editorial

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editorial
SERVIÇO EDUCATIVO
Julho> Setembro
Jornal do Serviço Educativo
Numero 11 | Ano 2009
Publicação Trimestral
Coordenação
Fátima Alçada
Edição
Elisabete Paiva
Produção Gráfica
Paulo Covas
Comunicação
Marta Ferreira
Design
Martino&Jaña
Textos de
César Freitas
Comédias do Minho
Eglantina Monteiro
Inês Barahona
Maria da Conceição Gonçalves
Marina Nabais
Distribuição
Andreia Novais
Carlos Rego
Catarina Pereira
Hugo Dias
Pedro Silva
Sofia Leite
Susana Pinheiro
[email protected]
ISSN 1646-5652
Tiragem 3000 exemplares
“A IMAGINAÇÃO É MAIS IMPORTANTE QUE O
CONHECIMENTO. O CONHECIMENTO É LIMITADO.
A IMAGINAÇÃO ENVOLVE O MUNDO.”
ALBERT EINSTEIN
JORNAL DE ARTES E EDUCAÇÃO
EDITORIAL
Regressados de um curto interregno, aqui chegamos com
o LURA debaixo do braço. Embora alheia à nossa vontade,
esta pausa significou também que o Serviço Educativo
cresceu, mais do que talvez esperássemos, e teve de se
reajustar à sua nova dimensão.
Como a vontade e os ideais continuam firmes, o LURA
chega com colaborações de gente muito especial, de
norte e de sul, vozes que representam trabalho sério,
profundo e positivamente inspirador.
E não podemos deixar de agradecer a todos
os colaboradores deste número, que pronta e
generosamente responderam ao nosso convite para
escrever, e que aguardaram a sua publicação.
Nas suas palavras, a ideia de liberdade de que
falamos no texto de abertura das Pistas, ganha mais
sentido. Porque se quer penetrante, porque se quer
verdadeira, porque se quer arriscada, porque se
projecta afirmativamente. E essas são qualidades
essenciais ao desenvolvimento de um trabalho
coerente e sustentado de formação de públicos.
A MONTANTE
PISTAS
TRILHOS
Pessoas grandes,
Pessoas pequenas,
Grandes pessoas
Propostas
renovadas
para público
juvenil
O OUTRO
LADO DO
AVESSO
Inês Barahona
pág. 04
pág. 03
Marina Nabais
pág. 09
2 | LURA
PISTAS CAMINHOS PARA FAZER JUNTOS
Programa à
descoberta
Liberdade, imaginação e conhecimento
Liberdade
: Condição do ser que pode
agir livremente, isto é, consoante as leis da sua
natureza, da sua fantasia, da sua vontade.
O tempo livre das nossas
crianças não deve servir
para elas confirmarem
aquilo que já sabem, mas
de facto para descobrir
aquilo que ainda não
sabem e que nós adultos
muitas vezes também
ainda não sabemos.
Desafiados interna e externamente para
repensar as nossas propostas para as
férias escolares, pela direcção do CCVF,
pelos pais e pelas crianças, reflexão que
em parte expusemos na edição n°9 do
LURA (rubrica Trilhos), criámos este ano
o Programa à Descoberta, cuja primeira
edição se realizou nas férias da Páscoa e
que tem no corrente mês de Julho a sua
segunda edição.
O Programa à Descoberta organiza-se
em torno de duas ideias fundamentais:
a ideia de interdependência entre várias
áreas do conhecimento humano, relacionando as artes com outras áreas do
pensar e do fazer, e a fruição do tempo
livre sob um ponto de vista individualizado, privilegiando a curiosidade, sensibilidade e experiência de cada criança
para que encontre um espaço próprio de
expressão e de colaboração no grupo.
Se o nosso objectivo central, de tirar
partido das pausas escolares para
sensibilizar de forma descontraída e livre
para as artes, se mantém, outro objectivo
se junta a este, o de incentivar as crianças
a estabelecer uma relação próxima com
instituições locais e regionais, reforçando
a sua integração no tecido cultural local
de modo abrangente.
Nesta proposta, um tema-chave impulsiona todas as acções que decorrem
ao longo da semana. Essas acções, que
podem ser mais da ordem do fazer,
do reflectir e debater, ou do observar,
realizam-se no CCVF e fora do CCVF e
são orientadas por uma equipa criteriosamente seleccionada de profissionais,
na sua maioria ligados às artes, que
funcionam como companheiros de exploração e descoberta.
A propósito da noção de tempo livre,
procuramos com esta proposta reforçar a ideia de que uma aprendizagem,
qualquer que seja, é tanto mais significativa quanto for desenvolvida em terreno
aberto, isto é, de modo natural e franco,
procurando desconstruir preconceitos
ou constrangimentos de ordem pessoal
e cultural, e em contacto com referências que possam contradizer dados
adquiridos ou verdades absolutas. O
tempo livre é o momento ideal para nos
questionarmos espontaneamente, e
só exercendo esse direito poderemos
crescer sãos e despertos para aquilo
que o mundo tem para nos oferecer na
sua complexidade e contradições. O
tempo livre das nossas crianças, mais do
que qualquer outro momento, não deve
servir para elas confirmarem aquilo que
(pensam que) já sabem, mas de facto
para descobrir aquilo que ainda não
sabem e que nós adultos muitas vezes
também ainda não sabemos.
Formação para
profissionais
do ensino
Dramaturgia e Cenografia
Em Setembro o Serviço Educativo
voltará a realizar duas acções
de formação para professores e
profissionais do ensino.
Pensando em duas grandes áreas
dentro do teatro – a dramaturgia e
a concepção plástica, convidámos
Graeme Pulleyn e Fernando Ribeiro
a preparar duas oficinas que visam potenciar a utilização de instrumentos
específicos da prática teatral de forma
adequada e eficaz em contexto educativo, diversificando as abordagens
e promovendo a realização criativa
dos participantes face à diversidade e
complexidade que os contextos de trabalho com crianças e jovens apresentam hoje e às suas características ora
mais evidentes ora mais subtis.
Graeme Pulleyn, actor e encenador
inglês fixado em Portugal há mais de
15 anos, um dos fundadores do Teatro
Regional da Serra de Montemuro, cuja
experiência se estendeu a outros artistas e locais, tem trabalhado amplamente com públicos infantis e juvenis
e com comunidades especificas.
Esta oficina de dramaturgia incidirá
sobre a selecção de textos, a análise
e adaptação dramatúrgica, na perspectiva de um teatro que envolva a
comunidade escolar e educativa e
seja um meio de cimentar processos
de identificação, coesão e valorização
através da descoberta e da construção
de referenciais comuns.
