMA é percebido como uma entidade
onipresente que pode aparecer a qualquer momento e por isso os pescadores que fazem
a opção por não parar suas atividades assumem o risco de serem pegos. Na prática,
como descrito na Proa, os pescadores pontagrossenses tem manipulado com habilidade
as normatizações formuladas pelo IBAMA. Atualizam, em seus próprios termos e de
acordo com seus interesses, os calendários de pesca ao mesmo em tempo que
incorporam o órgão na comunidade de vida da qual fazem parte como sujeitos ativos.
6.3 – “Custa” a reprodução de um modo de vida através da tragédia.
Michel Leiris em seu ensaio intitulado Espelho da Tauromaquia
232
tenta tirar
implicações sobre a natureza humana refletindo sobre diversos aspectos dos chamados
jogos taurinos, tal como estes se configuram em alguns países da Europa. Em suas
palavras, o encontro, na arena, entre o homem (toureiro) e o animal (touro) é um
espetáculo revelador de dimensões ocultas de nossa subjetividade:
“(...) certos espetáculos violentos – como a tragédia, na qual tudo
gravita em torno de uma crise que deve intricar e destrinçar – ocupam
lugar de eminência; semelhantes a esses fatos privilegiados que
suscitam a ilusão de nos revelar a nossos próprios olhos, em virtude de
uma afinidade ou analogia secreta, eles tomam ares talvez com maior
intensidade que todos os outros, de experiências cruciais, de
revelações”.
233
Um dos elementos que constituem a tragédia, de acordo com Leiris, no caso da
tauromaquia, é o sacrifício. Ele não se refere ao sacrifício do animal, apenas. O autor
chama a atenção para sacrifício como risco imediato para a vida do oficiante, ou seja,
para o toureiro.
232
233
LEIRIS: 2001.
LEIRIS; 2001:13.
319
Guardados os devidos limites, creio que seja possível pensar as experiências
empíricas e objetivas as quais pescadores artesanais são submetidos nas ocasiões em
que realizam suas atividades de captura, como acontecimentos trágicos de contornos
semelhantes aos ressaltados por Leiris em sua análise. Temos a arena – que no caso do
estudo apresentado são, ao mesmo tempo, a Lagoa e o Estuário. Para os pescadores,
como atestam os relatos, a faina é percebida como oficio no qual o enfrentamento dos
mais diversos tipos de adversidades é uma característica predominante. E é na arena que
tudo acontece.
Enfrentar a Natureza é o primeiro dos desafios. Ela é dificilmente controlada
pelas mãos do homem. Seus ciclos podem ser parcialmente entendidos. Mas, de acordo
com os pescadores, ela atende, antes de tudo, à vontade de Deus – que é, muitas vezes,
imprevisível. A conjugação dos conhecimentos adquiridos na prática profissional e o
dom de ser pescador são elementos que, quando conjugados, conferem aos seus
oficiantes, relativo sucesso nas empreitadas. Relativo porque este enfrentamento é
considerado por eles, ao fim e ao cabo, desigual.
A comunidade de vida da qual pescadores artesanais fazem parte, na qualidade
de sujeitos ativos não é, de nenhum modo, equilibrada. Os elementos que a constituem
têm características comuns, mas suas formas de interação podem ganhar contornos que
beiram o desajuste e a desarmonia do todo. As situações de desequilíbrio desta
comunidade são explicadas pela agência que pescadores artesanais conferem aos
animais, às forças sobrenaturais e aos agentes de fiscalização. Seres com agência não
respondem a estímulos por impulsos, somente. São, antes de tudo, indivíduos dotados
de alguma reflexividade capaz de conectá-los ao mundo de modo ativo e inteligente.
Pescadores artesanais protagonizam em suas interações com o ambiente
pequenas tragédias cotidianas. O enfrentamento da natureza, que constitui a condição
maior para o desempenho do ofício ganha, no jogo contra o peixe, contornos mais
objetivos. Nesta dramatização agônica estabelece-se, portanto, uma luta pela vida. O
peixe deseja escapar de seu algoz. Usa os subterfúgios que lhe são disponíveis com o
objetivo de não ser capturado. Por seu posto, o pescador vê o peixe como seu
adversário. Tenta, a todo custo, ler seus movimentos e compreender suas vontades. Da
carne do peixe fará a sua carne e dos seus. Ambos lutam para manter seus corpos sãos.
