Augusto César Gonçalves e Lima A escola é o

Transcrição

Augusto César Gonçalves e Lima A escola é o
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0114347/CA
Augusto César Gonçalves e Lima
A escola é o silêncio da batucada?
Estudo sobre a relação de uma
escola pública no bairro de Oswaldo Cruz
com a cultura do samba
TESE DE DOUTORADO
DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO
Programa de Pós-Graduação em Educação
Rio de Janeiro
Julho de 2005
Augusto César Gonçalves e Lima
A ESCOLA É O SILÊNCIO DA BATUCADA?
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0114347/CA
Estudo sobre a relação de uma escola pública no
bairro de Osw aldo Cruz e a cultura do samba.
Tese de Doutorado
Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação
em Educação da PUC-Rio como requisito parcial
para a obtenção do título de Doutor em Educação.
Orientadora: Vera Maria Ferrão Candau
Volume I
Rio de Janeiro, Julho de 2005
Augusto César Gonçalves e Lima
A escola é o silêncio da batucada? Estudo
sobre a relação de uma escola pública no bairro
de Oswaldo Cruz e a cultura do samba
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0114347/CA
Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em
Educação da PUC-Rio como requisito parcial para a
obtenção do título de Doutor em Educação. Aprovada pela
Comissão Examinadora abaixo assinada.
Profª Vera Maria Ferrão Candau
Orientadora
Departamento de Educação – PUC-Rio
Profª Isabel Alice Oswald Monteiro Lelis
Departamento de Educação – PUC-Rio
Profª Rosália Maria Duarte
Departamento de Educação da PUC-Rio
Profª Emília Freitas de Lima
Faculdade de Educação da UFSCar
Prof. Luiz Cavalieri Bazílio
Faculdade de Educação da UERJ
Profº PAULO FERNANDO CARNEIRO DE ANDRADE
Coordenador Setorial do Centro de Teologia e Ciências Humanas
PUC-Rio
Rio de Janeiro, 8 de julho de 2005
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total
ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, do
autor e da orientadora.
Augusto César Gonçalves e Lima
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0114347/CA
Graduou-se em Ciências Econômicas na Universidade
Cândido Mendes – campus Ipanema em 1982. Cursou
Mestrado em Educação na PUC-Rio, defendendo a
Dissertação em 2001, com o título Escola dá Samba? O
que têm a dizer os compositores do bairro de Oswaldo
Cruz e da Portela. Participou de diversos encontros na
área de Educação. Atualmente é professor do Curso de
Pedagogia da Universidade Estácio de Sá.
Ficha Catalográfica
Lima, Augusto César Gonçalves e
A escola é o silêncio da batucada?: estudo sobre as
relações de uma escola pública no bairro de Oswaldo Cruz
com a cultura do samba / Augusto César Gonçalves e Lima;
orientadora: Vera Maria Ferrão Candau. – Rio de Janeiro:
PUC, Departamento de Educação, 2005.
283 f. ; 30 cm
1. Tese (doutorado) – Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Departamento de
Educação.
Inclui referências bibliográficas.
1. Educação – Teses. 2. Cultura. 3. Cultura escolar.
4. Cultura da escola. 5. Cultura do samba. I. Candau,
Vera Maria Ferrão. II Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro. Departamento de Educação. III.
Título.
CDD: 370
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Para meus pais, Ivete e Moacyr
de quem tanto me orgulho
e para quem quero ser motivo de orgulho.
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Agradecimentos
A minha orientadora Vera Maria Ferrão Candau, pelo estímulo e parceria na
realização deste trabalho.
Ao CNPq e à PUC-Rio, pelos auxílios concedidos, sem os quais este trabalho não
poderia ter sido realizado.
Ao corpo de professores da PUC-Rio, pelo aprendizado e paciência.
A meus amados pais, meus primeiros mestres.
À minha mulher Claudia Miranda, pelo apoio, compartilhamento e carinho.
Às/aos funcionárias/os do Departamento de Educação da PUC, pelo apoio.
Às diretoras, às/aos professoras/es e estudantes da Escola Azul pela colaboração.
Aos moradores de Oswaldo Cruz, pela memória do samba.
Ao meu amigo Edinho Oliveira, mestre em samba, e família pela solidariedade.
Ao povo do samba, pela alegria, pelo calor humano, pelo aprendizado e por ajudar
a fazer o Brasil, Brasil.
Resumo
Lima, Augusto César Gonçalves e; Candau, Vera Maria
Ferrão. A escola é o silêncio da batucada? Estudo das
relações de uma escola pública do bairro de Oswaldo Cruz
e a cultura do samba. Rio de Janeiro, 2005. 283p. Tese de
Doutorado
–
Departamento
de
Educação,
Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Esta
tese
de
doutorado
é
uma
pesquisa
de
inspiração
etnográfica que busca entender como se dão as relações entre a
cultura escolar/cultura da escola e uma das culturas sociais de
referência dos/as estudantes, denominada cultura do samba. As
discussões acerca da importância da escola dialogar com as culturas
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sociais de referências dos/as estudantes foi o ponto de partida para a
pesquisa. A hipótese inicial era de que os/as alunos/as de uma
escola situada num bairro com tradição de samba provavelmente
teriam uma relação muito profunda com esta cultura, o que se
verificou problemático. Para a análise deste aspecto, foi construído
o conceito de cultura do samba para dar conta das redes de
significado,
costumes,
práticas,
comportamentos, socialiazação,
saberes, sociabilidades que estão ligadas ao gênero musical samba.
Foi investigada uma escola pública da rede municipal do Rio de
Janeiro, localizada no bairro de Oswaldo Cruz, um bairro com uma
tradição de samba que remonta ao início do século XX. O estudo faz
uma análise das condições socioeconômicas do bairro e mapeia as
condições materiais e de funcionamento da escola estudada. A partir
de autores escolhidos discute os conceitos de cultura escolar e
cultura da escola, reconhecendo seu entrelaçamento, tomando-os
como categoria de análise para entender o currículo e as práticas
dos
atores,
em
relação
às
aproximações,
distanciamentos
e
entrecruzamentos com a cultura do samba.
Palavras-chave
Escola; cultura/s; cultura escolar; cultura da escola; cultura
do samba.
Resumé
Lima, Augusto César Gonçalves e; Candau, Vera Maria
Ferrão. L’école est-elle le silence de la “batucada”? Etude
des relations entre une école publique du quartier de
Oswaldo Cruz et la culture du samba. Rio de Janeiro, 2005.
283p. Thèse de Doctorat – Départament d’Education,
Pontifícia Universidade Católica de Rio de Janeiro.
Cette thèse
de
doctorat
est
une
recherche
d’inspiration
ethnographique qui cherche à comprendre comment s’établissent les
relations entre la culture scolaire/culture de l’école et une des
cultures sociales de référence des étudiants, dénommée culture du
samba. Les discussions sur l’importance du dialogue de l’école avec
les cultures sociales de référence des étudiants a été le point de
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départ de la recherche. L’h ypothèse initiale était que les élèves
d’une école située dans un quartier ayant une tradition de samba
auraient probablement une relation très profonde avec cette culture,
ce qui s’est avéré problématique. Pour l’anal yse de cet aspect et
pour faire face aux réseaux de signification, coutumes, pratiques,
comportements, socialisation, savoirs, sociabilités liées au genre
musical samba, le concept de culture du samba a été créé. Le
recherche s’est basée sur une école publique du réseau municipal de
Rio de Janeiro, située dans le quartier de Oswaldo Cruz, quartier
ayant une tradition de samba qui remonte au début du 20 è m e siècle.
L’étude fait une anal yse des conditions socio-économiques du
quartier en mettant l’accent sur les conditions matérielles et de
fonctionnement de l’école étudiée. A partir des auteurs choisis, elle
discute les concepts de culture scolaire et de culture de l’école, en
reconnaissant
leur
entrelacement,
en
les
considérant
comme
catégories d’anal yse pour comprendre le curriculum et les pratiques
des auteurs, en relation avec les rapprochements, distanciations et
entrecroisements avec la culture du samba.
Mots clefs
Ecole; culture/s; culture scolaire; culture de l’école; culture
du samba.
Sumário
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1. Introdução – a organização para o desfile
9
2. No terreiro da pesquisa: os contextos
2.1 Um bairro/subúrbio na cidade do Rio de Janeiro
2.2 A Escola Azul
32
32
49
3. Cultura/s: o samba dos conceitos
3.1 Escola e cultura/s
3.2 Cultura escolar/cultura da escola
3.3 Uma cultura social de referência: a cultura do samba
59
59
68
89
4. A Escola Azul na passarela
4.1 A cultura escolar/cultura da escola e seus atores
4.1.1 O pátio
4.1.2 O projeto político-pedagógico e o currículo
4.1.3 Os atores
4.1.3.1 A diretora
4.1.3.2 A coordenadora pedagógica
4.1.3.3 O professor Orlando
4.1.3.4 A professora Ângela
4.1.3.5 Os/as estudantes
4.1.3.6 As/os responsáveis
4.1.4 Aulas de Educação Física
4.1.5 Aula da última fase do Ciclo de Formação
4.1.6 O COC: mudanças na cultura escolar/cultura da escola?
120
120
121
123
130
131
136
138
142
144
152
157
160
165
4.2 A cultura escolar/cultura da escola: realizações e tensões
168
4.2.1 A gestão escolar
169
4.2.2 A merenda
173
4.2.3 A disciplina
174
4.2.4 Os parceiros
179
4.2.5 A relação escola-comunidade
180
4.2.6 Possibilidades e realidades de protagonismo juvenil: grêmio,
jornal e núcleo de adolescentes
190
4.2.7 A avaliação institucional
194
4.2.8 A questão racial
197
5. A Escola Azul é o silêncio da batucada?
5.1 O desfile ecológico
5.2 Responsáveis, corpo docente e a cultura do samba
5.3 Os/as estudantes e a cultura do samba: a mediação da
mídia e as culturas juvenis
5.4 O bairro e a cultura do samba
205
205
213
6. A escola e o samba: considerações finais
230
7. Referências bibliográficas
8. Apêndices
237
253
217
225
1
Introdução: a organização para um desfile
Uma das questões que provocaram celeuma nestes últimos
anos
foram
os
SEF/Ministério
Parâmetros
da
Educação,
Curriculares
1997).
Um
Nacionais
dos
(Brasil,
aspectos
neles
abordados de especial relevância para o meu trabalho refere-se ao
tema da pluralidade cultural nos chamados “temas transversais”.
Tratava-se possivelmente de um reflexo das discussões sobre a
necessidade de se pensar o currículo à luz das novas formulações
advindas dos debates provocados pela chamada Nova Sociologia da
Educação, os Estudos Culturais e o Multiculturalismo que, entre
outras questões, colocava a necessidade do diálogo da escola com as
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culturas de referência dos/as estudantes.
Incentivado por estas questões, propus-me desenvolver um
estudo
que
procurasse
investigar
os
processos
e
formas
de
relacionamento entre a cultura escolar/cultura da escola com uma
das culturas presentes no espaço geográfico e social de vida dos
estudantes – neste caso, o que denomino a cultura do samba – num
subúrbio carioca onde houvesse uma tradição de samba. Assim,
parti da hipótese inicial de que em uma escola pública situada no
subúrbio de Oswaldo Cruz, bairro que tem uma histórica relação
com o samba, provavelmente teria presente no espaço escolar a
cultura do samba, vivenciada por seus/uas estudantes, em sua
maioria moradora daquele bairro. Tratava-se então de investigar
como
se
dariam
as
aproximações,
distanciamentos
e
entrecruzamentos entre a cultura escolar/cultura da escola, com
aquela cultura social de referência na unidade escolar escolhida.
A construção deste enredo
Em minha pesquisa para a dissertação de mestrado Escola dá
samba? O que têm a dizer os compositores do bairro de Oswaldo
10
Cruz e da Portela (Lima, 2001) 1, desenvolvo estudos sobre a cultura
do samba, percebendo-a também enquanto espaço educativo, dando
ênfase ao processo de socialização e relações com outras culturas,
aí
incluída
a
interculturalidade
cultura
escolar,
do
o
qual
num
samba
contínuo
faz
parte
processo
de
historicamente
(Bastide, 1971; Cabral, 1996; Moura, 1995; Silva & Santos, 1989;
Sodré, 1998; Tramonte, 1996; Vianna, 1995).
A partir de entrevistas com compositores que vivem/viveram e
freqüentam/freqüentaram o bairro de Oswaldo Cruz e a Escola de
Samba Portela, observações de campo, análise de jornais e de
biografias de renomados compositores de samba, procurei estudar as
representações que os sambistas têm da escola e a relação desta com
sua produção musical.
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Esta pesquisa ressaltou aspectos que, se de um lado apontam
para o distanciamento entre a instituição escolar e o mundo do
samba, por outro, apresentam elementos desta relação que não
devem ser menosprezados em nossas análises. Um destes aspectos é
a importância que os sambistas atribuem à escola.
A relação que passam a ter com seus filhos no esforço de
escolarização, alguns deles chegando até à universidade, é uma das
conseqüências desta importância dada pelos sambistas à escola.
Alguns exemplos nesta perspectiva estão presentes nos depoimentos
a seguir. Por exemplo, seu Jair do Cavaquinho, pardo 2, nascido em
1922, autor de Meu barracão de zinco e (com Nelson Cavaquinho)
Eu e as flores, freqüentou apenas os primeiros anos escolares. Ele
afirma que “não influi em nada” o que se aprende no colégio para se
compor samba. Mas hoje, depois de garantir escolarização dos oito
1
U m r e s u mo d e st a d i s s e r ta ç ã o fo i p ub lic a d o . C f. LI M A, Au g u s to C . G. e .
E sc o la d á sa mb a ? O q ue d iz e m o s c o mp o s ito r es d o b a ir r o d e Os wa ld o C r uz e a
P o rtela . In CAN D AU, Vera M ari a (or g.). S o c ied a d e , e d u ca ç ã o e c u l tu ra ( s ):
q ue s tõ e s e p r o p o s ta s, c a p ít ulo 8 , p . 1 7 3 -2 0 2 , 2 0 0 2 .
2
A co r fo i at rib u íd a p elo s p r ó p r io s e n tre vi s tad o s. Fo ra m 1 0 e n tre vi s ta s
r e a l iz a d a s e m 1 9 9 9 : W il so n M o r e ir a , M a ur o Di ni z , M a r co s D i ni z , E d i n ho
Oli v e ir a e T er e s a Cr i st in a , e c o m o s se g ui n te s me mb r o s d o Co nj u n t o Vel ha
G ua r d a d a P o r t e la : J a ir d o Ca vaq u i n ho , M o nar c o , Ar g e mi r o , C a sq u i n ha e Da vid
d o P a nd e ir o .
11
filhos, pensa assim: “olha, atualmente é tudo, mas eu tento dar
ensino aos meus filhos... eu tenho um filho que é engenheiro. Eu
agüento ele como engenheiro...” (Lima, 2001, p.100), desabafa,
resignado diante da realidade do desemprego. O filho mais novo do
compositor Monarco, o também compositor Marcos Diniz, negro,
nascido em 1965, autor de alguns sambas gravados por Zeca
Pagodinho, diz, “meus filhos estudam. [...] eu sou caxias pra esse
negócio: como é que é, ninguém vai pra escola não?” (Lima, 1999b,
p.94). Casquinha, pardo, nascido em 1922, parceiro de Paulinho da
Viola em Recado e autor (junto com Argemiro) de Gorjear da
passarada e A chuva cai, escolarizou todos os filhos, entre eles
duas professoras, ele crê (!) que estudou até o terceiro ano, mas
atribui importância a este fato: “... eu cheguei a fazer concurso e
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passar com aquele pouco que estudei...” (Lima, 2001, p.110). Há
orgulho e sensação de dever cumprido ao fazer com que os filhos
avancem mais do que eles na escolarização.
Pode-se alegar que tal importância à escolarização faz parte
do senso comum, presente também nas classes populares. Pode-se
também alegar que os sambistas, sabendo do papel que tem a
escolarização na construção das representações sociais dos grupos,
poderiam em seus depoimentos expressar o que corresponde ao
socialmente valorizado. Porém, a representação que em geral
também se tem do mundo do samba é a de que este não tem nada a
ver com a escolarização, não sendo diferente a visão dos próprios
sambistas sobre a questão. Isto poderia levar ao desestímulo ao
esforço de escolarização dos filhos, o que não ocorreu.
Quanto às experiências escolares dos sambistas, vejamos
algumas falas: “... estudei mucado, primário, mas naquele tempo o
primário era um primário!” (Lima, 2001, p.108), diz Argemiro
(1923-2003),
negro,
autor
(com
Casquinha)
de
Gorjear
da
passarada, A chuva cai, entre outras. Wilson Moreira, negro,
nascido em 1936, autor (com Nei Lopes) de Gostoso Veneno,
Senhora Liberdade, Coisa da Antiga, entre outras, compositor da
Portela, relata: “eu fui até o primeiro grau e parei por ali. Eu não
12
tive condições de seguir mais, rapaz, eu trabalhei muito porque eu
era o mais velho da família”. Ele gostava de estudar “até um ponto
(ri), até um ponto. Então eu preferia aprender uma profissão e
trabalhar, pra poder me virar” (Lima, 2001, p.107). Monarco,
moreno, nascido em 1933, autor de Homenagem à Velha Guarda da
Portela, e (com Ratinho) Coração em desalinho e Vai vadiar,
lembra com tristeza: “Freqüentei os bancos de escola muito pouco,
muito pouco. É uma pena, sabe, porque justamente quando eu tava
tomando o gostinho... [...] a mãe se separou do pai e a gente em
dificuldade [...] eu já fui trabalhar...” (Lima, 2001, p.101). Para
Teresa Cristina, negra, nascida em 1968 e cursando a faculdade de
Letras na UERJ, a única compositora entrevistada, agora mais
conhecida como intérprete pela gravação do CD duplo A música de
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Paulinho da Viola, sua relação com a escola é muito boa: “sempre
gostei de estudar, desde criança, desde que entrei pro colégio.
Sempre fui uma criança muito curiosa” (Lima, 2001, p.106). Edinho
Oliveira, negro, nascido em 1956, autor (junto com Marquinho de
Oswaldo Cruz e Arlindo Cruz) de Geografia popular, diz: “a leitura
enriquece o homem. E eu sou um cara que gosta de ler e a leitura me
fortalece de forma geral e eu tenho que agradecer à qualidade do
ensino que eu tive, meus professores...” (Lima, 2001, p.104).
Técnico em refrigeração, ele conta: “cheguei a me engraçar, digo
até assim, engraçar, no nível superior pra fazer engenharia, depois
vi que não era compatível com a minha realidade...” (Lima, 2001,
p.104).
O que aparece na representação que fazem estes sambistas da
escola é o reconhecimento da importância da escolarização, mas
que, por vários motivos, e dentre eles dois especificamente,
provocaram o seu afastamento da escola: as condições materiais de
sobrevivência que levam os alunos a trabalhar para ajudar no
sustento da família, e o entendimento de que para os filhos de
trabalhadores bastava cursar as primeiras séries, reflexo também do
13
caráter dualista da escola brasileira, como já apontava Anísio
Teixeira (1994) 3.
Outro
sentimento
aspecto
de
assinalado pela pesquisa realizada foi
autonomia
do
compositor
em
relação
à
o
sua
escolarização, em geral tendo a compreensão de que seu saber para
compor
sambas
independe da
escola,
ainda que
a
considere
socialmente importante. No entanto, as relações com a cultura
escolar
estão
compositor,
presentes
pois
em
mantém
sua
formação
relações
como
cotidianas
indivíduo
com
e
rádios,
gravadoras, jornais, revistas e livros escolares, entre outros, onde
algumas produções estão influenciadas pela cultura escolar, no
sentido que esta orienta a organização e produção destas mídias. As
leituras feitas pelos compositores para compor um samba-enredo
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são, fundamentalmente, aquelas baseadas nos manuais escolares 4.
No caso dos dez compositores por mim entrevistados, o grau de
escolarização variava das primeiras séries do ensino fundamental
entre os sambistas mais velhos até o universitário incompleto entre
os mais novos, podendo-se dizer que há uma tendência à crescente
escolarização nas gerações mais novas.
A pesquisa apontou para a existência de uma cultura do
samba, que tem origem na cultura afro-brasileira e foi enriquecida
nos
contatos
culturais,
fundamentais
para
a
formação
do
compositor. Este trabalho levou-me a pensar que a cultura do samba
potencializa os conhecimentos adquiridos na escola e não só o
inverso, ou seja, não somente reconhecer que os conhecimentos
escolares potencializam a criação artística, mas que também a
cultura desenvolvida em torno da produção artística do samba
potencializa a aprendizagem escolar. Se reconhecemos a fascinante
produção artística dos sambistas, sejam eles escolarizados ou não,
reconhecemos que existe um saber, que é realizado fora da escola
formal, no caso, dentro do que chamo cultura do samba. Esta
3
C f. An í sio T E I XE I R A. E d u c a ç ã o n ã o é p ri vi lé g io , 1 9 9 4 . A p r i me ir a e d iç ã o é
de 1957.
4
Cf. Mo niq u e AU G R AS, O B ra s il d o sa m b a - e n r e d o , cap ít ulo V ul to s e
e f e mé r id e s, 1 9 9 8 , p . 1 2 1 -1 4 1 .
14
potencializa conhecimentos, como diz Jair do Cavaquinho: “o samba
[bota os dois dedos indicadores da cada lado da fronte] dá
desenvolvimento! Desenvolvimento!” (Lima, 2001, p.100) e ainda
Casquinha: “... o samba ilustra a pessoa” (Lima, 2001, p.110). Ou
seja, como afirmam Candeia & Isnard (1978), este “meio-ambiente”
da cultura do samba dá grande estímulo à criatividade.
Se existe esta relação da cultura do samba com a escola, não
se pode dizer o mesmo do contrário. Ou melhor, não pude observar
a existência de uma relação da cultura escolar com o samba, no
sentido que este, enquanto parte importante da cultura brasileira,
interfira em algum nível no currículo da escola, tomando como base
meus entrevistados. O filho mais velho de Monarco, Mauro Diniz,
negro, cantor e compositor de Parabéns pra você (com Ratinho e
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Sereno) e Fica depois de Madureira, professor de cavaquinho,
nascido em 1952, dizia que nas poucas vezes que o samba tinha a
ver com a escola era nas provas de História, quando ele se lembrava
de alguns sambas-enredo para ajudar a responder perguntas. Ou
quando havia festa e as professoras lembravam que havia filho de
compositor na escola e que este podia cantar sambas, conta Marcos
Diniz, o filho mais novo.
Um
exemplo
interessante
foi
proporcionado
pela minha
pesquisa. Em 1999, foi publicada uma reportagem em jornal onde se
noticiavam alunos tocando samba dentro de um colégio na região do
bairro Maracanã, a convite da diretora da escola. Tendo sido
informado por uma colega do Programa de Pós-Graduação da PUCRio, fiquei impossibilitado de encontrar a matéria porque ela não se
recordava onde e quando havia lido. Embora meu estudo na época
não fosse sobre o espaço escolar, entendi que seria interessante
conversar com os alunos e com a diretora.
Assim, fui ao bairro do Maracanã à procura do colégio que
teria sido motivo da reportagem, começando pelo CEFET. Ao chegar
ao portão de entrada, encontrei um grupo de alunos uniformizados
no ponto de ônibus, tendo um deles um cavaquinho à mão,
dedilhando
as
cordas.
Pronto,
pensei,
encontrei
o
grupo
da
15
entrevista. Ao abordá-los, disseram-me que faziam pagode 5 sim, mas
a reportagem não havia sido com eles, que talvez fossem os alunos
do colégio em frente, o Colégio 1° de maio, do Sindicato dos
Urbanitários, pois ali tinha um grupo que tocava pagode. Lá fui eu
ao outro colégio. Também não era lá. Passei na Escola Técnica
Estadual Ferreira Viana, que é próxima, onde existiam grupos que
tocavam pagode, mas não havia sido feita a reportagem mencionada.
Encaminhei-me
ao
Colégio
Graham
Bell,
do
Sindicato
dos
Telefônicos. Informaram-me que havia grupo de pagode entre seus
alunos, mas não houve nenhuma reportagem. Fui então à Escola
Técnica Federal de Química. No Grêmio disseram-me que lá havia
uns três grupos de pagode, mas ninguém os entrevistou. Uma aluna
do Instituto de Educação que estava presente informou que achava
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que
era
no
próprio
Instituto,
onde
havia
grupo
de
pagode,
acrescentando, inclusive, que seu professor de educação física tinha
feito uma apostila sobre samba. Mas um dos diretores do grêmio
estava indo para a Escola Estadual Antônio Prado Junior, e disse
que talvez fosse lá. Finalmente, cheguei ao Antônio Prado Junior e
a diretora confirmou-me a reportagem 6, dando-me uma cópia. Ou
seja, todos os colégios daquela região, que são colégios importantes
que
recebem
alunos
dos
locais
mais
variados
da
região
metropolitana do Rio de Janeiro, tinham grupos de alunos tocando
pagode. Como se pôde perceber, a cultura da escola nestes colégios
estava atravessada por este tipo de manifestação cultural. Minha
hipótese era que, tal como estes, muitos outros colégios podem
constatar esta presença na cultura da escola e, muito possivelmente,
isto se daria nos bairros com tradição de samba.
O samba é, para o Brasil, juntamente com outros símbolos,
uma marca da brasilidade. Tanta importância tem o samba para o
5
O ter mo p a go d e u sa d o ne s te c a so , n ã o s i g ni f ic a n e c e s sa r ia me n te o “ g ê n e r o ”
mu s i ca l de no mi nado pe la míd ia. P a gode é fes t a co m sa mb a e t a mb é m se us a
p a r a d e si g n a r r o d a d e s a mb a .
6
O s a l u no s d o Co lé g io E s tad u a l P r a d o J u nio r f a z ia m u m p a go d e no b a r d a
e sq u i na to d a se x ta - f e ir a e a d ir e to r a p r o p ô s q u e fiz e ss e m d e n tr o d o p átio no
ho r á r io d e 1 2 :0 0 a s 1 2 :5 0 h. T r a t a - se d a r e p o r ta g e m d e Ní v ia C AR V AL H O, “ No
colé gio e ao so m da b at uc ada”, O Glo b o , S e g u n d o Cad er no , 1 5 /0 5 /1 9 9 9 .
16
contexto brasileiro que, entre outras coisas neste país continental de
rica e variada cultura musical, é o ritmo reconhecido como música
de caráter nacional. Na língua portuguesa, é o único ritmo que é
transformado em verbo e, a despeito de sua intransitividade
(Koogan/Houaiss, 1995), ele fala a vida, como nos diz Sodré (1998,
p.44):
Essas características semióticas fazem da letra do samba
tradicional um discurso transitivo. Em out ras palavras, o texto
verbal da canção não s e limita a falar sobre (discurso intransitivo)
a existência social. Ao contrário, fala a existência, na medida em
que a linguagem apar ece como um meio de trabalho direto, de
transformação i mediata ou utópica (a utopia é também uma
linguagem de transfor mação) do mundo – em seu plano de relações
sociais.
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O verbo é flexionado e complementado: eu sambo, tu sambas,
ele samba na Portela... eu sambei com ela... eles sambaram que é
uma beleza... tu sabes sambar?... nós sambamos a noite inteira...
Dos outros ritmos, diz-se, eu danço baião, eu danço tango, eu danço
forró, eu danço rock, eu danço soul, eu danço funk... O samba está
tão presente em nossa cultura, em nosso cotidiano, que foi
incorporado ao português falado no Brasil com um léxico completo.
Popularmente se diz: “isso dá samba”, quando o assunto pode
acontecer. Ou então, “eu não faço isso porque senão eu vou sambar,
malandro”, no sentido de que vai ficar de fora da questão; “nós
vamos pro samba no sábado”, ou seja para um local onde se toca
samba; “ele é um grande sambista”, diz-se de alguém que é ótimo
compositor ou ritmista (instrumentista de percussão) ou passista
(dançarino)
de
samba.
Qual
é
a
tua
profissão?
“Ritmista
profissional”, responde David do Pandeiro, também compositor, de
cor parda, nascido em 1934 (Lima, 1999b, p.113), isto é, toca
instrumento do ritmo samba. É tão emblemático, que se fala em aula
de dança de salão, de tango, de rumba, em escola de música em
geral, mas no samba, é escola de samba.
O carnaval brasileiro, que é uma festa pagã com origem no
calendário religioso, não tinha samba (Cabral, 1996; Freyre, 1999).
17
Mesmo diante da discriminação a que eram submetidos os negros e
mestiços no Rio de Janeiro, o carnaval foi conquistado pelo samba
(Lima, 1999a; Cabral, 1996; Tinhorão, 1969.) e hoje é sinônimo de
Escolas de Samba 7, não sendo possível desvincular uma coisa da
outra. Mas o samba não se resume às Escolas de Samba e ao
carnaval, ele ocupa outros espaços e está presente o tempo todo.
Enfim, o samba invade outros ambientes de tal maneira que
não há como, na cidade do Rio de Janeiro, pensar em ser carioca
sem imediatamente pensar em samba. É o que diz O samba é
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carioca 8, de Oswaldo Silva, gravado por Carmem Miranda em 1934:
...Ai, que alegria
De quando o samba é brasileiro
Desafia todo mundo
E na cadência é o pri meiro
quando ele é carioca
Corre o mundo e não é sopa
É ouvido e é visado
E desacata até na Eur opa...
O samba, no dizer de Noel Rosa, não tem tradução. É um dos
fatores reconhecidos para a construção do que entendemos, em
geral, por identidade brasileira (Vianna, 1995) e, mais ainda,
identidade carioca.
Mas, esta questão é mencionada nos livros didáticos? A
história das Escolas de Samba, à semelhança de como é tratada a
Semana de Arte Moderna de 1922, tem alguma relevância nos textos
de História? E como a escola brasileira, mais especificamente a
escola carioca, vê esta história e esta construção identitária? Se,
como aponta Garcia (1995), vivemos numa sociedade multicultural
mestiça, a escola pode dar uma contribuição para o desenvolvimento
da auto-estima do aluno e a afirmação de sua identidade, se levar
em conta a cultura da qual emerge?
7
Ai nd a q ue e m o utro s e s tado s co mo B a hia, P er na mb uco , Ce ará e Mar a nhã o , por
ex e mp lo , te n h a m o u tr o s tip o s d e fo l ia s c ar na va l esc a s co mo ma n i f es ta çõ es ma i s
i mp o r t a nte s, a s E sco la s d e S a mb a ma r ca m p r e se nç a.
8
OS G R AN DES S AMB A S D A HIST Ó RI A, CD 2 1 , fai x a 4.
18
Quando teóricos europeus, estadunidenses e canadenses falam
do respeito às diferenças na escola, às identidades minoritárias,
estão se referindo a uma situação em que maiorias étnicas – em
termos numéricos e nas relações de poder – desconsideram a cultura
das minorias. No caso do Brasil, onde ainda vivemos o mito da
“democracia racial”, o preconceito e o racismo, que mesmo quando
sutis são eficazes na opressão, têm conseqüências graves na escola
(Cavalleiro, 2000; Hasenbalg, 1987; 1990, entre outros). Na cidade
do Rio de Janeiro, a cultura do samba, reconhecida por suas raízes
afro-brasileiras e pela sua inserção na população carioca, pode
contribuir para uma afirmação identitária e, ao mesmo tempo,
desenvolver um processo de elevação da auto-estima dos alunos
afro-brasileiros? Esta é uma questão pertinente porque se trata de
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parte da cultura de uma significativa parcela da população e não de
uma minoria 9, ao contrário dos debates europeus e estadunidenses.
Candau (1998a) constata no relatório final da pesquisa
Cotidiano escolar e Cultura(s): desvelando o dia a dia... a
dificuldade de a escola lidar com a diferença e, como nos espaços
de conhecimentos sistematizados, como a sala de aula distancia-se
da cultura social de referência dos alunos, o que não favorece
processos
de
interculturalidade
(Candau,
1998b)
e
pode
ter
conseqüências negativas para a auto-estima dos alunos.
Forquin (1992), em seu texto “Saberes escolares, imperativos
didáticos e dinâmicas sociais”, comenta as relações que podem
existir nas sociedades contemporâneas entre o “campo escolar” e o
“campo social”, que chamam atenção para o “aspecto arbitrário, o
caráter ‘socialmente construído’ das cartografias cognitivas que
subjazem à configuração das matérias ensinadas” (Forquin, 1992,
p.40).
Assim,
o
modo
como
são
selecionados,
classificados,
transmitidos e avaliados os saberes ensinados, corresponde à
maneira como está organizado o poder dentro de uma sociedade e é
uma forma de garantir o controle social dos comportamentos
9
Aq u i no s r e fer i mo s a o ter mo mi n o r i a no se u se n tid o n u mé r i co e não d e
r e la ç õ e s d e p o d e r .
19
individuais. Quando penso na relação cultura do samba e escola,
penso no questionamento desta construção.
As questões que assinalo me levaram a concretizar a pesquisa
de campo numa escola no bairro de Oswaldo Cruz, subúrbio da
cidade do Rio de Janeiro. Este bairro tem uma ligação histórica com
o samba, como já mostrava Noel Rosa em 1935, com o samba
Palpite Infeliz (Máximo e Didier, 1990, p.372),
...
Salve Estácio, Salguei ro, Mangueira,
Oswaldo Cruz e Matriz
Que sempre souberam muito bem
Que a Vila não quer abafar ninguém
Só quer mostrar que f az samba também...
Neste bairro nasceu a Escola de Samba Portela e sempre foi
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local de moradia de muitos sambistas, assim como freqüentado por
muitos integrantes deste universo. Várias atividades ligadas ao
mundo do samba, como as rodas de samba (pagodes), ocorreram e
ocorrem em Oswaldo Cruz.
Dentro da perspectiva de levar em consideração a cultura
social de referência dos alunos, escolhi fazer um estudo em uma
escola do bairro, de maneira a verificar como se relaciona a cultura
escolar/cultura da escola com o que chamo de cultura do samba,
esta última presente desde a década de 1920 naquele bairro (Silva e
Santos, 1989).
Desta forma, outras questões estavam presentes no momento
de entrar em campo: as escolas do bairro conhecem a cultura
historicamente ali produzida? Existe alguma relação entre as
culturas acima citadas? Se existe, em que termos ela se dá? É
possível uma incorporação de elementos da cultura do samba pela
cultura escolar? Existe ou já existiu alguma tentativa no sentido
desta incorporação e como está ou foi o processo? No caso da
cultura da escola existem exemplos de outros colégios, citados
anteriormente, de uma relação entre a cultura da escola e a cultura
do samba. Esta relação, se existe, potencializa, tal como concluí em
minha dissertação (Lima, 2001), o processo de aprendizagem? Qual
20
a relação entre a cultura escolar/cultura da escola e a cultura social
de referência do aluno, na formação de sua identidade? E se não
existe relação, o que impede ou não incentiva esta relação?
A escola é reconhecida também como local de socialização
que se dá de forma variada entre os atores participantes dela, mas
que nem sempre consegue romper a distância entre corpo docente,
funcionários e os alunos e suas famílias. Uma das características da
cultura do samba é fomentar a socialização das comunidades onde
existe. Isto de fato ocorre?
Um olhar no estudo da escola
Ao discutir as possibilidades de estudo sobre a escola,
Canário (1996), faz um alerta com relação ao que ele chama de
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“realismo
ingênuo”.
De
fato,
podemos
pensar
que
há
uma
“realidade” objetiva, independente de nosso olhar sobre ela. Pode-se
pensar também que para ter acesso a essa “realidade” basta fazer um
estudo para conseguir alcançá-la. A ingenuidade apontada pelo
autor, conseqüente desta forma de pensar, é acreditar poder chegar a
uma correspondência direta “entre o mundo da realidade objetiva e
o mundo dos objetos teóricos e conceituais, criados a partir da
percepção
mas
dela
se
autonomizando”
(op.cit.,
p.126).
Tal
correspondência não existe pois a percepção do “real” é uma
construção conceitual. Assim, não existe o real, mas várias
percepções do real.
No processo de construção do objeto de estudo é fundamental
buscar articulações que possam dar frutos através de diferentes
níveis de análise, como Canário (1996, p.128) adverte:
O enfoque no estabel ecimento de ensino, se for acompanhado de
uma subesti mação do contexto estrutural, mais vasto, em que se
insere, pode conduzir a um isolamento artificial que, como afir ma
Madureira Pinto, encerra o risco de um fechamento do campo
analítico nas práticas de investigação.
Para ele, falar em tomar a escola como objeto de estudo não é
apenas adicionar ou alargar formas de estudo, mas sim uma “nova
21
perspectiva de investigação” (op.cit., p.141). Neste caminho ele a
vê como “ponto de entrada” para re-configurar temas e áreas
clássicas. Para este autor, o interesse surgido pelo relacionamento
entre a escola e o contexto local foi possível quando se deixou de
ver os fenômenos escolares como algo próprio ou circunscrito ao
território escolar e à relação professor-aluno. Ele esclarece que
“este
novo
ângulo
de
análise
decorre
da
consideração
do
estabelecimento de ensino como uma totalidade, um sistema aberto
que realiza trocas permanentes com seu meio ambiente” (op.cit.,
p.142, grifo meu). A mesma preocupação apresenta Rui Gomes
(1996), ao questionar a contradição que pesquisadores apresentam
entre macro-micro.
Realmente, a escola não é uma ilha. As trocas acontecem
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independentes de serem desejadas ou não. Se tomarmos o caso do
Brasil, particularmente em cidades grandes como Rio de Janeiro, as
relações são estabelecidas, para o bem e para o mal. Assim,
podemos levar em consideração pesquisas como a de Eloísa
Guimarães em Escolas, Galeras e Narcotráfico (1998), se quisermos
um exemplo de tensão exacerbada entre a escola e os grupos ligados
ao tráfico, ou o estudo de Filippina Chinelli em O projeto
pedagógico das escolas de samba e o acesso à cidadania – o caso
da
Mangueira
(1993),
para
uma
relação
onde
as
pontes
se
estabelecem entre a comunidade e um projeto pedagógico que se
relaciona com a Escola de Samba.
Como foi dito anteriormente, o estudo da escola deve superar
o realismo ingênuo. É a partir de uma construção teórica e
conceitual acerca do mundo material e a representação que temos
dele é que podemos recusar uma visão substancialista da realidade.
O processo de construção realizado pelo investigador o leva a
diferenciar o objeto social e o objeto científico (Canário, 1996).
Dessa maneira, o objeto científico é uma relação e não um “ser”. O
que implica reconhecer que a escola pode ser objeto de estudo de
vários ângulos teóricos diferentes.
22
Canário (1996), em seu balanço sobre pesquisa na escola,
chama atenção para a necessidade de reequacionar a dicotomização
que normalmente se faz entre os fenômenos de socialização e de
escolarização.
E
acrescenta
uma
observação
particularmente
importante: “O estudo de processos formativos de natureza não
formal e informal, que ocorrem no interior do estabelecimento de
ensino, emerge como uma perspectiva de investigação pertinente e
fecunda” (op.cit., p.143, grifos meus).
Desse
modo,
o
balanço
de
Canário
(1996)
realça
as
possibilidades de desenvolver estudos em uma escola, exatamente
buscando o “estabelecimento de ensino” como uma “porta de
entrada” que permita ver as relações existentes entre a escola e seu
meio ambiente, para ajudar a entender os processos interrelacionais
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que estão em curso na escola pública.
Derouet (1996) faz uma reflexão sobre as mudanças ocorridas
na França na definição dos estabelecimentos de ensino como objeto
científico. Explica que nos anos 1980 o interesse pelo “local”
enfrentava objeções pois o entendimento era que só explicações
totalizadoras eram possíveis. Diante disso, para fugir ao embate, o
caminho passava a ser estudar o “efeito escola” através das
interpretações dos atores.
Nos anos 1990, do ponto de vista da investigação, o “efeito
escola” é marginalizado e busca-se outro ponto de partida. Nesta
busca, Derouet toma de outro autor (Robert Ballion), a analogia dos
estabelecimentos
de ensino
secundários que são
vistos
como
“cidades políticas”, como forma de desenvolver um outro olhar.
Nestas “cidades” são concretizadas políticas educativas e os atores
lidam com exigências contraditórias. A adequação entre princípios e
a situação real devem ser debatidas pelos atores. O acordo está no
centro da questão da “cidade”. Assim, evita-se a totalização que
sublima o “local”, ao mesmo tempo em que não faz do “efeitoescola” um impedimento de pensar a escola de modo relacional. A
escola, portanto, não é um dado adquirido, não existe como unidade
social, mas como local de desordem e contradições que está o tempo
23
todo em relação com o mundo. Neste olhar, há que se buscar em
várias áreas disciplinares o auxílio para melhor realizar o estudo.
Ao pesquisar a escola como um local de sociabilidade,
devemos ressaltar o fato que a escola é um local de socialização e
construção de saberes. Charlot (2001, p.18) entende que daí resulta
uma relação institucional com o saber, como explica:
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Os obj etos de saber existem para os indi víduos, mas também para
as instituições (entendendo por instituição não só a escola, como
também a família, uma profissão, etc.) . Quando um indi víduo
aprende no seio de uma instituição, ele só poderá ser “bom aluno”
caso se adapte à relação com o saber def inida pela instituição
(pelo papel que ela atribui a esse saber, pela organi zação do
currículo e das práticas de ensino, etc.). Entretanto um indi víduo
pertence a várias instituições (por exemplo, à família e à escola),
cuj as relações com o saber, com este ou com aquele saber, podem
ser diferentes.
O que significa que a escola não é apenas um local de inter-relações
de saberes, mas “também um lugar que induz a relações com o(s)
saber(es)” (Charlot, 2001, p.18, grifos meus). Isto é particularmente
importante quando reconhecemos a existência de inter-relações
entre culturas no espaço escolar. Estas “outras” culturas têm
relações com o saber diferentes da escola. No caso desta pesquisa,
em que a cultura do samba é colocada como uma das culturas
possíveis de estar presente no espaço escolar, afirmo, com base em
pesquisa anteriormente realizada (Lima, 2001), que esta cultura tem
uma relação com o saber diferente da cultura escolar.
Charlot chama atenção para um entendimento fundamental no
processo investigativo: “entrar em um saber é entrar em certas
formas de relação com o saber, em certas formas de relação com o
mundo, com os outros e consigo mesmo. Só existe saber em uma
certa relação com o saber” (Charlot, 2001, p.21). Isto nos leva a
buscar perceber que relações e com quais saberes a escola tem em
sua prática social.
Do ponto de vista de minha pesquisa, quais são os saberes em
que quero entrar? Aqueles que estão presentes no conceito de
cultura escolar e cultura da escola, por exemplo. Mas não só nestes
24
saberes. Também naqueles que estão presentes no conceito de
cultura
do samba,
que
sinteticamente podemos
definir
como
costumes, práticas, saberes, rede de significados, ligados à cultura
popular, especificamente ao gênero musical samba, tais como
apresento no capítulo dois.
Dessa forma, dedico um capítulo da tese para a discussão
conceitual dos conceitos de cultura escolar/cultura da escola e
cultura do samba, em virtude da tese estar discutindo as relações
entre estas culturas no espaço escolar. Contudo, não poderia deixar
de fazer menção ao currículo e à proposta pedagógica, que fazem
parte da espinha dorsal da cultura escolar e um dos fatores que
diferenciam a escola em seu papel educativo.
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Os caminhos trilhados
Minha experiência em pesquisa, levou-me a utilizar os
métodos e instrumentos com os quais já tenho alguma experiência 10,
como em minha pesquisa para a dissertação de mestrado (Lima,
2001) e do GECEC/PUC- Rio/CNPq (Candau, 1998a e 2003b), onde
trabalhei com entrevistas e observação de campo. Portanto, a
utilização destas técnicas citadas é fruto de um percurso de pesquisa
que tenho desenvolvido.
Nesta pesquisa investiguei
a cultura
escolar/cultura
da
escola, o contexto social de referência dos alunos, em particular a
cultura do samba, procurando observar suas relações no espaço
escolar de uma determinada escola. A observação de campo nos
moldes de uma pesquisa etnográfica, em que o pesquisador é o
principal instrumento de coleta, foi o caminho escolhido. Como
explicam Robert C. Bogdan e Sari Knopp Biklen (1994, p.59), “a
10
Ver Za ia B R AND ÃO , P e sq u i sa e m e d u c a ç ã o , 2 0 0 2 , o tó p i c o “ E n tr e
q ue s tio nár io s e e ntr e vi s ta s”, p . 2 7 -4 3 . A a uto r a c ha ma a t e nç ã o p a r a o fa to d e
q ue , no c a mp o d a e d uc a ç ã o , e sc o l h e - se a p e sq ui sa q ua li ta t i va mu i t as ve z e s p o r
não sab e r o p e r ar c o m o utr o mé to d o . P o s si v e l me n te , r e c o n he ç o , r e c ur so s
e s tat í st ic o s, p o r e xe mp l o , p o d e r i a m vi r a se r d e gr a nd e val ia n e s ta p e sq ui sa ,
ma s t a mb é m não p o d e se c o n st it u ir n u ma me t o d o lo gia o b r i ga tó r ia. M c l ar e n
( 1 9 9 1 , p . 5 3 ) j u st i fi ca nd o s u a p e sq u is a q ua li ta t iv a , a fir ma va e m me a d o s d o s
ano s 1980 : “a p e sq ui sa qua n ti ta ti va ai nd a é ma nt id a co mo a me todo lo gi a q ue
me l hor gara nt e e le git i m a a obj et i vid ade c ie n tí fi ca”.
25
etnografia consiste numa ‘descrição profunda’”, interpretando a
vida, o senso comum, com o objetivo de “apreender os significados
que os membros da cultura têm como dados adquiridos” (ibidem),
acrescentando um novo significado àqueles, que estão fora da
cultura.
Marli André (2002, p.41) aponta os ganhos desta metodologia
para os estudos na educação:
Esse tipo de pesquisa permite, pois, que se chegue bem perto da
escola para tentar entender como operam no seu dia-a-dia os
mecanis mos de domi nação e de resistência, de opressão e de
contestação ao mes mo tempo em qu e são veiculados e reelaborados
conheci mentos, atitudes, valores, crenças, modos de ver e de
sentir a realidade e o mundo.
Uma
das
características
da
pesquisa
com
abordagem
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etnográfica é que o problema é redescoberto no campo (Lüdke e
André, 1986), isto é, apesar do aporte da teoria, evita-se uma
hipótese muito rígida e apriorística. É com o mergulho no campo
que o problema inicial vai ser revisto e aprimorado. O campo, neste
caso, foi uma escola pública assim como o bairro no qual a escola
está inserida.
Dado o papel de atendimento aos setores de baixa renda da
população carioca e seu caráter de rede – com as normatizações
pertinentes – a escola pública de um subúrbio carioca com tradição
de samba satisfazia o critério fundamental de reunir as seguintes
características para verificar a hipótese inicial: estabelecimento de
ensino pertencente a rede pública que estivesse sob orientação
direta de um currículo escolar de responsabilidade do poder público,
e área popular com produção artística/cultural ligada ao samba. O
trabalho de campo teve a duração aproximada de um ano, sendo
constituído
de
observação
direta,
entrevistas
e
a
análise
de
documentos da escola.
Uma etnografia é um esquema de pesquisa de que fazem uso
os antropólogos para descrição da cultura de um determinado grupo
social. No caso dos pesquisadores da educação, o que se tem como
objetivo é o processo educativo. Desse modo, segundo Marli André
26
(2002) os enfoques diferentes podem eximir os pesquisadores da
educação de algumas exigências da etnografia, como a permanência
por longo período em campo e contatos com outras culturas. Assim,
Marli André conclui que na educação se faz pesquisa do “tipo
etnográfico e não etnografia no seu sentido estrito” (2002, p.28).
Em nosso caso, realizamos um estudo de caso de inspiração
etnográfica. Marli André (2002, p.51-52), sintetizando a idéia de
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vários autores, orienta quando o estudo de caso deve ser utilizado:
(1) quando se está interessado numa instância em particular, isto
é, numa deter minada instituição, numa pessoa ou num específico
programa ou currículo; (2) quando se desej a conhecer
profundamente essa instância particular em s ua complexidade e em
sua particularidade; (3) quando se estiver mais interessado naquilo
que está ocorrendo e no como está ocorrendo do que nos seus
resultados; (4) quando se busca descobrir novas hipóteses teóricas,
novas relações, novos conceitos sobre um determinado fenômeno;
e (5) quando se quer retratar o dinamismo de uma situação numa
for ma muito próxi ma do seu acontecer natural.
A observação participante, assim chamada porque reconhece
um certo grau de interação do pesquisador com a situação estudada,
é
instrumento
indispensável
a
uma
pesquisa
de
inspiração
etnográfica porque coloca o estudioso numa relação direta com o
objeto de pesquisa. A imersão no campo traz o contato com as
pessoas e a possibilidade de envolvimento, colocando o risco de se
assumir os significados do grupo, por um lado, embora, por outro
lado,
permaneça
o
risco
de
mantermos
nossas
pré-noções.
Conseqüentemente, a constante preocupação com os limites da
capacidade do pesquisador conhecer o grupo e o questionamento
permanente de suas próprias interpretações torna-se imperativo
(Goldenberg, 1998). Assim, o risco se torna ainda maior quando o
pesquisador tem familiaridade – ou supõe ter – com o campo a ser
investigado.
Deste modo, levei em conta o alerta de Gilberto Velho
(1997b) em “Observando o familiar”, quando fala que em nossa
sociedade há uma “hierarquia organizada” que mapeia e estereotipa:
27
Assi m, em princípio, dispomos de um mapa que nos familiariza
com os cenários e situações sociais de nosso cotidiano, dando
nome, lugar e posição aos indivíduos. Isso, no entanto, não
significa que conhecemos o ponto de vista e a visão de mundo dos
diferentes atores em uma situação social nem as regras que estão
por detrás dessas interações, dando cont inuidade ao sistema.
(Velho, 1997b, p.127)
Tenho freqüentado o bairro de Oswaldo Cruz desde 1992,
convivendo e fazendo amizade com pessoas do bairro, seja nas rodas
de samba, seja nas discussões sobre criação de um centro cultural,
de
um
bloco
carnavalesco
ou
em
aulas
para
pré-vestibular
alternativo, e sou admirador apaixonado do samba e da Escola de
Samba Portela. Esta familiaridade e relação afetiva pode ser vista
como uma dificuldade a mais para a vigilância crítica e o
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distanciamento exigidos pela pesquisa. Recorro a William Foot
White (1971), quando explica que em estudos sobre comunidades,
não se deve levar em conta no estudo apenas a “lógica-intelectual”
pois,
deixam de perceber que o investi gador , tal como seus infor mantes,
é um ani mal social. El e tem um papel a interpretar e suas próprias
necessidades de personalidade que devem ser satisfeitas até certo
ponto, para que trabal he com êxito (White, 1971, p.337) 11
Isto não significa, no entanto, confundir-me com os “nativos”,
como ensina a pesquisa de White (1971) ao receber conselho de seu
informante Doc para não entrar no jogo de apostas (p.351) e de
Vianna (1997, p.15): “nunca tentei sentir o que o ‘nativo’ sente”.
No caso destes dois últimos pesquisadores citados, havia um
elemento facilitador para o distanciamento: ambos os pesquisadores
não tinham envolvimento afetivo com o tema e os “nativos”, pelo
menos a priori. Reconheço que muitas vezes senti dificuldade de
distanciamento, seja nas observações das rodas de samba (para mim
bastante envolventes), seja na escola (na perspectiva de militante
em defesa da escola pública e seus atores). Neste ponto, os exames
11
C f. W il li a m Fo o t W HI T E , o a p ê nd i c e So b r e la e vo l uc ió n d e la ‘So ci e d a d d e
la s e sq ui n as ’ , i n : S o c ied a d d e la s e sq u in a s , 1 9 7 1 , p . 3 3 7 -4 2 3 .
28
de qualificação propiciaram elementos fundamentais para a autocrítica no sentido de re-analisar os dados da empiria.
O uso da entrevista – um reconhecido instrumento para a
coleta de dados em profundidade – a partir de um roteiro
construído, ajudou a evitar que a entrevista se transformasse em
uma
conversa,
como
alerta
Brandão
(2002),
já
que
tem
a
possibilidade de se obter informações ricas sobre o sujeito e seu
contexto. Além do mais, a coleta dos dados do informante não se
constitui num processo de “dar voz” aos entrevistados, pois o
pesquisador é sempre o que “fala”, ao recortar os depoimentos e
escolher o que deve ser mostrado 12.
Foram
entrevistados/as
27
pessoas
no
total:
as
três
professoras que compõem a direção, oito professores/as de 5ª a 8ª
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séries (professoras/es P1 de História, Geografia, Artes Plásticas,
Português, Técnicas Agrícolas, Educação Física (2) e Educação para
o Lar), dois professoras P2 do primeiro segmento (4ª série e da
última fase do Ciclo), uma professora P1 da sala de leitura, uma
professora P2 desviada de função na secretaria, uma merendeira
representante
do
Conselho
Escola
Comunidade
(CEC),
uma
funcionária que mora na escola, três representantes estudantis (duas
da 8ªsérie e uma da 7ª), um aluno da última fase do Ciclo de
Formação, dois alunos/as da 6ª série, um aluno da 8ª série, dois
responsáveis
do
CEC,
e
um
representante
da
associação
de
moradores (presidente).
Os critérios de escolha foram assim estabelecidos: toda a
direção, pela sua importância na vida da escola; professores/as de
disciplinas em que se poderia mais diretamente trabalhar elementos
da cultura do samba, tais como enredo, letra de samba-enredo,
alegoria e fantasia, tradição do samba no bairro, identidade, dança,
culinária etc (Português, História, Geografia, Educação Física,
12
Co n fo r me a p r es e nt a ç ã o d e Ro s á l ia D U ART E e m “ Us a nd o e ntr e vi st as e m
pesq uis as e m Ed ucaç ão : li mi t es e po ss ibi lid ad es” . In: I S e min á r io d e P ó sGra d u a n d o s e m E d u c a ç ã o d a P U C- R io – a c o n s tr uç ã o d o o b j e to d e p e sq ui s a e m
d e b a te , R io d e J a ne ir o , P UC - Rio , 1 7 /0 6 /2 0 0 3 . Ver ta mb é m Za ia B R AN D ÃO,
e m P e sq u i sa e m E d u c a ç ã o , 2 0 0 2 .
29
Educação para o Lar, Técnicas Agrícolas, Artes Plásticas); a
professora de uma turma da última fase do Ciclo de Formação que
apresentava dificuldades de alfabetização, para tentar averiguar se
as estratégias pedagógicas tinham ou faziam alguma relação com a
cultura do samba; uma professora da sala de leitura para averiguar
preferências por leituras/vídeos e tipos de reforços empregados; a
pessoa da secretaria encarregada da merenda e a merendeira para se
perceber como a escola e os/as estudantes lidam com a questão da
alimentação,
parte
importante
da
cultura
do
samba;
os/as
responsáveis que são representantes no CEC, a associação de
moradores como representante da comunidade e a funcionária que
mora na escola para ajudar a se perceber a relação entre a
comunidade e a escola; os/as estudantes com representação (grêmio
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ou
representante
de
turma)
e
aqueles/as
indicados/as
por
professores/as como “críticos” ou “bagunceiros” para perceber suas
relações
com
a
escola.
Os
nomes
dos/as
entrevistados/as
e
daqueles/as citados/as no caderno de campo são fictícios para
preservar a identidade dos atores.
A observação se deu em escola do ensino fundamental
municipal. Tal escolha também levou em conta que, neste segmento,
por abarcar, em tese, estudantes entre 4 e 14 anos, a cultura familiar
tem significativo peso, ao mesmo tempo em que se constrói e se
efetiva, a influência da cultura da rua na vida dos estudantes. É uma
característica relevante para minha pesquisa, visto que trabalho com
a hipótese inicial, com base na pesquisa anterior (Lima, 2001), de
que a cultura do samba está presente na família e no bairro (na rua).
A observação deu-se de várias formas. No âmbito da escola,
no período de outubro/2003 a setembro/2004 (excetuando janeiro,
final de julho e agosto/2004): as atividades extraclasse, constituídas
de atividades dos/as estudantes no pátio (brincadeiras, conversas),
brunch e apresentação de trabalhos no Sesc Madureira; aulas de
Educação Física; aula de História; aula da fase final do Ciclo de
Formação; aula da turma de Progressão; aula de Educação para o
Lar; aula de Técnicas Agrícolas; reunião do Centro de Estudos;
30
Conselho de Classe; reuniões da direção com responsáveis pelos/as
estudantes; trabalho e atividades na secretaria; almoço no refeitório;
e conversas na sala dos professores. O período total de observação
na escola foi de 195 horas. No âmbito do bairro: visitas ao bairro,
rodas de samba do bairro, Dia Nacional do Samba (Pagode do
Trem), feijoada com roda de samba da Velha Guarda da Portela,
Ensaio da Portela, e festa do bloco afro Agbara Dudu. Conhecendo
o
bairro
desde
1992,
posso
considerar
que
as
observações
sistemáticas buscando o conhecimento e entendimento daquele
espaço social ocorreram somente a partir do meu mestrado iniciado
em 1998.
Como exemplifica a prática investigativa de Eloisa Guimarães
(1998), a escolha da escola leva em conta algumas informações
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anteriores sobre as unidades escolares, antes das negociações com a
direção das escolas e a Secretaria Municipal de Educação, já que
ocorrem problemas de desgaste com os profissionais de educação
devido à presença de grupos pesquisando as instituições. Desse
modo, verifiquei que a “Escola Azul” 13 reunia características
importantes para que a escolhesse. Sendo próxima a um conjunto
habitacional do bairro, ela se encontra também nas proximidades da
estrada de ferro, ponto de referência principal daquele subúrbio,
recebendo alunos fundamentalmente oriundos do bairro.
Como uma forma auxiliar de análise dos dados, tentei uma
incursão no campo dos softwares de análises qualitativas, mais
precisamente o software Nudist. Ele possibilita a produção de uma
série de relatórios que auxiliam na construção de categorias de
análises.
Esta tese está organizada em 5 capítulos e esta introdução,
que cumpre o papel de trazer ao leitor a justificativa e os objetivos
da pesquisa, ao mesmo tempo em que discute o percurso deste
estudo, a metodologia empregada e seus instrumentos. Os títulos da
introdução e dos capítulos são uma metáfora do desfile de escola de
13
No me fict íc io par a de si gnar a e sco la e scol h ida.
31
samba no carnaval carioca. No capítulo 1, procuro descrever e
delimitar o contexto da pesquisa, apresentando os dados referentes
ao bairro e à escola onde foi feita a observação. No capítulo 2, faço
uma discussão teórica sobre os conceitos chaves da pesquisa –
cultura escolar/cultura da escola e cultura do samba – a partir de
alguns autores escolhidos pela sua importância no debate desta
temática, de modo a situar o leitor nas discussões dos dados
empíricos. O capítulo 3 apresenta e discute as atividades da escola
pesquisada
na
prática
da
cultura
escolar/cultura
da
escola,
costurando os dados com a literatura e apresentando categorias
criadas a partir da empiria. O capítulo 4 analisa as relações entre a
cultura do samba e a cultura escolar/cultura da escola na Escola
Azul. Finalmente, no capítulo 5, apresento as considerações finais
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em relação às questões que orientam a pesquisa.
2
No terreiro da pesquisa: os contextos
Neste
capítulo
apresentarei
os
contextos
em
que
se
desenvolveu a pesquisa, tanto em seu âmbito específico – a Escola
Azul – quanto em seu âmbito mais amplo – o bairro de Oswaldo
Cruz – onde está situada a escola estudada. Entendo ser fundamental
a descrição deste contexto, na medida em que este estudo de
inspiração etnográfica procura abordar as relações entre a unidade
escolar e a comunidade, bem como analisa as possibilidades de
entrecruzamento de culturas no espaço escolar.
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2.1
Um bairro/subúrbio na cidade do Rio de Janeiro
“B e rç o d o sa mb a e d a s l in d a s c a n ç õ e s ” – d iz a l et ra d o seu h in o o f icia l
– , o R io é a c ima d e t u d o b e rço d o c a r io c a , u m tip o so c io ló g ic o d e
d ifí c i l d e f in i ç ã o ma s d e si mp l es a p re e n sã o . É o g ru p o h u ma n o ma i s
c o s mo p o l ita d o p a í s.
A lé m d e te r s id o p o r ma i s d e d o i s sé c u lo s c a p ita l d a c o lô n ia , d o
imp é r io e d a rep ú b lica , o R io fo i e c o n tin u a sen d o a p o rta p r in c ip a l d o
B ra si l, a tec la d e a c e s s o d o a s so mb ro so c o mp r o mi s so q u e o c a rio c a te m
c o m a a le g ria e a v id a .
Ca rlo s H eit o r Co ny
As palavras do escritor 1 ilustram bem o sentimento daqueles
que amam e vivem nesta grande cidade, apesar da convivência com
inúmeros aspectos da violência presentes no seu cotidiano. De certa
forma é uma visão que se tornou senso comum. Contudo esta visão
idílica do Rio de Janeiro remete-se a uma parte da zona sul da
cidade, que está longe de ser “de todos”. Mas é real o fato de ser um
Rio “de muitos”, tantas são as peculiaridades de cada parte do
território desta cidade.
Robert Ezra Park (1987, p.26), em sua proposta de estudos
sobre a cidade 2, a classifica como um produto da natureza humana,
sintetizando-a: “a cidade é um estado de espírito, um corpo de
1
Carlos Heitor CONY escreveu u ma p eq ue na cr ô ni ca, “O Rio d e mu i to s e d e t o d o s” ,
na a p r e se n t a ç ã o d o A n u á rio E s ta t í st ic o d a C id a d e d o R io d e J a n ei ro , p . 7 , 1 9 9 8 .
2
Ro b e r t E z r a P ARK , A c id a d e : s u g e stõ e s p a r a a i n ve st i ga ç ã o d o
co mp o r ta me nto h u ma n o no meio ur b a no , i n : V E L H O, Ot á vio G. O fe n ô me n o
u rb a n o , 1 9 8 7 , p .2 6 -6 7 .
33
costumes e tradições e dos sentimentos e atitudes organizados,
inerentes a esses costumes e transmitidos por essa tradição”.
Este estudo foi realizado em um bairro carioca afastado do
centro da cidade do Rio de Janeiro, classificado como subúrbio. É
um espaço urbano dentro de uma grande metrópole, uma parte da
cidade que tem suas características específicas. Louis Wirth (1987) 3,
em seu texto sobre pesquisa no meio urbano, diz que devemos levar
em conta não somente as características comuns entre as cidades,
mas dedicarmos atenção às suas variações, explicando que uma
cidade marcada pela industrialização será diferente em termos
sociais de outra marcada pelo comércio.
Deste modo, em uma metrópole, a heterogeneidade que lhe é
peculiar abriga funções especializadas em partes da cidade. Há, por
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esta
característica,
um
agrupamento
de
pessoas
com
relativa
homogeneidade em determinados locais. Assim, o autor se expressa:
O local e a natureza do trabalho, a renda, as características
raciais, étnicas, o st atus social, os costumes, hábitos, gostos,
preferências e preconceitos estão entre os fatores significantes de
acordo com os quais a população urbana é selecionada e
distribuída em locais mais ou menos distintos. (Wirth, 1987,
p.103)
Dessa forma, a maneira como a população carioca está
distribuída, leva em conta os aspectos mencionados por Wirth
(1987). Por exemplo, levando em conta a renda, veremos que as
famílias de maiores rendas estão concentradas fundamentalmente no
“asfalto” da zona sul da cidade:
3
Lo u is W I RT H, O ur b a ni s mo c o mo mo d o d e v id a , i n : V E LH O, O tá v i o G. O
fen ô m e n o u rb a n o , 1 9 8 7 , p . 9 0 -1 1 3 .
34
Re spo n sá v e is pe lo s Do mi c í lio s Pa rt ic ula r e s P er ma ne nt es seg un do a Re nda
No mi na l M édia – os 1 0 bai rro s co m ma ior nú me ro d e re s po nsá v e is co m
r e n da a ci ma de 2 0 sa lá r io s mí ni mo s – 2 0 0 0 4
To t a l
de Nú me ro
de
Cla s sif i
Bair ros
Re spo n sá v e is
Re spo n sá v e is co m
%
cação
pel o s do mi cí lio s
ma i s de 2 0 s. m.
1º
Barra
29.471
17.139
58,15
2º
Co p a c a b a n a
59.306
16.644
28,06
3º
T ij uc a
53.509
13.177
24,63
4º
L e b lo n
17.386
8.404
48,34
5º
I p a n e ma
17.839
8.148
45,67
6º
B o ta fo go
29.138
7.943
27,26
7º
Fla me n go
21.015
6.248
29,69
8º
L a r a nj e ir as
16.396
5.577
34,01
9º
Vil a I sa b e l
25.788
4.140
16,05
6.421
4.055
64,47
10º
L a go a
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Fo nt e: I n st it uto P ere ir a P as so s. Ar ma zé m d e Dado s. P o rt al G eo. B airro s
Car io ca s, d i sp o n í vel e m < h ttp :/ /p o r t al geo .r i o .r j .go v.b r /b ai r r o s car io c as> .
Ace s so e m 2 1 /0 2 /2 0 0 5 .
A população pobre foi, historicamente, empurrada para áreas
distantes do centro ou para os morros da zona sul e zona portuária
(Abreu, 1997). Mas esta população foi e é majoritariamente negra.
Tomando como base os dados nacionais e considerando a população
“branca” e “negra”, esta última constituída segundo o IBGE por
“pardos” e “pretos”, veremos que a desigualdade na distribuição de
renda é enorme em prejuízo da população negra, com conseqüência
na ocupação do espaço. Segundo Ricardo Henriques (2001, p.9),
Os negros em 1999 representam 45% da população brasileira, mas
correspondem a 64% da população pobre e 69% da população
indigente. Os brancos , por sua vez, são 54% da população total,
mas somente 36% dos pobres e 31% dos indigentes. Ocorre que,
dos 53 milhões de brasileiros pobres, 19 mil hões são brancos, 30,1
milhões pardos e 3,6 milhões, pretos. Ent re os 22 milhões de
indigentes temos 6,8 milhões brancos, 13,6 milhões pardos e 1,5
milhão, pretos.
A população pobre e miserável, que como vimos acima, é
majoritariamente negra (pretos e pardos), tem uma ocupação do
4
E st e le v a nt a me n to le v a e m c o nt a 1 5 9 b a ir r o s d a c id a d e d o R io d e J an e ir o ,
cons i dera nd o n e s ta c a t e go r i a c o munid ade s c o mo a da Ro c i nha , J a c a re z i nho,
M a r é e t c . A fo n te d e d ad o s é o C e nso D e mo g r á f ico d e 2 0 0 0 , r e a li za d o p e lo
IBGE.
35
espaço urbano fundamentalmente nas favelas, bairros populares e
subúrbios, ainda que nestes espaços tenhamos a presença de brancos
pobres 5. O alto grau de miscigenação de nossa população sobre o
qual tanto falaram Gilberto Freyre (1999) e Darcy Ribeiro (1995),
influenciado pelo processo histórico de misturas culturais (Bastide,
1971; Moura, 1995; Holanda, 1994 e 1998), não foi suficiente para
eliminar determinadas diferenças quanto a possibilidades de acesso
à renda e poder em nossa sociedade. Desta maneira, acentuou uma
divisão social que associa critérios de renda, poder e cor da pele,
que se expressa também na ocupação do espaço urbano.
A conseqüência metodológica desse fato é adotar a categoria
sócio-política de afro-brasileiros ou negros para se referir a
determinados espaços socioeconômicos e culturais, na perspectiva
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de Máirtín Mac an Ghaill (1995) 6, para referência a determinados
setores da sociedade carioca que não são, efetivamente, somente de
negros ou afro-brasileiros 7. A população do morro da Mangueira no
Rio de Janeiro, por exemplo, pode ser caracterizada como população
afro-brasileira, que reconhecidamente tem significativa presença
naquele morro, ainda que esta não seja a única no local. Ao nos
referirmos desta maneira, estamos pondo a ênfase em função da
população que vive naquele morro historicamente enfrentar o
problema do preconceito racial e o abandono pelo poder público, e
ter uma produção cultural relevante simbolizada no samba. É
ilustrativo para uma representação, entre tantos outros, o samba A
voz do morro 8, de Zé Kéti (José Flores de Jesus, 1921-1999),
5
Ver
And r é Au g u sto P . B R AN D ÃO, e m s e u te xto Ra ç a , d e mo g r a f ia e
ind ic ad o r e s so c iai s, i n : O L I VE I R A, I o la nd a d e ( o r g.) . Re laçõe s ra ciai s e
e d u c a ç ã o : no vo s d e sa f i o s, 2 0 0 3 , a na li sa nd o a s p e c to s d e mo gr á f ico s c r uz a nd o
co m ra ça e i nd icado r e s so c iai s na Re gião Me tro polit a na do Rio d e J a ne iro, e m
que co nfir ma no s sa a fir ma ção.
6
M á ir t í n M AC N A G H AI L L. J ó v e ne s, s up er d o ta d o s y n e gr o s. Re f le xio n e s
me to d o ló g ic a s d e u n p r o fe so r /i n v e s ti g a d o r . I n: W ALF O RD , Geo f fr e y ( o r g. ) . La
o tra c a ra d e la in v e st ig a c ió n e d u ca t iva , 1 9 9 5 .
7
Não h á c o n se n so no u so d e s te s t er mo s. P r e f ir o a fr o - b r a si lei r o , p o i s e s te,
e n te nd o , d es i g na me l ho r o s b r a si le ir o s d es c e nd e nt e s d e a fr ic a no s e o p r o c e s so
d e mi sc i ge na ç ã o d e st e s c o m e ur o p e u s e i nd í g e n a s. Al é m d i s so , e xp r e s s a me l ho r
a rel ação e ntr e a c u lt ura a fri ca na aq ui e ntr ecr uz ada e tra n s for ma da, t o rnad a
b r as ile ira .
8
OS G R ANDE S S AMB AS D A HIST Ó RI A, CD n° 3, fa i xa 1.
36
compositor da Portela, Escola de Samba que não é de morro, criado
no subúrbio de Piedade quando lá ainda não havia favelas, que
define esta relação:
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Eu sou o samba
a voz do morro
sou eu mesmo sim senhor
quero mostrar ao mundo
que tenho valor
eu sou o r ei dos terrei ros
eu sou o samba
sou natural daqui do Rio de Janeiro
sou eu quem leva a alegria
para milhões de corações brasileiros
Mais um samba
Queremos samba
Quem está pedindo
É a voz do povo do país
Viva o samba, vamos cantando
Esta melodia pr’o Brasil feliz
Do mesmo modo podemos dizer acerca de populações de
determinados bairros populares, subúrbios e favelas “do asfalto”. É
o caso do bairro de Oswaldo Cruz, a 16ª estação de trem do ramal
da Estrada de Ferro Central do Brasil (atual Supervia), um bairro
que podemos chamar de popular e afro-brasileiro, pois é habitado
majoritariamente por camadas populares e negras.
A localização do bairro é apontada em vários sambas, entre
eles o de autoria de Mauro Diniz, portelense e morador do vizinho
bairro de Rocha Miranda, Fica depois de Madureira 9, como diz nos
versos:
Fica depois de Madureira,
Antes de Bento Ribeiro,
Onde se canta samba o ano inteiro
Lá o samba é verdadei ro, de raiz
Faz a mocidade mais f eliz...
Uma parte de sua população foi resultado da transferência de
populações oriundas de favelas como a do Esqueleto, situada nos
anos
9
1970 onde hoje
está edificada
a UERJ, resultando na
C f . B et h Car v al ho . C D P a g o d e d e me sa . Un iv er sa l Mu si c, nº 7 3 1 4 5 4 6 6 8 1 2 ,
fa i xa 7 , 1 9 9 9 .
37
construção de grande quantidade de blocos de apartamentos 10. Em
termos raciais, a composição da população do bairro 11 é 51,8%
“branca”,
12,4%
“preta”,
35,1%
“parda”,
0,1%
“amarelo”/“indígena” e 0,5% está agrupada na categoria “outras” 12,
mas a história do bairro permite a afirmação de que há uma
predominância da população afro-brasileira 13.
Ele começou a ser povoado desde as primeiras décadas do
século XX por populações negras, mestiças e pobres (Silva e
Santos, 1989; Fernandes, 2001). O crescimento demográfico e
industrial dos subúrbios a partir de 1930 foi notável, conforme
Maurício Abreu (1997), mas não transformou Oswaldo Cruz em área
industrial, mantendo o bairro unicamente como área residencial 14.
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Com uma população de 35.901 habitantes em 2000 15, tem 54,02% de
10
Co n f o r me d e p o i me nt o d o p r e si d e nt e d a A s so c i a ç ã o d e M o r a d o r e s , ser i a m 2 7
b lo c o s, p e r f a z e nd o u m to ta l d e 4 . 0 8 0 a p a r t a me nto s, c o n str u íd o s se m “ no s ter
dei xado u ma á r e a d e l a z e r ” . E st a i n fo r ma ç ã o, no e nt a nto, c hoc a -s e c o m os
d a d o s r e fer e nt e s a o b ai r r o d o Ce n so De mo gr á f ico d e 2 0 0 0 , d o I B G E : 7 . 7 2 5
c a s a s, 3 . 2 4 0 a p a r t a me nto s e 1 0 6 c ô mo d o s. C f. I n s ti t uto P e r e ir a P a sso s,
Ar maz é m d e Dad o s, P o r ta l Geo , B a ir r o s C a r io ca s, Os wa ld o Cr uz, P o p u la ç ã o .
11
E st es d a d o s fo r a m o b tid o s e m c o n s ul ta d ir e ta a o I B GE , o r i g i na nd o u ma
tab e la d e sa gr e ga d a r e fer en te a o b air r o d e Os wa l d o Cr uz, c o m b a se no C e n so d e
2000.
12
Não e x is te m d a d o s p ub l ic a d o s d e fo r ma d e sa gr e ga d a p o r b a ir r o . O d a d o ma is
p r ó x i mo d e a c e s so d ir e t o é p o r Re giã o Ad mi n is tr a t i va d o R io , ne st e c a s o a XV
d e M a d u r e ir a , q u e a p r es e n ta m o se g u i nte : 5 4 , 6 % ho me n s b r a n c o s e 4 5 , 4 % c o mo
“o u tr a c o r /r a ç a ” ; 5 4 , 9 % d e mu l he r e s b r a nc a s e 4 5 , 1 % d e “o u tr a c o r /r aç a ” . C f.
Ar maz é m d e D ad o s d o I n st it u to P e r e i r a P a s so s , Car a c t e r í s tic a s De mo g r á f ic a s ,
T ab e la 4 . 3 . 6 – D i sc ri m in a ç ã o d a p o p u la ç ã o a g ru p a d a e m b ra n c a o u o u tra
c o r /ra ç a p o r se x o , s e g u n d o a s R eg iõ es A d m in i st ra t iv a s – 1 9 9 1 - 2 0 0 0 .
13
A fo r ma ç ã o d o b a ir r o i ni ci a -s e no fi n a l d o sé c ulo XI X e a o r i ge m e c ul t ur a
d a ma i o r i a d o s i mi g r a n t e s q ue c o mp u n ha m a p o p ul a ç ã o d o b ai r r o a p o n t a m p a r a
e s ta c o ncl u s ã o . No p e r ío d o p ó s -a b o liç ã o a té o i ní cio d o séc u lo XX, mu i to s
vi era m do no rt e e s u l fl umi n e n se ( mo noc ult ur a de ca na de a ç úcar e do ca fé) e
d e M i na s Ger a i s ( c a f é) . E le s c a nt a va m e d an ça va m j o n go e ca xa mb u ,
p r o f e s sa v a m c ul to s a fr o s ( S il va e Sa nto s, 1 9 8 9 ; Fer n a nd e s, 2 0 0 1 ) . Co m a
e xp u l sã o d a p o p ul a ç ã o p o b r e e n e gr a d o c e nt r o e d a s á r e as val o r i z ad a s d o Rio
d e J a ne ir o d esd e a s p r i me ir a s d é c ad a s d o s é c ul o XX ( Ab r e u, 1 9 9 7 ) e n o s a no s
d e 1 9 7 0 , c o m a t r a n s f e r ê nc ia d e p o p u la ç ã o d e f a vel a s d a z o na s u l e no r te
cario ca, co nfor me depo i me nto s do s mo r adore s, o bairro co nti n uo u a receber
mi gra n te s maj o rit ari a me nt e a fro -b r as il eiro s. Sã o est as a s or i ge n s da fo r mação
hi s tó r i c a d a p o p ula ç ã o d o b a ir r o .
14
C f . AN U ÁRI O E st at í st ico d a Cid ad e d o Rio d e J a ne ir o , I n s ti t uto M u ni cip al
P e r e ir a P a s so s, 1 9 9 8 , p . 3 9 6 .
15
O b a ir r o t e ve q ue d a d o n ú me r o hab it a nt e s e n t r e 1 9 9 1 e 1 9 9 6 e m 3 , 5 %. E m
1 9 9 6 r e p r e se n t a va 0 , 6 % d a p o p ul a ç ã o d o mu ni c í p io e t i n ha u ma d e n si d a d e
bruta de 177 ,0 hab / ha, a ma ior de s ua r e gi ã o . P ara e f ei to de co mparação ,
Co p a c a b a n a te m 3 4 0 , 3 h a b / ha e o L e me 1 4 9 , 0 . C f. P OT E N CI AL e co nô mi co d o s
b a ir r o s d o M u nic íp io d o R io d e J a n e ir o , AB E RJ / SB E RJ , 1 9 9 9 , p . 9 e 1 1 .
38
sua população do sexo feminino 16, como ocorre na quase totalidade
dos bairros da cidade do Rio de Janeiro. A distribuição por faixa
etária é vista na tabela abaixo:
P es so a s Re si de n t e s po r G ru po s d e I d a d e e s eu p e r ce n t u al – 2 0 00
0-4
5-9
10-14 15-19 20-24 25-29 30-34 35-39 40-44 45-49 50-54 55-59 60-69
70ou+
Total
2.486
2.423
2.593
3.025
2.930
2.701
2.539
2.793
2.871
2.471
2.147
1.674
2.995
2.253
35.901
100%
6,92
6,75
7,22
8,43
8,16
7,52
7,07
7,78
8,00
6,88
5,98
4,66
8,34
6,28
Fonte: Instituto Pereira Passos. Armazém de Dados. Portal Geo. Bairros Cariocas.
Oswaldo
Cruz.
População.
Disponível
em
<http://portalgeo.rio.rj.gov.br/bairroscariocas>. Acesso em 21/02/2005.
Como se pode ver, se agruparmos por faixa de 10 anos
(considerando-a uma geração), há um certo equilíbrio entre as
faix as etárias, que se situam entre 14% e 16% da população. O
desequilíbrio ocorre com os cinqüentenários, com 10,64%. Também
os sexagenários e septuagenários ou mais velhos estão abaixo da
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0114347/CA
média de distribuição da população no bairro, pois têm 8,34% e
6,28% respectivamente, cerca da metade da participação das outras
faix as. Mas se levarmos em conta que a expectativa média de vida
no país é de 68 anos 17 e que aqueles com 65 ou mais anos
correspondem a 5,84% 18, o bairro apresenta uma população idosa
maior que a média nacional.
Os adolescentes 19 (faixa de 10-19 anos) estão na média
populacional
16
do
bairro,
com
15,65%.
Entre
eles,
os
não
C f. P OT E N CI AL e co n ô mico d o s b a ir r o s d o M u n ic íp io d o R io d e J a n e ir o ,
AB E RJ / SB E RJ , 1 9 9 9 , p . 1 7 .
17
C f . P r o gr a ma d a s N a ç õ e s U n id a s p a r a o De se n vo l v i me n to ( P N UD) . Re lató r io
2 0 0 4 . Di sp o n í ve l e m: < ww w. p n ud . o r g.b r > . Ace s so e m 2 1 /0 2 /2 0 0 5 .
18
C f. I B G E . Ce n so D e m o gr á f i c o 2 0 0 0 . C a r a c te r í s t i c a s ger a i s d a p o p u l a ç ã o .
Re s u ltad o s d a a mo str a. T ab ela s d e r es u lt ad o s. Ta b e la 1 . 1 . 1 – P o p u la ç ã o
re sid en te , p o r se x o e si t u a ç ã o d o d o mi c í lio , seg u n d o g ru p o s d e id a d e – B ra si l.
Di sp o ní v el e m: < www .ib ge. go v.br / ho me /e st at i st ica /pop ul acao >. Ac e s so e m
2 1 /0 2 /2 0 0 5 .
19
Re c o n he ç o q ue o ter mo a d o l e s c e nt e é e sc o r r e ga d io e nq u a nto d e no mi n a ç ão d e
u m p e r ío d o d a v id a . P hi lip p e ARI É S o r e la ti vi z o u e m “I d a d es d a v id a ” i n :
Hi stó r ia S o c ia l d a C ria n ça e d a F a mí lia , 1 9 8 1 , p . 2 9 -4 9 . O ver b e t e
a d o le sc ê n c ia o d e f i ne c o mo o p e r ío d o q ue se i ni ci a a p ó s a p ub e r d a d e ; p o r s ua
ve z o verbet e p u b e rd a d e é d e fi n id o c o mo o p e r ío d o e ntr e a i n f â n c ia e a
adole sc ê nci a... Cf. DI C I O NÁ R I O HO UA I S S d a lín g u a p o r tu g u e sa , 2 0 0 1 . A l ei
8 . 0 6 9 d e 1 3 /0 7 /1 9 9 0 , q ue i n s ti t ui u o E s ta t uto d a Cr ia n ç a e d o Ad o l e sc e nt e
(EC A), e stab ele ce q ue o s adole sc e nt es s ão aq uel es na fai xa de idad e d e 12 a 18
a no s. P o r é m, p a r a e fe i to d o s d a d o s q ue d i sp o n ho , não há p o s sib i li d a d e d e
d e sa g r e gá - lo s na tab e la o r i gi na l.
39
alfabetizados representam 1,09% 20. Ressalto esta faixa em função
das idades em período de estudo, entre o ensino fundamental e
médio, e por considerá-la potencialmente suscetível aos apelos da
mídia e das cultura juvenis. Por outro lado, se compararmos com os
dados do IBGE para o país, verificamos que a população jovem na
faix a de 15 a 24 anos do bairro corresponde a 16,59%, abaixo da
média histórica brasileira (entre 19 e 21%) 21. A faixa referente a 2029 anos – em que os não alfabetizados constituem 0,89% – está na
média do bairro com 15,68% e se trata da população jovem que, no
subúrbio, está majoritariamente trabalhando ou buscando trabalho
(não necessariamente em emprego formal) e fora da universidade,
onde poderia estar se tivesse condições para isto. O compositor João
Nogueira
(1941-2000)
ilustra
bem
esta
situação
do
jovem
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suburbano, que como ele teve de deixar os estudos e muitos sonhos,
no samba Espelho 22 (com Paulo César Pinheiro):
Nascido no subúrbio nos melhores dias
com votos da família de vida feliz
andar e pilotar um pássaro de aço
sonhava ao fim do dia ao me descer cansaço
com as far das mais bonitas desse meu país
...
até que um dia eu tive que largar o estudo
e trabalhar na rua sustentando tudo
assim sem perceber eu era adulto já
...
Em termos de renda, comparando com os 13 bairros da XV
Região Administrativa do município do Rio de Janeiro a qual
pertence, está abaixo dos bairros de Madureira, Piedade, Quintino
Bocaiúva, Marechal Hermes e Bento Ribeiro. São modestas as
rendas do bairro como se vê na tabela abaixo:
20
Foi fei ta uma apro xi ma ção d e uma ca sa ce nt e si ma l. C f . I n sti t uto P ereira
P a s so s. Ar ma z é m d e Dad o s. P o r ta l Geo . B a ir r o s Car io c a s . Os wa ld o Cr uz.
P opul ação. Di sp o n í vel e m < ht tp: //por ta l geo .rio.rj . go v.br/b airro s cari o cas >.
Ace s so e m 2 1 /0 2 /2 0 0 5 .
21
De a cordo co m o s dado s e spe cí fico s. C f. IB GE. P opul ação J o ve m no B r as il .
Di sp o ní v el e m: < www .ib ge. go v.br / ho me /e st at i st ica /pop ul acão />. Ace s so e m
2 1 /0 2 /2 0 0 5 .
22
J o ão N OG UE I R A. C D E sp elh o , Co l e ç ã o O s o r i gi na i s, E M I . N º 8 3 3 4 7 0 -2 ,
fa i xa 2 , 1 9 9 5 .
40
R e spo ns áv e i s p el o s D o m ic íl io s P a rt i cu la r es Pe r m a nen t e s s eg u n d o a
Ren d a No mi na l M édi a em Sa lá ri os M ínim os – b a irro d e O sw al do C ruz
- 2 0 00
Total
At é ½
½ a 1
1 a 2
2 a 3
3 a 5
5 a 10
10-15
15-20
+ de 20
10.355
35
1.031
1.433
1.365
2.071
3.002
778
401
239
Fonte: Instituto Pereira Passos. Armazém de Dados. Portal Geo. Bairros Cariocas.
Oswaldo
Cruz.
População.
Disponível
em
<http://portalgeo.rio.rj.gov.br/bairroscariocas> . Acesso em 21/02/2005.
Tem 57,3% dos responsáveis pelo domicílio percebendo até 5
salários mínimos 23 e 24,1% com até 2 salários mínimos. Percebendo
até ½ salário mínimo estão 0,34% e até um são 10,3%. Mas apesar
de baixos os rendimentos de mais da metade dos responsáveis pelo
domicílio, não se pode caracterizar o bairro como miserável.
Segundo os dados
do
Instituto Pereira Passos 24, 98,83% dos
domicílios tem abastecimento de água canalizada, 85,34% tem
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esgotamento sanitário (+ 10,74% tem fossa séptica). Não há favela 25
e, coerente com os dados apresentados acima, a classificação de
“carente” é refutada pela professora Ângela, da 4ª série da Escola
Azul, que faz trabalhos sociais em sua militância católica:
Uma vez, teve um questionário aqui, aí teve um colega que disse
assim, que a comuni dade aqui era carente. Eu falei: alto lá!