Estas oficinas visam
potenciar a utilização de
instrumentos específicos
da prática teatral de
forma adequada e eficaz
em contexto educativo,
diversificando as
abordagens e promovendo
a realização criativa dos
participantes.
Fernando Ribeiro é um cenógrafo
versátil, que colabora regularmente
com o Teatro Oficina, e que tem
acompanhado criadores como Nuno
Cardoso ou Marina Nabais.
A sua proposta na oficina de cenografia passará por promover releituras
do papel da componente plástica do
espectáculo, accionar mecanismos
críticos capazes de rasgar sentidos
na percepção estética do espectáculo
e na criação de cenografias e impulsionar a utilização criativa dos meios
disponíveis na escola: o seu espaço
arquitectónico e os seus recursos materiais específicos.
LURA | 3
PISTAS CAMINHOS PARA FAZER JUNTOS
Propostas
renovadas para
Público Juvenil
Procurando a consolidação progressiva de relações, o Serviço Educativo
tem procurado focalizar e aprofundar
o seu trabalho com públicos específicos a cada momento. A temporada
2009/10 inicia-se com algumas propostas especialmente interessantes
para público adolescente e jovem.
Durante o mês de Outubro, Nuno
Coelho, artista multifacetado que
desenvolve trabalho nas áreas das
artes plásticas, do design e do DJ’ing,
traz até nós a exposição “Uma Terra
sem Gente para Gente sem Terra”,
resultado de uma viagem de um mês
à Palestina, realizada em 2006. Com o
conflito israelo-palestino como fundo
e recorrendo a mapas, diagramas e informação de carácter factual, esta exposição questiona-se e questiona-nos
sobre o traçado da história e sobre a
nossa percepção desse traçado, forjado entre factores políticos, culturais
e sociais. A exposição não fica concluída sem a acção do público: somos
convidados a completar, a interpretar
e a comentar, através do desenho e da
escrita, aquela que é uma história de
outros mas que é, afinal, também uma
história nossa.
Em Novembro será apresentado o
espectáculo transdisciplinar “A Partir
do Adolescente Míope”, com base no
diário de adolescência do antropólogo
Mircea Eliade. Esta peça, criada por
três excelentes profissionais nas suas
áreas – Graeme Pulleyn, no teatro, Romulus Neagu, na dança, e Luís Pedro
Madeira, na música, abre caminho
para uma reflexão sobre a forma de
expressão de cada um, a busca de
identidade e de um sentido para a
existência, questões intensamente
vividas na adolescência, mas que são
comuns no percurso das nossas vidas.
Em Dezembro, tempo ainda para uma
performance do Teatro Praga, concebida para crianças dos 9 aos 12 anos,
a partir da peça de Shakespeare “Hamlet”. Em “Hamlet, sou eu”, os actores
do Teatro Praga desafiam o público
a criar o seu próprio espectáculo,
apropriando-se progressivamente da
narrativa sobre a tragédia do príncipe
da Dinamarca, com recurso aos adereços, figurinos e cenário disponíveis
em palco. A cada dia, cada grupo terá
oportunidade de criar a sua encenação da tragédia de Shakespeare.
Com estas propostas, esperamos
proporcionar aos professores do
ensino básico e secundário pontos
de partida sólidos para um trabalho
a continuar à medida de cada um
dentro da sala de aula, em áreas
disciplinares que podem ir das
Expressões Artísticas, à História, à
Filosofia, às Línguas ou à Geografia.
Fotografia Pedro Pires
Uma terra
sem gente
para gente
sem terra
A partir do
adolescente
míope
Hamlet, sou eu
4 | LURA
A MONTANTE AS NOSSAS REFERÊNCIAS
Pessoas grandes,
pessoas pequenas,
grandes pessoas
“… Mas também César,
Napoleão e Goethe eram
pequenos. E Adolf Menzel, o grande pintor e
desenhador, era ainda
mais pequeno! Quando se
sentava, as pessoas pensavam que estava de pé.
E quando se levantava,
as pessoas pensavam que
estava sentado. Entre as
grandes pessoas há muita gente pequena – é uma
coisa a ter em conta.”
Erich Kästner, Als ich ein kleiner Junge war
Fotografia Márcia Lessa
* in A.L.Lenzi, “Silvio D’Arzo - Una vita letteraria”,
Tipolitografia Emiliana, Reggio Emilia, 1977, pp. 93-114.
** Ezio Comparoni é o nome verdadeiro do escritor, cujo
pseudónimo mais utilizado foi Sílvio d’Arzo.
Existe hoje um conjunto de equívocos em torno do trabalho artístico
para as crianças: que é menor, mais
fácil, mais simples, que é um trabalho que deve ter um contexto escolar
ou extra-curricular, que não tem
senão o sentido de um divertimento,
que é animação – e outras afirmações
similares que remetem as crianças
para um plano segundo, como destinatários simples de actividades mais
ou menos simplistas, e que ao mesmo tempo encaram as artes como
uma actividade secundária face a
outras mais relevantes.
Existem também grandes equívocos
acerca do que é a criatividade, ou
do que é a infância, e um desconhecimento generalizado da vivência
interior de uma criança.
Na prática que conheço, que foi a
do Centro de Pedagogia e Animação
do Centro Cultural de Belém, sob a
direcção de Madalena Victorino, e
que se traduziu sempre num cuidado extremo na escolha de objectos
artísticos para um público exigente
e inquieto, atento e verdadeiro, a
única constante na programação
era a certeza absoluta de que, em
contacto directo com um objecto
artístico de qualidade, uma criança,
como um adulto, se transforma. Ela
transforma-se por dentro, porque
pensa, questiona, interroga, sente,
intui, e por fora, porque sorri, chora,
dá gargalhadas, fecha os olhos de
medo, se encolhe, se ilumina. Esse
contacto, que é quase tão fugaz
como um relâmpago, inscreve-se
muito profundamente na memória
e torna-se um terreno ideal sobre o
qual se pode trabalhar.
Existe hoje um conjunto de equívocos em
torno do trabalho artístico para as crianças,
que as remetem para um plano segundo, como
destinatários simples de actividades mais ou
menos simplistas.
O resultado desses equívocos traduzse numa atitude generalizada de paternalismo e complacência, e resulta
numa oferta nem sempre suficientemente exigente e estimulante nas
propostas destinadas às crianças.