320
O embate não tem desfecho prescrito. Um dia ganha o peixe. Noutro ganha o pescador.
Um fator os torna iguais: ambos anseiam fugir da morte – neste caso mais física do que
simbólica.
Ainda há outro enfrentamento. Este também evidencia a luta pela vida. Ou, pelo
menos a disputa versa sobre o modo de vida. De um lado, pescadores artesanais.
Homens e mulheres que tiveram seus corpos e seus espíritos esculpidos pelos anos
dedicados aos trabalhos haliêuticos. Que acessam o mundo através das expertises
conferidas pelo ofício. Que povoam o lugar que vivem e sobrevivem de um conteúdo
acessível somente aos indivíduos marcados pelas mesmas experiências sensíveis. Por
isso mesmo são capazes de produzir, coletivamente, direitos ou sentimentos morais que
revelam tanto suas coerências quanto suas ambiguidades.
Do outro lado os agentes de fiscalização ambiental. Seja quem sejam. São, como
pescadores, indivíduos esculpidos por suas próprias experiências. Não encarnam
normas, simplesmente. Porque normas podem ser seguidas ou não. Os agentes são
agentes. Interpretam, reinterpretam, reproduzem, elaboram e, às vezes, esquecem as
normas. São, nesta perspectiva, como peixes e pescadores. Mais do que normas, estes
homens trazem para o encontro o modo. O modo de vida. Não são normas e sim modo
de vida que encarnam. Certamente outro que não o dos pescadores. E é isto que está em
jogo. Pescadores estão, para eles, como o peixe está para o pescador. O objetivo do
embate não é a morte física do outro. Mas, nem por isso, seu resultado é mais sutil:
desejam impor-se e sobrepor-se.
A expectativa do enfrentamento é marcada por impaciências, incertezas e
imprevisibilidades. Ele pode acontecer ou não. Imaginativamente ele sempre acontece.
A ansiedade anima – dá movimento – aos corpos. Encontros desta natureza são trágicos
independente de quem vai morrer. Ou do quê vai morrer. A arena está pronta. São,
portanto, experiências cruciais de revelação. Morre o peixe ou o pescador? Morre,
talvez, o modo de vida dos pescadores artesanais.
321
BIBLIOGRAFIA
ACHESON, James. Anthropology of Fishing. In: Annual Review of Anthropology.
Mississauga: University of Toronto, 1981.
ACSELRAD, Henri. Externalidade Ambiental e Sociabilidade Capitalista. In:
CAVALCANTI, Clovis (ORG). Desenvolvimento e Natureza. Estudos para uma
sociedade sustentável. São Paulo/Recife: Cortez/Fundação Joaquim Nabuco, 1995.
BALDAQUE DA SILVA, A. Estado Actual das Pescas em Portugal Compreendendo a
Pesca Marítima, Fluvial e Lacustre em todo Território do Reino Referido ao Ano de
1886. Lisboa: Imprensa Nacional, 1891.
BARTH, Fredrik. O Guru, o Iniciador e Outras Variações Antropológicas. Rio de
Janeiro: ContraCapa, 2000.
BECKER, Howard. De que Lado Estamos? In: ______. Uma Teoria da Ação Coletiva.
Rio de Janeiro: Zahar, 1977.
BIDEGAIN, Paulo & SOFFIATI, Aristides et ali. Lagoas do Norte Fluminense – Perfil
Ambiental. Rio de Janeiro: SEMADS, 2002.
BRANDÃO, Raul. Os Pescadores. Lisboa: Frenesi, 2002 [1923].
BRIGGS, Asa. O Conceito de Lugar. In: A Humanização do Meio Ambiente. Simpósio
do Instituto Smithsoniano. São Paulo: Cultrix, 1968.
BRITTO, Rosyan Campos de Caldas. Modernidade e tradição. Construção da
identidade social dos pescadores de Arraial do Cabo – RJ. Niterói: Eduff, 1999.
BRUSEK, Josef. O Problema do Desenvolvimento Sustentado. In: Clóvis Cavalcanti
(ORG). Desenvolvimento e Natureza: estudos para uma sociedade sustentável. São
Paulo: Cortez Editora, 2001.