Discordo. Eu pertenço à comunidade. Eu posso dizer que eu vi m
pra aqui eu tinha 5 anos, eu tenho 45. Então, eu mais do ninguém,
eu vi crescer Oswaldo Cruz. Eu não considero Oswaldo Cruz uma
comunidade carente. Eu não considero [os al unos da] Escola Azul,
crianças carentes. Nós temos crianças carentes? Temos. Mas
podemos generalizar? Não! Não, porque... criança carente pra mi m
é aquela criança que não tem ali mentação, que não tem lazer, que
não tem nem o materi al didático básico para vir pro colégio. Eu
conheço comunidades assi m. Eu até conto para as crianças aqui,
para que eles até valorizem o que eles têm, o que é dado para eles
em ter mos dos pais , da escola.
23
E ntr e o s b a ir r o s c o m m a io r n ú me r o d e r e sp o n sá ve i s p o r d o mic íl io s c o m r e nd a
entre 3 a 5 sal ário s mí ni mo s , O s wa ldo Cr uz fi ca e m 43º l u gar . E nt r e a fai x a
ma i s a lt a d e r e nd a , c o m mai s d e 2 0 sa lár io s mí n i mo s, o b a ir r o fi c a e m 7 2 º
lu g a r . C f. I ns ti t uto P e r eir a P a sso s. Ar maz é m d e Dad o s. P o r ta l Geo . B a ir r o s
Car ioca s.
O s waldo
Cr uz.
P o p u l ação.
D isp o n í ve l
em
ht tp : //p o r ta l ge o . r io . r j . go v.b r /b a ir r o sc a r io c a s . Ac e s so e m 2 1 /0 2 /2 0 0 5 .
24
Ib.id.
25
De acordo co m a p ub li cação Fav ela s ca rioca s: í ndi ce d e q ua lid ade ur bana,
e d it a d a p elo I P L AN R I O, Rio d e J a neir o , 1 9 9 7 , não e xi st e c o mu n i d a d e d e
fa v e l a no b a ir r o d e O s wald o Cr uz.
41
O bairro 26 de Oswaldo Cruz passa a existir em função da
estação de trem da Central do Brasil, inaugurada em 1898 quando a
localidade ainda se chamava Rio das Pedras 27, conforme depoimento
do compositor da Velha Guarda da Portela, Jair do Cavaquinho, que
ali nasceu e cresceu. Neste bairro, segundo Marília T. Barbosa da
Silva & Lygia Santos (1989), formado por moradores pobres, muitos
vindos do interior do estado e de Minas Gerais e Espírito Santo,
havia já nos anos de 1910 festas organizadas por pessoas ligadas a
cultos afros. Após as sessões “da Lei” 28, ocorriam animadas danças
com jongo e caxambu. Como freqüentavam estas festas os sambistas
do bairro do Estácio, estes levavam a nova maneira de cantar e
batucar o samba 29, que logo tomou conta do bairro, produzindo
grande número de compositores 30.
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Blocos como o “Ouro sobre o azul”, “Quem fala de nós come
mosca”, “Baianinhas de Oswaldo Cruz”, eram organizados pelos
moradores do bairro para brincar o carnaval no início dos anos
1920. Em 1926 foi fundado o Bloco Carnavalesco Escola de Samba
26
O ter mo “b a ir r o ” e “s ub úr b io ” são c ate go r ia s q ue o s nat i vo s u sa m
ind i scr i mi n a d a me n te . D is c uto a c a te go r ia s ub ú r b io no c a p ít u lo 2 , no ite m A
cu ltu ra d o sa mb a .
27
C f. ta mb é m J o ão B ap t i st a M. V AR GE NS & Ca r lo s M ONT E , A V e lh a Gu a rd a
d a P o r te la , 2 0 0 1 .
28
As se s sõ e s “d a Le i” e r a m a s se ssõ e s o nd e vi go r a v a a “ le i d o sa nto ” d o s
c u lto s a fr o s ( M o ur a, 1 9 9 5 ) .
29
O verbet e O s wa ld o C ru z o de fi ne co mo a ba se terri tor ial d a e sco la de sa mb a
P o r tela . C f. Nei LOP E S. E n c i c lo p é d ia B ra si le ira d a Diá sp o ra A f ric a n a , 2 0 0 4 .
30
P a r a ter mo s u ma id é ia d a p r o f us ã o d e a uto r es , a p r e se n to u ma p eq ue n a li s ta
co m a me nç ão a ap e n as um sa mb a, se m c it ar o p arce iro na mú s i ca, d e
c o mp o s ito r es d e O s wa ld o Cr u z e d a P o r te l a : P a u lo d a P o r te la ( Te s te a o s a mb a ) ,
C hi co Sa n ta n a (S a c o d e fei jã o), Ca nd e ia ( P r eci so me en cont ra r) , Alb e r to
Lo n ato ( O s meu s o lh o s v e r te m lá g r ima s), Ma na céa ( Qu a n ta s lá g ri ma s), Al ta ir
P r ego ( S e is d a ta s ma g n a s), B ub u da P o rte la ( Do c e me lo d ia ) , A ni ce to
( De sen g a n o d ó i) , Al cid e s Ma la nd r o Hi stó r ico (V iv o i so la d o n o mu n d o ) , E r n a ni
Al var e n ga ( D in h e iro n ã o d á ), Al vaiad e ( Ba l ei r o ) , J o ã o z i n ho P e c a d o r a (Lin h a
d e c a n d o mb lé), Anéz io ( Min h a p re ta ) , M ij i n h a ( S e n t im e n to s), Ve nt ur a ( Tu d o
a zu l) , C ha ti m (Mu lh e r in g ra ta ), W al ter Ro sa ( R io c a p ita l e te rn a d o s a mb a ) ,
Ca to ni (I s so n ã o sã o h o ra s) , C a b a na (Ga r ço m) , N o r i v a l R e i s ( I l u A yê ) ,
Ar ge mi ro ( A c h u v a c a i) , e nt r e ta n to s o u tr o s q u e j á se fo r a m, o u q u e a i nd a e s tão
vi v o s, co mo W a ld ir 5 9 ( Leg a d o s d e D. J o ã o V I ) , M o na r c o ( Co ra ç ã o e m
d e sa lin h o ) , J ai r d o Ca vaq u i n ho ( M e u b a r ra c ã o d e zin c o ) , Ca sq ui n h a (S in a l
a b e r to ) , Da vid d o P a nd e ir o ( V a i sa u d a d e) , P ico l i no ( B ra si l p a n teã o d e
g ló r ia s) , Ar i d o Ca v a c o (A la p a e m tr ê s temp o s), Noca d a P o rtela
( Ca c iq u e a n d o ), He itor dos P r azer e s (V e m p ro sa mb a mu la ta ) , Zé Két i ( A v o z
d o mo rro ) , M a ur o D ua r te ( Ca n to d a s t r ê s ra ç a s) , J o ã o N o g ue i r a ( Mi ne ir a ) ,
W il so n Mo r e ir a ( M e l e ma mã o c o m a ç ú c a r) , P a ul i n ho d a Vio la (F o i u m r io q u e
p a s so u e m m in h a v id a ) , Z e c a P a go d i n ho (S P C) e tc.
42
de Oswaldo Cruz 31, que viria ser o embrião da futura Portela. Seu
presidente foi Paulo Benjamin de Oliveira, o Paulo da Portela
(1901-1949), considerado por estudiosos (Cabral, 1996; Silva &
Santos, 1989) como um dos maiores nomes da história do samba e
que tinha como política visibilizar a cultura e a arte de seu povo
para toda a sociedade (Lima, 2001; Silva & Santos, 1989).
Por
influência
de
Heitor
dos
Prazeres
(1898-1966),
compositor bem inserido no mundo da música do centro da cidade,
levado para a escola por Paulo da Portela, a escola mudou de nome
no carnaval de 1929 para “Quem nos faz é o capricho”. No ano
seguinte, modificou o nome para “Vai como pode”, que expressava
bem a situação da escola de samba e de seus foliões. Nos anos de
1920 e 1930 os sambistas, para fugir da perseguição da polícia,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0114347/CA
combinavam a volta do trabalho no trem das 18:04h, na Central do
Brasil. No trem eles “passavam” os sambas, discutiam sobre
assuntos organizativos (Silva & Santos, 1989). É esta a origem do
“Pagode do trem”. Somente em 1935, por sugestão de um delegado
de polícia 32 que não gostava do nome “Vai como pode”, passa-se a
chamar Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela 33. Neste ano,
quando foi realizado o primeiro concurso oficial, a Portela foi
campeã, o primeiro dos muitos títulos da escola de Oswaldo Cruz 34.
31
Sil v a e Sa n to s ( 1 9 8 9 ) b a s e a r a m - s e no s d e p o i me nto s d e An to nio d a Si l va
Ca e ta no , u m d o s f u nd a d o r e s d o b lo c o e d a P o r te la . No e nta n to , é p o u c o
prová v el q ue o no me “esco la de sa mb a ” fo s se us ado naq uel a época, j á que
aquela q ue é co ns idera d a a pri me ira a us ar “esco la de sa mb a ” fo i a Dei xa
Fal ar , d o E st á c io , e m 1 9 2 9 , q ue n u n c a fo i d e f a to u ma e sc o la d e sa mb a , ma s
u m r a n c ho ( Ca b r a l, 1 9 9 6 ) . O ter mo e s c o l a d e s a mb a no s p r i me ir o s a no s d e se u
s ur gi me nto n ã o e r a c o mu m, s e nd o mu i ta s ve z e s no mi n a d a s c o m o b lo c o
c a r na va le sco . T ud o i nd i c a q ue o ter mo p a sso u a se r d e f i ni ti vo a p ó s o p r i me ir o
c o n c ur so o fi cia l d o d is tr ito f e d e r a l e m 1 9 3 5 .
32
B loco s c ar na va le sco s, esco la s d e sa mb a, todo s ti nha m q u e ob ter a utor izaç ão
p a r a o d e s f il e na p o lí c ia ( C a b r a l , 1 9 9 6 ; M o ur a , 1 9 9 5 ; S il v a & Sa n to s , 1 9 8 9 ) .
33
T odas esta s i n fo r maçõ e s co ns ta m no l i vro P a u l o d a P o rte la – tr a ç o d e u ni ão
e n tr e d u a s c ul t ur a s, d e M a r í li a T . B a r b o z a d a S I L V A & L yg i a S ANT OS ( 1 9 8 9 )
34
A P o rt ela é a e sco la d e sa mb a que ma i s veze s conq ui sto u o c ar na va l c arioc a.
São 2 1 t ít u lo s: 1 9 3 5 , 1 9 3 9 , 1 9 4 1 , 1 9 4 2 , 1 9 4 3 , 1 9 4 4 , 1 9 4 5 , 1 9 4 6 , 1 9 4 7 , 1 9 5 1 ,
1 9 5 3 , 1 9 5 7 , 1 9 5 8 , 1 9 5 9 , 1 9 6 0 , 1 9 6 2 , 1 9 6 4 , 1 9 6 6 , 1 9 7 0 , 1 9 8 0 e 1 9 8 4 . C f.
Sér g io C AB R AL , Re s ul ta d o d o s d e s fi le s, i n: A s E sc o la s d e S a mb a d o R io d e
J a n e i ro , 1 9 9 6 , p . 3 7 9 -4 4 8 ; e H ir a m AR AÚJ O , Ca rn a va l : se is mi lê n io s d e
hi s tó r i a, 2 0 0 0 , p .5 6 8 -5 7 0 .
43
Além dos vários blocos que surgiram ao longo dos anos, a
fundação da Escola de Samba Portela marcou a história deste
subúrbio, ajudando a fortalecer e disseminar as atividades ligadas
ao
samba
na
região.
O
samba
se
manteve
como
elemento
constitutivo da identidade deste subúrbio, como já atestava o samba
imortal Palpite infeliz, de Noel Rosa, no ano de 1935. E nos tempos
atuais, os compositores do bairro, Edinho Oliveira, Odé Amin José e
Marquinhos de Oswaldo Cruz, fizeram um samba, Prá Oswaldo
Cruz 35, que define a importância do samba para a identidade daquele
subúrbio:
Vejo o mundo destruído
Pelo selvagem capitalismo
A cultura sucumbindo
Não sei o que vou fazer
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0114347/CA
Por isso eu vou, eu vou
Prá Os waldo Cruz, eu vou
Quilombo do samba
Pra me aculturar
(Venha pra cá!)
refrão
Berço da nossa raiz
Não sou eu
Todo mundo é quem di z
Que a força da nossa razão
Mantém a mente e o coração
Moqueca de peixe é Bahia
Fosfato, cabeça sadia
Assim é o subúrbio do samba
Com a poesia
refrão
Observe-se que o sentido de “aculturar” é entendido como
assumir uma cultura que existe naquele subúrbio, um “quilombo do
samba”, no sentido tradicional de “resistência”, numa espécie de
aculturação necessária para quem não tem a cultura do samba
presente em Oswaldo Cruz.
Assim, a tradição do samba no bairro é um fato inegável,
comprovado por blocos carnavalescos, pela Escola de Samba Portela
35
C f. P r á O s wa ld o Cr uz . E d i n ho d e O li ve ir a . CD N eg ro . Fai x a 5 , nº 9 8 0 4 ,
E t ni a M u si c , 1 9 9 8 .
44
(cuja sede principal só se transferiu para Madureira em 1961 e
mantém até hoje a sede antiga, a Portelinha, em Oswaldo Cruz),
pelas inúmeras rodas de samba do bairro, como o famoso “Pagode
da beira do rio”, o “Samba do Buraco do Galo” 36 e o “Pagode da Tia
Doca”, este último existindo até hoje. Também a fundação do
primeiro bloco afro do Rio, o Agbara Dudu, foi no bairro, sendo sua
primeira festa realizada na Portelinha. E atualmente tem o “Pagode
do trem” ou “Trem do samba”, o maior evento de samba da cidade
fora do carnaval.
Mas com o passar do tempo e o crescimento do bairro, acabou
por receber novas influências, como nos últimos anos o funk 37, as
igrejas
pentecostais 38,
por
exemplo.
Este
subúrbio,
fundamentalmente de moradia, tem em suas manifestações de
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cultura popular, as únicas possibilidades de contato com arte em
seu próprio espaço geográfico. Desta maneira, o samba é uma forte
referência cultural, ainda que não seja a única.
Para termos idéia das condições culturais (no sentido artístico
e intelectual que o anuário estatístico lhe dá), o bairro conta com 8
36
As r o d as d e sa mb a d o “ B ur a co d o Galo ” q ue o c o r r ia m d esd e o f i nal d o s a no s
1 9 9 0 c o m r e g ula r id a d e a té 2 0 0 2 , p r o d uz ir a m t a mb é m u m mo vi me nto mu s i c a l
q ue r es u lto u e m p elo me no s d o i s CD s: Neg ro , d e Ed i n ho Ol i ve ir a, co mp o si to r e
u m d o s líd e r e s d o mo vi me nto , e S a mb a n o B u ra c o d o Ga lo , c o l et ân e a d e
sa mb a s d e vár io s c o m p o si to r e s d o b a ir r o e d e o utr o s l u gar e s, m a s q u e
fr e q üe nt a m o Os wa ld o Cr uz . Es te úl ti mo CD g r a v a d o no p r ó p r io b o te q ui m q u e
d á o no me à r o d a d e s a mb a . C f. C D S a mb a n o b u ra c o d o Ga lo . nº 6 0 7 1 0 ,
M u s it e c , 2 0 0 0 .
37
L í vio S AN SO NE , e m s e u e s t ud o so b r e j o ve n s e m b a ir r o s p o b r e s d e Sa lv a d o r
e Rio d e J a n e ir o , a p o n ta q u e c ad a v e z mai s a c u lt ur a e id e n tid a d e n e gr a s e s tão
rela cio nad as co m a c u lt ur a j o ve m e a i nd ú str ia do entre te ni me nto . C f . “J o ve n s
e o p o r t u nid ad e s: a s mu d an ç a s na d é c a d a d e 1 9 9 0 – var ia çõ e s p o r c o r e c la s se ” ,
in Ca rlo s H ASE NB ALG & Ne l so n d o Val le SI LV A (o r g s.), O r ig en s e d es tin o s:
d e s i g ua ld ad e s so c i a i s a o lo n go d a vid a , 2 0 0 3 , p . 2 4 5 -2 7 9 . Ver ta mb é m M ic a e l
HE RS C HM AN N, O fu n k e o h ip - h o p in v a d em a c e n a , 2 0 0 0 .
38
A proibi ção o u cond e na ção de ati v idad es co mo pago d e ou ba ile fu n k mar ca m
a c u lt ur a j u ve n il d o s p e n te c o s ta is, c o mo a t e st a Lí v io S AN SO NE , o p . c it. ,
p . 2 6 5 : “. . . e o s j o ve n s d as d ua s i gr ej as p e nte co s tai s d a f a vel a, q ue fo r m a m u m
gr up o à p a r te , q u e não b e b e , n ã o fr e q ü e nta o b a il e fu n k, ne m va i à p r aia ”.
M á slo va T ei xe ir a V AL E N Ç A, na d e fe s a d e s ua d i s se r taç ão d e mes t r a d o e m
fe v e r e ir o d e 2 0 0 5 , a p o n ta q ue a l g u n s t r a b a l had o r e s d o b ar r a c ão d a e s c o la d e
sa mb a que era m e v a n gé li cos fazi a m q u e st ão de ma nter uma rela ção
es tr i ta me n te p r o fi s sio n al, p er ma n ece nd o naq u ele a mb ie nt e so me n te p ar a a
r e a l iza ç ã o d o tr a b a l ho , d i fer e n te me n te d o s o u tr o s tr a b a l had o r e s. C f. A escola
d o s t ra b a lh a d o re s d o sa mb a – u m e s tu d o s o b re e d u c a çã o e t ra b a lh o n o
b a r ra c ã o d o I mp ér io S er ra n o , P r o gr a ma de P ó s -Gr ad uaç ão e m Ed uc ação d a
UF F, 2 0 0 5 .
45
estabelecimentos de ensino com um total de 5.586 39 matriculados em
2002 40, mas atualmente, não conta com nenhum local para atividades
artísticas e culturais tais como: biblioteca pública, museu, casa
noturna, teatro, cinema 41, exceto pelas atividades organizadas em
bares e praças para uma roda de samba. Desde 1999 42 foi inserido no
calendário oficial de eventos da cidade o “Trem do samba” ou
“Pagode do trem” (ver anexo), no dia 2 de dezembro (Dia Nacional
do Samba 43), como festividade ligada ao bairro, iniciando na gare da
Central e culminando em Oswaldo Cruz. A festa cresce a cada ano e
tem a participação de milhares de pessoas vindas de várias regiões
da cidade e de turistas estrangeiros.
No bairro vizinho de Madureira há quatro cinemas no
shopping, o teatro do Sesc de Madureira e no bairro de Marechal
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Hermes o teatro Armando Gonzaga, além das Escolas de Samba
Portela e Império Serrano em Madureira, e Tradição em Campinho.
Não há nenhum imóvel no bairro tombado. No entanto, nele está
situada duas das primeiras sedes da Portela: uma em frente à estação
de trem e outra, a “Portelinha”, última sede da Escola de Samba
39
E m 1 9 9 8 e r a m 5 . 2 3 6 a l u no s. C f. An u á r io E st atí s tico d a Cid ad e d o Rio d e
J a ne ir o , 1 9 9 8 , p . 2 0 0 . H á u ma u nid a d e d o Se na c no b air r o v iz i n ho d e Ro c h a
Mira nd a, co m c ur so s de Ad mi ni s traç ão, Mo da e b ele za, Co nse r vação e
zelad o r ia , e Açõ e s e x te n si va s ( e ns i no d e s up l e me n taç ão e /o u e n s ino d e
a r te sa n a to ) , c o m 1 . 3 5 9 ma tr ic ul a d o s e u ma ta x a d e e va sã o e m to r no d e 6 %, C f.
o p . c it . , p . 2 2 1 . E x i ste t a mb é m u ma ON G d e no mi n a d a Ce nt r o Co mu n i t ár io d e
Cap a c i ta ç ã o P r o fi s sio na l P a u lo d a P o r t e l a , f u n d a d a p o r a nt i go s mi li ta nt e s d o
mo v i me n to d e b a ir r o s, q ue mi n i s tr a c ur so s d e in f o r má tic a e ser v iço s so c ia i s
para a co muni dade. C f . M ADU REI R A & O SW ALD O C RU Z , Co l eção B airro s
d o R io , Rio d e J a ne ir o : E d . Fr a hia , [ 2 0 0 4 ] .
40
C f. I n st it u to P e r e i r a P a sso s. Ar ma z é m d e Dad o s. P o r t a l G eo . B a ir r o s
Car io ca s.
Os wa ld o
Cr uz.
E d u ca ção .
D isp o n í ve l
em
< h ttp :/ /p o r t al g e o . r io . r j .go v.b r /b a ir r o sc a r io c a s> . Ace s so e m 2 1 /0 2 /2 0 0 5 .
41
C f . AN U ÁRI O E st at í st ico d a Cid ad e d o Rio d e J a ne ir o , I n s ti t uto M u ni cip al
P e r e ir a P a s so s, 1 9 9 8 , p . 2 5 6 -2 9 2 .
42
Se g u nd o se u s o r g a niz a d o r e s, o e ve n to , e nte nd id o c o mo r e s ga t e d a tr a d iç ã o
d o s s a mb i s ta s p o r te le n s e s, i nic io u - se e m 1 9 9 1 , j á q ue a tr a d iç ã o d e t o c a r e
ca nta r s a mb a no tr e m s e mp re ho uve e fico u b as ta nt e di fund ida no s a no s de
1 9 8 0 c o m o b o o m d o p a go d e . A L e i M u n ic ip a l 2 8 8 6 /9 9 d e ter mi n o u o “T r e m d o
sa mb a ” , ta mb é m c o n h e c id o c o mo “P a go d e d o tr e m” , c o mo a ti v id a d e o fi cia l d o
cale nd ár io d e e v e nto s d a cid ad e.
43
E st a d a t a c o me mo r a ti v a fo i c r iad a e m 2 8 /0 7 /1 9 6 4 , p o r i ni ci at i va d o d e p ut ad o
Fr o t a Ag ui a r , e m ho me n a ge m a o s sa mb is ta s, q ue ha v ia m r e a li za d o o I
Co n gr e s so N a c io n a l d o Sa mb a e ntr e o s d ia s 2 8 d e no ve mb r o e 2 d e d e z e mb r o
d e 1 9 6 2 . C f. An d r é a M o ut i n ho S a nto s GE AD A, P a g o d e d o t re m: s a mb a n d o
p elo s tr ilh o s d a Cen t ra l , Co o r d e na ç ã o d o C ur so d e P ó s -Gr a d uaç ão La to S en su
e m H is tó r i a d o B r a s il P ó s -3 0 , mi meo , 2 0 0 4 . 1 9 p .
46
antes de se instalar em Madureira em 1961. Elas podem ser
enquadradas como parte do patrimônio histórico da cidade a ser
preservado, na medida em que se discute a proposta do Ministro da
Cultura Gilberto Gil, o tombamento do samba como patrimônio da
Humanidade. A Portela é uma das primeiras Escolas de Samba e um
marco da história cultural da cidade.
Esta falta de mais atividades culturais artísticas e comércio é
constatada por meus entrevistados pois vários deles moram lá ou
tem uma relação antiga com o bairro. É o caso da diretora adjunta,
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Arlinda, que fala sobre uma das características de Oswaldo Cruz:
o nosso bairro, é um bairro muito... eu vou puxar sardinha para
meu lado, o nosso bai rro é muito... suburbano, vamos botar assi m,
é um bairro tranqüilo. Eu acho ele muito dor mitório. Nós não
temos indústria, foi uma coisa que não se criou aqui, indústrias,
fábricas, não foi um bairro que se criou para isso. É um bairro
dor mitório. É um bairro onde as pessoas mor am.
Quanto aos transportes, embora não haja nenhum ponto final
ou inicial de linha de ônibus 44, o bairro é estratégico nas vias de
acesso para o comércio de Madureira ou para o centro da cidade,
passando por ali algumas linhas de ônibus que fazem esta ligação.
Contudo, o mais importante é a linha férrea, fator fundamental para
a constituição do bairro desde o finalzinho do século XIX, quando a
estação foi inaugurada. A diretora adjunta da escola onde foi
realizada a pesquisa, assim se expressou sobre a realidade atual do
bairro:
Não, não tenho [opção para di versão], até porque nosso bairro não
tem mes mo. O nos so bairro não tem nada de di versão.
Infeli zmente é uma coisa que falta muit o aqui. A não ser, é
próxi mo mas não faz parte do bairro, têm pessoas que freqüentam
a [Escola de Samba] Tradição, que é Campinho. Mas o nosso
44
E s t a e r a u ma d a s r e i v i nd i c a ç õ e s d e u m m o vi me nto p o p ula r d o b a i r r o ,
c h a ma d o “ Ac o r d a O s wal d o Cr uz ” . E st e mo v i me n to e r a fo r ma d o p o r a ti v i st as d e
a s so c ia ç ã o d e mo r a d o r e s , p a sto r a i s d a I gr ej a Ca t ó lic a , mi l it a nt e s d e p a r t i d o s d e
e sq ue r d a e s a mb i s ta s. S ua s b a nd e ir a s d e l uta i n c l uí a m me l ho r a s p a r a o b a ir r o
e m ter mo s de tr a n sport e, i n fr a - es tr ut ura, ár ea s de lazer , bibl iot eca s e res ga te
da me mó r ia hi stór ica , pri ncip al me n t e co m rel ação ao sa mb a e à E s cola d e
Sa mb a P o r te l a . Or g a ni z av a r o d a s d e sa mb a n a sed e d o A g b a ra Du d u c o m o
no me d e “ Q u ilo mb o d o sa mb a ” e i nic io u o “ P a go d e d o tr e m” o u “ T r e m d o
sa mb a”, a fe s ta q ue c ul mi na no ba irro no Dia Nac io na l do Sa mb a (2 de
d e z e mb r o ) . F u nd a d o no s a n o s 1 9 8 0 , p e r d ur o u a t é o f i na l d o s a no s 1 9 9 0 .
47
bairro mes mo, Oswaldo Cruz, é bem carente. Sempre foi carente.
A gente é carente de comércio, é carente de... A única coisa que
nós não somos carent e é porque nós temos a linha férrea e todo
bairro que tem a linha férrea tem li gação com o Rio de J aneiro
quase que todo. A gente tem uma ligação de transportes, mas no
restante o nosso bairro é carente. A gente não tem uma área de
lazer, nós não temos nada de atrativo no bairro.
Para a diretora Ana, que tem os pais e uma irmã morando num
conjunto habitacional ao lado da escola, “Oswaldo Cruz é um bairro
pendurado em Madureira. O centro mesmo é Madureira, não é
Oswaldo Cruz”. Uma outra representação do bairro, que tem relação
com esta exposta por Ana, é a da coordenadora pedagógica, que
nasceu ali e que trabalha na escola há 16 anos e demonstra poucas
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expectativas em relação ao bairro:
[É um] bairro do subúrbio que modifica muito pouco. Eu acho
superinteressante, Oswaldo Cruz é igual durante os meus 39 anos
(ri). Você entra e sai, vai e volta, vai e volta e está i gual ! A cor do
portão da dona fulana de tal mudou e o filho casou e construiu em
cima ou quem sabe est á morando j unto! Então é muito interessante
você fazer uma leitur a assi m do panorama do bairro. Ali próxi mo
eu tenho morando a mi nha tia, a minha avó. Eu tenho minhas
raízes também em Oswaldo Cruz, só que é um pouquinho mais
longe do centro ali da escola. É Oswaldo Cr uz com a Henrique de
Melo. É um pouquinho mais para Bento Ri beiro. Ali é Oswaldo
Cruz também. Você nota muito isso. A casa da minha tia é a
mes ma coisa, mudou, cresceu um andar , porque o filho mora em
cima, minha avó mor a atrás (ri). A coisa de passar geração em
geração, a coisa só vai fazendo um pouquinho assim [ mostra o
indicador e o polegar para dar a idéia de tamanho mi núsculo]. E os
vi zinhos à sua volta, a maioria é assi m. E não muda e não buscam
melhoras para o bairro. É a tendinha do seu João está ali ainda,
que está velhinho, mas está lá. Essa é uma característica que eu
acho muito interessant e.
Um subúrbio que se modifica muito pouco. Não é bem assim.
Nos anos de 1970 houve modificações importantes: a construção de
27 blocos de apartamentos, com um total de 4.080 unidades,
segundo o presidente da associação de moradores, e a própria
Escola Azul. Mas o que deve ou tem de modificar? É certo que o
movimento de moradores há muito faz várias reivindicações ao
poder público, mas também é certo que a tranqüilidade do bairro é
algo bem visto pelos moradores. É assim que vê Oswaldo Cruz o
presidente da associação de moradores próxima à escola:
48
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Eu acho... eu costumo dizer para as pessoas que o que tem de
melhor aqui é o povo, ordeiro, tranqüilo, a nível de ser humano.
Povo ordeiro, tranqüil o, vi vendo nu ma comunidade que pode di zer
que é família, uma comunidade família. Eu acho que a ní vel de
bairro houve uma pequena evolução na comunidade. Como na
verdade nós estamos cercados entre Madur eira e Marechal, que
opri me até o desenvolvi mento do bairro, porque temos várias
reivindicações tipo teatro, banco, mercado, e nada disso é viável ,
torna-se viável, em função do relacionamento governo – sej a
federal, estadual, municipal – e comunidade. [...] Cultural, a única
coisa que eu vej o de cultura aqui é quando a gente cria alguns
eventos , tipo... dia da Consciência Negra, que o maior evento que
nós temos em Os waldo Cruz hoj e é o dia do Pagode do Trem, que
é o dia nacional do samba. Esse é o maior evento cultural que a
gente pode falar de Oswaldo Cruz. Tem história: Candeia, Paulo
da Portela, Portela – a própria Portela – que costumam dizer que é
de Madureira mas é de Oswaldo Cruz, na prática é de Oswaldo
Cruz. Hoj e está até se mudando esta cultura de infor mação que
Portela é de Madureira. Portela é de Oswaldo Cruz.
A Associação tem f eito alguma atividade?
A ní vel de atividade s ocial nós temos o trabalho de... nós temos o
centro social, que tem o nome de Hugo de Oliveira de Jesus, que é
um garotinho que nos deixou há al gum t empo, e nesse centro
social, que é postinho médico melhor dizendo, nós temos
atendi mento clínico geral, ginecologista, verificação de pressão
arterial, distribuição de remédio gratuito, isso é o que a gente tem
de social. E de recreação, as festividades nor mais que a gente faz,
que é dia dos pais, das mães, dia das crianças, Natal e,
anual mente, a gente faz o “Natal sem fome”.
No dia nacional do samba a Associação participa?
Participa integral ment e. A parte da Associação é a or gani zação do
bairro, das barracas, das apresentações.
Este apreço pela tranqüilidade do bairro é manifestado até
mesmo por alunos considerados “bagunceiros”, como o estudante
Vitor, da 6ª série, de 14 anos e morador do bairro. Ele explica
porque gosta do bairro: “aqui é legal, as comunidades são maneiras.
Porque fora, tem esse negócio de os bandidos mandam, aqui é
diferente. Em outros lugares já são mais agressivos”.
Um bairro tranqüilo e ao lado do dinâmico bairro de
Madureira. Assim é o bairro/subúrbio de Oswaldo Cruz, sobre a
pressão das mudanças e a luta para manter a tradição do samba que
vem desde os primórdios do bairro. E cravada nele, está uma
instituição que tem a função de transmitir cultura: a Escola Azul.
49
2.2
A escola Azul
A escola Azul foi inaugurada em 1977 45, na gestão do prefeito
engenheiro Marcos Tamo yo. É um prédio retangular, as janelas de
basculantes com telas de aço por fora, algumas partes das paredes
laterais e do fundo do prédio com tijolos furados, laje e cobertura
de telhas de amianto. Sua arquitetura é uma marca deste período em
termos
de
construções
escolares:
prédios
retangulares,
caracterizando-se como prédio escolar pelo nome na frente, o muro
e a homogeneidade com os demais prédios escolares construídos
naquele período. Apesar disto, tem espaço razoável, com salas de
aula de tamanho considerado bom pelos/as professores/as para o
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ideal de 25 alunos que, no entanto, abrigam em torno de 35
estudantes. Os corredores têm cerca de 3m de largura e as escadas
2m, com corrimão, e divididas em 2 lances, sendo que entre um e
outro, há uma parede pintada ou enfeitada por alunos sob a
coordenação
do
professor
Orlando
de
Técnicas
Agrícolas.
Certamente alguns dos itens citados foram acrescentados ao longo
da vida da escola, como as telas de aço da janela, os corrimões da
escada, entre outros. A cor externa da escola é amarelo desbotado e
no interior é amarelo na parte de cima das paredes e marrom do
chão até a altura de um metro. Nas proximidades da quadra, as
paredes externas do prédio estão um pouco pichadas (as pichações
somente surgiram ao longo do primeiro semestre de 2004).
Juarez Dayrell (2001, p.147), vendo a escola como um espaço
sócio-cultural e de interação, analisa a arquitetura de um prédio
escolar observando:
A arquitetura e a ocupação do espaço físico não são neutras.
Desde a for ma da construção até a localização dos espaços, tudo é
delimitado for mal mente, segundo princípios racionais, que
expressam uma expectativa de comportamento de seus usuários.
45
A e s c o l a fo i c o ns tr uí d a a p a r tir d e 1 9 7 6 , a te nd e nd o à ne c e ss id a d e d a
população do s bloco s de aparta me nto s, co nst r uídos a toq u e de cai xa par a
receber pop ula ção d e b ai xa r e nd a r e mo vid a de al guma s fa ve la s da zo na s u l e
no r te , c o n fo r me d ep o i m e n to d a p r o fe s so r a Ân g e la, mo r ad o r a d o b a ir r o há 4 0
ano s, e do pr es ide n te da as so c iaç ão de mo radore s.
50
Nesse sentido, a arquitetura escolar interfere na forma de
circulação das pessoas, na definição das funções de cada local.
Salas, corredores, cantina, pátio, sala dos professores, cada um
destes locais tem uma função definida a priori. O espaço
arquitetônico da escola expressa uma determinada concepção
educativa.
O lado de fora do muro:
A escola fica situada atrás de um conjunto habitacional
construído pela COHAB. É cercada, pelo lado da rua, por muro de 2
metros. Atrás tem uma parte que faz divisa com o conjunto
habitacional e outra com paredes, algumas sem emboço, de casas de
alvenaria e seus quintais, sendo que nestas partes muradas a altura
chega a quase 3 metros. À frente da escola tem uma rua e, paralela a
ela, passa um rio canalizado, que recebe esgoto diretamente e lixo,
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por vezes exalando forte mau cheiro. O canal naquele pedaço tem a
largura de aproximadamente 20 metros. Do outro lado do rio,
também tem uma rua paralela e outro conjunto habitacional da
COHAB. Há uma ponte para pedestres e bicicletas em frente ao
portão de entrada da escola. Existe outro portão, próximo, que é
para entrada de carros. Fora os quiosques do outro lado do rio, que
nunca vi funcionando no horário escolar, há apenas um botequim e
uma pequena praça a cerca de 100 metros da escola. Separando-a da
rua, um muro de alvenaria de cor cinza de dois metros. Como
observa Dayrell (2001, p.147):
Um pri meiro as pecto, que chama atenção, é o seu isolamento do
exterior. Os muros demarcam claramente a passagem entre duas
realidades: o mundo da rua e o mundo da escola, como que a tentar
separar algo que insiste em se aproxi mar. A escola tenta se fechar
em seu próprio mundo, com suas regras, rit mos e tempos.
O muro tem emboço de chapisco e até o final da observação em
setembro de 2004, não estava pichado, ao contrário das paredes
externas do prédio escolar. Devido à vigilância constante dos
moradores o muro não é pichado, já que expõe os pichadores aos
olhares atentos da vizinhança.
51
O lado de dentro do muro e fora do prédio escolar:
O prédio da escola fica num terreno com formato de um
triângulo retângulo. No térreo, entre o muro e o prédio da escola, na
parte da frente e no lado direito, há um pátio descoberto, todo
calçado, cimentado e com primaveras plantadas nos cantos, ficando
a maior parte como estacionamento para mais de 10 carros, usados
por professores e visitantes, com portão duplo de zinco aberto por
controle remoto. Este espaço, apesar de não haver nenhum obstáculo
físico, é interditado aos estudantes, que nele não podem brincar ou
mesmo ficar conversando. Quando por distração ou brincadeira
algum deles entra naquele espaço, logo é chamado a retirar-se para
não causar danos aos carros estacionados.
O portão da entrada dos alunos também é de zinco, aberto por
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controle remoto e com porteiro eletrônico. Uma calçada de 10
metros conduz até o portão do pátio gradeado, embaixo do prédio.
Colado ao muro tem um estreito canteiro cercado de cimento, onde
alguns responsáveis sentam enquanto esperam as crianças entrarem
na escola e que também são usados pelos estudantes para conversar.
No lado direito do prédio, está a casa da funcionária que mora na
escola, fazendo parte da estrutura do prédio e o pouco espaço
daquele lado serve como quintal da casa, que é cercado e com um
portão. Pouco espaço também atrás do prédio, que por sua vez está
cimentado e cercado por grade, tendo alguns vasos com plantas
cultivadas pelos alunos sob orientação do professor de Técnicas
Agrícolas.
Do lado
esquerdo
do prédio
está
a quadra cimentada,
descoberta, somente com as traves dos gols. Depois da quadra, o
terreno vai se estreitando, tendo plantas e cerca de seis árvores
plantadas pelo professor de Técnicas Agrícolas e seus alunos há
anos formando um minúsculo bosque. No extremo está a horta,
separada por cerca de tela, plantada e cultivada nas aulas de
técnicas agrícolas.
O lado de dentro do prédio:
52
O prédio da escola tem três pavimentos acima do térreo. O
pátio ocupa a maior parte do térreo, cercado na frente e atrás por
grades até o teto. Todo cimentado, tem placas com pastilhas nas
laterais até a altura de 1,5m do chão, bancos de cimento e cobertura
de mármore nos cantos, bebedouro e lavatório, três recipientes de
coleta seletiva de lixo ao fundo e apenas uma pilastra. Ali as
crianças brincam, fazem a maioria das aulas de Educação Física do
primeiro segmento e Educação Infantil. É onde formam para a
entrada dos turnos e, quando o sol está forte, conversam e trocam
confidências. É permanentemente limpo pelo pessoal da Comlurb
que faz a limpeza da escola. Em seu lado esquerdo, estão as salas de
Técnicas agrícolas (com 4 mesas com 4 cadeiras cada), a sala das
ferramentas agrícolas, a sala de guardar material esportivo e
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almoxarifado, a sala dos funcionários da limpeza, com banheiro. Do
lado direito fica o refeitório, com umas 20 mesas com 4 cadeiras
cada, todas para crianças. Dando para o refeitório está a cantina
desativada, que está gradeada e fechada, servindo como depósito de
móveis e utensílios sem uso. No segundo semestre de 2004 começou
a ser reformada para ser uma sala de atividades da Educação
Infantil. Ao lado desta está a cozinha, equipada com fogões
industriais, geladeira industrial, dispensa e várias panelas grandes.
No primeiro pavimento estão: no fim do corredor à esquerda
de quem sobe a escada, a nova sala de leitura, onde funcionava a
marcenaria 46. A sala está nova em folha, toda pintada, com 8
estantes de aço cheia de livros, uma estante antiga de madeira com
vidro em outra parede, com coleções de livros encadernados e
coleções de fitas de vídeo, uma TV, vídeo-cassete, dois aparelhos de
ar condicionado, um computador, um scanner, mesas e cadeiras. A
escola é pólo e dá atendimento bibliotecário a 34 escolas, mas
nunca vi estudantes de outras unidades escolares usando a biblioteca
46
A sa la da ma rce n ari a ti nha tor no, serra el é tric a, máq u i na de fura r e m
b a n c a d a , ser r a d e fi ta , e s mer il, ser r a tico - t ic o , g u il ho ti n a . T o d o s e ste s
e q u i p a me n t o s fo r a m he r d a d o s d o p er ío d o q u e ha v i a o p r o j e to d e “ E d uc a ç ã o
p a r a o tr a b a l ho ” d a S M E . Ne la e r a m f e i to s s e r v iço s d e r e p ar o p a r a a e s c o la p o r
u m p ai d e a l u no . A m a r c e na r ia fo i d e sa ti v a d a e se u s e q u ip a me n to s fo r a m
tra n s fer id o s p ara o utro l u gar q ue não lo c al ize i.
53
e tampouco membros da comunidade. Duas professoras trabalham na
sala de leitura. Ao lado está a sala de dança com toda uma parede
espelhada, um aparelho de som, ar condicionado: “ganhei do Banco
Real”, explicou-me a diretora. Desse lado do corredor está a sala de
informática com 10 computadores novos, cadeiras acolchoadas e
rodinhas, ar condicionado. Em frente está a sala de múltiplas
atividades, com geladeira, fogão, máquina de costura. Lá os alunos
aprendem com a professora da disciplina Educação para o Lar, a
bordar, costurar, fazer enfeites, cozinhar etc.
A secretaria fica no meio do corredor, bem em frente à
escada. Na sua parede à esquerda há sempre um mural que nos
últimos meses de observação vi fotos das atividades e de estudantes
da Escola Azul, com o título “Azul em movimento”, em alusão ao
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novo projeto político pedagógico que ainda estava sendo construído.
A porta está sempre aberta, tem dois ventiladores de parede,
aparelho de som, dois monitores de vídeo do circuito interno de TV
e o aparelho do sistema de som com microfone, interfone para abrir
o portão, 5 mesas com cadeiras de rodinha, geladeira, aparelho de
telefone e fax, dois armários de aço, duas poltronas, armários
embutidos embaixo das janelas que tomam a parede inteira que dá
para a frente da escola e o portão, permitindo visualizar o entra e
sai de pessoas pelo portão e ver a rua por cima do muro. Ali
trabalham a diretora, a adjunta, a coordenadora pedagógica, uma
auxiliar de secretaria por turno e a responsável pela merenda.
No corredor está instalado um telefone público ao lado da sala
da secretaria. No lado direito do corredor, está o banheiro unisex
dos professores e unisex da Educação Infantil e um bebedouro. Logo
depois vem uma das salas da Educação Infantil, com mesinhas e
cadeiras, enfeites, janelas grandes e ventilador de parede. Do lado
esquerdo fica outra sala de Educação Infantil de organização
semelhante e mural na parede; a sala dos professores, com
ventilador de teto, armário de aço, mesa com 4 cadeiras, 2 sofás de
dois lugares, recipiente para água gelada em galão, mesinha de
centro, cartazes da Secretaria Municipal de Educação (SME) na
54
parede, quadro de avisos, revistas da SME, TV e janela com
persiana.
Por
último,
no
canto
esquerdo,
fica
a
“sala
dos
computadores”, para o trabalho da direção, com ar condicionado,
dois computadores, duas impressoras, mesa com 4 cadeiras. Esta
sala é usada para trabalhos de lançamento no computador, uso da
Internet, pequenas reuniões, pois as diretoras ficam na secretaria.
Numa sala anexa, há outra mesa com cadeira, armário de aço,
máquina fotocopiadora, duas caixas de som grandes e materiais
armazenados para atividades administrativas.
No segundo pavimento, estão 6 salas de aula para o ginásio 47,
uma sala para crianças portadoras de necessidades especiais, com
um
computador,
armário,
mesas
e
outros
apetrechos
para
a
professora realizar seu trabalho, um bebedouro no corredor e 2
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banheiros. Nas paredes sempre há murais com trabalhos dos alunos,
como por exemplo, cópias de obras de arte, feita pelos alunos, dos
pintores brasileiros Di Cavalcanti, Djanira e Portinari.
No terceiro pavimento ficam as salas do primário e a sala de
vídeo com 3 televisores, sendo um de 34’, 2 filmadoras, vídeocassete, DVD, aparelho de som, 4 ventiladores na parede. A sala
pode ser ocupada como um auditório, tem também um pequeno
palco e cortina para apresentações teatrais. Uma sala de informática
que está sendo desativada, mas ainda contendo 2 aparelhos de ar
condicionado, 5 computadores, 2 impressoras, 3 armários de aço,
uma fotocopiadora, mesa e cadeira para professor, 2 mesas para
crianças com 4 cadeiras cada. São 4 salas do primário e dois
banheiros no corredor. Todas as salas de aula da escola têm quadro
branco, ou seja, não se usa giz e sim caneta para quadro. Todos os
pavimentos têm uma câmera no corredor do circuito interno de TV.
Do que foi descrito, vê-se uma escola pública do subúrbio,
com excelente infra-estrutura. A manutenção dos equipamentos e da
estrutura física da escola também é algo que chama atenção. A
47
P a r a a c o mu n id a d e e s c o lar , o ter mo g in á s io d e s i g na o se g u nd o s e g me nto d e
5ª a 8ª sér ie, e o p r im á rio c o r r e sp o nd e a o p r i me i r o s e g me n t o , d a E d uc a ç ã o
I n f a nti l à 4 ª s ér i e . É u ma d e si g na ç ã o q ue r es i st e à s mu d a nç a s d a o r g a n i z a ç ã o
esco lar.
55
Escola Azul, ao contrário do senso comum disseminado, muitas
vezes com a ajuda da mídia, sobre as péssimas condições de infraestrutura e instalações das escolas públicas 48, mostra ao mesmo
tempo uma capacidade de organização que a possibilitou obter os
equipamentos e um grau de respeitabilidade junto à comunidade que
permite manter sua estrutura fora do alcance do vandalismo 49.
O funcionamento da escola e seus atores
A Escola Azul funciona em dois turnos: manhã e tarde. Pela
manhã o ginásio 50 estuda de 7:10h as 11:50h e o primário das 7:15h
as 11:45h. À tarde, o ginásio estuda das 12:50h as 17:30h e o
primário das 12:45h as 17:15h. Obedecendo as normas da SME, que
determinou que a partir de 2000 51 a Organização Curricular de
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Ensino se constitui em Ciclo de Formação e Regime de Seriação. A
Escola Azul em 2004 52 possuía ao todo 30 turmas, assim divididas: 2
48
O s no ti ciár io s dos j o rna i s co ntr ib ue m ba st a n te para a di s se mi n a ção dest e
se n so co mu m, a i nd a q ue no t ici e m c a so s r ea i s. Há u ma ge n er a liz aç ão d e sta
si t ua ç ã o e m q u e i n ú me r o s e xe mp lo s c o n tr á r io s não são le v a d o s e m c o n ta . De
q ua lq ue r mo d o , a v io lê nc ia faz p a r te d a r e a l id a d e d e u ma c e r ta q ua n ti d a d e d e
esco la s, co mo faz da vi da de i número s car ioc a s q ue e st ão lo nge da s e sco la s.
Ma s para t er uma idé ia des ta co ns tr uç ão do s enso co mu m e de co mo ele é
a li me n t ad o , tr a go e xe mp lo s d e a l g u ma s r e p o r ta ge n s: d e p á g i na int eir a
“Vio lê nc ia no c urr íc ulo esco lar ”, c it a nd o 8 u n id ad es e sco lare s (7 no s ub úrb io e
u ma e m C o p a c ab a na ) , O Glo b o , d o mi n go , 2 ª e d . , p . 1 9 , 9 /0 5 /2 0 0 4 ; d e p á gi n a
in te ir a “Ca le nd ár io es c o lar se to r n a v ít i ma d a vio lê n cia ”, O Glo b o , d o mi n go ,
p . 3 3 , 6 /1 0 /2 0 0 2 ; “T r a f i c a nte s i n vad e m e sc o la e a ss a l ta m a l u no s” , O Glo b o ,
sáb a d o , p . 1 8 , 5 /0 3 /2 0 0 5 ; sér ie d e r e p o r ta g e ns d e p á g i na i nt eir a d e no mi n a d a s
“ E s c o la s d o med o ” , r e lat a nd o i n ú me r a s e sc o l as q u e e n fr e nta m a v i o lê nc ia ,
res u lta nd o i nc l usi ve e m mo r te s, “Se m s e gura nça no s corredor e s”, J o r n a l d o
Bra si l, , p . A1 4 , 0 7 /0 6 /2 0 0 5 ; e a i nd a “ E s c o l a d e p r e d a d a a tr a i o tr á f ico ”,
en tre v is ta d e Elo í sa G UIM AR ÃE S so b r e o la nç a me n to d e se u li vr o Esco la,
g a le ra s e o n a rco t rá fi c o , 1 9 9 8 , f r uto d e s ua t es e d e d o uto r a d o , o nd e e s tud o u a
si t uaç ão de aba ndo no e m d u a s e sco la s e a pe ne tra ção do trá f ico no espa ço
esco lar, J o rn a l d o B ra s i l , Cad e r no I d é ia s/ L i vr o s , sáb ad o , p . 6 , 1 3 /0 6 /1 9 9 8 .
49
P ara se ter idé ia co mo es te a spe cto é s i gni f ic at ivo , o ve nd e dor de ro up as q u e
se ma n al me nt e vi s ita v a a es co la co nto u - me q ue u ma d a s e sco la s q ue vi s ita, e m
I r a j á, p r ó x i ma à a v e nid a B r a s il, no fi n a l d e 2 0 0 3 fo i r o ub a d a d u a s ve z e s e m
dez di as .
50
No s ter mo s na ti vo s, g in á s io é o q ue c o r r e s p o nd e à s t ur ma s d o se g u nd o
se gme n to , d e 5 ª a 8 ª s é r ie s, e p ri má r io co mp ree nde a s t ur ma s de E d uc ação
I n f a nti l, t a mb é m c ha ma d as d e E . I . o u Ja rd i m, o Cic lo , a P r o gr es s ã o e a s t ur ma s
de 3ª e 4 ª sér ie s.
51
Co n fo r me S M E P o r ta r i a nº 1 2 /E -D GE D , d e 1 4 /1 2 /1 9 9 9 , p ub l ic a d a no Diá r io
O fic ia l d e 1 5 /1 2 /1 9 9 9 , q ue e s tab e le c e c r itér io s p a r a o r ga ni z a ç ã o d e t u r ma s d o
en s i no f u nd a me n ta l.
52
Co n fo r me o M a n ua l 2 0 0 4 , q ue tr a ta d o p r o j e to p o lít ico p e d a gó g ic o d a E sc o la
Az ul .
56
turmas de Educação Infantil em cada turno, 1 de Educação para
crianças com necessidades educativas especiais por turno, 5 turmas
do Ciclo pela manhã e 4 turmas de tarde, 2 turmas de 3ª e 2 turmas
de 4ª séries por turno, 5 turmas do segundo segmento por turno e
uma turma de Progressão à tarde, esta última sendo organizada pela
primeira vez. As turmas de estudantes com necessidades educativas
especiais são pequenas, com seis alunos/as RM (Retardo Mental) na
turma da manhã estudando juntos e 4 alunos que apresentam
problemas que exigem atendimento individual, como por exemplo o
autismo. O total de estudantes, segundo informou a secretaria, é de
912 alunos(as), o que dá uma média, excetuando as turmas
especiais, de 32 estudantes por turma.
Os estudantes, oriundos em sua maioria do próprio bairro, que
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vivem em “casa [ou apartamento] com saneamento básico, água, eles
têm acesso aos meios modernos de comunicação”, diz Ana. Em
termos raciais, não fiz levantamento, mas salta aos olhos a maioria
esmagadora
de
estudantes
que
poderíamos
caracterizar,
pelo
fenótipo, como afro-brasileiros. Ana compara os alunos da Escola
Azul com outra que trabalhou anteriormente:
Ah, muito grande [a diferença]! Muito grande porque era uma
escola de morro! Era uma escola de crianças que não tinha m
saneamento básico, que tinham que apanhar água para tomar um
banho! Se a gente fal asse de hábitos, de higiene... plenamente a
gente não satisfazia, ele dizia: “tia, eu tenho que descer o morr o
todo para pegar uma lata d’água”, para ele tomar um banho, ele
convi via com o tráfico, ele convi via com as... com as dificuldades.
Uma criança j á convi vendo com as dificuldades. Aqui é diferente!
Aí eu posso te falar daqui. A escola que eu peguei em 1977 e a
escola que eu pego hoj e. Porque quando eu cheguei aqui, esses
apartamentos, a escola tinha sido construída por conta desses
apartamentos, só quem veio habitar ess es apartamentos eram
pessoas que eles estavam tirando da Vila Kennedy...
No entanto, o bairro de Vila Kennedy, tal como os conjuntos
habitacionais em Oswaldo Cruz, foi construído justamente para a
transferência de populações de favelas da zona sul. A diretora
acrescenta um histórico de algumas características de uma parte da
população do bairro:
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57
E muitas vezes eu encontrava aluno, houve caso de nós buscar mos
saber sobre a casa do aluno, em 1978, 1979... 1976, porque a
escola foi inaugurada em 1977, e no vaso sanitário as pessoas
plantavam, botavam comi go ninguém pode, espada de são Jorge,
porque não sabiam, não tinham ainda essa... não sabiam vi ver em
comunidade, não sabiam se or gani zar em condomínios, não sabiam
melhorar o bairro. Hoj e é diferente, hoj e a escola contribuiu muito
para isso, através da criança, através do trabalho comunitário dela
[da escola], mostrando para as crianças aquilo que tinha que levar
para casa, que aquilo era um vaso sanitário, para que ser via... o
rio que passa à frent e da escola, que esse rio não é para j ogar
sofá, cachorro morto... E aí, por isso que a escola, há 13 anos
trabalha meio ambiente. Porque você nota que hoj e, eles moram
em prédios com interf one, todos eles têm televisão, todos eles têm
bicicleta. Quer dizer, é uma comunidade que cresceu, meio
penduradinha, assi m, no cabide de Madureir a, que isso influenciou
muito, a proxi mi dade do comércio, a pr oximi dade do trabalho da
mãe, do pai no comércio de Madureira [tosse]. Você ainda nota
que é preciso esgotar , ainda não esgotou os nossos proj etos, a
gente tem uma missão a cumprir em cada pr oj eto, mas que a gente
vai aumentando e cr escendo cada vez mais, vai indo cada vez
mais, nas discussões da comunidade. Apesar de procurarmos ficar
fora de deter minadas discussões da associação de moradores, de
políticos da área, de pessoas, que a gente tem sempre um discurso
bem... bem pedagógico. Mas a gente ainda acha que Oswaldo Cruz
é um bairro que falta um comércio mais equilibrado, um lazer par a
as crianças, ainda falta isso. Mas são discussões que a gente vai
aos poucos tentando construir.
Mas com as transformações que ocorreram, a Escola Azul
ganhou prestígio na área, atraindo estudantes de outros bairros e de
favelas da região, ainda que a maioria seja do bairro de Oswaldo
Cruz. Aída estima que atualmente 30% dos estudantes da escola
sejam de fora do bairro, tendo alunos/as de algumas comunidades de
favelas dos bairros vizinhos. Em 1999, no diagnóstico contido no
Projeto Político Pedagógico (Transformação II), já era apontado
uma afluência de alunos/as de fora do bairro, mas a escola era mais
homogênea em sua composição, consideram as diretoras Aída e Ana.
Na escola trabalham 20 professoras/es P1 53, 13 P2, uma
professora P2 desviada de função na secretaria, mais 2 professoras
P1 da sala de leitura, perfazendo um total de 36 professores.
53
As/o s p r o f es so r as /e s P 1 são d o se g u n d o s e g me n to ( 5 ª a 8 ª sér ie ) e a s P 2 são
as q u e l ec io na m p ar a o p r i me ir o se g me nto ( Ed uca ção I n f a nt il, Ci clo d e
For ma ção, 3ª e 4ª s érie s, t ur ma d e al uno s/ as c o m nec es s idade s ed uc a cio na is
espe ci ai s e P r o gr es s ão).
58
Várias/os professoras/es têm duas matrículas ou fazem dupla 54.
Completando o quadro de trabalhadores da escola, têm duas
funcionárias
da
secretaria,
além
das
6
merendeiras
e
uma
funcionária que mora na escola. O serviço de limpeza é feito pelos
trabalhadores da Comlurb, portanto não pertencentes ao quadro da
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escola.
54
A d u p la é o ut r o t er mo n a t i vo , u sa d o p ar a d es ig n a r u ma se g u nd a j o r n a d a d e
tr a b a l ho d e u m/a p r o f e s so r / a q u e te n ha a p e na s u ma ma tr íc u la , c o b r i nd o a fa lta
d e p r o fe s so r e m u ma e s c o la.
3
Cultura/s: o samba dos conceitos
Este capítulo traz uma discussão conceitual e situa de forma
sintética as discussões acerca da relação entre escola e cultura/s,
reconhecendo a “centralidade” adquirida pela cultura no mundo
atual. A partir de autores escolhidos, faz um recorte conceitual
através de categorias de análise como cultura escolar/cultura da
escola, ao mesmo tempo em que constrói uma nova categoria
analítica que é o conceito de cultura do samba. Estas categorias
estão na base da análise sobre as relações entre culturas dentro do
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espaço escolar investigado.
3.1
Escola e cultura/s
O
termo
cultura
é
polissêmico
e
se
presta
a
várias
abordagens. Para este estudo interessa seus possíveis usos no campo
da
educação
e
refutar
o
uso
no
senso
comum
como
uma
compreensão enviesada de cultura que encobre relações de poder,
como veremos mais adiante. Antes de tudo cabe recorrer à
etimologia da palavra para principiarmos esta discussão. Cultura
vem do latim cultura,ae, que significa “ação de cuidar, tratar,
venerar (no sentido físico e moral)” 1. Chauí (1996) explica que a
palavra referia-se ao cultivo das plantas, originando o termo
agricultura, e por extensão era usada para referir-se à educação das
crianças e seu desenvolvimento, originando puericultura. Mas
também era o cuidado com os deuses e a ancestralidade, ligando-se
à memória. Segundo Abbagnano (1999) 2, foi a filosofia iluminista,
no século XVIII que significou cultura como civilização, no sentido
1
DI CI O N Á R I O H OUA I S S d a lín g u a p o r tu g u e sa . R io d e J a n e ir o : O b j eti va,
2001. A p ar t ir d o s é c u l o XV I I I , a c o mp re e n são se e st e nd e a c iv il i za çã o, vi nd o
d o ale mã o Ku l tu r, a tr a v é s d o f r a nc ê s c u l tu re, C f. An tô n io Ger a ld o d a C UN H A,
Dic io n á rio E ti mo ló g ico No v a F ro n te i ra d a l ín g u a p o rtu g u e sa, 1 9 9 9 .
2
C f. N ico l a AB B AG N ANO, Di cio n á rio d e F ilo s o fia, verbe te cu ltu ra , p . 2 2 5 .
60
de conjuntos de modo de viver e de pensar polidos, cultivados,
civilizados.
O conceito de cultura foi, até mais da metade do século XX,
usado pelo senso comum e boa parte da academia como restrito às
dimensões das artes e do domínio intelectual de uma certa
quantidade
e
de
uma
certa
qualidade
de
conhecimentos,
estabelecidos como cultura erudita 3 ou “alta” cultura. Ambas as
dimensões (quantidade e qualidade) estão estreitamente ligadas a
um processo de educação recebido, até o advento do iluminismo,
por quem tinha o poder teocrático e/ou econômico e/ou político ou
com estes era bem relacionado. Posteriormente estas dimensões
passam a ser ligadas ao processo de escolarização que se estendeu a
todas as classes sociais. Desse modo, a percepção e o fazer artístico
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e intelectual referendados das classes “altas” constroem “tradições” 4
(Hobsbawn, 2002) em que se encerra a cultura que serve de modelo,
estabelece cânone, recebendo a classificação de “clássica” ou
“erudita”.
Há, nesta compreensão, o que Garcia Canclini (1997, p.162)
chama de “teatralização do patrimônio” 5, de modo a identificar uma
origem “clássica” 6. O que não tem um lastro patrimonial com origem
legitimada fica de fora ou faz parte das “invenções melancólicas das
3
O se n tid o d e no tat i vo d o t er mo e xp l ic ita u ma e sc o l ha p o r q ue c ul tu r a se
confund e co m e sco lar iz ação e, d e ntro de ste pr oces so , ocorr e a le git i m ação d e
u ma concepç ão de c ul t ura , co mo mo s tra m o s verb et es : e ru d i to q ue o u o q u e
te m o u re ve la er ud i ção (p ro fe s so r e. )(roman ce e.), ET IM l at. e ru d itu s,a , u m
‘q ue o b te ve i n s tr uç ã o , c o n he c e d o r , sáb io ’; e e ru d içã o i n str u ção, co nheci me nto
o u c ul t ur a va r ia d a , a d q u ir id o s e sp . p o r me io d a l eit ur a . DI CI O NÁ RIO H OUAIS S
d a lín g u a p o r tu g u e sa . R io d e J a n e ir o : Ob j e ti va , 2 0 0 1 .
4
No se nt id o d e tr a d içõ e s i n ve n ta d a s, d i fe r e n c i ad a s d o s c o st u m e s d a s
so c iedad es dit a s “tradi ci ona i s”.
5
Ap r o p r io a q u i a d i sc u s são d e N és to r G AR CÍ A C AN C LI NI . C f. Cu l tu ra s
Híb rid a s, c ap . 5 , O p o r v ir d o p a s sa d o , 1 9 9 7 , p . 1 5 9 -2 0 4 , d e c o mo o
tr a d i cio n a l is mo se a n c o r a n u m p atr i mô nio d e te r mi na d o p e la s e l it e s , a i nd a q ue
haj a o u tro trad ic io nal is mo q ue b u s ca se an co rar n u m p a tri mô nio d e
“r e si st ê nci a ” q ue ser ia p o p u la r . P a r a mi n h a p e r sp e c ti v a o i mp o r ta n te é o q ue
va i d i f e r e n c ia r u m d o o u tr o : a r e laç ão d e p o d e r s ub j a c e n te .
6
Se g u nd o o ve r b e t e clá s si co [...] 2 r el at i vo à l i ter a t ur a, às ar t es o u à c ul t ur a
da Ant i g uidad e greco -la ti na ( li te ra tu ra c. ) (cu lt u ra c. ) (a rq u i tetu ra c. ) ( tea t ro
c. ) 3 q ue é fie l à trad iç ão da Anti guidade gr eco -lat i na o u aos s e us a uto res [ ...]
4 que ser ve co mo mode lo; e xe mp lar [ ...] 5 a b o na d o o u a u t o r i z a d o p o r a u t o r e s
tid o s co m p ar ad i g ma s [ . . . ] DI CI ON ÁR I O H O U AI SS d a lí n g u a p o r t u g ue sa ,
2001.
61
tradições” (García Canclini, 1997, p.207) que não consegue ser
reconhecido
ou
preservado.
Desse
modo,
entendo
que
a
classificação de folk, de popular, é fruto da distinção de culturas.
Alice Lopes (1999, p.73) explica que “a divisão social do trabalho
engendra a divisão social do saber e da cultura: há os que sabem e
os que fazem, os que têm cultura e os que não têm. E há os rótulos
culturais: cultura popular, cultura erudita, cultura de massas”.
Chauí (1996, p.25), não vê cultura popular como uma
totalidade antagônica à totalidade da cultura dominante, mas ao
mesmo tempo a distingue por um conjunto variado de práticas,
representações e formas de consciência em que está presente um
jogo interno de conformismo, ao mesmo tempo de inconformismo e
resistência. Já Augras (1998, p.9-10), embora relute em adotar a
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diferenciação, tem críticas a este conceito por dar a idéia de
rompimento com a cultura “erudita”, mas o utiliza por considerar
que a chamada cultura popular remete a um “lugar” de produção
cultural.
Sem negar a interlocução entre as culturas, os/as autores/as
citados/as apontam a diferenciação entre as culturas. Elas não só
são
diferentes
mas
também
têm
diferentes
status,
prestígio,
legitimação e, por conseqüência, empoderamento social, ideológico
e político das pessoas ou dos grupos que têm ou produzem uma
determinada cultura: aquela denominada erudita. Esta é imposta aos
demais grupos e à nação pelos mecanismos de poder da classe
dominante. Este foi o caso da língua portuguesa 7, no processo em
que se tornou hegemônica no Brasil.
Sabemos, com Berger e Luckmann (2002, p.175), que
7
A ação dos mi s s io nário s e a i n te gr a ção ao me r cado mund ia l po ss ibi li t ara m à
lí n g ua p o r t u g u e sa s e i m p o r e m to d o o ter r itó r io nac io na l, o q ue ve io a o c o r r e r
só no s é c ulo XI X. Ap e sa r d o s j es u ít a s t er e m p r o d uz id o gr a má tic a s d a l í n g ua
T up i na mb á , a s i mp o si ç õ e s d o mi n i str o M a r q u ê s d e P o mb a l ( 1 7 5 0 -1 7 7 7 ) c o m
r e la ç ã o à o b r i g a to r ied a d e d a lí n g u a p o r t u g u e s a d er r o tar a m a s d e ma i s l í n g ua s no
B r as il. Ve r Luiz C arlo s VI LLALT A, i n “U ma ba bel co lo ni al ”. No s sa H i stó r ia ,
An o 1 , n °5 , p . 5 8 -6 3 , ma r /2 0 0 4 . Se g u nd o Da r c y RI B E I R O, o n h e e n g a tu , a
lín g u a g e ra l b a se a d a n o tr o n c o T up i, e r a ma i s f a l ad a q ue o p o r t u g u ê s a té o
séc u l o X VI I I e s ub si st i u a t é o séc u l o X X , a p a r e c e nd o no Ce n so N a c i o na l d e
1 9 4 0 , c o mo l í n g ua fal a d a p e la p o p u la ç ã o d a r e gi ã o d o r io Ne gr o ( AM ) . C f. O
p o v o b ra s ile i ro : a fo r ma ç ã o e o s e nt id o d o B r a si l, 1 9 9 5 , p . 1 2 3 .
62
a socialização pri mári a é a pri meira socialização que o indi víduo
experi menta na infância, e em virtude da qual torna-se membro da
sociedade. A s ocialização secundária é qualquer processo
subseqüente que introduz um indi víduo j á socializado em novos
setores do mundo obj etivo de sua sociedade.
A escola é um dos mecanismos mais eficientes de socialização
da cultura erudita, em sua forma didatizada, como assinala Forquin
(1992, 1993). Desse modo, nas Escolas de Samba, quando escolhiam
e definiam seus enredos, seus compositores de samba-enredo
recorriam ao conhecimento escolar 8, legitimado e considerado
erudito para falar de nossa história e glorificar personagens da
classe dominante. Como podemos ver nos seguintes sambas-enredo,
a título de exemplo, da campeã Portela e da vice-campeã Império
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Serrano, ambos no mesmo ano de 1957, cantando o mesmo enredo
(Augras, 1998, p.241-242):
Grêmio Recreati vo Es cola de Samba Portela
Legados de D. João VI (autores: Candeia, Waldir 59 e Picolino)
Quando veio para a nação que mais tarde o consagraria
D. João VI no navio majestoso ao passar pel a Bahia
instituiu novos textos abrindo os portos do Brasil
para o mercado universal
8
Dé c io An to nio Car lo s, o M a no D éc io d a Vio l a ( 1 9 0 9 -1 9 8 4 ) , u m d o s
f u nd a d o r e s d o I mp é r io Ser r a no , c o nt a c o mo f e z o sa mb a -e nr ed o T i ra d e n te s,
c o m o q ua l a E sc o la fo i c a mp e ã e m 1 9 4 9 : “. . . P eg u e i u m l i vr o d o p r i me ir o a no
gi n a sia l d a mi n ha f i l h a e fo i na sce nd o o s a mb a T i ra d e n t e s ”. E n tre vi s ta a
Sér g io Cab r al. I n: A s E s c o la s d e S a mb a d o R io d e J a n e i ro , 1 9 9 6 , p . 3 1 4 . Au g r a s
exp li ca a nad a i n g ê n ua b u sc a d o sa mb i st a na c o ns tr uç ã o do sa mb a : “P e lo
d e p o i me n to d e u m sa mb is ta tão r e c o n he c id o e tr a d i cio n a l c o mo Car to l a ,
ver i fi ca -se q u e o c o mp o si to r , a o p la ne j a r um sa mb a - e nre do, r e c orr i a, c o mo
q ua lq ue r p esq u i sad o r a c a d ê mi co , a o b r a s d e r e f er ê nc ia s: ‘o s sa mb a s s ã o u ma
coi sa lo nga e fei ta a ca pric ho , não é? O s uj e ito abre um li vr o , uma hi s tória e,
e n tão , tir a d a í to d a a h is tó r i a e a r r a nj a u ma s p a la vr a s p ar a r i mar ’ ” . ( Au g r a s,
1998, pp .8 1 -8 2 ) E Mo niq u e Au gr a s de i xa c l a ra a re l a ç ã o e n tre a cu ltu ra
esco la r e a fe it u r a d o s s a mb a s -e n r e d o , d e s ta ve z r e fer i nd o - se a Si la s d e
Oli v e ir a As s u nç ã o ( 1 9 1 6 -1 9 7 2 ) , c o n s id e r a d o p e lo s sa mb i st as c o mo u m d o s
ma io r e s c o mp o s ito r es d e sa mb a -e nr ed o , b a se a d o no d e p o i me nto d e s ua vi ú v a ,
E la ne d o s Sa n to s : “ ‘c o mo s e mp r e fa z ia p a r a c o mp o r , e le p e go u u m p ap e l, u m
li vr o d e hi stó r ia d o B r a s il, u ma c a i xa d e fó s fo r o s e fo i p a r a u m c a n to q u ie to d a
c a s a ’. R it mo e me lo d ia são g e r a d o s à ma n e ir a t r a d ic io na l. M as s ã o o s ma n u a i s
d e h is tó r i a o s r esp o n sá v e i s p e l a s u má r ia e s ti li z a ç ã o d a s i n fo r ma çõ e s. Ci o so e m
mo st r a r - se b o m a l u no , o c o mp o s ito r n ã o q ue r d e i xa r e s c a p a r n a d a ” ( Au g r a s,
1998, p. 1 2 4 ) . P ar a me l h o r p e r c e b e r e st a re l a ç ã o , a a utora fa z um l e va nt a me nto
d e s a mb a s -e n r e d o c o ns tr ui nd o tab ela s e a n á l i se s d o s te ma s a b o r d a d o s. Ver
M o n iq ue AUG R AS , i n O B ra s il d o sa mb a - e n red o , o c a p ít u lo V ul to s e
e f e mé r id e s, p . 1 2 1 - 1 4 1 .
63
logo após seguiu o seu roteiro
com destino ao Rio de Janeiro
quando aqui chegou
desembarcou com toda a família real
incomensurável séqüito
vulto de notável mérito
o eminente príncipe regente
Um ano depois sua alt eza ordenou
A invasão da Guiana Francesa
E depois criou com sabedoria
A Academia da Marinha, o Selo Nacional
Escola de Belas Artes, também o pri meiro jornal
Mais tarde o povo acl amou esta figura de grande marca
Unida em cores mil
Viva o grande monarca regente do destino do Brasil
Grêmio Recreati vo Es cola de Samba Império Serrano
D. João VI (Silas de Oliveira, Mano Décio e Penteado)
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Foi dom João VI
O precursor de noss a independência
Belo histórico texto
Esse monarca deixou
Livres os portos
E o comércio do Brasi l
E outros atos importantes
Que o i mortalizaram em serviços relevantes
Esse vulto imortal
Ao regressar a Portugal
Disse ao seu povo
Oh! Que terra hos pitaleira
É aquela nação brasileira
Felicidades perenes eu gozei
Ali eu fui feliz
Ali eu fui um rei!
Mas é preciso ressaltar em relação ao processo de hegemonia
adquirida pela cultura dita erudita, que este não é mecânico ou
automático, e se constrói num jogo de forças em que se apropria de
outras
culturas,
inclusive
subalternas,
para
realizar
a
sua
hegemonia. Mais do que isto, há uma circularidade que permeia a
construção das culturas erudita e popular como nos indica Ginzburg
(1998).
É em processos como estes que, no mundo atual, a cultura
ganha uma “centralidade”, indicando, no dizer de Hall (1997b, p.22)
“como
a
cultura
penetra
em
cada
recanto
da
vida
social
contemporânea, fazendo proliferar ambientes secundários, mediando
64
tudo”. A escola, por sua característica e função, está colada a este
processo. Portanto, tem pleno sentido a afirmação de Forquin (1993)
de que, “incontestavelmente, existe, entre educação e cultura, uma
relação íntima, orgânica” (p.10).
Apesar de concordar com o autor, no entanto, o problema está
em o que vem a ser a acepção de cultura da qual se está falando.
Reconhecendo o caráter polissêmico do termo, Forquin (1993)
apresenta cinco possibilidades de conceituar cultura no vocabulário
da educação: a) a acepção tradicional, normativa, individual,
entendida como “um conjunto das disposições e das qualidades
características do espírito ‘cultivado’” (p.11). É o que se pode
chamar de concepção elitista porque define uma qualidade, uma
diferenciação
em
relação
às
disposições,
competências
e
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conhecimentos de outros espíritos que não sendo considerados
“cultivados”, não são reconhecidos e legitimados; b) a acepção
descritiva,
“considerada
como
um
conjunto
dos
traços
característicos do modo de vida de uma sociedade, de uma
comunidade ou de um grupo, aí compreendidos os aspectos que se
podem considerar como os mais cotidianos, os mais triviais ou mais
‘inconfessáveis’” (p.11). É uma das conceituações usadas nas
ciências sociais, a que podemos acrescentar entendê-la como um
código, sistema de comunicação, rede de significados; c) a acepção
patrimonialista, diferencialista e identitária, “um patrimônio de
conhecimentos e competências, de instituições, de valores e de
símbolos, constituído ao longo de gerações e característico de uma
comunidade humana em particular, definida de modo mais ou menos
amplo e mais ou menos exclusivo” (p.12). Esta visão expõe um
relativismo, encerrando nos limites de uma comunidade particular
ou nação sua concepção de cultura que pode, em sua radicalidade,
negar valores que possam ser entrecruzados, hibridizados; d) a
acepção universalista e unitária, “o essencial daquilo que a
educação transmite (ou do que deveria transmitir) sempre, e por
toda a parte, transcende necessariamente as fronteiras entre os
grupos humanos e os particularismos mentais e advém de uma
65
memória comum e de um destino comum a toda a humanidade”
(p.12). O problema está em quem vai selecionar e o que vai ser
selecionado para ser considerado universal, acabando por excluir
conhecimentos
e
interagem
mesmos
nos
valores
de
comunidades
espaços
geográficos;
que
co-habitam
e e)
e
a acepção
filosófica, que “é um estado humano, isto é, aquilo pelo qual o
homem distancia-se da natureza e distingue-se especificamente da
animalidade” (p.12). Uma compreensão que abrange diferentes
perspectivas mas não estimula refletir mais profundamente sobre o
papel de transmissão cultural da escola.
Estas várias acepções, dentre outras que existem, dão uma
medida das discussões possíveis e necessárias no campo da
educação acerca do processo de escolarização e o papel da reflexão
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sobre a sua relação com a/s cultura/s que durante muito tempo
encontrou-se em
grande medida naturalizado. Desse modo, a
ampliação do uso do conceito de cultura, sua força explicativa e
“seu papel constitutivo ao invés de dependente, na análise social”
(Hall, 1997b, p.32) possibilitam uma crítica à naturalização. É desta
ampliação que nos servimos para discutir as culturas presentes no
espaço escolar.
Entretanto, Cuche (1999) mostra que a ampliação nem sempre
é feita levando em conta a produção científica, servindo mesmo para
uma tática de manipulação de um conceito. Segundo este autor, é o
caso do uso da noção de cultura da empresa 9, que foi adequado
pelas gerências das empresas para domesticar seus trabalhadores na
época da crise econômica dos anos de 1970 (Estados Unidos) e 1980
(França). Apesar do uso da noção ter base antropológica, é usada no
sentido mais contraditório da concepção, pois estabelece uma visão
de cultura imutável, homogênea, preexistente aos trabalhadores da
empresa, exatamente aqueles que seriam agentes na construção da
cultura. O autor aponta que, sem usar o termo cultura da empresa,
vários
9
sociólogos
vinham
estudando
a
cultura
presente
nas
Ver De n ys CU C HE, A n o ç ã o d e c u ltu ra n a s c iê n c ia s so c ia i s, o tó p ic o A
no ç ão d e ‘ c ul t ur a d a e m p r e s a ’, p . 2 0 9 -2 2 1 .
66
empresas, observando que a cultura da empresa é heterogênea em
função da diversidade das origens e vivências dos trabalhadores que
estão dentro de uma empresa. Nesta perspectiva, a cultura da
empresa
deixa
de
ser
um
simples
reflexo
de
um
sistema
organizacional e leva em consideração os atores que constroem a
cultura
da
empresa.
Este
é
um
enfoque
que
demonstra
a
potencialidade do uso ampliado do conceito de cultura.
Uma acepção mais global de cultura nas ciências sociais a
aponta como o conjunto dos traços do modo de vida de uma
sociedade. Por outro lado, se levarmos em conta o relativismo
cultural, ao se optar por uma visão mais particularista de cultura,
corre-se um risco de essencialização, levando-se sempre em conta
que o conceito de cultura só existe quando se constata a diferença,
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como explica Velho (1994a, p.63),
Hoj e em dia, cultura faz parte do vocabulár io básico das ciências
humanas e sociais. O seu emprego distingue-se em relação ao
senso comum no sentido que esse dá às noções de homem culto e
inculto.
Assi m como todos os homens em princípio interagem social mente,
participam sempre de um conj unto de crenças, valores, visão de
mundo, rede de significados que definem a própria natureza
humana. Por outro lado, cultura é um conceito que só existe a
partir da constatação da diferença entre nós e os outros. Implica
confir mação da existência de modos distintos de construção social
da realidade com a produção de padrões, nor mas que contrastam
sociedades particulares no tempo e no espaço.
O que possibilita os modos distintos de construção social da
realidade é a socialização que ocorre em várias instâncias sociais.
Assim,
a
socialização
primária
do
indivíduo
ocorre
preponderantemente na família, como aponta também Cuche (1999)
apoiado em Talcott Parsons. Mas o papel da escola, assim como
dos/as colegas e amigos/as de brincadeiras não pode ser desprezado.
Estes elementos que concorrem para a socialização da criança o
fazem dentro de um contexto social, econômico, político e cultural.
Assim, compreendendo educação em seu aspecto amplo como
formação e socialização, além da escolarização, a relação entre
escola e cultura é inconteste e orgânica como afirma Forquin
67
(1993). Contudo não pode ser pensada como uma comunicação entre
pólos estanques e sim como dimensões articuladas e inerentes ao
processo
educativo,
pois
a
função
fundamental
da
escola
é
“transmitir cultura” dizem Moreira e Candau (2003, p.160). Porém,
como fazem estes autores, a questão que se coloca é: que cultura?
Para responder esta questão é necessário discutir e reconhecer a
polissemia do termo cultura e assim termos a possibilidade de
pensar cultura no plural.
É necessário, portanto, um recorte, como explica Velho
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(1994a, p.64):
Quando defini mos cultura como um conceito, sabemos que ela
pode ser e foi utilizada para efetuar recortes em função de
interesses específicos da investi gação científica. Mas o
pressuposto básico para a sua utilização é a possibilidade de
identificar um conjunt o de fenômenos socioculturais que possa ser
diferenciado e contrastado com outros conjuntos a que também
denominamos culturas. Assi m, podemos trabalhar num plano tão
amplo, como cultura ocidental, quanto em planos mais restritos,
como cultura afro-bras ileira, xavante, gaúcha etc.
Desta forma, num plano mais restrito, está a noção de cultura
popular brasileira, largamente utilizada não só no jornalismo 10 como
nos meios acadêmicos. E a cultura social de referência dos/as
alunos/as de subúrbios tem quase sempre uma base na cultura
popular.
García Canclini (1997, p.272) explica que “o popular permite
abarcar sinteticamente todas essas situações de subordinação e dar
uma identidade compartilhada aos grupos que convergem em um
projeto solidário”. Mas este mesmo autor 11, ao reconhecer a
heterogeneidade destes grupos, aponta:
10
A l i n g ua ge m, o te xto e a p e sq ui s a j o r na lí st ic a não e st ão , ne c e s sa r ia me n te ,
o b r i ga d o s a o uso d o s ter mo s e c o nc e i to s c o m r i g o r c ie n tí f ic o . Co nt u d o , o
d e b a te e o e st ud o d a s c ul t ur a s p o p u la r e s n o B r a si l tê m no j o r n a li s mo ,
so b r e t ud o na i mp r e n sa e sc r it a , u m e no r me e f u nd a me n t al r e gi str o , c o n si s ti nd o
e m lit e r a t ur a i mp r e sc i n d ív e l p a r a a p e sq u is a d o te ma, a e xe mp lo d e a r ti go s d e
J o ta E fe g ê, Sér g io Cabr al, T i nhorão, Le na Fr ia s etc.
11
Ver G AR CÍ A C ANC LI NI, cap. 6, P o p ula r, P opul arid ade : da repre se n tação
p o lít ic a à tea tr a l, 1 9 9 7 , p . 2 5 5 -2 8 1 .
68
o popular, conglomerado heterogêneo de grupos sociais, não tem
um sentido uní voco de um conceito ci entífico, mas o valor
ambí guo de uma noção teatral. O popular designa as posições de
certos agentes, aquelas que os situam frente aos hegemônicos,
nem sempre sob forma de confrontos. ( García Canclini, 1997,
p.279, grifos meus)
Assim, diz Candau (2000a, p.68):
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Penetrar nesta rede de relações entre a cultura escolar, cultura da
escola, culturas sociais de referência, seus pontos de encontro,
ruptura e conflito é fundamental pra promover um processo
educativo entendido como prática social em que estão presentes as
tensões inerentes a uma sociedade como a nossa que vi ve
processos de profunda transfor mação. É a própria concepção da
escola, suas funções e relações com a sociedade, o conheci mento e
a construção de identidades pessoais e culturais que está em
questão. Torna-se i mprescindí vel hoj e incorporar as questões
relativas à ‘desnaturalização’ da cultura es colar e da cultura da
escola na reflexão pedagógica e na prática diária das nossas
escolas.
Desse modo, vejo sentido, considerando as relações íntimas
entre escola e cultura, no uso do conceito de cultura através de
recortes que permitam melhor desenvolver a pesquisa. Procuro
demonstrar mais adiante, através da discussão conceitual e teórica,
mais tarde confrontada com a empiria, as possibilidades de análise
de um processo de escolarização e sua relação com as culturas
presentes no espaço escolar, partindo de categorias de análise como
cultura escolar/cultura da escola e uma determinada cultura social
de referência, que chamo de cultura do samba.
3.2
Cultura escolar/cultura da escola
O
conceito
de
cultura
escolar
é
recente
na
literatura
pedagógica brasileira 12. Seu aparecimento se deve, em parte, pelas
novas e crescentes abordagens na discussão acerca do currículo e do
12
P e sq ui sad o r e s d o c a mp o d a Hi stó r ia d a E d uca ç ão lo c a l iz a m no s a no s 1 9 9 0 a s
produçõ e s bra si lei ra s q ue to ma m co mo re ferê ncia a no ção de cul tura esco la r,
ta nto co mo ca te go r ia d e a nál i se o u co mo ca mp o de i n ve st i gaç ão. Ver L uc ia no
Me nd e s F AR I A FI LHO, Irle n An tô nio G ON Ç A LVE S, D ia na Go nça l ve s VID AL
e And r é Lui z P AU LI L O , A cu ltu ra e sco la r co mo cate gor ia de a ná li se e co mo
ca mpo de i n ve st i ga çã o na hi stór ia da ed ucação bra s ile ira, E d u c a ç ã o e
P esq u i sa , vo l .3 0 /0 1 , j a n /a b r /2 0 0 4 , p p . 1 3 9 -1 5 9 .
69
cotidiano escolar, implicando no uso de um conceito que exprimisse
as questões de estudo, possibilitando caminhar na direção do que
Bourdieu (2000) considera uma teorização científica que amplie a
percepção e ação do trabalho empírico. Por outro lado, a definição
deste conceito por alguns pesquisadores, como mostra Candau
(2000a) 13, abriga concepções diferenciadas embora não antagônicas,
quando se quer fazer referência ao processo de escolarização, às
suas orientações e normas, explícitas e implícitas, aí incluídos os
conteúdos – cognitivos e simbólicos – da prática curricular formal e
real, bem como valores e signos.
Nesta pesquisa, reconhecendo que existem vários autores que
discutem a noção de cultura escolar, escolhi dialogar com JeanClaude Forquin, José Gimeno Sacristán, Angel I. Pérez Gómez,
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Peter McLaren, fundamentalmente. Considero que as formulações de
Forquin (1993, p.167) 14, nos ajudam a iniciar esta discussão. Para
este autor, cultura escolar
se pode definir como o conj unto dos conteúdos cognitivos e
simbólicos que, selecionados, or gani zados, ‘nor malizados’,
‘rotinizados’, s ob o efeito dos i mperat ivos de didati zação,
constituem habitual mente o obj eto de uma transmissão deliberada
no contexto das escolas.
Em 1997, o mesmo autor, participando de um seminário no
Brasil 15, em que o centro do debate era o currículo entre o
universalismo e o relativismo, vai reafirmar sua conceituação, num
viés, apontado por seus críticos, como “universalista”:
13
Ver a Mar ia C AN D AU, Co t idia no e sco la r e c ul t ura( s): e n co ntros e
d ese n co ntro s, i n : C AND AU, V. M. (o r g .). R ein v e n ta r a e sco la , 2 0 0 0 a , p . 6 1 -7 8 ,
e m u m te xto q ue r e s u m e p e sq ui sa d e se n vo l v id a na P U C - R io c o m o a p o io d o
CNP q e n tr e 1 9 9 6 e 1 9 9 8 , si t ua tr ê s a u to r e s q ue t r a b a l h a m o c o n c e ito d e c u lt ur a
esco lar c o ns ider ado mai s pro fíc uo p ara a r eferid a pe sq ui sa : J ea n -Cl a ud e
Forq ui n, J o sé G i me no S acri st á n e Ange l I. P ér e z Gó me z.
14
So b o t ít u lo d e E sco l a e Cu ltu ra : a s b a se s so c ia i s e ep i st emo ló g ic a s d o
conheci men to e sco la r, f o i p ub l ic a d a e m 1 9 9 3 a p r i me ir a e d iç ã o b r a s ile ir a d o
li vr o É c o l e e t Cu l tu re . Le p o in t d e v u e d e s so c i o lo g u e s b ri ta n n iq u e s. B r u xe la s:
De B o e c k, 1 9 8 9 . T r a t a - se d a ver sã o a b r e v ia d a e r e fo r mu l a d a d e s ua T ese d e
Do uto r ad o e m L e tr a s e Ci ê nci as H u ma na s p ela U n i ver sid ad e d e C iê nc ia s
H u ma na s d e E str a sb u r go , d e fe nd id a e m 1 9 8 7 .