Nesse sentido, a ideia de que a
criatividade vem do zero não pode
estar mais errada. A criatividade,
que não é mais do que essa vontade
secreta de experimentar alguma
coisa pela primeira vez, precisa de
facto de um estímulo forte. A nossa
responsabilidade, enquanto promotores de actividades artísticas para
as crianças, é a de saber escolher um
objecto que estimule e que inscreva
na história de cada um dos nossos
grandes ou pequenos espectadores
uma memória forte que alimenta a
prática durante muito tempo. Quem
sabe, a vida inteira.
Mas as artes, que alimentam a prática, a experimentação, alimentam
também o pensamento. É porque
existir, viver, ser é estar aberto ao
imponderável que nos rodeia, ao
mundo que surpreende, aos outros
que nos solicitam, que nos acompanham, que nos abandonam, é por
isso que há que pensar. É porque
somos apanhados no passo à frente
de um tempo que não se anuncia,
porque constantemente somos desafiados a responder à ordem do que
não conhecemos, é por isso que há
matéria para pensar. Esta matéria
do pensar é, na maior parte das
vezes, a matéria do viver.
As artes trazem para o presente a
surpresa desse futuro que ainda não
existe. Elas colocam perante nós a
iminência de uma realidade concreta
que existe e não existe e que, nessa
fronteira que é um desafio, nos lança
numa dimensão especulativa imediata. Encontramos o sentido que
atravessa o espectáculo procuran-
LURA | 5
A MONTANTE AS NOSSAS REFERÊNCIAS
As artes trazem para o presente a surpresa
desse futuro que ainda não existe. Elas
colocam perante nós a iminência de uma
realidade concreta que existe e não existe e
que, nessa fronteira que é um desafio, nos
lança numa dimensão especulativa imediata.
do entender o que estava antes e o
que estará depois. Atravessamos as
paredes do tempo em que o espectáculo começa e acaba e trazemos connosco as perguntas ou o sorriso da
compreensão de alguma coisa que
acontece perante os nossos olhos
não acontecendo. Mergulhamos
nessa dimensão da possibilidade
que desafia a lógica e nos confronta
com o que, por ser impossível, não
atravessa o espírito no quotidiano
dos nossos pensamentos. Atinge-nos
como uma surpresa que perpassa
zonas adormecidas em nós. Não nos
deixa incólumes. Nunca.
Na nossa vida de adultos, de pessoas grandes, o espaço para entrar
numa zona que não nos parece
imediatamente útil é muito pequeno.
Por isso, quando queremos pensar
dizemos que nos “abstraímos”, e
dizemo-lo com a sensação da culpa
de ficarmos separados das tarefas
que há a fazer. É isso que faz de
nós as “pessoas grandes” que têm
mais o que fazer do que viajar para
dentro de lugares que não existem e
onde não é preciso entrar se não lhes
abrirmos a porta. É isso que nos faz
olhar para o bilhete do teatro e para
o relógio ao mesmo tempo, secretamente pensando no tempo que
estamos a perder, esquecendo-nos
de que um bilhete é a chave para nos
perdermos no tempo.
Esse tempo transporta qualidades
que, na nossa pressa, nos tornamos
incapazes de reconhecer. Aprendese, com as artes. Não no exercício
inútil de as tentar explicar. Mas no
tempo de as conhecer.
O sinal do pensamento maduro, a
abstracção, também se aprende com
as artes. Um espectáculo coloca-nos
perante uma realidade irreal. Um
conceito é sempre isso: uma realidade irreal, genérica, metafórica,
passível depois de ser reconduzida
a uma situação concreta. Através das
artes, é da situação concreta e irreal
que chegamos ao conceito genérico.
Representamos para nós uma ideia
que tem as suas raízes num dado con-
creto que experimentámos, através
de uma percepção complexa, que
atravessa os sentidos e convoca o
pensamento numa espécie de coro,
muito afinado, de onde surge uma
melodia exacta. Sempre que essa
melodia é escutada, a representação
desse conceito surge. Este mecanismo que assenta na vitalidade da memória de longa duração é aquele que
sustenta a profundidade e a relevância de uma experiência artística forte
na existência de uma criança.
Parece claro que o pensamento
das crianças, que atravessa
naturalmente fases diversas, tem em
comum o facto de se expressar de
uma forma metafórica, alegórica, por
vezes enredada nas entranhas das
histórias, das imagens, das formas,
com uma plasticidade que mais
não é do que uma extraordinária
capacidade de articulação. A riqueza
dessa forma de expressão, desse
recurso, está no ser inesgotável.
Esta infância do pensamento, como
muitas vezes é designada, não é marFotografia Marcia Lessa “O Bobo”_Jan 07
Aprender a pensar não é senão isso: conquistar
o poder de decidir, de dizer, de escolher, de confrontar o outro com um argumento inesperado,
de integrar um argumento inesperado no interior de uma ideia. As crianças crescem – e crescer é não conhecer o fim às coisas, a si próprio,
ou aos seus limites.
mais perto de se tornarem grandes
pessoas. E as crianças sabem-no.
Aprender a pensar não é senão isso:
conquistar o poder de decidir, de
dizer, de escolher, de confrontar o
outro com um argumento inesperado,
de integrar um argumento inesperado no interior de uma ideia. As
crianças crescem – e crescer é não
conhecer o fim às coisas, a si próprio,
ou aos seus limites.
Essa é outra das características do
pensamento das crianças: ele enquadra-se numa espécie de extensão infinita de actividades e sensações que
não se recortam isoladamente do seu
horizonte. Uma criança não conhece
o significado da palavra “fim”, senão
no que isso tem de traumatismo e de
arrancamento da existência em que
se encontrava instalada.
O fim é contrário à experiência mais
radical da vida, que é existir a toda
a hora num fluxo que não se detém.
Como na experiência de brincar, de
estar feliz – o fim é contrário à vontade de eternizar a brincadeira. Mas o
fim é também contrário ao exercício
de pensar. Porque jamais foi registada a capacidade de parar de pensar…
E isto, que é tão simples, é filosofia.
Não é mais do que isto: crescer a partir da vida para dentro de uma ideia,
de uma história. Se a filosofia não for
isto, então não sei o que seja.
Não pretendo psicologizar, nem reduzir a filosofia à pedagogia ou à psicopedagogia da criança. Não se trata
disso. Trata-se de, ao fazer entrar o
discurso das crianças na filosofia e
ao trazer-lhes o discurso filosófico,
levar estas crianças a ser adultos que
continuam capazes de pensar, que
gostam de pensar e que pela consciência da sua capacidade crítica serão
capazes de viver melhor.