CARDOSO DE OLIVEIRA, Luis Roberto. As Categorias do Entendimento Humano e a
Noção de Tempo e Espaço entre os Nuer. In: Série Antropologia. Brasília: UnB,
1993.
______. Direito Legal e Insulto Moral. Dilemas da cidadania no Brasil, no Quebec e
EUA. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.
322
CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. O Trabalho do Antropólogo. São Paulo: Unesp,
1998.
CASTRO FARIA, Luiz de. Os Pescadores de Ponta Grossa dos Fidalgos: Um Estudo
de Morfologia Social. (Título Provisório) Inédito. Conforme originais incorporados
ao acervo do Museu de Astronomia e Ciências Afins – MAST/CNPq, no
Observatório do Valongo, Rio de Janeiro/RJ.
______. Pescarias e Pescadores. In:______. Escritos Exumados vol 2: dimensões do
conhecimento antropológico. Niterói: Eduff, 2000.
______. Viajar. In: ______. Escritos Exumados vol 2: dimensões do conhecimento
antropológico. Niterói: Eduff, 2000.
CASAGRANGRE, Jonh. (ORG). In The Company fo Man. Twenty Portraits of
Anthropological Informants. New York: Harper & Hall Publishersm, 1964.
CAZENEUVE, Jean. Mauss. Paris: Presses Universitaires de France, 1968.
CLASTRES, Pierre. A Sociedade Contra o Estado. Pesquisas de Antropologia Política.
Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora S.A., 1988.
CLIFFORD, James & MARCUS, Geroge. Introductions: Partial Truths. In: ______.
Writing Culture. The Politics of Ethnografhy. Berkley/Los Angeles/London:
University of California Press, 1986.
______. Poder e Diálogo na Etnografia: a iniciação de Marcel Griaule. In: ______. A
Experiência Etnográfica. Antropologia e Literatura no século XX. Rio de Janeiro:
Editora UFRJ, 1998.
COLAÇO, José. Um Outro Olhar sobre Ponta Grossa dos Fidalgos: Usos da fotografia
na pesquisa antropológica. In: Revista Comum. Vol. 12, n. 27 quadrimestre julhodezembro. Rio de Janeiro, 2006.
______. Variações Sazonais e Conflito no povoado pesqueiro de Ponta Grossa dos
Fidalgos, Rio de Janeiro. In: Cuadernos de Antropologia Social. n. 31. Buenos Aires,
2010.
323
COLAÇO, José; VOGEL, Arno & VALPASSOS, Carlos. História de Pescador: O
direito do ponto de vista nativo. In: Revista Arquivos de Direito, Ano 7, n. 9, v. 1,
Nova Iguaçu, 2007.
COLAÇO, José & VOGEL, Arno. O Duro, a Pedra e a Lama: A etnotaxonomia e o
artesanato da pesca em Ponta Grossa dos Fidalgos. In: Revista Antropolítica, n. 19
(2), Niterói, 2005.
CUNHA, Delgado Goulart. Pescadores e Surfistas: uma disputa pelo uso do espaço da
Praia Grande. Niterói: Dissertação apresentada ao Programa de Pós – Graduação em
Antropologia e Ciência Política da Universidade Federal Fluminense para obtenção
do Grau de Mestre, 2000. (O trabalho em sua versão integral encontra-se disponível
para consulta na biblioteca do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da
Universidade Federal Fluminense/ICHF/UFF).
CUNHA, Neiva Vieira da. Viagem, Experiência e Memória: Narrativas de
Profissionais da Saúde Pública dos Anos 30. Bauru: EDUSC, 2005.
DA MATTA, Roberto. A Casa e a rua: Espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil.
São Paulo: Brasiliense, 1985.
______. Carnavais, Malandros e Heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro.
Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
______. Quanto Custa Ser Índio no Brasil: considerações sobre o problema da
identidade étnica. In: Dados. Revista de Ciências Sociais. 1976.
DE CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Editora
Vozes, 2001.
DEWEY, John. The Public and Its Problems. Ohio: Swallow Press, 1988.
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Um Jogador. São Paulo: Editora 34, 2011.