15
T r a ta -s e d o S e mi ná r io I n ter na cio na l c o me mo r a ti vo d o s 2 5 a no s d o P r o gr a ma
d e P ó s -Gr a d uaç ão d a F a c u ld a d e d e E d uca ç ã o d a UF RJ , r e a l iz a d o d e 1 6 a 1 9 d e
j un h o d e 1 9 9 7 .
70
A cultura escolar é uma cultura geral, não no sentido de que
sej a uma amostra ou um amontoado de tudo (não é uma cultura
dispersa, eclética), nem no sentido de que pretenda desenvol ver
‘idéias gerais’ que não favoreçam conheci mentos precisos ou
competências específicas (não é uma cult ura de verbalis mo
abstrato), mas si m no sentido de ser responsável pelo acesso a
conheci mentos
e
a
competênci as
estruturalmente
fundamentados , isto é, capazes de ser vir de base ou de
fundamento a todos os tipos de aquisições cognitivas
‘cumulativas’ (Forqui n, 2000, p.58).
Silva (2000) e Candau (2000b), debatedores 16 do trabalho de
Jean-Claude Forquin apresentado neste seminário, vão criticar a
perspectiva enunciativa de Forquin, chamando atenção, entre outros
questionamentos, para quem define e quais são os conhecimentos
selecionados e, portanto, estabelecidos como universais, como
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perguntas anteriores à discussão da necessidade ou não de que
determinados conhecimentos sejam considerados universais.
Forquin (1992; 1993; 2000) nos diz que a escola
seleciona uma ínfima parte do que a humanidade produziu para que
seja transmitido às gerações futuras. A seleção do que será
transmitido – a cultura escolar – está intimamente ligada com os
dispositivos cognitivos e simbólicos que estão em ação no campo
social, o que não quer dizer que isto signifique simples reflexo da
cultura dominante. Neste sentido, a função de transmissão cultural
na educação pode ter perspectivas diferentes, dependendo da
acepção de cultura que se tenha.
Com efeito, se partimos de acepções polarizadas, como
por
exemplo
uma
acepção
“‘patrimonial’,
‘diferencialista’
ou
‘identitária’”, em que a cultura é vista como relativa àquela
comunidade e seus valores, ou de outra acepção, “universalistaunitária”, que considera existir algo comum e universal que deve ser
incorporado por todos, teremos práticas educativas diferentes.
Assim, podemos pensar que o questionamento sobre a relação
entre a cultura escolar e a cultura social de referência dos alunos é
16
P a r a u m e x a me ma i s a p r o f u nd a d o d o d e b a te, ver o s a r t i go s c it ad o s d e s te s
aut ore s e m E d u c a çã o & S o c ied a d e , n° 7 3 , p . 4 7 -8 3 , d e z /2 0 0 0 .
71
uma busca de mediação que aponte os limites do universalismo e do
relativismo. Este debate é fundamental para a discussão sobre
currículo.
Gimeno Sacristán 17 (1995; 1996) vê a cultura escolar como
algo mais do que conteúdos cognitivos. Entende que “a cultura
escolar é uma caracterização ou, melhor dito, uma reconstrução da
cultura,
feita
em
razão
das próprias
condições
nas quais
a
escolarização reflete suas pautas de comportamento, pensamento e
organização”
(1996,
p.34).
A
prática
educativa
é
elemento
constituinte que explica a cultura escolar. A escola, vista como um
instrumento de homogeneização, e marcada por um etnocentrismo
cultural (Gimeno Sacristán, 1995), segundo o autor, o leva a chamar
a atenção para o fato de que “enquanto um grupo social não vê
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refletida sua cultura na escolaridade ou a vê refletida menos que a
de outros, estamos, simplesmente, diante de um problema de
igualdade de oportunidades” (1995, pp.84-85), acrescentando que na
escola, “a seleção do currículo quando se desliga da cultura extraescolar que rodeia os alunos, coloca-lhes uma distância entre o que
a escola transmite e o que vivem fora da escola” (1995, p.98). Esta
afirmação
traz
um
reconhecimento
quase
que
natural
do
distanciamento entre cultura escolar e cultura social de referência.
Nesta
discussão,
Gimeno
Sacristán
(1995),
diferencia
currículo formal do real. Entende por currículo formal aquilo que
consta nos documentos oficiais sobre objetivos, conteúdos e temas
que devem ser tratados na sala de aula. Por currículo real, aquele
que propõe e impõe todo um sistema de comportamentos e de
valores além dos conteúdos. Assim, afirma que o “currículo tem que
ser entendido como a cultura real que surge de uma série de
processos” (1995, p.86), que constroem efetivamente a “cultura nas
17
C ated r át ico de Did át ic a e Or ga niz ação e sco lar da U ni v ers idad e de V al ência ,
E sp a n h a . E mb o r a o a uto r ten h a a mp l a p r o d u ç ã o so b r e o te ma, a q u i u ti l iz a mo s
os t e xto s e m q u e e xplic it a o co nc ei to de cult ur a e sco lar : C urr íc ulo e
diver sidad e c u lt ur al, i n : SI LV A, T . T . da, M O R EIR A, A. F. (or g s.) . Te r ri tó rio s
c o n te sta d o s, 1 9 9 5 , p . 8 2 -1 1 3 , i ni ci al me n te p ub l ic a d o n a r e v i sta E d u c a ció n e
S o c ied a d , n°1 1 , 1 9 9 2 ; E s c o l ar i z a ç ã o e c u lt u r a : a d up la d e t er mi n a ç ã o , i n :
SI LV A, Lui s H ero n d a et al. No v o s Ma p a s c u ltu ra is , n o v a s p e r s p e c t iva s
e d u c a c io n a i s, 1 9 9 6 , p .3 4 -5 7 .
72
salas de aula”, como o relacionamento dos grupos, a maneira como
as coisas que acontecem na sala de aula e os conteúdos se vinculam
com o mundo exterior, o uso e aproveitamento dos materiais, as
práticas de avaliação etc. Com esta posição, o autor está chamando
atenção para o aspecto da cultura escolar que ultrapassa o currículo
formal.
O que Gimeno Sacristán (1996, p.55) aponta como cultura
escolar é a cultura curricular construída de acordo com as condições
de
escolarização,
tendo
como
fontes
a
cultura
instrumental
produtiva especializada, o legado cultural ou “alta cultura”, a
cultura antropológica de origem dos atores e a cultura lúdica para a
auto-realização e para o consumo.
Outro autor, Pérez Gómez 18, tem formulação muito próxima a
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Gimeno Sacristán 19, como se vê em sua contribuição ao debate,
quando propõe
considerar a escola como um espaço ecológico de cruzamento de
culturas, cuj a responsabilidade específica, que a distingue de
outras instituições e instâncias de socialização e lhe confere sua
própria identidade e sua relati va autonomia, é a mediação
reflexiva daqueles influxos plurais que as diferentes culturas
exercem de for ma per manente sobre as novas gerações, para
facilitar seu desenvolvi mento educativo.(Pérez Gómez, 2001,
p.17)
Na posição deste autor, fica explícita a preocupação em
encontrar no espaço escolar algo mais do que a formalidade do
currículo prescrito, oficial. Ele procura revelar as várias culturas
presentes no processo de escolarização, enriquecendo a visão sobre
18
Ca tedr át ico de Did át ic a e Orga niz ação e sco la r da Uni ver sid ade de Mál a ga,
Espa nha. O a utor t e m vário s tr abal ho s sobr e e st a te má ti ca, i n cl us ive e m
parcer ia co m J o sé G i meno S acr is tá n. U ti li zo o li vr o A c u l tu ra e sc o la r n a
so c ie d a d e n e o lib e ra l. P o r to Al e gr e : Ar t me d , 2 0 0 1 , q ue fo i tr a d uzid o d e La
c u ltu ra e sc o la r e n la so c ie d a d n e o lib e ra l. M a d r i: M o r a ta, 1 9 9 8 . O t r a b a l ho d e
Ver a M a r ia C AN D AU ( 2 0 0 0 a ) a n ter io r me n te c it ad o b a seo u - s e no a r ti go d e
P ÉRE Z GÓ ME Z, La c u ltu ra e n la so c i e d a d p o smo d ern a , i n: Cu a d e r n o s d e
P e d a g o g ía , B ar c e lo na , n °2 2 5 , p . 8 0 -8 6 , no v. 1 9 9 3 .
19
Al g u ns t ít u lo s na s r e f e r ên c ia s b ib lio gr á fi ca s mo str a m mai s d e u ma d é c a d a d e
p r o f u nd a c o o p e r a ç ã o e n tr e o s d o i s a uto r es , c o mo se vê no s tr a b a l ho s
p ub lic a d o s n a E sp a n ha : La en señ a n za , su teo r í a y su p rá ct ica . Mad r id : Aka l,
1 9 8 3 ; Co mp r e e n d e r y t r a n sfo r ma r la e n s e ñ a n za . M a d r id : M o r a ta, 1 9 9 2 ( e d it ad o
e m p o r t u g uê s p e la Ar t m e d e m 1 9 9 8 ) ; E v a lu a c ió n d e u n p ro c e so d e in n o v a c ió n
e d u c a t iva . Se v il la : J u nt a d e An d a l u z ia , 1 9 9 3 .
73
o cotidiano escolar. Segundo ele, é este cruzamento de culturas que
dá sentido e consistência ao que os/as estudantes aprendem na vida
escolar.
Modificando
alguns
conceitos
também
trabalhados
e
abordados por Candau 20 (2000a), ele aponta a realização de uma
“mediação reflexiva” pela escola entre
as propostas da cultura crítica, aloj ada nas disciplinas científicas,
artísticas e filosóficas; as determinações da cultura acadêmica,
refletida nas definições que constituem o cur rículo; os influxos da
cultura social, constituída pelos valores hegemônicos do cenário
social; as pressões do cotidiano da cultura institucional, presente
nos papéis, nas nor mas, nas rotinas e nos ritos próprios da escola
como instituição específica; e as características da cultura
experencial, adquirida individual mente pelo aluno através da
experiência nos intercâmbios espontâneos com seu meio (Pérez
Gómez, 2001, p.17).
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Ele desmembra o conceito de cultura escolar, embora esteja
mais do que nunca falando dela, quando se refere ao cruzamento das
culturas
apontadas
no
espaço
escolar.
Este
autor
amplia
a
compreensão do conceito ao identificar as várias culturas que se
cruzam, deslocando também o conceito de cultura da escola usado
por Forquin (1993). Vejamos como Pérez Gómez define as culturas
presentes no espaço escolar, começando pelo que ele chama de
cultura crítica.
Entendemos por cultura crítica, alta cultura ou cultura intelectual
o conj unto de significados e produções que, nos diferentes âmbitos
do saber e do fazer, os grupos humanos foram acumulando ao
longo da história. É um saber destilado pelo contraste e o
escrutínio público e sistemático, pela crítica e reformulação
per manente, que se al oj a nas disciplinas científicas, nas produções
artísticas e literárias, na especulação filosófica, na narração
histórica... Esta cultura crítica evolui e se transfor ma ao longo do
tempo e é diferente para os diferentes grupos humanos. (Pérez
Gómez, 2001, p.21)
Esta pode parecer, à primeira vista, a uma acepção de cultura
tradicional, normativa, elitista, pois pode parecer não questionar
20
E m se u te xto , V er a M ar ia C a nd a u ( 2 0 0 0 a ) d i a lo ga c o m o a r t i go d e P é r e z
Gó mez La c u ltu ra e sc o l a r e n la so c ie d a d p o s mo d e rn a , d e 1 9 9 3 , e m q ue o a u to r
e sp a n ho l d i sc u te o c r uz a me n to n a e sc o la d a cu ltu ra p ú b lica , d a cu ltu ra
a c a d ê m ic a , d a c u l tu ra s o c i a l, d a cu ltu ra e s co la r e d a c u l tu ra p riva d a . C f. V e r a
M a r i a C AND AU , o p . c it. , p . 6 4 -6 5 .
74
quem define e o que é definido como científico, artístico, literário.
Mas três aspectos me levam a concordar com o autor: primeiro, ele
não está definindo o que tem ou deveria estar na escola, mas o que
efetivamente está; segundo, ele aponta que existe transformação
desta cultura e a forma diferente com que ela é vista para os
diferentes grupos humanos 21; terceiro é que o autor está chamando
atenção para as culturas que estão presentes no espaço escolar e esta
é uma delas. Creio que o adjetivo crítico tem sentido pois, no jogo
das forças em confronto, esta cultura abre a possibilidade de crítica
a si mesma, até porque vive uma crise. Apesar da tradição
homogeneizadora
da
escola
restrita
ao
“cânone
clássico
do
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Ocidente”, que
não apenas i gnora as peculiaridades e as diferenças do
desenvol vi mento indi vidual e cultural, i mpondo uma aquisição
homogênea, a maioria das vezes sem sentido, dos conteúdos
perenes da humanidade, como também esquece ou despreza em
geral os processos , as contradições e os conflitos na história do
pensar e do fazer, e restringe o objetivo do ensino ao
conheci mento, des atendendo, assi m, o amplo território das
intuições, das emoções e das sensibilidades, assi m como as
exigências contemporâneas das mudanças r adicais e verti ginosas
no panorama social (Pérez Gómez, 2001, p.76, grifo meu)
O autor reconhece que os docentes e a instituição, ao terem
nessa cultura sua base de conhecimentos e referências vivem um
“desafio de construir um outro marco intercultural mais amplo e
flexível” (p.77).
Como a escola não é uma ilha e está fortemente relacionada
com o meio social, recebendo seus influxos, Pérez Gómez (2001,
p.83) constrói o conceito de cultura social para dar conta deste
aspecto, assim o definindo:
21
A b a se c ie n tí fica et n o ce ntr is ta e m q ue fo i criad a a An tro p o lo gi a, p o r
e x e mp lo , a c a b o u p o r d e se n vo l ver a c r ít ica a o p r ó p r io e t no c e n tr is mo e
p o s sib ili ta o r e lat i vi s m o c u lt u r a l , o r e c o n he c i me nto d a s d i f e r e n te s ló g ic as
cu lt ur ai s. Ve r G ilb erto VE LHO, I ntro d u ção : C u lt ur a , id e nt id ad e s e p l ur ali s mo
so c io c ul t ur a l, i n: R e v is t a d e Cu l tu ra B ra s il e ñ a, nº 1 , M a d r i, E sp a n ha : E mb a ja d a
d e B ra s il e m E sp a ñ a , 1 9 9 8 , p p . 1 6 7 -1 7 2 ; Ro q u e d e B a r r o s L AR AI A, C u ltu ra ,
u m c o n c e ito a n t ro p o ló g ico, 1 9 9 9 ; E ve r a r d o R OC H A, O q u e é e tn o c e n tr i smo ,
2002.
75
Embora não se possa considerar uma cult ura única, homogênea,
integrada e sem fiss uras nem contradições, denomino cultura
social ao conj unto de significados e compor tamentos hegemônicos
no contexto social, que é hoj e indubitavelmente um contexto
internacional de intercâmbio e interdependências. Compõem a
cultura social os valor es, as nor mas, as idéias, as instituições e os
comportamentos que dominam os inter câmbios humanos em
sociedades for mal mente democráticas, regidas pelas leis do livre
mercado e percorridas e estruturadas pela onipresença dos
poderosos meios de comunicação de massa.
Este conceito procura considerar a existência de uma cultura
na sociedade, aquela que é hegemônica, que está presente na vida
dos atores sociais e nas instituições, de modo que seus influxos
interagem no e com o espaço escolar, correspondendo às condições
sociais, econômicas e políticas em que vivemos, que o autor
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caracteriza como pós-moderna. Diferencia-se portanto, da cultura
local, produzindo, de certa maneira, uma relativização desta última,
de suas instituições e valores.
A escola, como uma instituição, tem características próprias,
algo que lhe é específico, que lhe configura e está diretamente
ligado à sua função, sendo diferente de um clube (que também é um
espaço de cruzamento de culturas), de uma Escola de Samba (da
mesma maneira é um espaço de cruzamento de culturas). Desse
modo Pérez Gómez (2001, p.131) entende a cultura institucional da
seguinte maneira:
A escola, como qual quer outra instituição social, desenvol ve e
reproduz sua própria cultura específica. Entendo por isso o
conj unto de significados e comportamentos que a escola gera como
instituição social. As tradições, os costumes, as rotinas, os rituais
e as inércias que a escola estimula e se esforça em conser var e
reproduzir condicionam claramente o tipo de vida que nela se
desenvol ve e reforçam a vi gência de valores , de expectativas e de
crenças ligadas à vida social dos grupos que constituem a
instituição escolar.
Como parte da cultura institucional, a disciplina, a avaliação,
as tradições, os costumes, acabam por reforçar as crenças e valores
ligados à vida social das pessoas que convivem naquela instituição.
Os estudantes vivem em determinado contexto antes de entrar
na escola e esta sua vida é carregada de significados, recebendo
76
influxos da família e do seu meio. Esta configuração prévia dos
alunos antes da escola e que continua a ser elaborada de forma
paralela ao espaço escolar depois é o que Pérez Gómez (2001,
p.205) vai chamar de cultura experiencial:
Entendo por cultura experiencial a peculiar configuração de
significados e compor tamentos que os alunos e as alunas elaboram
de forma particular, induzidos por seu contexto, em sua vida
prévia e paralela à escola, mediante os inter câmbios ‘espontâneos’
com o meio familiar e social que rodeiam sua existência. A cultura
do estudante é o refl exo da cultura social de sua comunidade,
mediatizada por sua experiência biográfica, estreitamente
vinculada ao contexto.
Nesta acepção, podemos entender que a escolarização é uma
espécie
de
contraposição
às
vivências
dos
estudantes,
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proporcionando uma visão crítica. Como salienta o autor citado, “a
cultura experencial do indivíduo é o reflexo incipiente de uma
cultura local, construída a partir de aproximações empíricas e
aceitações sem elaborar criticamente” (Pérez Gómez, 2001, p.205).
Segundo Pérez Gómez (2001), a escola tem três funções a
cumprir e que se complementam: a função socializadora que
possibilita aos indivíduos meios sociais mais amplos; a função
instrutiva,
através
do
ensino-aprendizagem
intencional
e
sistemático, que acrescenta e complementa a socialização; e a
função educativa, que daria a dimensão crítica da socialização
espontânea e instrução dos conhecimentos selecionados. Estas
funções fazem parte da cultura acadêmica e a sala de aula é o lugar
por excelência de sua realização.
Entendo a cultura acadêmica como a seleção de conteúdos
destilados da cultura pública para seu trabalho na escola: o
conj unto de si gnificados e comportamentos cuj a aprendizagem se
pretende provocar nas novas gerações através da instituição
escolar. A cultura acadêmica se concretiza no currículo que se
trabalha na escola em sua mais ampla acepção: desde o currículo
como trans missão de conteúdos disciplinares selecionados
externamente à escola, desgarrados das disciplinas científicas e
culturais, organi zados em pacotes di dáticos e oferecidos
explicitamente de maneira prioritária e quase exclusiva pelos
livros -t exto, ao currí culo como construção ad hoc e elaboração
77
compartilhada no trabalho escolar por docentes e estudantes.
(Pérez Gómez, 2001, p.259)
O apego a um currículo formal de que nos fala Gimeno
Sacristán (1995) e a falta de reflexão crítica, levam muitos
professores/as
a
desconsiderar
as
referências
culturais
dos/as
estudantes. Cumprir o programa estabelecido e desconhecer outras
fontes de conhecimento acabam por se tornar práticas naturalizadas
pelos/as professores/as. Cabem, portanto, as perguntas de Candau
(2000a, p.74):
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tomar distâncias da(s) cultura(s) social(is) de referência será uma
necessidade para que a escola possa se concentrar na socialização
dos conheci mentos considerados universais e gerais, inerentes ao
saber escolar? Como articular estes dois movimentos, de garantir o
conheci mento escolar e não desconhecer ou negar os saberes
sociais de referência?
McLaren 22
é
outro
autor
que
nos
oferece
interessante
contribuição para estudar o cotidiano escolar. Consideramos de
especial interesse para meu estudo como opera com o conceito de
ritual 23:
22
P eter MC LAR E N p ub lico u S c h o o l in g a s a ri tu a l p e rfo rma n ce. L o nd re s,
B o sto n e He n l y: Ro ut l ed g e & Ke g a n P a ul, 1 9 8 6 , b a se a d o e m s ua t ese d e
d o u to r a d o a p r e se n ta d a a o On tar i o I n st it u te fo r S t ud ie s i n E d u c a tio n, d a
U ni ve r s id a d e d e T o r o n t o , e d itad a no B r a si l c o m o R itu a i s n a e s c o la : e m d ir e ç ã o
a u ma e co n o m ia d e sí mb o lo s e g e s to s n a e d u c a ç ã o . P e tr ó p o l i s: Vo z es, 1 9 9 1 .
23
U ma de fi ni ção ma i s co mp let a é fe it a e m P et er MC LAR E N, o p . c it. , p . 8 4 -8 8 ,
referi nd o - se a ri t ua l no se ntido ‘e str ito ’ e ‘fra c o ’. No se nt ido estri to, o s r it u ai s
tê m u ma fo r ma d i s ti n ta , são p r i ma r ia me n te c o n gl o mer a d o s d e s í mb o l o s, são
inere n te me nte dra mát ico s, faz e m part e da i nt e gr ação so ci al, e x ibe m q ua lidad es
fo r ma i s d e r e p et iç ã o , a t r a v é s d e u ma l i n g ua g e m c o d i fi c a d a p o d e m p o s s ui r u ma
au to r id ad e r i t ua l, e nc ar n a m u m r ep er tó r io d e esco l ha s o u sí mb o lo s ,
r e la c io na m- s e a e str u t u r a s d e fa míl ia e p o d e m s ur g ir d e d i vi sõ e s d e c la s se e
tê m se i s mo d o s d e e xp r es são : r i t ua li zaç ão , d e c o r o , cer i mô ni a, lit u r gia , má gic a
e cel ebraç ão. T ê m co mo funçõ e s: ser v ir co mo um d isp o s it i vo de mo ld ur a,
en co r aj ar e n vo l v i me n to ho lí s tico , c la s si f icar i n fo r ma çõ e s, tr a n s fo r ma r o s
p ar ti cip a nte s e m d i fer e nt e s sta tu s so ci ai s, ne go c iar o u ar ti c ular a tr avés de
r it mo s d i s ti n to s , p r o vo c a r u ma a ur a d e s a nt id a d e , p e r mi ti r a o p a r tic ip a nt e u m
c o n h e c i me nto si n g ul ar d o r it u a l, r e i fic a r o m u nd o so c ia l, p o d e r i n v e r te r a s
no r ma s e valo r e s, tê m u m a sp e cto p o lí ti co , p o s sib ili ta m o s p a rt ici p an te s a
refle tir sobre se us proc es so s de i nte rpret ação e tê m a capa cid ade de fund ir
exp eri ê nci as no do mí ni o fí sico e mo r al. No se nt ido ‘fr aco ’, “a r it u al i zação é
u m p r o c e s so q ue e n v o lv e a e nc ar na ç ã o d e s í mb o lo s, c o n glo me r a d o s d e
sí mb o lo s, me tá fo r a s e p a r a d i g ma s b á s ic o s a tr a v é s d e ge s to s c o r p o r a i s
fo r ma t i vos . E nq ua n to fo r mas d e si gni f ic ação r ep r es e ntad a, o s ri t ua is cap aci ta m
os a tore s so ci ai s a de marc ar, ne go ciar e art ic u lar s ua e xi s tê nc ia
fe no me no ló g ic a co mo se r es so c ia i s, c u lt ur ai s e mo r ai s” ( Mc L ar e n, 1 9 9 1 , p .8 8 ) .
78
examinados no contexto da ação simbólica, os rituais podem ser
percebidos como trans missores de códi gos culturais (informação
cognitiva e gestual) que moldam as percepções e maneiras de
compreensão dos es tudantes; os rituais inscrevem tanto a
‘estrutura superficial’ quanto a ‘gramática profunda’ da cultura da
escola (McLaren, 1991, p.30).
Preocupado em observar as relações de poder e dominação e
as referências coletivas aos aspectos simbólicos, McLaren (1991,
p.30) explica como usa o conceito:
adotei uma perspecti va de ritual que tenta levar a sério os
conceitos de poder e dominação, que considera o ritual uma
produção cultural construída como uma referência coletiva ao
simbólico e à experiência localizada da classe social de um grupo.
Considerando que “a cultura é formada fundamentalmente por
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rituais inter-relacionados e sistemas de rituais” (p.32), McLaren
acredita que o estudo dos rituais o ajuda a compreender como o
campo cultural de uma escola funciona. Neste caminho, observando
os estudantes, classifica quatro “estilos de interação com o ambiente
e com os outros” (p.131), que “consistem de conjuntos organizados
de comportamentos dos quais emerge um sistema central ou
dominante de práticas vividas” (p.131-132). São eles: o “estado de
esquina de rua”, o “estado de estudante”, o “estado de santidade” e
o “estado do lar”. Dessa forma, também neste autor, a concepção de
cultura escolar ultrapassa o currículo formal.
O “estado de estudante”, segundo McLaren (1991, p.137), “se
refere a uma adoção de gestos, disposições, atitudes e hábitos de
trabalhos esperados do ‘ser um estudante’”. Os alunos deixariam o
“palco” – onde podem representar os outros no estado de esquina de
rua – para serem o que eles são, no sentido de que tem que
corresponder ao que deles é esperado. Mas em ambos os estados
estão sustentando padrões sociais esperados deles. A mudança para
um comportamento mais formal leva os alunos a se entregarem “aos
controles poderosos e procedimentos coercitivos disponíveis aos
professores – controles que permitem aos professores dominar os
alunos, sem recursos à força bruta” (p.137).
79
McLaren (1991) chama de “estado de ‘esquina de rua’” o tipo
de atuação que os estudantes têm fora da escola, fazendo hora pelas
vizinhanças, mas que acabam por reproduzi-lo em alguns espaços
próximos, como na rua da frente da escola, no pátio escolar. Eu
incorporo neste estado de interação também alguns procedimentos
dentro dos corredores e mesmo na sala de aula, em algumas
circunstâncias. Como o autor define, “o estado de esquina de rua
compõe-se de um conglomerado de atributos que, quando colocados
juntos, constituem uma determinada maneira de se relacionar com
ambientes, eventos e pessoas” (1991, p.132). Acrescenta ainda que
os alunos mostram uma exuberância não-controlada e há muito
contato físico e os comportamentos têm uma aparência irrestrita e
desgovernada. Mas segundo ele, a busca de equilíbrio entre as
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capacidades e habilidades é mais provável, pois os alunos estão no
seu ritmo.
Considero que a preocupação manifestada nos PCNs (Brasil,
Ministério da Educação, 1997), de que a escola deve procurar se
aproximar da/s cultura/s do local onde está inserida é fruto de
debates inspirados em questões como acima mencionadas, bem como
de teorias e reivindicações no Brasil – tanto antigas (Teixeira, 1994;
Freire, 1998) quanto novas (Silva, 1995; Garcia, 1995; Candau,
2000a;
Moreira
e
Candau,
2003,
entre
outras/os)
–
dos/as
educadores/as. No caso brasileiro, podemos situar a ocorrência mais
incisiva das discussões nestes últimos quinze anos.
Em função de debates acerca das relações entre currículo e
construção de identidades, que passam pelo conceito de cultura,
ganha importância a discussão sobre o papel da escola neste
processo. Contudo, esta discussão enfrenta problemas pois
No mundo contemporâneo, o velho e o novo, o local e o global, o
moderno e o tradicional, o uni versal e o particular, coexistem
produzindo uma heterogeneidade cultural ligada a um suj eito
definido não mais por uma identidade unificada e estável, mas por
‘identidades contraditórias’, sendo continuamente deslocadas
(Candau et al., 2002b, p.19)
80
Mesmo reconhecendo que a escola não é a única a interferir
de algum modo nos processos identitários de seus atores, ela tem
enorme
peso
na
vida
de
quem
a
freqüenta
e
recebe
seus
ensinamentos. Para Arroyo (2001, p.17),
aceitar que existe uma cultura escolar significa trabalhar com o
suposto de que os di versos indivíduos que nela entram e trabalham
adaptam seus valores aos valores, às crenças, às expectati vas e aos
comportamentos da instituição. Adapt am-se à sua cultura
materializada no conj unto de práticas, processos, lógicas, rituais
constitutivos da instituição.
Silva
(1995),
discutindo
multiculturalismo,
política
de
identidade e movimentos sociais, aborda a centralidade adquirida
nas discussões sobre as relações de poder entre as diferentes
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culturas nacionais, situando a escola e o currículo no centro deste
processo. Apontando o processo de incorporação cultural através da
escola e do currículo, numa perspectiva crítica, “como uma
socialização forçada numa cultura particular – a dos grupos
dominantes – às custas da exclusão dos valores e práticas culturais
dos grupos assim submetidos”, explica que, “é nesse contexto que
ganha força a idéia de multiculturalismo – a idéia de convivência
das diferentes e diversas culturas nacionais e sua representação na
educação e no currículo” (p.196).
Se muitas vezes neste debate se opõem noções de cultura,
como a “alta cultura” e a cultura popular ou cultura/s social/is de
referência dos estudantes, minha perspectiva caminha no sentido de
entender em que termos se dá a aproximação de ambas 24 no espaço
escolar. Mais precisamente, como afirma Gimeno Sacristán (1996,
p.41-42):
certamente, com esse debate se está questionando o papel das
escolas em relação com outras instâncias socializadoras; se est á
desenhando um determi nado papel para os professores e um
programa distinto de for mação. Mas, mais concretamente, o que se
está reivindicando são novos for matos curriculares, diferentes
24
P ar to d o r eco n he ci me n t o d e q ue , hi s to r i ca me n t e, há u ma cir c ul ar id ad e e ntr e
as c ul t ur a s. A r e la ção e ntr e c u lt ur a er ud ita e p o p ular , so b r e s ua s mú t u a s
in f l uê n c i as, s ã o a b o r d a d a s no li vr o d e Car lo GI N ZB U RG , O q u e i j o e o s
ver me s, 1 9 9 8 .
81
matérias
escolares,
mudanças
metodológicas
nas
tarefas
acadêmicas e uma contextualização mais comprometida das
escolas na comunidade sócio-cultural na qual estão situadas.
Neste sentido, explica Dayrell (2001, p.151), para dar relevância
aos aspectos sociais e culturais do local onde está situada, cabe
olhar a escola como espaço sócio-cultural:
Olhar a instituição escolar pelo pris ma do cotidiano per mite
vislumbrar a di mensão educati va presente no conj unto das relações
sociais que ocorrem no seu interior. A quest ão que se coloca é que
esta di mensão ocorre predominantemente pela prática usual dos
alunos, à revelia da es cola, que não a potencializa. Os tempos que
a escola reser va para as ati vidades de soci alização são mí ni mos,
quando não são repri midos (grifos meus).
A experiência anterior de socialização dos alunos é muito
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importante para a prática de socialização no espaço escolar. No
dizer de Eloísa Guimarães (1998), o “mundo da vida” não pode ser
separado do universo escolar, pois influencia sua dinâmica e acaba
“definindo, nos dias atuais, seu caráter mais marcante” (p.208).
Ainda que se possa relativizar esta afirmação em função das escolas
pesquisadas pela autora ou pelo enfoque adotado, ela não deixa de
evidenciar a presença e a necessidade da escola dialogar com essa
cultura social de referência (Dauster, 2001).
De qualquer forma, concordo com Gimeno Sacristán (1996,
p.54) quando afirma, discutindo e relativizando as fontes da cultura
curricular:
O d e sa f io e d uc a c io n a l c o nt i n ua se nd o o d e e n c o nt r a r o utr a s fo r ma s d e
c o n h e c i me nto e sc o lar , o d e r e s ga ta r o se n tid o d a fo r ma ç ã o g e r a l, o d e
re v i sar a r a c i o n a l i d a d e b a se a da na c h a ma da a lt a c ul t ura , se m re nunc ia r
a ela, ma s ad mi ti ndo a i nc apac idade d a es col a por si só de le var a e f ei to
a pro mes sa da mo d er ni d ade il us trada , al go q u e se co st u ma e sq uec er
q ua nd o se l he p ed e m o b j eti vo s c o n tr a d itó r io s c o mo o d e p r e p a r a r p ar a a
vid a, p ara as pro fi s sõ es e e s ti mu l ar a i nde pend ê nci a de j u ízo d e
c id a d ã o s c ul to s .
É neste sentido que Pérez Gómez (2001) fala de cruzamento
de culturas, em que a mediação reflexiva conferiria identidade e
uma relativa autonomia à escola. Como todo espaço social onde
concorrem culturas diferentes, o espaço escolar recebe influxos
82
culturais diversos. O problema está em até que ponto a escola
exerce sua mediação “reflexiva”.
A força da cultura escolar e o seu aspecto homogeneizador e
tradicional é reconhecido em documento da SME – Secretaria
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Municipal de Educação do Rio de Janeiro (1996):
Refor mulações curriculares não são novidade. Muitos de nós j á
temos vi venciado di versas propostas de mudança. No entanto,
revendo a documentação produzida nesta traj etória, verificamos
que se mudam os pres supostos, novos teóricos são citados, mas a
lista de conteúdos permanece quase sempre inalterada. Que força
terá este tipo de ‘programa’ que se perpetua nas escolas, apesar de
não ter conseguido encaminhar questões j á superadas pela
dinâmica da própria vida? O fato é que mui tos educadores não se
sentem devidamente encoraj ados e fortalecidos o bastante par a
criticar e alterar conteúdos enciclopédicos, des vinculados da
realidade e desprovidos de sentido. O teor destes conteúdos são
[sic] eternizados graças, principal mente, a uma i mposição exercida
pelos livros didáticos ou por um arbítrio que penetra nos meios
educacionais, sem grandes questionamentos, passando de geração
em geração, de um professor para outro.(SME, MultiEducação:
Núcleo Curricular Bás ico, 1996, pp.106-107)
A cultura escolar, vista com base em um conceito que
descreve suas características gerais como aparece em Forquin
(1993) nos serve como ponto de partida, mas não nos permite
penetrar em toda riqueza que o espaço escolar apresenta. Estudando
outros autores e confrontando com a empiria somos obrigados a
alargá-lo, para darmos conta dos múltiplos processos presentes no
espaço escolar. Neste movimento verifiquei que embora seja
possível diferenciar cultura escolar de cultura da escola, há uma
interpenetração de ambas.
Pérez Gómez (2001) identifica cultura escolar como um
cruzamento de várias culturas como a cultura crítica, a cultura
acadêmica, a cultura institucional, que se apresentam no espaço
escolar fundamentalmente na sala de aula e nas atividades ligadas às
funções escolares, e a cultura social e a cultura experencial que
estão presentes e se expressam fora da sala de aula, também estão
no espaço escolar e na sala de aula, pois os/as estudantes,
83
professores/as, diretores/as e trabalhadores/as da educação trazem
estes referenciais presentes em seu modo de ser, pensar, agir.
Para
Gimeno
Sacristán
(1995,1996),
se
os
objetivos,
conteúdos e temas que devem ser tratados em sala de aula – o
currículo formal – fazem parte da cultura escolar, há um sistema de
comportamentos e de valores impostos que vai além dos conteúdos –
o currículo real – que não deixa de ser cultura escolar.
Da mesma forma, para McLaren (1991), os rituais que
envolvem a encarnação de símbolos e gestos corporais pelos agentes
sociais, assim como os/as alunos/as têm seus estados de interação,
como o estado de estudante e o estado de esquina de rua, dentro e
fora
das
salas
de
aula,
também
se
incluem
na
cultura
escolar/cultura da escola.
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Como pode ser percebido, Gimeno Sacristán (1995, 1996),
Pérez Gómez (2001) e McLaren (1991), discutem cultura escolar
como um todo, considerando tudo que envolve o espaço escolar,
incluindo
aspectos
e
características
que
Forquin
(1993)
não
explicitou ou conceituou como parte da cultura da escola. Candau
(2000a, p.76) salientou que ambas as dimensões dos conceitos
permitem uma interpenetração, de modo que cada uma delas está
presente na outra:
Somos conscientes da interpenetração destas duas di mensões – a
cultura da escola está presente na cultura escolar e vice-versa –
mas, para efeitos da pesquisa de campo, privilegiamos espaços
específicos para obser var e analisar uma e outra.
De modo que, existindo diferença conceitual entre cultura
escolar
e
cultura
da
escola
como
quer
Forquin (1993), há
dificuldades em estabelecer uma delimitação precisa entre ambas.
Como se pode definir o que é a cultura da escola? Qual o
sentido deste conceito? No caso deste estudo, um dos pontos de
partida para nossa pesquisa sobre o cotidiano escolar é considerar
que existe a possibilidade de encontrar uma unidade escolar com
características peculiares. Assim, parto de início da definição feita
por Forquin (1993, p.167) de cultura da escola:
84
a escola é também um ‘ mundo social’, que tem s uas características
de vida próprias, seus ritmos e seus ritos, sua linguagem, seu
imagi nário, seus modos próprios de regulação e de transgressão,
seu regi me próprio de produção e de gestão de sí mbolos.
Primeiramente,
este
enfoque
é
o
reconhecimento
das
características gerais do espaço escolar em contraposição a outros
espaços e ambientes, sendo uma peculiaridade da instituição escola.
Mas aprofundando o conceito, é um ângulo que permite observar
uma certa peculiaridade e singularidade de uma unidade escolar,
realçando suas particularidades. Tal conceituação faz sentido, em
minha interpretação, porque em parte é observar como se realiza a
cultura escolar em uma unidade escolar, de uma escola em
particular. É um ângulo que permite ver a peculiaridade da
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instituição escola, daquele “mundo social”, fazendo emergir as
diferenças importantes para
compreensão de um processo de
escolarização.
O mesmo autor ressalta: “e esta ‘cultura da escola’ (no
sentido em que se pode também falar da ‘cultura da oficina’ ou
‘cultura da prisão’) não deve ser confundida tampouco com o que se
entende por ‘cultura escolar’” (Forquin, 1993, p.167). Se o autor faz
esta
ressalva,
no
entanto,
não
é
possível
acompanhar
sua
diferenciação de forma mais detalhada em seus textos. Ocorre que
Forquin em seu livro, base de suas formulações, Escola e Cultura:
as bases sociais e epistemológicas do conhecimento escolar (1993),
só discute a cultura escolar. Ainda que concordando com ele a
respeito da diferenciação entre cultura da escola e cultura escolar,
o mergulho na empiria vai nos levar à aproximação destes dois
conceitos, conforme comprovou e relatou Candau (2000a) em seu
texto Cotidiano escolar e cultura(s): encontros e desencontros.
Cada
escola
tem
seus
modos
próprios
de
controle
e
transgressão, seus ritmos, ritos, linguagem, a forma pela qual
interage com a comunidade onde está inserida e vice-versa, por
exemplo, que fazem parte da cultura da escola. Entendo a cultura
da escola como uma identidade de determinada unidade escolar,
85
como algo que comparando e contrastando com outra unidade
apareça
como
peculiar,
próprio
daquela
unidade.
Chamo
de
características gerais aquilo que é pertinente a instituições escolares
e de características singulares aquilo que é próprio de uma unidade
escolar que, no entanto, só tem expressado esta singularidade
quando analisamos as relações entre os sujeitos deste processo, por
exemplo, com seu regime próprio de produção e gestão de símbolos
naquele espaço.
Candau (2000a, p.76) diz que “se o espaço privilegiado da
cultura escolar é a sala de aula, é possível ter como referência
fundamental para a cultura da escola as atividades extraclasse”.
Concordando com a autora, ampliaria ainda mais o sentido de
“extraclasse”, pois entendo ser o entorno da unidade escolar, o
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contexto
onde
está
situada,
um
aspecto
importante
para
a
conformação da cultura da escola. As condições do bairro, as
condições de vida das famílias dos estudantes, o tecido social e as
relações sociais no bairro, assim como os aspectos econômicos,
sociais e culturais da cidade, podem influenciar positivamente ou
negativamente na construção desta cultura, como mostra Guimarães
(1998). Ainda que se possa rejeitar determinismos, pois existe uma
certa autonomia e uma certa margem de negociação, as condições
em que está instalada a escola também a constituem.
O uso do conceito de cultura da escola possibilita ampliar a
percepção do campo empírico, ao se pesquisar uma determinada
unidade escolar e seu contexto. Ajuda a examinar as práticas
escolares de uma determinada unidade e de como os vários influxos
das culturas presentes naquele espaço escolar se entrecruzam, como
estuda Pérez Gómez (2001), por exemplo.
Ao pesquisar duas escolas da rede municipal de Florianópolis
com o fim de analisar a cultura da escola engendrada nos
espaços/tempo do cotidiano escolar, Cardoso (2002) pôde perceber a
diferenciação da cada escola. Ao contrário da visão do senso
comum, as festas e comemorações, a ritualização das atividades,
86
apresentam-se
de
forma
diferente
em
cada
espaço
escolar,
diferenciando cada escola.
Cuche (1999) aponta que nos estudos sobre as grandes escolas
na França 25, tal como no conceito de cultura da empresa, encontrase o uso, por parte daquelas escolas, do conceito de cultura da
escola, de forma semelhante à noção de cultura da empresa.
Aproveita-se
a
polissemia
do
termo
para
jogar
com
uma
compreensão advinda da Antropologia e ao mesmo tempo com um
sentido etnológico particularista. As escolas em sua autopromoção,
colocam-se como tendo uma cultura homogênea e essencializada, e
que todos que ali estudem têm aquela cultura. Porém se todas
aquelas escolas têm em comum a participação em um sistema
institucional e no sistema em que se enquadram as grandes escolas,
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a singularidade de uma escola vai estar ligada à posição que ela
ocupa em relação às demais (Cuche, 1999). Entretanto pode-se
apontar uma singularidade de cada escola – a cultura da escola –
representada
pelos
rituais
brincadeiras,
expressão
com
corporal
calouros,
etc.
que
gírias,
tipos
correspondem
de
à
epistemologia do termo.
Uma forma de abordar a cultura da escola é a que foi
escolhida por Mclaren (1991), ainda que este autor refira-se em seu
texto apenas à cultura escolar. Em sua pesquisa em uma escola
católica de nome fictício St. R yan, com alunos imigrantes em
Toronto, ele optou por estudar os rituais na escola para melhor
questionar
paradigmas.
os
seus
Como
sistemas
ele
simbólicos,
explica,
“o
estudo
ritos,
do
costumes
ritual
e
e
da
representação podem me auxiliar a explorar como o campo cultural
de uma escola funciona, tanto de forma tácita como manifesta, na
transmissão de mensagens ideológicas.” (McLaren, 1991, p.35). Os
rituais, intimamente relacionados com a instituição e com a sala de
aula, também estão presentes, de uma forma relacional, com o que
se faz para resistir à norma, com o que se faz fora da sala. A relação
25
Ver D e nys C U CH E, o t ópico As gr a nd e s e scol a s e a c ul t ura, i n: A n o ç ã o d e
cultu ra na s ciên cia s so c iai s, p . 2 2 1 -2 2 4 .
87
que se estabelece em função destes aspectos é o que ele chama de
“estados de interação”, que seriam quatro: “estado de esquina de
rua; o estado de estudante; o estado de santidade; e o estado do lar”
(McLaren, 1991, p.131).
Outra abordagem é reconhecer os influxos das culturas que se
entrecruzam, como faz Pérez Gómez (2001), para estudar as
relações estabelecidas numa unidade escolar específica, pois as
culturas
presentes
no
espaço
escolar
não
podem
ser
vistas
independentes uma das outras. Há, por exemplo, uma imbricação da
cultura da escola com a dimensão institucional do estabelecimento
escolar. É assim que Dayrell (2001) vê o espaço social da escola
duplamente dimensionado. Por um lado, institucionalmente – pela
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cultura escolar – e, por outro,
Cotidianamente, por uma complexa trama de relações sociais entre
os suj eitos envol vidos, que incluem alianças e conflitos,
imposição de nor mas e estratégias individuais, ou coletivas , de
transgressão e de acor dos. Um processo de apropriação constante
dos espaços, das nor mas, das práticas e dos saberes que dão for ma
à vida escolar. ( Dayrell, 2001, p.137)
Embora sendo relações construídas dentro do espaço escolar,
trata-se de um processo que tem relação também com o que existe
fora do estabelecimento. Como se dá este processo e em que termos
ele acontece, ou seja, em que medida a participação dos vários
elementos que atuam na formação da cultura da escola ocorre, é
parte de um mundo complexo que a pesquisa pode ajudar a
compreender. Por exemplo, Van Zanten (2000) em sua pesquisa
sobre a construção de atitudes e práticas desviantes de adolescentes
de origem francesa e imigrantes, estudou as relações entre a cultura
escolar e o que é chamado de “cultura da rua” dos estudantes. Ela
conclui que a cultura da rua tem participação fundamental na
construção da cultura da escola, mas não pode ser a responsável
pela transgressão escolar, por exemplo. Esta é aprendida dentro da
escola. Para a autora,
88
... o que parece ser evidente é que a atividade
repressora direcionada para as redes des viantes,
estej am ou não organizadas em base étnica, aumenta
quase sempre sua visi bilidade e a reputação de ‘durões’
atribuídas a seus membros, o que, como é demonstrado
por outros estudos, l eva ao isolamento ai nda maior
desses alunos em relação ao resto da comunidade
escolar, assi m como ao reforço do peso das atitudes e
das práticas antiescolares (Van Zanten, 2000, p.48).
Os modos de transgressão existem em qualquer escola. Fazem
parte da cultura da escola. Eloísa Guimarães (1998, p.22-23) fala de
“três códigos culturais” a que a escola pública no município do Rio
de Janeiro onde pesquisava estava submetida: o formal, que remete
às funções tradicionais da instituição escolar; o do narcotráfico,
que atua no sentido manter a ampliar suas áreas de controle; o de
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movimentos juvenis, fragmentado em vários estilos. Esta era uma
característica
daquela
escola,
que
desenvolvia
sua
própria
linguagem, seu imaginário e seus ritos, ou seja, uma cultura própria
daquela escola.
Reportando-se à pesquisa que coordenou sobre cotidiano
escolar,
Candau
(2000a),
vai
salientar
que,
embora
tivesse
consciência das mútuas influências entre cultura escolar e cultura
da escola, procurou, no curso da investigação, focar atividades
extraclasse para estudar a cultura da escola, pois esta “se expressa
de
modo
privilegiado
nos
espaços
menos
‘controlados’
e
‘rotinizados’ que a sala de aula” (p.76). Este pode ser um dos
caminhos para o entendimento dos elementos próprios à cultura da
escola. Outro caminho é focar as maneiras particulares de se
organizar a rotina, de se fazer o controle, o “jogo de cintura” dos
agentes que vivem o dia a dia escolar, as soluções criativas e os
impasses que estão ocorrendo paralelos à norma. Até porque em
certos momentos, é muito tênue a linha que divide a norma e o que
corre paralelo à norma. Ou ainda pelo entendimento de que é a
norma que cria a possibilidade de transgressão, por menor que esta
seja.
89
As rotinas, os procedimentos na escola, como são as reuniões
periódicas com os responsáveis pelos estudantes e a formação para a
entrada na escola, podem ser compreendidas como rituais, como
parte
da
cultura
institucional
(Pérez
Gómez,
2001)
e
como
elementos da cultura da escola. O cotidiano de uma escola contém
vários procedimentos que especificam o espaço escolar, o espaço da
instituição escola. Porém, aqueles que lá vivem e interagem, por
naturalizarem o seu cotidiano, muitas vezes não os percebem, ou
pelo menos não os percebem na carga simbólica que eles têm.
Em suma, o que os estudos e os conceitos utilizados salientam
é um aspecto importante da escola, que é a peculiaridade de cada
espaço, formado pelos seus ritos e ritmos, seu regime próprio de
produção e gestão de símbolos. O que é conceituado por cultura
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escolar, em situações específicas em que esta cultura é vivenciada,
pode ser considerado como cultura da escola, pois se configura em
uma característica singular daquela unidade escolar. Se, por um
lado,
Forquin
(1993)
alertava
para
não
confundir
ambos
os
conceitos, por outro lado a empiria os aproxima, pois a análise dos
processos culturais mostram uma mútua relação no espaço escolar.
Assim, para efeito da minha discussão, e levando em
conta as contribuições citadas, que enriquecem nossa percepção do
espaço e do cotidiano escolar, trabalho com o conceito ampliado de
cultura escolar que está presente em Pérez Gómez (2001), Gimeno
Sacristán (1995, 1996) e McLaren (1991), e reconhecendo a forte
relação entre este conceito e o de cultura da escola, considero mais
proveitoso operar com a interpenetração dos conceitos na forma de
cultura escolar/cultura da escola.
3.3
Uma cultura social de referência: a cultura do samba
Os
vários
autores
com
os
quais
dialogamos
até
aqui
construíram ou se apropriaram de conceitos que lhes permitissem
melhor estudar a escola, a escolarização e o cotidiano escolar, ainda
que alguns o fizessem somente no plano conceitual. Assim, Forquin
90
(1993) entendeu ser importante trabalhar com o conceito de cultura
escolar, diferenciando-o do conceito de cultura da escola para
discutir as relações entre escola e cultura. Gimeno Sacristán (1995)
utiliza a diferenciação entre currículo formal e real para ampliar o
conceito de cultura escolar. McLaren (1991) vai buscar no conceito
de ritual o caminho para entender os processos escolares numa
pesquisa etnográfica. Pérez Gómez (2001) reconhece a penetração
de várias culturas no espaço escolar e identifica cinco das culturas
que se cruzam no espaço escolar.
Nesta pesquisa focalizo um tipo de cultura presente no
contexto onde está inserida uma unidade escolar. Procuro entender
como uma cultura social local estaria cruzando aquele espaço
escolar. Esta cultura seria a cultura do samba. A utilização deste
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termo, no entanto, tal como o estou usando, não tem registro na
literatura consultada. Existem vários trabalhos abordando o que se
chama mundo do samba, com abordagens mais ou menos próxima do
uso que faço do conceito 26, como discutirei mais adiante, a não ser
em trabalhos de minha autoria 27. As razões pelas quais me arrisco
26
Al g u n s e x e mp lo s d e a u to r e s c o n s ul tad o s. No c a mp o d a An tr o p o lo gi a : M a r i a
J úl ia G O LDW AS S E R, O p a lá c io d o sa mb a , 1 9 7 5 ; J o sé S á vio LE O P OL DI ,
E sc o la d e sa mb a , r itu a l e so c i e d a d e , 1 9 7 7 ; Fi lip p i na CHI NE L L I e L uiz
An to n io M . d a SI L V A, O va z io d a o r d e m: r ela ç õ e s p o l ít ica s e o r g a ni z a c io na is
e n tr e a s e sc o la s d e sa mb a e o j o go d o b ic ho , 1 9 9 1 ; M ar i a La ur a V . d e C.
C AV ALC ANT I, Ca rn a v a l c a rio ca , 1 9 9 4 ; Ro b er to M O UR A, Tia C ia ta e a
p e q u e n a Á f ri c a n o R io d e J a n e i ro, 1 9 9 5 ; Her ma no VI ANN A, O mi st ér io d o
sa mb a , 1 9 9 5 ; Ro b er to D AM AT T A, Ca rn a va l , ma la n d ro s e h eró i s, 1 9 9 7 ;
M o n iq ue AUG R AS, O B ra si l d o sa mb a - e n red o , 1 9 9 8 ; no c a mp o d a Hi stó r ia
C ul t ura l: J o sé R a mo s T I NH OR ÃO , Mú s ic a p o p u la r : u m te ma e m d eb a t e , 1 9 6 9 ;
Hira m AR AÚJ O e Ama u r y J Ó RI O, E sc o la s d e sa mb a e m d e s fi le, 1 9 6 9 ; A nto n io
C AND EI A FI LHO e IS N AR D AR AÚJ O , E s c o l a d e sa m b a : á rv o re q u e e s q u e c e u
a ra i z, 1 9 7 8 ; N ei L OP E S, O n e g ro n o R io d e J a n e i ro e su a t ra d içã o m u si c a l,
1 9 9 2 ; HI ST Ó RI A D O S AM B A, 1 9 9 7 ; Har o ld o CO ST A, O ne gr o na M P B . B r e ve
p a no r a ma, 1 9 9 7 ; Ne i L O P E S, U ma b r e ve hi stó r ia d o s a mb a , 1 9 9 8 ; no c a mp o d a
E d u c a ç ã o : Fi lip p i na C H I NE L LI , O p r o j e to p e d a gó g ic o d a s E sc o la s d e S a mb a e
o acesso à cidad a ni a – o ca so d a Ma ngue ira, 1 993; Cr i s ti a na T R AMO NT E, O
sa mb a c o n q u i sta p a s sa g em, 1 9 9 6 ; no c a mp o d a c o mu n ic a ç ã o e s e mió ti c a : N ei
LOP ES , O sa mb a , n a re a lid a d e. .., 1 9 8 1 ; Sér g io C AB R AL, A s e sc o la s d e sa mb a
d o R io d e J a n e i ro, 1 9 9 6 ; C a r lo s Alb e r to M . P EREI R A, Sa n t uár io d a P e n ha e
B lo c o Cac iq ue d e Ra mo s, 1 9 9 7 ; M u niz S OD RÉ , S a mb a , o d o n o d o c o rp o , 1 9 9 8 ;
L e na F RI AS , “ Sa mb a se m e s c a l a s , d a Ce n tr a l a O s wa ld o Cr uz ” , 1 9 9 8 ; no
c a mp o d a Ad mi n i st r a ç ão : Ci n tia d e M e lo M o r a e s , A cu ltu ra b ra si lei ra r e velada
n o b a r ra c ã o d e u ma e sc o la d e sa mb a : o c a so d a fa m íl ia i mp e ra t r iz , 1 9 9 6 .
27
O ar ti go S a mb a e a c ul t ura br as il eira , N o vame ri ca , 1 9 9 9 ; o tr a b a l ho
a p r e se nt a d o “ A c ul t ur a d o sa mb a : u m e sp a ç o e d uc a t i vo ? ” no X E NDI P E , 2 0 0 0 ;
mi n h a d is se r ta ç ã o d e me s tr a d o E s c o la d á sa mb a ? O q u e t êm a d i ze r o s
91
com tal noção serão alinhadas mais à frente. De imediato assumo
que estou partindo da hipótese de que a escola escolhida está
inserida num bairro – hipótese confirmada pelo que desenvolvemos
no capítulo 1 – que tem presente o que chamo de cultura do samba,
sendo um dos conceitos fundamentais para este estudo.
Levando-se em conta o caráter heterogêneo e plural da cultura
popular, ela pode “ser desdobrada em culturas populares” (Velho,
1994a, p.64). O samba está inserido nestas culturas populares,
consistindo-se em uma cultura com identidade própria. A cultura do
samba pode ser vista, desta maneira, como um “conjunto de
fenômenos socioculturais”, que contrasta com outros conjuntos
como cultura punk, cultura Hip-Hop, por exemplo.
Mas como qualquer cultura não é homogênea, diz-nos Ortiz
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(1994), e “toda identidade é uma construção simbólica” (Ortiz,
1994, p.8), coexistem em torno do samba formas diferentes de se
relacionar com sua história e com seus símbolos, formas diferentes
de compor (escolhas melódicas e arranjo) e cantar (vocalização),
sambar
(expressão
determinados
acompanham
corporal),
tipos
a
festa,
de
assim
sambas,
determinada
como
preferências
determinadas
maneira
de
por
comidas
que
organizar
uma
atividade, determinada forma de se comportar no ambiente, por
exemplo.
Neste sentido, considerando ainda que as culturas têm uma
certa
heterogeneidade
e
complexidade,
entendo
que
algumas
características compõem a cultura do samba em determinados
subúrbios e favelas cariocas, historicamente ligadas à cultura afrobrasileira ou cultura negra 28, mas que têm o concurso de outras
culturas.
c o mp o si to r e s d o b a i r ro d e Os wa ld o C ru z e d a P o rte la , 2 0 0 1 ; e o r e s u mo d a
d is se r ta ç ã o p ub l ic a d o e m LI M A, Au g u s to C. G. e . I n C AN D AU, V er a ( o r g. ) ,
S o c ied a d e , E d u c a çã o e c u ltu ra ( s ), 2 0 0 2 , p . 1 7 3 - 2 0 2 .
28
O s a mb a é vi sto e m se u s p r i mó r d io s, c o mo p a r te d a c u l tu ra n e g ra ( C ab r al,
1 9 9 6 ; M o ur a , 1 9 9 5 ; So d r é , 1 9 9 8 e 2 0 0 2 ; T i n h o r ã o , 1 9 6 9 ) . P a r a Ni l m a Li no
GOM ES , “a c u lt ur a ne gr a pod e s er vi st a co mo uma p art ic ul arid ade cult ur al
c o n s tr uíd a hi s to r i ca me nt e p o r u m gr up o é t ni c o /r a c ial e sp e c í f ic o , n ã o d e
ma n eir a i so lad a , ma s no co nta to co mo o utr o s g r up o s e p o vo s . E s sa c u lt ur a faz se p r e s e nt e no mo d o d e v id a d o b r a s il e ir o , s e j a q u a l f o r o se u p e r te n c i me n to
92
O ponto de partida desta cultura é o gênero musical samba e
suas
modalidades 29,
samba-canção,
como
samba-enredo,
samba-choro,
samba-de-partido-alto,
samba-exaltação,
samba-de-breque,
samba-duro, na cidade do Rio de Janeiro 30. É a música e tudo que ela
significa que organiza esta cultura.
Pode-se dizer também que é uma expressão da cultura popular
brasileira, peculiarmente desenvolvida na cidade do Rio de Janeiro,
principalmente marcada pela criação por parte de pessoas de
camadas populares, a maioria negra, de suas áreas centrais a seus
subúrbios e favelas. Musicalmente mantém proximidades com
ritmos como jongo, caxambu e chorinho, assim como partilham
costumes
com
apreciadores
destes
ritmos,
até porque muitos
compositores e instrumentistas fazem parte da produção de todos
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estes gêneros musicais.
A
presença
fundante
dos
afro-brasileiros
no
samba
é
inquestionável (Cabral, 1996; Moura, 1995; Sodré, 1998 e 2002;
Tinhorão, 1969) e constitui parte da história desta população. Lívio
Sansone (2003), procurando entender a produção de símbolos em
torno da negritude na relação entre o global e o local, rejeita a
análise de pensar a cultura musical da população negra brasileira no
sentido centro-periferia, ou seja, a partir das economias centrais do
é t ni c o ” , i n C u lt ur a n e gr a e e d uca ç ã o , 2 0 0 3 , p . 7 7 . L í vio S ANS O N E te m a
se g u i nte d e fi n iç ã o d e cu ltu ra n eg ra : “p o d e s e r d e fi n id a c o mo a s u b c u lt ur a
e sp e c í f ic a d a s p e s so a s d e o r i ge m a fr ic a n a d e n tr o d e u m si s te ma so c i a l q u e
enfat ize a cor, o u a a sce nd ê n cia a part ir d a cor, co mo um cri tér io i mport ante de
di fere ncia ção o u se gr e g ação d as pe s soa s. A e x is tê nc ia de uma c u lt ur a ne gr a
p r e s s up õ e a t r a n s mi s são d e p a d r õ e s o u p r i nc íp i o s c u lt ur a i s e sp e c í f ic o s d e u ma
ger ação para o utr a, d e nt ro de c erto s gr up o s so ci ai s, o s q ua i s pode m i n cl ui r uma
mu l t ipl icid ade de tipo s fe no típ ico s de pe s s o as de as ce nd ê n ci a a fr ica na
( me s ti ç a ) . E s sa tr a n s mi s são se d á n a fa mí l ia na q ua l o s p a i s e n s i na m o s fi l ho s
so b r e se u p a ss ad o , o u a t r av é s d a s r ep r es e nt açõ e s gr up a i s, na s q ua i s a s p es so a s
ma i s ve l ha s o u a s d e c o n h e c i me nto r e c o n h e c i d o so b r e o q ue é t id o c o mo
cult ur a ne gr a so c ial iza m es s e co nhe ci me n to co m as de ma i s”, i n N e g r it u d e s e m
e tn i c id a d e , 2 0 0 4 , p . 2 3 .
29
Ne i L OP E S c it a 2 2 v a r i a ç õ e s d o gê ner o p o r to d o o B r a si l. C f . ve r b e t e s a mb a
in E n c ic lo p é d ia B ra s il e i ra d a Diá sp o ra A fr ic a n a , 2 0 0 4 .
30
Há a i nd a o s q ue e nco ntra m o utra moda lid ade, que seri a o s a mb a si nco p ado,
ex e mp l i fi cad o no sa mb a E sc u rin h o ( 1 9 5 4 ) d e G er a ld o P e r e ir a ( 1 9 1 8 -1 9 5 5 ) . De
fo r ma ma i s p o lê mi c a, o ut r o s i n c l ue m o p a go d e , e x e mp l i fi c a d o no s gr up o s
Ne gr i t ud e J r , SP C, M o lej o e tc . , r e c o n he c e nd o a i mp o r tâ nc ia d o s me io s d e
c o mu n i c a ç ã o . E a i nd a o u t r o s q ue i nc l ue m a b o s s a no va, c o m o u ma
c a r a c ter í st ic a d e u m sa mb a ma i s p r o d uz id o e c o n s u mid o n a z o na s ul d o Rio d e
J ane ir o .
93
mundo capitalista para esta periferia em que estamos. Ele está
preocupado em mostrar que no Brasil não se pode pensar as relações
entre a música, a cultura e identidade negras de forma estática. Mas
reconhece que: “ao cruzar o Atlântico Negro, a música desempenha
um papel essencial na construção da identidade negra, tanto na
versão tradicional quanto na versão contemporânea da cultura
negra” (Sansone, 2003, p.204, grifos meus).
Desse modo, no processo de criação e organização das
Escolas de Samba, na luta contra a perseguição sofrida pelos
sambistas, na defesa de sua cultura, na ocupação dos espaços
públicos, na ocupação dos espaços geográficos de moradia na cidade
do Rio de Janeiro, a cultura do samba foi se forjando. Neste
sentido, a afirmação da origem africana do samba e valorização
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desta história, ainda que tendo inúmeros entrecruzamentos culturais,
é uma das formas de explicitar a presença dos negros na cultura
brasileira 31. Ao ganhar uma visibilidade, torna-se uma afirmação do
negro como ator sócio-político no cenário carioca e nacional. A
criação das Escolas de Samba, por exemplo, não é somente um
fenômeno artístico-cultural, mas social e político, significando
visibilidade e ocupação do espaço público, numa forma de luta, de
certa maneira organizada (através das Sociedades Carnavalescas,
Ranchos, Blocos carnavalescos e Escolas de Samba), que vem desde
o século XIX, que passam a chamar a atenção dos governos e dos
partidos políticos (Araújo, 2000; Augras, 1998; Cabral, 1996;
Moura, 1995; Sodré, 2002).
Uma característica marcante é o desenvolvimento de algumas
formas
particulares
de
sociabilidade,
tais
como
aquelas
possibilitadas pelas Escolas de Samba, rodas de samba 32, almoços
31
Os c o n ta to s e ntr e o s sa mb i sta s ne g r o s e p o b r e s c o m i nd i víd uo s d a e l ite
b r a s ile ir a no i n íc io d o s é c ulo XX , c o mo a p o nta Via n n a ( 1 9 9 5 ) , a s s i m c o mo o s
p er ma ne n te s co n ta to s co m o utr o s gr up o s c ul t ur a is, e nr iq uec er a m o sa mb a, ma s
não a n ul ar a m a s r el açõ e s a s si mé tr ica s e n tr e o s gr up o s so ci ai s q ue
r e p r e se nt a va m. Co mo d i z Or ti z ( 1 9 9 4 , p . 8 ) , “ f a l a r e m c ul t ur a b r a si le ir a é fa lar
e m re laçõ es d e poder .”
32
P a r a se ter e m c o n ta a i mp o r tâ n c ia d a r o d a d e sa mb a , ver Sér g io C A B R AL
( 1 9 9 6 ) A s e s c o la s d e s a mb a d o R io d e J a n ei r o ; An to nio C AN DEI A Fi l ho &
I SN AR D Ar a új o ( 1 9 7 8 ) E s c o la d e S a mb a : a ár vo r e q ue e sq uec e u a r a i z; Ne y
94
comunitários dos sambistas e suas famílias etc., em que o corpo
ganha um espaço-presença. Assim como em termos musicais a
síncope “é a ausência no compasso da marcação de um tempo
(fraco) que, no entanto, repercute noutro mais forte” (Sodré, 1998,
p.11), a síncope incita aqueles que escutam a preencher o espaço
vazio com uma marcação do corpo através do seu balanço, das
palmas, dos meneios, da dança (ibidem) 33. O samba nos ensina a
marcar nossa existência com o corpo e não só com a razão.
A organização de rodas de samba – muitas vezes chamadas de
pagode 34 ou pagode de mesa, que é uma reunião de sambistas para
cantar e batucar sambas – teve origem nos batuques organizados
pela população negra e mestiça no Brasil desde pelo menos o século
XVIII 35. Consiste em juntar os instrumentistas em volta de uma
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mesa, com instrumentos de percussão
como surdo, pandeiro,
tamborim, cuíca, tantã, repique de mão, chocalho, balde, repique de
anel, tambores e instrumentos de corda como violão de seis cordas,
violão de 7 cordas, cavaquinho, banjo e, dependendo da roda, até
mesmo
flauta
acompanhados
transversa,
pelas
palmas
normalmente
dos
demais
com
som
participantes.
acústico,
Muitos
instrumentistas são formados nestas rodas, que acabam por se tornar
L OP E S ( 1 9 8 1 ) O sa m b a , n a r e a l id a d e . . .: a u to p i a d a a s c e n sã o s o c ia l d o
sa mb i sta ; Ro b e r to M O UR A ( 1 9 9 5 ) T ia Cia ta e a p e q u e n a Á f ri c a n o R io d e
J a n e i ro ; Ca r lo s Alb e r to M e ss e d e r P E RE I R A ( 1 9 9 7 ) Sa nt u á r io d a P e n h a e B lo c o
Ca c iq ue d e R a mo s : tr a d iç ã o d e c u lt ur a p o p ula r ; M u n iz SO DR É ( 1 9 9 8 ) S a mb a ,
o d o n o d o c o rp o , e n tr e o ut r o s a uto r e s.
33
O sa mb a , a o c o nq u i st a r p a r c e la s n ã o n e gr a s, d e se n vo l ve u o utr a s fo r ma s d e
uso do corpo na pop ulaç ão bras il eir a. O q u e era ante s ca rac ter ís ti ca so mente da
p o p u l a ç ã o n e gr a fo i t a mb é m s e t o r na nd o d a p o p u l a ç ã o n ã o n e gr a , n u ma t r o c a
cult ur al q u e c arac ter iza a c u l tu ra d o sa mb a .
34
P a g o d e é “r e u n iã o d e s a mb i st as p ar a fa z e r sa m b a ” ( P E RE I R A, 1 9 9 7 , p .2 8 4 ) .
O t er mo é u sa d o p a r a d e si g n a r r o d a d e sa mb a . E m me a d o s d o s a no s 1 9 7 0 ho u v e
no R io d e J a n e ir o u ma e xp l o s ã o d e u m mo vi me n to d e r o d a s d e s a mb a – t a mb é m
c h a ma d a s d e p a g o d e – q ue te ve no B lo c o Ca c iq ue d e R a mo s s e u e p ice n tr o ,
p r o vo c a nd o u m r e no vad o in ter e s se p e lo s a mb a . Des te mo v i me n to e me r g ir a m
no me s co mo Al mi r G u ineto, Zeca P a godi nho , Fundo de Q u i nt al, J o ve li na
P é r o la Ne gr a , Ar l i nd o Cr uz , So mb r i n h a . P o st e r io r me n te, o ter mo p a g o d e fo i
a p r o p r iad o p e la i nd ú s tr i a fo no gr á fic a no s a no s 1 9 9 0 p a r a c la s si f ic a r u ma fo r ma
de ca nt ar e da nçar sa mb a d i fer e nt e, q ue apa r ece u co m gr up o s co mo Raç a
Ne gr a, Ne gr i t ud e J r , Só P ar a Co ntr a r iar , Gi n ga P ur a, É o T cha n, Mo l e j o etc.
E st e a p r o p r ia ç ã o c a uso u r e s is tê n c ia a o u so d o ter mo p a g o d e p o r mu ito s
sa mb i sta s a nt i go s .
35
C f. e m HI ST Ó RI A D O S AM B A, f a scí c ulo 1 , 1 9 9 7 , o d ia gr a ma d a p . 9 .
95
um espaço educativo 36, tal como nas Escolas de Samba. O uso de
certos
instrumentos
de
percussão,
vários
deles
criados
por
sambistas, tais como surdo, tamborim, pandeiro, tantã, repique de
mão, cuíca, reco-reco, balde, chocalho e várias adaptações que se
usa na falta de instrumentos, como prato de louça, caixa de
fósforos, mesa, casco de garrafa de vidro etc, é uma característica
da cultura do samba.
É fundamental para uma boa roda de samba a presença dos
partideiros 37 e das pastoras 38 para fazer o coro. É nos espaços das
rodas de samba que se toca o chamado samba de raiz 39. O partidoalto, samba em que o partideiro utiliza o verso de improviso, é um
aspecto fundamental. Desde as rodas de samba com umbigada ou
pernada do início do século XX aos primeiros desfiles das Escolas
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de Samba, o verso de improviso é uma marca do samba pois,
diferentemente da embolada ou repente, podem participar vários
partideiros e os ouvintes não são passivos, participando com
palmas, como coro e sambando. Além do conhecimento de samba,
exige tirocínio, presença de espírito, conhecimento da vida dos
setores populares para construir os versos e quanto maior for o
domínio do vocabulário e dos conhecimentos gerais, melhor será o
verso. Há um entendimento entre os sambistas de que as rodas de
samba
são
uma
forma
de
“resistência”
cultural
dos
setores
populares.
36
Di sc uto e s te a sp e c to no te xto a p r es e nt a d o no X E NDI P E . C f. Au g u s to C . G. e
LI M A, A c u lt ur a do s a mba: um e spa ço ed uc at i vo ? In: CD- RO M X E N DI P E, R i o
d e J a neir o , xe nd ip e / a r t i go s/2 3 7 C.P DF, 2 0 0 0 .
37
Pa rt id ei ro s s ã o a q uel es q ue faz e m v e r so d e i mp r o v iso no s sa mb a s d e p a r tid o alto .
38
As p a s to ra s são a s mu l he r e s q ue fa z e m o c o r o no s sa mb a s e , n a s E s c o l as d e
Sa mb a , trad ic io nal me nt e, tê m p r e s tí g io e i n fl uê n cia . Ver J o ão B ap ti st a M.
V ARG EN S & Carlo s M ONT E, A V e lh a Gu a rd a d a P o r te la , a p art e As p as tora s,
2 0 0 1 , p . 6 1 -6 9 .
39
O sa mb a d e ra iz é o t er mo nat i vo q ue d e si g n a o “ sa mb a v e r d a d e ir o ” , f e i to
por sa mb i sta s “do po vo ”, re sp ei ta ndo as “tr adi ções do sa mb a”, u m s a mb a q u e
não é co mer ci al. Não e x is te uma d e fi niçã o co ns ens ua l de st e t er mo, e mb o ra el e
sej a u s a d o no s j o r na is e na s p r o p a ga nd a s d o s e v e nto s o nd e se to c a sa mb a d e
ra i z. U ma r o d a d e sa mb a q u e se d e f i ne c o mo d e f e nso r a d a s “tr a d iç õ e s d o
sa mb a” e o nde só pod e t o car sa mb a d e ra i z e se m a mpl i fi caç ão do so m é a rod a
d e sa mb a d o B lo c o Cac iq u e d e Ra mo s , lid e r a d a p o r Re na ti n ho P a r t id e ir o , u m
d o s ma io r e s p a rt id ei ro s d a a t ua lid a d e , se g u n d o o s p a r tic ip a n te s d e r o d a d e
sa mb a d o Rio d e J a ne ir o .
96
O amor às Escolas de Samba e à sua escolhida em particular,
com devoção, ainda que não signifique fidelidade no desfile, forma
laços de amizade e companheirismo. A Escola de Samba 40 é a forma
mais visível da cultura do samba, com sua maneira peculiar de
organização, prática social e cultural, sua relação com o carnaval,
sua abertura para as diversas classes sociais e grupos culturais, com
suas reuniões de organização de cada parte (alas de desfile,
harmonia,
bateria,
compositores,
baianas,
passistas,
barracão,
diretoria etc.), seus ensaios de bateria, seus ensaios gerais, seu
culto à bandeira da Escola, seus almoços e comemorações com
comidas típicas, sua socialização de saberes, seu desfile na avenida.
Um aspecto que leva à rememoração é a existência da velha
guarda, que é a “denominação de cada uma das alas de veteranos
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das escolas de samba” 41, expressão da história viva do samba e
guardiã de suas tradições, ainda que possamos reconhecer seu
caráter construído (Hobsbawn, 2002). O costume de composição das
músicas em parceria, quando um faz a primeira parte e um ou mais
“parceiros”
fazem
a
segunda
parte,
como
forma
de
compartilhamento, cooperação, companheirismo, se estende não
somente aos antigos e novos amigos, mas às vezes àquele que está
necessitado,
40
para ajudar a “levantar” 42. As demonstrações de
A pri me ir a a gre mia ção a s e apr e se nt ar par a o púb li co co m es s e no me fo i a
Dei x a Fa lar e m 1 9 2 9 e no a no s e g ui n te j á ha v i a ma i s c i nco e sc o la s d e sa mb a
(T inho rão, 1969) . Sobr e a hi stór ia e fo r ma de orga niz ação, pr át ica c ul tural e
so c ia l d a s E sc o la s d e Sa mb a , e n tr e v á r io s a u to r e s, ve r S é r gio C AB R AL ( 1 9 9 6 ) ,
A s e sc o la s d e sa mb a d o R io d e J a n ei ro ; J o sé Ra mo s T I N HO R ÃO ( 1 9 6 9 ) ,
Mú sic a p o p u la r: u m te ma e m d e b ate ; M ar i a J úl ia GO L DW AS SE R ( 1 9 7 5 ) , O
p a lá c io d o sa mb a – e st u d o a n t r o p oló g ic o da E sc o la de S a mb a E st a ç ã o P r i me ira
d e M a n g u e ir a ; M a r i a L a ur a Vi v e ir o s d e Ca s tr o C AV AL C ANT I ( 1 9 9 4 ) ,
Ca rn a va l ca rio ca : b a st id o r e s d o d es f i le ; Ro b e r to D AM AT T A ( 1 9 9 7 ) ,
Ca rn a va is, ma la n d ro s e h eró i s ; M o ni q ue AUG R AS ( 1 9 9 8 ) , O B ra s il d o sa mb a e n red o ; H ir a m AR AÚJ O ( 2 0 0 0 ) , Ca rn a va l : s ei s mi l a no s d e hi stó r ia ; Cr is ti a na
T R AM ONT E ( 2 0 0 1 ) , O sa mb a c o n q u is ta p a s s a g e m: a s e str at é gia s e a ação
e d u c a t i va d a s e sc o la s d e s a mb a d e Flo r ia nó p o li s; C í nt ia d e M e lo M OR AE S
( 1 9 9 6 ) , A c u ltu ra b ra si l ei ra r e v e la d a n o b a r ra c ã o d e u ma e s c o la d e sa mb a : o
c a so d a fa m íl ia imp e ra t ri z.
41
C f. Ne i LOP E S, ver b ete v e lh a g u a rd a . I n E n c ic lo p é d ia B ra si le i ra d a
Diá sp o ra A f ri c a n a , 2 0 0 4 , e J o ã o B . M . V AR GE NS & Car lo s M O NT E , A V e l h a
Gu a rd a d a P o rte la , 2 0 0 1 .
42
E s te c o st u me ta mb é m se p r e s ta p a r a o u tr o s uso s, c o mo u ma fo r ma d e
p a g a me n to d e q ua lq u e r d ív id a o u c o mo v e nd a d e p a r c e r ia ( M á xi mo e Did ie r ,
1990).
97
solidariedade típicas das culturas populares, também se manifestam
no socorro à família de um sambista falecido, os mutirões para
construção de casas etc. O velório é um costume de várias culturas,
mas entre os sambistas, é chamado de gurufim 43 o velório realizado
com samba, comida e bebidas (alcoólicas inclusive) quando morre
alguém do samba.
Na cultura do samba é praticamente inexistente a restrição a
religiões. A convivência de religiões católica e afro-brasileiras
como o candomblé e umbanda, é marcada pela presença de imagens
ou símbolos católicos e de símbolos e pessoas ligadas aos cultos
afros nos espaços de samba. A realização de missas em nome de
sambistas que faleceram, assim como participação de sambistas em
terreiros de religiões afro-brasileiras, além da evocação sempre
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presente nas letras e nos espaços de samba de entidades e termos
das religiões afros e de santos católicos, é fato comum. Este aspecto
deve ser ressaltado, pois a perseguição às religiões afro-brasileiras
é histórica. Atualmente, quando a constituição de 1988 resguarda o
direito e o respeito às diferentes crenças, tem sido crescente a
perseguição a várias religiões não cristãs, principalmente por
igrejas evangélicas pentecostais 44.
A maneira de se vestir, de andar e se comportar revelam o
compartilhamento de uma cultura. Homens mais velhos usando
determinado tipo de roupas e calçados tais como calça de linho com
pregas, chapéu, sapato de couro preferencialmente branco, ou mais
jovens usando cordões e pulseiras de ouro ou prata, camisas por
fora da calça, por exemplo, são indicativos de modos de vestir dos
sambistas. As mulheres mais jovens usando saias justas e curtas,
calças justas, sandálias ou sapato com salto, ainda que haja uma
profusão de modos de vestir de acordo com a moda do momento, são
43
Gu ru f in é p a la vr a d e o r i ge m p r o va v e l me n te b a nt a ( gr up o l i n g üí st i co d e
mu i to s ne gr o s e s cra v izado s q ue fo r a m t r azido s par a o B r a si l ) . C f.
DI CI O NÁ R I O Ho u a is s d a lín g u a p o rtu g u e sa ( 2 0 0 1 ) , ver b e te g u ru fi n . Ver
ta mb é m Ne i LOP E S , E n c ic lo p é d ia B ra s il e i ra d a Diá sp o ra A fr ic a n a , 2 0 0 4 .
44
Ver a e st e r e sp e ito m a tér ia “ U mb a nd a e c a n d o mb lé e s tão e nc o l h e n d o no
paí s”, O Glo b o , 1 º /0 1 /2 0 0 5 , p . 1 0 , e “ Or ga n iza çõ e s r e c o r r e m à J u st iça c o ntr a
ataq ue s d as neope nteco s tai s” , O Glo b o , 1 º /0 1 /2 0 0 5 , p . 1 1 .
98
preferências de freqüentadoras de samba. Nos espaços das Escolas
de Samba, o uso de roupas e chapéus com as cores da Escola ou
camisetas e bonés com o símbolo da Escola, fazem parte da
indumentária. Um comportamento facilmente identificável é a
formação de grupos de amigos dos subúrbios e periferia que pegam
a mesma condução de ida e volta do trabalho, para batucar e cantar
samba, seja no trem ou no ônibus, para ajudar a suportar os
transtornos e o tempo da viagem.
O culto ao “malandro” ou à “malandragem”, vistos como tipos
ideais,
que
são
espertos,
inteligentes
e
representantes
da
“resistência” popular à ordem que interessa às elites. O uso do
corpo e a expressão corporal dos homens como o de um “malandro”,
com andar balanceado e formas de dançar com passos e maneira de
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balançar o corpo que rememoram as rodas de pernada e capoeira,
tem força simbólica. É ser dono do corpo. Além disto, estilos de
vida boêmia, que têm encontros musicais que avançam pela
madrugada, mesmo nos dias de semana e mesmo tendo que acordar
muito cedo no dia seguinte. Antes de ser vadiagem, como era
acusada no passado, é também uma forma de enfrentar a dura
realidade.
O uso de códigos de expressão tais como as gírias “cantar pra
subir”, “malandragem dá um tempo”, “meu parceiro”, referências ao
amigo ou parceiro como “compadre” ou “irmão”, fazem parte da
linguagem dos sambistas. Os cumprimentos efusivos com abraços e
beijos na mão e/ou no rosto, cumprimentos à distância batendo com
o punho fechado no próprio peito na direção do coração como a
dizer: você está no meu coração, cumprimentos aos mais velhos e
respeitados no samba com reverência, compõem o gestual daqueles
que comungam de uma mesma cultura.
Ao mesmo tempo, os valores machistas estão firmemente
inseridos. O culto ao malandro está também ligado ao princípio do
“direito” do marido ou companheiro masculino de estar na rua até a
hora que desejar, de ter quantas relações fora da união que ele
99
quiser 45. Antes de tudo estas relações assimétricas entre homem e
mulher estão ligadas à construção histórica das relações maritais no
Brasil. Se a cultura do samba incorpora o aspecto machista da
sociedade brasileira, não o faz sem um misto de conformismo e
resistência por parte da mulher. A tradição das mulheres negras
quituteiras que sustentavam a família no passado (Moura, 1995) e o
atualmente crescente número de mulheres como chefes de família
também fazem parte da cultura do samba. Os conflitos devidos às
posturas machistas sempre ocorrem. Descrevo o que se chama de
barraco, num certo domingo do ano de 2000, no Pagode da Tia
Doca, a tradicional roda de samba em Madureira, dirigida pela Tia
Doca, da Velha Guarda da Portela:
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A roda de samba corria solta e o samba cant ado era Tendência (D.
Yvone Lara e J or ge Aragão), acompanhado pelas pessoas
presentes. Como tinha chegado mais tarde, em torno de 23:00h,
não consegui ficar perto da roda, mal escut ando os instrumentos,
pois o som é acústico, sem amplificação. De repente, ouço uma
discussão um pouco atrás de mi m. Fato pouco comum naquele
pagode, voltei -me para olhar. Uma mulher negra, bonita,
aparentando pouco mais de 30 anos, si mplesmente desancava
furiosamente o que deveria ser seu marido ou companheiro, um
homem negro, de aproxi madamente 40 anos, dizendo alto mais ou
menos isto: “você não disse que estaria trabalhando, seu safado!?
Você não disse que tinha plantão, desgraçado?”, ao mesmo tempo
em que o agredia com unhas e socos, com o incentivo de al gumas
ami gas. Depois de al guns minutos de tentativas de explicação por
parte do homem, apelando pelo bom senso e pela consideração de
estarem em local público, que não foram levados em conta,
simples mente o suj eito saiu enxotado do pagode, enquanto que a
mulher per maneceu, até o fi m, para o riso di sfarçado das pessoas e
o comentário rolando de boca em boca.
As visões de mundo que abarcam o ideal de um Brasil sem
preconceito racial 46, onde todas as “raças” 47 podem conviver bem são
45
Ver a r e p o r t a ge m so b r e p e sq u is a d a a n tr o p ó lo ga Alb a Z a l u a r so b r e o p e r f il
d o s s a mb i s ta s, q ue são vi s to s co mo ma c hi st as c o r d iai s. C f. Már c ia CE Z I MB R A
e J o s é Do n iz et i CO ST A, “Ma c hi s ta co rd ia l”, J o r na l d a Fa mí li a, O Glo b o , p . 1 -2 ,
1 7 /0 8 /2 0 0 3 .
46
Co mo d e mo ns tr o u Ro b er to D AM AT T A, “a fáb ul a d a s tr ê s r a ç as , to r n o u - se
u ma id e o lo gi a d o mi n a nt e , a b r a n g e nte , c a p a z d e p e r me a r a vi são d o p o vo , d o s
in te lec t ua i s, d o s p o l ít ic o s e d o s a c a d ê mico s d e e sq u e r d a e d e d ir e i ta , u n s e
o ut r o s gr ita nd o p e la me st iça g e m e s e u ti li za nd o d o ‘b r a nco ’ , d o ‘ ne gr o ’ e d o
‘ í nd io ’ c o mo u n id a d e s b á s ic a s a t r a vé s d a s q u a is se r e a li z a a e xp lo r a ç ã o o u a
r ed e nção d as ma s sa s” . C f. R ela tiv i za n d o ; uma i n trod ução à a n tropo lo gia so c ial ,
2000, p.63.
100
historicamente exercitados nos espaços do samba. Neste caso é
preciso entender o samba e a cultura do samba como produto
histórico e ao mesmo tempo produtor das lutas da população afrobrasileira para conquistar espaço na sociedade hierarquizada pelo
paradigma branco. Neste sentido, faz parte da luta contra o racismo
ao fazer da população negra agente sóciopolítico, de sujeito que faz
a ação, faz história. Se por um lado não existe a decantada
“democracia racial brasileira”, por outro lado a cultura do samba
educa para a interculturalidade, embora não anule as assimetrias
existentes na sociedade.
A convivência nos espaços de samba de pessoas de classes
sociais, “raças” e culturas diferentes, é fruto de uma busca
constante
(histórica) das
escolas
de
samba
(DaMatta,
1997),
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procurando alargar seu espectro social, no sentido de quebrar o
preconceito existente e fazer contatos que possibilitem abrir espaço
para sua cultura e também ganhos que permitam uma vida melhor
para as pessoas que vivem do samba.
O culto aos valores familiares 48, tais como valorização da
relação de parentesco, respeito aos pais, avós etc faz parte do ethos
do sambista. A família é uma categoria naturalizada neste universo.
A presença feminina como referência, encarnada nas tias, que são
mulheres fortes e protetoras, sobressai-se nas escolas de samba e
nas rodas de samba de subúrbio e favela. É destacado o papel que as
mulheres têm na organização da culinária, organização de festas e
organização das escolas de samba. Há o reconhecimento do seu
valor como destaque e presença fundamental e a nomeação das
mulheres que participam do coro como “pastoras”. Por outro lado, a
47
Co mo d i z An to n io Sér g io G u i ma r ã e s ( 2 0 0 2 , p . 5 0 ) , “ n ã o h á ‘ r a ç a s ’
b io ló gi ca s, o u s e j a, na e sp é c ie h u ma n a nad a q ue p o ss a s e r c l a s s i fi c a d o a p a r tir
de crit ério s ci e nt í fico s e corresp o nd a ao que c o mu me nte c h a ma mo s de ‘r aç a ’.