Ecoa nesta convicção o desejo de dar
a cada ser humano a capacidade de
se “emancipar”. Só que, ao contrário
do Iluminismo que defendia essa
ideia, assumo que cada criança tem
em si mesma essa capacidade e essa
possibilidade enquanto criança e
não apenas num futuro que traçará
depois de muito bem educada pela
escola dos adultos.
Se pedisse que procurassem lembrar-se do vosso primeiro pensamento, haveria um coro de sorrisos. Não
há tal coisa como “o primeiro pensamento”. Nós somos a pensar. Mas
só há matéria para pensar porque
a vida nos escapa. Quanto mais nos
escapar, ao entendimento, das mãos,
ou mesmo debaixo dos pés, mais
buscamos um sentido. E as crianças,
na sua vida, todos os dias se confrontam com qualquer coisa de novo, com
uma descoberta. São pequeníssimas
conquistas, pequenas percepções,
instantes, não dão lugar a uma sensação de descoberta, mas acrescentam palmos e palmos de horizonte
ao olhar destas pessoas pequenas,
para quem existir é experimentar a
novidade dos dias.
E as artes trazem essa novidade no
bico – no bico dos lápis, no bico das
palavras, nos bicos dos pés…
Inês Barahona
Fevereiro 2009, Lisboa
ca da sua menoridade. Pensar com
imagens (e de que outra forma se
pensa?), com vivências e com experiências concretas é sempre pensar.
Não é um sinal de menoridade, é
simplesmente o exercício do pensar.
A menoridade está nos olhos de
quem não vê que o exercício da
metafísica não só é transversal à
vida, como é transversal às diferentes fases da vida. Se se reveste de
formas diferentes, isso prende-se
com a aquisição do domínio de um
determinado tipo de linguagem que
convencionámos ser a linguagem
científica, adulta, madura.
O que podemos verificar é que nas
crianças existe já um manancial de
ideias e não apenas o potencial para
isso. E o que é interessante é verificar
como o modo como se relacionam com
as artes revela uma espécie de meio
natural onde o seu pensar se forma.
As crianças pensam fazendo, vivendo,
construindo. Ter uma ideia muito
clara dentro de si, perante si, torna-as
mais poderosas, pessoas pequenas
6 | LURA
A MONTANTE AS NOSSAS REFERÊNCIAS
Comédias do Minho
Que sentidos para
um projecto cultural
comunitário em
meio rural?
Fotografia Susana Neves
O TERRITÓRIO
Vale do Minho
OS PROJECTOS
COMUNITÁRIOS
5 Concelhos
5 Autarquias
[Melgaço, Monção, Paredes de Coura,
Valença e Vila Nova de Cerveira]
Que sentidos para um
projecto cultural comunitário em meio rural?
Muitos. Quer dizer… pelo menos cinco.
O sentido em direcção a Melgaço,
o sentido em direcção a Monção,
o sentido em direcção a Paredes
de Coura, o sentido em direcção a
Valença e o sentido em direcção a Vila
Nova de Cerveira.
Também há o sentido de humor… E
nós somos as Comédias do Minho.
Mas também temos drama (s),
tragédias gregas, cabarets, pânicos,
contra-bandos, lendas, sonhos e histórias à beira rio. Entre outros.
A ASSOCIAÇÃO CULTURAL
COMÉDIAS DO MINHO
3 Eixos de intervenção
Companhia de Teatro
Projecto Pedagógico
Projectos Comunitários
4 Fontes de financiamento
Câmaras Municipais (Associados)
Caixa de Crédito Agrícola
(Associados)
DgARTES / MC
Mecenato - Ventominho
362 373 62 373 Habitantes
103 Freguesias
800 Km2
Desliguem os telemóveis, o
espectáculo vai começar. 25 vezes
de cada vez…
Tantas? Há assim tantas salas
de espectáculo?
Depende.
Depende da junta de freguesia,
depende da associação cultural,
depende do salão paroquial,
depende do salão de jogos, depende
do tempo de seca ou de chuva, e, às
vezes, depende do jantar...
Mas aguenta-se com tudo, pela
senhora que oferece o seu xaile como
sinal de apreço pelo espectáculo
que viu; pelas senhoras de Castro
Laboreiro, vestidas de negro e
apoiadas em cajados, que aplaudem
e choram até ao final de uma tragédia
grega; pelo senhor surdo-mudo que
vê um espectáculo de clown e parece
perceber mais do que todos os
outros; pela senhora que agradece
ter perdido a novela naquele dia; pela
senhora de Verdoejo que confessou
andar deprimida, sem apetite e, após
rir-se desalmadamente, já sentir
alguma fomeca; e por todas as fartas
ceias gentilmente oferecidas, muitas
delas confeccionadas pelos próprios.
A COMPANHIA
DE TEATRO
5 Actores residentes
3 Encenadores por ano
3 Espectáculos por ano
75 Apresentações por ano
25 Locais de apresentação
por espectáculo
4100 Espectadores por ano
3 Projectos
[Queima de Judas, Inês Negra,
Deu la Deu]
Aproxima. Aproximar. Arte.
Aproximarte. E nós aproximámo-nos…
De crianças, jovens, professores,
seniores, famílias e outros agentes
educativos, em dois intensos anos de
(re)acção criativa.
E há criatividade que chegue para
todos?
Quando não há, multiplica-se. Por
cinco, claro está. Depois, somase o trabalho em rede com 22
colaboradores locais (animadores,
técnicos, educadores), que duplicam
a intervenção pedagógica. Também
há a criação conjunta com os actores
residentes. E discute-se. E discutese… Para tirar a prova dos nove.
Falta acrescentar as companhias
e os artistas convidados, que se
dividem entre espectáculos, acções
de formação e outras actividades
artísticas para os mais variados
públicos. E, mesmo quando temos
que subtrair lágrimas aos sorrisos, a
conta é sempre certa. Tão certa como
a memória do público, depois de cada
experiência.
Mas não ficamos por aqui.
O PROJECTO PEDAGÓGICO
APROXIMARTE
3 Apresentações por ano
Grupos associativos
Comunidade em geral
3550 Espectadores por ano
Ó do rancho!
Ó do bombo!
Ó da banda!
Venham todos!
Queimar o Judas.
Gritar pela Inês Negra no cimo do
castelo.
Lançar o pão da Deu la Deu.
E nós lançámos a semente.
Mas não era o pão?
Lançámos a semente da participação,
do envolvimento, da partilha, da
comunhão em projectos que nascem e
crescem daquilo que as pessoas têm
para dar.