DOUGLAS, Mary & BARON, Isherwood. O Mundo dos Bens: para uma antropologia
do consumo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2004.
DOUGLAS, Mary & HULL, David (Orgs). How classification works. Nelson Goodman
among the Social Sciences.Edinburgh: Edinburgh Univeristy Press, 1992.
324
DOUGLAS, Mary & WILDAVSKY. Aaron. Risk and Culture. Essay on the selection
of the technical and environment dangers. Berckley: University of California
Press, 1982.
DUARTE, Luiz F. Dias. As redes de suor: a reprodução social dos trabalhadores da
produção da pesca em Jurujuba. Niterói: Eduff, 1999.
DURKHEIM, Émile & MARCEL, Mauss. De quelques formes primitives de
classification. Contribution à l’étude des représentations collectives. Tradução
brasileira - Algumas Formas Primitivas de Classificação. Contribuição Para o
Estudo das Representações Coletivas. In: Ensaios de Sociologia. São Paulo:
Perspectiva, 1981.
EVANS-PRITCHARD, E. Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande. Rio de
Janeiro: Zahar, 2005.
______. Os Nuer: uma descrição do modo de subsistência e das instituições políticas de
um povo nilota. São Paulo: Perspectiva, 1978.
______. Algumas Reminiscências e Reflexões sobre o Trabalho de Campo. In.:
Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande. Rio de Janeiro: Zahar Editores.
1978.
FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. Formação do Patronato Político Brasileiro.
São Paulo: Editora Globo/USP. 1975.
FILGUEIRAS, Márcio de Paula. Entre Barracões e Módulos de Pesca: Pescaria e meio
ambiente na regulação do uso de espaços públicos na Barra do Jucu. Dissertação
de mestrado apresentada ao Programa de Pós Graduação em Antropologia da
Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2008. (O trabalho em sua versão
integral encontra-se disponível para consulta na biblioteca do Instituto de Ciências
Humanas e Filosofia da Universidade Federal Fluminense/ICHF/UFF).
FIRTH, Raymond. As Normas de Comportamento. In. ______. Tipos Humanos. São
Paulo: Mestre Jou, 1978.
______. Malaya Fishermen. Their Peasant Economy. London: Trench, 1946.
325
FORMAN, Shepard. The Raft Fishermen. Tradition and change in the Brazilian
peasant economy. Bloomington & London: Indiana University Press, 1970.
FOSTER, George M. As culturas Tradicionais e o Impacto da Tecnologia. Rio de
Janeiro: Fundo de cultura, 1964.
FRANCA, Maria de Lourdes Paes; MARTINS, Rogélia & CARNEIRO, Miguel. A
Pesca Artesanal Local na Costa Continental Portuguesa. Lisboa: IPIMAR, 2001.
GEERTZ, Clifford. O Senso Comum como um Sistema Cultural. In: ______. O Saber
Local. Petrópolis: Vozes, 2000.
GIDDENS, Anthony. As Consequências da Modernidade. São Paulo: Unesp, 1991
______. Mundo em Descontrole. O que a globalização está fazendo de nós. Rio de
Janeiro: Record, 2007.
GLUCKMAN, Max. Custom and Conflict in Africa. Oxford: Blackwell, 1955
______. Gossip and Scandal. In: Current Anthropology. 4(3): 307-316, 1963
______. O Material Etnográfico na Antropologia Social Inglesa. In: ZALUAR, Alba
(ORG). Desvendando Máscaras Sociais. Rio de Janeiro: Ed. Francisco Alves, 1975.
GODELIER, Maurice. Racionalidade e Irracionalidade na Economia. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1969.
GOMES, Flávia Rúbia Arêas. Entre o Lar e a Lagoa. A Pesca de Casal em Ponta
Grossa dos Fidalgos. Monografia apresentada como requisito para a conclusão do
curso de Bacharelado em Ciências Sociais da Universidade Estadual do Norte
Fluminense. 2007. (O trabalho em sua versão integral encontra-se disponível para
consulta na biblioteca do Centro de Ciências do Homem da Universidade Estadual
do Norte Fluminense – CCH/UENF).
GRIAULE, Marcel. El Método de la Etnografía. Buenos Aires: Nova, 1969.