‘Ra ça ’ te m e x i stê n c ia no mi n a l , e fe ti v a e e f ic a z a pe n a s no mundo soc ia l e ,
p o r ta nto , so me nt e no mu nd o so c ia l p o d e ter v a l i d a d e p l e na . ”
48
Fa mí lia , p a r a P i e r r e B OU RDI E U ( 1 9 9 7 , p . 1 3 1 ) , “ é u m d o s l u gar e s p o r
e x c e l ê nc ia d e a c u mu l a ç ã o d e c a p i ta l so b s e u s d i fer e nte s t ip o s e d e s ua
tra n s mi s são e n tre a s ge raçõe s: e la re s g uard a s ua unid ade pe la tr a ns m is são e
p a r a a tr a n s mi s s ã o , p a r a p o d e r tr a ns mi tir e p o r q ue e la p o d e tr a ns mi tir ” . Ver no
ap ê nd ic e O e sp ír ito d e fa mí lia , i n : R a zõ e s p r á tica s : sobr e a teor ia d a ação ,
1 9 9 7 , p p . 1 2 4 -1 3 5 .
101
presença
masculina
é
hegemônica
entre
compositores 49
e
instrumentistas, disseminando uma cultura de cunho machista.
Outro aspecto importante que se disseminou pelas escolas de
samba, é a penetração da contravenção, do jogo do bicho, tornandose hegemônico nas suas direções e na Liga das Escolas de Samba
(LIESA) 50. Esta presença e hegemonia foram construídas ao longo de
décadas, marcando relações paternalistas e autoritárias com os
membros das escolas de samba (Chinelli e Silva, 1991; Cavalcanti,
1994).
As comidas típicas do samba são a marca de uma culinária
afro-brasileira: feijoada, caldo de feijão, caldo verde, mocotó, com
temperos que em geral levam pimenta malagueta, além de lingüiça e
carne seca com farofa. O consumo de cerveja está sempre presente
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nas atividades de samba, assim como a cordialidade presente nos
eventos organizados.
A organização de atividades sociais nas Escolas de Samba
abertas à “comunidade”, desde festa de casamento, festa de 15 anos,
almoços, à seção eleitoral no dia das eleições, são aspectos do uso
social do espaço físico e da relação das escolas com a população
local. A organização de projetos sociais inclusivos nas Escolas de
Samba,
tais
como
cursos
profissionais,
esportes,
atividades
artísticas, tem longa data, ainda que só agora seja reconhecido neste
sentido. Isto tem relação com o papel da escola de samba e o que ela
enseja. A primeira escola pública instalada em favela foi no morro
da Mangueira, graças à atuação e influência da escola de samba.
Assim, a cultura do samba é composta de vários elementos,
que se enriquecem constantemente e lhe dão identidade. A vivência
nesta cultura implica uma relação com o mundo que a toma como
uma das referências de vida e de construção simbólica da realidade.
Podemos identificar alguns aspectos do processo de realização da
49
E st a é u ma q ue i xa d e D. I vo n e Lar a, c o mp o si to r a d e s uc es so , li ga d a a o
I mp ér io Ser r a no , a B r a u lio Neto , O G lo b o , Se g u nd o Cad er no , p . 7 , 1 2 /0 2 /9 9 .
50
A LI E S A, f u nd a d a e m j u n ho d e 1 9 8 4 , d esd e a s ua f u nd a ç ã o é c o n tr o lad a
p e lo s b i c he ir o s. De sd e se u p r i me ir o p r e s id e n te, Ca s to r d e An d r a d e , a té a o
a t ua l, Cap i tão G ui ma r ã es, são d o no s d e b a nca d e b ic ho . C f. Hir a m Ar a új o ,
Ca rn a v a l: se i s mi lê n io s d e hi stó r ia, 2 0 0 0 .
102
cultura do samba 51 que implicam em sua construção e reconstrução:
a) a mediação cultural – efetivada por grupos e indivíduos de
culturas
diferentes,
possibilitando
interligações
entre
culturas
diferentes 52; b) identidade cultural 53 – afirma-se uma identidade
carioca e brasileira, ainda que se leve em conta os hibridismos
(Garcia Canclini, 1999); c) afirmação social da população negra 54
através de uma maior visibilidade positiva; d) memória coletiva; e)
solidariedade, reforçando os laços de amizade e ajuda mútua; f)
sociabilidade, facilitando processos de integração social; g) antiracismo, inexistência de preconceitos raciais e favorecimento de
integração social; h) tradição e renovação; i) contradições e
conflitos, fruto das relações sociais, econômicas e culturais que
historicamente vive a população carioca; e j) socialização dos
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saberes e práticas referentes ao samba e também a ethos, códigos,
estratégias de sobrevivência, que constituem um processo educativo.
Tramonte 55, em seu livro O samba conquista passagem: as
estratégias
e
a
ação
educativa
das
escolas
de
samba
de
Florianópolis (1996), oriundo de sua dissertação de mestrado em
Educação pela UFSC, faz um estudo profundo da relação entre o
“mundo do samba” e a Educação, pesquisando como isto se dá nas
51
Di s c ut i e s te s a sp e c to s e m mi n h a d i s se r taç ão d e me s tr a d o . Ver Au g u s to Cé sar
Go nça l ve s e L I M A, E sc o la d á sa mb a ? O q u e t êm a d iz e r o s c o mp o si t o re s d o
b a ir ro d e O s wa ld o C ru z e d a P o rt e la , P U C - Rio , 2 0 0 1 , p . 6 0 -6 8 .
52
O s co n ta to s c u lt ur a i s e nt r e me mb r o s d a e li te e sa mb i st as no i níc io d o séc u lo
XX p e r mi tir a m a o sa mb a a mp l iar s u a a b r a n g ê n c ia ( Vi a n na , 1 9 9 5 ) . D a me s ma
fo r ma , a b us c a d o s sa m b is ta s p o r le g it i ma ç ã o , a tr a i nd o o utr a s c a mad a s so c ia is
p ar a a s e sco l a d e s a mb a ta mb é m p o ss ib i li tar a m t r o ca s c u lt ur ai s ( Si l va e Sa n to s,
1 9 8 9 ; D aM a tt a , 1 9 9 7 ) .
53
Hal l ( 1 9 9 7 b , p . 2 6 ) e xp l ic a : “O q ue d e no m in a mo s ‘ no s sa s id e n tid a d e s ’
p o d e r ia p r o va v e l me n te ser me l ho r c o nce it u a d o c o mo a s s e d i me n t a ç õ e s a tr a v é s
d o te mp o d aq ue la s d i f er e nt es id e n ti f ic açõ e s o u p o si çõ e s q ue ad o t a mo s e
p r o c u r a mo s ‘ v i ve r ’, c o mo se vie s se m d e d e n t r o , ma s q ue , s e m d ú vi d a , s ã o
o c a s io nad as p o r u m c o n j un to e sp e c ia l d e c ir c u n st â nci as , s e nt i me n to s , h is tó r i as
e e xp er iê nc ia s ú n ica s e p ec u lia r me n te no s sa s, co mo s uj eito s i nd i v id u ai s.
No s sa s id e n tid ad e s s ão , e m r e s u mo , fo r mad a s c u lt ur a l me n te. ”
54
A b u sc a d e le gi ti maç ão d o s sa mb i sta s o c o r r ia e o c o r r e n u ma so c i e d a d e
b r a s ile ir a e xtr e ma me n t e h ie r a r q u iz a d a ( Da M a t ta , 2 0 0 0 ) .
55
Ver Cr i s ti a na T R AMO NT E , O sa mb a c o n q u i st a p a ssa g em : as e s trat é g ia s e a
ação ed ucat i va da s e s cola s de sa mb a de Fl oria nópol i s (1996), c a p ít ulo A
p e d a go gia d a s E sc o la s d e Sa mb a d e Flo r ia nó p o li s, p . 2 0 9 -2 6 9 . E s te me s mo
tr a b a l ho fo i e d it a d o se m a p ar te so b r e a h is t ó r ia d as E sc o la s d e S a mb a d e
Flo r ia nó p o li s. Ver Cr i s tia n a T R AMO NT E, O s a mb a c o n q u is ta p a ssa g em: a s
e s tr a t é gi as e a a ç ã o e d u c a t i va d a s e s c o l as d e sa mb a . P e tr ó p o li s : Vo z e s, 2 0 0 1 .
103
Escolas de Samba de Florianópolis. Em sua busca, vai estabelecer
um olhar para seu objeto de estudo, que o delimita simbolicamente:
“a escola de samba é uma prática cultural que processa e organiza
as relações sociais, econômicas e políticas da parcela que aí
convive no que convencionamos denominar o ‘Mundo do Samba’”
(Tramonte, 1996, p.16, grifos meus). Por sua própria definição, este
“mundo do samba” não se circunscreve apenas ao espaço físico da
Escola de Samba e onde está localizada, mas também a várias
práticas e relações sociais das quais o samba faz parte.
Com o fim de analisar os processos que perpassam as Escolas
de
Samba
como
“‘locus’
educativos
das
classes
populares”
(Tramonte, 1996, p.215), levando em conta sua ‘omnilateralidade’ e
‘omnidimensionalidade’, a autora divide em seis os processos
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pedagógicos das Escolas de Samba 56 verificados por ela: pedagogia
da ação social, pedagogia da ação política, pedagogia dos valores
éticos e morais, pedagogia da ação escolar, pedagogia da ação
cultural e pedagogia da arte.
A Pedagogia da
vertentes:
a
vida
Ação
Social
comunitária,
com
é desenvolvida em duas
sua
sociabilidade
e
a
multiplicidade de usos e atividades que são possíveis durante todo o
ano; e os contatos desenvolvidos com outras camadas da população
– uma convivência na diversidade – que aumenta ano a ano, do
contínuo afluxo de neófitos da cidade e do estrangeiro às pessoas de
camadas sociais diferentes e atividades profissionais diferentes
(artistas,
intelectuais
etc.);
a
socialização
de
saberes,
que
possibilita organizar e manter a Escola de Samba, para desfilar e
56
Gi lber to D I ME NST EI N , co nt a o q ue aco nte ce u qua ndo se apl ico u o q ue el e
ch a ma d e p ed a g o g ia d o sa mb a numa e sco la p úblic a no b airro P arq ue P eruc h e,
z o n a no r te d a c id a d e d e São P a ulo , q ue ti n h a o a p e lid o d e “ ma lo q u i n ha ” tal e r a
o es tado de aba ndo no e a vio lê nc ia q ue a c erca v a. U m no vo d ire tor apro xi mo u
as vár ia s e sco la s de sa mb a q u e e xi s te m no ba i rro, apro ve ita ndo toda s as s ua s
p e d a go gia s, e a e sc o l a s e tr a n s fo r mo u c o mp le ta me n te , c o m me l ho r a s e m to d o s
os a spec to s. N ão é ma is cha mada d e “ma loq ui nha”. C f. E xper iê n cia co m sa mb a
e n s i na o p r a z e r d e a p r e n d e r , F o lh a d e S ã o P a u lo , Co tid ia no , p .2 , 0 6 /0 2 /2 0 0 5 .
104
para as atividades durante o ano 57, que requer uma incrível
organização e onde se aprende vários ofícios.
A Pedagogia da Ação política desenvolve-se na busca de
consenso
interno
divergências
e
entre
externo,
‘velhos’
e
trabalhando,
‘novos’
e
por
entre
exemplo,
as
as
visões
da
agremiação e os interesses do Estado. Em todos os setores da Escola
de Samba, nas alas, na diretoria, na escolha do enredo, na escolha
do samba-enredo, no uso e cessão do espaço da quadra, a todo o
momento se exercita uma ação política.
A solidariedade do grupo, o amor à escola sem busca de lucro,
o desapego à vantagem quando se trata do bem coletivo: a Escola de
Samba e suas atividades, o respeito ao ambiente familiar é a
tradução de uma Pedagogia dos Valores Éticos e Morais. Diante de
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uma sociedade baseada em valores cada vez mais individualistas e
competitivos,
tal
pedagogia
enfrenta
dificuldades,
embora
se
apresente como ethos a ser socializado.
A Pedagogia da Ação Escolar está presente nos vários
conhecimentos
atividades
e
necessários
o
desfile,
para
é
se
uma
organizar
aplicação
a
Escola,
suas
interdisciplinar
de
conhecimentos. Não só os conhecimentos disciplinares básicos
como português e matemática, mas artes plásticas, literatura, teatro,
disciplinas
das
ciências
“duras”
como
química,
ótica,
e
conhecimentos do mundo do trabalho como carpintaria, solda etc.
O desenvolvimento e valorização da cultura afro-brasileira
está na Pedagogia da Ação Cultural. Mesmo existindo vários
críticos à chamada “invasão da classe média branca” e de setores da
elite e artistas (Tinhorão, 1969, Candeia & Isnard, 1978; Lopes,
1981), é inequívoco que o centro da Escola de Samba continua
sendo uma expressão da cultura afro-brasileira 58, tanto para nossa
57
Ver p o r e x e mp lo , a d is se r taç ão d e me str ad o e m Ad mi n is tr a ç ã o d e Ci nt ia d e
Melo M O R AE S, A c u lt u ra b ra si le ira r e v e la d a n o b a rra c ã o d e u ma e sc o la d e
sa mb a : o c a so d a fa m íl i a imp era t ri z, 1 9 9 6 .
58
Ver Ro b e r to D AM AT T A, Car n a va l e m mú l tip lo s p la no s, e sp e c i a l me n te
p p . 1 3 2 -1 3 5 , i n Ca rn a va i s, ma la n d ro s e h eró is , 1 9 9 7 ; e M ar ia J úl ia
GO LDW AS SE R, Cap ít ulo VI – I d eo lo gia d a E sco l a: o q ue p en sa o
105
história cultural quanto para a diversidade cultural brasileira, tendo
enorme papel simbólico;
O enriquecimento e diversificação do universo estético das
classes populares 59 que participam da Escola de Samba e daqueles
que assistem ao desfile ou freqüentam as quadras das Escolas faz
parte da Pedagogia da Arte. Com a transmissão internacional pela
TV dos desfiles das Escolas de Samba, é inegável seu status de arte
reconhecida e a riqueza estética de suas apresentações. Mas as
possibilidades de criação que se coloca para enorme gama de
trabalhadores/artistas populares é um fator fundamental.
Deste modo, entre outros aspectos, as Escolas de Samba
“atuam
como
conhecimentos
uma
que
visão
leva
em
interdisciplinar
conta
a
e
totalidade
produtora
do
de
processo
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pedagógico” (Tramonte, 1996, p.246). Este processo pedagógico faz
parte do que chamo de cultura do samba.
Mas vejamos como alguns autores no campo das ciências
sociais que pesquisam culturas populares operam com o conceito de
cultura. Vianna (1997a) quando faz estudo sobre que ele chama de
“o mundo funk carioca” não aborda seu objeto de estudo como uma
“cultura” e sim através do termo “mundo” 60. O mesmo acontece com
o estudo de Goldwasser (1975) em sua pesquisa sobre a Escola de
Samba Mangueira, em que fala em “mundo do samba”. Em ambos os
estudos a preocupação é semelhante: o termo “mundo” evita a
taxionomia, parecendo ser mais apropriado para dar conta da
heterogeneidade das manifestações culturais urbanas.
Assim, Vianna (1997) quando fala em “mundo funk carioca”
está se referindo a um variado mundo que: a) existe há pouco tempo
M a n g ue ir e n se ( I I ) , p p . 1 5 3 -1 6 0 , i n O p a lá c io d o sa mb a – e st ud o a ntr o p o ló gico
da E scol a de Sa mb a E st ação P r i meir a de Ma ngueira, 1975.
59
O a r g u me n t o d o p r e si d e n t e d a M a n g ue ir a , na d é c a d a d e 1 9 6 0 , so l ic it a n d o a o
ent ão go v e r na d o r C ar l o s L a c e r d a u ma q ua dra de e nsa io pa ra a E sc ol a: “ a qui lo é
no s so te atro , no s so ci ne ma , a únic a di ve rsão q u e nó s te mo s ” (a p u d
GO L DW AS SE R, 1 9 7 5 , p .4 8 )
60
Co n t ud o , a p e sa r d e s ua vi g ilâ n c i a e p i st e mo ló gi c a , V ia n na ( 1 9 9 7 ) ,
c o me nt a nd o q ue a p e sa r d o fu n k faz er p ar te d a c ul t ur a h ip h o p , no Rio d e
J a ne ir o , no mo me n to d e s ua p esq u i sa, nã o s e u ti li za va o ter mo Hi p - Ho p :
“ ta mb é m n ã o s e p o d e d i z e r q u e o mu nd o f u n k d o Rio fa ç a p a r t e d e u ma c ul t ur a
Hip Ho p . ” ( p . 3 4 )
106
(iniciou-se nos anos 1970); b) na época em que fez a pesquisa
(meados dos anos 1980) não havia uma identidade funk, pois, por
exemplo, havia uma mistura de apreciadores de soul music, do funk
de Aretha Franklin, da Banda Black Rio que combinava influências
do samba e de soul music, além do que os chamados bailes tinham a
presença de outros estilos musicais, como o samba, samba-rock,
outros ritmos da MPB etc.; c) dos anos 1990 para cá, o funk carioca
que existe é uma mistura de variações musicais que passam por
autores
como
Latino,
Claudinho
e
Buchecha,
e
composições
diferenciadas como Rap da felicidade, pancadões, proibidões etc. e
os bailes em comunidades 61 em que só tocam funk. A influência da
black music estadunidense foi transformada em uma criação carioca
e, possivelmente, o “mundo funk” de hoje comporte uma cultura
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funk. É o que permite Herschmann afirmar em seu livro, citando a
enorme penetração do funk nos subúrbios e favelas da cidade: “a
cultura funk no Rio de Janeiro vem implicando uma reconfiguração
do espaço social” (Herschmann, 2000, p.127, grifo meu).
A análise de Cavalcanti (1994), por exemplo, sobre o carnaval
carioca, ainda que direcionada para o desfile e a Escola de Samba,
aponta as múltiplas influências na constituição das Escolas de
Samba e suas relações com o mercado, mas se detêm sobre apenas
uma parte do “mundo do samba” por ela estudado. Assim, quando
analisa o compositor de Escola de Samba e seu modo de vida
atravessado por outros códigos e valores, diz: “o mundo do samba,
que tem nas escolas de samba um ponto de referência crucial, é, sob
diferentes pontos de vista, ao mesmo tempo mais restrito e mais
amplo do que elas” (Cavalcanti, 1994, p.85, grifos meus). Quando
61
GO L DW AS SE R ( 1 9 7 5 ) e m se u e st ud o so b r e a M a n g ue ir a , e xp lic a q u e u sa o
ter mo c o mo u m o b j e to c o n s tr uíd o d e a ná li se e n ã o u ma r e a l id a d e e m p ír ic a. O
ter mo “ c o mu n i d a d e ” é u ti liz a d o na c id ad e d o R io d e J a n e ir o , não só p o r
na ti vo s c o mo ta mb é m p e la i mp r e n sa, p o r e x e mp lo , p a r a d e si g na r f a v e la s,
b a ir r o s p o b r e s d e p e r i fe r ia e p o p ul a ç õ e s q ue gr a v it a m e m to r no d e E s c o la s d e
Sa mb a . É co n sid e r ad o “p o li tic a me n te co r r et o ”, e mb o r a não e xp r e s se u m
e n te nd i me n to u n í vo c o . E m me u e st ud o u so o ter mo p a r a se r e fer ir à s
p o p u la ç õ e s d e fa ve la s e b a ir r o s p o b r e s d a p er i f e r ia . V er Fi lip p i na CHI NE LLI ,
O proj et o p ed a gó gi c o d as e s c o l as de sa mb a e o a c e s so à c id ada ni a – o c a so da
M a n g ue ir a , i n Ca d e rn o s CE DE S , n . 3 3 , 1 9 9 3 , p . 4 3 -7 4 .
107
diz isto mostra uma ambigüidade no olhar porque o “mundo do
samba” é mais restrito ao se focar o samba-enredo e o desfile sem
levar em conta o ambiente e o cotidiano das Escolas de Samba, e ao
mesmo tempo, este “mundo” é mais amplo porque o desfile implica
em relações com vários segmentos da população, com a mídia e todo
o processo de mercantilização do desfile das Escolas de Samba.
Por que, então, optar por um conceito que exige mais
precisão, e por isso mesmo, obedecendo a um maior rigor em sua
definição, além de não se encontrar na literatura específica a
conceituação da noção de cultura do samba? Encontro pelo menos
quatro razões para esta escolha. Em primeiro lugar porque para mim
interessa focar o cotidiano das pessoas que fazem a Escola de
Samba e que vivem do samba, para e com o samba e todo um
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conjunto de fenômenos socioculturais relacionados a este gênero
musical. Em segundo lugar porque insisto em trabalhar com um
conceito antropológico de cultura, que ultrapasse o entendimento de
bem artístico do gênero samba e dê conta da produção simbólica
daqueles que vivem o “mundo do samba”, particularmente no
subúrbio carioca. Em terceiro lugar, o conceito de cultura do samba
dá melhor conta do que quero evidenciar: um saber desenvolvido
dentro desta cultura e um processo de educação inerente. Em quarto
lugar, porque, apesar de vários autores (Augras, 1998; Cavalcanti,
1994; Goldwasser, 1975; Vianna, 1995) chamarem atenção para o
aspecto das várias influências e trocas – afinal, uma característica
das culturas – presentes no “mundo do samba”, reforçando uma
crítica ao essencialismo, o que eles chamam de “mundo” reúne
características – um “conjunto de fenômenos socioculturais” (Velho,
1994a, p.64) – que permitem contrastar com outras culturas e,
portanto,
possibilita
a
conceituação
de
cultura
do
samba,
especificando uma identidade cultural.
Os estudos existentes que abordam o samba detêm-se no
carnaval ou na Escola de Samba, não abarcando outros aspectos
relacionados ao samba. Cabe afirmar que reconheço a importância
da Escola de Samba para o gênero musical e para a formação desta
108
cultura, mas seu próprio crescimento, com as tensões, contradições
e múltiplas trocas verificadas em seu espaço 62, produziu novas
referências. Fez aumentar, por exemplo, a força e a influência das
rodas de samba – que perderam a ligação orgânica quase que
obrigatória que tinham com as Escolas de Samba – na cultura do
samba. Essas rodas têm mantido um aspecto fundamental da
criatividade do sambista que são os versos de improviso e os sambas
de quadra 63, em boa parte ausentes das quadras das Escolas de
Samba nos dias de hoje. Também a inovação e liberdade de tocar os
instrumentos é maior nas rodas de samba. Outro aspecto é que nas
rodas de samba mantém-se um maior grau de companheirismo e
proximidade, que a Escola de Samba, com seu gigantismo e
acelerada comercialização, acaba enfraquecendo.
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Na história do gênero samba, as rodas de samba – o batuque,
o samba de roda – sempre existiram e foram anteriores à formação
das Escolas de Samba (Cabral, 1996; Moura, 1995). Embora com
algumas modificações, tais como introdução de novos instrumentos
e comercialização de comida e bebida pelos organizadores, elas
encarnam um tipo de sociabilidade e os valores dos primórdios do
samba. Foram elas que impulsionaram e lançaram para o mercado
inúmeros sambistas e grupos de samba que fizeram e fazem sucesso.
As rodas de samba se multiplicaram e acontecem de domingo a
domingo na cidade do Rio de Janeiro, favorecendo a possibilidade
de sobrevivência financeira de inúmeros instrumentistas. Em geral
elas ocorrem num clima de paz, descontração e com baixo custo
para quem freqüenta.
62
As q ue s tõ e s co mo tr a d ição x moder n izaç ão, ve l ha gua r da x ma i s j o ve n s,
sa mb a -e nr ed o x sa mb a d e ter r e ir o , s a mb a n o p é x me rca n ti liz açã o , p o r
e x e mp lo . Ve r Cab r a l ( 1 9 9 6 ) , C a nd e i a e I s n a r d ( 1 9 7 8 ) , Ca va lca n ti ( 1 9 9 5 ) ,
Go ld wa ss e r ( 1 9 7 5 ) , L o p es ( 1 9 8 1 ) ; T r a mo nt e ( 1 9 9 6 ) , e ntr e o utr o s.
63
Os d e no mi n ad o s “sa mb as d e q uad r a o u d e ter r eir o ”, s ão o s sa mb a s “d e me io
d o a no ” , o u sej a s a mb a s q ue e r a m a p r e se n ta d o s n a s E sc o la s d e S a m b a p o r
vár io s sa mb is ta s e q ue não co ncorr ia m a nad a.
109
Um dos maiores compositores de samba, Candeia 64, e outro
sambista
e
pesquisador,
Isnard
Araújo,
ambos
da
Portela,
escreveram o livro Escola de Samba: árvore que esqueceu a raiz,
onde criticam o afastamento destas agremiações da cultura típica do
samba, que eles resumem:
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A Escola de Samba, berço de nossa música popular, é uma fonte de
cultura com caracterí sticas próprias. A presença de uma cultura
dessa natureza, com seus próprios valores, atitudes e modos de
comportamento tem sido amplamente not ada nas ati vidades e
reuniões sociais realizadas nas Escolas através dos ensaios, rodas
de samba, nas brincadeiras de Partido-Alto, nos di versos tipos de
festas características das Escolas, na maneira de vestir, na
linguagem, nos hábit os ali mentares, nas danças e rit mos. Ao
participar dessas ativi dades o sambista formula e é envolvido por
sua própria cultura, influenciado pelos valores adquiridos dos
seus predecessores ou ainda pelo auxílio dos meios de divul gação
da cultura (imprensa, rádio e televisão). (Candeia & Isnard, 1978,
p.68, grifos meus)
Para DaMatta (1997), olhando por outro ângulo, as Escolas de
Samba têm uma forma organizacional que permite uma grande
flexibilidade, “possibilitando a criação de um campo social próprio,
especial, onde se podem congregar ricos e pobres, pretos e brancos,
dominantes e dominados.” (p.132). Mas imediatamente ele explica
um aspecto crucial desta flexibilidade: existe um centro em torno do
qual as Escolas de Samba se organizam. DaMatta (1997, p.135)
aponta aí um “paradoxo social e político”, pois os mais pobres, os
“de baixo”, buscam a “conciliação” e não o confronto com os “de
cima”, embora ressalve: “e isto sem perder o seu centro inicial.”
Para entendermos a marca cultural afro-brasileira nas Escolas
de Samba, apesar de toda a abertura que, estrategicamente, os
sambistas buscam ao abrir para todas as classes sociais, escreve
DaMatta (1997, p.132-133):
A escola de samba parece ter uma dupla or dem or ganizatória. No
seu centro existe um núcleo de pessoas fortemente relacionadas
entre si pelo parentesco, pela residência, pela cor e pelas
condições gerais de existência social. São os ‘donos’ ou os ‘pais’
64
Antô n io Ca nd e ia F il ho ( 1 9 3 5 -1 9 7 8 ) , e r a d a a l a d e c o mp o si to r e s d a P o r t e la e ,
c r it ic a nd o o s r u mo s q ue a su a e s c o la e a s d e ma is e st a va m to ma n d o , f u nd o u o
Grê mi o Recr ea ti vo d e Arte Ne gr a E scol a de Sa mba Q u ilo mbo.
110
da agremiação: seus fundadores, criadores e sustentadores
morais. Agora, em torno deste centro, existe uma outra ordem
muito mais flexí vel e difusa, compondo uma área voltada para o
mundo exterior” ( grifos meus).
Estes “fundadores, criadores e sustentadores morais”, regra
geral vivendo no subúrbio ou favela tendo o samba como orientador
de suas vidas, são o “centro” da Escola de Samba e da difusão de
uma cultura do samba, que se reproduz, com atualizações, das
tradições do samba 65. Um entendimento de tradição é aquele em que
os fenômenos culturais “são transmitidos de uma geração a outra”,
explica García Canclini (1997, p.213). São exemplos de tradição no
samba: as Escolas de Samba com ala das baianas e bateria somente
com percussão, a roda de samba, o partido-alto e o verso de
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improviso, o samba de quadra, a feijoada na Escola de Samba, o
sapato branco etc. O entendimento conservador de tradição é aquele
que vê a cultura como coleção de bens, algo cristalizado, sem ver os
sujeitos e as relações sociais e de poder que estão presentes na
produção dos bens culturais (García Canclini, 1997). Quando estou
falando de tradição, não se trata de uma visão do “samba de
antigamente”, concepção idealizada do passado, mas de traduções
da tradição. O sentido é de reconstrução criativa do legado de
gerações anteriores 66.
O Pagode da Tia Doca 67 é um exemplo de como se sustenta a
cultura do samba fora da Escola de Samba e dela guardando
autonomia. Organizado há mais de três décadas entre os bairros de
Oswaldo Cruz e Madureira por uma pastora da Portela, a “Tia”
65
P a r a u ma d e sco n str u ç ã o d o ter mo tr a d i ç ã o , v e r E r ic HOB SB AW N ( 2 0 0 2 ) ,
In tro d ução : a i n ve nç ã o d as trad içõ e s, p .9 - 2 3 , in : HOB SB AW N, Eric &
R ANG E R, T er e nce , A i n v e n ç ã o d a s t ra d içõ e s, e Né sto r G AR C Í A C AN C LI NI
( 1 9 9 7 ) , Cu ltu ra s Híb rid a s, c ap í t ulo s 4 , 5 , 6 e 7 , p p . 1 5 9 -3 5 0 .
66
Ver E d uar d o Gr a nj a C OUT I NH O ( 2 0 0 2 ) , V e lh a s h i s tó r ia s, m emó ria s f u tu ra s :
o se nt id o d a tr a d iç ã o n a o b r a d e P a ul i n ho d a V i o la , p r i n c ip a l me n te o c a p ít ulo
5 : P a r a a lé m d o c u lto à t r a d iç ã o e d o c ul to à tr a n s fo r ma ç ã o , p p . 9 3 -1 4 2 .
67
E m tr a b a l ho a p r e se n ta d o a o X E NDI P E , d e s e n vo l vo a l g u ma s o b s e r v a ç õ e s
so b r e o P a go d e d a T ia Do c a . Ver Au g u s to Cé sa r Go nça l ve s e LI M A ( 2 0 0 0 ) , “ A
cult ur a do sa mb a: um espa ço ed uca ti vo? ” I n : C D-R OM X E N DIPE , Rio de
J a ne ir o , x e nd ip e /a r ti go s /2 3 7 C . P DF .
111
Doca, ele acontece o ano inteiro, aos domingos 68. Sua roda de samba
era 69 considerada tradicional pelos sambistas que a freqüentam, pois,
por
exemplo,
não
usava
amplificação
de
som,
cantava
fundamentalmente samba de raiz, ainda que já haviam surgido
importantes mudanças tais como a atividade de um DJ nos
intervalos, uso de microfone para convidados e cobrança de
ingressos. Representa uma das formas de fazer pagode do subúrbio.
Entre os vários tipos de samba apresentados, destaca-se o partidoalto, o samba de verso de improviso, do qual só participam
bambas 70. As pessoas comparecem bem trajadas, sendo referência
masculina a calça de linho e sapato de couro; a saia e sandália ou
sapato de salto para as mulheres. Toda a organização, a participação
das pessoas na mesa para tocar, a participação das pastoras, a
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presença dos bambas e seus duelos em versos, o ambiente festivo e
familiar, o caldo de feijão, a lingüiça frita, a cerveja gelada, as
brincadeiras com quem está comemorando o aniversário no pagode,
a boa recepção aos visitantes e os abraços e beijos nos amigos, as
menções simbólicas aos cultos afros e santos católicos, são parte da
cultura do samba, reproduzida naquele evento.
O samba Nos pagodes da vida 71, dos autores Roberto Serrão e
Guilherme Nascimento, dá a dimensão da presença das rodas de
samba, também chamadas de pagode, no universo dos subúrbios
cariocas:
Laia, laia, laia...
Tem pagode segunda-f eira
Tem pagode na terça-f eira
Quarta-feira tem Caci que
Eu vou s air, me divert ir
68
Desd e 2 0 0 2 o P a go d e d a T ia Do c a ta mb é m r e a l iz a s ua r o d a d e sa mb a no
c e ntr o d a c id a d e , à s se x t a s - f e ir a s.
69
A p a r ti r d e j ul ho /2 0 0 3 , ho u ve u ma mu d a nç a p ar a u m l u gar ma i s a mp l o , no
Cl ub e d o s C a r t e ir o s, e m Os wa ld o C r uz, o nd e h a vi a a mp li f ica ç ã o d e so m e u m
p e q u e no p a lco . I s to ger o u d is c o r d â n c ia s e ntr e o s sa mb is ta s e fr e q ü e nt a d o r e s.
E m 2 0 0 4 r eto r no u no v a me n te p a r a o a n ti go l u g a r , q ue e sta v a a q ua tr o q ua d r a s,
e m Mad u reir a, vo lta nd o q u as e q ue to t al me n t e ao e s ti lo tr ad i cio na l, ap e na s
a mp li f ic a nd o o so m d o s in s tr u me n to s.
70
B a mb a s são aq ue le s s a mb is ta s co nsider ado s e xc ele nte s na co mpos iç ã o e no
i mp r o vi so .
71
C f. C D P a g o d e d a Tia Do c a , f a i xa 1 7 , P a r a d o x x M us ic , n.4 1 0 6 0 0 2 -1 , 2 0 0 0 .
112
Tem pagode na quinta-feira
Tem pagode na sexta-f eira
Já comprei sapato novo
Vou estrear no Fundo de Quintal
E nesse fim de semana vou levantar poeira
Quando cair na gandaia
Segura a barra da sai a
Vou balançar as cadeiras, mostrar porque
Seu preto tem orgulho de você
Eu quero ver, você sambar,
O samba é terapia popular
Samba iô, iô
Samba iá, iá
Seu preto tem orgulho de você
bis
Cabe reafirmar que a cultura do samba não se resume às
Escolas de Samba, mas se expressa, também, nos almoços entre
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amigos e parentes, nas rodas de samba, pagodes, shows, nos blocos
carnavalescos, atividades de solidariedade para angariar dinheiro
para a família de um sambista, gurufins, entre outros espaços.
Assim, em muitos subúrbios da cidade do Rio de Janeiro, a relação
com o samba implica em certo “estilo de vida” e “visão de mundo”,
em compartilhar certos valores e crenças.
Diante do que foi argumentado, descarto a possibilidade de
entender o samba como uma “subcultura” da cultura popular ou da
cultura afro-brasileira, pois dá uma idéia de hieraquização que de
nenhum modo se coloca. Velho (1997a), discutindo os limites da
utilização
da
noção
de
“subcultura”,
vai
estabelecer
uma
demarcação que me interessa para poder utilizar o termo cultura do
samba: “... se pudermos situar essas unidades sociológicas dentro de
um campo de comunicação comum [grifo meu], em que existe um
conjunto de crenças de algum modo compartilhado, estaremos
falando de cultura.” (Velho, 1997a, p.84)
Deste modo, estamos querendo situar a existência de uma
cultura do samba – algo que também é heterogêneo e pode se
expressar diferente na zona sul e na zona norte da cidade do Rio de
Janeiro, por exemplo – que permeia o “mundo do samba”. Esta
existe nos subúrbios cariocas onde o samba está presente, mais forte
113
em alguns do que em outros, dependendo da ligação histórica de
determinado subúrbio com o samba, reconhecendo sempre que
existem outras culturas presentes nestes subúrbios.
Definir cultura do samba implica em aceitar a diferenciação
existente nela. É que o samba, o “mundo do samba”, abarca
múltiplos espaços geográficos e sociais, não estando circunscrito
aos subúrbios. As culturas não são homogêneas e o samba também
faz parte da vida (e até mesmo do cotidiano, tal é o grau de
envolvimento e participação) de pessoas cujas idades são variadas e
que vivem na zona sul da cidade do Rio de Janeiro, em bairros como
Ipanema, Leblon, Copacabana, Gávea, Jardim Botânico, Botafogo
etc., na zona norte em bairros como Tijuca, Grajaú e Rio Comprido
ou na zona oeste em bairros como a Barra da Tijuca. É só verificar a
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crescente participação de indivíduos destes bairros nas rodas de
samba de subúrbios, centro da cidade e em diferentes áreas da
região metropolitana. Há um rico campo de pesquisa em aberto para
estudar este fenômeno no campo da Antropologia e Sociologia –
mas que não faz parte desta proposta de pesquisa – assim como
também na Educação. Quero delimitar, então, o meu estudo pelas
manifestações apresentadas da cultura do samba no subúrbio
carioca, especificamente em Oswaldo Cruz e adjacências.
Assim, a diferença entre subúrbios e bairros da zona sul da
cidade do Rio de Janeiro é emblemática para nossa pesquisa. Em
dois estudos na área da Antropologia que tiveram os subúrbios
cariocas como campo de pesquisa, Vianna (1997a) e Heilborn
(1984) 72 apontam como categoria acusatória o termo “suburbano”,
chegando a uma conclusão de que é uma construção da zona sul da
cidade e que, por outro lado, existe uma identidade suburbana vista
como positiva pelos suburbanos. Mas, de fato, a identidade
suburbana tem como diferenciação uma oposição ou diferença à
identidade de zona sul. Se Vianna (1997a), por um lado, procura
72
C f. He r ma no VI AN N A, O mu n d o fu n k c a rio c a , e Mar ia Luiz a HEI L B OR N,
Co n v e r sa d e p o rtã o . A mb o s s ã o o r i u nd o s d e d i s se r t a ç õ e s d e me s t r a d o d o
P P GAS /M u se u Nac io na l /U F RJ , so b a o r ie n ta ç ã o d o p r o f e s so r Gi lb e r to V el ho .
114
também desmistificar a identidade suburbana como guardiã da
tradição e avessa às novidades vindas de fora, Heilborn (1984), por
outro lado, explicita que os indivíduos que moram nos subúrbios
assumem uma identidade suburbana carioca com estilos de vida e
projetos diferentes daqueles da zona sul.
Há, desta forma, se não uma oposição, mas uma diferenciação
entre subúrbio e zona sul da cidade do Rio de Janeiro que leva a
uma produção cultural e simbólica que difere uma da outra 73. Para
nós, esta diferenciação é bastante significativa e permite que
entendamos a existência de maneiras particulares de se viver,
experienciar, produzir, construir a cultura do samba nos subúrbios
cariocas. Além do mais, o samba do subúrbio, como uma identidade
cultural,
é
uma
categoria
nativa.
Para
muitos
sambistas
do
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subúrbio, o lugar de produção do samba e de toda a sua rede de
significados, é o subúrbio, que neste aspecto, é comparado ao
morro,
à favela.
Segundo
estes sambistas,
é lá que
está a
“verdadeira” cultura do samba. Como dizem os versos do samba de
Edinho Oliveira, Odé Amin José e Marquinhos de Oswaldo Cruz:
“... Eu vou, pra Oswaldo Cruz, eu vou/ Quilombo do samba/ Pra me
aculturar...” 74. Como se vê, o termo quilombo não é usado à toa.
Podemos dizer que a cultura do samba é uma cultura de paz
porque promove o encontro para a diversão e a alegria, pois o samba
está ligado à festa, embora não se resuma a isto. Isto não significa
ausência de conflitos nem tampouco inexistência de brigas e
choques entre freqüentadores de samba pois muitos eventos de
samba são massivos e estamos falando fundamentalmente de uma
história de grupos subalternizados, portanto vivendo em condições
sociais
precárias.
Historicamente,
o
conjunto
de
fatores
socioculturais relacionados ao samba está ligado à afirmação de um
grupo social e étnico, e a uma das formas de enfrentamento das
73
Es ta d i fere nci ação ap ar ece na s obra s dos co mp osi tore s de c a mada s mé dia s da
z o n a s ul no s a no s d e 1 9 6 0 , q ue c r i ar a m u m sa mb a d i f e r e n te , a b o s sa no va . E
ho j e apar e c e na f a l a d o s c o mp o si to re s do s ub úrb io a o a fir mar e m q u e fa z e m um
sa mb a d e ra i z, p o r e xe m p lo .
74
C D Neg ro , E d i n ho Ol i v e ir a , E SB 9 8 0 4 , E t nia M u si c , 1 9 9 8 , f a i x a 5 .
115
mazelas sociais, aí incluídos o preconceito e o racismo, que este
grupo sofre, e suas conseqüências. Esta é uma das razões de sua
prática afirmar a alegria e a paz. Mesmo sendo crônica do dia a dia,
quando as mazelas da vida são narradas muitas vezes com ironia, na
esfera particular ou social, os sambas, os sambistas e a cultura
desenvolvida e disseminada em torno desta forma peculiar do
carioca cantar e dançar é uma cultura de acolhimento.
A história do samba e dos sambistas (Candeia & Isnard, 1978;
Lopes, 1981; Moura, 1995; Cabral, 1996; Tinhorão, 1969) não é
como um desfile na avenida, onde só aparece a beleza e o brilho.
Muita luta, muito sofrimento, muita humilhação, mas também muita
afirmação
e
a
alegria
de
que
eles
estão
aí
se
renovando
continuamente. Como inicialmente o samba era uma atividade de
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negros e mestiços (Cabral, 1996; Tinhorão, 1969), em sua imensa
maioria pobres, a história de seus ancestrais está presente, desde as
lutas dos quilombolas até as atividades urbanas antiescravistas do
século XIX e a posterior luta contra a situação da população negra
pós-abolição. Esta história está presente nas estratégias de ocupação
de espaços públicos desenvolvidas pela população negra.
Ahias Siss (1999) chama a atenção para o fato de que nas
duas primeiras décadas do século XX existiram várias organizações
de
ativistas
negros
preocupadas
com
a
educação
dos
afro-
brasileiros:
Dentre as várias organizações de ati vistas que desenvol veram
atividades educacionais e culturais nesse período, destacam-se o
Centro Cí vico Pal mares, o Clube Negro de Cultura Social, a
Sociedade Beneficente Ami gos da Pátria, o Grêmio Dramático e
Recreativo Kosmos, o Clube 13 de Maio dos Homens Pretos e a
Frente Negra Brasi leira, sem dúvida a mais i mportant e
organi zação de ati vistas, tanto pela sua durabilidade no tempo,
quanto por suas realizações di versificadas. ( Siss, 1999, p.64)
Siss (1999) cita o jornal A Voz da Raça, de 1933, fazendo
referências à instalação de escolas e cursos mantidos pela Frente
Negra Brasileira (FNB). Esta organização cria e mantém cursos
profissionalizantes de corte e costura, pintura, ornamentação,
116
pedreiro, manicure, cabeleireiro e marcenaria. Em que medida,
podemos pensar, as Escolas de Samba não cumpriram este papel na
organização e preparação para o desfile? Conforme vimos, Tramonte
(1996; 2001), apontou vários processos pedagógicos na prática da
Escola de Samba, inclusive a pedagogia da ação escolar, no
processo para se colocar uma escola de samba na avenida para o
qual concorrem os saberes de várias disciplinas 75 (Lima, 2001).
Seria um pensamento a-histórico ver o surgimento dos
Cordões, Ranchos, Blocos Carnavalescos e Escolas de Samba,
desligado do processo histórico em curso no Brasil no final do
século XIX e início do século XX, processo este marcado por
proibições e exclusões da população afro-descendente de seus
direitos e de sua invisibilidade no espaço público. Naquele período
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o senso comum e a intelectualidade via a participação do negro na
constituição
do
Brasil
como
insignificante.
Ainda
que
este
pensamento estivesse longe da verdade 76, a marca do papel da
população afro-descendente em nossa história no início do século
XX era somente sua contribuição como mão-de-obra escravizada,
enriquecimento da língua portuguesa falada no Brasil, a culinária e
a música, esta última ainda carecendo de ser legitimada até então.
Desse modo, as formas mais lúdicas de manifestação e organização
dos afro-brasileiros estavam ligadas à sua cultura no sentido
antropológico, de rede de significados, códigos, costumes, maneiras
de se portar, da religião, da expressão corporal. Moura (1995, p.95)
mostra um sentido político nestas formas de organização dos afrobrasileiros:
Enquanto as classes populares, em sua minoria proletarizadas, sob
a liderança inicial dos anarquistas, se organi zavam em sindicatos e
75
Ver t a mb é m Cí n ti a d e M. MO R AES , A c u l tu ra b ra s il e i ra r e v e la d a n o
b a r ra c ã o d e u ma e sc o la d e sa mb a : o c a so d a fa m íl ia i mp e ra t r iz , 1 9 9 6 .
(Di s ser taçã o de Me str ad o . Dep art a me n to de Ad mi ni str ação da P U C - R io ) .
76
Ai nd a ho j e p e r si s te e m a l g u n s ma n ua i s d e hi s t ó r ia e st a vi são q u e i g n o r a o
p a p e l c i v il iz a tó r io f u nd a me n ta l d o s a fr o -d e sc e nd en te s n a c o n s ti t uiç ã o d o B r a sil
co mo nação . Co ntrár ia a es ta vis ão, ver a es te resp e ito o núme r o t e máti co da
R e v i s ta d o P a t r imô n io Hi stó r ico e A r tí st ico Na c io n a l, N e gr o B r a sil eir o Ne gr o ,
nº 2 5 , 1 9 9 7 . Ver ta mb é m, a d esp e i to d e s e u o lh a r d a c a s a - gr a nd e , Gil b e r to
F REY R E , Ca sa - g ra n d e e s e n za la , 1 9 9 9 .
117
convenções trabalhistas, grande parte do povão carioca que se
desloca do cais pra Cidade No va, pro subúrbio e pra favela,
predominantemente negro e mulato, também se or gani za
politicamente, em seu sentido extenso, a partir dos centros
religiosos e das or gani zações festeiras.
De maneira que a cultura do samba está lastreada num fazer
histórico e numa relação com o mundo que fazem daqueles que
constroem e pertencem a esta cultura, sujeitos históricos. Ela faz
parte dos modos de vida de parte considerável da população carioca
e se constitui em parte de sua identidade cultural. É produtora de
saberes e afirma e projeta a cidade do Rio de Janeiro para o mundo.
O resgate das tradições, no sentido de traduzir os modos de se fazer
de gerações anteriores, atualizando e dialogando com o presente e
seus sujeitos, é um processo próprio da cultura do samba. É isto que
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a mantém e a fortalece. Constitui isto também um processo
pedagógico.
Assim, após a discussão conceitual que fiz ao longo de todo o
capítulo, considero a cultura, que tem uma relação orgânica com a
educação, uma lente privilegiada para analisar o espaço escolar.
Entretanto, como vimos, existem várias acepções de cultura. De
modo que parto da concepção antropológica do termo, entendendo-a
como
redes
de
significados
e
um
conjunto
de
fenômenos
socioculturais que podem ser diferenciados e contrastados com
outros conjuntos também identificados como cultura.
Considerando a possibilidade do papel constitutivo da cultura
para a análise social, defendo a ampliação do conceito tal como é
largamente utilizado na educação, através das categorias cultura
escolar e cultura da escola, bem como construo o conceito de
cultura do samba para entender um tipo de cultura social de
referência dos alunos/as.
A partir de determinados autores escolhidos, discuto os
conceitos de cultura escolar e cultura da escola, reconhecendo uma
diferenciação conceitual entre estas categorias, mas ao mesmo
118
tempo apontando uma interpenetração existente, de maneira a se
trabalhar com a conjunção dos conceitos na forma de cultura
escolar/cultura da escola. Desse modo, é possível identificar no
espaço escolar – nem sempre com a mesma força e regra geral de
maneira hierárquica – um entrecruzamento de várias culturas, como
a cultura crítica, a cultura acadêmica, a cultura social, a cultura
institucional, a cultura experiencial (Pérez Gómez, 2001), bem
como expressões destas culturas como os denominados currículo
formal
e
real
(Gimeno
Sacristán,
1995,
1996),
as
formas
ritualísticas do espaço escolar (McLaren, 1991), e as culturas
sociais de referência dos/as estudantes.
Em minha interpretação a cultura escolar incorpora algo mais
do que os conteúdos cognitivos e simbólicos que são objetos de
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transmissão deliberada no contexto escolar (Forquin, 1993), e que
são responsáveis pelo acesso a conhecimentos e competências
estruturalmente fundamentados (Forquin, 2000). Passa a incluir o
currículo real, além do currículo formal (Gimeno Sacristán, 1995) e
ser
entendida
como
uma
reconstrução
da
cultura
feita
em
determinadas condições de escolarização (Gimeno Sacristán, 1996).
Passa a ser também percebida como um cruzamento de culturas com
a responsabilidade de fazer uma mediação reflexiva daqueles
influxos plurais que as diversas culturas exercem nos/as estudantes
(Pérez Gómez, 2001). Nesta interpretação, a cultura da escola, com
seus modos próprios de regulação e transgressão, seus ritmos e
ritos, sua própria produção e gestão de símbolos (Forquin, 1993), se
interpenetra com a cultura escolar, fazendo sentido tomar como
categoria de análise esta interpenetração, assim expressa cultura
escolar/cultura da escola.
O conceito de cultura do samba é construído no sentido de
efetuar um recorte em função dos interesses desta pesquisa,
entendido a partir da acepção antropológica, como um conjunto de
valores, visões de mundo, rede de significados próprios da natureza
humana. Mais do que um alargamento do termo, entendo a cultura
do samba como parte da cultura popular, reconhecendo as situações
119
de subalternidade a que estão submetidos seus sujeitos, a mescla de
conformismo e resistência, a tensão entre relação e antagonismo
com a cultura dominante, presentes em sua realização. Como
qualquer cultura, não é homogênea, abarcando formas diferenciadas
de lidar com sua produção simbólica.
A cultura do samba tem origem no legado africano no Brasil
mas se constitui num contínuo enriquecimento com a contribuição
de culturas diversas. Assim, ao mesmo tempo em que traço seus
contornos gerais, na rede de significados, nos valores, hábitos e
tradições ligadas ao gênero musical samba e seus atores e a maneira
que ocupam alguns espaços, faço um recorte de como a cultura do
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samba se expressa em determinados subúrbios cariocas.
4
A Escola Azul na passarela
As escolas, numa analogia aos desfiles das escolas de samba,
fazem seu “desfile” todos os dias em que têm atividades. Este
“desfile” pode ser visto nas salas de aula – o epicentro da cultura
escolar – mas também em todos os elementos que concorrem para
que elas existam: as regras, normas, rotinas, currículo explícito e
implícito, as atividades dos atores e as relações que se estabelecem
no cotidiano escolar, constituindo a cultura escolar e a cultura da
escola (Forquin, 1993).
Ao observar a Escola Azul pude verificar que, contrariamente
ao senso comum sobre a escola pública, ela é uma escola que
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funciona, do ponto de vista de toda a comunidade escolar 1. Ao
mesmo tempo, a escola está inserida num bairro que tem como uma
de suas identidades culturais a cultura do samba. São, portanto,
várias culturas presentes num mesmo espaço. Como tem sido as
relações entre estas culturas? Como elas se cruzam (Pérez Gómez,
2001)? Como interagem os atores? Como é o “desfile” da escola em
seus aspectos cotidianos? É o que pretendo descrever e analisar
neste capítulo, reconhecendo desde já uma separação arbitrária do
que é descrito e analisado em cada sub-item, na medida em que os
diferentes aspectos estão em relação. A separação é feita no intuito
de realçar as questões observadas.
4.1
A cultura escolar/cultura da escola e seus atores
No capítulo anterior apresentei as concepções de cultura
escolar/cultura da escola mostrando uma forte inter-relação entre
ambas. Assim, o Projeto Político-Pedagógico (PPP), por exemplo,
faz parte do que Forquin (1993) chama de cultura escolar. No
entanto, a construção do PPP pode ser uma característica da cultura
1
O ter mo c o mu n id a d e e s c o la r é e n te nd id o a q u i c o mo o c o nj u n to d e a to r e s q ue
in ter a ge m n o e sp a ç o e s c o lar : d ir e ç ão d a e sc o l a, p r o fe s so r a s /e s, f u n c i o nár io s,
es t uda nt es e re sp o n sá ve is p elo s/ a s e st ud a nte s.
121
da escola de uma determinada unidade escolar, por sua construção
democrática, pela participação de toda comunidade escolar ou, pelo
contrário, pela ausência de debate ou consulta à comunidade
escolar. O Projeto Político-Pedagógico é um “instrumento que
define a identidade da escola e suas características específicas”,
afirma De Rossi (2003). Da mesma maneira poderíamos falar da
administração da escola, da figura da direção, da merenda, da falta
do recreio etc. Desse modo, procuro descrever e analisar os
elementos que traduzem na prática a cultura escolar/cultura da
escola em suas inter-relações na Escola Azul. Eles são inúmeros e
variados,
e
escolho
alguns
que,
entendo,
contribuem
mais
fortemente para a compreensão das inter-relações culturais neste
espaço escolar, sem pretender abarcar a totalidade. Estes elementos
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se configuram em lugares, fazeres e atores, que são os seguintes: o
pátio, o Projeto Político-Pedagógico e o currículo, os atores
(diretora,
coordenadora
pedagógica,
professoras/es,
estudantes,
responsáveis), aulas de Educação Física, e turma da fase final do
Ciclo de Formação.
4.1.1
O pátio
U ma par te da s/o s r esp o n sá ve i s v a i e mb o r a tão lo g o a c r ia n ç a e nt r e no
pátio,p are ce ndo reco nhecer ne le um te rri tório da esco la (c ader no de
c a mp o )
O pátio é o ponto de partida da aventura cotidiana dos/as
estudantes da Escola Azul. É o início do território da escola. Ali
chegando o/a aluno/a mergulha na cultura escolar/cultura da
escola. As referências passam a ser as tias, os/as colegas, a
disciplina escolar, a formação da fila, a escada que os/as leva para
as salas, a diretora, o sinal.
Dia 17 de março de 2004
Manhã – Na hora da entrada o pátio vai se enchendo e o barulho
aumentando pela conversa, gritos, correri a. As/os responsávei s
ficam do lado de fora, algumas/uns delas/es coladas/os à grade,
assim como al gumas/uns alunas/os, ol hando o movi mento
crescente do pátio. Elas/es conversam entre si, algumas/uns
122
conversam com as crianças que trazem e outras/os ficam
paradas/os, só olhando. Olhar, só isto, t ambém acontece com
algumas/uns alunas/os que ficam de fora e até mesmo de dentro do
pátio, no canto e na fila for mada. É um olhar que parece se
alimentar daquele al voroço todo, daquele movi mento, daquela
energia presente que as crianças trazem quando estão j untas e que
me parece uma característica do espaço escolar. É como se cada
riso, fala, grito, movi mento, olhares para tudo que se tem
próxi mo, correria, tudo isso fosse realização de quem olha. E as
pessoas que estão olhando – sej am elas adultas ou estudantes –
ficam como que hipnotizadas por instantes, só olhando, só
olhando, sem nada a dizer. Este é um momento que se deseja
eternizar: os/as estudantes para não entrar para a sala de aula;
as/os adultas/os sabendo que ao acabar aquele momento, lhe
esperam o trabalho e as responsabilidades. Mas eis que soa o
sinal...
A condição de aluno/a se estabelece ao entrar no pátio. Antes,
apesar
do
uniforme,
ele/a
é
filho/a
de
alguém,
está
sob
a
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responsabilidade de alguém. Ao atravessar o portão da escola, ainda
está nesta condição. Ao entrar no pátio, é estudante da Escola Azul.
Se perguntassem ao/à aluno/a que estivesse a caminho da escola
quem era ele/a, responderia: filho/a de beltrano ou de sicrana. No
pátio, a mesma pergunta receberia de resposta: aluno/a da tia
fulana, ou então, aluno/a da 8ª série. Ele/a está assumindo seu ofício
de aluno (Perrenoud, 1995)
Dia 17 de março de 2004
Bate o sinal às 12:56h pelo meu relógio. Gritaria. As professoras
estão no pátio e começam a or gani zar as filas para os/as
estudantes subirem para as salas. À tarde, pri meiro sobem as
crianças da Educação Infantil, depois os Ciclos e o restante do
primeiro segmento. Or gani zado pela diretora Ana, também
separado por série e gênero, o ginásio sobe depois. As/os
responsáveis ficam olhando até as crianças pequenas começarem a
subir as escadas, al guns grudados na grade, como se certificassem
que vão estar seguras quando estiverem l onge de seus olhos.
Assi m que as crianças vão sumi ndo na escada começam a ir
embora. São 13:04h. Alguns alunos do primeiro e segundo
segmentos chegam at rasados e sobem direto. Ana sobe para a
secretaria avisando aos responsáveis que estavam esperando para a
reunião que mandari a chamá-l os daí a instantes. Toda aquela
algazarra e agitação dão lugar a um certo si lêncio e tranqüilidade
que chegam a incomodar.
Numa escola que não tem recreio, o pátio tem seu papel
realçado nas entradas e saídas dos/as estudantes. Como explica
123
Dayrell (2001) a arquitetura da escola não é neutra e expressa uma
expectativa de como seu espaço será ocupado. Contudo, os/as
estudantes re-significam e se apropriam do espaço. No caso da
Escola Azul, a re-significação de que fala Dayrell (2001) é
obstaculizada em parte, não só pela carência do tempo livre do
recreio, mas também pela proibição dos/as alunos/as ficarem no
pátio 2. Por isto os momentos antes da subida para as salas revelam
explosões de energia.
4.1.2
O Projeto Político-Pedagógico e o currículo
“E u a c ho q u e par a trab al har co m proj eto vo cê te m q ue abr ir mã o de
al guma s coi sa s q ue apre nd e u na fa c uld ade.”
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Até
2004
foram
construídos
três
Projetos
Político-
Pedagógicos (PPP). O primeiro, denominado “Transformação”, para
o período 1997-1998, o segundo, denominado “Transformação II”,
para o período 1999-2000, e o terceiro, denominado “Só o sonhador
constrói o futuro”, para o período de 2001-2003. Todos formulados
sob a responsabilidade da coordenadora pedagógica Aída, na escola
desde 1988. Neste processo, Aída avalia como ponto de mudança o
projeto “Transformação II”. Disse que o primeiro projeto, ela sequer
estava na coordenação pedagógica, cargo que só passou a existir na
escola em meados de 1998, estando ainda na sala de leitura. No
Projeto Político-Pedagógico “Transformação II”, ela já pôde levar
em conta a experiência de coordenação. Neste período a Escola Azul
teve maior ebulição, tendo uma grande equipe comprometida com a
escola, sendo o
momento histórico
chave para as
mudanças
desenvolvidas na escola, segundo seu depoimento.
Embora não definindo muito precisamente o PPP e o trabalho
da Escola Azul com projeto, Aída explica o caminho percorrido:
2
A d ir e to r a não a c e i ta p er ma nê n c ia d o s/ a s a l u n o s/ as na e sc o la – e m q ua lq ue r
d e p e nd ê nc ia – se e la nã o a u t o r i z a r . A s s i m, se p o r a c a so fal ta r u m p r o f e s so r no s
úl ti mo s te mp o s o u no s d ia s d e Ce nt ro d e E s tud o s I n te gr al, e m q ue o s/ as
e s t ud a nt e s são lib e r a d o s à s 9 :3 0 h, to d o s tê m q ue ir p a r a c as a . Al u n o s/ as d o
tu r no d a tar d e só p o d e m e n tr a r p a r a o p á tio a p ó s a s 1 2 :0 0 h.
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124
Então, o proj eto político pedagógico aconteceu em três momentos.
Logo que eu saí da sala de leitura para a coordenação, foi em
199...6, ou 98, por aí, eu j á levei um pri meiro Proj eto PolíticoPedagógico, que era o “Transformação”. Eu digo que ele era,
assim, bem artesanal: obj etivo, j ustificativa, pontos, uma coisa
bem sucinta. E aí eu f ui pra coordenação, lógico que cheia de gás,
cheia de vontade de mudar a cara do pedagógico da Escola Azul.
[...] Então eu construí o Proj eto Político-Pedagógico da escola que
foi o “Transformação 2”. E aí foi esse proj eto premiado. Por que?
Porque a gente partia do pressuposto que a gente não tem que ter
só teoria, tem que ter ação. Então chega de blablablá e vamos par a
a ação. Passamos par a o “Só o sonhador constrói o futuro”, que
também foi um movi mento muito bacana, pensar nestes sonhadores
não como utopia meramente, mas como poss ibilidade de conquista,
e final mente chegamos onde nós estamos neste momento, a
construção de um novo proj eto. Então, agor a, o Proj eto PolíticoPedagógico está em f ase de construção. Eu estou começando a
colher estes dados , vendo a realidade atual da escola, tentando me
afastar um pouquinho destas confusões emocionais pelas quais às
vezes a escola passa, para poder situar o que a escola está
precisando, qual é o f or mato que eu vou dar. O proj eto “Azul em
movi mento” é, vamos dizer assi m, seria o proj eto pedagógico 3. O
tema que queria passar pelos bi mestres até o final do ano. Então,
todo ano, a gente seleciona um tema, diante do maior, do Proj eto
Político-Pedagógico, como não tinha o maior esse ano eu parti do
movi mento. Até para dar idéia de que? O que é o movi mento? É
tudo isso que está passando, indo e voltando, o tempo todo. Então
eu dividi em quatro momentos, o movi mento social, cultural,
ecológico e histórico.
Para
Vasconcellos
(2002)
o
PPP
é
um
documento
de
planificação, um elemento de referência da caminhada e quando
construído coletivamente resgata o “sentido científico e libertador
do planejamento” (p.169). Vasconcellos (2002, p.169) assim o
define:
O Proj eto Político-Pedagógico (ou Proj eto Educativo) é o plano
global da instituição. Pode ser entendido como sistematização,
nunca definiti va, de um processo de Planej amento Participati vo,
que se aperfeiçoa e se concretiza na caminhada, que define
claramente o tipo de ação educativa que s e quer realizar. É um
instrumento teórico-metodológico para a intervenção e mudança
da realidade. É um elemento de organi zação e integração da
atividade prática da instituição neste processo de transfor mação.
3
E st e a sp e c to d a e xp l ica ç ã o d a c o o r d e nad o r a p e d a gó g ic a e stá d e a co r d o c o m a
lit e r a t ur a , c o mo e xp li ca Cel so d o s S. V AS C ON CE L L O S: “ e nq ua nto o Pro jeto
P o lí ti c o - P e d a g ó g ico diz re sp ei to ao p la no glob al d a i ns ti t ui ção, o P ro jeto d e
E n s in o - A p ren d i za g em c o r r e sp o nd e a o p la no d id á ti c o ” , i n P la n e j a men to :
P r o j e to d e E n s i no - Ap r e nd iz a g e m e P r o j e to P o lít ico -P e d a gó g ic o , L ib e r t a d ,
2002, p.97.
125
O segundo PPP, em 1999, denominado “Trans form ação II”
(grafia original), tem como referência a LDB (Lei 9394/96), a
proposta
curricular
Multieducação
(Secretaria
Municipal
de
Educação, 1996), assim como autores como Freinet, Vygotsk y,
Piaget e Paulo Freire. Fruto do esforço e da experiência acumulada
da coordenadora pedagógica em sala de aula, na sala de leitura e na
elaboração do primeiro projeto, apresentava diagramas de tomada de
decisão, planilhas e gráficos comparativos de desempenho dos/as
estudantes da escola nos anos 1997 e 1998, e histórico do
desenvolvimento do PPP. Isto permitiu, segundo Aída, a “construção
de um PPP mais sólido” e ele foi premiado pela Secretaria
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Municipal de Educação (SME). O projeto estabelecia como missão 4:
Garantir o acesso ao saber mediante o processo de construção e
reconstrução do saber em interação constante com o mundo que
nos cerca, for mando s uj eitos conscientes, críticos e participativos,
buscando as transfor mações das relações sociais nas di mensões
econômica, política e culturais que garantirão a todos a efetivação
do direito de ser e exercer a cidadania.
Apesar
desta
intencionalidade,
nada
aponta
para
uma
participação efetiva da comunidade escolar na elaboração do PPP
que, no entanto, foi aceito por todos. Esta característica poderia
levar a classificá-lo, segundo De Rossi (2003), de um “projeto do
chefe” 5. Reconhecendo esta contradição, um de seus objetivos gerais
era “criar uma gestão efetivamente participativa” (Transformação II,
1999,
p.5,
grifo
meu).
Apesar
da
limitada
participação
dos
diferentes atores na elaboração tanto do primeiro quanto do segundo
PPP,
a
escola
avançou
nos
aspectos
pedagógicos
e
nos
compromissos da comunidade escolar com a Escola Azul, como
atestam a evasão zero e o desempenho escolar acima da média da
sua CRE 6, embora Franco, Mandarino e Ortigão (2002a) tenham
4
P r o j e to P o lít ico -P e d a gó gi c o “T r a n s fo r ma ç ã o I I ” , 1 9 9 9 , fo l h a d e r o s to .
Se g u nd o V er a L. S. DE RO SS I , “p r o j eto d o c h e fe é o p r o j e t o d o ( s)
r e sp o n sá v e l( is ) p e l a g e s tã o d a e sc o la, se m d i sc u s são e ne go c ia ç ã o d o s vár io s
in ter es s ad o s d a co mu nid ad e e sco lar ”, i n Ge stã o d o P ro j e to P o lít ico P e d a g ó g ic o : e n tr e c o r a ç õ e s e me n te s, 2 0 0 3 , p . 1 6 .
6
J us ti f ic a t i va d o P P P “T r a n s for ma ç ã o II” , p.4, 1 999.
5
126
aferido em pesquisa 7 realizada a partir dos dados do SAEB de 1999,
o impacto nulo do projeto pedagógico na eficácia da escola e, por
outro lado, observado seu impacto negativo na equidade intraescolar.
Mas, de acordo com a coordenadora pedagógica, foi no bojo
do PPP “Transformação II” e o que veio depois, “Só o sonhador
constrói o futuro”, que a escola obteve um maior engajamento da
comunidade, com a organização dos desfiles ecológicos de 1999 a
2002. Em 2004 o PPP estava em construção, colocado como uma
idéia orientadora: “Escola Azul em movimento”. Afirma a diretora
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adjunta Arlinda:
Eu acho o proj eto político da escola... não vou falar que é bom.
Bom, todos são, mas acho um proj eto viável. Tem muitos proj etos,
a gente até vê quando participa de cursos, a gente vê muitas idéias
boas nos proj etos políticos pedagógicos, mas que não são tão
viáveis. Acho que a gente trabalha bem em ci ma da realidade.
Então eu acho que é um proj eto político pedagógico viável, um
proj eto aceitável.
Esta avaliação leva em conta as dificuldades de construção e
prática do PPP, mas também as dificuldades encontradas pelos
profissionais da educação ao não serem preparados para trabalhar
com esta perspectiva. É o que admite a professora de História,
Adriana, reconhecida pelos estudantes e a direção como boa
professora e compromissada com a escola:
Eu acho difícil trabalhar com proj eto. Eu acho que para você
trabalhar com proj eto você tem que abrir mão de al gumas coisas
que você aprendeu na faculdade. Na faculdade você não aprende a
trabalhar de maneira diferenciada. Eu não tive uma prática de
ensino de História como eu dou aula. Então foi difícil a adaptação.
[...] Mas é interessante porque você foge do tradicional. Era isso a
mi nha preocupação, fugir daquele model o tradicional que eu
aprendi na faculdade e que conseqüentement e eu ia repassar para o
meu aluno. Não é qualquer pessoa que consegue trabalhar com
proj eto não. Porque você tem que ter uma visão muito mais além
do que você está acostumado, daquele conteúdo. Você tem que
7
F R AN CO, C . ; M AND A RI NO, M . ; O RT I G ÃO, M . I . ( 2 0 0 2 a ) , i n v e s ti g a m so b r e
o i mp a c to d o p r o j e to p ed a gó gic o e l a b o r a d o p e la s u nid a d e s e sc o lar e s so b r e a
e f ic á c i a e s c o lar e so b r e a e q u id a d e , b a se a d o no s d a d o s d o S is te ma Nac i o na l d e
Av a l iaç ão d a E d uca ç ã o B á s ic a ( S AEB ) d e 1 9 9 9 , mate mát ic a, 8 ª sé r ie .
127
estar o tempo todo conectada com que o aluno está pensando, com
o que o outro colega está fazendo.
Em 27 anos de existência houve uma série de modificações em
vários aspectos na Escola Azul, mas a principal mudança, segundo a
diretora Ana 8, foi o resgate da auto-estima de seus/uas estudantes e
professores/as, assim como do respeito à escola pela comunidade,
que começou com a mudança de direção e o trabalho tendo por
referência o Projeto Político-Pedagógico.
Ana relata que antes dela chegar à direção, a situação da
escola era muito difícil. Era toda pichada, os/as funcionários/as não
limpavam as dependências, os/as professores/as e alunos/as não
eram comprometidos/as com a escola. Havia uma distância entre
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diretoras e professores/as, entre responsáveis e a escola, entre
professores/as e alunos/as. Ao começarem a discutir aquela situação,
constataram que naquele ambiente era muito pouco estimulante para
se trabalhar e estudar. Um marco importante foi o convite para o
professor Orlando, de Técnicas Agrícolas, vir trabalhar na escola.
Sua visão de meio ambiente proporcionou o desenvolvimento de
idéias sobre esta questão. Assim explica Ana:
Porque a gente estava mais preocupada, naquele momento, com a
questão do meio ambi ente escolar. Mais tar de se passou a falar de
uma maneira mais ampla de meio ambiente. Mas naquele
momento: meio ambiente escolar! Que ele não era um facilitador
da aprendizagem, ele atrapalhava muito isso. E aí a gente começou
a bancar o trabalho junto com o Orlando, a mostrar a árvore do
lixo, e aí ele apanhava o lixo derramado nas salas de aula e
montou no meio do pátio uma ár vore com todos os papéis de
biscoito, copo, lata, e aí a gente começou a montar e a... incutir
essas questões ambientais para as crianças . A gente começou a
perceber e a prefeitura começou a j ogar a questão do proj eto
pedagógico da escola. Toda escola estar amarrada num proj eto
onde a comunidade como um todo, aluno, professor, direção e
comunidade em geral, responsáveis, funcionários, estivessem
participando desse proj eto. Era tudo que a gente precisava então
para amarrar essa questão. Começamos a discutir com o
funcionário porque ele não varria a sala, que o lixo estava
derramado, o refeitório estava suj o, e aí começamos a discutir com
o professor porque o aluno não estava sendo conscienti zado para
8
A d i r et o r a A n a c h e go u na e sc o l a no a no d e s u a i na u g ur a ç ã o e m 1 9 7 7 e e nt r o u
para a dir eção co mo adj u nt a e m 1990. E m 1992 fo i el ei ta d ire t o ra, e
p o st er io r me n t e r e e le g e n d o - se s uc e ss i va me n te .
128
manter a sala li mpa, e com o aluno, porque ele estava suj ando. A
gente começou a levantar toda essa questão e aí a gente criou o
proj eto político pedagógico chamado “Transfor mação”. Todos nós
buscaríamos essa transfor mação na escola. Ou sej a, o funcionário
a li mpar, o aluno a zelar, o professor a perseverar em ci ma da
limpeza e a direção da escola iria bancar então uma escola
diferente. Aí nós começamos a pintar os cor redores, salas, montar
salas claras, na cor areia, botar a salinha do j ardim na cor
amarela, na cor verde, começamos a pintar porta de marrom,
começamos a fazer parede... com esse trabalho que nós temos aí
de texturização. Aí a gente começou a mudar pra poder mos chegar
num pr oj eto que deve ter levado de 3 a 5 anos para acontecer.
Agora j á saiu, a escola j á se transformou, o proj eto j á durou o
tempo que tinha que durar e a gente j á entrou em novos proj etos.
Já fala de meio ambi ente de uma for ma mais globali zada, j á sai
dos muros da escola, j á se fala no Rio das Pedras vi zinho mais
próxi mo da escola, já se fala em questões ambientais como a
mi nha aluna que foi à Brasília participar da Conferência do meio
ambiente.
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Em termos curriculares, como toda escola municipal da cidade
do Rio de Janeiro, o currículo segue a linha do Multieducação 9:
propõe que, cada pr ofessor, e equipes escolares repensem e
replanej em suas ações pedagógicas visando uma sociedade mai s
j usta e democrática, na qual os Princípios Educativos do Meio
Ambiente, do Trabalho, da Cultura e das Linguagens ao se
articularem com os Núcleos Conceituais da Identidade, do Tempo,
Espaço e da Transfor mação viabili zem através da ação escolar, a
contribuição indispensável para a realização deste desej o (SME,
1996, p.112)
Na concepção do Núcleo Curricular Básico, a articulação
entre os Princípios Educativos (que partem de uma visão holística
de meio ambiente, trabalho, cultura e linguagens) e os Núcleos
Conceituais (transformação, tempo, espaço e identidade) 10 propostos,
possibilita à escola contribuir para uma sociedade mais justa,
democrática e, conseqüentemente, promovendo a cidadania. Neste
raciocínio estaria contemplada uma nova prática pedagógica, embora
mantendo um currículo disciplinarizado. Este fator, como nota
Araújo
(2003),
tende
a
manter
uma
concepção
cartesiana,
dificultando uma pedagogia centrada no projeto político-pedagógico
9
C f. S ecre tar ia M unicip a l de Ed uc ação do R io de J a neiro . M U LT IED U C AÇ ÃO:
N úc l e o C ur r i c ul ar B á si c o , 1 9 9 6 , p . 1 0 5 -1 5 6 .
10
C f.
S e c r e ta r ia
M u ni c ip al
de
E d uc a ç ã o
do
R io
de
J a ne ir o .
M U LT I E D U C AÇ ÃO : N ú c le o C ur r ic u la r B ás ic o , 1 9 9 6 , p . 1 1 4 -1 1 5 .
129
que a escola busca implementar. As disciplinas ministradas são:
Língua
Portuguesa,
Língua
Estrangeira
(Inglês),
Matemática,
Ciências, História, Geografia, Educação Física e Artes Plásticas 11.
Mas
por
outro
lado
trata-se
de
ensinar
conteúdos
social
e
cientificamente legitimados através das disciplinas. Este depoimento
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da professora de Artes Plásticas evidencia esta preocupação:
um aluno meu da 7ª s érie, a mãe é empregada doméstica e o pai
é... motorista de uma pessoa... de um ní vel social muito alto, mora
na Lagoa, esse pess oal. E eles trabalham lá, o casal. Eles
trabalham há muitos anos, e esse menino que é meu aluno, a
família gosta muito, de vez em quando esse garoto vai lá. Um dia
a mãe dele veio me contar que ele tinha ido passar o final de
semana lá com eles e quando ele chegou na sala do... eles o tratam
muito bem, quando ele chegou na sala, tinha um quadro da Tarsila
do Amaral, e era a matéria que a gente estava dando. Aí ele virou
para o patrão: “Ih – assim, ínti mo – uma Tarsila!” [ri] Aí o cara
virou e disse: “ah, você conhece?!” Ele fal ou: “conheço, esta aí é
o Apaburu” Aí o homem falou: “não acredito!” Aí a mãe falou: “é,
escola municipal !” Aí o cara ficou empol gadíssimo! [conta com
um sorriso na boca e olhos brilhando].
Como a escola não transmite toda a cultura, mas apenas parte
dela, a seleção dos conteúdos é fundamental (Forquin, 1993). Esta
seleção
acaba
por
legitimar
determinados
conhecimentos
em
detrimentos de outros (Silva, 2000; Candau, 2000b). Assim, um
aluno reconhecer um quadro de uma famosa pintora brasileira é um
atestado
de
que
desenvolvimento
a
escola
curricular
tem
como
expressões
referência
da
cultura
do
seu
artística
brasileira, em geral pouco presentes no ensino fundamental.
Araújo (2003) divide em “‘duas diferentes concepções’ o
trabalho pedagógico”:
1)
As disciplinas curriculares são o eixo vertebrador do sistema
educacional e as temát icas transversais as atr avessam.
2)
As temáticas trans ver sais são o eixo vertebrador do sistema
educacional, sua própr ia finalidade.
Para o autor, na primeira concepção, a finalidade da educação
ainda é o ensino das disciplinas, havendo espaços para o trabalho de
11
O Núc leo C urri c ul ar B ási co concebe 3 di sc ipl i n as para a ár ea de Ar t es : Arte s
Cê nica s, Arte s P lá s tic as e Educa ção M u si ca l, s endo q ue a e sco la e sco l he uma
dela s. “E t e m e s cola s q u e não t ê m ne nhu ma”, s al ie nt a a d ire tora Ana.
130
novas temáticas através de: a) atividades pontuais; b) disciplinas,
palestras e assessorias sobre temas transversais; c) oferecimento de
projetos
interdisciplinares
sobre
temas
transversais;
d)
a
transversalidade deve estar incorporada nas próprias disciplinas; e
e) a transversalidade é trabalhada como ‘currículo oculto’ 12. O autor
admite o valor destas estratégias e sua contribuição para a formação
da cidadania, mas chama a atenção para o fato de que elas “mantêm
as
disciplinas tradicionais
como
eixo
vertebrador
do
sistema
educacional” (Araújo, 2003, p.54).
Na segunda concepção, para Araújo (2003), as disciplinas
deixam de ser ‘finalidade’ para se constituírem em ‘meio’, como
instrumentos para trabalhar temas centrais da preocupação social. O
foco e os objetivos educacionais são modificados. Araújo (2003,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0114347/CA
p.59) explica:
Nesta perspectiva, os temas cotidianos e os saberes populares são
o ponto de partida, e muitas vezes também de chegada, para as
aprendizagens escolares, dando um novo sentido e significado
para os conteúdos científicos e culturais que a escola trabalha.
Analisando a proposta da Escola Azul, é possível afirmar que
sua prática educacional é mais próxima da primeira concepção,
ainda que haja um esforço na construção de Projetos PolíticosPedagógicos e de uma pedagogia de projetos na direção da segunda
concepção,
como
pudemos
reconhecer
em
seus
esforços
de
elaboração de projetos específicos e nas dificuldades da abordagem
transdisciplinar.
4.1.3
Os atores
Uma escola não é somente um prédio com salas de aula: ela
comporta
uma
comunidade
escolar.
Ela
é
composta
pelas/os
diretoras/es, professoras/es, funcionárias/os, estudantes e suas/eus
responsáveis. São elas/es os atores, que dão vida e sentido,
12
C f. U li s se s F. AR AÚJ O, O e n si n o tr a n s ver sa l . I n: Te ma s tra n sv e rsa i s e a
es tra tég ia d e p ro jeto s, 2 0 0 3 , p . 4 8 -5 7 .
131
identidade e diferença, a qualquer escola. Na Escola Azul, sendo
impossível falar de todos individualmente, apresento uma breve
descrição e comentário sobre alguns atores individuais pela sua
importância na história recente da escola, assim como sobre alguns
atores coletivos.
4.1.3.1
A diretora
“ele s me vê e m co mo rea l me nt e o... o ce ntro d a e sco la”
Ana foi para a Escola Azul no ano de sua inauguração em
1977. Branca, moradora de Vila Valqueire, fez o Curso Normal e é
professora desde 1968. Tem 57 anos, aposentada de uma matrícula
em 1995, é formada em Ciências Contábeis e já deu aulas de
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matemática. Às vezes ela chega as seis da manhã e é a última a sair
da escola. Sua dedicação é acompanhada pelo marido aposentado,
que a ajuda em quase tudo: motorista, inspetor, comprador e olhos e
ouvidos da direção. Ela se pronuncia em defesa da escola pública,
conta que seus filhos estudaram com ela, como prova de sua
confiança no ensino público. Quando soube que os novos uniformes
estavam sendo criticados por alguns pais e alguém da Secretaria
Municipal de Educação (SME) teria admitido que os uniformes não
estavam sendo bem aceitos, ficou indignada: “eu teria o maior
orgulho de usar estes uniformes! Isto é dinheiro público! Em minha
escola eu vou bancar o uso dos uniformes!” Não admite também a
falta de compromisso de professores com a escola em qualquer
aspecto: “na minha época, eu nunca cheguei atrasada”, comentou,
insatisfeita com uma professora que presenciei chegando atrasada
por cinco minutos.
Dia 22 de setembro de 2004
Na hora da entrada o pátio é um al voroço só. Grupos de alunos
conversam, crianças correm de um lado para o outro. Agitação e
correria. De repente, todos os alunos começam a se mover ao
mes mo tempo e rápido para o centro do pátio e a formar as filas: a
diretora acabou de chegar ao pátio e, sem dizer uma só palavra,
132
todos os alunos que estão no pátio vão para a for mação e
aguardam a sua ordem.
A relação da diretora Ana com a escola é marcante para toda a
comunidade escolar. Aída, coordenadora pedagógica exemplifica a
naturalização deste aspecto:
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a gente até brinca muito com isso, a Ana, ela tem uma presença
muito... marcante na escola. Tem um lado bom e tem um lado
ruim. Não adianta que as pessoas não vão enxergar autoridade
maior além da Ana ou i gual, ou um pouquinho abaixo. Não, é a
Ana. Então muitas vezes: “eu quero falar com dona Ana”, eu falo,
“eu posso aj udar?” Não, é só com a dona Ana. Aí a dona Ana vai
entrar – você vê isso lá – dona Ana vai entrar e ele vai perguntar
uma besteira que eu poderia ter resolvido ou Arlinda, mas tem que
ser “dona Ana”. Enfi m, esta é uma questão de personalidade del a
mes ma, a presença dela. O que acontece, a mãe dela é moradora
ali, então ela conhece, ela sabe, então isso também é uma coisa
que facilita muito a el a o contato com as mães.
A situação e a visibilidade da Escola Azul se confundem com
a marca da administração da diretora. Isto fica também evidenciado
na fala de Leandro, branco, 15 anos, 8ª série, considerado ótimo
aluno, com visão crítica, segundo seus professores:
Aqui nesta escola, pelo menos o que eu vej o e o que os outros
falam de outras escol as, que é bem or gani zada, bem estruturada,
tem um óti mo apoio com uma boa direção. Eu acho que é isto que
faz uma escola boa, como os professores também. Pelo menos o
que eu escuto de outras escolas, al guns diretores, aquele que
ferram, [se eles] saem, as escolas se tornam uma bagunça. Por
enquanto, dona Ana não saiu, não podemos dizer que [aqui] se
tornou uma bagunça.
E quando perguntado sobre drogas na escola, é enfático: “não,
drogas, não. A diretora não deixa rolar esse negócio aqui. J á corta
na raiz”.
A própria diretora explica sua relação com a comunidade
escolar:
São 27 anos dentro desta escola! Então eu f ui professora dos pais
de muitos alunos. A escola j á está na terceira geração. É muito
mais fácil para mi m, eu acho que hoj e a gente tem um ní vel de
respeito, eles me vêem como real mente o... o centro da escola,
eles têm clareza disso [...] eu procuro most rar para eles que, por
um lado eu sou assi m muito... muito ri gorosa, muito rí gida, mas
133
eu tenho um outro l ado em deter minado momento que a gente
conversa, eu faço reunião com eles...
Esta não é exatamente a percepção que algumas mães têm da
diretora, como relata Otília, a funcionária negra que mora na escola
e toma conta do portão para controlar entradas e saídas quando
necessário: “tem umas mães que acham ruim, da maneira de ser, ‘ah,
porque a gente não tem contato com as professoras, que tem que ser
o que ela [a diretora] quer’. Tem mães que falam que a d. Ana quer
botar isso aqui igual a um quartel”.
Ana demonstra que a sua relação com a escola é um projeto
de vida. Dias depois de me conceder uma entrevista, ela me
procurou pedindo para dar uma “declaração de amor à escola”
porque na entrevista havia falado muito de trabalho e não dos
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sentimentos que tinha em relação à escola:
...di zer que educação é uma coisa fantástica, é um dinheiro
abençoado, é uma pai xão, é uma... é do coração. Você trabalha,
você bri ga, você zanga, se estressa, mas eu quero di zer que eu
venho diariamente par a essa escola com... um dever cumprido, eu
não quero passar por essa escola por passar. Eu não quero que a
direção da Ana passe batida pela educação da rede pública. Eu
acho que esse trabalho é um trabalho de... quem não faz isso não
sabe o que está perdendo, o quanto está sendo valori zado, não
entende quando o aluno da gente di z para a gente [com os olhos
cheios d’água], quando ele sai da escola e ele volta e di z assi m:
“eu quero entrar – a gente não quer abrir o portão para ele – eu
vi m ver vocês, quanta falta a gente sente, como é difícil no
segundo grau, como é diferente”, porque a gente trabalha com...
um amor, uma dedicação, um prazer, uma perseverança [...] Eu
quero... muito deixar registrado para você a paixão – o dia que eu
sair dessa escola eu não passo mais em Oswaldo Cruz, eu não
quero mais passar na frente dessa escola [com olhos marej ados]...
porque eu fico muito preocupada como el a poderá e deverá ser
conduzida. Não que a gente conduza de uma maneira, ninguém é
insubstituível, não é isso. É que... quando o casamento acaba é
muito doloroso. E em al gum tempo esse casamento, meu
casamento com essa es cola vai ter que acabar porque nada é eterno
na vida.
Quanto ao apoio ao trabalho docente, Adriana, de História,
conta o que a diretora lhe disse: “vocês podem fazer o que quiserem
em sala de aula”. E conclui: “quer coisa melhor que isto? Porque ela
também confia em nosso trabalho”. Contudo, a personalidade forte e
134
certa rigidez na condução têm suas conseqüências como apontam as
anotações do diário de campo:
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12 de novembro de 2003
Castigo – eu havia vis to uma tur ma inteira, com suas carteiras, no
corredor do segundo andar. Imaginei que deveria ser em função de
reforma em al guma s ala. Per guntei à Aída. Ela disse que tinha
sido castigo para uma turma que não queria fazer o dever de
matemática. Ela explicou que o professor, “aquele tipo
funcionário público”, vi ve de licença o ano inteiro, tirando licença
de 15 em 15 dias (se tirasse um mês a escol a poderia requerer uma
dupla para outro professor mais comprometi do) e as crianças estão
revoltadas e não querem fazer o dever que ele passa. Então a
diretora os pôs de castigo, fazendo o dever no corredor, porque
assim ela pode vi giá-l os da sala da secretaria através das câmeras
do circuito interno de TV.
22 de março de 2004
Por volta das 10:00h, na secretaria chegam alguns alunos, todos
meninos, possi vel mente da 6ª ou 7ª série. Eles querem ir para a
sala de leitura para pegar ou continuar seu trabalho escolar. São
do turno da tarde e es tão unifor mi zados. A diretora, em tom alto
de voz, começa criticando os alunos porque achava que não tinham
marcado com as professoras da sala de leitura e elas tinham saído
para uma reunião na CRE em Rocha Miranda. Os alunos ficam
tímidos , olhando para o chão sem saber como fazer , mas al guém
da secretaria confirma que eles haviam marcado horário com as
professoras da sala de leitura. Ana diminui o tom da voz e di z que
não pode fazer nada porque as professoras saíram. Os alunos
repetem em voz baixa, tí midos: “o noss o trabalho está lá”. Ana
responde: “eu sei, mas não poss o fazer nada. Elas saíram para uma
reunião. Vocês falem com a sua professora e peçam para ela falar
comi go”.