E nós damos de volta. Damos muitas
horas de ensaio e ansiedade, damos
gargalhadas com a senhora do rancho
que tem medo de se esquecer da
deixa, damos força à tuna de seniores
e ao coro para se aproximarem do
microfone, damos lume aos escuteiros
para iluminarem a vila, damos sinal
aos bombos para iniciarem o percurso,
damos as boas vindas aos visitantes.
10 Artistas convidados
22 Colaboradores locais
17 Actividades
9243 Espectadores
No final de tudo, damos aplausos.
Recebemos alguns também… E
agradecemos. Por construirmos
juntos, todos os dias, este projecto.
Associação Cultural Comédias do Minho
Fevereiro de 2009, Paredes de Coura
LURA | 7
A MONTANTE AS NOSSAS REFERÊNCIAS
A experiência de um lugar
Os ateliers de Verão 08 em S.
Bartolomeu Castro Marim
por Eglantina Monteiro
A província não é o centro, mas já não
é a negação deste.
É certo, que há muitos aspectos da
vida da província e das cidades que
configuram uma bipolaridade. Mas,
instalados no século XXI, damo-nos
conta de que o jogo de oposições é
mais complexo, menos linear e menos
hierarquizado do que o evolucionismo social de novecentos vaticinava no
tempo da explosão urbana, primeiro
no Ocidente e depois um pouco por
todo o mundo.
de um conhecimento do sistema
da arte, incluindo as reflexões e os
reflexos da arte no mundo globalizado da internet e das superstruturas
museológicas, e um intensivo trabalho de campo e domínio da literatura
do lugar em que operam.
O sentido do trabalho no terreno em
arte não se reduz a identificar e tapar
carências, ou a dar voz aos que a não
têm, mas sobretudo a colher experiências que são a matéria-prima das
expressões artísticas.
Mal se distinguem os habitantes da
grande cidade e da pequena aldeia,
tão pouco os instrumentos que manipulam, as infra-estruturas que os
servem ou mesmo a arquitectura.
Bibliotecas, Teatros, Museus e Centros de Arte outrora exclusivos dos
grandes espaços urbanos, tornam-se
irresistivelmente atraentes nas pequenas cidades e vilas da província.
Por vezes, prodigiosamente, criam-se
programas e modos de funcionamento pensados com e a partir de uma
intimidade com o lugar, equacionando as práticas artísticas com as
actividades locais vinculadas a um
ecossistema, em vez da sua perpétua
ocultação e denegação. São programações que se desenvolvem a partir
Esta valorização do lugar equivale
também a afirmar que a província
não é homogénea, e que defini-la por
oposição à cidade é tão equívoco
quanto significante.
Uma das mais expressivas manifestações deste mal entendido é a forma
como se instalam os mesmos bairros
sociais, as mesmas aldeias turísticas
e os mesmos resorts nas hortas e nos
pomares antiquíssimos, ou nos serros
de cabras e altares pagãos, sem lastro
nem marca.
Pergunto: quando se assumirá que
a paisagem, a agricultura, a pesca, a
pastorícia e a alimentação são experiências culturais que encerram uma
complexa trama de valores e conhecimentos sem os quais não se pode
Direitos Reservados
falar de criação humana?!
Peter Zumthor na arquitectura e
Ferran Adriá na cozinha são os mais
brilhantes criadores da contemporaneidade onde melhor se lê o contínuo
entre as formas ancestrais da gruta e
da degustação – experiências fundadoras da aventura humana, e o
O sentido do trabalho no terreno em arte não
se reduz a identificar e tapar carências, ou a
dar voz aos que a não têm, mas sobretudo a
colher experiências que são a matéria-prima
das expressões artísticas.
experimentalismo tecnológico.
Ambos vivem e trabalham em duas
pequenas localidades, Halderstein na
Suíça e Cala Montjoi, Rosas na Catalunha, e o “resto do mundo”.
A demanda de artistas e intelectuais
em que a província surge como lugar
privilegiado de criação, associada a
deambulações mundo afora, é uma
prática tão antiga quanto recorrente.
Um movimento que associamos ao
facto da criatividade ser uma gestação iminentemente interior que exige
concentração. Mas, para além de se
afastarem das inquietações próprias
dos espaços urbanos, há uma coisa
absolutamente única na província: os
lugares confundem-se com os ciclos
da natureza variada, e um incontornável sentimento de transcendência
rescende da matéria das coisas.
A energia criativa dos artistas associada à disponibilidade das comunidades e do poder local em os acolher
gera experiências únicas, desviandose dos destinos mais ou menos desenfadados que o provincianismo, tanto
do poder central como de muitos
agentes locais, consegue imaginar,
entre “deslocalizações” e digressões
mais ou menos festivas.
A força criativa e a dimensão
pedagógica de projectos como os
de Maria João Pires e de Rui Horta,
das mais mediáticas experiências
geradas na e com a província, dão a
ler criações e produções ancoradas
no conhecimento e vivências dos
indivíduos, libertas das leituras
atávicas sobre as comunidades
locais, que emanam da cultura
institucionalizada.
A experiência que o ano passado se
viveu na Escola Primária da pequena
aldeia de S. Bartolomeu em Castro
Marim, extremo sudeste do país,
foi duplamente um gesto de resistência: ao centralismo do Ministério
da Educação que, indiscriminadamente, aplicou a regra de mínimo de
10 alunos por escola, decretando o
encerramento do estabelecimento,
apesar de estar em curso um projecto de requalificação pedagógica
impulsionado pela Associação de
Pais [Almoinha - Escola da Gente] e à
inércia de uma comunidade que tarda
a entender a sua responsabilidade
na qualidade da Escola, na gestão
dos lixos, da água, da paisagem ou da
poluição sonora e visual.
Foi no rescaldo do falhado processo
que a Almoinha decidiu recuperar os
projectos delineados para a experiência pedagógica da Escola que
o legislador abortara, e convidou
quatro artistas – Hugo Canoilas, Paulo Brighenti, Sara Barriga e Manuel
Santos Maia para, durante o mês de
Julho de 2008, desenvolverem os seus
projectos artísticos com as crianças
da aldeia, às quais se juntaram outras
da Vila e outras ainda que chegam
sempre de mais longe pelo Verão.
Tínhamos uma única proposição: os
trabalhos teriam que estar ligados
àquele lugar, de uma maneira ou de
outra manifestariam a relação das
crianças com o mundo em volta – a
paisagem, a arquitectura, os materiais ou os movimentos das pessoas.