GUIDI, Maria Laís Mousinho. Elementos de Análise dos “Estudos de Comunidades”
Realizados no Brasil e Publicados de 1948 a 1960. In: Educação e Ciências Sociais,
Rio de Janeiro, 1961.
326
HAMELIN, Octave. La Vie de Hamelin. Paris: Presses Universitaires de France, 1956.
HARRIS, Marvin. Cows, Pigs, Wars and Witches: The riddles of culture. London:
Hutchinson & Co., 1975.
HOLLINGSHEAD, A. B. Noções Básicas de Ecologia Humana. In: Donald Pierson
(ORG). Estudos de Ecologia Humana. São Paulo: Livraria Editora Martins, 1970.
INGOLD. Tim. Introdução a O Que é Um Animal? In. In: Revista Antropolítica, n. 22
(1), 2007.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Tipos e Aspectos do
Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 1963.
JACKSON, Jean. I’m a Fieldnote. Fieldnotes. The makings of Anthropology. In:
SANJEK, Roger (ORG). Fieldnotes. The makings of Anthropology. Ithaca and
London: Cornell University Press, 1990.
KANT DE LIMA, Roberto; AMORIM, Maria Stella & MENDES, Regina Lúcia
Teixeira (ORG). Ensaios Sobre a Igualdade Jurídica. Acesso à Justiça Criminal e
Direitos de Cidadania no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
KANT DE LIMA, Roberto. Antropologia da Academia. Quando os índios somos nós.
Niterói: Eduff, 1997.
______. Carnavais, Malandros e Heróis: O dilema brasileiro do espaço público. In:
GOMES, Laura Graziela; BARBOSA, Lívia; DRUMMOND, José Augusto (ORG).
O Brasil não é para principiantes. Rio de Janeiro: FGV, 2000.
______. Os Pescadores de Itaipu. A Produção de Tainha e a Produção Ritual da
Identidade. Niterói: Eduff, 1997.
KUPER, Adam. Cultura. A visão dos Antropólogos. Bauru/SP: EdUSC, 2002.
LAMEGO, Alberto Ribeiro. Ciclo Evolutivo das Lagunas Fluminenses. Rio de Janeiro:
Ministério da Agricultura. Deptº. Nacional da Produção Mineral. Divisão de
Geologia e Mineralogia. 48 p. Boletim Nº 118, 1945.
327
______. Alberto Ribeiro. Restingas na Costa do Brasil. Rio de Janeiro: Ministério da
Agricultura. Deptº. Nacional da Produção Mineral. Divisão de Geologia e
Mineralogia. 63 p. Boletim Nº 96, 1940.
LATINI, Juliana Lopes. Memória, Identidade Social e Conflito entre os Pescadores de
Itaipu – RJ. Monografia apresentada como requisito para a conclusão do curso de
Bacharelado em Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense. 2006. (O
trabalho em sua versão integral encontra-se disponível para consulta na biblioteca do
Instituto de Ciências Humanas e Filosofia/ICHF/UFF).
LEACH, Edmund. Dois Ensaios a Respeito da Representação Simbólica do Tempo. I)
Cronos e Crono/II) O Tempo e Os Narizes Falsos. In: ______. Repensando a
Antropologia. São Paulo: Perspectiva, 1974.
LEIRIS, Michel. Espelho da Tauromaquia. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.
LÉVI-BRUHL, Lucien. La Mentalité Primitive. Paris: Presses Universitaires de France,
1947.
LÉVI-STRAUSS, Claude. A Ciência do Concreto. In: ______. O Pensamento
Selvagem. São Paulo: Editora Nacional e Editora da USP, 1970.
_______. Raça e História. In: Antropologia Estrutural II. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1976.
LEWIS, Oscar. Five Families. Mexican case studies in culture of poverty. New York:
Basic Books, 1959.
_______. Tepoztlán. Um pueblo de Mexico. Joaquim Mortiz: Mexico, 1976.
LIMA, Tânia Stolze. Um Peixe Olhou pra Mim. Reflexões sobre o perspectivismo em
uma cosmologia Tupi. São Paulo/Rio de Janeiro: ISA/Editora Unesp/NuTI, 2005.