Os
alunos
vão
embora,
com expressões
de
desapontamento. Pouco depois chegam mai s alguns alunos para
“fazer trabalho” e, como não havia possibilidade de se usar a sala
de leitura, os alunos f oram para o refeitório. Quando Ana descobre
isto, manda todos vir em para a secretaria. Assi m que chegam,
Ana, em tom alto de voz, “eu não quero vocês no refeitório, vocês
vieram para a sala de leitura e ela não está podendo ser usada,
vocês vão para casa. Eu não posso tomar conta de vocês!” E ainda
manda um dos garotos tirar o boné que usava, “que não faz parte
do unifor me!”. Ela continua: “como é que eu vou tomar conta de
vocês , fulano e beltrano, levados?! Não, todo mundo volta para
casa!”, diz de maneira firme, sem admitir contestação. Os alunos
vão embora silenciosos, sem falar nada.
5 de maio de 2004
Ana conta a discussão com uma professora na secretaria, que
depois fico sabendo que é a Marisol, professora de Artes
Plásticas. Diz que a professora trouxe um aluno para a secretaria
porque fazia muita bagunça e queria que a diretora tomasse uma
providência, punindo o aluno. Segundo Ana, quando foi contestada
135
por ela por querer a punição do aluno como forma de resol ver o
problema, Marisol começou a gritar. Ana disse que chamou a
atenção dela por isso e comentou que se ela estava fazendo isso na
frente dela, diretora, “o que não faria com o aluno em sala de
aula?!”. Arlinda e Aída acompanhavam atentas o relato da
diretora, além de Olavo, que inclusi ve estava presente no
momento da discuss ão relatada, confirmando o relato. Ana,
falando em tom alto, comenta como “está difícil trabalhar com o
professor hoj e em dia!”. Argumenta que o pr oj eto da escola não é
punir e isto vem desde 1992, quando passou a ser diretora, que a
proposta da escola não é tradicional e sim buscar o
desenvol vi mento da cr iança e, portanto, não é através da punição
que se resolve. Para el a, os professores não entendem o proj eto da
escola e que ela, di retora, não lida só com aluno, mas com
professor, funcionário, pai de aluno.
Estas contradições estão presentes na prática pedagógica e
administrativa da diretora Ana que, não obstante, é diretora desde
1992, fazendo mudar a história da escola com seu dinamismo,
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dedicação e – por que não dizer? – também rigidez e um certo
autoritarismo. Seria possível outro caminho? Com certeza pode-se e
deve-se discutir este tema, mas o fato é que este foi o caminho que
possibilitou a superação dos graves problemas que existiam antes da
gestão de Ana. O que não significa que isto sirva de justificativa. O
fato
de
existirem
reuniões
regulares
da
escola
com
as/os
responsáveis (na entrega dos boletins) e especiais (no caso da turma
da fase final do Ciclo de Formação e da Progressão para discutirem
a situação dos/as alunos/as), não significa que haja participação da
comunidade escolar e democracia (Gandin, 2002). A eleição do
Conselho
Escola-Comunidade
(CEC),
por
exemplo,
não
teve
divulgação e não foi precedida de qualquer debate: anunciou-se a
chapa poucos dias antes da eleição e votou-se na única chapa,
afinada totalmente com a direção. O Sindicato dos Profissionais da
Educação (SEPE) é invisibilizado, são inibidas menções à partidos
ou posições políticas e não há exercício de crítica sobre a política
da SME, porque a escola só se preocupa com o pedagógico, como
diz Ana:
a esco la, e la fic a à parte da rel i gião , ela fi ca à p a rte d a p o lí tica , ela
tr a b a l ha o p ed a gó g ic o o te mp o to d o , o c ul t ur a l o te mp o to d o , d i fer e nte s
li n g ua g e ns o t e mp o to d o . A ge n te fa la d e c id a d a n ia , mu i to ma i s d o , a
ge n te não e n tr a no mé r it o d a r e li g iã o , a g e n te t r a b a lh a c id a d a n ia e n ã o
136
e n t ra n o mé ri to d a p o lí t ic a , q u er di zer a e s cola fic a de ntro do e n fo q ue
p e d a gó gic o me s mo ( gr i f o s me u s) .
Se,
por
um
posicionamentos
lado,
podemos
entender
político-partidários,
por
a
preocupação
outro,
não
há
com
como
separar política de cidadania, da mesma maneira que não se pode
separar cidadania de democracia (Vieira, 1998) 13. Em 2005 está
prevista a eleição para a direção da Escola Azul. É um excelente
momento para este debate.
4.1.3.2
A coordenadora pedagógica
“. . . se e u te n ho u m d i fer en c ia l me u , p r o fi s sio n a l , é go s ta r d o q ue e u fa ç o .
Ad o r o !”
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Aída é branca, nasceu no bairro de Oswaldo Cruz e aí viveu
até os oito anos. Mudou para o Leblon e depois de casada voltou a
morar no bairro e atualmente mora no bairro de Sulacap. É formada
na Escola Normal e no ensino superior no curso de Psicologia, além
de ter uma especialização em psicopedagogia e outra em marketing.
Tem perspectiva de fazer mestrado, mas esbarra na falta de tempo,
pois também trabalha num colégio particular, onde estuda sua filha,
Ah, eu nasci, mas por um aborto da natureza! (ri). Mas eu saí do
bairro há muito tempo.[Mas] não é assi m também, eu não sou
alienada da história do bairro, até porque, após o meu pri meiro
casamento, eu fui mor ar em Oswaldo Cruz. Foi por isso que eu fui
trabalhar lá. Eu morava ali muito próxi mo à escola.
Foi fazer normal por influência da mãe, enfermeira, e gostou.
Lelis (1996, p.204) mostra como este é um dos caminhos para a
profissão:
Se à primeira vista estas mulheres foram ‘constrangidas’ ao
magistério, as disposi ções foram sendo modificadas no curso do
13
Lis zt VI EI R A a f ir ma : “ a cid ad a n ia, d e fi n id a p e lo s p r i nc íp io s d a d e mo c r aci a,
cons ti t ui - se na cr iação de esp aço s so ci ai s de l ut a ( mo v i me n tos so c ia i s) e na
d e f i ni ç ã o d e i n st it u iç õ e s p e r ma n e nt es p a r a a e xp r e s são p o l ít ic a ( p a r tid o s,
órgão s p úb li co s), si gni fi ca ndo ne ce ss ari a me nte c o nq uis ta e co nso lida ção so c ial
e p o l íti c a . A c id a d a ni a p a ss i va , o uto r ga d a p e lo E s tad o , se d i fe r e nc ia d a
c id a d a n ia a t i va , na q ua l o c id ad ã o , p o r t ad o r d e d ir e ito s e d e v e r e s, é
e s se n c ia l me n te c r i ad o r d e d ir ei to s p a r a a b r ir no vo s e sp a ç o s d e p a r t i cip a ç ã o
p o lít ic a”, i n: C id a d a n ia e g lo b a l i za ç ã o , 1 9 9 8 , p . 4 0 .
137
tempo, o que si gnificou reencontrar a vocação em outros ter mos,
enquanto
construção
social.
Disposi ções
que
encerram
compromis so com o aluno(a), afir mado e reafirmado no plano
afetivo e intelectual, manifestando-se na relação pedagógica, nas
estratégias desenvol vidas.
Aída trabalhou em um Ciep antes de vir para a Escola Azul, onde
está desde 1988, trabalhando em sala de aula, sala de leitura e na
coordenação pedagógica, nesta função a partir de 1998. Ela
formulou os PPPs da Escola Azul:
lembro muito do que o professor Otávio 14 me disse, “Aída, a partir
de hoj e a Escola Azul não vai ter a cara da diretora Ana nem da
adj unta Arlinda. A partir de hoj e a Escola Azul vai ter a tua car a
porque o pedagógico é a alma da escola, então ela vai ter a tua
alma”. Então eu fico pensando, assi m, que ele definiu bem o que
eu estava querendo.
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É bastante dinâmica e demonstra gostar de seu trabalho:
Eu adoro, adoro, ador o, adoro. Gosto mesmo. É desgastante, hoj e,
depois de um tempo percorrido, além do processo de sala de aula,
eu acho que, assi m, se colocassem, se eu tenho um diferencial
meu, profissional, é gostar do que eu faço. Adoro!
É respeitada pela comunidade escolar porém sofre críticas de
alguns professores considerados sem compromisso com a escola,
como os que vivem pedindo licença ou não buscam desenvolver
práticas pedagógicas variadas, explica ela. Considera ótimo/a o/a
estudante da Escola Azul, principalmente comparando com outras
escolas,
porque
“começa
a
criar
uma
cultura
realmente
de
participação, de querer, de estar envolvido”. Se existem alunos
levados, o que acha normal, é preciso desenvolver estratégias para
enfrentar a situação:
eu não consi go conceber, você vi ver, passar 24 horas dentro de
uma escola reclamando que os alunos são horrorosos! E aí, o que
você faz? Você tem que ter uma estratégia. Eles não podem sair
daqui: “eu venci”. Eu não consi go conceber isso. Então a gente
cria todo um movi mento inverso, exatamente um movi mento de
estar pensando, estar questionando. Aí você vai buscar umas
estratégias de punição entre aspas, outras de motivação, outras de
conversas.
14
O p r o f e s so r O tá v io e n s in a P o r t u g u ê s, te m mai s d e 6 0 a no s , é a p o se n ta d o d e
u ma ma tr í c ula no E st ad o e c o o r d e n a d o i s c o lé g io s p a r ti c ula r e s.
138
Nas reuniões do Centro de Estudos, apesar do tempo tomado
por discussões administrativas, Aída leva textos de diferentes
autores 15 para debater e procura chamar a atenção das professoras
para o projeto político pedagógico da escola que, em 2004, consistia
numa orientação geral pois ainda não havia sido elaborado: “Escola
Azul em movimento”. Dá um exemplo do que viu e ouviu durante a
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exposição realizada na escola com os trabalhos dos/as estudantes:
A exposição or gani zada pela escola mostrou como fazer o trabalho
de acordo com o proj eto da escola. Ela conta a história de uma
aluna, que havia sido r eprovada pela professora (que não está mais
na escola) por bagunça. A menina chamou Aída para ver o seu
trabalho no dia da exposição e ela ficou admirada pelo trabalho e
pelo capricho, dizendo para a aluna que estava mudando a i magem
que tinha dela. Então a garota, com lágri mas nos olhos, disse que
estava fazendo de tudo para mudar a i magem que as pessoas
tinham dela, mas que era difícil as pessoas acreditarem nela. Aída
disse que chorou e per cebeu o quanto as coisas podem mudar. Esse
trabalho de resgate da auto-esti ma e de desenvol vi mento daquela
aluna foi trabalho das professoras e particular mente da Ângela.
Aída admite que ela mesmo não tem tempo suficiente para
os/as alunos/as em função das tarefas de direção, e “quando vai na
sala é muita bronca, muita cobrança”. Segundo ela, já teve um
movimento com os/as estudantes “muito mais gostoso”. Apaixonada
por teatro, procura incentivar os/as estudantes a fazerem peças e
trouxe alunos/as do colégio particular em que trabalha para
apresentar uma peça na Escola Azul. Como uma foliã de carnaval,
ficou entusiasmada com os desfiles ecológicos, mas nos últimos
anos sente-se cansada para continuar organizando, devido ao
esforço necessário.
4.1.3.3
O professor Orlando
15
E m u ma d e sta s r e u n iõ es, l e vo u c ó p ia s d o c a p ít ulo 1 d o li vr o d e A u g u sto
CU R Y, P a i s b ri lh a n te s , p ro fe s so re s fa scin a n t es, 2 0 0 3 , e m q ue d i sc ut e a s
d i fic u ld a d e s d o s p r o f e s so r e s e m sa la d e a ul a no mu n d o d e ho j e, e m q u e a
tel e vi são te m ta n ta i n fl uê n cia na s cr ia nç a s. O t ex to fo i l id o e d i sc u tid o , te nd o
gr a nd e a c e i ta ç ã o p o r p ar te d a s p r o f e sso r as p r e se nt e s.
139
“o tipo d e tr aba l ho q ue eu fiz é uma ter apia , a r te -t erap ia, q u e vai dar
uma c o ntr ib ui ç ã o no p r o ce sso de e n s i no -apr e nd iz a ge m, q ue é be m
co mp li cado, p ara cer ta s cria nça s, c ert as t ur ma s, a a uto -es ti ma.”
Branco, nascido e criado no bairro do Rocha, subúrbio da
Central, na cidade do Rio de Janeiro, formou-se em Técnicas
Agrícolas, com uma posterior licenciatura nesta área. Aos 61 anos,
está prestes a se aposentar. Chegou na Escola Azul em 1991 para
lecionar a disciplina de Técnicas Agrícolas 16, tendo participação
fundamental nas mudanças que ocorreram na escola.
Conforme me explicou, trabalha com os alunos a questão do
meio ambiente, a quebra dos tabus alimentares (as crianças comem
chicória, tomate, cebolinha etc.) e plantas medicinais. Tem turmas
de 20 alunos, onde desenvolve estas questões. As crianças plantam
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árvores, flores, hortaliças, plantas medicinais e cuidam delas. Conta
que quando chegou, boa parte do terreno da escola que fica depois
da quadra, era puro lixo, capim e mosquitos. Fui com ele e uma de
suas turmas colher tomate, salsa e cebolinha. Pelo interesse dos/as
alunos/as, o estado da horta e das plantas em geral, o professor dá a
impressão de realizar um ótimo trabalho, tendo impacto até na
família dos/as estudantes. Por exemplo, durante a aula um aluno
lembrou que queria levar para casa capim-limão, que a mãe tinha
pedido: era para fazer chá. Orlando também montou uma oficina
onde tem todas as ferramentas necessárias para o trabalho. Como
diz a merendeira Carla, “nós temos um privilégio, temos um
Orlando na escola, que fez uma horta, que ensina as crianças [...]
Até criança que não gosta de comer uma coisa ou outra, acaba
gostando e passa a comer”. “Mas tudo isso vai acabar”, diz o
professor um tanto resignado, pois no “ano que vem eu me
aposento”. Ele explica seu sucesso:
É u ma a ul a li vr e , co mo u m v ô le i, b a sq uet e, u ma ed uca ção f í si ca, ma s é
um traba l ho e m q ue a c r ia nç a vai traba l har c r i ando al guma coi sa. Ela
c r ia, e la v ê na s c e r u ma p la n ta, vê d es e n vo l v e r . O so lo c o mp le ta me n te
se m n a d a e d e r e p e n te a q ue le so lo e stá c o b e r to d e v e ge tai s e q ue e la va i
então ma nuse a ndo, ela vai re ga ndo e col he e co me. É uma co is a
16
Se gundo a d ireto ra Ana, ne sta época ha via um proj eto de “Ed uc ação para o
tr a b a l ho ” . Na v e r d a d e u m p r o j e to d a S M E , e m q ue a E sc o la Az u l e r a p ó l o .
140
c o mp le ta me n te d i fer e nt e d o mu nd o d e la. É u ma á r e a ur b a n a , e n tão é u m
mu n d o q u e e la só vê n o li vr o e d e r ep e n te e s t á n a fr e n te d el a. E n tão
aquilo e u ac ho q ue mu d a bas ta n te, me xe ba sta n te co m a cr ia nça. E i s so
tud o el a l e va p ar a ca sa, le va p ar a o p ai : “a h, e u p la nt ei ho j e, e u mo l hei ,
eu c api nei, e u me xi co m a terra, q ue ela não faz e m c as a. El a não vê na
tel e vi são, nad a, é só ci me nto, a s fa lto , apar ta mento, q uer di zer, a mã e
não d e i xa e l a me xer na s p la n ta s, me s mo te nd o v o nt ad e d e me xer , mas a
mã e não d ei x a, não toc a , e aq ui e la é cap az de d ese nvo l ver i s so .
Apresentaram-me o professor Orlando assim: “é ele que
enfeita a escola”. Tem uma atuação dedicada, refletida no respeito
que toda a comunidade escolar tem por ele. Desenvolve um trabalho
que ultrapassa a sua disciplina, não só na conscientização sobre o
meio
ambiente,
mas
auxiliando
em
estratégias
de
apoio
a
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determinados/as estudantes que tenham problema na aprendizagem:
Mi nha mat éri a, ho j e, é quas e q ue. .. co mo j á es to u tr aba l ha ndo, co mo
vo c ê vê a go r a , o tip o d e tr ab al ho q u e e u fi z é u ma t er ap ia, ar t e -te r ap i a,
q ue va i d a r u ma c o n tr ib ui ç ã o no p r o c e s so d e e n si no - a p r e nd iz a g e m, q ue
é be m co mp l ic ado, pa ra cer ta s cr ia nça s, c ert as t ur ma s, a a uto -es ti ma .
Me u t r ab a l ho é ma i s vo l tad o p ar a i s so , a a u to -e s ti ma .
Uma preocupação em educar a juventude para seu próprio
bem 17, dentro de determinados valores considerados fundamentais,
leva a que Orlando, além da função de professor, também organize
murais e faça montagens de trabalhos junto com os/as estudantes,
que são expostos, dos quais se destacam motivos referentes ao
Natal. Enquanto
reconstruía o presépio do
ano anterior, me
explicava: “esses enfeites têm motivos comerciais. Neste ano
procurei
colocar
as
coisas
num
plano
mais
religioso”.
O
cristianismo está mais do que insinuado.
Sendo um professor que é referência na escola devido ao seu
trabalho e compromisso, todavia, suas visões não fogem do senso
comum com relação a alguns temas atuais. Certo dia, ele veio
comentar comigo algo que considerava um absurdo: numa matéria
que leu no jornal O Globo, o pai de aluno de colégio particular
17
P e r r e no ud ( 1 9 9 5 ) d iz q ue o “cr ed o ” d e q u e s e e d u c a “a j u v e nt ud e p ar a se u
p r ó p r io b e m” n u nc a fo i r e a l iz a d o e m t ão lar g a e sc a la q ua n to no fi n a l d o séc ulo
XX, a c a b a nd o p o r e xe r c e r e no r me p r e s são na vid a d o s /a s e s t ud a n te s. Se i sto
e s tá p r e se n te na p r á t ic a d o p r o fe s so r Or l a nd o , ta mb é m e st á u ma b us c a p o r
conq ui star os /a s al uno s/ as p elo pr azer .
141
confessional e tradicional, denunciava o colégio porque este não
queria aceitar o corte de cabelo alternativo do filho. “mas ele [o
pai] não assinou que aceitava as normas do colégio?!”, dizia
indignado. Para ele, as atitudes de jovens que acabam em violência,
devem-se à liberalidade que o Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA) permite. Ele é de opinião que se deve reduzir a maioridade
penal.
Apesar de ser considerado um ótimo professor, ele não sonhou
com esta profissão desde cedo, desconstruindo a imagem de
“vocação” da profissão, como foi apontada por Lelis (1996), ao
contrário, por exemplo, das professoras de uma escola pública
municipal de um subúrbio do Rio de Janeiro, pesquisadas por Reis
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(2001) 18. Para Orlando,
ser professor foi quase por mero acaso. Eu era supervisor da
EMATER, anti ga as sociação de assistência de crédito rural,
trabalhava em Api, r egião do Vale do Rio Doce, Minas Gerais,
quando sur giu, em 1970 e 1971, um acordo entre o governo
americano – como sempre – e o Brasil, através do BIRD, de
melhoria do ensino médio, quando foi criada as escolas do
PREMEN 19. Então houve concurso, eles nos deram uma bolsa, e
nós fomos fazer o curso de licenciatura em Belo Hori zonte, na
Uni versidade Federal de Minas Gerais.
Foi desse modo que começou a trabalhar como professor, tendo
lecionado em escolas em Minas Gerais – onde recebeu homenagens
pelo seu trabalho – até voltar para o Rio de Janeiro. Não é diferente
na Escola Azul, como ele mesmo admite: “posso dizer assim, até
com um pouco de vaidade, eu sou bem querido e respeitado. Eles me
18
Ro se ma r y RE I S, c o nt u d o , ta l c o mo Le li s ( 1 9 9 6 ) , p r o c ur a mo str a r q ue não s e
tr a t a d e u m ú n ic o mo t i v o : “ se , p o r u m lad o , o g o sto , a vo nta d e , a p r e d i s p o si ç ã o
p ela d o cê nc ia, e vid e nc i ad o s n as d ec lar açõ e s d e q ua se to d a s a s p r o fe s so r a s,
e mp r e sta m a e ss e pro ces so de es col ha um cará ter vo cac io na l, por outro,
a sp e c to s c o mo o i n c e n ti vo d o s p a i s, a s e xp e r iê nc ia s e s c o la r e s p o si t iv a s, o
perte n ci me nto a fa mí lia s co m c ert a t r adi ção no ma gi s tér io (i nfl uê n ci a de t ia s,
p r i ma s e o u tr o s) r e v el a m o e fe ito q u e a s e x p er iê n cia s d e so ci ali za ção e m
conte x tos fa mi lia re s ou esco lar es e x erce ra m so b r e s ua s e sco l ha s pro fi s si ona i s.”
In: P rá ti ca s d e lei tu ra e p ro d u ç ã o d e t e x to s n a s s é r ie s in icia i s: sa b er d o c e n te
e m p ro c e s so d e c o n st ru ç ã o . Di s se r taç ão d e me str ad o ( 2 0 0 1 ) , p . 6 7 .
19
B a nco I nter n a c io nal p a r a a R e c o n str u ç ã o e De se n vo l vi me n to ( B I R D) , ta mb é m
c o n h e c id o c o mo B a n c o M u nd ia l. O P RE ME N e r a u ma d a s u nid a d e s ger en c ia i s
cri ad as p e l o M i ni st é r i o d a E d uc a ç ã o ( ME C) no iníc io dos a no s 1970 pa ra o
d e se n vo l vi me nto d e p r o j e to s e sp e c ia i s e m r e fo r ço a o e ns i no d e 1 º e 2 º gr a u s.
Na pr i me ira fas e da coo p eração té c ni ca do B I R D, o s proj eto s fo r a m e x ec utado s
p o r e s te s ó r g ã o s ( Fo n se c a, 2 0 0 1 ) .
142
vêem assim com um certo grau de respeito e reconhecem o meu
trabalho em relação à escola”.
4.1.3.4
A professora Ângela
“ te n ho u ma a l u na e a m ã e d e l a é mi n h a a l u na n o se g u nd o gr a u. M as e u
te nho se mp re a preo cup ação de não per m iti r que a s coi sa s se
c o n f u nd a m.”
É professora da 4ª série e está na escola desde 1996. Ângela,
branca, tem 45 anos e mora em Oswaldo Cruz desde os 5 anos.
Cursou
Normal,
Letras
e
fez
especialização
em
Docência.
Contrariamente ao discurso das professoras pesquisadas por Reis
(2001), inicialmente não queria a carreira docente, mas era uma
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tradição na família 20, um aspecto que vai ao encontro dos estudos de
Lelis (1996) ao chamar a atenção para a pluralidade de sentimentos
e práticas em contextos sociais determinantes que levam à escolha
da profissão. Ângela conta:
pertenço a uma famí lia tradicional, poucas mulheres e muitos
homens. Todas são obrigadas a cursar o nor mal. Então eu fui
cursar o nor mal obri gada, não por escolha própria. Eu queria na
época fazer infor mática. Minha mãe não per mitiu e fui estudar no
Car mela Dutra. Eu sempre estudei na cidade, foi a minha pri meira
experiência estudar na zona norte. Eu sempre estudei no centro,
até mes mo porque meus pais tinham um comércio no centro da
cidade.
Lecionando há 26 anos, ela também é professora de português
num colégio estadual do bairro. Isto provoca algumas situações
interessantes, como ela explica:
eu tenho uma aluna e a mãe dela é minha aluna no segundo grau.
Mas eu tenho sempre a preocupação de não per mitir que as coisas
se confundam. Eu não per mito que a mãe pergunte para mi m nada
que diz respeito à sua filha, se ela quiser conversar comi go ela
tem que vir ao colégio. [...] Eu sempre del imito esse uni verso. E
vem dando certo, eu estou aqui há 8 anos, nunca tive problemas.
Até mesmo por ser da comunidade, eu t enho um respaldo dos
responsáveis por eles me conhecerem como pessoa.
20
No aspec to da trad i ção fa mi li ar, coi n cide co m d ua s das pro f e s so ra s
p e sq u is a d a s p o r Re i s ( 2 0 0 1 ) .
143
Ângela tem uma atitude de acreditar na potencialidade de
seus/as alunos/as, o que, segundo as pesquisas, constituem como
fatores relevantes para a aprendizagem escolar (Bonamino, 2005).
Cita com orgulho o fato de vários deles seguirem para colégios
considerados bons, que necessitam de fazer prova para entrar, como
o Colégio Militar, o Pedro II ou ganhando bolsa em colégios
particulares
como
o
Santa
Mônica.
“Então
eu
estou
sempre
acreditando”, diz.
Pelo que pude observar em sala de aula, desenvolve uma
relação de mútuo respeito com a sua turma, que é a mesma do ano
anterior 21. Ela procura estratégias de participação dos/as estudantes,
busca estabelecer relação do conteúdo com a vida dos/as alunos/as.
Em sua aula ela me conta que este ano pesquisou com a turma o
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carnaval e explica como fez:
Eu coloco para eles a pergunta: o que é o carnaval? É só escola de
samba?”. Principia a levantar questões par a os alunos como por
exemplo: “o que vocês vêem na [TV] Globo? É só sobre o Rio?”.
Al guns alunos vão respondendo. A maioria parece prestar atenção.
“Na Europa tem carnaval? E na África e na Austrália? Como é o
carnaval em Recife? Como era o carnaval antigo do Rio? Como
eram as fantasias? Perguntem para seus pais, avós, vizinhos”, e
pedia para que os alunos trouxessem “relatório” sobre o que
pesquisaram, s e pos sível com ilustrações “que valori zem o
material”.
Participa ativamente da comunidade católica do bairro, tendo
destaque, ajudando a construir igreja de Nossa Senhora Medianeira.
Viu serem construídos os blocos de apartamentos para trazer
moradores de
favelas
como
a
do Esqueleto,
que levaram
à
construção da própria Escola Azul. Assistia desfile da Portela em
Oswaldo Cruz e sua mãe dava apoio a blocos carnavalescos do
bairro.
Mas,
lamenta
Ângela,
com
a
enorme
quantidade
de
moradores vinda de repente com os conjuntos habitacionais no final
dos anos 1970, as relações de vizinhança perderam um pouco do
21
Na Es cola Az ul no r m al me nte a pro f es so r a “se g ue ” a s ua t ur ma no ano
se g u i nte . P o r e xe mp lo , a p r o fe s so r a q ue le c i o no u p a r a a 3 ª sér ie , no a no
se gui nte lec io na pa ra a mes ma t ur ma na 4ª sér ie, vo lta ndo à 3ª s érie no
p r ó x i mo a no e r e p et i nd o o p r o c e s so .
144
espírito
comunitário
de
antes,
quando
literalmente
todos
se
conheciam.
4.1.3.5
Os/as estudantes
“E u ac ho q ue e le s são es pecia i s !” (pro fe sso ra Ad ria na)
“ E u e sto u a p a i xo nad a p e la e s c o l a p o r q ue to d o mu nd o a q ui p ar t ic ip a !”
( Al ic e , d i r e t o r a d o gr ê m i o )
A Escola Azul não é uma escola pequena, com seus mais de
900 alunos/as, um número significativo de negros 22 e alta incidência
de moradores do bairro 23, turmas de Educação Infantil, de alunos/as
com
deficiência,
turmas
de
Progressão,
primeiro
e
segundo
segmentos do ensino fundamental. Um alunado heterogêneo, o que
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contribui
para
uma
diferenciação
nos
comportamentos
e
expectativas. Não sendo possível dar conta deste variado cenário,
apresento
alguns
elementos
que
ajudam
a
caracterizar
os/as
estudantes da Escola Azul.
Dia 21 de outubro de 2003
Os alunos ficam for mados (em fila) no pátio, tur ma por tur ma, e
os primeiros a subir são os do ginásio, começando pela 8ª, depois
7ª e assi m por diante. Notei pouquíssi mas caras de alunos que
pudesse interpretar como emburrada ou desani mada. Al guns
estavam com cara de sono. Enquanto estão na fila, a maioria não
pára no lugar, virando-se para conversar com o/a outro/a que está
atrás, ou saindo da fi la, mexendo com o/a colega da outra série,
22
Não fiz ne nhum tipo de pe sq ui sa e spec í fi ca para c la s si ficar a cor/ “ r aça”
d o s/ as e st ud a nt e s e nã o fa ç o u so d o c o nc e i t o d e “r a ç a ” e m s e u s e n tid o
b io ló gi co , ma s so c i a l ( G ui ma r ã e s, 2 0 0 2 ) . N ão o b st a nte , fo i e no r me o i mp a c to
vi s u al d e u ma ma io r ia co ns id er á vel d e e s t u d an te s q ue id e nti f iq ue i co mo
ne gr o s, to ma ndo co mo base a s cara cter í st ica s fe no t ípi ca s no r m al me nte
atrib u ída a e s ta pop ulaç ão, t ai s co mo pe le ne gr a o u e sc ur a e cabe lo s cr espo s e
“d ur o s ”. Es te ta mb é m é um cr itér io, al é m d a auto -d ec lar ação, usa do pelo
M o v i me n to Ne gr o e p e la ma io r ia d o s p e sq u i sad o r e s d a q ue st ão r a c i a l no B r a s il,
que cl as s i fi ca m co mo negr o s as ca te go r ia s de “p r eto s” e “p ardo s” usa d a pelo
IB GE. V er, e n tre o u tro s, K ab e n ge le MU N ANG A. R e d i scu t in d o a m es t iça g e m
n o B ra si l, 1 9 9 9 ; C a r lo s A. M E DEI R OS , Na le i e na ra ça , 2 0 0 4 ; An d r é A. P .
B R AND ÃO , Raç a, d e mo gr a f ia e i nd icad o r e s so c iai s, i n O LI VE I R A, I o la nd a d e
( o r g. ) . R e la ç õ e s R a c ia i s e E d u c a ç ã o , DP & A, 2 0 0 3 ; M a r c e lo J . P . P AI X ÃO,
De sen v o lv imen to h u ma n o e re la ç õ e s ra c ia i s, 2 0 0 3 ; R ic a r d o HE N R I QUE S,
De si gua ldad e ra ci al no B r as il : e vo l ução da s co ndiçõe s d e vida na d écad a de 90,
Tex to p a ra d is c u s sã o , I P E A, nº 8 0 7 , 2 0 0 1 ; M o e ma De P o li T E I XE I R A, Ne gr o s
e gr e sso s d e u ma u ni v e r s id a d e p ub l ic a no R io d e J a ne ir o , i n O LI VE I R A,
Iola nd a d e (or g.) . Re laç õ es Racia i s e Edu cação, 2 0 0 3 .
23
Se g u nd o e s ti mat i va d a d ir e ç ão d a e s c o la .
145
correndo uns atrás dos outros. Tudo isso dentro de um certo li mite
e até a diretora começar a liberar cada tur ma para subir para suas
salas. Mais tranqüilos são os/as da Educação Infantil, embora
sempre tenha aqueles/as que fazem uma brincadeira de bulir com
um/a colega, empurrar, o que é prontamente chamado a atenção
pela tia. Todos/as sobem em fila para a sala.
O
fato
de
não
haver
recreio
leva
os
estudantes
a
desenvolverem determinadas estratégias de lidar com o desejo da
brincadeira, de resolver os conflitos. Perrenoud (1999, p.151) diz
que o ofício do aluno “consiste principalmente em desmontar as
armadilhas colocadas pelo professor, decodificar suas expectativas,
fazer escolhas econômicas durante a preparação e a realização das
provas, saber negociar ajuda, correções mais favoráveis ou a
anulação de uma prova mal sucedida” 24. Da mesma maneira buscam
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fugir dos dispositivos de controle montados pela direção para inibir
atitudes transgressoras ou que possam chegar perto disso 25. Alguns o
fazem matando aulas, outros tentando participar no espaço que
permite negociação do Núcleo de Adolescentes Multiplicadores
(NAM). Mas no caso da Escola Azul, são nos momentos de espera,
nas aulas de Educação Física ou nas raras faltas de professores,
onde algo próximo aos estados de esquina de rua (McLaren, 1991)
aparecem.
Dia 21 de outubro de 2003
A aula de Educação Física da 8ª série está sendo realizada no
pátio. A professora tem um j eito tranqüilo e à vontade de lidar
com os alunos. Aparenta uns 25 anos e veste-se de maneira j ovem.
Parece que separa os alunos em grupos para fazerem alongamento
24
P ar a P hi lip p e P E R RE NO UD, “Q ua nd o s e f al a d e cu ltu ra h o sp ita la r o u d e
c u ltu ra p r is io n a l , d e si g na - s e se m a mb i g ü id a d e a c ul t ur a p ar t il h a d a p e l a s
c o mu n id a d es d o ho sp ita l o u d a p r i sã o . Q ua nd o se fal a e m c u l tu ra e sc o l a r, n ã o
se d e si g n a hab i t ua l me n te u ma r e laç ão e q ui v a l en te p a r a r e fer ir a s p e s so a s d a
esco la, ma s o s s abere s e o s aber - fa zer, hábi to s e at it ud es q u e n ã o p e r te n c e m
p ro p ria me n t e à e s c o la o u à s p es so a s d a e sc o l a” (p.62 -63). El e e xp li c a: “Não
há u ma d e mar c a ç ã o c la r a , p o r q ue o q ue o s a l u n o s d e v e m a p r e nd e r , e m f u nç ã o
d o s o b j e t i vo s ge r a i s d o e ns i no , e n glo b a e m p a r te a q ui lo q ue d e ve m a p r e nd e r
p a r a d e se mp e n h a r e m d u r a n te no ve o u ma is a no s o se u p a p el na o r ga n iz a ç ã o
e sc o lar , p a r a a í d e se mp e n h a r e m c o r r e ta me n te o se u ‘o fí c io ’ ” ( p . 6 3 ) . I n Of íc io
d e a lu n o e s e n t id o d o tr a b a lh o e sc o la r , 1 9 9 5 .
25
Anè s V AN Z ANT E N c h eg a à co nc l us ão q ue a s ati t ud e s tr a n s gr e s so r a s d o s/ as
e s t ud a nt e s tê m u m a p r end iz a d o não só n a c u lt ur a d e r ua , ma s t a m b é m na
cu ltu ra e sco la r, p a r a r ea gi r à s no r ma s r e p r e s so r a s. C f. C ul t ur a d e r ua o u
cult ur a da es col a? E d u c a ç ã o e P esq u i sa . v. 2 6 , nº 1 , p . 2 3 -5 2 , j a n /j u n /2 0 0 0 .
146
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mas poucos alunos o f azem. A maioria fica sentada, conversando.
Um aluno que fazia o exercício insistia em participar do bate bola
que a professora liberou no lado de fora do pátio para quem
participou do alongamento. Quando a professora entrou na sala
onde ficam os materiais esportivos, os alunos foram bater bola
dentro do pátio. Um chute mais forte fez com que a bola batesse e
rasgasse um dos grandes sacos de coleta seletiva de lixo. Ninguém
contou para a professora.
Dia 26 de maio de 2004
Os/as alunos/as da tur ma 602, considerada difícil, estão na quadra
fazendo aula de com o professor Sobrinho. As atividades são as de
sempre: futebol de sal ão para os meninos, r evezando-se na quadra
com a brincadeira de quei mada das meninas. Enquanto os meninos
j ogam, três meninas brincam no pátio com três garotos que não
estão j ogando, correndo uns atrás dos outros. O restante das
meninas for mam dois grupos. Um, menor, que fica conversando e
outro que brinca com a bola no espaço entre o muro e a grade do
pátio. Quando as meninas vão para a quadr a j ogar queimada, os
meninos ficam ao lado da quadra, uma parte assistindo, outra
brincando de luta, agarrando-se e um tentando derrubar o outro.
Ficam neste tipo de atividade, entremeado com conversas, até o
professor parar o j ogo das meninas e chamar os meninos para o
futebol. As meninas vão esperar sentando perto do portão de saída
do colégio, conversando. Elas estão de short e tênis, usando a
mes ma camisa com que vão para a sala de aula, com raras
exceções. Os meninos também usam o short e tênis e suas camisas
de j ogar bola são as mes mas do unifor me de sala de aula. Como é
de se esperar, todos/as ficam muito suados/as. No caso desta
turma, como j á são mais de 11:00h, ao acabar a aula eles/as devem
ir direto para casa.
Por outro lado, dentro de sala de aula, fora os momentos de
concentração e disciplina estudantil, os estados de estudante
(McLaren, 1991) são várias vezes suplantados.
Dia 6 de abril de 2004
Aula de Progressão – Após o café, que ter mina às 16:00h, eles/as
voltam para escrever o cartão de páscoa que vão enviar para a
mãe, ou tio, ou avó. Um garoto negro, muito brincalhão mas que
não é tão bagunceiro, pinta um coelho e dá para a professora. Ela
agradeceu quase que maquinal mente. Dois garotos, um branco e
outro mestiço, começam a dar socos um no outro. A professora
Marta grita, separa os dois, depois exi ge que eles se abracem e
apertem as mãos. O garoto branco não aceita de j eito nenhum. Ela
quase que o obri ga a fazer este gesto. Logo depois, um aluno diz
que al guém soltou um pum. Outro exclama: “caraca!”, e outr o:
“alguém peidou!”. A professora chama a atenção: “isto não é
maneira de falar !”.
147
Neste caso, o próprio mecanismo que a escola criou para contornar
o confinamento direto em sala de aula serve de cumplicidade para
os/as estudantes. Há momentos que o/a professor/a permite o
distensionamento.
Contudo existem problemas cotidianos nas relações entre
professor/a e aluno/a, como mostra a professora de Artes Plásticas:
“a [in]disciplina dos alunos que acaba estressando muito e você não
tem muita autonomia de fazer nada com o aluno, você não pode
tomar atitude que você gostaria de tomar”. Num Conselho de Classe
(COC) esta professora teve uma crise de choro durante a discussão
sobre avaliação quando, juntamente com outras colegas, defendiam
uma avaliação dura para combater a indisciplina. Na sala dos
professores, uma professora negra, cerca de 50 anos, comenta com o
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professor de Português, branco, pouco mais de 60 anos, que na 5ª
série tem uns 5 bons alunos, que são atrapalhados pelos três
bangunceiros, desabafando: “tem hora que a gente tem de segurar a
mão, porque a gente não pode fazer isso”. Situações como estas
ocorrem também na Educação Infantil:
Dia 22 de março de 2004
Na sala dos professores Ol ga chega par a pegar água e me
cumpri menta. Eu per gunto com vão as coisas. Ela começa a falar.
Sua tur ma do Ciclo pela manhã está óti ma, mas a “tur ma de EI da
tarde é terrível! Nunca vi al go assi m em seus 26 anos de
magistério!” A tur ma está demais: “como pode uma criança de 5
anos falar palavrão, desrespeitar a professora?!”. Falou com a mãe
e ela disse não saber o que fazer. “Cada vez mais vej o que falta
família. As crianças têm pais, mas não têm família!”. Conta que
“as crianças só querem saber de roupinha da moda, sapatinho da
moda”. Para ela, são os valores que as crianças hoj e em dia não
têm. E conclui: “se com 5 anos está assi m, j á pensou daqui a 10
anos?!”
O espanto e indignação da professora Olga tem apoio de
várias/os colegas, mas não de todas. Contudo o diagnóstico de que
“falta família” nos casos de crianças mais levadas tem a aceitação
de todas/os. A coordenadora Aída, buscando entender melhor a
situação dos/as estudantes que estão na turma do último ano do
Ciclo que apresenta problemas de desenvolvimento (cerca de nove
148
alunos ainda não sabem ler, por exemplo), fez uma anamnese com
oito responsáveis, chegando à conclusão que o fator econômico
interfere bastante nestes casos. Ela me forneceu suas anotações.
Consistia em dados como: nome, data do nascimento, nome dos
pais, se os pais trabalham, grau de instrução dos pais, onde a
criança estudou na EI, Ciclo e progressão, aspectos de saúde (se faz
algum tratamento, se toma alguma medicação, exame de vista,
observação extra), aspectos familiares (se mora com os pais, quem
toma conta da criança, número de irmãos) e aspectos sociais, que na
verdade
são
relacionamento
de
com
sociabilidade
amigos,
relação
(relacionamento
com
a
escola,
familiar,
tipo
de
comportamento: apático ou agressivo). Os dados colhidos são os
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seguintes:
o
o
o
o
o
o
o
o
o
quanto ao emprego do pai: 3 sem infor mação, 1 biscate, 1
desempregado, 1 pedreiro, 1 serralheiro, 1 representante
comercial;
quanto ao emprego da mãe: 2 não trabalham fora, 2 diaristas, 1
faxineira, 1 de ser viço público;
grau de instrução do pai: 4 sem infor mação, 2 com 2° grau, 1
com pri mário;
grau de instrução da mãe: 3 sem infor mação, 2 com pri mário, 1
com 2° ano do pri mário, 1 com 3° ano do pri mário, 1 sem
instrução;
escola anterior (ciclo): Escola Azul (5) , outr as (3);
saúde (problema ou tr atamento): bronquite (2), fonoaudiólogo
(2), neurológico (2), nenhum (2);
com quem mora: com pai e mãe (5), só com a mãe (1), com a
avó (1), com a madrinha (1)
agressi vidade: 6, sendo que 2 deles são com a ir mã e um só
com a mãe, 2 sem agressividade;
relação com a escola: atualmente gosta (7), 1 sem resposta.
Aída explicou ainda que algumas informações sobre emprego na
verdade eram informações de profissão, não significando emprego
de fato daquele/a responsável. Situações como esta atingem as
crianças, como fala Isabel, professora da sala de leitura:
Porque a mãe e o pai trabalham e ela toma conta dos ir mãos
menores. Quer di zer, fica com uma responsabilidade de adulto
para uma criança de 12 anos. Isto vai interferir aqui. O outro, da
Progressão, fica sozinho em casa, porque a mãe trabalha, não tem
pai, não sei se é falecido ou ausente, mas ele fica com a mãe. A
149
mãe trabalha, ele fica trancado dentro de casa. A mãe deixa a
comida dele num pratinho com comi da para ele pegar .
É uma escola pública de subúrbio e, como tal, enfrenta os
estereótipos. Como diz Olavo, pai de aluna, “a escola pública é de
boa
qualidade,
[mas]
está
um
pouco
discriminada,
bastante
discriminada”, o que atinge também os/as estudantes. No entanto, a
Escola Azul tem uma reputação muito positiva tanto na população
da região quanto nos meios oficiais (ver tópico sobre “avaliação
institucional”). Da mesma forma é vista pelas/os estudantes,
professoras/es e diretoras. E os estudantes têm, necessariamente, um
papel destacado na produção destas avaliações. Na fala das/os
professoras/es e da direção não está presente a categorização
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polarizada dos/as estudantes como bons/oas ou maus/ás alunos/as,
ainda que admitam existir os “levados” e “encrenqueiros”. Ao lado
de queixas em relação aos/as estudantes, o reconhecimento de que
os/as alunos/as são ótimos. Deste modo, era de se esperar, se não
um consenso, pelo menos uma imagem positiva de suas/eus
professoras/es e diretoras quanto aos seus/uas estudantes. De fato,
esta imagem se confirma, principalmente comparando com outras
escolas, como podemos perceber pelos depoimentos:
Eu acho os alunos da escola ótimos, sabia, até comparando, por
ser profissional da educação em outros locais. Eu acho que eu
tenho alunos levados, tenho alunos encrenqueiros, alunos chatos ,
ah!, isso tudo. Mas eu acho que o aluno da Escola Azul, ele
começa a criar uma cultura realmente de participação, de querer,
de estar envol vido. (Aída, coordenadora)
Ah, eu acho que eles são especiais! Ah, são si m! Não sei (ri), eu
me identifico muito com eles (emocionada) porque, eu não sei se é
porque eles estão restritos ao bairro de Oswaldo Cruz. Eles vêem
o mundo de maneira muito pequena e aqui na Escola Azul a gente
tem a oportunidade de ampliar esse conheci mento. (Adriana,
professora de História e coordenadora do Núcleo de Adolescentes,
também professora do Estado)
A maioria é fácil de l idar, tem uns ou outr os rebeldezinhos, mas
na maior parte eles s ão educados, eles ouvem a gente quando a
gente chama atenção ou dá um conselho. (Carla, merendeira)
150
Olha, eu trabalho há muito tempo só aqui, porque eu tenho duas
matrículas. Antes de eu trabalhar só aqui eu trabalhava em outra
escola aqui do bairro. Então a minha vi vênci a é muito aqui e pelo
o que eu escuto aí de fora, outras escolas, outras CREs, a nossa
clientela, apesar de agitada, ainda é uma das melhores clientel a
que nós temos no nível do município do Rio de Janeiro, em
relação à violência, que eu estou falando. (Anita, professora da
última fase do Ciclo de For mação)
Agir como um ator, tomar atitudes e desenvolver as tarefas tal
como se espera deles/as, são estratégias do ofício de aluno
(Perrenoud, 1995), fazem parte da vida escolar dos/as alunos/as.
Peter McLaren (1991) chama de estado de estudante, aquela atitude
compenetrada e concentrada nas tarefas escolares. De qualquer
forma, as atitudes dos/as estudantes têm relação com as práticas
“verdadeiramente escolares”, tradicionais ou inovadoras (Perrenoud,
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1995). Trata-se da relação entre viver e aprender a viver na escola
onde, na perspectiva dos adultos a escola não é um lugar onde se
vive, mas um lugar onde se aprende a viver, onde se aprende a agir
(Perrenoud, 1995). Na Escola Azul tal concepção está presente:
Buscaremos uma prática pedagógica baseada na construção e
reconstrução do saber, enfatizando a estr uturação das áreas do
conheci mento para r esponder ao conj unto de competências,
habilidades e conheci mentos requeridos ao novo aluno e que o
contextualizem como produtor de conhecimento, do mundo
produtivo, for mando o cidadão competente, criativo, solidário,
autônomo e capaz de solucionar problemas (PPP “Transfor mação
II”, p.1-2)
Os/as estudantes gostam da sua escola. Se Alice, 8ª série, que
havia chegado há um ano, apaixonou-se pela escola, a aluna Áurea,
branca,
da
8ª
série,
representante
de
turma
e
delegada
na
Conferência Nacional sobre Meio Ambiente (out/2003), sente-se
muito bem na Escola Azul:
Apesar de estar aqui há 11 anos eu acho bem legal, por isso que eu
estou aqui. Conheço todos os professores, alguns j á foram até
professores da minha mãe. Tenho inti midade com os professores, é
como se eles fossem meus colegas, meus ir mãos, até com a própria
diretora.
Os/as alunos/as a partir de certa idade vivem os momentos
próprios de busca, onde a questão da afetividade, dos namoros,
151
começam a aparecer. Na Escola Azul não é diferente e daí podem
surgir conflitos, como podemos ver pelo diário de campo.
Dia 17 de março de 2004
Uma aluna branca sentada ao meu lado vê passar uma professora e
chama: “tia Fulana, ti a Fulana!”. Eu per gunto a série em que ela
está e ela me di z que está na 8ª série. Esta aluna, que me disse ter
14 anos, conversa com outra de 9 anos, também branca, tem um
vocabulário de uma garota de 8ª série. A conversa é sobre
namorados, ami gos, s obre como os pais vêem estas questões. A
mais nova di z que os meninos se afastam dela quando ela vem
para a escola acompanhada do pai, mas quando vem com a mãe
eles não tem este comportamento. Ela fala s obre tamanho e idade
para fazer as coisas, que o pai não concorda que quem é pequeno
possa namorar. Ela conversa muito.
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Dia 9 de junho de 2004
A estudante Alice conversa em particular com professora Antonia
que em seguida vai conversar com a diretora Ana. Fico sabendo o
teor da conversa com Alice. Esta e outras meninas da turma,
estavam temerosas porque uma colega de t ur ma, Nilza 26, branca
(aquela que tinha matado aula para ir ao shopping e estava sendo
interrogada pela diretora e a mãe, quando houve enor me bateboca. Ver dia 07/04/04), estava ameaçando “pegá-las de porrada”.
O moti vo seria que Alice e outras meninas haviam contado na
direção que a Nil za, ontem, tinha matado aula e estava de namoro
com um rapaz fora da escola. Ana pede par a a professora Antoni a
chamar Nil za para vi r conversar com ela. Minutos depois Nil za
desce. Ana cobra a história dela estar ameaçando as colegas se, na
verdade, quem havia contado o seu namoro f oi a ir mã mais velha.
Ana disse-me que quem contou a história foram real mente algumas
colegas, mas a diretora estava tentando des montar as razões de
Nilza para bri gar com as colegas. Nilza disse que era mentira o
seu namoro e quem contou estava com medo por causa disso. A
diretora adj unta Arlinda entra na conversa e diz que “não i mporta
quem contou, mas que o fato realmente ocorreu”. Ana procura
enfatizar que não foram as colegas, mas que alguém, que mora nos
prédios dos conj untos, ligou falando que tinha uma aluna no
horário de aula namorando na pracinha, acrescentando que isto
sempre acontece, “s empre al guém li ga i nfor mando de al gum
problema”. Cita exemplo de um aluno no super mercado, pedindo
para as pessoas pagar em al guma coisa para ele ou aluno roubando
biscoito no mercado em Madureira, que “sempre al guém vê e li ga
para a escola”. Ana t enta sensibilizar Nil za, de que ela “tem que
dar alegria à sua mãe”. A menina s obe para a sala sem que s e
possa ter certeza de como vai comportar.
26
A a l u n a Ni lz a ti n ha d o is ir mão s g ê meo s d e 1 1 a no s d e id a d e na e sc o l a. No
f i nal d e 2 0 0 3 , u m o u tr o ir mão ma is ve l ho , p o l i cia l, ma to u u m d o s gê m e o s p o r
c a us a d e u ma d e sa v e nç a e f o i p r e so . O o u tr o g ê meo c o nt i n ua a e st ud a r na
esco la e q ua ndo br i ga c o m um col e ga a mea ça fa lar par a se u ir mão mai s ve l ho.
152
Vigilância e informação, são as duas formas com que a escola
tem tentado interferir nos processos próprios da adolescência, como
a questão da educação sexual. As atividades do NAM procuram dar
conta, juntamente com as aulas de ciência (Altmann, 2005), de
proporcionar maior acesso à informação. Mas mesmo assim não
evita – até porque a escola não pode tudo – casos como a gravidez
precoce, como vi no turno da tarde, uma aluna trazer o seu bebê
para a escola.
A imagem positiva a respeito dos/as estudantes da Escola
Azul, em que pesem seus desvios e transgressões, é efetiva porque,
segundo a professora de Educação Física Eneida, se “conseguiu
criar uma cultura diferente aqui na escola. Uma cultura do interesse,
em primeiro lugar, porque você para participar de um projeto você
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tem que ter uma motivação, um interesse”.
4.1.3.6
As/os responsáveis 27
“ n i n g ué m b at e na mi n h a f il h a !”
No
discurso
da
direção
as/os
responsáveis
têm
grande
importância. Elas/es são a ligação com a comunidade mais ampla do
bairro
e
sua
base
de
apoio.
A
escola
tem
buscado
maior
aproximação com as/os responsáveis, realizando várias reuniões
com elas/es sobre os/as estudantes, realizando exposição na escola
(2004)
ou
o
brunch
(2003).
Segundo
os
representantes
dos
moradores no Conselho Escola Comunidade (CEC), eleitos em 2004,
a escola procura constantemente esta aproximação, sendo o próprio
CEC a materialização desta política. Porém, como não existiu um
processo de participação efetiva das/os responsáveis na eleição, na
prática esta aproximação não é muito intensa e diversificada.
27
O ter mo r e sp o n sá v e l é da cu ltu ra e sco la r/c u ltu ra d a es co la d o s t e mp o s
at ua is , le va ndo e m co nt a a re al idade d e mu i ta s fa mí lia s e m q ue as cri a nças s ão
criad as /c u idada s por p es soa s e não nec es sar ia me nte u ma fa mí li a nuc lea r
trad i cio n al, s i g ni f ic a nd o aq ue la o u aq ue le q u e é re sp o ns á ve l p e la c r ia nç a,
p o d e nd o s e r mã e , p a i, a vó , a vô , tia, t io , t u to r /a e tc .
153
Olavo 28, pai de duas alunas e representante no CEC está presente
todos os dias na escola, mesmo antes de ser eleito, às vezes ficando
o dia inteiro. Em 2004 também foi escolhido para compor o
Conselho Municipal de Educação como membro da sociedade civil,
o que certamente contou com a articulação que a diretora da Escola
Azul tinha na sua Coordenadoria Regional de Educação (CRE).
Marisa, mãe de aluno, suplente no CEC, está presente na escola
todo dia. Ela já trabalhou na limpeza da escola, quando este serviço
era terceirizado, juntamente com outras mães de alunos. Como a
empresa contratada não estava pagando as funcionárias, o contrato
foi encerrado e a Comlurb passou a fazer o trabalho. Embora o
serviço atual seja bem feito, “foi uma perda para a escola porque as
mães cuidavam e se preocupavam com a escola, não se restringindo
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ao contrato de trabalho”, diz Ilma, que cuida da merenda.
Dia 23 de março de 2004
Eram 7:20h. A maioria significativa das/ os responsáveis que
trazem as crianças é negra e mulher. São poucos os homens.
Elas/es ficam esperando bater o sinal e ver as crianças subirem
para as salas. As mulheres, com roupa que se usa em casa na faina
dos trabalhos domésticos, conversam em pequenos grupos. Uma
parte vai embora tão logo seus/uas filhos/as entrem para o pátio,
parecendo reconhecer nele um território de responsabilidade da
escola e, seguras diss o, i mediatamente pudessem voltar se dedicar
aos afazeres do dia a dia. A maior parte fi ca esperando, parada,
segurando pelas mãos a criança que vai entrar, até bater o sinal,
que é o momento da separação. Aí se desenvol ve um ritual de
despedida, com o carinho das mãos nos rostos, abraço apertado,
beij os carinhosos e um invariável “vai com Deus, meu/ mi nha
filho/a”. Percebe-se um olhar de admiração e orgulho pelas suas
crianças uniformi zadas na escola. Neste dia, ao bater o sinal um
garoto aparentando s ete anos, saiu do al voroço do pátio para
procurar a mãe para se despedir: dar e ganhar um abraço e um
beij o antes de subir para sua sala. O sinal de entrada é o marco da
separação das crianças com tudo que fica do outro lado do muro
da escola, é a entrada cotidiana do mundo da escola.
Nas reuniões com responsáveis, apesar do clima tranqüilo que
presenciei, a própria direção se queixa da ausência da maior parte
28
Ola vo te m 4 4 a no s, é 3 º
trei na me nto, co nto u) , t e m
me s trado. Fo i fr ad e me no r
traba l ho u co m proj eto s de
de j o ve ns e a d u lto s.
sar g e nto r e fo r ma d o d a p o lí cia mi l it ar ( fe r i u - se e m
lic e nc iat ura e m ma t e mát ica , uma e spec ial iz ação e
cap uc hi nho e at ual me n te é da I grej a B a ti s ta, o nde
al fabe tiz ação no co mp le xo da Ma ré e e m e d uc ação
154
das responsáveis na escola, com um comparecimento máximo de
40%. Aída diz que há cinco anos atrás havia maior presença dos
responsáveis na escola. As reclamações são poucas: a merenda, que
não estava atendendo a todos, e o uniforme, que algumas pessoas
achavam que cada estudante receberia duas camisas ao invés de
uma. Em janeiro de 2004 houve um problema maior no período de
matrícula. Uma mãe foi ao juiz para garantir a vaga de seu filho e
conseguiu. O fato saiu no jornal, causando grande alvoroço, com
insultos pessoais à diretora da escola. Segundo as explicações de
Ana, a Escola Azul não tinha vaga e o aluno estava matriculado
numa outra escola do bairro, mas a mãe do aluno queria que ele
estudasse na Escola Azul.
O cotidiano escolar sempre traz alguns conflitos, pois lida-se
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com
a
curiosidade,
a
energia
e
afirmações
de
crianças
e
adolescentes que estão instados a assumir uma disciplina escolar.
Os conflitos, às vezes, são intensos e difíceis de se lidar, suscitando
fortes níveis emocionais em educadores/as
e responsáveis. Um
exemplo disto foi o caso de um grupo de alunas e alunos estavam
matando aula e foi descoberto por uma das mães, que levou a filha à
escola, junto com a colega, ambas de uniforme. A diretora chamou
vários pais e mães e iniciou-se um interrogatório das alunas na
secretaria por quase meia hora, com os pais se sentindo expostos,
até que a situação se agravou. As meninas, chorando em função da
pressão, não queriam revelar o nome dos/as outros/as colegas
porque se diziam ameaçadas por outra colega. Diante disto, a mãe
de uma aluna afirmou categoricamente: “ninguém bate em minha
filha!”,
contestada
pela
diretora
que
disse
que
isto
jamais
aconteceria na escola.
7 de abril de 2004
A diretora, com tom de voz usual mente alt o, principal mente em
questões problemáticas, falava do erro das alunas e este aspecto
era sempre repetido nas argumentações e análises de todo mundo.
Até que voltou a discussão sobre a ameaça da Sílvia bater em
Nilza e na outra colega, porque elas tinham entregado quem estava
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155
matando aula. Aí o clima esquentou porque a diretora Ana
começou a falar mai s alto ainda “que ninguém vai bater em
ninguém, que isto nunca aconteceu na escola”. A mãe de Nilza se
sentiu criticada e começou a falar muito alto também e dizer que a
diretora não tomou a providência quando disseram que Nil za
estava namorando um indi víduo mal visto, no portão da escola.
Ana replicou gritando que não soube disso e que “cuidava das
coisas dentro da escol a”. A mãe de Nil za di zendo ao mesmo tempo
e também alto, que não iam ameaçar a filha dela porque ela ia
bater em quem tocass e em sua filha. A dir etora, gritando, exi ge
que ela não fale alto na secretaria. A mãe rebate falando para a
diretora falar baixo. A diretora di z que está no seu local de
trabalho e que “está parada com seu trabalho um tempão por caus a
das alunas que matar am aula”. A mãe pega a filha pela mão e
praticamente sai arrastando a menina par a fora da secretaria,
enquanto continua a repetir as ameaças par a quem bater em sua
filha. A diretora gritando di z que não admi te ameaças a ninguém
da escola e continua falando alto, irada, por mais uns cinco
mi nutos, após a saída da mãe e da aluna. Três mães que assistiram
ao bate-boca, convers am com a diretora depois e dizem que ela
tem razão e se colocam à disposição para vir à escola toda vez que
a diretora chamar. Depois que todas a mães vão embora, a
coordenadora pedagógica diz: “é i mpressionante o discurso das
mães, sempre a culpa é da escola, da colega da filha, nunca delas
próprias!”. Mas todos ficaram bem tensos durante toda a discussão
e a i mpressão era de que não se sabia qual o rumo que o bate-boca
podia tomar.
Tais problemas podem acontecer em qualquer escola, mas
demonstram os limites das relações pessoais na resolução de
conflitos. O grêmio e o CEC poderiam atuar no encaminhamento
desta questão mas não é colocado para eles este papel. Como neste
exemplo, muitos/as responsáveis se envolvem com os problemas
dos/as seus/uas filhos/as e a dinâmica da escola, mas sempre
poderão ocorrer situações limites.
Dia 1º de junho de 2004
Reunião das/os responsáveis pelos/as alunos/as das duas turmas de
6ª série, em que 90% delas/es são mulheres e negras. Estão
presentes alguns alunos e até o final chegam mais al guns, todos
meninos. A coordenadora Aída fala com os pais para não se
confor marem com o conceito R (Regular) nas disciplinas, se por
acaso seus filhos ficarem com este conceito. “Ninguém vai querer
um filho regular capenga” pois, explica ela, na hora do emprego,
não vão contratar os regulares, mas os muito bons, os excelentes.
Depois fala das bri gas que têm acontecido na escola e fora da
escola que, “principal mente das meninas”, t êm sempre um garoto
envol vido, ou sej a, estão relacionadas a paqueras, namoros. Após
a distribuição de bol etins, que as/os responsáveis assinam que
tomaram conheci mento e termina a reunião. Um grupo de
responsáveis fica ao redor da coordenador a para conversar. Um
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156
pai, cuj o filho só teve I, chama o filho e começa a conversar com
ele, cobrando a situação dando-lhe uma br onca. Cerca de cinco
mães conversam com os filhos, cobrando-lhes outra atitude na
escola: “por que você fica fazendo bagunça ao invés de estudar,
fulano!”, di zia uma delas. Uma senhora negra, gorda e forte, que
teve conheci mento da situação rui m do filho na escola, bate várias
vezes com a mão fechada no filho, que chega a fazer um barulho
surdo, enquanto cobra dele sua atuação na escola, “eu não disse
para você parar de fazer bagunça, de andar com aqueles
meninos !”, que além de notas ruins tem se metido em bagunça e
brigas. Fiquei preocupado com a possibilidade dela machucá-l o.
Cerca de 20 pessoas, entre adultos e algumas crianças assistem a
uma verdadeira sova que o garoto está levando. Ninguém se mete
e a coordenadora, preocupada com a cena, tenta chamar a atenção
da mãe, para que ela pare de bater. Com o barulho, vários/as
alunos/as chegam na porta do auditório para ver o colega apanhar.
O garoto que apanha, é negro e forte, apar entando uns 13 anos,
apanha calado. Ao fi nal, ficam três mães. Uma delas, branca,
reclama que a filha está sofrendo com as brincadeiras de mau
gosto na escola e cobra atitudes da escol a, como punição para
os/as alunos/as que o fazem, porque a escola hoj e em dia “é muito
boazinha”. Aída explica que a escola não pode punir como
“antigamente de fazia”.
As cobranças das/os responsáveis quanto as maneiras da
escola coibir as atitudes violentas ou agressivas dos/as alunos/as se
devem ao fato da impressão que se tem do aumento dessas atitudes
nos últimos anos (Lopes Neto e Saavedra, 2003). De fato há uma
preocupação de pais e educadores/as sobre esta questão, chamada na
literatura pelo termo inglês bullying, que podemos traduzir como
intimidação ou violência contra alguém.
Para Lopes
Neto
e
Saavedra (2003, p.17),
Bullying compreende todas as atitudes agressivas, intencionais e
repetidas, que ocorrem sem moti vação evi dente, adotadas por um
ou mais estudantes contra outro(s), causando dor ou angústia, e
executadas dentro de uma relação desi gual de poder, tornando
possível a inti midação da víti ma.
Tal problemática tem sido verificada em todas as escolas
(Lopes Neto e Saavedra, 2003), independente das características
sociais, culturais e econômicas dos/as estudantes. Isto será apontado
na pesquisa institucional da Escola Azul, conforme abordo no
tópico sobre o funcionamento da escola (3.3.6).
157
4.1.4
Aulas de Educação Física
“ A ma io r p a r te d o s a l u n o s te m u m i n ter e s se ú n i c o : c h u ta r u ma b o la ( r i) ,
j o gar f u teb o l . Q u a lq ue r o u tr a c o i sa q u e ve n ha to mar e s se te mp o d e les
vi r a u ma g ue r r a. ”
As aulas de Educação Física têm, também, uma relação com o
corpo, que não passa somente pelo esporte (Gariglio, 2004). Para
esta pesquisa esta relação reveste-se de especial importância devido
à investigação sobre as relações entre cultura escolar/cultura da
escola e a cultura do samba. Para esta última, a relação com o corpo
é especialmente significativa, ainda que não se resuma a ela.
As aulas se revezam entre o pátio e a quadra. Para os/as
alunos/as do primeiro segmento são sempre no pátio, abrigados do
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sol e da chuva. Para o segundo segmento é quase sempre na quadra,
exceto quando se trata de alongamento ou conversa com os/as
estudantes. São quatro os/as professores/as desta disciplina.
O professor Sobrinho trabalha com os dois segmentos. Não
tem preferência por qualquer um deles: “estou preparado para tudo”,
disse-me. Também dá aulas em outros colégios, o que às vezes o faz
sair direto da aula para outra escola.
Dia 17 de novembro de 2003
O professor Sobrinho estava com uma tur ma do pri meiro ano do
ciclo realizando um j ogo em que a tur ma era di vidida em 2 grupos,
ficando os/as estudant es sentados no chão, f or mando duas filas. O
j ogo consistia em j ogar a bola dentro de dois pneus de carro de
passeio deitados e empilhados no chão, for mando uma espécie de
“cesto”. Os pontos er am obtidos por cada j ogador/a que acertasse
no “cesto”, tendo cada um direito a 5 tentativas, após o que
voltavam para o fi m da fila. As crianças torciam, faziam
algazarra, rolavam no chão e, de vez em quando o professor
chamava atenção ou parava o j ogo.
Para o segundo segmento, na quadra, as atividades resumemse em futebol para os meninos e queimada para as meninas, vez por
outra mudando para handebol ou vôlei. Não assisti à nenhuma
integração entre garotos e garotas. Suas aulas não se diferem uma
das outras, regra geral repetindo as mesmas atividades. Durante três
meses seguidos, por exemplo, ele passou vídeos para turmas do
primeiro segmento, o que lhe valeu críticas numa reunião do Centro
158
de Estudos que assisti, por não variar as estratégias pedagógicas,
gerando reclamações dos/as estudantes. Aborrecido, ele justificou
que estava discutindo sobre a importância e o valor da amizade e
que as turmas gostavam. Mas as professoras tinham apresentado
críticas feitas pelos/as estudantes e não sugeriram estratégias
pedagógicas.
A atitude de cantar e dançar foi muito pouco observada por
mim na escola pois existem poucos tempos livres. Estes ocorrem
somente quando falta algum professor, situação pouco comum,
quando a escola geralmente faz uma cobertura ou manda os/as
estudantes para casa. Nos tempos livres, ou então nas aulas de
Educação Física, enquanto esperam os/as colegas do outro sexo
terminar a atividade da aula, os/as alunos/as aproveitam fazendo
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brincadeiras, correndo, pulando, empurrando um ao outro ou
conversando.
Dia 09 de junho de 2004
Na aula do professor Sobrinho os meninos j ogavam futebol e as
meninas esperavam s ua vez conversando. Enquanto obser vava,
uma das alunas vem em minha direção dançando e cantando funk,
numa certa provocação amistosa. Perto do muro uma garota negr a
está com um celular à mão e parece estar olhando a agenda. Outras
três meninas negras es tão cantando uma letra de funk e param para
olhar o que a colega está vendo no celular.
Outros/as
professores/as
procuram
fazer
atividades
mais
diversificadas e integrando toda a turma.
Dia 9 de março de 2004
No pátio, outra tur ma das pri meiras séries tinha aula de Educação
Física com a profes sora Lalá. Ela or ganiza a brincadeira do
“maestro”, que as crianças adoram. Faz uma roda, tira um aluno
que vai para fora do pátio para não ver a escolha do “maestro”.
Este tem a função de dirigir toda a turma, sentada em círculo,
orientando disfarçadamente movi mentos como bater pal ma, pés,
mexer a cabeça, olhos, nariz etc., e o aluno que ficou de fora,
posicionado no meio do círculo, tem de adivinhar quem é o
maestro. Assi m o maestro vai dirigindo a turma, até ser
descoberto. A vibração e participação é intensa.
Dia 10 de março de 2004
No pátio, a professora Eneida dava sua aula para a primeira série
do Ciclo. Depois de falar sobre equilíbrio, fazer exercícios,
159
propõe uma brincadeira: primeiro fazer uma roda, dando dez
segundos para as crianças, que na confusão, só conseguem for mar
na segunda tentati va. Depois per gunta se el es conhecem desenho
ani mado, que todos dizem si m aos gritos. Pergunta de conhecem
Tom e J erry, es merando-se na pronúncia em inglês, e todos gritam
sim! Então pr opõe que um aluno fique dentro da roda, sendo o
ratinho J erry, e o outr o fique de fora, sendo o gato Tom. Assi m o
Tom vai tentar entrar dentro da roda, que é a toca, para pegar o
Jerry e este, se Tom conseguir entrar na roda, terá que sair dela.
As crianças que fazem a roda de mãos dadas, devem tentar i mpedir
a entrada de Tom unindo seus corpos uns aos outros para fechar o
buraco da toca. As crianças adoram a bri ncadeira e fazem uma
tremenda al gazarra, gr itando muito e o tempo todo.
Procurando trabalhar dentro da orientação do PPP “Só o
sonhador constrói o futuro”, em que os professores devem tomar
alguma personalidade de destaque para desenvolver os conteúdos,
Eneida conta que trabalhou com John Lennon em 2002 e Vila Lobos
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em 2003. Não ficou claro como ela fez isto, até porque começou a
falar como está tentando trabalhar naquele ano de 2004:
Ulti mamente a gente está realizando um trabalho de expressão
corporal utilizando fábulas de Esopo. Por que fábulas de Esopo?
Porque Esopo era um, como conta a história (ri), era um escravo
grego muito inteligent e que acabou ganhando a sua liberdade por
ter essa característica da conversa, da retórica. Ele conseguiu
livrar o amo dele de uma situação muito difícil, e ganhou a
liberdade. Depois ganhou fama como fabulista, criando várias
fábulas. Esse ano eu estou com o meu proj eto, específico da
educação física, que é oriundo do grande proj eto da escola que é
“Escola Azul em Movimento”: “movi mento para a Grécia”. Então
a gente está se movi mentando de Oswaldo Cruz rumo à Grécia,
conhecendo a cultura e tudo aquilo que a gente possa tomar de
valores para nosso próprio crescimento. Nós estamos fazendo essa
viagem para a Grécia, também moti vado pelas oli mpíadas que
também esse ano é na Grécia, e até o final do ano muita coisa a
gente vai se envolver a respeito de Grécia, olimpíada, que também
está dentro da disciplina de Educação Física. A gente está fazendo
esse trabalho de educação corporal utilizando as fábulas de Esopo.
Eneida diz que sua “relação com os alunos é um pouco
conflituosa” em função de sua proposta de aula, onde está presente
a preocupação com o bullying, e acaba se chocando com “os
interesses do aluno dentro da aula de educação física”. Segundo ela,
“a maior parte dos alunos tem um interesse único: chutar uma bola
(ri), jogar futebol”. Qualquer coisa que contrarie isto “vira uma
160
guerra”. O que ocorre é que a aula de Educação Física está ligada às
atividades esportivas e quando isto não acontece os/as alunos/as
protestam. Gariglio (2004), apresenta vários exemplos através de
seus entrevistados – professores/as de Educação Física do CEFETOP no Estado de Minas Gerais – nos quais eles atestam a
naturalização da relação da disciplina com o esporte pelos/as
alunos/as, resistindo a outros conteúdos.
Gariglio (2004, p.168) mostra como “os ambientes para a EF
[Educação Física] são organizados em função das regras e dos
princípios oriundos do âmbito esportivo”. Mais do que isto, assumese códigos próprios da instituição esportiva que o autor resume em:
“princípios
de
rendimentos
comparação
de
rendimentos,
atlético-desportivo,
regulamentação
rígida
competição,
e
formal,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0114347/CA
racionalização de meios e técnicas” (p.169, grifos meus). Na Escola
Azul, embora a escola tenha sala de aula própria para música e
dança e o Núcleo de Adolescentes ensaiar street dance no pátio, não
há, por parte da disciplina de Educação Física, nenhuma atividade
que contemple este tipo de trabalho com o corpo, como capoeira,
samba, funk, hip hop, jongo etc.
4.1.5
Aula da última fase do Ciclo de Formação 29
Esta turma teve problemas no primeiro ano do Ciclo 30 de
Formação. Aída relatou que os/as estudantes tinham problemas de
disciplina e de relações familiares, mas a professora também tinha
29
Na r e d e mu n ic ip a l d o mu ni c íp io d o Rio d e J a n e ir o , o e n si no f u nd a me n ta l
co mp o r ta : a Ed uc ação Infa nt il para al uno s /a s de 4 e 5 a no s; o p r i me iro
se g me n to , c o mp o sto p el o 1 º Cic lo d e Fo r ma ç ã o q ue é d e tr ê s a no s, e p e l as 3 ª e
4 ª s é r ie s ; e o se g u nd o s e g me n to , d a 5 ª a 8 ª sé r i e s. Co mp o r ta a i nd a a s Cl a ss e s
d e P r o gre s são . O s C icl o s d e Fo r ma ção te m 3 fa se s: i n ic ial, i n ter me d iári a e
f i nal , d e a c o r d o c o m a fa i xa e t á r i a ( 6 , 7 e 8 a no s) q u a nd o se p r e t e nd e q ue a
c r ia n ç a a ti nj a o le tr a me nto . C f. SM E P o r ta r ia nº 1 2 , d e 1 4 /1 2 /1 9 9 9 ) .
30
O Cic lo de For ma ção “é uma for ma d i fere nte de co nceb er o t e mp o e a
orga niz ação c urr ic ular, que s e fund a me n ta no s pri nc ípio s de re s p eito à s
si n g u la r id a d e s, a o s d i fe r e n te s r it mo s d e a p r e nd e r d e c a d a a l u no , e d o d ir e i to à
c o n ti n u id a d e d o p r o ce s so d e d e se n vo l vi me n t o d e to d o s o s a l u no s , se m
in ter r up ç õ e s, ne m r etr o c e s so s”, d e fi n iç ã o d o t ex to d a S M E /D GE , 1 º Ci c lo d e
F o r ma ç ã o, Do c u me nto P r e li mi n a r , fa sc íc ulo 1 , 2 0 0 0 , p . 4 , q ue s u b sid ia a
d is c us são na s e sc o la s, q ue me fo i p a s sa d o p ela c o o r d e n a d o r a p ed a gó gi c a .
161
problemas. Houve reclamações na CRE e no Conselho Tutelar e esta
professora não está mais na escola. No ano seguinte as professoras
não queriam pegar a turma, que passou por três professoras. Foi um
segundo ano “difícil”, segundo a coordenadora. “O rótulo de turma
problemática
foi
terrível
para
a
turma”,
explica
Aída,
mas
acrescenta que existem alunos/as com problemas psicomotores e
visuais, por exemplo. Ela montou uma série de estratégias para
apoio ao trabalho pedagógico, como teatro, aulas de arte-terapia,
técnicas agrícolas e informática.
A professora da turma, Anita, tem 47 anos, fez curso Normal
e Pedagogia com habilitação em Administração escolar, tem traços
mestiços, está na escola há 13 anos. Ela aceitou ser professora da
turma na fase final do Ciclo de Formação, que estava sendo
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rejeitada por outras professoras. Ela afirma, tapando a boca e
falando baixo para não ser ouvida pelos/as alunos/as, que as
crianças, no final de semana, vão para o morro. E acrescenta: “na
segunda-feira os desenhos deles são terríveis, com gente morta e
sangue escorrendo, gente com arma”. Na segunda-feira falta aluno/a
porque eles/as vão ao pagode com os pais no final de semana ou
foram para casas diferentes da que moram.
A coordenadora pedagógica diz que a turma tem três níveis
diferentes, o que colaboraria para evitar rótulos, embora não tenha
definido como seriam estes níveis 31. São 30 estudantes e no dia de
minha observação 27 alunos/as estavam presentes, sendo 17 meninos
e 10 meninas. Tendo presente os fenótipos, atribuí cor branca a 7
estudantes e negra a 20, dos quais 14 podem ser considerados
“mestiços”. Dentre as estratégias adotadas para a superação das
dificuldades
de
aprendizagem,
estão
a
sensibilização
das/os
responsáveis, e formas de arte-terapia com a professora de Educação
31
As si st i nd o a ul a d a t ur ma no fi n a l d e mar ço d e 2 0 0 4 , p ud e p e r c e b e r q ue a
p r o f e s so r a d i v id ia a t u r ma e m gr up o s e tr a b a lh a va o s c o n te úd o s d e fo r ma
d i fer e n c iad a c o m c a d a gr up o , d e mo d o q ue ha vi a , gr o s so mo d o , o “ ní ve l” d o s
ma i s ad ia ntado s, q u e j á do mi na va m mi ni ma me nte a l ei t ura e e s cri ta, um o utro
“ní ve l” i nt er med iár io, c o m a va n ços no c a mpo d a l eit ura e e scr it a, e um o utro
“n í ve l”, aq ue le s q ue t i n ha m p o uco d e se n vo l vi m en to , q u e a i nd a não sab ia m ler
ou es cre ver apó s ma i s d e doi s a no s na e sco la.
162
para o Lar (criação de objetos de enfeite) e com o professor de
Técnicas Agrícolas (murais e desenhos).
Ao assistir uma aula desta turma, vi várias vezes a professora
chamando atenção de algum/a aluno/a por uma simples conversa em
tom baixo de voz, mostrando uma preocupação em controlar todas
as atitudes de seus/uas alunos/as para evitar uma possível bagunça.
Ela
juntava
cerca
de
6
ou
7
carteiras,
passando
exercícios
diferenciados para os grupos, dependendo do “nível” que o grupo
estava. Por ex emplo, para uma parte da turma era passado um
ditado, outra um exercício do tipo “complete a frase com uma
palavra”. Chamou-me a atenção o fato de alguns exercícios estavam
ligados ao som da letra “m”, do tipo que completa a frase, assim
como ditado com palavras como bombom, tampa, bombeiro etc, mas
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em nenhum momento usou palavras como samba ou bamba, que são
comuns no universo do bairro de Oswaldo Cruz.
Apesar de extensa, uma transcrição de parte da observação de
uma
aula
é
ilustradora
para
uma
tentativa
de
entender
as
dificuldades da escola.
Dia 23/03/2004 – 3ª feira
A sala de aula é ampla e acomoda tranqüilamente umas 30
cadeiras. Tem um fichário de aço com 4 gavetas, um ar mário de
aço de 2 portas com um pequeno cartaz com desenho do mapa do
Brasil e o rosto de J esus dentro. Quase todo o lado da sala que dá
para a rua é tomado por um j anelão com basculantes, tela de aço
do lado de fora e cortinas cor de creme por dentro, com uma
bancada abaixo do janelão. Em ci ma da bancada tem al gumas
pilhas de livr os didát icos No lado oposto não tem j anela e na
parede estão pendurados, coloridos, todo o abecedário com letras
manuscritas maiúsculas e minúsculas. O quadro é branco e a sala
conta com um ventilador na parede, colocado aci ma do quadro. A
sala é bem iluminada. Anita procura manter a tur ma quieta e
sentada o tempo todo e por isto chama atenção o tempo todo, ao
menor movi mento ou conversa, mesmo que esta sej a baixa e sem
atrapalhar a turma. [...] Depois de uns dez mi nutos, volta a
professora, com um copinho descartável de café na mão e na outra
uns biscoitos, que come na frente da tur ma. Não lembrei de
verificar a hora, mas calculo que deviam ser em torno de 8:00h. A
professora recomeça a aula. A todo instante ela chama atenção de
algum/a aluno/a para ele/a ficar quieto, embora eu considerasse
que as falas dos/as alunos/as fossem baixas. Numa dessas vezes
em que chamou atenção, um aluno branco, disse para se defender
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0114347/CA
163
que o outro colega, negro, o havia chamado de “macaco”. A
professora faz uma breve repreensão ao aluno que chamou o
colega de “macaco” e continuou
a aula sem maior
problematização. Os/as alunos/as ficam dispersos/as, parecendo
que não fazem parte de um conj unto, de uma tur ma. Al guns ficam
no seu mundo, outros preocupados em mexer ou conversar baixo
com o colega. Mas a maioria está fazendo os exercícios. Depois
fala, referindo-se ao menino branco, Juca: “não é possí vel que el e
não escreva o nome dele. Este ano ele vai ter que pelo menos
escrever o nome del e!”. Vai até um gar oto negro, Roberto, e
pergunta o que está comendo. Depois fica acariciando a cabeça do
garoto enquanto cuida do grupo. O garoto recebe prazerosamente o
carinho, que dura uns mi nutos. Quando a professora se afasta e vai
pegar as coisas no ar mário, Roberto vai até ela para aj udá-la, sem
que a professora tivesse pedido. Toca o celular e a professora
atende e começa a conversar. J uca vai até ela para mostrar seu
nome. Ela elogia e pede para ele continuar a fazer o resto do
exercício. Continua a chamar atenção de alunos enquanto olha os
exercícios feitos: “Wilson, fica sentado!”, “Emerson, por favor!”,
“Roger, senta!”, “Volta, Roberto!”, “Senta, Cecília!”, e continua
vez por outra a fazer “chiiiu!”, pedindo si lêncio. Quem acabou
começa a colorir. Toca o celular e a professora atende. Anita pede
para eu ficar com a t ur ma um pouco enquanto vai à secretaria. À
medida que o tempo de ausência da professora vai passando, vai
aumentando o ní vel de agitação, de alunos levantando-se de suas
carteiras e fazendo br incadeiras uns com os outros. Um deles faz
batucada com o lápis em ci ma da mesa, tentando i mitar a batida de
um repenique de escola de samba. Apesar da bagunça instalada,
pelo menos a metade continua fazendo os exercícios. Foram 15
mi nutos de ausência. Elvira, a professora de Educação para o Lar
vem à sala pegar uma parte da tur ma. Quando a professora sai para
acompanhar os/as alunos/as ao banheiro e o lanche está liberado, é
o próprio recreio dentro da sala de aula. Os 10 alunos que
desceram estão di vidi dos entre o professor Orlando, de Técnicas
Agrícolas e Elvira, fi cando 5 com cada um, como um trabalho de
reforço. Enquanto a professora corrigia os exercícios eu vi o
garoto do repenique, que se chama Luis, olhando para mi m. No
seu pescoço havia mancha de tinta e lembrei da bronca que a
professora lhe havia dado minutos antes, f azendo menção à tint a
no seu corpo de uma maneira pej orativa. Ele, que tem a sua
carteira literalmente colada à mesa da professora, estava
debruçado na mesa dela, quieto, sem fazer qualquer bagunça. Ele
parece meio isolado da turma. É um garoto de cabelos bem crespos
e claros, de pele branca. Ele começa a catar farelos de biscoitos
no chão, uma suj eira feita por seus colegas e não por ele, para
j ogar no lixo. A professora, percebendo que não está na sua
carteira, começa a cobrar: “Luis, senta!”, “Luis, o que você está
fazendo?!”, mas desta vez não levanta a voz. Começam a chegar
os alunos que estavam com El vira e Orlando. Juca chega todo
carimbado no r osto, para o espanto da pr ofessora e o riso dos
colegas. El vira vem depois e di z que o Luis tinha sido mandado de
volta porque disse palavrões e ela o levou para a coordenadora
pedagógica. Chega outro aluno ainda mais carimbado do que Juca
e ainda outro. O restante chega e El vira e Orlando vão relatar à
Anita o que foi feito com eles. Orlando está otimista: “parece que
164
o processo está começando a apresentar resultado”, analisa ele.
Mas a turma volta a conversar e Anita volta a fazer “pssst!”,
“senta, por favor !”.
Anita tem um diagnóstico do aluno Luis: conta que ele tem
um tio que não faz nada de dia e trabalha à noite e de vez em
quando dá uns presentes caros para o menino. Esse tio freqüenta
pagode e às vezes o leva. A “mãe é sapatão”, “outro tio é
cabeleireiro gay, então, com uma família assim, um tio ladrão, a
mãe sapatão, o tio gay, sem pai, fica tudo na cabeça do menino”, diz
ela explicando porque o garoto tem problemas de aprendizagem.
Neste diagnóstico, segundo Patto (1994), o fracasso escolar não está
nunca na escola e sim nos/as alunos/as. Patto (1994, p.89-90)
mostra como este diagnóstico se apresentava no anos 1950 a partir
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de um artigo da RBEP 32:
(...) Os exemplos vi vos e flagrantes insi nuam-se na carne, no
sangue das crianças , ditando-lhes for mas amorais de reação,
comportamentos antis sociais (...) Crescendo e desenvol vendo-se
sob tal ação negati va, desinteressam-se do trabalho escolar, dãolhe pouco valor, não crêem em sua eficácia. Têm os heróis do
morro que, tocando violão, embriagando-se, dor mindo durante o
dia, em constante malandragem à noite, vivem uma vida sem
normas, sem direção: por vezes ostentam auréola maior – al gumas
entradas na detenção, um cri me de morte i mpune... ( grifos de
Patto)
Por outro lado, existem aqueles que sobrevivem ao processo.
Roberto, por exemplo, em uma observação em setembro de 2004, ao
ser chamado para ler um texto, lê muito bem. Anita fica orgulhosa e
o abraça forte. Fiquei impressionado porque este garoto, na primeira
vez que o vi, tinha enorme dificuldade de leitura. A professora disse
que cerca de dez crianças ainda estão com dificuldades e não
poderão seguir para a 3ª série. Conta que na reunião das/os
responsáveis foi muito emocionante, quando elas/es constataram o
avanço das crianças, dizendo que estavam acompanhando o processo
dos/as alunos/as.
32
E st a a f ir maç ão c o n st a d e u m a r ti go d a R e v i sta B r a s il e ir a d e E st ud o s
P e d a gó g ic o s ( RB E P ) d e 1 9 4 9 , A p u d Maria H ele na de So uza P AT TO, i n A
p ro d u ç ã o d o f ra c a s so e s c o la r, 1 9 9 4 , p . 8 9 - 9 0 .
165
4.1.6
O COC 33: mudanças na cultura escolar/cultura da escola?
A primeira reunião do Conselho de Classe (COC) que
participei foi muito tranqüila na avaliação da situação dos/as
alunos/as. Era o último COC do ano de 2003. A explicação da
diretora era de que não havia a necessidade de avaliar os/as
alunos/as no 4° COC, pois a situação deles/as já estava definida até
o 3° COC, ou seja, já se havia analisado três vezes antes, portanto
75% de sua trajetória no ano. De maneira que, caso o/a aluno/a
estivesse mal até o 3° COC, não seria no último que se poderia
modificar sua trajetória. Foram decididas as aprovações de quase
todos, com raríssimas exceções.