Havia ainda uma condicionante, as
crianças não estavam organizadas
por grupos de idades, eram 12 entre
os 4 e os 14 anos.
Quando se assumirá que
a paisagem, a agricultura,
a pesca, a pastorícia
e a alimentação são
experiências culturais
que encerram uma
complexa trama de
valores e conhecimentos
sem os quais não se pode
falar de criação humana?!
A MONTANTE AS NOSSAS REFERÊNCIAS
Hugo Canoilas
7-12 de Julho
“Da minha experiência sublinho
a relação individual com cada um
dos alunos. A minha maior vontade
era interagir com as crianças
de várias idades sempre com a
querença de dar e de receber. O
workshop “fez-se fazendo”.
Baseei-me na auscultação das
capacidades e tendências individuais,
com o objectivo de impulsionar, e
derrubar preconceitos, devolvendo-lhes materiais e técnicas que
despertassem as capacidades inatas
de cada um.
O primeiro exercício começou com
a desarrumação e reorientação da
sala, para perceber como é que cada
um ocupava o espaço e ao mesmo
tempo como é que cada um interagia
com o outro.
Apresentei-lhes um conceito mais ou
menos abstracto com maior ou menor
possibilidade de representação ou
abstracção, e, com tintas aquosas e
Direitos Reservados
“Acredito que o
ensino artístico
ajuda a constituir
grão humano,
de modo a que o
indivíduo consiga
criar alguma
resistência à
construção social
que o desliga cada
vez mais do mundo,
forjando uma
mediação.”
Paulo Brighenti
e Sara Barriga
14 -19 de Julho
“Em cada dia de atelier usamos
diferentes referentes temáticos,
relacionados com obras de artistas,
com elementos etnográficos, com a
natureza e a vivência do lugar.
Usamos materiais, técnicas e suportes diferenciados de acordo com as
propostas, adaptadas aos interesses,
motivações e aptidões das crianças,
com idades entre os 4 e os 12 anos.
Os nossos dias começavam e terminavam com uma conversa que ora
despertava a imaginação, ora reflectia sobre as novas experiências, ora
prolongava os modos do quotidiano.
A partir de elementos díspares
como um texto de Ana Hatherly, o
Castelo de Castro Marim e a Casa
de Matisse fizemos o piquenique na
relva; a ilha transparente debaixo
da figueira, integrando as vivências
das crianças nas nossas propostas,
que iam tomando o seu rumo ao
sabor das histórias.
Para nós ficaram memórias
muito felizes, fruto da imensa
generosidade, criatividade e
disponibilidade destas crianças.”
papéis de grandes dimensões, desenvolveram um trabalho de grupo.
Experimentámos materiais variados
que implicam maior ou menor intensidade (barro) ou mediação (recortes
de revistas); fizeram-se uns fatos que
vestiram os corpos e com os quais interagiram, diante e com uma câmara
de vídeo.
Do meu ponto de vista, este workshop
visou cimentar um projecto que
preenche uma lacuna séria no ensino,
acima de tudo nos mais novos, e que
tem a ver com a autonomia, a imaginação e o exercício da liberdade.
Acredito que o ensino artístico ajuda
a constituir grão humano, de modo a
que o indivíduo consiga criar alguma
resistência à construção social que
o desliga cada vez mais do mundo,
forjando uma mediação.
Como artista plástico, este workshop
permite-me ter um papel activo na
comunidade, no sentido de tentar
construir uma melhor comunidade, e
que se reflecte no trabalho que tenho
vindo a desenvolver. Enriquece-o.”
Manuel Santos Maia
21-26 de Julho
“Uma aldeia imaginária.
Com pigmentos de terra, areia, paus,
folhas, cola, gema e cascas de ovo,
arames e outros mais díspares materiais, desenhámos, pintámos, esculpimos e arquitectámos novos espaços.
Fizemos uma instalação onde tudo
o que gostamos de ter e fazer estava
em destaque.
No final, apresentaram a exposição.”
Houve uma inauguração com a gente
da aldeia, a primeira de sempre.
Eglantina Monteiro
Maio de 2009, Fazenda/S. Bartolomeu
Fotografia “Avesso” de Marina Nabais
8 | LURA
LURA | 9
TRILHOS MARCAS QUE FICARAM E QUEREMOS PARTILHAR
O outro lado
do avesso
Quando programamos corremos riscos, mesmo quando as nossas apostas
nos parecem acertadas e evidentes.
Em última análise, o que desejamos é
ser capazes de produzir um momento
significativo, mas só quando se dá o
encontro entre o público e o objecto
artístico podemos tirar conclusões
sobre a pertinência da nossa escolha.
“Quando apresento algo
fico sempre intrigada
com o que move o
público a vir ver um
espectáculo. Depois
fico intrigada com o que
ficou, que rasto deixou.”
O facto de termos decidido programar o espectáculo “Avesso” ainda
antes da sua estreia, trouxe um sabor
ainda mais especial à qualidade
do encontro destes artistas com o
público. Por isso pedimos à Marina
Nabais, a coreógrafa de “Avesso”, que
partilhasse com os nossos leitores
um bocadinho da experiência que foi
O jardim
de letras
As dificuldades do
uso dos materiais
e a assumpção da
possibilidade do
erro e do seu valor
tornaram-se limitações
estimulantes, à altura
da capacidade de
indagação e da vontade
de prazer das crianças.
No ensino da nossa língua, como de
outras, a poesia é habitualmente o
parente pobre da criação literária
estudada e os currículos acabam
por limitar as suas opções a um
leque bastante restrito de autores
e de formas. Numa curta oficina (90
minutos), fizemos, no âmbito da exposição de Gabriela Albergaria que
esteve patente no CCVF no final de
2008, a constatação de que a poesia pode ser uma área chave para o
desenvolvimento de uma relação de
prazer com a escrita e com a literatura, através de uma proposta no
âmbito da poesia visual.
Foi dado às crianças, entre os 6 e
os 12 anos, como ponto de partida,
um poema de Ernesto Melo e Castro
que, sendo um poema didáctico (escrito para uma conferência universitária), se encontrava longe de qualquer horizonte de estudo no ensino
básico. O poema apresentava uma
definição possível de poesia visual e
a oficina consistia na criação de um
auto-retrato, utilizando marcadores
de tinta permanente e recortes de
jornais, com algumas regras bem
definidas (máximo duas cores, uma
das quais preto, e não utilização de
fotografias do jornal, apenas parcelas de palavras ou de imagens).
realizar o atelier em que o público
explorou consigo a teoria das cinco
peles de Hundertwasser.