LOBÃO, Ronaldo Joaquim da Silveira. Reservas Extrativistas Marinhas: Uma Reforma
Agrária no Mar? Uma Discussão sobre o Processo de Consolidação da Reserva
Extrativista Marinha de Arraial do Cabo/RJ. Dissertação de mestrado apresentada
ao Programa de Pós Graduação em Antropologia e Ciência Política da
Universidade Federal Fluminense. Niterói. 2000. (O trabalho em sua versão
328
integral encontra-se disponível para consulta na biblioteca do Instituto de Ciências
Humanas e Filosofia da Universidade Federal Fluminense/ICHF/UFF).
______. Cosmologias Políticas do Neocolonialismo. Como uma política pública pode
se transformar numa política do ressentimento. Niterói: Eduff, 2010.
LOBATO, Monteiro. Mr. Slang e o Brasil e Problema Vital – Vol. VIII. São Paulo:
Editora Brasiliense,1968.
LOPES, Carlos M. Candongueiros, Kinguilas, Roboteiros e Zungueiros: Uma digressão
sobre a economia informal em Luanda. Comunicação apresentada no VIII
Congresso Luso-Afro-Brasileiro realizado no Centro de Estudos Sociais da
Universidade de Coimbra entre os dias 16 e 18 de setembro de 2004.
MALDONADO. Simone Carneiro. Pescadores do Mar. São Paulo: Ática, 1986.
MALINOWSKI, Bronislaw K. Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Abril
Cultural, 1984. [Coleção Os Pensadores].
MARTINS, Fernando Ribeiro & SOUTO, Henrique. Agricultores-pescadores da
Carrasqueira. Um modo de vida em extinção? In: Revista Encontros. Porto, 2000.
MARTINS, Rogélia; CARNEIRO, Miguel & REBORDÃO, Fernando. Contribuição
para o conhecimento das artes de pesca utilizadas no Rio Sado. Publicações
Avulsas do IPIMAR, 10. Lisboa: IPIMAR/Ministério da Agricultura, Pescas e
Florestas/INIAP, 2004.
MERTON, Robert K. A Influência da Pesquisa Empírica sobre a Teoria Sociológica. In:
_______. Sociologia: Teoria e Estrutura. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1970
[1949].
MAUSS, Marcel. Manuel d’ethnographie. Paris: Éditions Payot, 2002.
______. Oeuvres. 2. Représentations collectives et diversité de civilisations.
Présentation de Victor Karady. Paris: Les Éditions de Minuit, 1968.
______. Ensaio sobre as Variações Sazonais da Sociedade Esquimó. In: ______.
Sociologia e Antropologia. São Paulo: COSACNAIFY, 2003.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Editora
Malheiros, 2001.
329
MEADOWS, Dennis et ali. Limites do Crescimento – um relatório para o Projeto do
Clube de Roma sobre o Dilema da Humanidade. São Paulo: Perspectiva, 1972.
MELLO, Marco Antônio da Silva & VOGEL, Arno. Gente das Areias: Sociedade,
História e Meio Ambiente no Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: EdUFF,
2004.
MIBIELLI, Bruno Leipner. Mestre Cambuci e “sumiço da tainha”: uma nova imagem
da praia de Itaipu. Monografia apresentada como requisito para a conclusão do
curso de Bacharelado em Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense.
2004. (O trabalho em sua versão integral encontra-se disponível para consulta na
biblioteca do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia/ICHF/UFF).
MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Brasil: Recursos e Possibilidades.
Rio de Janeiro, 1942.
MINISTÉRIO DA AQUICULTURA, DESENVOLVIMENTO RURAL E PESCAS.
Plano Estratégico Nacional para a Pesca, 2007-2013. Lisboa, 2007.
MIRANDA, Ana Paula Mendes de. Arquivo Público: um segredo bem guardado?
Premiado em 3º lugar no 1º Concurso de Monografias sobre Informação e
Documentação Jurídica, Centro de Estudos Jurídicos da Procuradoria do Estado do
Rio de Janeiro, 1997.
MOTA, Fábio Reis. Cidadão em Toda Parte ou Cidadãos à Parte? Demandas de
direitos e reconhecimento no Brasil e na França. Tese de doutorado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense
(PPGA-UFF). Niterói. 2009. (O trabalho em sua versão integral encontra-se
disponível para consulta na biblioteca do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia
da Universidade Federal Fluminense/ICHF/UFF).