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A reunião serviu para serem discutidas muitas questões
vivenciadas durante o ano. A direção cobrou compromisso e
empenho das/os professoras/es mas, no entanto, não se dirigia a
todos/as, mas a alguns, não citados nominalmente. A direção deu
explicações sobre o problema da merenda, que durante todo o
período em que realizei as observações, não está funcionando,
informando
que
problemas
burocráticos de
licitação
na
CRE
estavam impedindo o fornecimento de merenda, mas que para o
próximo ano esta situação deveria estar superada.
O COC do final de abril de 2004 foi tenso. Houve uma
discussão grande e a professora Marisol ficou muito nervosa e teve
uma
crise
de
choro
na
discussão
sobre
avaliação.
As/os
professoras/es estavam em pé de guerra com a direção, porque
acharam e decidiram dar conceitos I (Insuficiente) para todos os/as
alunos/as que o merecessem e não se deixaram convencer pela
coordenadora pedagógica de que deveriam mudar sua avaliação. A
justificativa era de que a disciplina estava muito ruim e ninguém
33
O Ar t.3 4 , d a Re so l u ç ã o SME Nº 6 8 4 , d e 1 8 / 0 4 /2 0 0 0 , d iz o se g u i nt e : “ O
Co n se l ho d e Cl a ss e , e sp a ç o d e mo c r á ti co d e to mad a d e d e c i sõ e s a c e r c a d o
P r o j e to P o lí ti c o -P e d a gó gi co d a e sc o la, d o f a z e r p e d a gó g ic o n a sa la d e a ul a e
d o d e s e n vo l v i me nto d a a p r e nd iza g e m d o a l u no , ser á r e a l iz a d o c o n fo r me
c a le nd ár io e s c o lar o f ic ial ”, e stab el e c e nd o se u s o b j e ti vo s, a s si m c o mo o s
co mp o n e nt es .
166
estava agüentando os/as alunos/as, principalmente turmas como a
602. A coordenadora pedagógica levantava a necessidade das/os
professoras/es entenderem o projeto político-pedagógico da escola e
incorporarem uma visão que, segundo Perrenoud (1999) é a da
avaliação
normativa
tradicional.
Continuam
com
avaliações
tradicionais e não discutem estratégias para superar os problemas de
determinados/as alunos/as e turmas. Aída conversa sobre avaliação
e fala sobre o quanto ela luta para modificar a visão das/os
professoras/es. Embora sem mencionar, Aída propõe algo próximo
do que Perrenoud (1999) chama de avaliação formativa 34.
No COC de julho/2004, ao contrário do último, não houve a
mesma tensão. Chamou-me a atenção o fato de haver somente um
professor, sendo que a escola tem pelo menos cerca de cinco
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professores.
A coordenadora pedagógica lia os nomes dos/as alunos/as e citava
algumas disciplinas. Descobri que estas disciplinas eram aquelas
que os alunos estavam com conceito mais baixo (no município do
Rio não se usa nota; os conceitos atualmente usados são:
Insuficiente, Regular, Bom, Muito Bom e Ótimo). As professoras
ouviam e, se não tinham nenhuma modifi cação, mantinha-se o
conceito. Assi m, havia j á um mapa com os conceitos lançados e no
COC apenas se ratificava os tais conceitos. Mas na 8ª série houve
algo diferente. Não havia nenhum “I”. Pelo menos no mapa oficial
a ser enviado para o sistema da SME. Isto não significava que não
houvesse aluno merecedor de “I”, apenas que, oficial mente, os
alunos da 8ª série est avam indo de Regular a Óti mo. Per guntei à
professora de Educação Física que estava ao meu lado como er a
esse processo e ela explicou que se os/as alunos/as tivessem
vários conceitos “I”, não haveria como explicar uma melhor a
destes alunos a pont o de j ustificar sua aprovação nos últi mos
bi mestres. De maneira que quando chegou a hora da 8ª série, as
professoras iam dando os nomes dos alunos para serem anotados
numa lista. Estes alunos da lista eram aqueles que estavam com
rendi mento rui m, merecedores de conceitos “I” que, no entanto,
oficialmente, não recebiam este conceito. Os alunos da lista
entrariam numa estratégia da escola para superar suas debilidades
e assim conseguir sua aprovação. A per gunta irônica da diretora
era reveladora: “você quer o fulano de novo no ano que vem,
34
F hi lip p e P E R RE NO U D en te nd e q u e me s mo e m e s tab e le ci me n to s d e en s i no
tr a d i cio n a i s é p o s s í vel c o mp o r c o m “ a s r e s t r iç õ e s d o s is te ma ”, e p r o p õ e
“co ns ider ar co mo fo rm a tiva toda pr át ica de a va li ação co nt í n ua q u e prete nd a
co n tr ib u ir p ar a me l ho r ar a s ap r e nd iza g e ns e m c ur so , q u alq ue r q ue s ej a o
q uad r o e q ua lq uer q u e s ej a a e xt e n são d a d i fer e nc iaç ão d o e n si no ” . C f . i n
A v a l i a ç ã o: d a e xc elê n c i a à r e g u la ç ã o d a s a p r e n d iz a ge n s – e ntr e d u a s l ó gi c a s,
1999, p.78.
167
professora?” “Não!” r esponde a professora ao final da passagem
da 8ª série no COC. A escola desej a a aprovação de todos mas,
com relação a al guns dos/as alunos/as da l ista, não somente por
uma preocupação pedagógica, mas para se livrar desses/as
alunos/as, que no caso a escola os/as relaciona com atitudes
negati vas e maus exemplos.
Na análise do primeiro segmento do Ensino Fundamental e da
Educação Infantil as professoras nomearam poucos alunos com
dificuldades
e
problemas.
Algumas
turmas
não
apresentavam
problemas, além dos “normais daquela idade”, como disse a
professora da 4ª série, Ângela, dizendo que as coisas corriam bem.
Alguns/mas
dos/as
alunos/as
que
apresentavam
problemas
de
aprendizagem estavam ligados a questões de saúde (fono, por
exemplo) e outros com falta de acompanhamento dos responsáveis.
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Mas a preocupação maior era com os alunos que apresentavam
problemas
disciplinares.
A
indisciplina
é
uma
preocupação
constante, principalmente por parte da diretora, em geral partilhada
pelas professoras.
Dei-me conta nesta reunião – uma realização da cultura
escolar/cultura da escola – que alguma mudança estava em curso na
cultura escolar de vinte anos atrás, pois a cultura da reprovação
estava sendo colocada de lado, ainda que em alguns casos sem a
devida preocupação formativa. Os representantes do CEC (nos
seguimentos responsáveis, funcionários e estudantes) e do grêmio
estudantil nem sempre comparecem. Além disso, a tensão entre
avaliação formativa e seletiva continua sempre presente ou, nos
termos de Perrenoud (1999), a avaliação continua entre duas
lógicas.
Assim, as maneiras de implementação da cultura escolar e as
atuações
de
seus
atores
imprimem
uma
característica
que
identificam a cultura da escola da Escola Azul, o que reforça a
inter-relação
entre
estas
culturas,
fazendo
sentido
operar
os
conceitos interpenetrados, cultura escolar/cultura da escola. A não
existência do recreio, por exemplo, organiza as maneiras que
168
estudantes e professoras/es se adequam a esta norma, propiciando
um “recreio” dentro da sala no horário de aula ou nas aulas de
Educação Física, no tempo livre enquanto estudantes do outro sexo
fazem exercícios. Ou ainda, se a construção do Projeto PolíticoPedagógico não é coletiva, vários elementos contribuem para que
sua
aplicação
em
determinados
aspectos
ocorra:
um
comprometimento da maioria dos profissionais com a escola, agindo
com
criatividade
e
dedicação,
uma
direção
que
goza
de
legitimidade, muito atuante e criativa, mesmo que permeada por um
certo centralismo e autoritarismo, um corpo discente que demonstra
gostar da escola e, regra geral, com desempenho acima da média da
região. Também fazem parte da cultura da escola a garantia e
manutenção dos equipamentos e condições físicas do ambiente
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escolar e o apoio das/os responsáveis pelos/as estudantes e da
comunidade do bairro à escola, embora com certos problemas de
relacionamento,
como
aqueles
apontados
pela
associação
de
moradores, por exemplo.
4.2
A cultura escolar/cultura da escola: realizações e tensões
“E u vo u t e sal v ar !”
São vários os aspectos em uma escola que podem significar
um bom funcionamento. Na atualidade, em espaços urbanos como a
cidade do Rio de Janeiro, em geral todas as pessoas jovens e adultas
que olham para uma escola ou tecem comentário sobre uma unidade
escolar, têm como base a sua experiência 35 do que é o funcionamento
de uma escola. Elas têm uma representação 36 do que é uma boa
35
M u ita s p e s so a s tê m u ma e xp er i ê nc i a e s c o l ar . A ta x a d e a na l f a b e ti s mo na
c id a d e d o R io d e J a n e ir o é d e 4 , 4 % ( e na XV Re g iã o Ad mi n i str a ti va d e
M a d ur e ir a , o nd e e stá l o c a l iz a d o o b a ir r o d e Os wa ld o Cr uz , é d e 3 , 4 %) . C f .
I n st it u to P e r e ir a P a s so s . Ar ma zé m d e Dad o s. C a r a c te r í s ti c a s So c io e c o n ô mic a s.
T ab e l a 5 . 2 . 1 0 4 – T a xa d e A na l fab e t i s mo d a p o p u l a ç ã o d e 1 5 a no s o u ma i s,
se g u nd o
as
R e giõ e s
Ad mi n is tr a ti v a s
–
2000.
D isp o n í ve l
e m:
<http // : www. ar ma ze md e d ados.r io.rj . go v.br /i nd e x. h t m>, ace s so e m 02/04 /2005.
36
O co nce ito d e repr es entaç ão é co mp le xo e exi ste m vári a s apro xi maçõe s.
Ne ste tr a b a l ho to mo a p e r sp e c t i va d e Hal l ( 1 9 9 7 c , p .6 1 ) , q u e a f ir ma :
“ R e p r e se n ta ç ã o é o p r o c e s so p e lo q ua l o s me mb r o s d e u ma c ul t ur a u sa m a
lí ngua (a mp la me nte d e fi nida co mo q u alq uer si s te ma q u e e mp r e g ue si gno s,
169
escola. Esta representação está invariavelmente ligada às boas
condições físicas do prédio escolar, seus equipamentos, a presença e
atuação dos trabalhadores da educação naquela unidade, a regular
entrada e saída de estudantes e principalmente no sistema de
avaliação da escola (Perrenoud, 1999) 37. Se tudo isto está dentro do
que se espera, a escola em questão funciona. Mas caberia aos
profissionais e pesquisadores da educação perguntar: funciona para
quê? como funciona?
4.2.1
A gestão da escola
“Não se i por o nd e co me çar !”
Um fator que me chamou fortemente a atenção desde que
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0114347/CA
comecei a fazer a observação foi a enorme carga administrativa
exigida pela escola. Nos primeiros dias de observação, quando
estava na secretaria, a diretora conversou comigo, explicando os
inúmeros
detalhes
dos
procedimentos
administrativos
e
das
prestações de conta financeiras e pedagógicas que uma direção é
obrigada a fazer. Segundo ela, alguns diretores de escola deixam de
buscar verbas aprovadas que sua escola tem direito porque dá
trabalho prestar contas. Existem verbas com destino certo, outras
que a escola deve fazer licitação para a compra. Mesmo quando a
escola tem verba que ela pode escolher o destino, em certos casos
deve aguardar autorização da CRE, como no caso das obras para
reversão de duas salas em sala de aula, que esperava há alguns
meses. Outro caso é o brunch, em que o dinheiro recebido deve ser
q ua lq ue r si st e ma si g n i fi c a nte ) p a r a p r o d uz ir e m si g n i fi c a d o s. E sta d e f i n iç ã o j á
car r e ga a i mp o r ta n te p r e mi s sa d e q ue a s co i sa s – o b j eto s, p e s so a s, e ve nto s d o
mu n d o – n ã o tê m e m si q ua lq ue r si g n i f ic a d o e s t ab e le c id o , f i na l o u ver d a d e ir o .
So mo s nó s – n a so c ie d ad e, na s c ul t ur a s h u m an as – q ue fa ze mo s a s co i sa s
si g n i fi c a r e m, q ue si g n i f ic a mo s” . C f. S t uar t H AL L . Th e wo rk r ep r es e n ta tio n .
In: H ALL, S t uar t (or g.) . Rep re sen ta tio n : c u ltu ra l r e p re se n ta tio n a n d sig n ify in g
p ra c tic e s . Lo nd o n : S a ge , 1 9 9 7 c .
37
P hi lipp e P E R REN OU D, dis c ut i ndo a v al iaç ão, vai di zer q u e e la es tá no ce ntro
de u ma i n ter -r el ação d e oito d i me nsõe s, d e ntr e os q u ai s uma d ela s é o que
deno mi na de “R el açõe s e ntr e a s fa mí l ia s e a es col a”, o nde mo s tra que a
i ma ge m q ue o s pa i s tê m da e scol a es tá l i gad a ao q ue el es co nhece m por
exp eri ê nci a própr ia. C f. Ava lia çã o : d a e xc elê n ci a à r e g u laç ã o d a s
a p r e nd i za ge n s – e ntr e d ua s ló gi c a s. P o r to Al e gr e: Ar t Me d , 1 9 9 9 , p . 1 4 7 - 1 4 8 .
170
gasto inteiramente naquela atividade, devendo o material que se
compra para o café e o almoço ser obrigatoriamente diferente da
merenda
cotidiana.
Apesar
disto,
diante
de
todos
estes
contingenciamentos, a direção da escola mostrou-se capaz de
equipar modelarmente a escola, desde computadores, TVs, vídeos,
DVD, impressora, fotocopiadora, quadros brancos, circuito interno
de TV, até uma boa biblioteca, sala de dança etc 38. Este aspecto é
relevante, entre outras coisas pela importância que tem para o
desempenho escolar, como atestam pesquisas brasileiras (Franco et
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al., 2005).
Dia 22 de outubro de 2003
Na sala da s ecretaria, a diretora está s entada à sua mesa,
preocupada com várias atividades e problemas, que sur gem no dia
a dia da escola: “não sei por onde começar!”. Uma mãe li ga
pedindo para avisar outra mãe com quem ela deixou uma bolsa,
que o relógio dela está na bolsa. A diretora chama pelo sistema de
som uma das “mães da escola” e relata o telefonema di zendo:
“olha, eu não quero nem saber, essas mães pensam que nós não
temos outra coisa a fazer !”
O
cotidiano
administrativo
de
uma
escola
municipal
é
permeado por uma enorme burocracia, que inclui as necessárias
prestações de contas de recursos financeiros, assim como o
fornecimento de dados à SME e à CRE acerca de presença e
avaliações de alunos, todos com prazos a serem obedecidos.
Normas, regras e metas de rendimento (quanto aos resultados de
avaliação, por ex emplo), que juntamente com os problemas do dia a
dia da escola, demandam enorme atenção da administração escolar.
Por outro lado, a proibição da SME de festas e atividades que
pudessem levantar verba para a escola inibiu atividades e a
dinâmica que a escola tinha até o ano 2000, avaliam as diretoras.
Problemas com a entrega de mantimentos, que atravessaram
os anos de 2003 e 2004, dificultavam o fornecimento adequado de
merenda
aos
estudantes.
Segundo
Ilma
os
problemas
eram
decorrentes de licitação. É estranho que um problema destes perdure
38
C f. c a p ít u lo 1 d e s ta te s e , e sp e c i fi c a me n te o i te m 1 .1 – A E sc o l a Az ul.
171
por dois anos. Outro problema era a falta das canetas para os
quadros brancos, levando as/os professoras/es a se cotizarem para
comprar canetas enquanto o problema de licitação não se resolvia.
Chamou-me a atenção o fato destas questões serem encaradas
apenas como burocráticas. Nunca houve, por parte da direção,
nenhum questionamento à política da CRE, SME ou Prefeitura.
Nas reuniões do Centro de Estudos, muitas vezes não se
discutia a questão pedagógica e sim questões administrativas, como
por exemplo, as assessorias criadas pela coordenadora pedagógica
para administrar a compra e utilização das canetas para quadro, o
café, a água, aquele professor que não colabora porém faz uso do
que é comprado coletivamente, a discussão dos horários etc. Aída vê
o peso das questões administrativas como “super negativo”. Diz ela:
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“acho que na realidade a escola não é isso, não é papel, não é
número e você acaba tornando a escola isso. Se a gente não tomar
cuidado, isso vira uma bola de neve!”
Dia 10 de março de 2004
Reunião do Centro de Estudos - Ol ga, do pri meiro segmento, pede
para falar, dizendo que não está concordando com as cobranças
que são feitas a um grupo de professores, que são da Educação
Infantil e primeiro s egmento, mas que não é feito a outro, os
professores P1, do ginásio. Di z que não quer fazer parte da
“assessoria” criada para aj udar nas compr as e administração de
material usado por professores, porque a forma como os
professores pedem ou cobram as coisas lhe incomodam. “É o
‘clima’ da escola que não está bom”, completa. Ela diz que não
quer mais esta tarefa de “assessoria”. Nora, do primeiro segmento,
outra que está na “assessoria”, também reclama que colegas que
dizem que não usam as canetas para quadro querem pagar menos
que os R$ 5,00. Por outro lado, colegas que usam demais as
canetas reclamam que precisam de mais canetas. Então se instala
uma discussão sobre como resol ver o problema e surgem críticas a
“deter minados colegas”, sem no entanto dar nomes. “Al guns
colegas não querem pagar porque dizem que eles ficam pouco
tempo na escola”, di z uma. “tem colega que diz que não usa
caneta e por isso deve pagar menos”, diz outra. “Alguns colegas
acham que são melhor es do que nós”, diz uma terceira. Mas fica
claro que em suas crí ticas e reclamações elas estão se referindo
aos colegas P1. Ol ga pergunta: “por que a cobrança em ci ma do
nosso grupo é grande e não é feita a mesma cobrança ao outro
grupo?”, referindo-se a um tratamento desi gual que beneficia os
professores P1
172
Em 2005 está previsto eleição para a direção da Escola Azul.
Ana e Aída falam sobre alguns problemas vividos pela direção,
dizendo que questionam o processo de eleição da direção. Segundo
elas, aquele professor que é “cobrado”, tem na hora da eleição a
oportunidade de “não votar em você”. Elas não acham justo, porque
a direção “não
pode nada contra o
professor, nada
com
o
funcionário” e ficam a mercê deles. Citam o que aconteceu com uma
merendeira, que não trabalhava e não queria nada, quando a diretora
fez queixa na CRE, a merendeira teria dito: “você vai ver quem
pode mais” e escreveu uma carta para o prefeito, fazendo várias
denúncias contra a Escola Azul. Não precisou provar nada, mas
houve inquérito contra a direção da escola e tiveram que provar que
as denúncias eram sem fundamento, contam elas. Citam os pequenos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0114347/CA
problemas do dia a dia, como um professor de Educação Física que
toma água comprada com a contribuição de todos mas não dá sua
contribuição, um professor de matemática que vivia pedindo licença
médica. Problemas existem, mas poderíamos perguntar: e se a
direção é arbitrária, o que podem fazer aqueles que sofrem o
arbítrio? Teixeira (1996) 39 já defendia que não era possível a escola
contribuir para a democracia sem praticá-la. Se há algo que a
democracia possibilita é fazer emergir problemas e, se eles
emergem, é porque já existem. Como estão no cargo há várias
eleições, o posicionamento das diretoras pode ser fruto do cansaço,
da rotinização ou burocratização da função. Tais hipóteses são tão
ou mais problemáticas do que denúncias sem fundamento.
Ana comenta que pessoas como ela e a coordenadora, não
voltam mais para a sala de aula, pois já chegaram a um determinado
patamar: “você acha que uma pessoa como Aída, se sair da
coordenação da Escola Azul, vai ficar sem ser convidada para
trabalhar em outra escola?”, exemplifica ela. E acrescenta: “em
outro lugar alguém vai ficar sabendo da disponibilidade dela e vai
39
E d u c a ç ã o é u m d ir e i to. A p r i me i r a e d iç ã o é d e 1 9 6 8 . O li vr o ta mb é m r e ú n e
te xto s d e 1 9 4 7 a 1 9 5 1 e e r a c o n s id e r a d o p e l o a uto r u ma c o nt i n uid ad e d e
E d u c a ç ã o n ã o é u m p r iv ilég io , q ue te v e s ua p r i me ir a e d i ç ã o e m 1 9 5 7 .
173
chamá-la”. Neste dia fiquei sabendo pelas diretoras que houve uma
mudança na direção da CRE, onde a Escola Azul tinha boa relação,
o que me pareceu gerar um clima de insegurança na direção, apesar
de seu trabalho ser amplamente reconhecido.
4.2.2
A Merenda
“Nó s e st a mo s se m le it e de sd e o co me ço do ano .Não s ei o q ue es tá
ha v e nd o c o m a C RE !”
A alimentação escolar tem atenção especial, de acordo com o
discurso da SME. Dentro desta perspectiva foi criado o Projeto de
Alimentação Escolar (PAE) que “constitui fator de cidadania e
interfere
nas
relações
pedagógicas
entre
indivíduos
e
nas
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0114347/CA
transformações das condições de vida e trabalho” 40. O cardápio da
merenda escolar, por exemplo, é orientado pelo Instituto de
Nutrição Annes Dias. Contudo, minhas observações – apesar de
constatarem a o esforço da administração da Escola Azul –
mostraram muita contradição entre o discurso e a prática da SME.
Durante o período de minhas observações sistemáticas, de outubro
de 2003 a junho de 2004, houve falhas na merenda, sempre
atribuídas a “problemas de licitação”, com falta de mantimentos que
provocavam impossibilidade de servir a merenda dentro do cardápio
organizado e, mesmo quando se conseguia, não poderia atender aos
60% daquela população escolar estimados para receber merenda.
“Quando é ovo, é tranqüila a merenda, quando é frango ou sopa [que
os estudantes gostam], é mais complicado”, explica Ilma 41. Diante
desta situação, a direção da escola decidiu priorizar o atendimento
às turmas de Educação Infantil e de alunos/as com deficiência.
Depois viriam as turmas do primário e finalmente as do ginásio.
Os problemas com a merenda afetam de maneira localizada o
bom funcionamento da escola para algumas/uns responsáveis.
40
A SM E d e f i ne o P AE c o mo u m p r o gr a ma e sp e c ia l. C f. P r o j e to s e P r o gr a ma s
da
SME.
Di sp o ní v e l
e m:
<http :/ / www. rio.rj . go v.b r/s me/proj pro g/ me r e nd a. ht m> , A c e s so e m 0 2 / 0 4 / 2 0 0 5 .
41
Il ma é uma pro f es so r a P 2 d e s v iad a d e f u n ç ã o e na E sc o la Az ul é r esp o n sá ve l
pela me re nd a .
174
Algumas mães reclamam pelo fato da merenda não atender a todos
os estudantes. Outro aspecto é a cultura da escola, de não ter
recreio.
Em
reunião
do
Centro
de
Estudos
as
professoras
reclamavam que alguns/mas estudantes levavam merenda de casa e
comiam na sala, mas outras ponderavam: mas se falta merenda,
como impedir? Nas turmas que observei, como a da 4ª série, a
professora dava um tempo para a turma merendar dentro da sala.
Isto acarretava que os/as alunos/as que podiam levavam a merenda
de casa: saquinhos de biscoitos coloridos, refrigerantes, iogurtes.
Assim, toda a educação alimentar que a escola tentava fazer,
acabava se perdendo.
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4.2.3
A disciplina
“ e ta mb é m p o r c a us a d a d is c ip li na . I s so te m ger ad o u ma gr a nd e p r o c ur a
não só p o r p a r te d a c o m u ni d a d e d e O s wald o C r u z e M ad ur e ir a , c o mo d e
B e n to Rib eir o , d e Valq u e ir e . ”
Olavo, pai de duas alunas e representante do CEC, quando se
mudou para Madureira e procurou uma escola pública para as filhas,
escolheu a Escola Azul por vários motivos:
Por causa do trabalho que ela desenvol ve, devida à variedade de
cursos que existe na escola. Nós temos uma variedade enor me,
como o curso de inglês, curso sobre meio ambiente, de artes, artes
cênicas, artes plásticas, a música que está sendo introduzida na
escola, entre outras atividades. E também por causa da disciplina
na escola. Isso tem gerado uma grande procura não só por parte da
comunidade de Os waldo Cruz e Madur eira, como de Bent o
Ribeiro, de Valqueire.
A referência ao aspecto da disciplina na escola, como um dos
fatores que a destacam positivamente aos olhos das/os responsáveis,
tornou-se uma característica da Escola Azul, faz parte da cultura da
escola. Também com relação ao trabalho das/os professoras/es a
disciplina agrada às/aos responsáveis. Próximo ao final de julho,
por
exemplo,
às
vésperas
do
COC,
a
escola
funcionava
normalmente, com todas séries e as professoras ministrando aulas.
175
Dia 10 de março de 2004
Quando acabava de es cutar a diretora, chega uma mãe, negra, para
falar com a diretora. Esta mãe tinha sido chamada porque seu
filho, que está na 7ª série, com mais três colegas, tinham batido
em outro aluno. Tinham ficado de castigo e falaram palavrões no
corredor, perto da sala de EI. O garoto é chamado e criticado pela
diretora em frente à mãe. A crítica é dura, mas sem elementos de
humilhação. E finali za a bronca apontando o dedo para o menino e
dizendo com fir meza: “eu vou te sal var!”. A mãe também
repreende o filho e o garoto é enviado à sal a de aula. A diretora
explica para a mãe que outra mãe j á veio mais cedo e ainda virão
outros dois responsáveis. Acrescenta que esta atitude da escola é
para segurar a situação logo no início do ano. A diretora ainda
chama outro garoto, que é sobrinho daquela mãe e repete a
repreensão anterior ao garoto. A mãe, que não é tratada pelo
nome, mas por “mãe”, agradece e volta para casa.
Mas este aspecto disciplinar está ligado a uma concepção de
educação que a coloca dentro de uma visão messiânica. É como se
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expressa a diretora numa entrevista ao jornal da escola: “Os
responsáveis
precisam
ter
os
filhos
como
objetivo
de
vida,
acreditarem na escola, entender que mudaremos este país através da
educação” (O Tagarela, nº4, p.6, grifos meus). De modo que,
quando a diretora diz para o aluno considerado bagunceiro: eu vou
te salvar!, ela está estabelecendo uma missão para a escola, está
acreditando que a escola é a resposta para todos os males.
A limpeza da escola é impecável, pois juntamente com a
educação dos estudantes para não sujar a escola, os funcionários da
Comlurb limpam constantemente os corredores, banheiros, pátio e
salas que ficam vazias.
Dia 29 de março de 2004
Cheguei 7:10h. A escola parece ter poucos alunos. Mas só parece.
A esta hora só entra o ginásio, ou sej a, de 5ª a 8ª série. Per gunto à
diretora sobre o horário e ela me explica: o ginásio estuda de
7:50h às 12:00h, o que significam 5 tempos. O P1 tem no máxi mo
5 tempos de aula num dia. Antes eram 6 tempos e o P1 dava 6
tempos em 2 dias, que perfaziam 12 tempos, e não voltava mais na
escola. Mas acontece que a carga horária é de 12 tempos na sala
de aula mais 4 tempos de complementação pedagógica. “Esses 4
tempos ele nunca cumpria. Agora, com 5 tempos ele é obrigado a
vir 3 dias na semana, cumprindo 4 tempos dentro da escola,
fazendo planej amento, corrigindo exercícios etc.”.
176
Este horário do ginásio só é possível porque a Escola Azul
não tem recreio. Isto significa ganhar mais 30 minutos, que é o
tempo do recreio. Não seria possível trabalhar 5 tempos de aula,
sendo cada hora/aula de 50 minutos e terminar às 12:00h. O horário
normal da rede, de 7:10h às 11:50h, inclui recreio de 30 minutos.
Ocorre que o horário da Escola Azul é de 7:50h às 12:00h, sem
recreio, para cumprir os 5 tempos do ginásio. Isto significa 4 horas
e 10 minutos diretos de atividades nas salas de aula, dificilmente
aceitável em termos pedagógicos. Relativizando este problema,
estaria o fato de que haveria sempre aulas de Educação Física, na
quadra ou no pátio, aulas de Técnicas agrícolas na horta, aulas de
Educação para o Lar, assim como aulas com vídeo e outros recursos
pedagógicos que amenizariam as atividades dentro das salas de aula.
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Tal argumentação é frágil pois, seja qual for o recurso pedagógico
usado, haverá sempre exigência de cognição. Haverá sempre uma
exigência estressante em um certo grau. Mas no caso da Escola
Azul, a decisão por um horário sem paralisação tem outro motivo: o
controle disciplinar e outros ganhos secundários.
De fato, não haver o tradicional recreio significa disciplinar,
condicionar, regular, controlar, “organizar” e “administrar” os/as
estudantes e a escola. A diretora Ana justifica o fim do recreio
(desde 1998) argumentando porque servem café da manhã e depois
almoço na saída do turno da manhã e na entrada do turno da tarde,
com lanche na saída deste último turno 42, e acrescenta: “acabamos
com aquela correria” (grifo meu), dizendo que conversou com
professores e responsáveis. Se tal discussão foi feita devidamente
não consegui identificar, mas durante toda minha observação e
entrevistas, apenas um aluno reclamou a falta de recreio.
O que é o recreio? É o momento de extravasar, relaxar,
expandir, sociabilizar. É um descanso certamente para a mente,
embora não o seja necessariamente para o corpo. Mentes e corpos
42
Este ar g u me nto c ar ec e d e f u nd a me n to p o i s vár ia s e sco la s tê m r e c r eio e
ser v e m a l mo ç o . Al é m d is so , o s p r o b le ma s d e a b a s tec i me n to e m 2 0 0 3 e 2 0 0 4
to r na m ai nd a ma is p r o b l e mát ica e st a ar g u me n ta ç ão .
177
das crianças e adolescentes que estão cheios de energia, têm na
escola
um
processo
de
racionalização
que
herdamos
do
cartesianismo, do iluminismo e do positivismo que busca nos educar
na lógica do mundo moderno. O recreio tem a lógica do descanso,
mas acaba permitindo mais do que isto: permite liberdade, criação,
desenvolvimento, espontaneidade. As brincadeiras, as idéias, a
interação, a descontração, a irmandade, a cumplicidade, mas
também
o
atrito,
as
brigas,
as
desavenças,
bem
como
a
experimentação, o reatamento, a paz, a reconstrução, são momentos
de aprendizado de forma autônoma e de vivências importantes para
aquelas vidas que estão em período de descoberta e expansão.
Mas outro aspecto não menos importante do recreio é a
libertação do corpo do racionalismo. O corpo que pode ocupar
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espaços, que pode correr, se balançar, se jogar, dançar...
A cultura escolar tradicional tende a delimitar, coagir,
disciplinar, ordenar, impedir a experimentação e descoberta porque
já tem definido o que se deve descobrir e como descobrir. Nem
mesmo as disciplinas 43 artísticas permitem, em geral, esta liberdade.
Já têm os esquemas de como fazer. Nem mesmo a Educação Física –
como pude observar – traz novidades no uso do corpo ou na
expressão corporal (Gariglio, 2004), pois os jogos e brincadeiras
são aprendidos muitas vezes antes e fora da escola. Não se trata de
negar os aspectos
enriquecedores que tais disciplinas podem
apresentar. Mas trata-se, sempre, de disciplinarização, como o
próprio nome diz, e ao mesmo tempo de disciplinação, no sentido de
organização do espaço e do tempo e a maneira do corpo se colocar,
no sentido da ordem. Uma disciplinarização e uma disciplinação que
o
recreio
desconstrói,
que
abre
a
possibilidade
de
outras
construções, outras dinâmicas. E o corpo ocupa espaço, constitui
identidades, supera a uniformização das carteiras arrumadas e dos
uniformes postos. No recreio o corpo marca sua individualidade, ao
43
O ter mo d i sc ip l i na ve m d o la ti m d is c ip lin a , a e, que si gni fi ca aç ão de se
ins tr uir , ed uc ação , c iê n cia, d i sc ipl i na, ord e m, pri ncíp io de mo ra l. C f. verb et e
di sc ip li na i n Dic io n á ri o HOU A I S S d a lín g u a p o rtu g u e sa , São P a u lo : O b j eti va,
2001.
178
correr de uma maneira, ao dançar de uma maneira, ao se balançar de
uma maneira, ao andar, ao cair, ao cruzar as pernas, ao rir ou
chorar, ao se isolar, ao se envolver na briga, ao abraçar e sorrir. O
corpo, esta parte constituinte do sujeito que não simplesmente
carrega uma cabeça pensante, mas uma parte que pode provocar
sensações, sugerir, dar sentido à existência, dar prazer ao se
movimentar, manifestar alegria no pulo e no som do grito. O corpo
anseia por ser dono de si mesmo, por deixar de ser dominado por
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outrem.
Dia 29 de março de 2004
Turma da 4ª série – Às 10:35h, a aula tem um inter valo para a
merenda que é feita dentro da sala de aula. Os alunos que trazem
merenda comem e os que não trazem não comem e al guns ganham
uns biscoitinhos dos colegas. A maioria dos biscoitos é destes de
saquinhos coloridos e brilhantes e o cheiro forte de alguns
contaminam a sala. Ao meu lado, o garoto branco que não trouxe
merenda, debruça-se s obre o caderno fazendo desenho, parecendo
não querer olhar os colegas que merendam e brincam. O outro
menino, negro, que também não trouxe mer enda, continua sentado
em sua carteira e ganha alguns biscoitos dos colegas. Um garot o
vem até a mi m oferecer biscoito. Depois, dois garotos próxi mos
também oferecem. Os /as alunos/as se levantam, andam na sala,
cutucam, beliscam um/a colega e correm entre as carteiras, às
vezes tropeçando, fazem uma pequena bagunça sem sofrer nenhum
constrangi mento da pr ofessora. Per gunto por que é feita a merenda
na sala e a professora pede para falar com a diretora, porque j á
houve uma tentativa de fazer diferente. Às 10:45h, a professora
pede para que os alunos sentem em seus lugares, o que não se faz
imediatamente, pois eles demoram um pouco a se concentrar na
aula. A professora vai passar um exercício e começa a explicar
como será. Apesar dos apelos, a tur ma ainda continua
desconcentrada da aula, mas a professora continua a distribuir a
folha para o exercício, tendo a todo o momento que chamar
atenção. O inter valo parece ter desencadeado uma ener gia e
desviado a atenção da maior parte dos alunos de tal maneira, que
eles, apesar de ter respeito pela professora e com ela ter um bom
relacionamento, pelo que pude ver e pelo fato de ser o segundo
ano consecuti vo j untos, estão concentrados nas brincadeiras, nas
atitudes dos colegas, na resposta que os colegas vão dar para suas
ações. Foi um momento difícil, levando a professora a uma
pequena irritação, provocando al guns gritos até tudo se acal mar .
O sentido de não ter recreio passa a ser o pragmatismo do
controle. A desconcentração e a desregulamentação do agir que o
recreio provoca fica eliminada. Evita-se o atrito, a “paquera”, as
atividades transgressoras. Não há o que se preocupar com as
179
atividades transgressoras dos/as estudantes porque o espaço para
elas acontecerem torna-se muito reduzido. Não há o que controlar
porque
tudo
já
está
controlado,
dos/as
alunos/as
às/aos
professoras/es: todos têm aulas a assistir ou ministrar nos horários
sistematizados. Este é o maior ganho intencional da disciplinação,
que faz parte da cultura escolar/cultura da escola da Escola Azul.
4.2.4
Os parceiros da Escola Azul
“ Ga n he i d o B a nco Re a l ! ”
São aqueles que colaboram com a escola de várias maneiras e
muitas vezes ajudam a realização de atividades extras. Os parceiros
podem financiar, apoiar ou mesmo só colaborar com alguma
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atividade da escola. Na Escola Azul são vários os exemplos: o
Banco Real (ABN AMRO Bank), que pintou o chão da quadra, deu
camisas de times holandeses para o campeonato interno, deu um
piano eletrônico e remunera o professor que dá aula de música uma
vez por semana; o IBEU, que dá um curso gratuito de inglês para
alunos dentro das dependências da escola, fornecendo certificado ao
final de 2 anos; o Colégio Santa Mônica, que cede espaço do
auditório para a realização de formatura ao final do ano e seus
profissionais de recursos humanos para fazerem palestras aos alunos
da Escola Azul; a Comlurb, que participa de projetos de meio
ambiente e dá apoio para realização de atividades como o brunch; o
consulado do Japão, convidando para concurso de origami e
bancando o lanche dos/as estudantes; a Odebretch e o Sesc que dão
apoio ao NAM; a associação de moradores, que deu apoio para a
realização dos desfiles ecológicos, entre outros. A parceria é uma
via de mão dupla, não ficando apenas na boa vontade das empresas
privadas. Ganha-se com isto o desconto em imposto de renda ou
propaganda de seus produtos. De qualquer maneira, as parcerias
revelam atitudes dinâmicas da direção da escola e possibilitam a
oferta de algo mais para seus estudantes.
180
4.2.5
A relação escola-comunidade
“P r a mi m é d e z me s mo ! E u não tr o c a r ia
esco la, ne m p art ic ul ar !!”
a E s c o la Az ul p o r ne n h u ma
Uma
Azul
das
estratégias
da
Escola
para
melhorar
a
aprendizagem dos/as alunos/as que tenham dificuldade é buscar
apoio na família. Dentro desta proposta, marcou-se uma reunião
com as/os responsáveis da turma de Progressão, em conjunto com a
turma
do
3º
ano
do
Ciclo,
que
apresentava
problemas
de
desenvolvimento na aprendizagem. Foi uma reunião que começou
tensa, pois da parte das/os responsáveis havia uma apreensão
natural, relacionada a possíveis problemas e queixas que a escola
possa trazer em relação aos/às seus/uas filhos/as ou enteados/as. Por
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parte da escola estava sua responsabilidade e a expectativa que
as/os responsáveis estão colocando na escola para ajudar as crianças
a superarem suas dificuldades, o que não é tão fácil de cumprir. O
horário da reunião, no início da tarde, é um problema porque traz
transtornos para quem trabalha ou tem outros afazeres. Cerca de seis
responsáveis mulheres estavam com crianças pequenas na reunião,
inclusive com bebê de colo (duas).
A esperança da direção era de comparecessem em torno de
70% das/os responsáveis, mas só compareceram cerca de 40%, o que
não chega a ser um percentual ruim. A ausência de vários/as
responsáveis é ressaltada por Aída e surgem poucas críticas à
escola. A coordenadora leva a discussão para outro caminho,
colocando: “se temos um problema, não adianta ficar culpando a
escola ou a família, temos que resolver o problema, buscar
soluções”. Ela afirma que na escola, “todos os alunos que estão aqui
tem capacidade de aprender”. Aída explica as/aos responsáveis que
os alunos vão trabalhar teatro e estão empolgados. Também serão
levados ao teatro. Ela entende que, através do teatro, os/as alunos/as
vão perceber que são capazes. Explica também que tem um trabalho
de apoio da professora de Educação para o Lar, do professor de
Técnicas Agrícolas e das professoras da sala de leitura.
181
Foram poucas intervenções das/os responsáveis, que estavam
na defensiva, mas o clima era de colaboração. Aída deu dicas às/aos
responsáveis para ajudar em casa. “A empolgação é necessária por
parte da escola e da família”. Lembrou que os pais têm que estar
atentos a problemas como a vista das crianças e que todo mundo tem
problemas psicológicos. Procurando não assustar ou chocar os pais
a respeito do que havia dito sobre “todo mundo tem problemas”, ela
deu
exemplo
do
próprio
filho,
que
apresentava
problemas
psicomotores e ela teve que enfrentar a situação, levando aos
médicos e fazendo tratamento 44. Diz que as mães têm que ter
cuidado com o que falam com os/as filhos/as. A diretora Ana
também contou que seu filho tinha problemas e que batia no garoto,
até admitir os problemas do filho e fazer tratamento.
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A professora da sala de leitura chamou atenção para que as
presentes “precisam valorizar o que estão aprendendo na escola”.
Uma mãe falou, com uma alegria contida, que estava elogiando o
avanço do filho e isto aumentava “a auto-estima dele”. A professora
do Ciclo conta o caso da mãe que chamava o filho de “burro”
quando o garoto errava os exercícios e o garoto lhe contava: “eu
converso muito com eles”, explica. A professora da Progressão fala
que uma das dificuldades é o “aluno faltoso”.
Na
escola
desde
1991,
um
de
seus
professores
mais
respeitados, figura de grande importância na guinada que a escola
deu para melhorar sua imagem, o professor Orlando, de Técnicas
Agrícolas, analisa a relação da comunidade com a escola:
Eu ac ho q ue ho j e, j á ta mb é m mu d o u b a s ta nt e. P o r q u e q ua nd o e u
che g uei aq ui ha vi a e va s ão. A es cola não er a be m co nc ei t uada . E ne s se s
1 3 a no s ho u v e u ma mu d an ç a p o r q ue há u ma d i s p ut a d e v a ga s, a s sa la s
e s tão c he ia s, n ã o h á e v a sã o . Há u m c o mp r o me t i me nto gr a nd e d o s p a i s
e m r e laç ão à e sco la, mu ito s p a i s t ê m mu i to co m p r o mi sso co m a e sco la.
E a c o mu n i d a d e p a s so u a n ã o v ir q ue b r a r a e sc o l a c o mo a co nt e c i a .
P r incipa l me n te na mi nh a área, q ue j o ga va m li xo no q ui n tal do co lé gio...
A E scol a Az ul, el a é de cla s se mé dia b ai x a, a ma ior pa rte . Nó s t e mo s
44
Ap e sa r d a b o a i n te nç ã o d a c o o r d e nad o r a , h á q ue se c o ns id e r a r a si t ua ç ã o
eco nô mi ca daq u ela pop ul ação e a s co nd içõe s da sa úd e p úbl ica no B r as il q ue
d i fic u lt a m b as ta n te q u a lq u er tr a ta me n to , co mo f ico u cl ar o co m a i n te r ve n ção
d o M i n i sté r io d a Sa úd e no s ho sp i ta is mu n i c ip ai s d o R io no i ní cio d e 2 0 0 5 , q ue
era m co ns iderado s bo ns ano s atrá s.
182
a l u no s d e c l a s s e b e m d e s fa vo r e c id a , t e mo s a l u no s f a vel ad o s, nã o
d e i xa mo s d e t er u ma c l ie nt e la d es sa . M a s há, e u não se i s e d e vid o a
e s se tr a b a l ho to d o q u e f iz e mo s d ur a nte lo n g o s a no s, 1 3 a no s, u ma
década, q u a se uma d éc ada e me ia, há mu i to resp eito do s al uno s e m
rela ção ao s pro fe s so re s e à dir eção do co l égio. E u a c ho, é uma
carac ter í st ica be m mar c ante. N ão é uma es cola de... [i n] d is cip li na , sab e
as si m, al uno s co m sé ri os proble ma s co mo tê m certa s es col as . P o rque
não h á, não te m mu i ta m ar g i na li zaç ão , i n f l uê n ci a d e t r a fi ca n te, is so n ão
ex i ste ma is aq ui.
Visão corroborada pela professora Ângela, da 4ª série,
também moradora do bairro, que vê na procura de vagas na escola
por alunos de outros bairros próximos um atestado da boa relação
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com a comunidade:
Eu acho boa, porque essa escola aqui é muito procurada. É ponto
de referência mes mo. Inclusi ve eu tenho alunos aqui que moram
na Praça Seca, em Valqueire, em Madureira. É uma coisa que vai
longe do bairro. E é uma escola procurada, muito procurada. Tant o
que é difícil para o aluno conseguir trans ferência para aqui. O
nosso aluno, ele está aqui desde a EI [Educação Infantil].
Percepção que também tem Elvira, professora de Educação
para o Lar, na escola desde 1977, moradora do bairro: “vejo os pais
falando bem da escola. Em comparação com as escolas que têm por
aí
em
volta, esta
é bem
conceituada”.
Isabel, moradora de
Campinho, professora da sala de leitura e na escola desde 1984,
afirma: “a comunidade gosta da escola, acredita no trabalho da
escola”. Esta também é a visão de Marisa, mãe de aluno e moradora
do bairro, eleita suplente de representante do CEC em 2004:
Olha, eu não trocaria ela por nenhuma escol a, nem particular! Não
tenho o que me queixar, nunca tive reclamações, queixas, nem fiz
queixas e pra mi m é [nota] dez mesmo, não é di zer que eu sej a
puxa-saco da escola porque se eu não fosse [verdadeira], eu não
estaria aqui esse tempo todo, e sempre aj udando a escola.
Aninha, 13 anos, afro-brasileira, 7ª série, diretora do grêmio,
vê que a disciplina e o comportamento da Escola Azul é diferente
das outras: “aqui você chega e fala assim: ‘ah, eu não quero fazer o
trabalho’, e a professora: ‘não, tu tens que fazer’. Em outra escola o
aluno fala que não quer fazer o professor diz: ‘ah, não faz, o
problema é seu, se vira’, fala assim mesmo! Eu estou cansada de ver
183
isso!” O depoimento de outra diretora do grêmio, Alice, 14 anos,
branca, 8ª série, é emblemático para esta visão positiva da
organização da escola porque ela era de outra escola pública de
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subúrbio e se transferiu, vindo a estudar na Escola Azul em 2004:
Porque eu f ui para a Conferência em Br asília 45, j unto com a
Áurea 46, a minha escola não deu apoio nenhum, a escola de
Ricardo [de Albuquer que], de espécie alguma. A dona Ana se
propôs a me apoiar no que precisasse, pr opôs tudo e a mi nha
escola não fez nada disso. Aí eu descobri o proj eto de meio
ambiente aqui na escola: horta produtiva, desfile ecológico,
bosque, elaborando el e para melhorar as condições do bosque, da
quadra e tal. Aí me encantei, porque eu sou apaixonada por essas
coisas relacionadas a meio ambiente. [...] E apesar de eu ter me
encantado, depois eu fiquei apaixonada por que, quando você vê
uma coisa assi m, você fala: que maneiro! M as depois a gente vai
desiludindo, porque no princípio é uma grande ilusão. Só que eu
não me desiludi, eu estou apaixonada pel a escola porque todo
mundo aqui participa! É muito diferente! Todo mundo participa,
todos os alunos, a maioria, todo mundo assim, entre aspas. A
maioria participa, todo mundo quer saber, t odo mundo interessado,
todo mundo envol vido, apesar de sempre ter alguma coisa que não
dá certo. Mas, assi m, 90% sempre dá certo porque está todo
mundo interessado.
Para Olavo, pai de duas alunas, eleito representante do CEC
em 2004, não é surpresa o prestígio da Escola Azul, pois antes de
mudar de bairro suas filhas estudavam em outra escola pública que
ele considerava boa: “a escola pública é de boa qualidade, ela está
um
pouco
discriminada,
bastante
discriminada”.
Atualmente
morando no bairro vizinho de Madureira, ele pesquisou as escolas
da região e recebeu as melhores indicações da Escola Azul: “e de
fato eu vivenciei isto aqui. Eu conheci as outras escolas, eu tive a
oportunidade de conhecer, de visitar as outras escolas na procura de
vagas e quando eu cheguei na Escola Azul eu senti que as
informações que eu obtive foram exatas e verdadeiras”. Olavo vai
todos os dias à escola e ajuda em várias tarefas.
45
Ho u ve e m B r a s íl ia, e m no ve mb r o d e 2 0 0 3 , a Co n fe r ê nc ia Na c io na l so b r e
M e io A mb ie n te e a E sc o la Az u l fo i c o n v id a d a a e n v ia r u m r e p r e se n ta nt e e m
f u nç ã o d e u m tr a b a l ho o r ga n iz ad o p e lo s a l u no s d a 7 ª s é r i e , c o o r d e na d o p e la
p r o f e s so r a d e C iê nc ia s.
46
A E sc o la Az u l e n vio u u ma d e le gad a, a a l u n a Áu r e a , b r a nc a , e n tão n a 7 ª sér ie ,
p o r ter f e i to u m tr a b a l h o so b r e a p r o ve it a me n to d e a l i me n to s, q ue d e p o i s ger o u
um trab al ho d a s u a t u r m a sobr e me io a mb ie n te.
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184
Dia 4 de fevereiro de 2004
As 10:00h a escola começa a ter um grande movi mento de
várias/os responsávei s, em sua maioria mulheres (a quase
totalidade é negra). Não posso assegurar que são mães e pais.
Elas/es vão conversar com a direção sobre questões de matrícula
dúvidas sobre uniforme pedidos de troca de turno algumas/uns
responsáveis querem conversar com as professoras. Faz calor mas
o cli ma está tranqüil o. Os contatos parecem caminhar bem, sem
nenhum estresse, com as/os responsávei s conversando, sendo
ouvidos e esclarecidos sobre dúvidas. Não vej o nenhum estresse
por qualquer das par tes. As responsáveis vestidas de maneira
simples com calças e ber mudas de tecido si ntético, j eans ou saias
que se vêem bem usadas, algumas com filhos pequenos no colo ou
seguros pela mão, parecem não se sentir inti mi dadas com o espaço
escolar ainda que não pareçam total mente à vontade. Mesmo as
diretoras e a coordenadora pedagógica sendo atenciosas, elas têm
um ar s uperior. Percebe-se pelo olhar uma postura mal disfarçada
das representantes da escola, de estar em seu espaço sobre o qual
tem todo o controle e conheci mento. Minha impressão é que isto é
devidamente percebido pelas/os responsáveis, levando-as a terem
uma postura cautelos a, parecendo-me também respeitosa, com
nítida percepção da relação de poder ali estabelecida. Um
reconheci mento de que aquele espaço é daquelas diretoras. Não
percebi, apesar disto, nenhuma relação subserviente. Regra geral
há uma postura por parte das/os responsáveis de um certo
agradeci mento por estarem sendo recebidas e escutadas.
Mas o dia a dia da escola, os pequenos problemas e os
conflitos que surgem, são percebidos por aqueles que fazem o
contato diário com os/as responsáveis, como é o caso de Otília,
funcionária desde 2002 e que mora na escola, ao escutar as
reclamações de que a diretora quer botar a escola “igual a um
quartel”:
Eu falo, o tempo que vocês estão falando para eu escutar vocês
cheguem diretamente a ela e falem, o que vocês gostam, o que
vocês não gostam. Poxa, mas eles querem chegar a hora que
querem, querem ser atendidos na mesma hor a! D. Ana também não
está tendo tempo para atender todo mundo! É só ela aqui para tudo
e às vezes ela está sozinha, no horário então que elas querem ser
atendidas é o horário que ela está ocupada e a d. Arlinda, quando
está na 5ª CRE ou d. Aída está no [Colégio] Santa Mônica e ela
está sozinha. Nossa s enhora, as mães daqui são terroristas! As
mães aqui são terroristas! Teve uma aqui que falou que ia dar na
mi nha cara! Uma mãe! Porque eu não deixei ela subir com os
cachorros!
A partir da mudança de direção e dos PPPs, no início dos anos
1990, a escola melhorou muito a relação com a comunidade. Com a
185
superação da escola pichada e suja, o fim da evasão, a Escola Azul
tornou-se uma referência na região e bastante respeitada no bairro.
No entanto, comparando este período em que fiz observação, com o
período de 1999-2002, segundo Aída, a relação com a comunidade
já foi melhor. Oficinas oferecidas no ano de 2004, por exemplo, não
aconteceram e Aída não sabe explicar a razão.
Mas apesar do respeito da comunidade, ainda persistem
problemas a serem superados, como se pode perceber pela fala da
diretora adjunta Arlinda (46 anos), nascida e criada no bairro, na
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escola desde 1996:
Olha, eu acho que a escola, j á há bastante... mais de 10 anos, a
escola é vista hoj e na comunidade com respeito. Acho que todos
estão vendo a escola com respeito. A nossa escola acho que
conseguiu uma... um patamar , entendeu, de relação com essa
comunidade, de res peito. Eles têm muito respeito pelo noss o
trabalho, respeito pel as pessoas que trabalham aqui . Às vezes
encontramos al gumas dificuldades. Já tem uns dois ou três anos,
que a gente está encontrando um pouco de dificuldade de chamar
mais essa comunidade para a nossa escola ( grifos meus).
Os atritos, de certa forma normais no dia a dia da escola,
mostram, no comportamento e reação dos atores, que existem
problemas de relacionamento entre a escola e a comunidade que,
embora não afetando o respeito da mesma comunidade com a escola,
não se resumem às deterioradas relações entre a Escola Azul e a
Associação de Moradores, como se queixou seu presidente, que vê a
o papel da escola de outra maneira. Ele entende que a escola faz um
“bom trabalho pedagógico” mas tem problema com a comunidade.
Em sua visão o relacionamento poderia ser melhor:
Olha só, a Escola Azul é o seguinte, nós não tínhamos escola, até
porque foi uma das f alhas do governo estadual foi construir um
conj unto que tem 27 blocos, 4080 apartamentos, e não nos ter
deixado uma área de lazer, uma praça, não nos deixaram um
colégio, uma escola para que nós pudéssemos atender a própria
criançada que mora, que automaticamente vem se renovando no
bairro. Eu até... o que eu posso di zer da escola Azul, da direção da
escola Azul: nós não t emos uma parceria com a direção da escola
Azul. Eu acho que a escola vi ve... enquanto outros bairros, escola,
CIEP, vi vem em parceria com a comunidade, parceria que eu di go,
num dia hoj e, um domingo, por exemplo, deveria estar
186
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0114347/CA
acontecendo uma recr eação na escola, deveria ter um espaço na
comunidade, coisa que nós não temos, até por conta, sem querer
malhar, tanto que tem uma boa direção pedagógica, mas... par a
você ver, em outros lugares os muros estão caindo e aqui ela
pretende botar um muro do dobro da altura ali, que é para a
comunidade não parti cipar. Hoj e a gente tem lá um futebolzinho
de veterano que foi uma luta para cons eguir, até via ofício,
documento, e que ela embarrou. Quer di zer, se você tem uma
comunidade, que eu acabei de falar para você, que vi ve
ordeiramente, as pess oas se tratam como família, você tem uma
direção da escola que é fechada o tempo i nteiro, em que eu sou
obrigado, às vezes, a abrir a associação em dias de domingo,
feriado, porque o pessoal da vacinação da dengue não faz lá,
vacinação de cachorr o esse ano fez porque teve uma polêmica,
então o relacionamento é complicadíssi mo com a gente. Com a
direção da Escola Azul. Não di go nem... não posso direcionar que
sej a com a s ubdiretora, com a professora, eu di go é pela Ana,
enquanto diretora, por que o ter mo que eu posso usar é o comando
que ela dirige ali é uma coisa muito pessoal. Deixa de estar no
leque da comunidade.
A adjunta Arlinda, diplomaticamente, explica a situação:
tem a AMACOC, que é a Associação dos Conj untos de Oswaldo
Cruz que é j ustamente onde a escola está ins erida. J ustamente esta
relação que está um pouquinho truncada, com esse, com o novo
presidente que nós temos na associação, um morador do conj unto.
Ele j á foi presidente da associação e depoi s ele saiu. Ele tinha
uma ligação muito boa com a escola e eu não sei porque, eu acho
que ele... eu acho que ele confundiu um pouquinho essa relação de
presidente da associação de moradores, de morador mes mo da
comunidade. Eu não posso falar porque eu não moro nos
conj untos. E ele infelizmente se afastou um pouco da escola, el e
j á não está com a li gação tão grande com a nossa escola. Porque
ele tinha até uma parceria com a gente, ele estava sempre aqui. E
ele foi se afastando, até porque ele começou a achar que tudo que
ele pedisse de vaga [para aluno] nós teríamos que aceitar, sempre
atendê-lo. E nós não queríamos misturar isso com política. Se eu
cheguei ao meu li mite de vagas eu não vou poder atender,
infelizmente, mes mo sendo morador dos conj untos. Eu não posso
exceder uma portaria da secretaria. É isso que a gente tentava
mostrar para ele e ele não conseguiu [ent ender]. E ele foi, se
afastou um pouco da escola. Essa comunicação aí está meio...
Como a própria adjunta deixa perceber, não é uma questão
apenas de comunicação, mas tem algo que está relacionado à
concepção política subjacente. Com respeito aos pedidos de vaga, a
escola insinua que se estava fazendo uso político partidário destes
pedidos, além do fato de não existirem vagas pois a escola é muito
procurada e há que se respeitar a autonomia da escola.
A escola
187
afasta toda atitude e relação que ela considera “política” enquanto
adota um pragmatismo em suas relações. Ou seja, não aceita
relações
com
a
associação
de
moradores
que
tenha
alguma
conotação político-partidária ou que venha a discutir questões
políticas gerais. Por exemplo, não abre espaço para discussão do
problema da merenda, que desde 2003 e durante 2004, foi bastante
deficiente.
Ao
mesmo
tempo
realiza
“parcerias”
com
escola
particular e empresas. Todas estas atitudes são políticas, até quando
se diz que não se faz política. Não há pedagogia sem política
(Freire, 1998), a questão é de que política se trata.
De qualquer modo, a preocupação com o funcionamento da
escola
é
uma
característica
da
direção
que
agrada
às/aos
responsáveis. Quando me apresentei à diretora Ana para começar a
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observação, ela perguntou-me como e quando ia fazer a observação,
em que dia, hora etc. Respondi que queria ver a escola como um
todo, a entrada e saída dos alunos, o recreio, as salas de aula, as
atividades e pretendia começar no dia seguinte. Ela apressou-se a
me explicar que no dia seguinte eu “não pegaria a escola toda”
porque na 3ª feira havia uma falta de professores, por motivo de
doenças e maternidade, quatro professores não viriam, e na 4ª feira
era feriado, dia do professor. “Estou aqui há 15 anos e isso nunca
tinha acontecido!”, disse-me ela. Mesmo que não fosse exatamente
assim, o fato é que em quase um ano de observação vi raras vezes
alunos sem aula e, de modo geral, um funcionamento – no que tange
à
administração,
às
aulas
efetivamente
dadas,
à
presença
e
comprometimento da maioria dos professores – muito bom para o
padrão de escola pública de hoje. Para evidenciar isto, Ilma, a
professora P2 afastada de função que trabalhou em outras escolas,
faz a comparação:
Trabalhei na Barra da Tij uca, na escola Branca, achei um
espetáculo de escola, muito boa, muito bem diri gida. Escola de
zona sul, nesta época ainda tinha essas festas j uninas, sabe onde é
que a gente fazia as festas? Lá no Barra Country não sei o que lá,
em frente à praia. Aí saí dali fui para a Cidade de Deus, para a
escola Verde. Praticamente eu não cheguei a trabalhar lá. Só
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188
comecei o ano, quando eu fui pegar a tur ma pedi meu boné e fuime embora: tiroteio, você no meio da rua, ali mes mo na escola
Verde, uma coisa terrível ! Isso j á foi em 1989. Consegui ir para a
escola Amarela, ali mes mo no calçadão de Madureira. Era uma
escola muito difícil de você trabalhar porque é no centro de
Madureira, o comérci o todo ali, aquela bar ulhada, você não tem
espaço nenhum lá dentro, é só sala de aula. O pátio é muito
pequeno para a escola. Então era muit o difícil, era muito
complicado trabalhar lá. Aí fui para a escola Lilás, em Madureira,
fiquei lá um ano. Uma escola toda reta, não tem andares. Também
não tive muito envol vi mento com a escola porque eu fui lá só para
trabalhar um ano e s aí fora, pequena também, que a gente nem
pode fazer comparação e de lá fui para a escola Roxa [Piedade].
Aí eu posso comparar com a Escola Azul porque é grande também,
tem um mundo de alunos. Aí o que achei de diferença: na época
que eu trabalhei lá, a direção era muit o fraca em todos os
sentidos. Defeito noss o, que elegemos a direção, a gente tem que
chegar a essa concl usão, dar a mão à pal matória, que nada
funcionava. Comparando com a Escola Azul devia receber o
mes mo dinheiro ou talvez até mais pois me parece que tinha mais
alunos e nada aconteci a lá... Lá na escola Roxa. Não tinha essa de
chamar a comunidade para al moçar, não tinha essa coisa da
disciplina, que eu vej o a Ana aqui, todos que estão na direção da
escola. O professor fazia o que queria na sala de aula, se quisesse
ficar lá dando aula, se não, estava fora, ia para o corredor, ia para
a secretaria conversar, fumar, tomar café e a turma ficava pra lá.
Então não havia es sa coisa da direção estar chamando a
responsabilidade e chamando a comunidade também. Sabe que a
gente está sendo paga com o dinheiro deles. Então a maior parte
das direções de escol a que eu passei era assim. Porque muitas
direções ainda acham que a comunidade dentro da escola é para
vi giar. Mas a comunidade vi gia dentro ou fora da escola.
Um
acontecimento
de
importância
nas
relações
escola-
comunidade foi a realização do brunch no final de novembro de
2003. Um almoço com uma série de atividades organizadas pela
escola, quando se convida a comunidade do bairro a participar, além
dos/as próprios/as alunos/as. Este nome em inglês virou moda, para
o
que
no
Brasil
se
chama
almoço
e,
quando
se
faz
comunitariamente, dá-se o nome do prato a ser servido: feijoada,
angu à baiana, macarronada etc. Há mesmo uma tradição destes
eventos nos subúrbios cariocas. Mas
não foi uma iniciativa
estritamente da escola. Esta atividade está na proposta da SME,
dentro
do
“Projeto
Família-Escola”,
que
tem
como
objetivo
“integrar os responsáveis pelos alunos com os profissionais da
Educação e, para isto, ele funciona sempre aos sábados com
189
atividades
esportivas,
oficinas
de
Arte,
de
cabeleireiro
e
maquiagem, oferecendo oportunidade para todos participarem” 47. Há
uma verba específica da SME para esta atividade.
Dia 29 de novembro de 2003
Na porta do pátio, a adj unta só deixa entrar os adultos que fi zeram
inscrição.Na sala de dança, a professora Eneida dá aula com
músicas que fazem sucesso nas rádios, variando os gêneros
musicais, mas escolhendo aqueles que são usados para “dança
contemporânea”, como o “axé”.No pátio, os animadores culturais
da prefeitura, também colocam músicas que tocam nas rádios, que
incluem rock nacional, funk, sambas , música baiana etc. O
ani mador ao microf one, procura ani mar aqueles que estão
chegando a participarem das oficinas: “tem cabeleireira lá em
cima. Vocês vão sair daqui igual à Xuxa!”.
Apesar da chuva houve um bom comparecimento de pessoas.
A maioria expressiva era de mulheres. A mesma maioria podia ser
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atribuída à cor negra dos participantes. As oficinas oferecidas eram:
dança contemporânea, relaxamento, informática, enfeites de natal,
enfeites de presente, capoeira, lambaeróbica, dança de salão. Havia
um serviço de creche funcionando, com as professoras da escola
trabalhando (e cada uma sendo remunerada com R$ 50,00). Em
termos de atividades para as crianças tinha cama elástica, body
jump, cesta de basquete, ping-pong, além das brincadeiras feitas
pelos animadores culturais.
É uma atividade em que participam as mães, pais, tias, tias,
avós. Observei que praticamente não havia alunos das 7ª e 8ª séries,
sendo o contingente de crianças de turmas da 5ª série para baixo em
quase a sua totalidade. Na sala do auditório foi realizada a oficina
de lambaeróbica com grande sucesso. O professor de uns 30 anos,
de porte atlético, fazia brincadeiras com as/os participantes, a
maioria de mulheres. Ao mesmo tempo imprimia um ritmo puxado
na atividade. O clima era de descontração, com música do tipo
lambada mixada com batida techno. Na sala de informática, a
maioria era de homens, o único lugar que havia maioria do sexo
47
C f. r e p o r t a ge m “ E sco l a no sáb ad o ? ” , i n Re v i st a Esco la e Fam íl ia , SME , Ano
n °1 , n °1 , I n ve r no 2 0 0 3 , p . 1 4 .
190
masculino. A dança de salão era a atividade mais equilibrada na
relação de gêneros.
O almoço foi uma feijoada, um tipo de comida muito querida
pelos cariocas e de grande sucesso no subúrbio, principalmente em
atividades como esta. Ao contrário do cardápio do dia a dia da
escola, em que é proibido a feijoada, por ser inadequada às crianças
como alimento sadio em função da gordura e temperos, nesta
atividade a diretora optou por este prato. O motivo, alegado por ela
é que, da verba que a escola recebe para fazer esta atividade, não
pode ser gasta em algo que faz parte do cotidiano da escola, para
evitar possíveis desvios ou algo do gênero, explicou-me a diretora.
“Não pode ser gasto em nada que a escola consome no seu dia a
dia”. A atividade foi um sucesso, mas não voltou a se repetir em
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2004.
4.2.6
Possibilidades e realidades do protagonismo juvenil: o
grêmio, o jornal e o núcleo de adolescentes
“e u q uero mel hor ar a e s cola”
O
grêmio
estudantil
é,
em
tese,
um
dos
espaços
de
protagonismo juvenil nas escolas. Na Escola Azul a entidade existe
e tem processo eleitoral. Para Aninha, 7ª série, 13 anos, diretora do
grêmio, a entidade tem o “papel de ajudar a escola, dar umas idéias,
ver o que os alunos estão precisando, dar opiniões”. O que a fez
participar do grêmio foi “a escola, o jeito, eu acho assim, eu fiquei
muito apegada à escola, não sei, com isso, eu quero melhorar a
escola, quero estruturar bem mais ela do que ela é”. Para Alice, 8ª
série, 14 anos, também da diretoria do grêmio, “a gente está com
novas propostas, novos projetos, em relação à parceria para a
cidadania, entre CEC, o Conselho Escola Comunidade, o Grêmio
Estudantil, juntos num núcleo só, que é a lição de ser cidadão”. No
caso desta aluna 48, que se destaca como estudante, ela chegou na
48
Al ice fo i d ele g a d a , p o r o u tr a e s c o l a o nd e e s t u d a v a , à Co n f e r ê n c ia Na c io na l
so b r e M e io Amb ie n te, r e a l iz a d a e m o u t ub r o d e 2 0 0 3 e m B r a sí li a.
191
escola no início do ano de 2004, e em abril foi eleita para o grêmio.
Diferentemente de outros grêmios onde a presença de alunos mais
velhos, de cursos do Ensino Médio e de relações com os diferentes
grupos do contexto local e da sociedade mais ampla, levam a uma
postura mais crítica e independente da direção, na Escola Azul o
grêmio funciona muito ligado à direção da escola, para auxiliar na
melhoria
da
escola.
Seu
protagonismo
é
limitado,
ficando
estritamente dentro da “fala pedagógica da escola”, como diz a
diretora Ana.
O jornal O Tagarela, com seis páginas tamanho ofício,
fotocopiado,
alcançou
sua
quarta
edição
em
set/out/2003.
Coordenado por uma professora de Português, o jornal da escola
tem uma equipe de 16 estudantes da 5ª a 8ª série e fala sobre
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assuntos
diversos:
gravidez
na
adolescência,
tabagismo,
tem
anúncio do NAM chamando para discutir sobre sexo, dicas de filmes
e livros, poemas, sessão de classificados de paquera, declarações
para mães e professoras, uma entrevista com a diretora Ana. Nesta
entrevista a diretora fala sobre alimentação sadia, avaliação,
reforma da previdência e ensino público, abordando estes dois
últimos itens de forma genérica 49. Durante 2004 não tive notícia de
nova edição.
O Núcleo de Adolescentes Multiplicadores – NAM é uma
política da SME para protagonizar jovens estudantes da rede. É um
espaço de discussão, realização e multiplicação de propostas e
atividades por parte dos/as alunos/as, como o estudo e apresentação
49
Ne st a ed ição, fo ra m se t e per gunt as no to ta l à d i retora Ana, aq ui reprod uzida s
as d u as úl ti ma s, q ue são as s e gui n te s (O Ta g a re l a , nº 4 , p . 6 , s e t /o ut /2 0 0 3 ) :
A sen h o ra c o n c o rd a c o m e ssa r e fo rma d a P re vid ê n c ia ? Go s ta ría mo s q u e a
sen h o ra n ã o re sp o n d e s s e c o mo fu n c io n á ria , ma s si m c o mo c id a d ã B ra si l ei ra .
An a – E nq ua nto c id a d ã , a c ho q u e d e v ia m p r e o c up ar - se c o m o s ma r a j ás, o s
sa lár io s d o s p ar la me n ta r es, as d up la s ap o se n ta d o r ia s, e não é, co m c e r tez a, o
traba l hador, aq uel e que recebe o sa lário d e R$ 2 40,00 que o ner a a pre v i d ência .
A re fo r ma d e v e r i a a c o n t e c e r d e c i ma p ara ba i xo.
S e a sen h o ra t iv e s se o u tiv e r c o n d içõ e s, c o mo p ed a g o g a , o q u e a s e n h o r a fa ria
p a ra m elh o ra r o e n s in o p ú b lico ?
An a – Ac ho q ue o e ns ino va i be m. O pro f es s o r é exc ele nte, co mp ro me tido ,
r esp o n sá v el e te n ho ma i s d e mi l q ua lid ad es p ar a nó s. O s r e sp o n sá ve i s p r eci sa m
ter o s fi l ho s c o mo o b j eti vo d e v id a , a cr e d it ar e m na e s c o la , e nt e n d e r q u e
mu d a r e mo s e ste p a í s a tr av é s d a e d u c a ç ã o . E sta ser á a ge r a ç ão q u e e nc a mi n h a r á
o f u t ur o d e s te p a í s.
192
de trabalhos sobre drogas, sexualidade, gravidez na adolescência,
fumo e vários problemas que atingem os jovens. Incluem-se também
ensaios e apresentações de dança ou outra atividades artísticas que
forem por eles/as escolhidas. O NAM de uma escola deve ter em
torno de 30 estudantes, coordenado por um/a professor/a capacitado
para tal fim, sendo o tempo empregado por ele/a neste trabalho
incluído em sua carga horária semanal.
Segundo a Secretaria Municipal de Educação 50 (Nuevamerica,
mar/2004, p.20), os Núcleos de Adolescentes Multiplicadores –
NAM foram criados
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no sentido de garant ir espaços de discussão democrática, que
levem a uma postura crítica e reflexiva acerca das questões de seu
interesse, com ati va participação dos j ovens protagoni zando ações
que expressam seus di reitos e deveres perant e a sociedade.
Inicialmente
a
idéia
era
desenvolver
ações
que
possibilitassem fazer reflexões sobre a temática da sexualidade, mas
o projeto foi se ampliando e se tornando mais complexo, refletindo
sobre
valores,
preconceito,
não
e
abrangendo
apenas
temas
ligados
à
sobre
questão
discriminação
da
e
sexualidade
(Nuevamerica, mar/2004).
De
acordo
com
Helena
Altmann
(2005) 51,
que
estudou
educação sexual numa escola pública da zona sul do Rio de Janeiro
e privilegiou as observações de seu Núcleo de Adolescentes
Multiplicadores, na escola observada, na prática a multiplicação não
acontece, resumindo-se na feitura de cartazes sobres os temas
estudados. Segundo ela, baseada em informação do grupo de
professores
50
coordenadores
dos
núcleos,
é
significativa
a
Os N AM fo r a m c r ia d o s e m 1 9 9 5 p e la S M E / DGE D/ DE F – P r o j e to s d e
E x te n sã o – M e io Amb ie nt e e Sa úd e e d a s Co o r d e n a d o r i as R e gio n a i s d e
E d u c a ç ã o – C R E , p r e o c up ad o s c o m u ma p o p u l a ç ã o d e 2 4 0 mi l j o ve n s
a d o le sc e nte s ma tr ic ul a d o s na s 3 7 0 e sc o la s d e 5 ª a 8 ª d o E ns i no F u nd a m e n ta l d o
mu n i c íp io d o Rio d e J a ne ir o . S ã o 9 3 n úc l e o s e m 8 9 e s c o la s e a t e nd e m a c e r c a
d e 2 . 8 0 0 a l u no s /a s. C f. N ÚC L E O S d e Ad o l e s c e nt e s M u lt ip lic a d o r e s:
c o n s tr ui nd o c a mi n h o s. E q u ip e d a SM E / RJ . N u evame r ica , nº 1 0 1 , p .1 8 -2 3 ,
ma r ç o /2 0 0 4 .
51
Hele n a ALT M AN N. V erd a d e s e p e d a g o g ia s n a e d u c a ç ã o s e x u a l e m u ma
esco la . Rio d e J a n e ir o , 2 0 0 5 . 2 2 5 p . T ese ( Do uto r ad o e m E d u c a ç ã o ) –
Depar ta me n to de Ed uc ação. P o nt i fí ci a U ni v e r sid ade Ca tól ica do Rio d e
J ane ir o .
193
preponderância de meninas e o número de participantes gira entre
10 a 15 alunos/as, havendo grande evasão.
O NAM da Escola Azul 52, segundo sua coordenadora, a
professora de História Adriana, tem cerca de 25 alunas e alunos em
cada turno, da 6ª a 8ª série, sendo a maioria meninas, reunindo-se
uma vez por semana em horários trocados, ou seja, estudantes do
turno da manhã reúnem-se à tarde e aqueles que são da tarde reúnese pela manhã. Comparando minhas observações com o estudo de
Altmann (2005), confirmo a participação majoritária das meninas e
uma pequena evasão, de acordo com a coordenadora do NAM. As
atuações
e
preocupações
do
núcleo
são
fundamentalmente
pedagógicas, funcionando como auxiliares da pedagogia escolar,
com
uma
característica
mais
livre,
mas
não
completamente
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autônoma.
O interesse em participar se dá, segundo algumas/uns das/os
adolescentes do NAM da Escola Azul, no acesso às informações que
as atividades possibilitam, embora admitam que existam aqueles/as
que buscam a brincadeira e a bagunça, já que o núcleo promove
atividades fora da escola e às vezes no horário de aula. Mas os/as
próprios/as bagunceiros/as, após perceberem que não têm muito
espaço para isto passam a participar seriamente ou saem do grupo,
informam os adolescentes contatados.
Assisti a uma apresentação de trabalho do núcleo da escola no
Sesc de Madureira em outubro de 2003. O SESC tem excelente
espaço
e colocou
à disposição
toda sua infra-estrutura para
apresentação dos trabalhos. Enquanto os grupos preparavam seu
material, no sistema de som montado para o evento, a maior parte
das músicas tocadas era samba de vários estilos, tornando a
atividade mais solta e alegre.
As/os alunas/os da Escola Azul, entre 40 e 50 estudantes,
parecem gostar destas atividades pois, naquela ocasião, estavam
agitados e participativos, organizando seus murais com os trabalhos
52
O núc leo faz par cer ia s co m o SES C , Od ebret c h e gr upo P el a V ida.
194
e atentos às orientações da coordenadora. Aquela era mais uma
atividade conjunta de várias escolas da CRE da região que têm
NAM, reunindo neste dia em torno de 11 escolas. Os trabalhos
apresentados neste encontro, colocados num mural feito pelos
alunos da Escola Azul, são sobre tabagismo. Este é o tema que os
alunos trabalharam em setembro daquele ano. Outras escolas
presentes também apresentaram este mesmo tema, além de drogas,
idosos etc. Adriana explicou que os temas são escolhidos pelos
alunos da escola. O primeiro tema escolhido quando o núcleo
começou foi abuso sexual, apresentado em outro encontro.
Em termos artísticos, o núcleo tem um grupo que ensaia street
dance, um tipo de música “de rua” dos Estados Unidos 53, para fazer
apresentações na própria escola ou fora dela. O grupo (10 meninas e
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2 meninos no dia da observação) é ensaiado por dois ex-alunos, que
criam as coreografias e fazem este trabalho na base do voluntariado.
A participação não é de todo o NAM e há uma certa alternância
entre os participantes, segundo a coordenadora.
4.2.7
A avaliação institucional
“a e sco la é para todo s mas não e st á prep arada p a ra todo s”
No final do segundo semestre de 2003 foi feita uma avaliação
institucional 54 da escola. Foi enviado um relatório para a escola, ao
qual tive acesso através da coordenadora pedagógica. Tratava-se de
um diagnóstico da rede municipal a partir de uma amostra de 10
escolas por área geográfica, cruzando com os níveis de condição de
vida da população que foram divididos em três. Apesar de não
53
Se g u nd o a c o o r d e nad o r a o n úc le o s ur g i u a p ó s u m c o nta to d a ON G P ri d e
( o r g u l ho ) d o s E st ad o s U nid o s, q ue p r o p ô s c o o r d e n a r u m gr up o d e a l u no s q ue
d is c ut is se m a t i vid a d e s c o n tr a o u so d e d r o ga s, ma s p r o p u n ha q u e a e sc o la
p ag as s e o s i ns tr uto re s e st ad u nid e n s es. I sto não fo i a cei to e, co mo j á e x is ti a a
p o lít ic a d a S M E d e n úc le o d e a d o l e sc e n te s, a p r o ve ito u - s e o ma ter ia l d e i xa d o
p ela ON G, q ue t i n ha CD e víd eo co m a mú si ca B o u n c e ( b a la n ç o ) p a r a a s
a ti v id a d e s, o r i g i na nd o o gr up o d e st re et d a n ce.
54
A p e sq ui sa fo i e nc o me nd a d a p ela S M E , c o m o o b j e ti vo d e fa z er u m
d ia g nó st ico p o r a mo str a d a r e d e , p a r a o r i e nta r f u t ur a s p o l ít ic a s. Fo i r e a li z a d a
p e lo Gr up o I d é ia , c o ntr atad o p e la SME . Se g u nd o in fo r ma ç õ e s d a d ir e to r a Ana ,
tr a t a - se d e u m gr up o d e a t uaç ão i n ter n a c io n a l, d ir i g id o p o r Cé sar Co ll .
195
especificar o que entende por “contexto sociocultural”, o relatório
define a Escola Azul como pertencente ao contexto sociocultural
“médio-baixo”. As provas eram de domínio de conteúdos de
Matemática
e
Português,
além
de
avaliarem
as
“habilidades
metacognitivas”, as “estratégias de aprendizagem”, as “atitudes e
valores”,
a
“ação
da
escola
sob
a
ótica
do
aluno”,
o
“desenvolvimento socioemocional”, e a “percepção dos alunos sobre
a instituição”. Todos estes itens eram relativos ao início e fim do
segundo segmento, ou seja, à 5ª e à 8ª séries. Foram aferidos através
de questionários a “percepção das famílias sobre a escola e o
processo de aprendizagem”, a “percepção dos professores sobre os
processos da escola” e a “percepção dos professores sobre processos
de sala de aula”. Em uma reunião do Centro de Estudos Integral os
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resultados foram apresentados a todos professores presentes, apesar
das recomendações do relatório de certas “precauções” para evitar
“desconfortos” 55.
12 de maio de 2004
Aída separou as/os professoras/es por grupo e distribui um
documento sobre a avaliação de conteúdos de cada área de
conheci mento ( matemática e português) e de outros temas
avaliados. Estes documentos vieram da SM E e foram elaborados
pelo Grupo Idéia, que fez pesquisa na rede no segundo semestre
de 2003 para fornecer um diagnóstico que permitisse uma
avaliação da rede municipal de educação. Como a escola estava na
amostra, recebeu o rel atório dos seus dados. O professor Sobrinho,
de Educação Física, aponta um erro no resultado de um item da
pesquisa: os/as alunos/as da Escola Azul responderam
negati vamente, quase 90%, à per gunta “você maltrata seu colega?”
e também da mes ma f or ma à per gunta “você se sente maltratado
por algum colega?”. O professor Sobrinho diz que isto é o que
mais acontece na escola. A professora Adriana, de História,
explica porque a resposta foi negati va: as crianças acham nor mal
colocar apelido, xingar, chamar de burro, negão etc. As crianças
entendem maltratar apenas bater, brigar e machucar. Os resultados
foram os seguintes, de acordo com área do conheci mento:
- a escola e o conhecimento de português: a 5ª série apresenta boa
aprendizagem, aci ma da média das escolas do contexto
sociocultural. Na 8ª série os/as alunos/as têm boa interpretação
mas os conheci mentos de sintaxe estão abaixo dos 20% da prova.
As professoras que leram o relatório chegaram à conclusão que
tem al guma coisa errada no trabalho com os conteúdos;
55
C f. R e la tó rio I n st it u c io n a l – 8 ª s é r i e d o E n si no F u nd a me n t al
No ve mb r o /2 0 0 3 , Rio d e J a ne ir o : I d é ia E d içõ e s S M , 2 0 0 4 , 6 2 p . mi me o .
–
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196
- a escola e o conhecimento de matemática: na 5ª série os/as
alunos/as estão abaixo da média de seu cont exto sociocultural. As
professoras chegaram à conclusão que o que é mais trabalhado
com os alunos é pouco assimilado. Na 8ª série estão acima da
média do contexto sociocultural;
- a escola e o conhecimento metacogniti vo: na 5ª e 8ª série a
escola esteve nos mes mos ní veis das escolas do mesmo contexto,
mas notas inferiores nos blocos de metacompreensão e consciênci a
das estratégias. Os/as alunos/as obtém conheci mento mas não
sabem relacionar, pensar autonomamente. Aída relativiza, porque
a obtenção destes dados foi em situação especial: os alunos
respondiam o questi onário sem dar i mportância, porque não
refletia em nota, ou sej a, não levaram a sério responder os
questionários;
- a escola e as est ratégias de aprendizagem: os alunos têm
interesse maior em Geografia, História, Educação Física e
Infor mática. Têm pouco interesse em Português e Língua
estrangeira;
- a escola e atitudes e valores: tolerância (racis mo, xenofobia,
preconceitos) está pior que outras escol as, ou sej a, é mais
intolerante. Quanto ao gênero, o feminino está com melhores
resultados. Igualdade entre os sexos, a escola está melhor que a
média. Quanto às drogas, o consumo está acima da média na 5ª e
8ª séries, e o conheci mento está abaixo da média. Na saúde, os
hábitos saudáveis estão abaixo da média;
- a ação da escola e a ótica dos alunos: a escola está dando
atenção à questão das drogas e meio ambiente.
Os professores fazem uma breve avaliação. Ol ga, do Ciclo, diz:
“parece que o que eles aprendem na escola só serve para a escola
e não para a vida”. Aí da procura chamar atenção de que “isto está
relacionado às práticas pedagógicas”. Adriana: “eu fiquei muito
preocupada com a questão do racismo”. Isabel, da sala de leitura:
“é verdade, eles são negros , mulatos , mas criticam os outros por
serem negros”.
- a percepção dos alunos sobre a instituição: não foi avaliado na 8ª
série e na 5ª série o resultado foi acima da média, mostrando-s e
satisfeitos com a escol a;
- a escola e o soci oemocional: no relacionamento familiar, a
família quase nunca aj uda a estudar, mas a maioria dos alunos
consegue fazer o dever de casa. As professoras fazem uma
observação quanto a is to: “de qualquer j eito”.
Isabel: “a escola é par a todos mas não está preparada para todos”.
Aída: “nem todo mundo tem a capacidade de obter o letramento,
mas tem outras potencialidades que a escola não encaminha”.
Al guns aspectos da avaliação dos resultados da pesquisa não
foram possí veis de registrar.
Quero ressaltar alguns aspectos não mencionados ou não
aprofundados na reunião. O primeiro deles é quando são analisados
os processos da escola como um todo: são as percepções dos/as
professores/as, onde o item “atitude diante da diversidade” – que
reflete a postura ante a heterogeneidade da escola – mereceu a
197
menor pontuação dentre todos os demais, com pior situação para o
segmento dos Ciclos à 4ª série, por ter ficado abaixo da média do
contexto 56. Quanto aos processos de sala de aula: também de acordo
com a percepção dos/as professores/as, em aparente contradição, a
pontuação está bem melhor e acima da média do contexto,
excetuando-se na Educação Infantil. O que isto pode indicar é que
nas percepções dos/as professores/as a escola como um todo tem
dificuldades de lidar com a heterogeneidade mas eles, em sala de
aula, conseguem lidar bem com a questão. É que a “diversidade” em
questão se refere às diferenças de aprendizagem – heterogeneidade
– entre estudantes e não à diversidade cultural e étnica. Esta tem
apresentado
problemas,
como
foi
diagnosticado
na
pesquisa,
ressaltadas pela preocupação da professora de História e da sala de
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leitura, mas não debatidas na reunião. Mas como um todo, a
avaliação da escola é positiva e acima da média do seu contexto
sociocultural.
4.2.8
A questão racial na Escola Azul
“tia , p r e to é p ala vr ã o ? ”
É muito forte a presença negra na escola. Estão presentes
também muitas crianças fruto de relações inter-raciais, pelo tom da
pele, tipo de cabelo, pelos fenótipos diferenciados observados entre
as/os responsáveis e as crianças que acompanham. Várias alunas
negras usam penteados afros. Embora não fazendo levantamento
estatístico através de censo ou amostra, visualmente é impactante a
maioria negra nesta escola. Para uma escola com uma participação
tão alta de estudantes negros/as, a questão racial toma uma
importância ainda maior.
Como
aponta
a
pesquisa
de
Candau
(2003a),
existem
evidências de processos de discriminação, às vezes sutis, nas
56
O u s e j a, n a s e s c o la s d o me s mo c o nt e xto , o ite m “ a ti t ud e d ia n te d a
diver sidad e” rec ebe a meno r po nt uação e a E s co la Az ul co mo um todo t e m sua
me no r po nt uação ( fic a ndo ai nd a pior no pri me i ro se g me nto) . No s d e ma is it e n s
a e sc o l a t e m p o n t uaç ão a lt a.
198
práticas sociais e educacionais.
No entanto, o peso ideológico do
discurso da igualdade na cultura escolar acaba por não reconhecer
estes processos, como dizem Moreira e Candau (2003, p.163-164)
porque “já está impregnada por uma representação padronizadora da
igualdade – ‘aqui todos são iguais’, ‘todos são tratados da mesma
maneira’ – e marcada por um caráter monocultural”.
O
silenciamento da questão pela cultura escolar/cultura da escola é
um fato na Escola Azul, evidenciado, por ex emplo, pelo resultado
da avaliação institucional, onde o problema apareceu para a
surpresa das professoras que estavam na reunião do Centro de
Estudos: “eu fiquei muito preocupada com a questão do racismo!”,
disse Adriana, professora de História e coordenadora do NAM,
acompanhada por Isabel, da sala de leitura, “é verdade, eles são
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negros, mulatos, mas criticam os outros por serem negros!”.
Contudo, o assunto não passou destas observações e exclamações.
Gomes (2001) lembra que o reconhecimento do direito à
diferença – que inclui as diferenças raciais – está na base da
construção de práticas democráticas e não preconceituosas. Assim, à
pergunta: que caminhos seguir para que a questão racial mereça
trato pedagógico e destaque na política educacional? Ela responde:
“a primeira atitude é
a revisão dos
valores e dos
padrões
considerados aceitáveis por todos/as dentro da instituição escolar”
(Gomes, 2001, p.87).