“Quando apresento algo fico sempre
intrigada com o que move o público
a vir ver um espectáculo. Depois fico
intrigada com o que ficou, que rasto
deixou.”
Em “Avesso”, tive a necessidade de
me propor a estar com o público para
além do espaço performativo. Continuar a proposta do universo das 5
peles, num contacto directo com as
suas 1as peles.
Daqui surgiu a proposta de um
atelier após o espectáculo e da
realização de conversas para ter
pistas sobre o que é este universo
criado, o que é o universo de cada um
que nele habita, em que resulta esta
partilha de universos...
No CCVF tive a oportunidade de
orientar o atelier após o espectáculo
de dia 7 de Março, que consistiu numa
pequena viagem pelo processo de trabalho. Os participantes transformaram-se nos bailarinos e viajaram um
pouco pela sua pele, vestuário, casa,
ambiente e planeta.
As palavras que ficaram: descoberta,
criatividade, música, dança, espaço,
pele, encontro, fragilidade...
As questões que se levantaram:
• Como se estimula a criatividade?
• Que sentido terá este espectáculo para crianças? E para jovens? E para adultos?
• Como se pode ver um espectáculo, sem tentar perceber racionalmente, mas antes deixá-lo entrar pelos poros da nossa pele?
• Como se traz esta experiência para o quotidiano?
Esta experiência foi muito rica, no
sentido em que sinto que o processo
continua a ser perpetuado noutras
pessoas, levantando questões e abrindo espaço a um debate em que os
próprios participantes se questionam
e encontram respostas.”
Marina Nabais Bailarina e Coreógrafa
que os professores não suspeitavam
existir em grande parte dos alunos
participantes. O silêncio próprio do
tempo da escrita deu lugar a trabalhos marcadamente diferentes no
espaço branco da folha de papel,
em que cada um expôs o seu jardim
secreto, ou o seu Jardim de Letras,
como lhe chamámos.
As dificuldades do uso de materiais
que não permitiam apagar mas
apenas adicionar camadas, que revelavam o processo de decisão, e a assumpção da possibilidade do erro e
do seu valor, tornaram-se limitações
estimulantes, à altura da capacidade
de indagação e da vontade de prazer
das crianças.
Oficina de Escrita_Poema da oficina o Jardim de letras
Por isso, e reiterando a nossa crença
de que é importante manter alta a
fasquia da nossa oferta para este
público, confiando na sua capacidade de perscrutar o desconhecido,
que é afinal a condição mais evidente das suas vidas ainda curtas,
apresentamos neste número do
LURA vários desses auto-retratos
ilustrando o jornal. A nossa pequena
homenagem aos jardins que connosco partilharam num momento único
e marcante.
Sobretudo para os adolescentes,
mas também para os mais pequenos, a tarefa revelou-se um enorme
prazer. Revelação sobretudo de uma
capacidade criativa e de decisão
Oficina de Escrita_Poema da oficina o Jardim de letras
10 | LURA
NA LURA ESPAÇO DE TODOS PARA TODOS
Oficina de Escrita_Poema da oficina o Jardim de letras
A revolta
dos artistas
Era uma névoa de angústia em dias
de rebelião
Como uma mancha de lágrimas numa
tela vazia…
Era Uma delicada jornada perto da
insurreição
Calaram um violino em teias de ódio
e carácter sumptuoso
Escanhoaram a cauda ao piano
escondido numa alcova vazia…
Ceifaram as correntes da harpa
emudeceram o toque portentoso
Por um homem não ser de ferro e a
arte lhe cair bem
Era cruel ser apontado como um
bichano de ladeira…
Era hórrido o pensamento de não
pertencer a ninguém
Viam-se tinteiros espalhados, uns
secos outros derramados
Só o vento virava as páginas do livro
que ninguém escrevia…
Zoava este pelo rasgão arrastando o
medo de senhores desarmados
Silêncio… era tudo o que se ouvia de
uma enorme revolução
Uma guitarra encostada como que
extenuada de uma batalha…
Opressão… era a ordem que reinava e
se continha numa explosão
Caiu o pano de rompante no
palanque da ambição
Permaneceram na vão gelado as
máscaras de ousadia…
Sussurravam as reclusas cadeiras o
porquê de tanta solidão
De mãos atadas surpreendia o
manifesto quase que selvagem
Corpos semi-despidos, trajes
estéreis, rodeavam a fonte maga …
Enquanto o tempo caminhava a
esperança era uma miragem
César Freitas
Diz que é
uma espécie
de teatro
No dia 26 de Março de 2009, os
alunos do 9°C da Escola do Ensino
Básico 2° e 3° ciclos de Briteiros
apresentaram ao público “Diz que é
uma espécie de teatro”. Este trabalho contou com a colaboração de
vários professores do conselho de
turma, Isabel Fonseca, João Vieira, Fátima Ribeiro, Carla Torres,
Andreia Santos, Guilherme Loureiro
e Conceição Gonçalves, bem como da
PUERPOLIS, sobretudo através da
encenadora Sónia Sousa e do Conselho Executivo da Escola de Briteiros.
Partindo do autor Gil Vicente, da sua
obra em que o riso é uma forma de
crítica social, estes alunos foram desafiados a (re)escrever a obra “Auto
da Barca do Inferno”, mas adaptada
ao século XXI.
A crítica social com humor foi rapidamente associada pelos alunos ao
programa televisivo dos Gato Fedorento, daí o título da peça “Diz que é
uma espécie de teatro”.
De seguida, foi a luta com a folha
em branco. Parece fácil “mandar
piadas”, mas quando temos uma
folha em branco para escrever uma
peça de teatro as dificuldades são
muitas… bem como o barulho…
Finalmente, o texto foi escrito, chegou a hora da distribuição de papéis,
das personagens. Pela segunda vez
houve tempestade na sala de aula.
Nem todos queriam entrar em palco,
foi mais uma luta contra a maré.
As águas serenaram, mas as ondas
dos (pré)conceitos começaram a
impedir que alguns alunos entrassem em cena. Tivemos de abordar,
de uma forma séria, temas como a
homossexualidade, prostituição,
respeito pelo outro e liberdade.
Começaram a compreender como o
trabalho em palco dependia da colaboração de todos, nas dificuldades
em vestir a personagem, dificuldades na caracterização, dificuldades
em dar vida a um texto…
A tarefa de decorar o texto, preparar cenários, adereços, efectuar contactos com entidades, como a GNR
para ajudar na logística do evento,
fazer divulgação, elaborar cartazes e panfletos, não foi fácil, mas o
trabalho distribuído por todos lá foi
aparecendo feito.