______. O que Não é de Um é de Outro: Conflitos e Direitos na Ilha da Marambaia. In:
ACSELRAD, Henri (ORG). Conflitos Sociais e Meio Ambiente no Estado do Rio
de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume Dumará/FASE, 2004.
______. Nem muito mar, nem muita terra. Nem tanto negro, nem tanto branco: uma
discussão sobre o processo de construção da identidade da comunidade
remanescente de quilombos na Ilha da Marambaia/RJ. Dissertação de mestrado
330
apresentada ao Programa de Pós Graduação em Antropologia e Ciência Política da
Universidade Federal Fluminense. Niterói. 2003. 164p. (O trabalho em sua versão
integral encontra-se disponível para consulta na biblioteca do Instituto de Ciências
Humanas e Filosofia da Universidade Federal Fluminense/ICHF/UFF).
OLIVEIRA, João Paulo Gama. Peixes, Tempos e Lugares: Apontamentos Sobre o
Conhecimento Ictiológico dos Pescadores Artesanais na Lagoa Feia/RJ.
Monografia apresentada como requisito para a conclusão do curso de Bacharelado
em Ciências Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense. 2005. (O
trabalho em sua versão integral encontra-se disponível para consulta na biblioteca
do Centro de Ciências do Homem da Universidade Estadual do Norte Fluminense
– CCH/UENF).
OLIVEIRA, Lygia E. de. Cajuí: Socialização em uma Comunidade Praiana. Recife:
Imprensa Universitária, 1966.
PEIRANO, Mariza. A Favor da Etnografia. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995.
PENNA, Belisário. Saneamento do Brasil. Rio de Janeiro: Typ. Revista dos Tribunais,
1918.
PESSANHA, Elina Gonçalves da Fonte. Os companheiros. Trabalho e Sociabilidade na
Pesca de Itaipu. Niterói: Eduff, 2003. 156p.
PIZARRO E ARAÚJO, José de Souza Azevedo. Memórias Históricas do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional do Rio de Janeiro, 1945.
PRADO, Rosane Manhães. Depois que Entrou o IMBAMBA: Percepção de questões
ambientais na Ilha Grande. In: ______. (ORG). Ilha Grande. Do Sambaqui ao
Turismo. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2006.
PRADO, Simone Moutinho. Da Anchova ao Salário Mínimo. Uma etnografia sobre
injunções de mudança social em Arraial do Cabo. Niterói: Eduff, 2002.
RAMONELL, Rosa. Guia dos Mariscos de Galícia. Vigo: Galaxia, 1985.
RIBEIRO LAMEGO, Alberto. A Planície do Solar e da Senzala. Rio de Janeiro:
Livraria Católica, 1934.
ROMERO, Silvio. Cantos Populares do Brasil. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1954.
331
ROSALDO, Renato. Cultura y Verdad: La reconstrucción de la análisis social. Quito:
Abya-yala, 2000.
SAHLINS, Marshall. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.
______. O “pessimismo sentimental” e a experiência etnográfica: por que a cultura não
é um “objeto” em via de extinção (parte I). In: Revista Mana. (3)1, 1997.
______. O “pessimismo sentimental” e a experiência etnográfica: por que a cultura não
é um “objeto” em via de extinção (parte II). In: Revista Mana. (3) 2, 1997.
_______. Stone Age Economics. New York: Aldine Publishing Company, 1972.
SANJEK, Roger (ORG). On Ethnographic Validity. In: ______. Fieldnotes. The
makings of Anthropology. Ithaca and London: Cornell University Press, 1990.
SANTOS, Daniel dos. The Second Economy in Angola: Esquema and Candonga. In:
Maria Los (ORG). The Second Economy in Marxist States. London, 1990
SEIXAS, Miguel Metelo de. Herdade da Comporta. Memória Histórica. Portugal: The
Atlantic Company Limited, 1999.
SILVA, Gláucia Oliveira. Tudo que Tem na Terra Tem no Mar. A Classificação dos
Seres Vivos entre os Trabalhadores da Pesca em Piratininga, Rio de Janeiro. Rio
de Janeiro: FUNARTE, Instituto Nacional do Folclore, 1989.