Outro exemplo, de como estas questões aparecem e não há
uma problematização, ocorreu num momento de uma observação
involuntária. Enquanto fazia anotações na sala dos professores,
ouço a professora Aline, da sala de Educação Infantil ao lado,
chamar atenção de vários alunos pelo nome, até que chega um ponto
que ela berra bem alto para ficarem quietos. Minutos mais tarde uma
aluna pergunta: “tia, preto é palavrão?”. A professora não entende e
pergunta à aluna: “preso?”. A aluna repete, ajudada por vários/as
colegas: “preto!”, e explica porque pergunta: “a Fulana disse que
preto é palavrão”. A professora diz simplesmente que “não” e
continua a aula normalmente. Houve um evidente silenciamento
199
(Moreira e Candau, 2003) do problema. A gravidade deste fato está
em que a turma tem maioria significativa de negros. Situação
semelhante, sem problematização, aconteceu na aula da turma da
fase final do Ciclo de Formação, descritas na observação de aula.
A direção da escola, tampouco está atenta a esta questão.
Certo dia, ao chegar na secretaria ouço comentário da diretora Ana
com outra professora sobre o caso do garoto que passou a mão nas
meninas no dia anterior. Ao me interessar pelo assunto, Ana conta
que conversou com a avó, moradora do conjunto habitacional ao
lado da escola. Fico sabendo que a mãe trabalha numa companhia de
aviação e pretende fixar residência nos EUA, pois está se casando
com alguém que mora lá há 13 anos. A mãe está com tendinite e por
isso está de licença, estando neste momento nos EUA. A situação da
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família do garoto, em termos financeiros, é boa. O menino tem laptop, acesso à Internet, enfim, uma boa condição de renda. Ele veio
ano passado para a escola, porque a mãe alegou que na outra escola
pública não havia organização e os garotos batiam nele. O menino
ainda estudou no Santa Mônica, de onde foi expulso. Até então o
caso era contado como mais um dos problemas cotidianos com
alunos/as. Mas a diretora quis dar um detalhe do caso: ela se
aproxima, inclinando-se para mim com a mão ao lado da boca, como
se fosse contar uma notícia ruim que as pessoas não pudessem
saber, para dizer, abaixando o tom da voz: “a avó é negra!”. Então
volta à posição normal e acrescenta que deve ter se casado com um
branco porque a filha dela, mãe do garoto, é “mulata clara”.
Segundo Ana, o aluno é “claro” e “tem olhos verdes”.
O fato de a diretora falar baixo, como se falasse algo errado
ou proibido, quando diz que a avó do aluno é negra, por ser ela uma
educadora e estar num espaço privilegiado de educação que é a
escola,
constitui
uma
expressão
preconceituosa
significativa 57.
Considerando sua posição como diretora, sua liderança inconteste e
57
C erto dia, ao c he ga r à s 7:00 h p ara fazer ob ser va ção, a s di retor as bri n cara m
c o mi go d iz e nd o q u e e s t av a c o m c a r a d e so no . Ao e xp l ic a r q u e ti n ha id o a o
sa mb a na no i te a nt erior , a d ire tora Ana bri n co u co mi go : “Ah! Es tá c he ir and o a
ne g u i n ha ! ” .
200
o peso de sua influência, podemos considerar como esta temática é
silenciada e não problematizada na Escola Azul. A atitude da
diretora não reflete uma racionalidade perversa, mas é fruto daquilo
que Rossato e Gesser (2001, p.11) explicam como branquitude 58:
“uma
consciência
silenciada
‘quase’
incapaz
de
admitir
sua
participação provocante em conflitos raciais que resiste, assim, em
aceitar e a relacionar-se com a experiência dos que recebem a
violação do preconceito”.
Preocupados com questões como estas, o governo federal
elaborou as Diretrizes Nacionais para a Educação das Relações
Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira
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e Africana (Brasil, SEPPIR/MEC, 2004, p.14-15), que afirmam:
As for mas de discri minação de qualquer natureza não têm o seu
nascedouro na escol a, porém o racismo, as desi gualdades e
discriminações correntes na sociedade perpassam por ali. Para que
as instituições de ensino desempenhem a contento o papel de
educar, é necessário que se constituam em espaço democrático de
produção e di vul gação de conheci mentos e de posturas que visam a
uma sociedade j usta.
Cavalleiro (2001), refutando a idéia de que falar de racismo
em ambiente escolar seja lamentação 59, mostra que é importante dar
visibilidade a esta problemática que atinge crianças e adolescentes
negros. Ela afirma que “nas escolas, o racismo se expressa de
múltiplas formas: negação das tradições africanas e afro-brasileiras,
dos nossos costumes, negação da nossa filosofia de vida, de nossa
posição no mundo... da nossa humanidade” (Cavalleiro, 2001, p.7).
58
O ter mo o r i gi n a -s e d a p a la vr a i n gl e s a wh it en es s, ut il izad a no s es t ud o s de
rela çõe s rac ia i s no s E st ados U nido s e I n gl at erra, e ma is r ece nte me nt e no
B r as il. T a mb é m pod e s er tr ad uzido co mo b ra n q u id a d e, c o n fo r me o ver b e t e
b ra n q u id a d e 1 b r a nc ur a ( ‘q ua lid a d e ’) 2 c o nd içã o d a s p e s so a s d e r a ç a b r a n c a 3
p.ext. id eolo gia dos i nd ivíd uo s da raça bra nc a p.opos. a n eg ri tu d e 3 .1 a ti t ud e
p r eco nce it uo sa d e q u e m s e a c ha s up er io r p o r se r b r a n co . C f. D i c io n á rio
Ho u a i s s d a l ín g u a p o rtu g u e sa , 2 0 0 1 .
59
Cer to d ia , na sa la d o s p r o f e s so r e s, c he g a u m v e nd e d o r d e li v r o s e mo n t a u ma
expo s ição. A ma ior ia sã o livros i n fa nt i s e não t e m se lo de aval iaç ão dos li vr o s
didát ico s do ME C. O s li vr o s são “a t ual iz ado s” porq u e i n cl ue m Lul a co mo
pres ide nt e. Ma s não i ncorpo r a m vi sõ e s cr ít i cas at uai s. U m C D- R OM, p o r
e x e mp lo , a co mp a n h a o s fa sc íc ulo s c o m i ma ge n s d e p e r so na l id a d e s d a hi s tó r i a
d o B r a si l e te m p o u c a s i ma g e n s e r e fer ê nci a s a o s n e gr o s, a não s e r a d e
se mp r e: es cra v idão.
201
O silêncio agrava-se também pelo fato da existência de uma
crescente
produção
especificamente
no
acerca
campo
da
da
questão
Educação,
racial,
como
inclusive
demonstra
o
levantamento de Miranda, Aguiar e Di Pierro (2004) 60, que discute e
informa sobre a problemática, não se constituindo um tema pouco
debatido nos dias de hoje.
Quando se apresentou o relatório da avaliação institucional na
reunião do Centro de Estudos, um professor apontou como erro as
respostas negativas das crianças à perguntas como “você maltrata
seu colega?” (ver anotações do diário de campo do dia 12 de maio
de 2004, no tópico “avaliação institucional”), dizendo que isto é o
que mais acontece na escola. Algumas professoras explicaram
porque a resposta foi negativa: as crianças acham normal colocar
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apelido, xingar, chamar de burro, negão etc. As crianças entendem
maltratar apenas bater, brigar e machucar. Este é um dos exemplos
que mostram a dificuldade de se trabalhar preconceito racial, tanto
social quanto educacional, como explica Candau (2003a, p.29),
“ninguém se considera agente ativo de atitudes e comportamentos
discriminatórios e racistas”.
A população negra não é só vítima do racismo num plano, o
de
sofrer
suas
conseqüências,
mas
também
em
outro,
como
reprodutora dele (Cavalleiro, 2001). A escola, ao não problematizar
– claro está que deve fazer muito mais do que isto 61 – atitudes
preconceituosas e racistas, mesmo quando estas se apresentam de
formas sutis, acaba por reforçar os mecanismos de racismo e sua
reprodução, como mostram Oliveira e Miranda (2004), acarretando
perda da auto-estima que as crianças já sofrem na prática social. A
60
E st e le v a nt a me n to a p o n ta ma is d e 5 0 0 te x to s , e nt r e l i vr o s, te s e s, d i ss e r ta ç õ e s
e art i go s q ue são re fer ê ncia no s es t udo s da s re la ções rac ia is e da ed uc aç ão.
61
Ozer i na Vic to r d e O LI V E I R A e C la ud ia MI R AN D A, e xa mi n a nd o a
c o n s tr uç ã o d o te x to d a p o lít ic a c ur r ic u la r d a E sc o la Sar ã, o p r o j e to p o lít ico p e d a gó gic o d a r e d e d e e n s i no mu n i c ip a l d e C u iab á - M T , e m q ue o d i s c ur so é
u ma p r o p o s ta mu l ti c ul t ur a l, mo str a m q ue s e t r a ta d e u m te xto fr a g m e n ta d o ,
híb r id o e e t no c ê ntr ico , no se nt id o q ue não c o n str o e m e fe ti v a me n te u m te xto
mu l t ic ul t ur a l,
a p e na s
se
a p r o p r i a nd o
de
c o nce ito s
da
mo d a .
In
Mu lt ic u lt ur al is mo cr ít ic o , rel açõ e s r ac iai s e p o lít ic a c urr ic u lar : a q u e s tão d o
hib r id is mo n a Es co l a S arã. R e v i sta B ra si le ira d e E d u c a ç ã o, nº 2 5 , p . 6 7 -8 1 ,
J a n /F e v/ M a r / Ab r /2 0 0 4 .
202
Escola Azul, ainda de acordo com a avaliação institucional, com
relação a atitudes e valores: racismo, xenofobia, preconceitos, não
tem uma boa performance. É o único item em que está pior que
outras escolas da região, ou seja, é mais intolerante.
Se tomarmos dois exemplos de como a Escola Azul aborda a
consciência negra, entenderemos o resultado da avaliação. A
professora Anita mostrou-me trabalhos sobre a questão do negro, em
função do 13 de maio, em que mostram pessoas escravizadas negras
sendo castigadas e a denúncia da escravidão abjeta, colocando a
população negra como vítima naquele passado triste. Inclusive
mencionou que sua turma da tarde, uma 3ª série, fez “ótimos
trabalhos” sobre consciência negra. No entanto, na semana do Dia
Nacional da Consciência Negra no ano anterior não vi nenhuma
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movimentação na escola. Ou seja, aborda insatisfatoriamente ou
simplesmente não aborda, silencia.
Apesar das questões trazidas na análise, esta pesquisa nunca
teve em seu horizonte empreender qualquer avaliação da escola
pesquisada. Nosso objetivo é analisar as relações entre a cultura
escolar/cultura da escola e a cultura do samba. Dessa forma, o
contexto em que está situada, os elementos que a compõem, seus
atores e suas práticas, são observados e analisados, dentro de uma
perspectiva relacional.
Vimos que, regra geral, a escola conta com estudantes
interessados e ativos, como atestam depoimentos de professoras/es a
respeito da participação estudantil nos projetos da escola. A
existência do NAM, do jornal e do grêmio, mostram o empenho e
iniciativa dos/as alunos/as. No entanto, apesar destes fatos, nem
sempre se efetiva o protagonismo de seus/uas estudantes.
Um
dos elementos
que
compõem
a
cultura
escolar,
o
currículo, se desenvolve em referência à proposta Multieducação da
SME e, embora tenha empreendido um esforço na construção de
projetos políticos-pedagógicos e de uma pedagogia de projetos, a
203
escola segue mantendo as disciplinas como eixo vertebrador de seu
trabalho pedagógico.
A
Escola
Azul,
a
despeito
de
uma
enorme
carga
administrativa e das inúmeras questões que surgem no dia a dia
escolar, consegue ter uma administração que equipa e mantém os
equipamentos, da mesma maneira que mantém as condições de
limpeza e higiene das dependências, e as condições físicas do prédio
escolar. Raras são as vezes em que faltam professoras/es e as aulas
são
efetivamente
ministradas
para
estudantes
que
freqüentam
assiduamente a escola.
Existe, na prática social da escola – faz parte da cultura
escolar/cultura
da
escola
–
um
aspecto
disciplinar
que
é
zelosamente cuidado. Assim como o funcionamento da escola, este
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aspecto é elogiado tanto por responsáveis, quanto por estudantes e
docentes. Há, por parte da direção, um movimento constante em
busca de parcerias que auxiliam a melhorar a oferta de atividades
pedagógicas. De maneira que existe um alto grau de satisfação
das/os responsáveis com as práticas pedagógicas da escola. Quanto
às relações escola-comunidade, há diferentes visões e algumas
dificuldades na dinâmica concreta.
De qualquer maneira, há uma expectativa muito positiva da
comunidade do bairro e das/os responsáveis pelos/as estudantes com
relação à Escola Azul, que corresponde aos itens que as pesquisas
sobre eficácia das escolas apontam como fatores que fazem a
diferença
para
melhorar
a
qualidade
da
educação
(Franco,
Mandarino, Ortigão, 2002b). E conforme Franco et al. 62 (2005,
p.17), tendo por base uma pesquisa realizada com o objetivo de
identificar
políticas
e
práticas
escolares
associadas
ao
alto
desempenho escolar,
62
Fr a nc o e t a l. ne st a p e sq u is a p r o c ur a m “id enti f ic ar polí ti ca s e p r áti ca s
esco lar es a sso ci ada s a a lto d es e mp e n ho es col ar de al uno s d a 4ª sé rie do Ens i no
F u nd a me n ta l no s te st e s d e M a te má t ic a d o S AE B 2 0 0 1 ” . I n E f icá cia E sc o lar no
B r as il : I n ve st i ga ndo práti ca s e po lí ti ca s e sco lare s mo d erad o ras d e
d e s i g ua ld ad e s e d uca cio na i s. Dep a r ta me n to d e E d uca ç ã o – P U C - Rio , mi meo ,
2005, p.4.
204
a escola faz a diferença, em especial por mei o do cli ma acadêmico
da escola, captado na presente investigação via variáveis que
enfatizam a ênfase em passar e corrigi r dever de casa, a
organi zação de um cantinho de li vros dentr o da sala de aula e a
manutenção de um bom cli ma disciplinar, da liderança do diretor,
que induzia a colabor ação entre professores, e da disponibilidade
de recursos na escola, captada via variáveis que mensuravam tanto
a disponibilidade e conser vação de equipamentos, quanto a
existência de pessoal e de recursos financeir os na escola. 63
Como pudemos ver, a Escola Azul, é uma escola que
funciona, ficando patente, pelos depoimentos e pelas observações,
que goza de respeito por toda a comunidade escolar e do bairro. A
Escola Azul passa, assim, a imagem de uma escola pública que tem
qualidade. Contudo, sem invalidar os aspectos acima ressaltados,
cabe apontar o silêncio com que a escola trata a questão racial,
dimensão importante da formação para uma cidadania plena, em
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contradição
com
o
que
defende
em
seus
projetos
políticos-
pedagógicos.
63
Cr e so F R AN CO e t a l . ( 2 0 0 5 , p . 1 7 ) , a fir ma m q u e e st es r e s ul ta d o s “ n ã o
d i fer e m e xp r e ss i va me n t e d o s r e s u lt a d o s d e o u tr a s i n ve st i ga ç õ e s b r a s i le ir as ” ,
c o mo ta mb é m a t e s ta B o na mi n o ( 2 0 0 5 ) . M a s p o r o utr o lad o , a f ir ma m q ue
“vari á vei s as so ciad as a o a u me nto da s mé dia s e sco lare s ta mb é m a s so c i ara m-s e
a o a u me n to d a d e s i g ua ld a d e d e n tr o d a e s c o l a ” ( Fr a n c o e t a l . , 2 0 0 5 , p . 1 8 ) ,
d e f e nd e nd o a ne c e s sid a d e d e p o l ít ica s d e e q ui d a d e i ntr a - e sc o l ar e s tar e m
pres e nte s, “s e m o pres s upo sto q ue po lí tic as de q ua lid ade eq ua cio ne m
a u to ma ti c a me n te to d as a s d i me n sõ e s d a e q u id ad e ” ( ib id e m) . C ha mo a te nç ão
p a r a e s te s a sp e c to s – e mb o r a não t e n ha r e a li z a d o e st ud o so b r e d e se m p e n ho e
ne m se tr ata do obj eti vo dest a i n ve st i gaç ão – porque e m o u tra pe sq ui sa, Fra nco
e t a l. ( 2 0 0 2 b ) a p ur a r a m u m p io r d e s e mp e n ho d as e sc o l a s p úb l ic a s e m r e la ç ã o
às p art ic ulare s, e do s “p ardo s/ mu l a to s” e pior a i nd a do s “p re to s”, e m
co mp ara ção co m o s branco s, me s mo co nt ro la ndo fato re s co mo o ní vel
so c ioeco nô mi co.
5
A Escola Azul é o silêncio da batucada?
O fato de estarmos falando de escola não implica reconhecer
apenas a cultura escolar/cultura da escola em seu espaço. O espaço
escolar pode ser visto tanto como um local de cruzamento de
culturas (Pérez Gómez, 2001) quanto um espaço sócio-cultural
(Dayrell, 2001). Interessa para esta pesquisa ver especificamente
como cruza o espaço da Escola Azul o que denomino cultura do
samba (ver capítulo 2).
5.1
O desfile ecológico
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“ n ã o t í n ha mo s p e ns a d o ni s to !”
Uma das orientações dos PCNs (Brasil, MEC/SEF, 1997, p.46)
é de que “a escola, na perspectiva de construção de cidadania,
precisa
assumir
a
valorização
da
cultura
de
sua
própria
comunidade” 1, embora não se limite a isto. A Escola Azul realizou,
entre 1999 e 2002, no mês de junho, desfiles carnavalescos nos
moldes de escola de samba – os “desfiles ecológicos” – pelas ruas
do bairro, tendo como “enredo” o meio ambiente. Pelo menos dois
destes eventos foram apresentados em programa da MultiRio 2.
Entretanto, este dado não é, necessariamente, o que parece à
primeira vista: uma integração da cultura do samba à cultura
escolar/cultura
da
escola
de
maneira
intencional.
Isto
ficou
explícito na fala da coordenadora pedagógica e uma das principais
idealizadoras do evento, quando visitei a escola explicando a idéia
de minha pesquisa era de estudar as relações da escola com a
cultura social de referência dos/as estudantes: “não tínhamos
pensado nisto!”, disse um tanto surpresa, pois para a equipe da
1
C f. B R ASI L . Secr et ari a de Ed uc ação F u nd a me nt al. P a râ me t ro s c u rr ic u la r e s
n a c io n a i s : i n tr od ução a o s par â me tr o s c urr ic ul ar es nacio n ai s. ME C/ SE F, 1997.
2
A M u lt iR io – E mp r e s a d e M u lt i me io s d a P r e f e i t ur a M u nc ip a l d o Rio d e
J a ne ir o , e nc a r r e gad a d e p r o d u z ir p r o gr a ma s , ví d e o s, s it es , CD- R O M v o ltad o s
pre fere n cia l me nte p ara Educaç ão. T e m vei c ula ç ão no ca na l 3 da NET e na T V
B and eir a n te s.
206
escola a questão em foco era “apenas a discussão do meio ambiente”
e não ter presente a tradição de samba do bairro. Porém, é possível
afirmar que uma pedagogia implícita no currículo oculto pode nos
dizer
mais
coisa
do
que
o
previsto,
como
uma
busca
do
encurtamento – ainda que parcial e sem desfazer a assimetria – da
“distância que existe entre o universo escolar e a realidade dos
alunos” (Dauster, 2001, p.70). Mostra que em algum nível a escola
dialoga com uma das culturas de origem dos/as alunos/as. Como
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explica a diretora Ana, com certo exagero:
O que a gente discute, trabalha muito na escola, além das questões
ambientais, é a ques tão de Oswaldo Cruz fazer parte de uma
história do samba, toda uma questão aí que está muito próxi ma do
nosso aluno. O bairro tinha uma escola de samba, que hoj e não tem
mais, mas que vi ve em função desse dia do samba, que acontece
em Oswaldo Cruz e que a gente discute muito com eles. Tanto que
a gente j untou estas duas questões para o nosso dia nacional do
meio ambiente. Porque em todo mês de j unho, a gente encontrou
uma maneira de falar para a comunidade sobre meio ambiente,
fazendo um carnaval fora de época. A gente faz o que a gente
chama de “azulreta”, é um carnaval fora de época, onde a gente sai
falando de meio ambi ente como uma escola de samba, tudo feito
pelo aluno e tal.
Aída conta como começou: uma ONG (não recorda o nome)
veio procurar a escola com um projeto de passeata ecológica que
realizaria em Copacabana no dia mundial do meio ambiente. A ONG
se prontificava a orientar e ajudar na confecção dos materiais
reciclados para fazerem fantasias e forneceriam transporte para
levar as crianças para Copacabana. Se a escola aceitasse, entraria
num sorteio com outras escolas para participar do evento. O
professor Orlando, presente à reunião, negou-se a apoiar o projeto,
alegando que Copacabana não era a comunidade da Escola Azul. O
representante da ONG disse que o problema era que em Oswaldo
Cruz não haveria cobertura da mídia, o que aconteceria se o evento
fosse em Copacabana. A Escola Azul decidiu não participar.
Mas a idéia foi discutida entre os professores e surgiu a
proposta de fazer não uma passeata, mas um desfile nos moldes de
escola de samba sobre a questão do meio ambiente, tema que a
207
escola
já
trabalhava.
Desse
modo,
com
o
apoio
de
vários
professores, responsáveis e da associação de moradores, organizouse o primeiro desfile ecológico no entorno da escola no ano de
1999. O evento contribuiu para a união da comunidade escolar,
ressaltou Aída, salientando não ter encontrado resistência para a
realização dos desfiles que se seguiram até o ano 2002.
No entanto, ela reconheceu que o esforço e as cobranças eram
enormes
e
que
algumas/uns
professoras/es
não
apoiariam
a
continuidade da realização do desfile. Ela não explicou porque esses
professores não queriam apoiar. Indaguei se a resistência tinha
relação com a posição dos evangélicos, já que parte desta orientação
religiosa tem assumido uma postura de combate a atividades
entendidas por eles como desviantes do que consideram bom
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caminho e Aída disse que não soube de nenhum comentário. Por
sentir-se muito cobrada e pelo enorme esforço que a atividade
requer, a coordenadora pedagógica deixou de organizar os desfiles
ecológicos nos anos de 2003 e 2004, apesar de constarem no
calendário da escola.
Pelo que pude ver das gravações em vídeo feito pelas
professoras e também registrados por programas da MultiRio, o
desfile teve ativa e animada participação da comunidade escolar.
Em entrevista ao programa da MultiRio (julho de 2001), a
coordenadora pedagógica afirma que a própria comunidade do bairro
fica na expectativa do desfile ecológico e tem grande participação.
No mesmo programa, uma aluna faz menção à participação de sua
avó numa escola de samba e sua alegria pelo trabalho realizado pela
Escola Azul. Uma mãe de aluna também declara sua satisfação e
apoio à atividade.
A formação para o desfile começa em frente à escola. Via-se
que
a
escola
estava
completa,
com
seus/as
estudantes
e
professoras/es. Tal como uma escola de samba, estava organizada
em alas fantasiadas de acordo com a temática do “enredo”. Em
2001, uma das alas vinha com um enorme cartaz dizendo “ILUMINA
TUA CONSC IÊNCIA BRASIL!”, um recurso didático próprio da
208
escolarização, mas que também foi usado, por exemplo, em desfile
da Portela de 1939 3. Havia carros alegóricos para ajudar a descrever
o enredo “Escola Azul educando para o meio ambiente”.
A experiência de muitas/os responsáveis em desfile de escola
de samba ajudou a harmonia (setor da Escola de Samba responsável
por organizar o desfile na avenida). Professoras/es e responsáveis
garantiam a evolução. Com o apoio da associação de moradores,
conseguiu-se carro de som. O “samba enredo” cantado era uma
paródia de um samba enredo de sucesso de cada ano, fazendo
referência ao meio ambiente. Em 2001 o samba, com letra elaborada
pela professora de Português, era “puxado” por alunos e cantado por
toda escola, significando que havia tido ensaio. Apesar do desfile
ocorrer de dia, muitos moradores deixaram seus afazeres para
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assistir os/as alunos/as da Escola Azul desfilar. O evento mostrou o
envolvimento
professoras/es,
da
direção
das/os
da
escola,
estudantes,
das/os
da
maioria
das/os
funcionárias/os
e
responsáveis, além da associação de moradores. Contudo, não havia
bateria, mestre-sala e porta-bandeira e nem tão pouco passistas.
Trabalhando a questão do meio ambiente, o desfile envolveu
várias/os professoras/es e suas disciplinas. Em Português, através
de análise de sambas enredo, fazendo paródia de um deles para se
cantar durante o desfile; Economia do Lar trabalhou na confecção
das fantasias; Ciências e Técnicas Agrícolas também aproveitou o
“enredo” na temática do meio ambiente. A conscientização sobre a
questão ambiental e particularmente o problema da poluição do rio
que passa em frente à escola foram aspectos centrais dos desfiles.
Em entrevista ao programa da MultiRio, o professor Orlando
menciona a tradição do samba e o surgimento da Portela como
questões que levaram a escola a fazer o “desfile ecológico”, embora
3
E m 1 9 3 9 a P o r t e la fo i c a mp e ã c o m o sa mb a Te st e a o sa mb a , de a ut o ria de
P a u lo d a P o r te l a . Não ha v ia a i nd a a mo d al id a d e s a mb a e nr e d o , e mb o r a e st e
t e n ha sid o u m d o s p r i me ir o s c a so s q ue o s a mb a c o r r e sp o nd ia a o e nr ed o
vi s u al me nte apre se ntad o. No de s f ile , uma d as ale gor ia s er a um “gi g ante sco
q ua d r o ne gr o , a e x e mp lo d a s sa la s d e a ul a, c o m o s d i z e r e s : P re st i g ia r e
a mp a ra r o sa mb a , Mú s ic a t íp ic a e o rig in a l d o B ra sil , e in c en t iva r o p o v o
b ra si le i ro ” ( S il v a e Sa n t o s, 1 9 8 9 , p . 1 1 3 , gr i fo s me u s) .
209
tal fato não tenha sido mencionado desta maneira pela coordenadora
pedagógica na entrevista que ela me concedeu. Mas todos na escola
sabem da importância do samba no bairro, não só porque fizeram
menção a isto nas entrevistas, mas também porque o dia nacional do
samba está aí para chamar a atenção. Ainda que se reconheça as
múltiplas identidades culturais do bairro de Oswaldo Cruz, ao
realizar o “desfile ecológico” a Escola Azul levou em conta a
identidade com a cultura do samba presente no bairro.
Contudo, em todo o Projeto Político-Pedagógico não há
nenhuma referência que discuta ou aponte nesta direção. Há apenas
menção à identidade e cultura, sem abordar qualquer especificidade
do bairro, não só com relação ao samba, mas também com relação à
cultura juvenil do funk, por exemplo.
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Como o projeto pedagógico da escola tem como referência o
Multieducação: Núcleo Curricular Básico (SME, 1996), a questão
das múltiplas identidades está presente nos Princípios Educativos da
Cultura:
Reconhecer a
manifestações
deter minado
diversidade e
p.115)
existência de diferentes grupos culturais com suas
específicas, identificando-s e como membro de
grupo social, cultural, étnico, respeitando a
pluralidade de outras identidades (SME, 1996,
Da mesma forma nos Princípios Educativos das Linguagens, que
orientam:
Perceber as influências das múltiplas linguagens gestual, oral,
escrita, visual, plástica, musical, tecnológicas na constituição da
identidade individual e cultural, apropriando-se delas de for ma
crítica (SME, 1996, p.115)
A linguagem da cultura do samba é expressa pela música,
pelo visual, pela plástica e pelo gestual, quando o corpo projeta um
modo de ser e de estar no mundo ou, no dizer de Muniz Sodré
(1998), quando o samba é o dono do corpo. Neste sentido, um
desfile de Escola de Samba é ilustrativo. De certa forma aquelas
orientações foram levadas em conta sem que necessariamente todos
210
os
atores
estivessem
conscientes
da
profundidade
daquela
pedagogia, pois faz parte da identidade do bairro a tradição do
samba.
Como vimos no capítulo 1, no item sobre o bairro, pode-se
dizer que a escola está permeada pela cultura do samba, que faz
parte da cultura do bairro. Esta relação alcança um novo patamar
através do “desfile ecológico”, realizado durante quatro anos (19992002), com grande envolvimento de toda a comunidade escolar.
Contudo, apesar de reconhecer a existência de alguma relação entre
a cultura escolar/cultura da escola da Escola Azul e a cultura do
samba, interpreto-a como uma relação fraca, pelos motivos que
discorro a seguir.
A proposta da Escola Azul de trabalhar com projeto a
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possibilitou recorrer a um “desfile ecológico” – tal como um desfile
de escola de samba – para educar sobre o meio ambiente, numa
atitude inovadora e audaciosa para as práticas educacionais da
escola pública, que requer engajamento da direção, professoras/es,
estudantes e apoio da comunidade do bairro e das/os responsáveis.
Mas ao teatralizar (esta pode ser uma definição para o evento) um
desfile de escola de samba no bairro, com o tema do meio ambiente,
podemos afirmar que a escola trabalhou com uma cultura social de
referência dos/as alunos/as?
Ao analisá-la do ponto de vista de uma atividade teatralizada,
estou pondo ênfase em que a escola dá mais importância ao tema
que quis apresentar e não ao modo, ao processo que leva à
educação. Para termos uma idéia da diferença entre teatralizar e
lidar com os saberes da cultura do samba, aponto, por exemplo, a
não existência da bateria, a “alma” de uma escola de samba. Em
quatro edições 4, em nenhuma delas o desfile ecológico teve bateria,
mestre-sala e porta-bandeira e passistas, alguns dos elementos
4
Num ba irro co m trad ição de s a mb a, co m vário s mo radore s me mb ros de
b a ter ia s d e e sc o l a d e s a mb a , c o m tr ê s i mp o r ta n t e s e s c o l as d e sa mb a no s b a ir r o s
vi z i n ho s, a lé m d o s b l o c o s d e c a r na v a l d a s i me d ia ç õ e s e d a s a t i vid a d e s
o r ga n iz ad a s p e la S M E , c o mo p o r e xe mp lo o P r o j e to E sc o la d e B a mb a , e x i ste m
toda s a s co nd içõe s p ara ens i nar o s/ a s e st ud a nte s a bat u car e sa mb a r .
211
fundamentais construídos pela cultura do samba. Chamo atenção
para estes aspectos porque têm grande implicação: significa – na
atividade realizada pela Escola Azul – que o mais importante é a
apresentação do tema e não o modo como se educa. Esta é uma
discussão conhecida no campo da educação. O tema ou o conteúdo,
é fundamental, mas sabe-se que também importa muito como se
educa. Os saberes desenvolvidos na escola de samba, por exemplo,
com relação à arte (combinação estética, equilíbrio das cores,
angulação e perspectiva das alegorias etc.) podem ser aplicados,
inclusive de uma forma interdisciplinar, com os/as estudantes, num
processo que elabora conhecimentos. É um exemplo que não toma a
cultura do samba meramente como suporte ou expressão, mas como
produtora de conhecimento. Este aspecto é importante porque
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estamos preocupados em entender como se dá o diálogo da escola
com a cultura social de referência.
Entender o desfile ecológico como teatralização significa que
a apresentação do tema pode ser feita de uma outra maneira (com
toda certeza isto é possível), mas pode significar não reconhecer
que organizar um desfile como de uma escola de samba é realização
de um saber que a comunidade do bairro detém. Dito de outra
maneira, entender o desfile ecológico não como um teatro mas como
manifestação identitária do bairro, significa reconhecer que este é
um saber que a comunidade do bairro tem para educar sobre
inúmeros
temas,
capazes
de
desenvolver
disposições
e
competências. Há nesta situação uma relação com o saber (Charlot,
2001) que não é a mesma da escola. Assim entendido, significa que
a escola não está, de forma enriquecedora e aberta, em diálogo com
esta cultura de referência – a cultura do samba – pois o diálogo só
existe quando há troca, quando se reconhece no outro também um
saber, ensinou-nos Paulo Freire (1998). Sem uma relação dialógica,
exercita-se o viés monocultural da cultura escolar.
Se por um lado pode-se reconhecer no desfile ecológico uma
tentativa de diálogo com uma das culturas de referência do bairro, a
Escola Azul, ao mesmo tempo, não manifesta uma intencionalidade,
212
porque
não
reconhece
aquele
saber.
Entretanto,
é
possível
estabelecer as pontes para o diálogo. Esta possibilidade é colocada
devido ao sucesso, envolvimento de toda a comunidade escolar nos
eventos realizados e importância da cultura do samba para o bairro.
Trata-se de encarar a atividade como produção de saberes, no
sentido de entender a cultura do samba como produtora de saberes,
de conhecimento, não apenas como suporte ou atividade lúdica,
passível de ser teatralizada. Da maneira como foi realizada, como
uma bela, criativa e interessante ilustração da forma de trabalhar
com projeto, pode ser também interpretada como uma forma da
escola lidar com a cultura popular, como diz Canclini (1997),
apenas com os seus objetos, suas coisas, deixando de lado os
agentes sociais e os processos, fazendo uma reificação da cultura do
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samba.
Do modo como se fazia – a escola não realiza o desfile
ecológico há dois anos – não havia preocupação com os saberes
construídos
pelos
sambistas,
saberes
que
possibilitaram
a
construção e manutenção de uma instituição tão importante para
nossa história cultural como é a escola de samba. É algo tão
importante que a Escola Azul foi aprender com a escola de samba
uma maneira de ensinar, aprender e se comunicar sobre a questão
ambiental, mesmo sem perceber a profundidade de tal escolha.
Gimeno Sacristán (1995, p.88) diz que
Quando entendemos a cultura não como os conteúdos-obj eto a
serem assi milados, mas como o j ogo de intercâmbios e interações
que são estabelecidos no diálogo da trans missão-assi milação,
convém estar mos conscientes de que em toda experiência de
aquisição se entrecruzam crenças, aptidões, valores, atitudes e
comportamentos, por que são suj eitos reais que lhe dão
significados, a partir de suas vi vências como pessoas.
Portanto, é necessário ter consciência para que a interação e
intercâmbio ocorra efetivamente.
O distanciamento dos saberes da cultura do samba, o fato de
não perceber as formas de ser e estar no mundo que a cultura do
samba
enseja,
faz
com
que
a
escola
não
se
envolva
em
213
absolutamente nada na organização do Dia Nacional do Samba, que
é a maior festa 5 do bairro e motivo de orgulho dos moradores.
Abandonar as tentativas de diálogo com a cultura do samba, ao não
realizar mais os desfiles ecológicos aumenta o distanciamento. Da
mesma maneira, não percebe a relação com a música 6 na vida dos/as
estudantes e das potencialidades de um trabalho que leve em conta
esta base cultural dos seus/uas alunos/as, não só com referência ao
samba, mas ao funk, ao Hip-Hop também. Em se tratando de uma
escola que as/os professoras/es reconhecem um ótimo nível de
participação
dos/as
estudantes,
é
certamente
não
levar
em
consideração as potencialidades existentes.
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5.2
Responsáveis, corpo docente e a cultura do samba
“Há uma par ti cip ação i n crí ve l de p ai s.”
Várias/os professoras/es têm uma relação com a cultura do
samba. A coordenadora pedagógica Aída e seu marido Sílvio,
professor de Educação Física da escola, saem todo ano em desfile de
Escola de Samba, mas não têm uma preferência: “nós verificamos
em qual Escola a fantasia está mais barata”, conta rindo Aída.
Moradores do bairro de Sulacap, em 2004 saíram na Vila Isabel (que
estava no grupo de acesso) e em 2005 na Caprichosos de Pilares
(grupo especial). Única a morar na zona sul, a professora Marisol,
de Artes Plásticas, diz que não perde o carnaval dos blocos e
também gosta de ir aos seus ensaios. A professora de Educação
Infantil, Maria, mora na rua da Portela e já a encontrei no ensaio da
5
O e p ic e ntr o d a fe st a – q ue se e sp al ha p o r a mp l a á r e a d o b a i r r o , c o m m a s si v a
parti cip ação do s mo rado res – e stá loc al izado a uma q uadra da E sco la Az ul .
6
E st a r e laç ão é p er c e b id a p e l a p r o fe s so r a d e H i s tó r ia q ue c o o r d e na o g r up o d e
a d o le sc e nte s, a o d iz e r q ue o s/ a s a l u no s/ a s e r a m mu i to “ mu s i ca i s”. E m mi n h a
pri me ira c o n ve r sa c o m a d ir e to r a el a e xp li co u q u e n aq uel e a no ( 2 0 0 3 ) não
ho uve de s f il e ecoló gico e si m uma at i vidad e c ha mad a “no vo s ta le nto s ”, qua ndo
se s ur p r e e nd e r a m c o m a l u no s q ue sab i a m to c ar p a nd e i r o , tr o mb o n e e tc . A
e sc o la te v e a u la d e c a nto , ma s n ã o há nad a q ue fa vo r e ç a d e fo r ma li vr e o s
tal e nto s r el a c io n a d o s à mú s i c a , q ue o s p r ó p r io s e st ud a n te s p o s sa m o r ga ni z a r e
d e se n vo l ver , e xc e to o j á c it ad o gr up o d e st re e t d a n c e d o N AM q ue , no e n ta n to ,
é loc al izado.
214
Escola. Nos desfiles ecológicos, segundo depoimentos, várias
professoras mostraram seus dons de passistas durante o desfile.
A professora Anita, falando da questão do meio ambiente que
é tão discutida na escola acrescenta que “o nosso maior carro-chefe
para explicar isso é o desfile ecológico. Há uma participação
incrível de pais. Tem pais que faltam ao trabalho. Pais que eu digo,
assim, responsável: pai, mãe, avó, tia, responsável pelo aluno”. Esta
professora, contudo, insinua fortemente que as dificuldades de
aprendizagens de alguns/mas dos/as seus/uas alunos/as devem-se ao
fato de acompanhar suas/eus responsáveis aos pagodes.
A diretora e seu marido moraram muitos anos próximo do
Império Serrano e acompanhavam as atividades da escola de samba.
“Seu Osmar”, marido da diretora e vendedor aposentado devido a
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um problema de saúde, tem 61 anos. Ele está na escola todo o dia
“para dar uma força moral à Ana”. Ele foi criado na região de
Madureira e Serrinha, na av. Edgar Romero. Freqüentava o Império
Serrano, jogava futebol com a turma do morro da Serrinha e do
morro da Congonha. Freqüentava o Cacique de Ramos em seu auge,
no início das famosas rodas de samba como pessoal do Fundo de
Quintal, Almir Guineto, Marquinho China, Arlindo Cruz, Zeca
Pagodinho etc.
A diretora Ana diz que a escola tem sempre em conta o fato
do bairro fazer parte de uma história do samba e que esta questão
está próxima dos/as estudantes, que o bairro já teve uma escola de
samba e agora vive em função do dia do samba. A diretora adjunta
Arlinda, que mora a umas três quadras da Escola Azul, teve por
vários meses como vizinho, o famoso Pagode da Tia Doca, todos os
domingos à noite. Ela disse que não incomodava nada, não havia
confusão: “eu adoro música!”, explicava. Seu marido desfila todo
ano na Imperatriz Leopoldinense.
A professora Ângela, moradora do bairro, acompanhava os
desfiles da Portela em Oswaldo Cruz e no dia nacional do samba a
festa é em frente à sua casa. “Eu sou do tempo que a Portela,
quando acabava o desfile lá do centro, eles desfilavam lá do outro
215
lado, na rua Carolina Machado, que tinha coreto. O Bloco das
Piranhas, de Madureira, passava aqui na Cataguazes!”. Naquele
tempo as relações dos moradores eram mais próximas, como ela
conta: “Eles iam à minha casa tomar água. Minha mãe já conservava
aquelas garrafas todas para dar para os rapazes, que a maioria era
daqui da nossa comunidade que ia desfilar”.
Ivo, pai de um aluno da 7ª série, faz trabalhos de carpintaria
de vez em quando na escola. Morador do bairro, gosta de samba e
sabe das atividades das rodas de samba que ocorrem no bairro,
informando que o samba que ocorria no Buraco do Galo “agora
estão fazendo ali em cima, perto da padaria”. Como estávamos no
início de novembro, ela avisa que “vai haver um pagode bom, que é
o Pagode do Trem”, que acontece dia 2 de dezembro. Quando
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perguntei se freqüentava as rodas de samba do Buraco do Galo, ele
disse que tem vontade mas a mulher “não quer ir”, então ele não
vai. “Ela estava desencaminhada da Igreja e agora quer voltar”,
explica o motivo da recusa da mulher, que é da Assembléia de Deus.
A professora Adriana fez sua monografia de especialização
em História do Brasil Pós-30, na Universidade Federal Fluminense,
sobre o Pagode do Trem, pesquisando suas origens, a história do
bairro e da Portela. Neste estudo, a autora mostra as polêmicas entre
tradição e atualização do samba, a presença da indústria cultural na
organização do evento, mas aponta a importância simbólica da
realização da festa para o samba e para o bairro, definindo como
uma resistência cultural e uma afirmação da identidade cultural do
bairro de Oswaldo Cruz.
Dia 17 de fevereiro de 2004
Depois, na sala dos professores, começa uma conversa sobre
carnaval que se torna ani mada. Os/as pr ofessores/as Marisol,
Orlando, Aline de EI, todos falando de carnaval. A diretora
adj unta Arlinda passa no corredor, ouve a conversa e vem
participar: fala que seu marido participa de uma ala na Imperatriz
Leopoldinense. Orlando e Marisol começam a relembrar sambas. A
diretora Ana também vem se j untar à conversa, também
relembrando sambas.
216
Mas há uma certa dificuldade em resgatar a memória do
samba nos trabalhos acadêmicos, fora do desfile ecológico. A
professora Antonia, de Geografia, moradora do bairro, de 26 anos,
se
dá
conta
disto
ao
responder
minha
pergunta
sobre
as
características do bairro:
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estou fazendo uma pesquisa em relação a isso agora para trabalhar
na 5ª série a questão da identidade, j unto com a pr ofessora de
história. A 6ª série fez um questionário par a traçar um perfil do
morador do bairro 7. A gente faz um trabal ho de recenseamento,
que é dentro do progr ama da 6ª série de recenseamento. A gente
faz um questionário, a gente trabalha com ferramenta da
infor mática, deles transfor marem as respostas em gráficos e tal. A
5ª série pega mais a história do bairro e acho que é muito
deficiente. Procurando isso agora, é difícil achar a história de
Oswaldo Cruz, é dif ícil informar, até pegar as pessoas mais
antigas, entrevistar, para tentar resgatar ess a identidade do bairro.
E eu, mesmo sendo moradora também me peguei conhecendo muit o
pouco ( grifo meu).
Não só vários atores da Escola Azul têm alguma relação com
a cultura do samba, mas até mesmo materiais paradidáticos, como a
revista da prefeitura, Escola e Família 8, tem uma reportagem sobre a
Escola de Samba Corações Unidos do CIEP 9, com alunos da rede,
que tem 1860 integrantes. O enredo é “Caras e formas da
negritude”, com o samba-enredo Negro é samba/negro é bamba, de
autoria dos alunos do CIEP Procópio Ferreira. A revista informa que
o desfile é na 6ª feira de carnaval, no sambódromo. Em outra
matéria (p.26), Martinho da Vila fala que estudou em escola do
município e fez parte do coral da escola.
7
E s te s tr a b a l ho s e sta v a m p r o gr a mad o s p a r a o s úl ti mo s me se s d o a no d e 2 0 0 4 ,
ma s acab ara m não se r ea liz a ndo.
8
C f. E sco la e Fa mí lia , n ° 3 , v e r ã o /2 0 0 3 , p . 1 9 . E st a e s c o la d e sa mb a d o s/ as
e s t ud a nt e s , d e s f ila to d o a no no s a mb ó d r o mo , a b r ind o o d e s f ile d e c ar na v a l.
9
O Grê mi o Re crea ti vo C ul t ura l E sco la de Sa mba M iri m C o raçõ es U n i dos do
CI E P o r ga n iz a se u d e s f ile no c ar na va l d o sa m b ó d r o mo há 1 8 a no s, d a q ua l
p a r ti cip a m a l u no s r e g u l a r me nt e ma tr ic ul a d o s na r e d e mu n i c ip a l, d e c e r c a d e 6 4
esco la s. E le es tá d ire t a me nt e re lac io nado ao P r oj eto Esco la d e B a mb a da
Dir e to r i a d e E d uca ç ã o Fu nd a me n tal d a SM E , q ue p o r s ua ve z o r ga n iz a
conc ur so s de fi gur i no e sa mb a -e nredo , aberto à parti cip ação de todo s al uno s da
r ed e mu n i c ip al . D i sp o ní v el e m: < h ttp :/ / ww w. r io . r j .go v.b r / s me /i nd e x.p hp >,
a c e s so e m 1 4 /0 5 /2 0 0 5 .
217
5.3
Os/as estudantes e a cultura do samba: a mediação da
mídia e das culturas juvenis
“U m po uq ui nho de cad a coi sa: fu n k, Hip - Ho p , a xé , sa mb a , p a go d e ,
tud o ”.
Apesar de poucas manifestações sobre cultura musical na
escola, os/as estudantes têm suas preferências que se caracterizam
por serem plurais. “Eu sou bem eclético, gosto de tudo, gosto de
dançar, gosto de rock, gosto de uma parada maneira”, diz Leandro,
branco, da 8ª série, 15 anos. Mais explícita, Aninha, afro-brasileira,
7ª série, diretora do grêmio, também manifesta gosto variado:
“Gosto de Hip-Hop, não gosto muito de funk, gosto de música
gospel, dança contemporânea, como eu faço: street dance, balé,
pagode, samba...”. Recusando rótulos, Alice, branca, do grêmio,
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diz: “Eu gosto muito de música negra, americana e brasileira. Eu
sou assim. Só [alguém] doido mesmo para dizer que eu sou uma
adolescente contrariada! Porque em casa eu escuto MPB, as
obscenidades [do funk] essas coisas, eu não gosto, acho poluição
sonora”. Percebe-se, desta maneira, um gosto variado e eclético, que
não corresponde a uma territorialidade e a um único tipo de cultura
musical.
Eles/as têm uma relação com o samba que certamente é bem
diferente de seus pais e avós. Nos tempos em que o local e o global
estão entrelaçados, que a mídia tem enorme influência, os/as
estudantes têm um leque mais amplo de preferências musicais, mas
têm presente o samba, principalmente as versões que eles não
enquadram como tradicional. Áurea, branca, 8ª série, representante
de turma, fala de sua pluralidade: “Um pouquinho de cada coisa:
funk, Hip-Hop, axé, samba, pagode, tudo”. Soninha, afro-brasileira,
13 anos, 6ª série, considerada e assumida como bagunceira, diz:
“Gosto de samba, funk, gosto de Hip-Hop” e avisa, “no dia 2 de
dezembro tem o pagode lá na frente”.
Na turma da última fase do Ciclo de Formação, o garoto Luis,
afro-brasileiro, de 9 anos, quando a professora deixou a sala por
alguns minutos, fazia batucada com o lápis em cima da mesa,
218
tentando imitar a batida de um repenique de escola de samba.
Depois o entrevistei e ele me contou que seus divertimentos
preferidos são: soltar pipa, pagode e aprender a tocar instrumentos
no pagode.
Conversando com um grupo de seis participantes do Núcleo
de Adolescentes, da 7ª série do turno da manhã, quatro meninos e
duas meninas, sobre música, eles dizem que têm preferência por
MPB, mas também gostam de rock (dois), Hip-Hop (quatro) e
pagode (três). Apenas uma menina (Nina) disse também gostar de
funk, sendo até criticada pelos demais. Quando perguntei sobre o
samba, Nina explicou porque não gosta: “samba é do tempo da
minha avó e pagode eu gosto porque canta músicas românticas”.
Nina e mais três colegas são afro-brasileiros/as.
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Estes depoimentos trazem uma reflexão relacionada à hipótese
inicial da pesquisa, que considerava presente no bairro e por
extensão no espaço da escola, através de seus/uas alunos/as
oriundos do bairro, de uma cultura do samba. Embora existam
marcas da existência desta cultura no bairro e até mesmo na escola
pela relação de várias/os professoras/es, diretoras, com o samba, é
fato que existem culturas juvenis, em que o samba mais tradicional
(seja na forma de samba-enredo, seja na forma de “samba de raiz”)
está pouco presente e não é valorizado, tendo espaço quase que
somente o chamado “pagode” 10, designação dada pela indústria
10
E s to u r e c o n h e c e nd o a q u i o “p a go d e ” – d e si g n a d o u m gê n e r o m u si c a l
p a r ti c ul a r p e la i nd ú str ia fo no gr á fi c a e a s si m id e nt i f ic a d o p o r se u s a d mi r ad o r e s
– c o mo ma i s u ma d a s var ia çõ e s r ít mi ca s d o s a mb a . É p r e ci so e s c l a r e c e r , no
e n ta n to , q ue mu i to s /a s j o v e n s c la ss i fi c a m ta mb é m c o mo “ p a g o d e ” a
co mp o s itor es e i n térpr e te s co mo J o rge Ara gão, Zec a P ago d i nho, D ud u Nobre,
q ue são c l a s si f i c ad o s p o r e l e s p r ó p r i o s e p e l a ge r a ç ã o mai s ve l ha , c o mo “ sa mb a
d e r a iz” , o q ue r e lat i vi z a e m c e r ta med id a o p r e te r i me n to d e a l g u n s/ ma s
a d o le sc e nte s a o sa mb a . De q ua lq ue r mo d o , p o d e mo s c o n sid e r a r o p a go d e
in v e nt a d o p e la i nd ú str ia fo no gr á fi c a c o mo u m p r o d u to d o h ib r id is mo c u lt ur a l.
Os gr up o s d e p a go d e, r egr a g er al , não são e nt end id o s co mo p er te n ce nt e s ao
mu n d o d o s a mb a p e lo s sa mb i s ta s mai s t r a d i c io n a i s, a q u e le s q ue e n te nd e m
exi st ir um “sa mb a de ra iz”. Ver e n tre v i sta d e Zeca P a godi nho , J o rge Aragão e
Ma ur o D i ni z, r eco n h eci d o s “sa mb is ta s d e r aiz ” e m se u me io , e m q ue a na li sa m
o s ú lt i mo s 2 0 a no s d e s uc e s so d e p a go d e , i n : Hu go S UK M AN, “E o sa mb a
ga n ho u a s p a r ad a s”, O G lo b o , Se g u nd o Cad er no , p . 8 , 0 6 /0 6 /2 0 0 5 .
219
fonográfica e pela mídia, principalmente a televisiva 11, para os
sambas com estilos mais “românticos” ou coreografados dos grupos
que surgiram no final da década de 1980 e fizeram enorme sucesso
nos anos 1990, como Raça Negra, Raça, Só Pra Contrariar,
Negritude Jr, Molejo etc, tendo ainda continuidade nos dias de hoje,
embora sem o mesmo sucesso de antes.
É preciso reconhecer que existem culturas juvenis, que para
Reguillo 12 (2004, p.5)
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são um conj unto heterogêneo de expressões e práticas sócioculturais cuj a especificidade é definida pela atribuição que os
próprios j ovens fazem a uma certa corrente cultural (por exemplo,
o movi mento hippie, que pode ser considerado como um precursor
destes processos) cuj os componentes básicos são a ideologia, o
estilo (ou dramati zação da identidade) e os consumos culturai s
( música, literatura, ci nema, etc.) .
Em um artigo que discute as culturas juvenis como um campo
de estudo, Reguillo (2003) reconhece o caráter de categoria
construída do termo juventude, mas aponta que as categorias são ao
mesmo tempo produtos do acordo social e produtoras do mundo.
Desse modo, explica:
Com exceções , o Estado, a família e a escola seguem pensando a
j uventude como uma categoria de trânsito entre um estado e outro,
como uma etapa de preparação para o valor que a j uventude tem
como futuro. Enquant o que para os j ovens, seu ser e seu fazer no
11
Não há co mo ne gar a e no r me i n f l uê n cia d a míd ia na i n f â nci a e j u v e nt u d e q ue
vi v e no s me io s u r b a no s, mas ta mb é m na cu ltu ra esco la r. A p r o fe sso r a Ân g el a,
d a 4 ª s é r ie , fal a q ue to d a 2 ª feir a é fe it a u ma d i sc u s são so b r e o q ue a co nt e c e u
no f i nal d e se ma n a . “ Ho j e , [ a s /o s e st ud a n t e s] f a la r a m d e d e se m p r e go ,
d e seq u il íb r io d a na t ur e z a e b u lly in g ” . T o d o s o s a s s u nto s fo r a m a b o r d ad o s p e lo
p r o gr a ma “ F a ntá s tico ”. Al t ma n n ( 2 0 0 5 ) d i z q u e o t e ma d a gr a v id e z n a
a d o le sc ê nc i a p a s so u a ser ma is tr a b a l h a d o no N AM q ue o b s e r va va p e l a
infl uê nci a co m q u e e ste te ma pa s so u a fr eq üe nta r a mídia : uma ado le sce nt e q ue
en gr a vid a d ua s vez es n a no ve la S en h o ra d o d e st in o , e m Ma lh a ç ã o e st e t e ma
e s tá se mp r e p r e s e nt e e ta mb é m a b o r d ad o no q u a d r o d o Dr . Dr á u sio V a r e la no
F a n tá sti c o .
12
P ara Ro s sa na RE GU I LLO, no co nte xto d as “c ris es d a moder n idade ” é cada
ve z mai s co mp le xo de fi nir o q ue é “se r j ove m”, porq ue e s te “não é um
desc rito r uni ver s al ho mogê neo, ne m um d ado que se es go te na ac umul ação
bioló gi ca d e a no s. ‘Ser j o ve m’ é fund a me nt al m ente u ma cla s si fic ação s o cia l e,
c o mo to d a c l a ss i fi c a ç ã o , s up õ e o e st ab e l e c i me nt o d e u m si s te ma ( c o mp l e xo ) d e
d i fer e n ç a s. A a r ti c ul aç ão d e s sa s d i f e r e n ç a s é q ue c o n fe r e c a r a ct e r ís ti ca s
preci sa s, co nte údo s, l i mi te s e se ntido ao co nt i n ge nte ‘ser j ove m’ . In As
cu lt ur as j u ve n i s, E n tr e v i st a à Nu e va m er ica , nº 1 0 1 , p . 5 , mar /2 0 0 4 .
220
mundo está ancorado no presente, o que foi sutilmente captado
pelo mercado (Reguill o, 2003, p.106).
A mesma compreensão tem Dayrell (2003, 49): “o tempo da
juventude, para eles, localiza-se no aqui e no agora, imersos que
estão no presente”.
Na
cidade
do
Rio
de
Janeiro,
podemos
falar
mais
particularmente de uma cultura negro-juvenil da população pobre,
que no caso dos/as estudantes da Escola Azul, estas identidades
estão diretamente ligadas em razão de sua idade, composição étnica,
estilos de vida, consumo e pertencimento às camadas populares.
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Para Lívio Sansone (2003, p.260),
o acesso aos produtos da globali zação, ao banco de sí mbolos (que
se pode criar para acessar novas culturas negro-j uvenis), e aos
produtos i mportados – autêntico fetiche da cultura negro-juvenil –
que antigamente eram acessí veis a poucos é hoj e muito mais
amplo do que nunca ( grifo meu).
Ou como diz Dayrell (2003, p.51), sobre sua pesquisa sobre jovens
de camadas populares em Belo Horizonte:
Podemos constatar que os rappers e os funkeiros parecem
reelaborar as i magens correntes sobre a j uventude, criando modos
próprios de ser j ovem, sempre mediados pelo estilo. No contexto
de transformações socioculturais mais amplas pelo qual passa o
Brasil, parecem surgir novos lugares no mundo juvenil, quase
sempre articulados em torno da cultura ( grifos meus).
Mais do que isto, neste mercado simbólico, aonde se vai do
local ao global, tocar e cantar samba sem microfone, como no
“samba de raiz” mais tradicional, ou tocar um instrumento de
percussão (exceto no desfile do carnaval), não tem o mesmo fetiche
que uma guitarra, um scratch do DJ. Os sambistas mais conhecidos
ligados ao “samba de raiz” não usam as roupas que a juventude
busca, principalmente aquela mais pobre 13. Está fora das culturas
juvenis atuais. E esta juventude das favelas e subúrbios tem na
13
Co mo di z a letr a do R a p d a s ma rca s, d e M C M ar ce lo e M C Ro gér io : A o n d a
d o fu n k e i ro meu a m ig o a g o ra é / D e Ni k e , o u R e e b o k o u P u ma n o p é / d e
b e r mu d a d a Cyc lo n e o u e n tã o d a CT K / B o n é d a Ha n g - Lo o se , d a Ch ic a g o o u
Qu eb ra -ma r.. . C f . M ica el H E R S C HM AN N, O F u n k e o H ip - Ho p in v a d e m a
cena , 2 0 0 0 , p .1 5 5 .
221
busca do consumo, pirata ou não, a sua aproximação da cidadania,
como sugere Garcia Canclini (1999).
Diferente de algumas décadas atrás, a juventude – ou as
juventudes, como propõe Dayrell (2003) – é/são atualmente um
mercado fundamental para inúmeros produtos, entre eles a música e
tudo que a ela se relaciona. Mais do que isto, numa época em que o
global se entrelaça com o local, existem alguns tipos de consumo
possibilitados pela mundialização da cultura, entre eles, a música e
todo um estilo ligado a cada ritmo musical. Mas se o local sofre
enorme influência do global, contudo, não necessariamente se
transforma em algo homogeneizado, pois há uma recriação própria
no local, ainda que de alguma forma hierarquizada. Vianna (1998)
sugere que a globalização e a localização não são tendências
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contraditórias,
mas
pelo
contrário,
se
complementam
ou
se
combinam de formas diferentes.
Tudo isto ocorre num processo de formação de culturas
juvenis (Reguillo, 2003 e 2004) e, mais precisamente, quando se
pensa em jovens de subúrbios e de camadas populares, de culturas
negro-juvenis (Sansone, 2003), fortemente presentes na população
das grandes cidades. Uma destas culturas juvenis é exemplificada
pelo funk que se recriou em solo carioca (Vianna, 1997a). Mudou
não só o ritmo, melodia, orquestração, dança, estilo de vestir, mas
transformou-se de ritmo suburbano e de comunidades de favelas,
circunscrito a uma territorialidade, em ritmo para toda a cidade,
atingindo a classe média e os bairros da zona sul do Rio de Janeiro
(Herschmann, 2000; Sansone, 2004; Vianna, 1997a).
O funk “é uma expressão cultural juvenil centrada no coletivo
da música” (Sansone, 2004, p.174), desenvolvida no Rio de Janeiro,
Salvador e Belo Horizonte. “O funk diz respeito sobretudo aos
jovens de classe baixa, negros e mestiços em sua vasta maioria,
mais comumente rapazes do que moças, e na faixa etária de 13 a 20
anos” (ibidem). O uso de determinadas roupas e tênis de marca,
visual surfista misturado com elementos de trajes de Hip-Hop
estadunidense é uma das características dos funkeiros (Herschmann,
222
2000; Sansone, 2004). Um movimento que cresceu rapidamente e,
apesar do preconceito e perseguição da mídia 14 por largo tempo
(Herschmann, 2000; Vianna, 1997a e 1997b) está hoje estabelecido
no mercado fonográfico e midiático. Sansone (2004, p.178) afirma,
a partir de sua pesquisa terminada no ano de 2000 na comunidade do
morro do Cantagalo (entre Copacabana e Ipanema), que “o som do
samba está decididamente menos presente” nas vielas daquela
comunidade, dado o crescimento do funk. Não é por ausência da
cultura do samba no local. Apesar do morro do Cantagalo não ter a
tradição de tantos anos de samba como o bairro de Oswaldo Cruz, a
comunidade tem uma escola de samba, a Unidos da Vila Rica, que
participa do concurso do carnaval desde 1991 pelo Grupo de Acesso
(Cabral, 1996), e em 2005 desfilou no Grupo A.
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Neste início do século XXI o Hip-Hop 15 tem aumentado sua
influência na cultura juvenil carioca (e não só nela), ainda que haja
uma certa confusão na definição do que é Hip-Hop 16. Isto se deve à
14
O fu n k i nic io u - se a q ui no B r a si l no s a no s d e 1 9 7 0 , a tr a vé s d a so u l mu s ic,
d e p o i s d e no mi n a d a fu n k . Fo i u m mo vi me nto q u e cr e sc e u no s s ub úr b io s e te v e
e n g a j a me nto d e p e s so a s d o M o vi me nto N e gr o , q ue i n c l u si v e fo r a m p er s e g u id a s
p ela d itad u r a. Se u s b ail es , no e nt a nto , er a m p l ur a is , co m vár io s r it mo s
b r a s ile ir o s s e nd o to c ad o s. M as no s a no s 1 9 8 0 , p r i nc ip al me n t e a p a r tir d a
se g u nd a me t a d e d es ta d é c a d a , d e se n vo l v e u - se o fu n k c ario ca, co mp osto e
c a nta d o p elo s se u s a fi ci o nad o s. Até e nt ão , o m o vi me nto e r a a lt er na ti v o , te nd o
u m c i r c ui t o p r ó p r i o , se m d i v ul g a ç ã o na mí d i a . N o fi n a l d o s a no s 1 9 9 0 , c o m a
ades ão cada vez ma ior do públ ico de cla s se média e da zo na s u l, a mídia fo i
incorpora ndo e ste no vo rit mo , q ue j á to co u a t é no Fa sh ion R io d e 2 0 0 5 . C f.
Her ma no VI ANN A, O m u n d o fu n k c a r io c a, 1 9 9 7 a ; e M ic a e l H E R S C HM AN N, O
fu n k e o H ip - Ho p in v a d e m a c en a , 2 0 0 0 .
15
E st e mo vi me n to i nic io u - se no s E st ad o s U nid o s no i n ício d o s a no s d e 1 9 7 0 a
p a r tir d o so u l, li gado à afir ma ção ne gr a e co mo fo r ma d e d i ver são. O s ter mo s
e m i n gl ês h ip ( q uad r i l) e h o p ( p u la r ) d ã o a id é i a d o mo v i me n to d e b a l a nço d o s
quadr i s, a q ue o s ne gr o s e st ad u nide ns es se atr i buí a m, e m co mp ar ação co m o
q ua d r il d u r o d o s b r a nc o s na d a n ç a . São q u a tr o o s e le me n to s c o n st it u ti vo s d a
cu ltu ra Hip - Ho p : o ra p ( rh y th m a n d p o e t ry) é a mú s i ca, o b rea k (ba tida) a
d a n ç a , a d i sco te c a ge m d o DJ e o gr a f ite , a ar te pl ás ti ca. No Rio de J ane iro
c o me ç o u a f a z e r s u c e s so no s a no s 1 9 9 0 , a t r a v é s d a i n f l uê n c ia d o gr up o
pauli s ta R ac io nai s M C s , que não fr eq üe nta v a a mídia e cr io u se lo de disco
ind ep e nd e n te.
Di sp o ní v el
e m:
<h ttp :/ / www. s tre et ma s te r s. hp g. i g.co m. b r/ Hi sto r i ad o s tree t. ht m>.
Ace s s o
em
2 7 /0 5 /2 0 0 5 . C f. t a mb é m Her ma no VI ANN A, o p . c it. e M i c a e l HE R S CH M AN N,
op. ci t.
16
Há p e lo me n o s d ua s gr a nd es c o r r e nt es no Hip - Ho p : aq ue la rep r e se n tad a p e lo
p ur o e n tr e te ni me nto e p le na me n te i n ser id a no mer cad o fo no gr á f ico , q ue f ala
so b r e d r o ga s e mu l h er e s , r e gr a ger a l d e fo r ma b as ta nt e ma c hi s ta, q u e te m co mo
u m d o s e xp o e n te s o ra p p e r e st ad u nid e ns e S no p p Do g g y Do g g; e o ut r a , mai s
223
avalanche de filmes no cinema e na TV, além de seriados,
videoclipes (Herschmann, 2000), e pessoas famosas gravando rap,
como os casos do jogador de basquete estadunidense Shaquille
O’Neal pela Sony e do astro holl ywoodiano Will Smith. E todos são
objetos de campanhas mundiais.
Também
divulgação
alguns
pela
ritmos
mídia
brasileiros
lograram
que
enorme
tiveram
sucesso 17,
grande
como
o
“sertanejo”, o “axé” e o “pagode”. Todos inventados pela indústria
fonográfica, ou melhor, pela indústria cultural – para incluir todo o
sistema midiático monopolizado do Brasil – mesmo reconhecendo
haver uma construção popular daqueles ritmos. Como sabemos, a
música
sertaneja
existe
há
muitas
décadas
com
seu
público
estabelecido, mas a construção desta nova música sertaneja obedece
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determinadas regras de mercado, para que seja um produto ampliado
para consumo nas grandes cidades e em todo país. Da mesma forma,
as músicas dos trios elétricos e dos blocos afros de Salvador, que
são ritmos diferentes, foram operadas de maneira a ficarem
palatáveis a vários gostos, inventando-se o “axé”.
As
rodas
de
samba,
denominadas
também
pagode,
transformaram-se num movimento que renovou o samba na década
de 1970, espalhando-se por toda a região sudeste do Brasil. Neste
boom foi inventado um novo “ritmo”, o “pagode”, fruto do samba
das rodas de samba cariocas com uma nova orquestração, mesclado
com melodias “românticas” e acrescido de um novo samba de roda
do recôncavo baiano, passando a ser diferenciado do samba.
Desta forma, o uso massivo da TV e rádio, permite a
conquista em escala industrial de um enorme mercado, produzindo
li gad a à s q u e stõ e s so c ia i s, p o lí tic a s e r a c ia i s, d e d e n ú n c ia e mi li tâ nc ia,
r ep r e se nt ad a aq ui no B r as il p elo s Ra cio na i s M C s e MV B il l, p o r e xe mp l o .
17
Her ma no VI AN N A c i ta u ma li s ta p ubl icad a pelo J o rn a l d o B ra s i l e m
no ve mb r o d e 1 9 9 7 , c o m o s 1 0 d i sco s ma i s v e nd id o s no B r a s il . T o d o s e r a m
b r a s ile ir o s, r e p r e se n ta nd o u ma e xp a n sã o d e st e m e r c a d o no B r a s il, q ue é o s e xto
d o mu nd o . E sta é a l i st a: 1 º -É o T cha n ; 2 º -C h i q ui ti ta s ; 3 º -Só P r a Co n t r a r ia r ;
4 º -Ga b r ie l O P e n sa d o r ; 5 º -B a nd a E va ; 6 º -X u x a ; 7 º - Ne gr i t ud e J r . ; 8 º -E x a l ta
Sa mb a ; 9 º -C h e ir o d e A mo r ; 1 0 º - Z e z é d i C a ma r go & L uc ia no . C f. M ú si c a no
p lu r a l : no v a s id e nt id a d es b r a si le i r a s, i n R e v i s ta d e Cu lt u ra B ra s il e ñ a , nº 1 ,
1998.
224
novos ídolos, novas canções. Atinge não somente as culturas
juvenis, embora estas sejam um mercado fundamental. Atinge a toda
população. E a cada período lança-se um novo ritmo, até seu
esgotamento. Sua força é tanta, que o que não é veiculado no rádio
e, principalmente, na TV, simplesmente não existe para fora dos
grandes centros 18. Assim funciona esta indústria: produz sucessos e
pode impedir sucessos, já que as pessoas tendem a consumir, até
mesmo nas grandes cidades, só o que tem evidência, salvo raros
movimentos alternativos como os que ocorreram com as rodas de
samba, o funk e o Hip-Hop, em seus inícios.
Stuart Hall (1997b) explica que a cultura regula as práticas e
condutas sociais, tornando importante saber quem regula a cultura.
Neste sentido a regulação da cultura e através da cultura não podem
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ser desvinculadas. Das formas de regulação através da cultura, uma
delas é a regulação “normativa”, que torna nossas ações possíveis
de se entender pelos outros, pois são baseadas em certos valores e
normas comuns a todos, estabelecendo como as coisas são numa
determinada cultura. Outra forma de regulação cultural é através de
sistemas classificatórios que marcam e delimitam determinada
cultura, o que vale e o que não vale, o que é “normal” e o que não é,
o que está de acordo com nossos hábitos e costumes. E ainda uma
outra forma de regulação que é através da mudança cultural, quando
se mudam as regras, valores, significados, práticas, sujeitando quem
estiver neste meio a se enquadrar nos novos valores, induzindo-os a
auto-regulação de acordo com as mudanças estabelecidas.
A força da cultura midiática atinge a todos, principalmente as
crianças e os adolescentes de hoje. Em Oswaldo Cruz não é
diferente. Cerca de 22% da população do bairro situa-se entre 5 e 19
anos. São gerações formadas e em formação com enorme presença
18
T ive u ma e xp er i ê nc i a mo r a nd o e m M a r ab á -P A no s a no s d e 1 9 9 3 e 1 9 9 4 .
Ne ste p e r ío d o p u d e v e r i f ic a r q ue só f a z i a s uc es s o p o p ular na c id a d e a q u ilo q ue
a p a r e c ia e m p r o gr a ma s d o mi nic ai s tip o Fa u st ão ( Glo b o ) o u G u g u ( SB T ) . M a s
não se t r a t a d o fa t o d e q ue nad a p o d e f a z e r s uc e s so se ni n g u é m c o n he c e . É q ue
se uma atr ação co nhec ida fo ss e le vada à cid ade, co mo por e x e mpl o, Elba
Ra ma l ho , ma s e l a não t iv e ss e a p a r e c e nd o no s p r o gr a ma s c itad o s, mu i t a g e nte
dei xar ia d e ir à s ua apre se ntaç ão.
225
da mídia, principalmente a televisão, que apresentam culturas
juvenis a que jovens tendem a se sentir ligados sob pena de estar
“por fora”. Nestas culturas juvenis, que têm características próprias
de como se comportar, formas de vestir, falar e objetos a consumir,
a música tem muita importância. O que a mídia veicula é o que est á
na moda ou passa a ser moda. Curtir a música da moda é curtir a
música da sua geração. Isto constitui uma demarcação identitária.
Outro aspecto das culturas juvenis é seu não apego à tradição
(Herschmann, 2000). Para os jovens seu ser e fazer está ligado no
presente, e o mercado captou perfeitamente este aspecto (Dayrell,
2003; Reguillo, 2003, Sansone, 2003 e 2004). A mescla, o
hibridismo são constantes, assim como uma aceitação do novo. O
que difere do samba, que embora contenha influências de várias
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culturas (Cavalcanti, 1994; Moura, 1995; Vianna, 1995), está
sempre ancorado nas suas tradições (Coutinho, 2002; Cabral, 1996;
Moura, 1995; Sandroni, 2001; Sodré, 1998; Tinhorão, 1969),
embora produzindo a todo instante traduções, renovando as raízes
(Coutinho, 2002; Moura, 1995; Pereira, 1997; Sandroni, 2001). O
samba já tem história e a história não é algo que se anule com a
lógica do mercado.
Ainda
outro
aspecto
das
culturas
juvenis
refere-se
às
territorialidades que lhes permitem mais e diferentes contatos,
trocas culturais, que relativizam sua relação com o local. Mesmo no
auge do movimento do funk, no final dos anos 90, Sansone (2004)
constata em sua pesquisa que só uma minoria de funkeiros curtiam
unicamente o funk. No caso dos/as alunos/as da Escola Azul, há uma
pluralidade de preferências musicais, que também não remetem a
uma territorialidade.
5.4
O bairro e a cultura do samba
“o b a ir r o d e O sw a l do C ruz e stá no map a da c ul t ura car ioca ”
A associação de moradores, que quando tinha um bom
relacionamento com a Escola Azul teve participação fundamental no
226
apoio do desfile ecológico, tem relação com todos os eventos
ligados ao samba no bairro. Não só com relação ao Pagode do Trem,
quando faz parte da comissão organizadora e é responsável pela
organização do evento no bairro, tais como a disposição das
barracas e as apresentações num dos palcos. A associação organiza
rodas de samba no bairro algumas vezes durante o ano.
Uma
roda
de
samba
que
ficou
famosa
e
tinha
uma
regularidade era a do Buraco do Galo. Organizada espontaneamente
no início, como várias rodas de samba que sempre ocorreram no
bairro, tomou uma organização e se tornou um projeto cultural
depois de certo tempo. Reunia-se no boteco chamado Buraco do
Galo, um antigo galinheiro que perdeu espaço para o bar, no largo
da Dona Vicência, próximo à estação de trem. Esta roda de samba
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característica de subúrbios cariocas, atraía gente de vários bairros,
inclusive distantes,
reunindo
vários
compositores, não
só de
Oswaldo Cruz. Tornou-se um acontecimento no bairro e chegou a
gravar um CD, ao vivo, no próprio botequim no ano de 2000 19, que
dizia em seu encarte de apresentação:
A despeito do descaso administrativo e de uma certa obtusidade
em nossa geografia oficial, o bairro de Osw aldo Cruz está no
mapa da cultura carioca. Por suas velhas ruas or gulhosamente
suburbanas, outrora caminharam o cromo bicolor de Paulo da
Portela e o verni z i maculadamente branco de Natal.
Atualmente em refluxo, a roda de samba do Buraco do Galo
acontecia aos sábados, em determinadas épocas de 15 em 15 dias,
em outras uma vez por mês. No início começou a ser organizada
dentro da parte coberta do botequim, de aproximadamente 20m 2 .
Com o sucesso do evento, passou a ocupar também o lado de fora,
colocando a mesa com os instrumentistas perto do muro do conjunto
habitacional vizinho. Todo o espaço da entrada do conjunto até a
rua Dona Vicência ficava tomado por pessoas, além da parte coberta
do botequim. O som era amplificado no violão 7 cordas, para o
cantor e para as pastoras. Apesar da simplicidade mambembe do
19
S a mb a n o b u ra c o d o Ga lo . CD nº 6 0 7 1 0 , 2 0 f a i x a s, M u si te c , 2 0 0 0 .
227
som, a roda de samba era muito freqüentada e querida pelo bairro,
atraindo gente das redondezas e de vários lugares distantes. A roda
tinha um apresentador oficial, o cantor e compositor Edinho
Oliveira 20, que morava literalmente ao lado do Buraco do Galo, no
conjunto habitacional. Ali apresentavam-se compositores do bairro e
convidados. Os instrumentistas tocavam por prazer, tendo direito a
uma cota de cerveja e salgados. Uma roda de samba família, que
normalmente
acontecia
das
19:00h
às
01:00h
ou
02:00h
da
madrugada seguinte, cantando sambas conhecidos e inéditos. Era
freqüentada por famílias do bairro e adjacências, entre as quais se
encontravam responsáveis da Escola Azul, que identifiquei durante
a pesquisa em reuniões com a escola.
Mas a maior festa do bairro é o “Pagode do trem” 21,
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aglutinando milhares de pessoas de vários lugares da região
metropolitana. É uma atividade que a cada ano cresce mais, tendo
divulgação na grande mídia. A população tem orgulho da festa e
participa massivamente.
2 de dezembro de 2003
O trem mais concorri do é o que vai a Velha Guarda da Portela e
das outras escolas. Est e tem até ar condicionado – é o “geladão” –
e tenta-se or gani zar seus passageiros através de bilhetes, mas é
impossí vel i mpedir os muitos penetras. (...) Muita gente, muita
gente! Devagar, colados uns aos outros, com paciência conseguese descer para a rua J oão Vicente, em frente aos blocos de
apartamentos, à frente dos quais está o palco, com sambistas se
apresentando. Mas ao descer da passarela, fica difícil atravessar a
rua e seguir pela rua D. Vicência, e chegar ao bar Buraco do galo,
um autêntico botequi m carioca, onde tradi cional mente se reúnem
os sambistas e tem uma roda de samba quinzenal. Tudo está muito
20
Ne st e ca so tr a ta - se d o n o me r ea l d o sa mb i st a.
Fi c o u a s s i m c ha ma d o u m mo vi me nto c u lt ur a l d o s sa mb i st as d e O s wa ld o Cr uz,
q ue d e sd e 1 9 9 1 , no d i a 2 d e d e z e mb r o , D ia Nac io na l d o Sa mb a ( J o rn a l d o
Bra si l, Cad e r no B , p . 1 , 0 5 /1 2 /1 9 9 7 ) , to ma o tr e m n a e s ta ç ã o d a “ Ce n tr a l d o
B r as il” e va i toc a ndo e ca nta ndo s a mb a s “d e r aiz” at é a e st ação d e O s wa ldo
Cr uz . Fo i id e ali z a d o p e la s lid e r a nç a s d o mo v i me n to “ Ac o r d a O s wa ld o Cr uz ” ,
gr up o q ue r e i v i nd i c a v a me l ho r i as no b a ir r o . T inh a c o mo i nsp ir a ç ã o o s
sa mb i sta s da P o rte la, e sco la q ue fo i fund ada ne s te bair ro, que no s a no s de
1 9 2 0 , lid e r a d o s p o r P a u lo d a P o r te la , p ar a f u g i r à p e r se g ui ç ã o d a p o lí c ia a o s
sa mb i sta s, se e nc o n tr a va m na gar e d a Ce n tr al d o B r a si l e ia m p a r a s ua s
r e s id ê nc ia s no s ub úr b io d e tr e m, to c a nd o e c a nt and o sa mb a s. É u m mo v i me nto
d e p o r t e l e ns e s q u e a c a b o u a gl u t i n a nd o s a mb i st a s d e t o d a s a s e sc o l as , q u e a s si m
co me mo r a m o d i a na cio na l d o sa mb a.
21
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228
cheio, com as barracas, os churrasquinhos, os ambulantes, todos
cheios de gente. Mal dá para se caminhar. Gente de todo lugar da
cidade: zona sul, zona norte, zona oeste, baixada, Niterói etc.
Percebo então a presença grande de adolescentes e também
crianças, embora destes últimos nem tanto como i maginava. (...)
Há uma di versidade da maneira de vestir. Muita gente veio diret o
do trabalho e está em traj es do dia a dia, mas há aqueles,
principalmente as mul heres, mais arrumados , com roupa de festa.
Os sambistas, claro, em sua maioria estão bem arrumados, muitos
com roupas alusi vas às cores de sua escola de samba. Além do
palco, em frente à estação, várias rodas de samba acontecem dos
dois lados da linha do trem. As pessoas que conhecem ficam
transitando nos dois l ados, mas fica difícil porque a passarela não
dá conta de tanta gente. As pessoas procur am as rodas de samba
que j á conhecem e os neófitos ficam zanzando de um lado para o
outro sem saber onde ficar e quem está tocando, onde estão as
melhores rodas. Mas a maior parte das rodas fica do lado esquerdo
de quem vai no senti do Centro-Deodoro, do lado dos conj untos
habitacionais. Seguindo a rua D. Vicência, que fica do lado direito
do conj unto para quem está chegando de tr em, no final, antes do
rio e à esquerda, está o bar Buraco do galo. Virando à direita,
depois da pracinha em frente ao bar, tem uma ponte de pedestres à
esquerda, sobre o rio Das Pedras. Após atravessar, virando á
direita e seguindo em frente, chega-se a outro típico boteco
carioca, o bar do Fininho. Seu dono é figura querida no bairro,
também compositor, onde se costuma reunir os bambas, ao final do
evento, ficando até o sol raiar. É depois do bar do Fininho que
mora a professora Ângela. Aí se entende porque ela disse que não
vai dor mir nesta noite. Mas a quantidade de rodas de samba e de
pessoas é muito grande naquela parte do bai rro, nas proxi midades
da estação, principalmente em volta dos conj untos habitacionais.
Bem próxi mo da estação e de onde fica o palco, está a casa que j á
serviu de sede para a Portela e a casa onde nasceu e morou
Antonio Candeia Filho, um dos maiores compositores da Portela.
Esta atividade resgata, na compreensão de seus organizadores
e também dos moradores, a tradição do samba e chama atenção para
o bairro de sua identidade e potencialidade. É uma festa que afirma
a cultura do samba no bairro.
Procurei mostrar acima que a cultura do samba permeia o
espaço escolar e os atores da Escola Azul. O desfile ecológico,
ainda que sem a intencionalidade claramente explicitada e da
percepção da relação com uma das identidades culturais do bairro, é
uma tentativa de diálogo da escola com uma das culturas de
referência dos/as alunos/as. A observação e as entrevistas com os/as
estudantes,
não
colocaram
em
relevo
uma
grande
ligação
229
daqueles/as alunos/as com a cultura do samba, uma vez que estão
inseridos em várias culturas musicais e juvenis. Por outro lado, no
bairro e no restante da comunidade escolar, as/os responsáveis por
alunos/as, as diretoras e as/os professoras/es da Escola Azul,
evidenciaram em algum nível, sua relação com a cultura do samba.
Assim, considerando todos estes aspectos, podemos concluir que
existe uma relação, que classifico como fraca, de tentativa de
diálogo entre a cultura do samba e a Escola Azul. Desta maneira,
considero ser um exagero afirmar que a Escola Azul é o silêncio da
batucada. Mais apropriadamente, poderíamos dizer que a escola está
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ouvindo a batucada, que está lá fora...
6
A escola e o samba: considerações finais
A hipótese que orientou esta tese era de que uma escola
situada num bairro com uma tradição de samba que vem desde as
primeiras décadas do século XX, muito provavelmente teria presente
em seu espaço escolar a cultura do samba, propondo-me a
investigar como se dariam as aproximações, distanciamentos e
entrecruzamentos entre a cultura escolar/cultura da escola e a
cultura do samba, reconhecida como uma das culturas sociais de
referência dos/as estudantes.
Com base nos dados colhidos, esta hipótese não se confirmou
na perspectiva de sua formulação original: a relação
dos/as
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estudantes com a cultura do samba mostrou-se bastante fraca.
Assim, não verifiquei nas práticas sociais, salvo dois exemplos,
formas de manifestação através das brincadeiras, das conversas, das
atitudes, da linguagem, da maneira de andar, das músicas cantadas,
de práticas que evidenciassem uma vivência dos/as alunos/as na
cultura do samba. Esta foi a minha conclusão após cerca de oito
meses de observação na Escola Azul. O mesmo não pode ser dito
com relação à cultura escolar/cultura da escola e a cultura do
samba, que apresentou uma tentativa de aproximação, embora com
fraca interação.
Ao procurarmos analisar as relações entre escola e cultura/s,
devemos levar em conta vários processos. As transformações
ocorridas no mundo e no Brasil, impulsionadas pelos processos de
globalização econômica e mundialização da cultura têm impacto
enorme na população. Torna-se cada vez mais difícil (ou mesmo
impossível) o local se fechar à influência global. Juntamente com
isto, o peso da mídia no acesso a informações e consumo de bens
culturais é decisiva. As culturas juvenis produzidas nestes contextos
extrapolam territórios, atingindo grupos de áreas e locais nunca
antes possível, atrelado a um tipo de consumo que define uma
identidade. Crianças e adolescentes, principalmente, formam um
231
mercado específico. Suas ações e preferências são mediatizadas por
um tipo de consumo que ao mesmo tempo se torna marca identitária.
Consumir determinado produto tem o valor simbólico de integração
a uma determinada cultura. É também ser moderno, aberto ao novo e
viver o seu tempo.
Mas este estudo me provocou dúvidas e angústias. Dúvidas,
em primeiro lugar, assumindo minha relação de paixão pelo samba,
pelo fato de não ter encontrado uma forte relação do alunado com a
cultura do samba. Em segundo lugar, pela frágil presença da cultura
do samba no espaço escolar, sua pouca interação com a cultura
escolar/cultura da escola.
Encontrei no campo uma situação em que algumas culturas
juvenis estavam mais presentes e ocupavam mais espaço entre os/as
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adolescentes do que a cultura do samba. Isto era também um dado –
obtido pelas observações não só na escola mas em vários espaços de
samba – que apontava para a perda da força da cultura do samba
para as novas gerações, e conseqüentemente num debilitamento
desta cultura. Uma análise apressada, sem dúvida. O samba já viveu
momentos em que seu fim era previsto e sempre mostrou grande
vigor 1.
Uma angústia me acompanhava quando, ao presenciar os
ensaios de escola de samba e rodas de samba, ou seja, locais mais
tradicionais
relativamente
de
samba,
pequena,
observava
quando
não,
sempre
uma
ausente,
de
participação
crianças
e
adolescentes 2. Notei, entretanto, que no final de 2004, nos ensaios
da Portela, no Pagode do trem e nos blocos de embalo que desfilam
na avenida Rio Branco, comparados com os anos anteriores, um
1
P a r a r e sp o nd e r a e s te s v a t ic í nio s, o s a mb i s t a Nel so n Sar ge n to c o m p ô s e m
1 9 7 8 ( gr a vad o p o r B e t h Car v a l ho ) o a n to ló g ic o sa mb a A g o n iza ma s n ã o mo rr e,
que d iz e m se us ver so s : “S a mb a / a g o n iza ma s n ã o mo r r e / a lg u é m s e mp r e t e
so c o r re / a n te s d o su s p iro d er ra d e i ro ... ” Cf. . E lto n Med ei ro s & Ne l so n
S a rg e n to . Sér i e s uc e s s o s e m d o b r o . CD nº 9 2 4 0 4 8 , f a i xa 1 5 , Gr a va d o r a
E ld o r a d o , s.d .
2
P ud e no t ar , p o r o utr o l ad o , q ue j o ve n s d e u ma fa i xa e t á r i a a p a r tir d e 2 0 a no s
tê m a u me n t a d o s u a p a r tic ip a ç ã o no s e ve n to s d e sa mb a . Ver , p o r e xe mp lo , a
r e p o r ta g e m J o r g e Ro b e r to M a r t i n s, “O sa mb a s e r e v i go r a na vo z d o s j o ve n s –
parte I ”, Jo rn a l d o B ra s il, C a d e r no H, p . H1 0 , 0 5 /0 6 /2 0 0 5 .
232
aumento da afluência de pessoas de uma faixa etária mais baixa,
incluindo adolescentes e crianças. Contudo, nada se comparava aos
bailes funk ou shows dos grupos de pagode dos anos 1990, onde a
afluência de adolescentes das camadas populares era massiva 3.