No ensaio geral nada dava certo. Os
enganos eram muitos, o nervosismo
dominava, tudo parecia fugir de controlo, as barcas rumavam à deriva…
Sabíamos que no dia seguinte o
público seria exigente, os colegas do
Agrupamento assistiriam no turno
da manhã e a comunidade educativa
à noite.
Na manhã da estreia, os actores
estavam nervosos, a maquilhagem,
a roupa, os rebuçados e aquela sala
cheia de gente davam confiança e
assustavam… Finalmente entraram
em palco, ao público arrancaram as
primeiras gargalhadas, a confiança
começou a aumentar, bem como a
calor humano.
No fim, as palmas foram muitas, o
público deu pessoalmente os parabéns aos actores e aos professores.
Houve crescimento destes alunos,
enquanto pessoas, enquanto seres
humanos… Foi um trabalho que nos
deu algumas dores de cabeça, mas
que faz bem à alma. É na grandeza
de momentos como este que o ser
humano revela a sua natureza.
Viva o teatro!
Maria da Conceição Gonçalves
Professora da EB23 Briteiros
LURA | 11
Aceitam-se Colaborações,
Sugestões, Ideias e Outras Coisas…
para publicação neste Jornal
[email protected]
LABORATÓRIO PARA METER AS MÃOS NA MASSA
SECÇÃO DO LURA FAZEMOS SUGESTÕES
* NESTA
PARA OS PAIS E PROFESSORES DESENVOLVEREM
COM AS CRIANÇAS E JOVENS: DISCUSSÕES,
PROPOSTAS DE ACTIVIDADES, MATERIAIS
RELACIONADOS COM OS ESPECTÁCULOS, COMO
LIVROS OU FILMES, POSSIBILIDADES DE CONTACTO
COM OS CURRÍCULOS ESCOLARES. ESPERAMOS QUE
SEJA ÚTIL.
LABORATÓRIO
DAS PERSONAGENS
DE ÁGUA
1 METAMORFOSES DA ÁGUA
2 UM MUNDO SEM ÁGUA
LABORATÓRIO
DE FÉRIAS
1 MAPAS DE MEMÓRIA
A partir dos 5 anos
A partir dos 8 anos
A partir dos 10 anos
A partir da ideia simples de que somos feitos de água, podemos construir com uma turma, mesmo de
crianças pequenas, uma coreografia sobre os estados da água. Num
aquecimento simples, cada um
explora a passagem das estações
do ano pelo seu corpo feito de água.
Depois de ter criado uma pequena
sequência de movimento, poderá
mostrá-la à turma, dividindo-se
para isso o grupo em duas colunas
que se observarão à vez. Segue-se
uma selecção em conjunto dos movimentos que melhor representam
cada estado; é importante não esquecer de lhes atribuir qualidades
(níveis, intensidade, velocidade,
peso). Decidida a sequência global,
todos aprenderão e repetirão a
coreografia da turma sobre as metamorfoses da água.
Como seria um mundo sem
água? Este pode ser o ponto de
partida para a criação de uma
história: o que mudaria no nosso
quotidiano, no nosso corpo, na
paisagem? Cada criança criará a
sua história e, depois de todos
a lerem para a turma, poderá
passar-se a um trabalho mais
factual, tentando perceber o
que acontece na realidade, se
estas ficções serão assim tão
longínquas do presente e o que
poderemos fazer para inverter
o desaparecimento da água na
Terra. O último passo poderá ser a
escrita de uma segunda história, de
ficção científica, sobre uma missão
especial para trazer de volta a água
ao planeta Terra.
Este ano, tente registar com os
seus filhos o mapa das férias.
Podem fazer um mapa que cresce
a cada dia, conforme vão conhecendo melhor o lugar onde estão (e
mesmo um lugar conhecido pode
ter as suas surpresas); podem
fazer um mapa de memória, à chegada das férias, e tentar registar
os lugares de que gostaram mais.
Este é também um exercício muito
interessante para se fazer no
início do ano lectivo, em vez da
habitual redacção sobre as férias;
as crianças ficarão despertas para
outras dimensões da sua vivência
e estarão a trabalhar a memória
através de um meio não verbal.
Experimente ainda, sempre
através da expressão gráfica, ir
juntando informações que qualifiquem esses mapas: de acordo com
os sabores, os cheiros, as pessoas
que encontraram, para além da
fixação das memórias de tempo e
de espaço.
Fotografia “Avesso” de Marina Nabais
MAPA DE BOLSO
A nossa agenda do trimestre
ESPECTÁCULOS
OFICINAS PARA CRIANÇAS
Julho
Julho
Dança
20 a 24 de Julho | 10h00 e 15h30
29 de Junho a 24 de Julho
09h00-18h00
Personagens de Água *
Aldara Bizarro
Público-alvo Dos 6 aos 11 anos
Setembro
Teatro para bebés
27 de Setembro | 10h30,
12h00 e 15h00
Eh! Esperem! **
Gar Teatro
Público-alvo De 1 a 3 anos
Programa à
Descoberta +
Público-alvo Dos 6 aos 10 anos
29 de Junho a 3 de Julho
À Descoberta
das ideias
6 a 10 de Julho
À Descoberta
das estrelas
13 a 17 de Julho
À Descoberta de um
lugar para morar
20 a 24 de Julho
À Descoberta de
novos mundos
27 a 31 de Julho | 14h30
Visita-jogo *
XX Feira de
Artesanato de
Guimarães
Público-alvo Dos 6 aos 12 anos
OFICINAS PARA JOVENS
13 a 17 de Julho | 15h00-18h00
+
Oficina de DJ
Rui Silva aka
DJ Tilinhos
OFICINAS PARA ADULTOS
8 e 9 de Setembro
Oficina de
Dramaturgia +
Graeme Pulleyn
Público-alvo Profissionais do ensino
10 e 11 de Setembro
Oficina de
Cenografia +
Fernando Ribeiro
Público-alvo Profissionais do ensino
Público-alvo Maiores de 11 anos
20 a 24 de Julho | 10h00-18h00
Oficina de Cinema
de Animação +
Paulo d’Alva
Público-alvo Maiores de 11 anos
Preços
* Gratuita
** 2€
+ consultar condições específicas
em www.ccvf.pt
Informações e reservas
Tel 253424700
Fax 253424710
[email protected]
Centro Cultural Vila Flor
Av.D. Afonso Henriques, 701
4810 431 Guimarães
Tel_Fax 253 424 700 | 10
[email protected]
www.ccvf.pt

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