SIMMEL, Georg. A Natureza Sociológica do Conflito. In: Simmel. São Paulo: Editora
Ática, 1983. [Coleção Grandes Cientistas Sociais].
______. A Ruína. In: SOUZA, Jessé (ORG). Simmel e a Modernidade. Brasília: UnB,
1998.
______. O Estrangeiro. In: Simmel. São Paulo: Editora Ática, 1983. [Coleção Grandes
Cientistas Sociais].
______. El Secreto y La Sociedad Secreta. In: ______. Estudios sobre las formas de
socialización. Madrid: Alianza Editorial, 1986.
SOARES, Ana Luísa A. P. Caracterização da Pesca no estuario do Sado. Relatório de
estágio do curso de Licenciatura em Biologia Marinha e Pescas da Universidade do
Algarve, 2000.
332
SOUTO, Henrique. Comunidades de Pesca Artesanal na Costa Portuguesa na Última
Década do Século XX. Lisboa: Academia da Marinha, 2007.
SOFFIATI, Aristides Arthur. Aspectos Históricos das Lagoas do Norte do Estado do
Rio de Janeiro. In: Ecologia das Lagoas Costeiras do Parque Nacional da
Restinga de Jurubatiba e do Município de Macaé (RJ), s/d.
SOMBART, Nicolaus. Einige Entscheidende Theoretiker - Henri de Saint-Simon und
Auguste Comte. In: WEBER, Alfred (ed). Einführung in die Soziologie. Munique:
R. Piper & Co. Verlag, 1955.
TAYLOR, Charles. Seguir uma Regra. In: _______. Argumentos Filosóficos. São
Paulo: Edições Loyola, 2000.
TARDIFF, Maurice. “Saberes Profissionais dos Professores e Conhecimentos
Universitários: Elementos para uma epistemologia da prática profissional dos
professores e suas consequências em relação à formação pata o magistério”. In:
Revista Brasileira de Educação, nº 13, 2000.
TUAN, Yi-Fu. Espaço e Lugar: A Perspectiva da Experiência. São Paulo: DIFEL,
1983.
TURNER, Victor. Muchona a Vespa: o intérprete da religião. In: ______. Floresta de
Símbolos. Niterói: Eduff, 2005.
______. Social Dramas and Stories about Them. In: Critical Inquiry. Vol. 1.n.01.
Autumn. 1980.
VALPASSOS, Carlos. A Festa de São Pedro em Ponta Grossa dos Fidalgos: a Face
Política de um Ritual Não-Político. Campos dos Goytacazes: Mosaico – Ensaios de
Cultura Popular. 2003.
______. Quando a lagoa vira pasto – Um estudo sobre os conflitos em torno das
diferentes formas de apropriação e concepção dos espaços marginais das Lagoa
Feia – RJ. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Antropologia da Universidade Federal Fluminense (PPGA-UFF). Niterói. 2006. (O
trabalho em sua versão integral encontra-se disponível para consulta na biblioteca
do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Federal
Fluminense/ICHF/UFF).
333
VAN VELSEN, J. Análise Situacional e Método de Estudo de Caso Detalhado.
FELDMAN, Bianco (ORG). Antropologia da Sociedade Contemporânea. São Paulo:
Global, 1987.
VARGAS, Getúlio. A Nova Política do Brasil III. Rio de Janeiro: José Olympio,1938.
VIANNA, Oliveira. Instituições políticas brasileiras. Rio de Janeiro: Record, 1974.
VOGEL, Arno & MELLO, Marco Antonio da Silva. O Experimento de Tobiki:
Algumas Reflexões Sobre a Didática Magna da Prosperidade. Fórum Educacional.
13 (1-2). 1989.
______. Sistemas construídos e memória social: Uma arqueologia urbana? In: Revista
de Arqueologia. v. 2 n.2 jul/dez, CNPq e Museu Paraense Emílio Goeldi, 1984.
WAGNER, Roy. A Invenção da Cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
WEBER, Max. Economia e Sociedade. Fundamentos da Sociologia Compreensiva.
Vol. I. Brasília: UnB, 2004.
334