A dúvida e a angústia, portanto, me assaltavam. A própria
escola, que realizava os desfiles ecológicos, deixara de realizá-los.
E apesar do grande sucesso daqueles eventos – pelos depoimentos
colhidos e pelos registros em vídeos – não observei movimentos
para que a escola voltasse a realizá-los.
Fiquei, durante certo tempo, sentindo-me acuado, sem saída,
impotente. Aos poucos, porém, fui tomando consciência de que
estas
constatações
confirmação
da
poderiam
hipótese.
ter
E
tanta
por
outro
importância
lado,
quanto
percebi
a
mais
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concretamente a diferenciação de papéis, entre o que é função da
escola e o que se espera dela, e a função ou razão de ser da cultura
do samba. Existem potencialidades e limites para cada uma delas
que as relações concretas estabelecem, mas não necessariamente
uma oposição.
A escola tem como papel o desempenho de algumas funções
que não são realizadas por outras instâncias. A socialização, a
instrução e a educação, são correlacionadas e levadas à prática
através
de
uma
sistematização
de
informação
selecionada
e
ordenada, que busca dar sentido e possibilitar conhecimentos. A
seleção
dos
conteúdos
está
orientada
para
aqueles
saberes
legitimados. Conseqüentemente, a cultura escolar/cultura da escola
resultante tende a ser monocultural e homogeneizadora. Desse
modo, entre os muitos questionamentos à cultura escolar/cultura da
escola que se vê nos dias de hoje, está o não reconhecimento da
pluralidade
3
cultural
da
população
brasileira.
Uma
realidade
Ai nd a ho j e o fu n k e o p ago d e faz e m s uc e s so j u nto a o p úb l ico j u ve n il. O p e so
d a míd ia é f u nd a me n tal, no c a so d o p a go d e , ma s não t a nto e m r ela ç ã o a o fu n k
e m s e u i níc io . O fa to r i mp o r ta n te q ue p r o mo ve o s uc es so d e a mb o s é q ue e stão
dentro de u ma li ngua g e m e e s ti los q u e se e n cai xa m na s c arac ter ís ti cas da s
cu ltu ra s ju ven i s d o p r e se n te : u m tip o d e c o n s u mo ( r o up a s e gr i fe s) , u ma
c o n c e p ç ão d e mo d e r n o ( a t u a l id a d e d o v i s u a l e tec no lo gi a no s s ho ws ) ,
hib r id is mo , ab e r t ur a p ar a o no vo e d es co l a me n to d as g er açõ e s a n ter io r e s.
233
multicultural que se insiste que a escola reconheça e com ela
dialogue.
A escola é um mundo que tem uma dinâmica própria. Apesar
de existirem normas e orientações das instâncias superiores, seus
atores imprimem as marcas singulares daquele espaço escolar.
Trata-se não só da conjunção do que se conceitua como cultura
escolar/cultura da escola, mas de práticas sociais marcadas por
conflitos e negociações que caracterizam os processos, muitas vezes
contraditórios,
do
cotidiano
escolar.
O
reconhecimento
da
diversidade cultural é importante para possibilitar o incentivo a uma
reflexão sobre sua relação com as práticas pedagógicas. Dito de
outro modo, o reconhecimento do Outro é um dos fatores que
possibilita desenvolver o questionamento da relação monocultural
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com
os
saberes
e
a
cultura
escolar/cultura
da
escola
homogeneizadora. Aí está um aspecto da importância das culturas
sociais de referência. Ela/s pode/m possibilitar, na medida em que o
diálogo se efetive realmente, levar os atores à reflexão, ao
questionamento e possivelmente às mudanças que se fizerem
necessárias em suas práticas.
Mas, ainda se pode perguntar, o que se está querendo com a
cobrança da escola efetivar um diálogo com uma cultura social de
referência. Que papel está se querendo imputar à escola ao se
propor este diálogo? Entendo ser importante não só reconhecer a
presença da cultura do samba na história da cidade do Rio de
Janeiro, mas também reconhecer que é composta de saberes que as
camadas populares produzem e têm acesso. São saberes diferentes e
não reconhecidos pela cultura escolar. Não fazem parte da seleção
do currículo a ser ensinado, não porque se entende que ali, na
escola, não é o seu lugar de ser ensinado, mas porque não são
reconhecidos como saberes.
Forquin
(1993),
criticando
a
concepção
etnocêntrica
da
cultura musical na Europa, discute, a partir de um autor (G.
Vulliam y) porque não se ensina a música popular moderna advinda
da tradição afro-americana (jazz, blues, rock and roll), pois esta
234
enfrenta uma seleção curricular que não a reconhece como saber
musical que mereça ser ensinado. Forquin (1993, p.110) coloca a
seguinte questão:
No plano pedagógico, enfi m, a questão que se coloca é a de saber
que uso é possível fazer da música popular moderna no ensino.
Pode-se de um lado perguntar -se se é exatamente o papel da
escola contribuir para a difusão de uma cul tura que, de qualquer
forma, não espera por ela para assediar a vida cotidiana de
milhões de adolescentes e se a verdadeira atitude ‘antietnocêntrica’ não consiste, antes, em per miti r que escapem, graças
à escola, dos limites de sua cultura cotidiana acedendo a outras
linguagens, outras imagens, outros saber es, não i mediatament e
assimiláveis mas humanamente essenciais ( gr ifos meus)
Não fica distante o nosso dilema. O samba nunca esperou pela
escola 4 para assediar a vida cotidiana de milhões de cariocas (e
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brasileiros de uma maneira geral). Mas o que se coloca é que esta
cultura do samba vai além da produção musical: tem as escolas de
samba, as rodas de samba e toda uma maneira de viver e de se
relacionar com o mundo que não atende, historicamente, apenas a
determinadas faixas etárias. São parte da nossa história, ajudaram a
forjar nossa identidade e nos fazer o que somos no Rio de Janeiro e
também no Brasil. O fato é que existe um silêncio na cultura
escolar sobre esta cultura.
É possível pensar criticamente nesta linha, meditando sobre
as origens culturais afro-brasileiras do samba e seu enraizamento
entre negros e mulatos como fala Cavalcanti (1994), e sua não
inserção no currículo escolar. É o que se pode constatar na exclusão
do samba e de seus personagens e fatos históricos marcantes, da
História do Brasil, tais como o surgimento e o papel das Escolas de
Samba e do samba em nossa História Cultural, ao contrário dos
personagens e fatos ligados à “alta cultura”. Não estou, aqui,
opondo uma cultura à outra, mas chamando atenção apenas da
exclusão, do esquecimento, daquela cultura produzida por setores
subalternos.
4
Co mo d izi a Noe l Ro s a e Vadi co e m Fe it io d e Ora çã o: “. ..B a tu q u e é u m
p ri vi lé g io / n in g u é m a p r e n d e sa mb a n o c o l ég io.. .” Cf. J o ão M ÁXIM O e Car lo s
DIDIE R , No el R o sa : u m a b io gr a f ia , 1 9 9 0 , p . 2 6 8 .
235
Nestes aspectos, a cultura do samba tem muito a contribuir,
não para se contrapor ou negar a cultura escolar, mas para, ao ser
também selecionada de alguma forma, possibilitar o tensionamento
de saberes que podem ser socialmente reconhecidos, mas não
inquestionáveis. Olhando por outro lado, se a cultura do samba
corresponde a uma memória, à nossa história, e se, como pudemos
observar, existe um certo debilitamento na atualidade junto às
crianças e à juventude 5, a cultura escolar pode cumprir um papel,
tal como faz com a cultura erudita e seus atores na seleção do
currículo, não para ensinar samba, mas para tomá-la como história
cultural, como arte, como costumes e tradições de uma população
que necessita ser registrada e valorizada para as gerações futuras.
A
memória
coletiva
está
presente,
mas
num
mundo
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globalizado e cada dia mais veloz, com mais informações, múltiplas
possibilidades de entretenimento, uma parte da história e da cultura
pode ficar esquecida, relegada às tradições melancólicas, se ela não
for vivida e construída pelas gerações do presente. A cultura do
samba permeia o bairro, na medida em que este tem com ela uma
relação histórica, existem três Escolas de Samba e inúmeras rodas
de samba nas imediações e o dia nacional do samba é uma festa do
bairro.
Mas o processo de naturalização do cotidiano, a falta de
reflexão sobre o impacto dos meios de comunicação, e a seleção do
currículo
que
exclui
determinados
conhecimentos
ligados
às
culturas populares, juntamente com outros fatores, dispersam as
possibilidades da escola de fomentar seu espaço como um lugar de
cruzamento entre culturas.
Contudo, é preciso levar em conta as especificidades do papel
da escola. Existe uma tradição da cultura escolar/cultura da escola
centrada nos saberes considerados socialmente significativos, onde
crianças e jovens podem adquirir disposições e competências
5
No se ntido d e q ue a s cria nç a s e os j o ve ns não tê m a me s ma i n ic i ação na
cu ltu ra d o sa mb a q ue s e u s p a is e a vó s ti v e r a m e não e stão c r e s c e nd o d e n tr o
u ni ca me n te d e st a c u lt ur a , o u p e lo me n o s e st ão so b fo r te i n f l uê nc ia d e o u tr a s
cult ur as e da míd ia.
236
diferentes daquelas que podem obter espontaneamente e ao acaso, e
que não são obtidos em outros lugares. Por outro lado, é preciso
reconhecer as complexas redes de comunicação e contatos no mundo
atual, o poder de influência da mídia e a existência de inúmeras
culturas juvenis, onde a territorialidade, em termos culturais, perde
sentido. Isto nos ajuda a re-situar o olhar, complexificando a
análise, ao pensar as relações entre a cultura escolar/cultura da
escola e uma cultura social de referência, numa metrópole do
século XXI como a cidade do Rio de Janeiro. Este enredo, podemos
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dizer, está em aberto.
7
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Material gravado em CD:
Agoniza mas não morre. CD Elton Medeiros & Nelson Sargento.
Série Sucessos em dobro. Nº 924048, faixa 15, Gravadora Eldorado,
s.d.
A voz do morro. Zé Kéti. CD Os grandes sambas da história.
Coleção 40 CDs, nº 3. faixa 3, Globo/BMG, 1997.
Espelho. João Nogueira. CD João Nogueira. Coleção Os Originais.
Nº 833470-2, faixa 2, EM I, 1995.
Fica depois de Madureira. Beth Carvalho. CD Pagode de mesa. Nº
73145466812, faixa 7, Universal Music, 1999.
Nos pagodes da vida. CD Pagode da Tia Doca. Nº 4106002-1, faixa
17, Paradoxx Music, 2000.
252
O samba é carioca. Carmem Miranda. CD Os grandes sambas da
história. Disco 21, faixa 4. BMG, 1997.
Prá Oswaldo Cruz. Edinho de Oliveira. CD Negro. Nº 9804, faixa 5,
Etnia Music, 1998.
CD Samba no buraco do Galo. Nº 60710, Musitec, 2000.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0114347/CA
Teresa Cristina e Grupo Semente. CD A música de Paulinho da
Viola. 2 CDs. Nº 22005-2 e 22006-2, DECKdisc, 2002.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0114347/CA
253
Apêndices
254
Roteiro de entrevistas
Nome:
Data de nascimento:
Onde nasceu e foi criada/o:
Onde mora (bairro):
Desde quando está nesta escola:
Professoras/es:
Perguntas
O que quero saber
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0114347/CA
a) Por que ser professor/a? Se faz parte de seu projeto de
vida ou é sobrevivência
b) O que é o projeto “Azul Qual o sentido do projeto
pedagógico e sua relação
e Branco em
com a vida
movimento” e como
você o trabalha?
Como elas/eles vêem as/os
alunas/os
c) Como são os/as
alunos/as da escola
Como é a interação
Azul e Branco?
d) Como é a sua relação
com os/as alunos/as?
Tem contato e como é
e) Como é a sua relação
com as/os
responsáveis?
Se a escola faz parte da vida
da comunidade
f) Como vê a relação da
escola com a
comunidade?
Se conhece ou procura
conhecer algo sobre o bairro
Se tem alguma relação com o
g) O que sabe sobre a
história do bairro e seus bairro fora da escola
moradores?
h) Tem alguma
convivência no bairro
de Oswaldo Cruz?
Que relação tem sua
disciplina e sua forma de
trabalhar com a comunidade?
Se o/a professor/a vê ou
busca alguma relação com a
vida dos alunos em sua
disciplina
255
Nome:
Data de nascimento:
Onde nasceu e foi criada:
Onde mora (bairro):
Desde quando está nesta escola:
Diretoras:
Perguntas
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0114347/CA
i) Por que ser diretora?
O que quero saber
Se faz parte de seu projeto de
vida ou é sobrevivência
j) O que é o projeto “Azul Qual o sentido do projeto
e Branco em
pedagógico e sua relação
movimento” e como
com a vida
você o trabalha?
Como elas/eles vêem as/os
k) Como são os/as
alunas/os
alunos/as da escola
Azul e Branco?
Como é a interação
l) Como é a sua relação
com os/as alunos/as?
Como é a interação
m) Como é a sua relação
com as/os
responsáveis?
Se a escola faz parte da vida
da comunidade
n) Como vê a relação da
escola com a
comunidade?
Se conhece ou procura
conhecer algo sobre o bairro
o) O que sabe sobre a
Se tem alguma relação com o
história do bairro e seus bairro fora da escola
moradores?
Se o/a professor/a vê ou
p) Tem alguma
busca alguma relação com a
convivência no bairro
vida dos alunos em sua
Azul?
disciplina
q) Que relação tem sua
disciplina e sua forma
de trabalhar com a
comunidade?
256
Nome:
Data de nascimento:
Onde nasceu:
Onde foi criado:
Tempo de moradia no bairro:
Diretoria da associação de moradores:
Perguntas
a) O que o bairro tem de
bom ou interessante?
Se conhece o bairro e sua
história
b) Que convivência tem
com o bairro?
Se há interação com as
pessoas e atividades do
bairro
c) O que tem feito a
Associação de
Moradores?
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0114347/CA
O que quero saber
d) Como vê a escola Azul
e Branco e sua relação
com a comunidade?
O entendimento do papel da
associação de moradores
Que tipo de interação existe
e como vê o papel da escola
Nome:
Data do nascimento:
Onde nasceu e foi criado/a:
Onde mora atualmente:
Desde quando está nesta escola:
Estudantes:
Perguntas
O que quero saber
a) Como é estudar na
escola Azul e Branco?
A relação com a escola
b) Como é/são
seu(s)/sua(s)
professor(es)/a(s)
A relação com o(s)/a(s)
professor(es)/a(s)
c) O que aprende na
escola que tem a ver
com seu bairro?
d) O que sabe sobre a
história do bairro?
e) Que tipo de música e
dança gosta?
Se o/a estudante vê a escola
ensinando algo que tem a ver
com sua vida no bairro
Se conhece a história do
bairro
Se tem relação com a cultura
do samba
257
Nome:
Data do nascimento:
Onde nasceu e foi criado/a:
Onde mora atualmente:
Grau de parentesco com a criança:
Desde quando a criança está nesta escola:
Responsáveis:
Perguntas
a) O que acha da escola
Azul e Branco?
O que quero saber
Como vê a escola
b) Como a escola lida com Como é a relação da escola
os/as responsáveis?
com os/as responsáveis
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0114347/CA
c) A escola dá espaço para A relação da escola com a
a comunidade?
comunidade
d) O que sabe sobre a
história do bairro de
Oswaldo Cruz?
Se conhece a história do
bairro
e) De que atividades gosta
de participar no bairro? Se tem alguma ligação com a
cultura do samba
258
Entrevistas
Nome: Aída
Data do nascimento: 25/02/1965
Formação: Escola Normal e Psicologia
Função: Coordenadora pedagógica
Onde nasceu e foi criada: Rio de Janeiro/Oswaldo Cruz e depois
Leblon
Bairro onde mora: Sulacap
Desde quando está na escola: 1988
Data da entrevista: 11/05/2004
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0114347/CA
Como você escolheu se tornar professora e vir trabalhar na
Mozart Lago?
Vou ter que começar assim: como escolhi a profissão. Eu tive uma
influência muito grande da minha mãe, que foi uma mulher que
criou a filha para casar bem e ser professora (ri), psicóloga também.
Sua mãe era psicóloga e professora?
Não, era enfermeira, com licenciatura, uma pessoa muito voltada
para a educação, uma pessoa apaixonada por educação, então ela me
colocou numa escola normal, muito por desejo dela, mas eu acabei
gostando. Assim que eu acabei o normal, fiz o concurso para o
município e fui chamada. Então comecei a trabalhar num C IEP. E já
no C IEP, que foi a minha primeira escola, eu tinha todo um contato
assim, eu vou fazer um teatro, eu vou fazer uma dança, eu vou fazer
uma apresentação, eu gostei já de cara de trabalhar de uma maneira
diferente com as crianças. Fui pra Escola Azul. Eu lembro, a gente
conversa até hoje, eu cheguei na Escola Azul, cheguei com duas
professoras, né, novas também, a gente brinca, “você se lembra do
paredão?” Porque, assim, pessoas antigas, já com tantos anos de
casa, e nós três paradas olhando aquilo tudo. E eu, caramba, como é
que é isso? E eu fui começar a fazer o meu trabalho ali. Então eu
senti, realmente, assim, no início um pouco de dificuldade, porque
eu me achava assim um pouco diferente. Por outro lado, vou colocar
aqui, há 16 anos atrás, eu era novinha (ri), ainda sou, então, o que
que acontecia, né, eu acho que naquela época, eu era tratada assim,
como a mais novinha da escola. Então, quando a Lília fazia um
teatro, tinha um ar meio que doce envolvido nas questões, mas
foram me dando abertura para fazê-lo. Então, eu acho que a minha
trajetória profissional começou por aí.
A tua relação com a profissão é de quem gosta do que faz?
Eu adoro, adoro, adoro, adoro. Gosto mesmo. É desgastante, hoje,
depois de um tempo percorrido, além do processo de sala de aula, eu
acho que, assim, se colocassem, se eu tenho um diferencial meu,
profissional, é gostar do que eu faço. Adoro!
O que é o projeto “Escola Azul em movimento”?
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Olha só, primeiro eu tenho que diferenciar que existe um projeto
político pedagógico, não é isso? Então, eu posso falar do projeto
político pedagógico também?
Claro!
Então, o projeto político pedagógico aconteceu em três momentos,
né. Logo que eu saí da sala de leitura para a coordenação, foi em
199...6, ou 98, por aí, né, eu já levei um primeiro projeto político
pedagógico, que era o “Transformação”. Eu digo que ele era, assim,
bem artesanal, né, “objetivo, justificativa, pontos”, uma coisa bem
sucinta. E aí eu fui pra coordenação, lógico que cheia de gás, cheia
de vontade de mudar a cara do pedagógico da Escola Azul, né. Até
porque lembro muito do que um professor me disse, “Aída – o
Otávio, até de Português – a partir de hoje a Escola Azul não vai ter
a cara da Ana nem da Arlinda – na época uma outra Arlinda, que era
ajunta – a partir de hoje a Escola Azul vai ter a tua cara porque o
pedagógico é a alma da escola, então ele vai ter a tua alma”. Então
eu fico pensando, assim, que ele definiu bem o que eu estava
querendo. Então eu construí o projeto político pedagógico da escola
que foi o “Transformação 2”. E aí foi esse projeto premiado, né, por
que? Porque a gente trabalha, partia do pressuposto, que a gente não
tem que ter só teoria, tem que ter ação, né. Então chega de blablablá
e vamos para a ação. Passamos para o “Só o sonhador constrói o
futuro”, que também foi um movimento muito bacana, pensar nestes
sonhadores não como utopia meramente, mas como possibilidade de
conquista, e finalmente chegamos é, na, onde nós estamos neste
momento, que um, a construção de um novo projeto. Então, agora, o
projeto político pedagógico está em fase de construção. Eu estou
começando a colher estes dados, vendo a realidade atual da escola,
tentando me afastar um pouquinho destas confusões emocionais que
às vezes a escola passa, para poder situar o que que a escola está
precisando, né, qual é o formato que eu vou dar. E o projeto “Escola
Azul em movimento”, é, vamos dizer assim, seria o projeto
pedagógico. O tema que queria passar e passar pelos bimestres até o
final do ano. Então, todo ano, a gente seleciona um tema, diante do
maior, né, do projeto político pedagógico, como não tinha o maior
esse ano eu parti do movimento. Até para dar idéia de que? O que
que é o movimento? É tudo isso que está passando, indo e voltando,
né, o tempo todo. Então eu dividi em quatro momentos, né, o
movimento social, cultural, ecológico e histórico.
O que você entende por movimento cultural, como você estes
quatro movimentos que falou na vida da escola, como é que vai...
Trabalhar com o movimento cultural?
É. Ou o movimento histórico ou social. Como é que se traduz isto
na vida da escola?
O que que eu acho: essas quatro situações, esses quatro
movimentos, você está o tempo todo na escola. Eu acho que
dificilmente você trabalha só o cultural, só o histórico, eles estão
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interligados. Só que eu percebi que tem professores que têm uma
linguagem mais cultural. Então se você pegar uma professora, por
exemplo, de artes, então é específica, ela está com o cultural dela o
tempo todo. É lógico que quando chegar lá o dia mundial do meio
ambiente, ela, de repente, vai fazer uma pintura sobre meio
ambiente. Mas o enfoque dela é cultural. Ela está resgatando o meio
ambiente pelo cultural, pela arte, pela beleza, com essas
comparações, então eu vi assim, eu tentei dar em cada movimento
um enfoque maior que o professor pudesse dar naquele momento. Eu
tenho professora de terceira série que queria trabalhar com música.
O enfoque dela é cultural. Se ela vai resgatar pela história da
música, ela escolher de repente um cantor, entendeu, por aí.
Para que verificar se eu não interpretei mal, você falou sobre o
dia do meio ambiente como exemplo de como o projeto é levado à
prática. Isto quer dizer que o projeto tem a ver com as datas...
Não, não. Ao contrário (ri). Mas por outro lado – a gente estava até
discutindo isto – por outro lado, querendo ou não, todo mundo vai
estar em determinado momento falando assim, “Olha, dia mundial
do meio ambiente”, eu também não posso dizer assim, todo mundo
tape os ouvidos porque a gente não fala, não, dependendo a gente
vai até abordar, naquele dia, naquele momento, uma situação, mas o
enfoque cultural, o enfoque histórico, sobre aquela situação...
Que vai ser trabalhado ao longo dos semestres...
Exatamente, exatamente.
Como é que você vê os alunos da escola, na participação, na
relação com os professores, como é que eles são?
Olha, eu acho assim, eu sou suspeita, eu acho os alunos da escola
ótimos, sabia, até comparando, por ser profissional da educação em
outros locais,né. Eu acho que eu tenho alunos levados, tenho alunos
encrenqueiros, alunos chatos, ah!, isso tudo. Mas eu acho que o
aluno da Escola Azul, ele começa a criar uma cultura realmente de
participação, de querer, de estar envolvido, né. Hoje, por
exemplo,eu cheguei e eles estavam envolvidos, todos afoitos,
querendo se organizar para prestação, é, eleição de representantes
de turma que vai ter reunião amanhã, que eles vão falar, né, e
queriam ver o negócio da camisa, o sorteio, nossa, eles se
envolvem, eu acho que é preciso você motivar. Eu acho que eles são
bem participativos, bem!
A tua relação com eles, como você vê?
Ah, já foi melhor.
Por que?
Falta de tempo para ter contato com eles. Às vezes eu percebo, que
infelizmente, a situação do tempo, da demanda, você acaba se
distanciando muito do aluno enquanto direção, né. Trabalhando o
burocrático, o papel, o telefone, a entrada, a saída, o contato com o
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professor, papel pedagógico, o planejamento, bababá, e quando vai
na sala de aula é muita bronca, muita cobrança e já tive – eu, Aída –
já tive um movimento com eles, nossa!, muito mais gostoso, né,
assim como está ali (apontando para a reportagem do colégio
particular que ela também trabalha) “tia Aída, do teatro, um beijo,
tchau, tô com saudade”. A minha relação com eles era muito assim.
Aída, eu assisti a duas reuniões do Centro de Estudos e somente
em parte de uma você conseguiu discutir assuntos pedagógicos e
a maior parte eram questões administrativas. Tenho observado
na secretaria a diretora Ana e a adjunta Arlinda muito
envolvidas com questões administrativas. Como você vê isto?
Como um fator super negativo, super negativo. Porque eu acho que
na realidade a escola não é isso, né, não é papel, não é número e
você acaba tornando a escola isso. Se você não tomar cuidado –
hoje eu estava até pontuando isto em relação da reunião de amanhã
– se a gente não tomar cuidado, isto vira uma bola de neve! Assim,
a gente neste sufoco do administrativo, as professoras no sufoco do
dia a dia de sala de aula mesmo, que com certeza é desgastante, se
você não tiver um canal para escoar isto tudo, a gente faz o que
aconteceu no COC ali atrás (referindo-se à reunião do Conselho de
Classe do dia 30/04/2004, que foi tenso e havia um clima de pé de
guerra dos professores com a direção descrito nas páginas 173 e ss.
do Diário de Campo), o negócio explode, né. Por que? Porque
alguma coisa está acontecendo. Então, ao invés de você utilizar até
a avaliação, você tem que olhar para isso. Quanto ao administrativo,
só assim, quanto ao administrativo em si, eu acho muitas vezes – eu
já propus isso algumas vezes – que a gente se repensasse mesmo,
sabe.
No COC houve problemas e muita discussão. Como você vê o
problema da indisciplina e a reação dos professores?
É, eu vejo assim, a indisciplina hoje ela é fato. Eu acho que
historicamente ela sempre existiu (??????????). Em algum momento
nós também tivemos nosso momento de revolta, eu lembro dos meus
tempos de escola, né, onde você tinha seus momentos de revolta. Só
que hoje você tem uma outra sociedade, um outro papel da família,
uma mãe mais ausente, uma lei que permite tudo. Então realmente
eu acho que a gente está numa crise. Acho que não é a escola, acho
que os aparelhos ideológicos de Estado estão precisando funcionar
um pouco melhor, que estão numa crise social em relação ao
adolescente, à criança, a essa formação aí, né. Então, ela existe na
escola? Ela existe. Eu só acho que a gente tem que buscar
estratégia. Eu sempre discuto isso com as meninas: gente, pra tudo
tem uma solução. Não adianta, eu não consigo conceber, você viver,
passar 24 horas dentro de uma escola reclamando que os alunos são
horrorosos. E aí, o que que você faz? Você tem que ter uma
estratégia. Eles não podem sair daqui: “eu venci”, né, eu não
consigo conceber isso. Então a gente cria todo um movimento
inverso, exatamente um movimento de estar pensando, estar
262
questionando. Aí você vai buscar umas estratégias de punição entre
aspas, outras de motivação, outras de conversas. Por exemplo tem
uma turma que está aterrorizando a escola que é a 62. Todo mundo,
assim, Ah, a 62, a 62! Aí os professores já foram até na frente do
próprio aluno: “Ah, a 62 é terrível, essa turma aí!”. É tudo que eles
querem, né, estão criando aquela... E aí, me relatando os problemas
que eles estão passando, eu pensei, o quê que eles estão precisando?
Eu – isto eu pensando sozinha – caramba, eles estão precisando de
uma dinâmica de grupo, umas discussões, dividir a turma em grupo,
com uma pessoa que esteja ali – eu sei que falta essa pessoa – aí
que eu digo, a Aída poderia entrar? Nessa hora eu acho que eu
poderia entrar, né, até por uma questão de formação, então eu teria
como ajudar essa turma a resgatar alguns valores. Aí é a falta de
tempo, entendeu, eu digo deficiente por isso.
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Falando sobre a questão da indisciplina, você falou sobre mães
ausentes. Como é sua relação com os responsáveis?
É, eu, eu, é, boa, assim não é ruim não, até porque eu não tenho
esse contato tão direto, aí como tem a Ana e a Arlinda.
Mas você tem feito algumas reuniões...
Ah, não, eu tô em todas. Até sou eu, assim, geralmente a reunião de
responsáveis, eu faço, eu que dou, a Ana depois vem dar, eles têm,
assim, a gente até brinca muito com isso, a Ana, ela tem uma
presença muito... marcante na escola, né. Então não adianta, a gente
brinca com isso, tem um lado bom e tem um lado ruim. Não adianta
que as pessoas não vão enxergar autoridade maior além da Ana ou
igual, ou um pouquinho abaixo. Não, é a Ana. Então muitas vezes:
“eu quero falar com dona Ana”, eu falo, “eu posso ajudar?” Não, é
só com a dona Ana. Aí a dona Ana vai entrar – você vê isso lá –
dona Ana vai entrar e ele vai perguntar uma besteira que eu poderia
ter resolvido ou Arlinda, mas tem que ser “dona Ana”. Enfim, esta é
uma questão de personalidade dela mesma, a presença dela. Então,
por um lado, eu, o que que acontece, a mãe dela é moradora ali,
então ela conhece, ela sabe, então isso também é uma coisa que
facilita muito pra ela o contato com as mães, entendeu.
Aproveitando, como você vê a relação da escola com a
comunidade, com o bairro ali?
Ah, eu acho que é legal por isso. Porque, assim, são dois fatores
interessantes. Hoje eu tenho a Arlinda que mora na rua quase que ao
lado da escola, a Ana que tem a família morando dentro do próprio
conjunto habitacional. Então isso cria, quer dizer, ela vive ali, ela
tem essa realidade: “fulano, eu conheço, fulano estava ali, fulano é
amigo de fulano. Então eu acho que tem esse conhecimento, essa
proximidade com a comunidade. Ana conhece todo mundo ali, e isso
é muito bom. Eu não. Se você me perguntar quem é o Joãozinho, eu
não sei. Entendeu, eu entro e saio realmente com meu carro, eu
tenho menos contato.
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Mas você nasceu aqui...
Ah, eu nasci mas por um aborto da natureza (ri). Mas eu saí do
bairro há muito tempo.
Pois é, e o que você sabe da história do bairro, da vida do
bairro?
Ah, muita coisa, porque, por exemplo, não é assim também, né, eu
não sou alienada da história do bairro, até porque, após o meu
primeiro casamento, eu fui morar em Oswaldo Cruz. Foi por isso
que eu fui trabalhar lá. Eu morava ali muito próximo à escola. Só
que do outro lado. Mas assim, do outro lado mas não do outro lado
[da estação] de lá, próximo à escola. Então, óbvio que eu conheci,
eu, por exemplo, bairro, do subúrbio, que modifica muito pouco,
que tem essas questões de modificações no dia a dia, eu acho
superinteressante, Oswaldo Cruz é igual durante os meus 39 anos
(ri). Você entra e sai, vai e volta, vai e volta, e está igual! A cor do
portão da dona fulana de tal mudou e o filho casou e construiu em
cima ou quem sabe está morando junto! Então é muito interessante
você fazer uma leitura assim do panorama do bairro. Ali próximo eu
tenho morando a minha tia, a minha avó. Eu tenho minhas raízes
também em Oswaldo Cruz, só que é um pouquinho mais longe do
centro ali da escola. É Oswaldo Cruz com a Henrique de Melo. É um
pouquinho mais para Bento Ribeiro. Ali é Oswaldo Cruz também.
Você nota muito isso. A casa da minha tia é a mesma coisa, mudou,
cresceu um andar, porque o filho mora em cima, minha avó mora
atrás (ri). A coisa de passar geração em geração, a coisa só vai
fazendo um pouquinho assim [mostra o indicador e o polegar para
dar a idéia de tamanho minúsculo]. E os vizinhos à sua volta, a
maioria é assim, né. E não muda e não buscam melhoras para o
bairro. É a tendinha do seu João está ali ainda, que está velhinho,
mas está lá. Essa é uma característica que eu acho muito
interessante.
Além destas características, há mais alguma coisa, porque é um
bairro que não tem fábricas, não tem comércio...
Não tem. É um bairro realmente de moradores. Eles estão ali,
engraçado, quando você entra, às 7:30h, chega ali no Buraco do
Galo, estão todos os moradores saindo, indo para a estação. Você vê
aquele monte de gente vindo, você está indo para escola e aquele
movimento contrário. Então, na realidade, a Ana até coloca nas
reuniões, quem mora em Oswaldo Cruz somos nós, né (ri). Eles não,
eles vêm sábado e domingo passar o final de semana em Oswaldo
Cruz (ri). A gente é que está ali mesmo, que vivencia, que passa
aquilo tudo. É um bairro difícil de parcerias, porque você não, até
uma época muito legal que a gente começou a contatar parcerias a
gente não tinha muito... Onde procurar? Só se for a padaria do lado.
Então isso dificulta um pouquinho, entendeu?
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Entrevista:
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Nome: Ângela
Data de nascimento: 10/02/1959
Formação: Normal/Letras UFRJ/Especialização em Docência
Função: professora 4ª série
Onde nasceu e foi criada: Rio de Janeiro/Oswaldo Cruz
Bairro onde mora: Oswaldo Cruz
Desde quando está na escola: 1996
Data da entrevista: 26/05/2004
Ser professora, o que isto significa para você? Opção, acaso?
... Em princípio, imposição, porque pertenço a uma família
tradicional, poucas mulheres e muitos homens. Todas são obrigadas
a cursar o normal. Então eu fui cursar o normal obrigada, não por
escolha própria. Eu queria na época fazer informática. Minha mãe
não permitiu e fui estudar no Carmela Dutra. Eu sempre estudei na
cidade, foi a minha primeira experiência estudar na zona norte. Eu
sempre estudei no centro, até mesmo porque meus pais tinham um
comércio no centro da cidade. E como eu fiz no Carmela, teve uma
prova de seleção, montaram uma turma modelo, eu pertenci a essa
turma, acabei sendo representante desta turma. Uma turma que
começou a fazer estágio desde a primeira série e um estágio
diferente das outras, porque nós tivemos contato com várias
realidades, tipo [escola] Benjamin Constant, Apae, [escola
Gabriela] Mistral, em escolas que tinham [método] Montessori, e eu
comecei a gostar. Mas inicialmente, terminei o normal, passei no
ano seguinte para a Federal, fui cursar Letras, já no terceiro período
eu fui convidada por um professor para dar aulas num colégio de
primeiro grau, agora se chama segundo segmento, antigo ginásio. Eu
comecei muito cedo em sala de aula e em seguida passei para o
segundo grau, eu dou aula de português até hoje. Em 1988...
Você dá aula em colégio aqui...
Dou aula agora na comunidade também, no Colégio Marrom, que é
segundo grau. Em 1988 houve um concurso [do município] e
pagaram a inscrição para mim. Eu fui ver não tinha para a minha
cadeira, aí eu fui fazer para normal, professora de primeira à quarta,
só para não perder o dinheiro e acabei passando. Eu não ia tomar
posse, deixei pra lá, abandonei realmente. Um dia, à noite, recebi
uma ligação, da Secretaria Municipal dizendo que ia caducar, todo
aquele procedimento. Aí, à pessoa que me atendeu, agradeci, mas eu
disse que não ia comparecer. Comentei com a diretora do [colégio
do] estado, e a diretora disse: “não, você vai!” Mas eu nunca dei
aula para criança. “Mas vai ser uma experiência nova, você vai
sim”. E eu me apresentei. Mesmo assim pedi prorrogação de posse
por dois anos (ri). Aí, já findando, recebi uma nova ligação, que
naquela semana eu teria que escolher uma escola. Aí a minha
primeira experiência foi em Campo Grande, no CIEP Alegria, com
crianças lá de uma favela lá, Caminho do Céu. Eu comecei a
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265
trabalhar com essas crianças, no início como professora de apoio,
mas por não ter uma experiência de sala de aula com criança, meu
discurso era outro, então eu comecei a trabalhar a parte lúdica, a
história, através da história, é... começar a desenvolver controle
programático. A diretora ficou encantada com aquilo, ela não tinha
visto aquele tipo de trabalho, mas eu fiquei lá somente dois meses.
Depois eu fui trabalhar em Bangu, que foi cinco, seis anos em
Bangu. Foi uma experiência diferente, que era dentro de uma favela,
com crianças carentes e eu comecei a aprender com as crianças, essa
foi a verdade. Eu comecei a aprender com as crianças, comecei a
rever meus conceitos, eu comecei a freqüentar cursos, ler muito, a
pesquisar, a conversar com outras pessoas, a buscar maneiras
diferenciadas de dar aula. Não aquela aula tradicional e fui me
encantando com o trabalho, depois eu pedi transferência e vim
trabalhar na comunidade. Eu pedi transferência por problemas
particulares, porque eu preciso estar perto da minha casa, meu pai
tem um problema grave de saúde, eu preciso estar próximo até para
dar um socorro imediato, e até hoje continuo. Já tenho, com o
segundo grau, 26 anos. E por estar trabalhando na comunidade,
surgem situações assim, tipo, esse ano mesmo, eu tenho uma aluna,
aqui comigo, a Fulana, e a mãe da Fulana é minha aluna no segundo
grau. Mas eu tenho sempre a preocupação de não permitir que as
coisas não se confundam. Eu não permito que a mãe pergunte para
mim nada que diz respeito à sua filha, se ela quiser conversar
comigo ela tem que vir ao colégio. Trabalhar na comunidade
também – eu deixo isso sempre muito claro para os meus alunos –
que quando eu passo daquele portão... aqui na comunidade todos me
conhecem como Ana e aqui no colégio eu sou a tia Ângela.
Inclusive quando eu vim trabalhar aqui, aconteceu uma situação
muito interessante, porque eu peguei uma turma de C.A., que era a
minha experiência lá na zona oeste, eu trabalhava com C.A. levava
até a primeira série e retornava ao C.A., então a maioria dos pais me
conhecia e chegava aqui queriam falar com a Ana e apresentavam a
diretora [que tem o mesmo nome]. Aí eles ficavam “não, não é ela
não”, até descobrir que era eu. Então é muito comum isso aqui e eu
deixo muito claro para os meus alunos e para os responsáveis
também, porque a maioria aqui é meu vizinho. Mas em nenhum
momento eu participo aos responsáveis o que acontece em sala de
aula. Se quiser falar comigo como professora, tem que dirigir-se ao
colégio. Eu sempre delimito esse universo. E vem dando certo, eu
estou aqui há 8 anos, nunca tive problemas. Até mesmo por ser da
comunidade, eu tenho um respaldo dos responsáveis por eles me
conhecerem como pessoa. Eu vim morar aqui eu tinha 5 anos de
idade. Eu tenho criança aqui que os avós me conheceram pequena
com 5 anos. Então, acontece assim, quando o responsável pelo aluno
vê na fichinha que é meu aluno, “Ih, já sei quem você vai pegar”,
porque me conhece como pessoa e sabe até da minha posição,
também tem a parte da Igreja, muitos aqui, nós freqüentamos a
mesma Igreja. Eu tenho esse cuidado, de todas as segundas-feiras –
uma vez eu até falei pra você participar – é todas as segundas-
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feiras, o nosso primeiro momento, eu trabalho muito a cidadania
com eles, o respeito, que nós temos que nos respeitar. É uma turma
grande, você vê que a minha turma é grande, é um espaço até que
provocam determinadas situações, mas nós conseguimos conduzir.
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Como você vê o projeto político pedagógico da Escola Azul e o
que você trabalha em sala de aula? Como vê esta relação?
Olha só, esse ano, inclusive, está sendo veiculado na televisão sobre
a água, eu tenho até uma certa facilidade, por ser da comunidade, eu
consigo... destacar determinados fatos, contar determinadas coisas,
eu sei a história de Oswaldo Cruz, eu sei como iniciou a construção
desta escola, o porque da construção desta escola, esses prédios,
esse rio que não era aí, como era anteriormente, antigamente, que
esse rio tinha peixe, sobre até o encanamento daqui que estourou. O
projeto desse ano, que nós estamos trabalhando, é interessante
porque as crianças se conscientizam, eles levam isso pra casa, você
consegue trabalhar a criança, e você consegue ter o retorno, e o
próprio responsável: “Ih, eu estou mudando meus atos”, porque de
tanto ficar insistindo...
... como é que você vê os alunos aqui da escola? Os seus e os
outros alunos em geral?
... em que sentido? De aprendizagem, de...
Em todos os sentidos. Em relação à aprendizagem, à relação com
os professores e os outros colegas...
Eu, como conheço outras comunidades, até mesmo por conta da
Igreja, eu pertenço, eu sou uma das fundadoras daqui da São João
Evangelista, eu ajudei a construir, aqui na Pereira de Figueiredo...
Mas isto é...
Igreja Católica. Eu agora estou lá na Nossa Senhora Medianeira.
Apesar de nós termos vários credos religiosos dentro da sala de
aula, nós respeitamos muito isso. Eu inclusive vou à Igreja de
outras crianças, para que eles percebam isso... Ah, sobre as
crianças! Uma vez, teve um questionário aqui, aí teve um colega
que disse assim, que a comunidade aqui era carente. Eu falei: alto
lá! Discordo. Eu pertenço à comunidade. Eu posso dizer que eu vim
pra aqui eu tinha 5 anos, eu tenho 45. Então, eu mais do ninguém,
eu vi crescer Oswaldo Cruz. Eu não considero Oswaldo Cruz uma
comunidade carente. Eu não considero [os alunos da] Escola Azul,
crianças carentes. Nós temos crianças carentes? Temos. Mas
podemos generalizar? Não! Não, porque...
O que você está chamando de criança carente?
Criança carente pra mim é aquela criança que não tem alimentação,
que não tem lazer, que não tem nem o material didático básico para
vir pro colégio. Eu conheço comunidades assim. Eu até conto para
as crianças aqui, para que eles até valorizem o que eles têm, o que é
dado para eles em termos dos pais, da escola. Eu conheço
267
comunidade assim, de crianças que são muito diferentes, crianças de
passar mal numa sala de aula, não conseguem aprender nada porque
ela não tem uma alimentação, a alimentação dela é zero.
Voltando aqui para a Escola Azul...
Na Escola Azul, a minha filha, até o ano passado, estudava na
Escola Azul.
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Ela tem quantos anos?
Ela tem 9 anos. Ela fez aqui educação infantil, os dois anos de
educação infantil, o C.A. e a primeira série. Agora que ela está em
outra escola... Por que eu tirei daqui, quer saber?
Interessante saber...
Interessante?! Por que eu tirei a minha filha daqui? Porque
infelizmente, existem pessoas que acham que o rendimento da
criança está ligado, diretamente ao responsável por essa criança, no
caso eu que sou a mãe. E começaram a surgir determinados
comentários, desagradáveis. Então eu peguei e tirei ela do colégio,
porque ela é criança e antes que chegasse ao ouvido dela, eu preferi
tirar, mas se eu não tivesse confiança no trabalho das minhas
colegas eu não tinha tirado a minha filha de uma escola particular –
que ela estava numa escola particular – e trazido pra Escola Azul.
O problema foi o disse-me-disse...
É, não entre as colegas, mas por pertencer à comunidade a gente
ouve. Sempre chega.
Ah, o problema veio da comunidade...
Da comunidade. Daqui, mas de maneira alguma! Ela estaria aqui até
a 8ª.
E os alunos em geral, você ainda não falou...
Olha só, são crianças que tem rendimento acho que adequado à
idade, interessadas, que você encontra o retorno. Eu sempre acredito
no meu aluno. Eu estou sempre buscando mais com eles. Eu estou
sempre envolvida com a turma, sempre apostando na minha turma. É
claro que não existe a turma perfeita, isso não existe. Vai acontecer
daquele aluno que vai ter dificuldade? Vai! Mas eu estou sempre
acreditando no meu aluno. Eu não consigo vislumbrar assim, ah eu
vou dar uma aula diferente porque ele não vai conseguir, eu não
vejo assim. Eu estou sempre dando o meu máximo pra eles, para que
eles, dentro da alimentação [?] de cada um retire o máximo deles.
Vai acontecer diferenças? Claro! Olha só, no ano passado eu tenho
uma aluna aqui que ganhou bolsa de 100% no [colégio] Santa
Mônica. Está lá! Uma outra menina ganhou 60[%]. Minha antiga 4ª
série, do ano retrasado, uma foi para o colégio militar, uma está no
Santa Mônica, outra foi pro Lemos de Castro. Vieram de onde?
Escola Azul. Então eu estou sempre acreditando.
268
E como é sua relação com os responsáveis?
O que eu falei pra você. Por ser da comunidade, até tem uma certa
diferença em termos do que eles vêm falar comigo. Porque uma
coisa é você falar com o professor que vai embora, outra coisa é
você falar com o professor que mora exatamente na mesma rua que
você.
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Como você avalia esta relação?
Boa. Nunca tive problemas. Inclusive ontem na reunião de
responsáveis, teve um responsável, conhecido meu, de criança, ele
perguntou como ia o comportamento. Eu falei para ele, você
conhece quem você tem em casa? Ele falou: “conheço”. Então pra
que eu vou falar sobre isso? É normal, tem criança que fala muito,
tem criança que não fala nada. Agora, eu permito que a coisa...
evolua? Não! Você esteve aqui e você viu. Eu só olho. Eu só olho
pro meu aluno. Eu só olho para ele. Porque antes eu até conversei
com ele, trabalhei antes com ele.
E a relação da escola com a comunidade?
Eu acho boa, porque essa escola aqui é muito procurada. É ponto de
referência mesmo. Inclusive eu tenho alunos aqui que moram na
Praça Seca, em Valqueire, em Madureira. É uma coisa que vai longe
do bairro. E é uma escola procurada, muito procurada. Tanto que é
difícil para o aluno conseguir transferência para aqui. O nosso
aluno, ele está aqui desde a E.I., está desde a E.I.
Você disse que conhece a história do bairro. Fale um pouco
sobre esta história, sobre o que você acha importante,
significativo na história do bairro...
O samba! (ri) Porque, olha só, aqui estes conjuntos, está inserido a
escola. Eram dois campos de futebol enormes. Então, onde é a
UERJ, lá em baixo, perto da Mangueira, era a favela do esqueleto. O
que aconteceu, houve o projeto de construção da universidade ali
acho que foi escolhido Oswaldo Cruz, porque estes conjuntos, eles
foram construídos assim, dia e noite, sem parar, mas sem parar
mesmo! Sem parar mesmo! O canteiro de obra era aqui na D.
Vicência, ali era paralelepípedo, ali é que foi o canteiro de obras,
essa construção foi dia e noite. Então aquela favela do esqueleto, o
projeto era vir pra cá. Só que não foi bem assim que aconteceu não.
Eu sei de histórias aí de pessoas que ficaram lá para serem
cadastradas e vieram pra cá, depois pessoas que conseguiram
apartamento aqui venderam, passaram pra outros. Então estes
apartamentos foram construídos dia e noite, a obra não parava...
Todos esses blocos?
Todos esses blocos.
Uma parte, pelo menos, vem da favela do Esqueleto...
Da favela do esqueleto. Eu creio que a favela do esqueleto é essa
parte de trás aqui. Esse rio não era ali. Esse rio, ele passava
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exatamente onde, não tem a pracinha? Ele passava por ali, era
estreitinho, tinha uma, o pessoal chamava de pinguela, era de
madeira, era de tábua, quando você passava aquilo tremia tudo. Esse
rio tinha peixe e as pessoas pescavam ali em cima da ponte da João
Vicente, ficavam pescando de vara, um peixe que o pessoal daqui
chamava de cambotá, era um peixe que tinha uns bigodes. Quando
chovia, isso aqui enchia tudo. Mas enchia mesmo. Tanto que a
minha casa é mais alta que a [rua] Cataguazes, que já é alta, um
metro e treze centímetros e na última grande enchente do Rio de
Janeiro entrou água dentro da minha casa. Para você ver como esse
rio era estreito. Quando foram feitos esses apartamentos então,
fizeram esse rio aí para colocar o esgoto dentro dele – eu acho isso
supererrado – depois desviaram o rio para dentro desse outro que
você conhece e depois foi aterrado. É onde é o Oswaldão, onde o
pessoal chama de Oswaldão, ali na pracinha, na d. Vicência, aquilo
ali é invadido, é uma área invadida. Aquilo ali foi aterrado com
ferro de fundição de transformador, transformador de rua. Vinham
uns caminhões e jogavam ali para aterrar. Aquelas construções ali
ainda não ruíram porque é tudo uma do lado da outra. Porque se
fosse casa construída com quintal já tinha tido casa comprometida
ali. Inclusive eu tenho alunos que moram ali que dizem que parede
ali racha. Eu falei: você sabe por que? Porque ali é área de
fundição.
E esta história do samba?
O samba era aqui na Cataguazes, não, estou mentindo, aqui na d.
Vicência, tinha o flamenguinho, era uma casinha para as pessoas se
reunirem, negócio de futebol, aí tinha o Rosa de Ouro ali em cima,
que tinha um pessoal da Portela, tinha a tia Noca [Doca?], mas Rosa
de Ouro foi indo, foi indo, acabou, aí foi pro outro lado. Quem sabe
contar muito a história do samba é Careca, sabe mais do que eu.
Careca você chama de Fininho, Vanderlei, ele tem vários nomes,
você pode escolher um. Ele sabe mais esta parte porque ele está
muito envolvido. Por exemplo, dali da rua, eu via sempre Paulinho
da Viola, Beth Carvalho, que ficavam aqui na Dona Vicência, aí
depois teve esse projeto do trem do samba e a coisa foi crescendo,
era um trem, agora são três. Começou com um, passou para três e já
tem projeto para 5. Eu sou do tempo que a Portela, quando acabava
o desfile lá do centro eles desfilavam lá do outro lado, na rua
Carolina Machado, que tinha coreto. O Bloco das Piranhas, de
Madureira, passava aqui na Cataguazes! Eles iam na minha casa
tomar água. Minha mãe já conservava aquelas garrafas todas para
dar para os rapazes, que a maioria era daqui da nossa comunidade
que ia desfilar. Então isso é uma história antiga que foi crescendo
de uma outra maneira, agora já está para Madureira. Ainda lembro
desta parte, do desfile aqui do outro lado, da Portela e a confusão da
Portela com o Império. Quando eu era criança era feia!
Você participa das atividades do bairro, faz alguma coisa?
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Anteriormente, até participava aqui, da Portela, que era do outro
lado, tinha coreto... Quando os apartamentos começaram a ser
habitados, muita coisa começou a mudar, porque o meu muro era
baixo agora o meu muro tem mais de dois metros. Porque aqui todo
mundo se conhecia. Todo mundo se conhecia. De repente, nós
recebemos um número enorme de pessoas que nunca tínhamos visto,
que não eram, não tinham assim, que não eram nascidas aqui.
Porque a maioria daqui, todo mundo, ou vem pra cá muito pequeno
ou nasceu, cresceu, casou e está aqui até hoje. Está aqui até hoje.
Então, na rua onde eu moro, a Dona Vicência, todos se conhecem.
Todos se conhecem. Na rua Cataguazes, muitos morreram, outras
pessoas vieram, já não é a mesma coisa. Era comum aqui, Natal,
depois da meia-noite, todos nós íamos para a rua, com o que nós
tínhamos em casa, e todos ficávamos juntos. Nós não podemos mais
fazer isso. Era comum, no verão, todos ficarmos na porta de casa.
Nós não podemos mais fazer isso. Por que? Porque a comunidade,
ela cresceu de uma maneira que você não sabe mais quem é. Porque
antigamente todas as casas eram próprias e agora, o que está
acontecendo? Muita casa alugada.
Mas tem a televisão que prende muito as pessoas em casa...
Mas mesmo assim, era comum, depois que as casas passaram a ser
alugadas, as pessoas começaram mais a ficar, são poucas as pessoas,
só uns pedacinhos ainda da rua que as pessoas, mas as pessoas
ficam ali...
Entrevista:
Nome: Aninha
Data de nascimento: 05/10/1990
Formação: 7ª série
Situação: aluna, diretora do grêmio
Onde nasceu e foi criada: Rio de Janeiro/Oswaldo Cruz
Bairro onde mora: Oswaldo Cruz
Desde quando está na escola: 1995
Data da entrevista: 26/05/2004
Como é estudar na escola Escola Azul?
Ah, como é que é estudar aqui... Desde que eu entrei, tem muita
diferença de quando eu entrei aqui. Agora eu não quero nem mais
sair, eu quero, não sei, eu não quero nem mais sair daqui. Eu queria
que aqui tivesse o primeiro ano (ensino médio), assim, de noite,
para eu poder vir pra cá. Eu não quero sair daqui.
Por quê?
Eu já me adaptei muito aqui, às pessoas, o jeito... não sei, eu não
quero ir pra outra escola.
271
Explica um pouco melhor o que você acha de interessante aqui
que faz você gostar tanto.
... a educação, o modo que as pessoas me tratam aqui, não só
comigo, mas com os alunos...
Você se refere aos professores, à direção...
Aos professores, à direção.
E os colegas?
Os colegas também. A disciplina, o comportamento daqui da escola,
como... como eu comparo essa escola com outras, eu vejo que é bem
diferente esta escola.
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Como assim?
Aqui... deixa eu ver. Aqui você chega e fala assim: “ah, eu não
quero fazer o trabalho”, e a professora: “não, tu tens que fazer”. Em
outra escola o aluno fala que não quer fazer o professor diz: “ah,
não faz, o problema é seu, se vira”, fala assim mesmo. Eu estou
cansada de ver isso.
Fala um pouco de seus professores. Como você vê seus
professores.
... Ah, os professores são muito... muito legais, muito bons,
mesmo... Todos são legais, interessantes.
Como é a aula deles? Você destaca algum?
Eu destaco a D. Adélia, D. Fulana, D. Anita, destaco bem elas são
professoras, assim, que sabem dar aula bem, é boa como professora
e como pessoa mesmo.
O que você aprende aqui serve para a tua vida, tem a ver com a
tua vida, tem a ver o teu bairro...
Serve! A escola é o lugar que eu passo mais tempo, as pessoas da
comunidade, a maioria, não todos, estudam aqui...
Mas o que você aprende aqui você vê alguma ligação com a sua
vida aí fora?
... educação, modo de falar...
Você participa dos cursos extras que a escola dá?
Do IBEU, que isso foi a prefeitura que ofereceu para escola, aula de
dança, o núcleo de adolescente, com a professora Andréia, vôlei...
E você está no grêmio desde quando, por que começou a
participar?
Desde o ano passado, foi em maio, eu acho, que eu tomei a posse no
grêmio...
O que vocês fazem no grêmio?
272
A gente ajuda a escola, dá umas idéias, vê o que os alunos estão
precisando, dá opiniões...
O que te fez participar do grêmio?
A escola, o jeito, eu acho assim, eu fiquei muito apegada à escola,
eu estou muito apegada à escola, não sei, com isso, eu quero
melhorar a escola, quero estruturar bem mais ela do que ela é...
O que você sabe da história do seu bairro, sendo nascida e
criada aqui? O que você falaria para as pessoas sobre o bairro
de Oswaldo Cruz, para explicar como é o bairro, o que ele tem
de curiosidade, importância?
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... das escolas?
O que o bairro tem de importante? Se você tivesse que contar
para alguém sobre o bairro, que ele é assim ou assado, aconteceu
tal coisa...
... não sei... aqui não é um bairro violento... mas eu acho que aqui
as pessoas têm que se educar mais porque... aqui tem muita falta de
educação, principalmente aqui no “apê”...
Aqui onde?
No “apê”, aqui no “apê”.
Ah, no conjunto?
É. Aqui... está faltando mais escolaridade para as pessoas...
O que você chama de falta de educação?
Lixo, jogar lixo dentro do rio...
O que você gosta de fazer no bairro, de se divertir...
Jogar vôlei, eu adoro jogar vôlei, brincar na rua. Lá do outro lado
mesmo tem uma quadra de vôlei, que é da prefeitura também...
Você mora do outro lado?
Não, desse lado. Aí a gente vai pra lá, joga, quem quer, participa,
tem também Madureira, que agora está em obra (a praça), tem essa
praça aqui também...
E em termos de música, dança, que tipo você gosta?
Gosto de hip hop, não gosto muito de funk, gosto de música gospel,
dança contemporânea, como eu faço: street dance, balé, pagode,
samba...
Entrevista:
Nome: Ana
Data de nascimento: 11/08/1948
Formação: Escola Normal/Contabilidade
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Função: diretora
Onde nasceu e foi criada: Rio de Janeiro/Tijuca
Bairro onde mora: Vila Valqueire
Desde quando está na escola: 1977
Data da entrevista: 12/05/2004 e 18/05/2004
[Antes de começar as perguntas, Ana começou a falar]
Minha relação com a escola é bastante antiga. A gente tem uma
história juntas porque eu já sou aposentada, já sou aposentada e, eu,
comecei, quer dizer, professora desde 1968, me aposentei com quase
28 anos de magistério e eu comecei a minha, dentro da rede, numa
escola muito diferente dessa, que era uma escola... de morro, uma
escola na favela. De lá eu...
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Onde era essa escola?
Lá em Coelho Neto. De lá eu vim pra cá em 1977...
Esta escola foi inaugurada neste ano...
Esta escola foi inaugurada em 15/03/1977. Começou a funcionar em
15/04/1977, porque, da inauguração até a escola estar com uma
equipe pra começar a funcionar, levou um mês mais ou menos.
Então ela começou em 15/04/1977. Ou seja, [estou há] 27 anos.
E a direção...
É, aí eu vim, professora, né, trabalhei como professora até 1990. E
aí em 1990 eu tinha na escola uma colega e nós trabalhávamos
juntas há algum tempo, sempre naquela mesma linha de trabalho. Já
em 1990, ainda não se falava em multieducação, não se falava em
novas linguagens, novas tecnologias, mas a gente buscava um
caminho diferente para trabalhar. Pedagogicamente nós usávamos o
mesmo critério em nossas aulas. E foi assim que eu achei que ela
pudesse ser diretora da escola. Não sei se você sabe mas, diretor da
escola hoje é eleito, tem mandato eletivo que era de 2 anos e agora
é de 3. Então eu achei que ela pudesse dirigir a escola. E aí eu pedi
que ela assumisse a direção da escola, ou seja entrasse na chapa na
eleição. Aí ela fez, mas com a condição...
Quem era?
Era uma professora da escola, a Fulana, trabalhava comigo, e ela
aceitou na condição que eu fosse sua adjunta. Eu não tinha
pretensão alguma de sair daquilo que eu fazia e que eu gostava
muito. Aí ela me pediu se eu, estava bom ela até concordava desde
que eu fosse sua adjunta. E então nós tínhamos uma direção na
escola e ficou então uma chapa da situação e nós fomos oposição
naquele momento. E aí a gente ganhou, eu acho que a comunidade
estava querendo aquela mudança naquele momento, e a gente
ganhou, assim, por uma quantidade de votos enorme. Aí eu fiquei
adjunta por dois anos. No final de 2 anos, ela, por outros motivos,
ela não quis permanecer, foi um acordo da escola com ela, e aí, a
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escola, todos os professores me pediram que eu me candidatasse e
eu me candidatei e estou aí.
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E o projeto político pedagógico? Qual sua importância e onde
vocês querem chegar?
Esta questão do projeto, ele no momento, a Aída já falou com você?
Já.
É. Isso é uma história, né, porque quando, nessa época que nós
chegamos na escola, encontramos, assim, uma escola azul e cinza, a
escola era pichada desde o teto até o chão, os banheiros todos
pichados, funcionários que não, não, não limpavam a escola. A
escola tinha funcionários mas, ou seja, as pessoas não tinham
compromisso com a escola. O aluno não era comprometido com a
escola, o funcionário não era comprometido com a escola, o
responsável não era comprometido com a escola. Tinha uma
distância entre o pai e a escola, o aluno e o professor, o diretor e o
professor, o diretor e o aluno. Então, nós encontramos essa escola
nesse, pegamos essa escola nesse... Enquanto diretora começamos a
conquistar algumas coisas. Depois enquanto diretora, enquanto
adjunta, e depois enquanto diretora, comecei a bancar, me
incomodava muito a questão da escola. E aí começamos a discutir
essas questões, né, porque ninguém pode gostar de estudar, de
trabalhar num local pichado, lugar sujo, onde o servente não, não
limpa o chão, não varre a sala, onde o lixo está amontoado, a lata de
lixo está transbordando... nem eu gostava de trabalhar e não estava
gostando de trabalhar num local desse. Mesmo que a minha sala
fosse limpa eu preferia, de repente, que a minha não fosse e que a
do aluno fosse. Acho que, de uma maneira geral, a escola tinha que
ser toda limpa. E aí a gente começou a discutir essas questões de
meio ambiente mesmo. Ou seja, o trabalho da escola sobre meio
ambiente é bastante antigo. Então a gente começou a discutir isso
aí. Pra sorte minha, naquela época nós tínhamos um projeto aqui
que chamava de Projeto de... educação para o trabalho, porque como
você vê, nós temos algumas salas que são salas ambiente,
preparadas para isso. Sala de educação para o lar, sala de técnicas
agrícolas, sala de artes industriais, então nós tínhamos um trabalho
na escola. E eu estava iniciando um trabalho com o professor
Fulano, que era um professor de Técnicas Comerciais. Nós
estávamos conseguindo, colocando máquina de escrever para que a
Beltrana, que era outra professora de Técnicas Comerciais,
começasse a oferecer cursos de datilografia para os alunos. E por
intermédio desse professor eu conheci o professor Orlando, que foi
convidado a fazer uma hora extra aqui na escola pelo professor
Fulano e o Orlando para trabalhar com Técnicas Agrícolas. Aí o
Orlando chegou na escola. No que o Orlando chegou na escola, a
gente, com a visão dele de técnicas agrícolas, de meio ambiente,
formado em escola agrícola, a gente começou a conversar com ele
sobre essas questões. Porque a gente estava mais preocupado,
naquele momento, com a questão do meio ambiente escolar. Mais
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tarde que passou a falar de uma maneira mais ampla de meio
ambiente. Mas naquele momento: meio ambiente escolar! Que ele
não era um facilitador da aprendizagem, ele atrapalhava muito isso.
E aí a gente começou a bancar o trabalho junto com o Plínio, a
mostrar a árvore do lixo, e aí ele apanhava o lixo derramado nas
salas de aula e montou no meio do pátio uma árvore com todos os
papéis de biscoito, copo, lata, e aí a gente começou a montar e a...
incutir essas questões ambientais para as crianças. A gente começou
a perceber e a prefeitura começou a jogar a questão do projeto
pedagógico da escola. Toda escola estar amarrada num projeto onde
a comunidade como um todo: aluno, professor, direção e
comunidade em geral, responsáveis, funcionários, estivessem
participando desse projeto. Era tudo que a gente precisava então
para amarrar essa questão, né, do funcionário, começamos a discutir
com o funcionário porque ele não varria a sala, que o lixo estava
derramado, o refeitório estava sujo, e aí começamos a discutir com
o professor porque o aluno não estava sendo conscientizado para
manter a sala limpa, e como o aluno, porque ele estava sujando. A
gente começou a levantar toda essa questão, e aí a gente criou o
projeto político pedagógico chamado “Transformação”. Todos nós
buscaríamos essa transformação na escola. Ou seja, o funcionário a
limpar, o aluno a zelar, o professor a perseverar em cima da limpeza
e a direção da escola iria bancar então uma escola diferente. Aí nós
começamos a pintar os corredores, salas, montar salas claras, na cor
areia, botar a salinha do jardim na cor amarela, na cor verde,
começamos a pintar porta de marrom, começamos a fazer parede...
com esse trabalho que nós temos aí de texturização. Aí a gente
começou a mudar pra podermos chegar num projeto que deve ter
levado de 3 a 5 anos para acontecer. Agora já saiu, a escola já se
transformou, o projeto já durou o tempo que tinha que durar e a
gente já entrou em novos projetos. Já fala de meio ambiente de uma
forma mais globalizada, já sai dos muros da escola, já se fala no Rio
das Pedras vizinho mais próximo da escola, já se fala em questões
ambientais como a minha aluno que foi à Brasília participar da
Conferência do meio ambiente. Está participando hoje, junto ao
CREA do 6º movimento das águas, que esse ano é um ano que até a
Campanha da Fraternidade é baseada em cima da água. E aí a gente
começou a despertar essa consciência, e vai tocando aí.
Como são os alunos da escola?
Os alunos são como todas as outras escolas. A gente tem todos os
problemas possíveis, junto com eles. Eu, eu, Ana, eu tenho uma
visão diferente, um pouco diferente, do professor de sala de aula.
Diferente em termos, né, só estou falando diferente porque o
tratamento que ele [o aluno] tem comigo e eu tenho com ele, é
diferente do que o professor tem com ele e ele com o professor. Por
que eu digo isso? Porque são 27 anos dentro dessa escola! Então eu
fui professora dos pais de muitos alunos. A escola já está na terceira
geração. É muito mais fácil pra mim, eu acho que hoje a gente tem
um nível de respeito, eles me vêem como realmente o... o centro da
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escola, eles têm clareza disso. Por um lado, não é bom pra mim. Eu
me sinto assim, é... eu que tenho que encontrar estratégia pra
zangar, pra brigar, pra punir, pra... acaba voltando pra mim essa
questão. Mas eu não encontro nesse aluno, eu não consigo, não
aconteceu até hoje neste tempo todo, um aluno que me desrespeite,
um aluno que não, não... entendeu? Que não me tenha como diretora
da escola. Eu acho que eu não tenho essa visão desse aluno, eu acho
que é muito fácil lidar com ele. Eu acho que pelo entendimento nós
vamos chegar lá. Eu procuro mostrar para eles que, por um lado eu
sou assim muito... muito rigorosa, muito rígida, mas eu tenho um
outro lado em determinado momento que a gente conversa, eu faço
reunião com eles, então eles me vêem como esse, esse... elo entre o
professor e a arte que eles possam fazer. Mas eu acho que, de um
modo geral, a comunidade não é uma comunidade pobre, não é uma
comunidade de favela, todos eles vêm de uma casa de saneamento
básico, água, eles têm acesso aos meios modernos de comunicação,
então eu acho que eu não tenho essa dificuldade com eles, não.
E os responsáveis?
Da mesma maneira que acontece com os alunos, acontece com os
responsáveis. A “dona Regina” já é uma referência. “Não porque a
senhora pode fazer porque a senhora é mãe”, “não porque a senhora
pode fazer porque...” Eu já fui professora da mãe dele, já fui
professora do pai dele. O pai dele já passou por aqui, ou seja, não é
difícil. O que hoje está acontecendo e a dificuldade que a gente tem
hoje na escola é a falta desse responsável. Hoje, o que me parece,
com a experiência que eu tenho, a mulher quis muito conquistar o
seu, o seu lugar ao sol, mas ela, de repente, não estava preparada
para trabalhar as questões dela da casa, da família. Por um outro
lado, o pai também, se desligou muito da família. É raro – nós
fizemos uma enquete na escola – um aluno que tenha sua família
estruturada, ou seja, pai, mãe e ele como filho. Então não tem, o pai
não vive mais com a mãe, ele não tem contato ou ele tem contato
muito pouco com o pai, a mãe foi à luta, saiu para trabalhar e ele
vem pra escola! Então, o tempo que a mãe tem para vir à escola é
um pequeno intervalo de trabalho, quando ela é liberada do
trabalho, que é muito complicado isso de acontecer. Então, o que
acontece, a escola hoje educa, a escola transmite cultura e a gente
está cada vez mais assumindo o papel desse responsável que não
está presente na vida desse jovem. Nesse ponto eu sinto muita
dificuldade. Antes o pai, a mãe era muito mais presente. O que hoje
a gente ainda consegue aqui, através do Conselho Escola
Comunidade. A gente convida a comunidade para participar desse
projeto e convida a comunidade para participar deste Conselho
Escola Comunidade que tem na escola.
Como está sendo esta participação?
È, já houve, né. Em 4,5 e 6 de maio foi a eleição. O que é isso? O
aluno é candidato, o pai, o responsável é candidato, o funcionário é
candidato, o professor é candidato. Então, aluno vota em aluno,
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responsável em responsável, professor em professor e funcionário
em funcionário. Nós fazemos a eleição na escola e tiramos esse
Conselho Escola Comunidade que é um conselho sem fins
lucrativos, ele é pessoa jurídica, é registrado em cartório e através
dele nós recebemos verbas públicas.
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E ele tem o papel de fiscalizar essas verbas?
Ele tem o papel de... ele, ele opina, ele participa, ele não tem a
função de julgar, comprometer, mas ele tem a função de opinar. As
prestações de contas, vamos... botar um circuito de água gelada: eu
faço isso com ele, nós buscamos 3 propostas, assim compro o mais
barato, como nós vamos distribuir esse gasto, como nós vamos
gastar aquela verba, com o que, na hora da prestação de contas, é
com esse... esse CEC é o nosso principal parceiro.
Além do CEC, explique melhor como é que se dá a relação com a
comunidade. Por exemplo, ano passado houve um brunch num
sábado que foi oferecido para a comunidade. Como se dá a
relação com os responsáveis?
A relação com o pai hoje é uma relação complicada porque ele não
destina um tempo maior pra criança na escola. Este brunch é uma
forma de trazer esse pai para a escola. É um projeto EscolaComunidade, a comunidade é convidada, vai junto com a criança,
participar de um café, de um almoço, de oficinas, de atividades na
escola. Não do aluno, da família, não é o aluno na escola é a família
na escola. Agora, é isso que eu digo para você, não é tão fácil
assim, porque hoje a família [não] está presente o tempo todo...
E as oficinas que vocês estavam oferecendo...
É, como que a gente resgata isso? A Elvira tem uma oficina na
escola de reaproveitamento de materiais, nós ensinamos artesanato
para as mães, a professora Eneida de Educação Física faz, terça e
quinta uma oficina de ginástica, com alongamento, ela faz
caminhada de manhã com as mães. Nós buscamos essa parceria para
cada vez mais trazer a mãe para a escola.
E os representantes da comunidade? Existe uma relação, por
exemplo, com a associação de moradores?
Existe. A associação de moradores é um parceiro da escola. Ela está
sempre... buscando. Tem reuniões na CRE com a associação... Uma
pena que às vezes eles descambem muito para o lado da política, aí
querem buscar o espaço da escola pra... pra trabalhar esta questão e
aí a escola ela fica à parte da religião, ela fica à parte da política,
ela trabalha o pedagógico o tempo todo, o cultural o tempo todo,
diferentes linguagens o tempo todo. A gente fala de cidadania,
muito mais do, a gente não entra no mérito da religião, a gente
trabalha cidadania e não entra no mérito da política, quer dizer a
escola fica dentro do enfoque pedagógico mesmo.
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Mas... na questão do projeto político pedagógico, fala da relação
da escola com a vida, se a religião e a política fazem parte da
vida, como é que a escola pode...
Não, é porque a gente tem que ter esse cuidado porque hoje a gente
tem, são 900 alunos. A gente tem aluno que tem a religião muito
viva pra ele, muito presente, a gente tem aluno que não tem religião
nenhuma, a gente tem aluno que esconde a sua religião, a gente tem,
se nós é... permitirmos isso, muitas vezes a religião ela... ela invade
o nosso espaço. Vou te colocar um exemplo: no final do ano, o
Jardim, os pequenininhos, um exemplo, o padre Marcelo Rossi está
no rádio da... da população, não é? Se você colocar uma musiquinha
do padre Marcelo Rossi, tem mãe que não deixa o aluno participar
porque ela diz que ele [o aluno] não é católico. Ela não vê a religião
como um processo ecumênico. Hoje a gente já tenta buscar isso aí, a
gente já mostra pra eles que eles que estão no poder estão se
unindo, pra mostrar que religião não é eu acreditar na minha, eu
buscar a minha e acabou! Então, eu tenho mãe que não permite que
a criança saia de soldadinho na escola no dia do soldado! Porque a
religião dela não permite! Tem mãe que não permite que a criança
venha participar de um bailezinho de carnaval que nós fazemos na
véspera do carnaval, porque a religião dela não permite! Então, qual
é o foco que a gente dá para isso tudo? Sem entrar no mérito do...
do catolicismo, do protestantismo, nós falamos em ética e
cidadania. Nós trabalhamos a questão da amizade, do
companheirismo, da solidariedade, da união, da confraternização e
aí a gente não entra no mérito do santo, comemorar isso, comemorar
aquilo, santo isso, santo aquilo. A gente trabalha uma coisa mais
dentro da ética e da cidadania, dá para perceber? A gente evita
entrar no mérito da religião.
Bem e isto tudo faz parte da vida do bairro. Como é a história do
bairro – eu sei que seus pais moram aqui – e quais as
características, curiosidades do bairro?
É, moram, apesar de não morar aqui, eu faço parte da comunidade.
Esse... é, esse lado, esse pedaço onde a escola está inserida, eram
três campos de futebol, um pântano, um lugar que as pessoas
jogavam bola. Então, naquele tempo, a Companhia de Habitação do
Estado do Rio de Janeiro construiu os prédios. Uma coisa que
aconteceu aqui é que eles construíram, usaram toda a área com essas
construções mas eles não deixaram um espaço para área de lazer.
Eles utilizaram todo o espaço com os prédios. E aconteceu que a
comunidade ficou sem um espaço. Ela ficou amontoada de prédios
de 5 andares, com 40 apartamentos por prédio, amontoada sem um
espaço. O que a gente fez, a gente transformou, abriu a quadra, a
gente cedeu espaço. Então hoje, a referência do local é a escola. E a
gente busca uma discussão com eles dentro desse projeto da escola
hoje, que é fazer com que a comunidade entenda que ela tem que
abraçar este espaço.
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Estou me lembrando de uma conversa sua com os professores de
Educação Física sobre a questão do alambrado acima do muro,
que você mostrou preocupação com o pessoal que anda pulando o
muro. Como é que é isso?
É, não, a gente está buscando a questão do alambrado porque o
outro lado da rua é o rio Das Pedras. E o que acontece? O nosso
muro é muito baixo [+ou– 2,5m]. Então a bola do jogo de vôlei, a
bola do jogo de futebol vai embora pelo rio! Ela vai direto, se jogou
a bola mais alto, e se perde material de educação física e nós temos
cuidado. Fora isso nós temos uma de 400m², que era uma área
abandonada na escola e que essa área era... lugar de pular para se
esconder, era mato. Nós desenvolvemos essa área como um espaço
de meio ambiente dentro desse projeto de educação ambiental e uma
horta. Então hoje a gente já tem a preocupação da escola estando
fechada, deles pularem o nosso muro para utilizarem esses espaços,
porque são espaços próprios para a escola. Porque a quadra a gente
já tem um acordo, inclusive com a Associação de Moradores, que
num determinado período a gente abre, a moradora [da escola] abre
o portão e entram os senhores, futebol, casados e solteiros, eles já
entram com um filho de bicicleta, com um filho de patins. Enquanto
o pai joga bola ele vem para a escola. Tem um período, no domingo,
que a gente abre esse espaço para a comunidade. Agora o que nos
preocupa é que esses espaços onde a escola investe, como a questão
da horta que depois o produto da horta volta para a merenda escolar,
até para o aluno perceber que aquele alface não contém agrotóxico,
aquele tomate... ele viu, desde a hora da sementeira, onde ele
começa semeando até que ele passa para o canteiro e que vem para a
cozinha da escola. Isso aí é um processo que acontece, de trabalho
pedagógico. A nossa preocupação é que eles entendam que esses
espaços não são determinados para a comunidade.
E a questão do projeto cultural? A escola interfere na
comunidade de alguma maneira?
Oswaldo Cruz é um bairro meio pendurado em Madureira. O centro
mesmo é Madureira, não é Oswaldo Cruz. O que a gente discute,
trabalha muito na escola, além das questões ambientais, é a questão
de Oswaldo Cruz fazer parte de uma história do samba, toda uma
questão aí que está muito próxima do nosso aluno. O bairro tinha
uma escola de samba, que hoje não tem mais, mas que vive em
função desse dia do samba, que acontece em Oswaldo Cruz e que a
gente discute muito com eles. Tanto que a gente juntou estas duas
questões para o nosso dia nacional do meio ambiente. Porque todo
mês de junho, a gente encontrou uma maneira de falar para a
comunidade sobre meio ambiente, fazendo um carnaval fora de
época. A gente faz o que a gente chama de “azulreta”, é um carnaval
fora de época, onde a gente sai falando de meio ambiente como uma
escola de samba, tudo feito pelo aluno e tal. Agora eu acho que
ainda falta a gente ampliar essas discussões mais com Madureira do
que com Oswaldo Cruz, porque Oswaldo Cruz é um bairro muito
pequeno. A gente busca esse movimento cultural junto com o SESC
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Madureira, a gente vai procurar outros parceiros que a gente não
encontra em Oswaldo Cruz. Porque a escola, a fala pedagógica da
escola é intensa. A gente tenta respirar o pedagógico diariamente.
Encontra resistência, encontra dificuldade, encontra aquele
professor que não está comprometido, como toda escola. Mas a
gente banca essa discussão na escola. Então a escola participa de...
estaria aqui relatando uma quantidade de projetos culturais que a
escola participa. Ontem mesmo a escola foi ao Teatro Carlos Gomes
participar da orquestra sinfônica, a escola nos projetos em cima do
núcleo de adolescentes multiplicadores que fala de sexualidade no
SESC de Madureira, a escola vai à biblioteca da Praça Seca. A
escola sai buscando, agora de que maneira a gente vai conseguir
trazer até Oswaldo Cruz, a gente esbarra em muitas questões. A
gente ainda não conseguiu uma... uma representatividade no bairro
que bancasse junto com a escola essas questões. Por isso a escola
sai e vai buscar fora.
No dia 16/05/2004, seis dias depois, quando eu já havia
entrevista mais 3 pessoas depois dela, Ana vem falar comigo
dizendo que queria dar uma “declaração de amor” à escola,
porque na entrevista ela tinha falado muito de trabalho e não
dos sentimentos que tinha em relação à escola. Aproveitei para
acrescentar perguntas.
Qual é a diferença da Escola Azul para outras escolas que você
trabalhou?
Você não vai ficar muito satisfeito com a minha resposta não,
porque antes da Escola Azul eu só trabalhei em um escola.
Qual a escola que trabalhou?
Eu comecei a minha vida em 1974 na escola Rosa que é uma escola
da 5ª CRE, lá no morro do Jorge Turco. Comecei lá, muito novinha,
numa escola pequenininha, no alto do morro. Alguma coisa era
proibido fazer, outras o dono do morro mandava, outra podia outra
não podia, mas a gente era respeitada, a gente subia o morro, a
gente descia o morro,em 1974. De lá eu vim pra cá...
Em 1977, três anos... Você pode dizer que diferença você pode
apontar entre a escola, a comunidade de lá e aqui?
Ah, muito grande! Muito grande porque era uma escola de morro!
Era uma escola de crianças que não tinham saneamento básico, que
tinha que apanhar água para tomar um banho! Se a gente falasse de
hábitos, de higiene... plenamente a gente não satisfazia, ele dizia:
“tia, eu tenho que descer o morro todo para pegar uma lata d’água”,
para ele tomar um banho, ele convivia com o tráfico, ele convivia
com as... com as dificuldades. Uma criança já convivendo com as
dificuldades. Aqui é diferente! Aí eu posso te falar daqui. A escola
que eu peguei em 1977 e a escola que eu pego hoje. Porque quando
eu cheguei aqui, esses apartamentos, que a escola tinha sido
construída por conta desses apartamentos, só quem veio habitar
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esses apartamentos eram pessoas que eles estavam tirando da Vila
Kennedy...
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Vila Kennedy?
É... estavam tirando as pessoas, fazendo cadastramento das pessoas
que moravam, algumas que vieram da Vila Kennedy [tosse]...
Mas a Vila Kennedy já foi uma construção de gente que saiu da
zona sul...
Da [favela] Esqueleto, eu acho, e foi pra lá, e aí eles começaram a
cadastrar pessoas que tinham um poder um pouco maior, para vir
pra cá e que pudesse pagar esse tipo de apartamento, que parece que
aqui era mais caro que a casa que eles tinham lá. Então eles vieram
pra cá. E algumas pessoas [tosse], claro, em edifícios mais
privilegiados, mais à frente, conseguiram através de movimento
político, isso também houve. E muitas vezes eu encontrava aluno,
houve caso de nós buscarmos saber sobre a casa do aluno, em 1978,
1979... 1976, porque a escola foi inaugurada em 1977, e no vaso
sanitário as pessoas plantavam, botavam comigo ninguém pode,
espada de são Jorge, porque não sabiam, não tinham ainda essa...
não sabiam viver em comunidade, não sabiam se organizar em
condomínios, não sabiam melhorar o bairro. Hoje é diferente, hoje a
escola contribuiu muito para isso, através da criança, através do
trabalho comunitário dela [da escola], mostrando para as crianças
aquilo que tinha que levar para casa, que aquilo era um vaso
sanitário, para que servia... o rio que passa à frente da escola, que
esse rio não é para jogar sofá, cachorro morto... E aí, por isso que a
escola, há 13 anos trabalha meio ambiente. Porque você nota que
hoje, eles moram em prédios com interfone, todos eles têm
televisão, todos eles têm bicicleta. Quer dizer, é uma comunidade
que cresceu, meio penduradinha, assim, no cabide de Madureira, que
isso influenciou muito, a proximidade do comércio, a proximidade
do trabalho da mãe, do pai no comércio de Madureira [tosse]. Você
ainda nota que é preciso esgotar, ainda não esgotou os nossos
projetos, a gente tem uma missão a cumprir em cada projeto, mas
que a gente vai aumento e crescendo cada vez mais, vai indo cada
vez mais, nas discussões da comunidade. Apesar de procurarmos
ficar fora determinadas discussões da associação de moradores, de
políticos da área, de pessoas, que a gente tem sempre um discurso
bem... bem pedagógico. Mas a gente ainda acha que Oswaldo Cruz é
um bairro que falta um comércio mais equilibrado, um lazer para as
crianças, ainda falta isso. Mas são discussões que a gente vai aos
poucos tentando construir.
[interrupção para Ana atender alguém, e depois ela começa a
falar o que disse que gostaria de dizer e ainda não havia dito]
É... você buscou comigo... com as professoras, com a minha
equipe... a gente está esse tempo todo falando com você como é
nosso trabalho... e eu queria, eu preciso deixar registrado para você
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que, eu acho que você sabe mas... é bom a gente estar sempre
falando porque coisas boas a gente acha que as pessoas sabem e a
gente se limita em não falar. Primeiro, o quanto é importante,
quando a gente recebe, tem o prazer de receber outras pessoas para
estar vindo em nossa escola e até vivenciando um trabalho que a
gente faz de qualidade aqui na escola. É muito bom, é... foi assim
inenarrável prazer que você permaneceu aqui e se tornou até uma
pessoa bastante íntima, bastante conhecida junto da escola, dos
professores e tal, isso aí é uma coisa que eu queria muito deixar
para você. E mais eu queria dizer para você que, quando eu digo que
eu tive poucas experiências, tive mesmo, porque vim pra cá logo
que a escola inaugurou e... dizer pra você... do amor da paixão pela
educação que a gente tem aqui na escola. De ver, a Aída falando
assim... com total desenvoltura e muito entendimento de uma
prática pedagógica que a gente acredita, de ver a Arlinda que está
ali colada comigo buscando um trabalho no sistema acadêmico,
buscando uma... relação comigo de amizade, buscando junto com
meus professores o tempo todo, dizer que educação é uma coisa
fantástica, é um dinheiro abençoado, é uma paixão, é uma... é do
coração. Você trabalha, você briga, você zanga, se estressa, mas eu
quero dizer que eu venho diariamente para essa escola com... um
dever cumprido, eu não quero passar por essa escola por passar. Eu
não quero que a direção da Regina passe batida pela educação da
rede pública. Eu acho que esse trabalho é um trabalho de... quem
não faz isso não sabe o que está perdendo, o quanto está sendo
valorizado, não entende quando o aluno da gente diz pra gente [com
os olhos cheios d’água], quando ele sai da escola e ele volta e diz
assim: “eu quero entrar – a gente não quer abrir o portão pra ele –
eu vim ver vocês, quanta falta a gente sente, como é difícil no
segundo grau, como é diferente”, porque a gente trabalha com... um
amor, uma dedicação, um prazer, uma perseverança. A gente põe
perseverança, põe amor, põe dedicação, põe uma pitada de humor,
põe... sabe, a gente vive disso, foi com esse dinheiro que eu criei os
meus filhos, porque é um dinheiro que vem abençoado. Lidar com
jovens, com criança, lidar com educação me... só me traz coisas
boas. Eu só consigo sobreviver – fico muito triste quando eu vejo
pessoas dizendo: “ah, se eu vender cachorro quente na praia eu vou
ganhar mais” – porque eu não ganho não. Eu não ganho... o
companheirismo dessas crianças, quando uma mãe chega e diz:
“sabe, eu tenho que contar a minha vida para a senhora para a
senhora entender a minha vida”. Às vezes o professor diz assim: “eu
não agüento mais, porque eu sou psicólogo, eu sou assistente social,
sou médico...!” Eu falo, mas eu gosto de ser psicólogo, de ser
assistente social, porque antes de tudo a gente é educador. Eu
quero... muito deix ar registrado para você a paixão – o dia que eu
sair dessa escola eu não passo mais em Oswaldo Cruz, eu não quero
mais passar na frente dessa escola [com olhos marejados]... porque
eu fico muito preocupada como ela poderá e deverá ser conduzida.
Não que a gente conduza de uma maneira, ninguém é insubstituível,
não é isso. É que... quando o casamento acaba é muito doloroso. E
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em algum tempo esse casamento, meu casamento com essa escola
vai ter que acabar porque nada é eterno na vida. Eu seguramente
vou querer seguir outros caminhos. Com certeza dentro da educação.
Eu tenho um... sonho muito grande e esse sonho eu vou perseguir,
eu vou persistir, mesmo fora da direção da escola, que é estar
sempre próximo às crianças excepcionais, às crianças com
dificuldades, seja lá quais forem: visual, auditiva, retardo mental,
síndrome de down, condutas típicas, seja lá qual for. Mas eu tenho
paixão por esse trabalho e em algum momento eu vou sair dessa
escola e vou me voltar para um trabalho social que possa atender
essas crianças. Agora eu não posso deixar de te dizer da paixão com
que a gente conduz esse trabalho aqui da escola. Que não é meu, é
de um grupo de pessoas que acreditam nessas loucuras que a gente
cria aqui nessa escola, que a gente inventa, que a gente busca, a
gente está sempre, que tem pessoas com uma criatividade imensa
buscando seu caminho. Mas eu tenho verdadeira paixão por aquilo
que eu faço. Eu amo esse trabalho, tive meus filhos na rede pública
e consegui que meus dois filhos fossem todos os dois formados em
professores de Língua Portuguesa. E um filho segue o meu caminho,
ele é professor e trabalha com educação e era o grande sonho da
minha vida que eu consegui realizar. Eu não podia deixar de te dizer
isso.

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