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REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016 A SOMBRA QUE LOGO SOU – A SEGUIR: O FANTÁSTICO EM O FEITICEIRO E A SOMBRA, DE URSULA K. LE GUIN, E CONTOS DE TERRAMAR, DE GORO MIYAZAKI Profª Geisy Nunes Adriano1 http://lattes.cnpq.br/3620851279998951 RESUMO – Este artigo tem por objetivo analisar a criação do fantástico a partir do tema da 24 perda da sombra no filme Contos de Terramar, de Goro Miyazaki e no romance O feiticeiro e a sombra, de Ursula K. Le Guin, primeiro título do Ciclo Terramar. Tais livros são comparados a obras como Narnia de C.S. Lewis e O Senhor dos Anéis de J.R.R. Tolkien. Para fins de análise, serão debatidos aspectos da literatura fantástica e fantasia (fantasy literature), com base em Rabkin (1976), Manlove (1975), dentre outros, a fim de melhor compreender os principais processos utilizados pelos autores no corpus escolhido. Ademais, são apontadas algumas questões sobre a teoria do duplo e do conceito jungiano de sombra, em especial, pautados na leitura do ensaio The Child and The Shadow (LE GUIN, 1975). Estuda-se, dessa forma, como o encontro do eu com o alter se desvela graças às infinitas possibilidades abertas pelo discurso fantástico na literatura. PALAVRAS-CHAVE – Ursula K. Le Guin, Miyazaki, Sombra, Fantástico. ABSTRACT – This article aims to analyze the creation of fantastic based on the theme of the lost shadow in the movie Tales from Earthsea by Goro Miyazaki and the novel The Wizard of Earthsea by Ursula K. Le Guin, first title of the Terramar series. Her books are compared to works like Narnia of C. S. Lewis and Lord of the Rings by J.R.R. Tolkien. For analysis purposes, aspects of fantastic literature and fantasy will be discussed based on Rabkin (1976), Manlove (1975), and others, in order to better understand the main processes used by the authors in the corpus. Moreover, this work points out some issues on the double and the jungian concept of shadow, as explained in the essay The Child and The Shadow (LE GUIN, 1975). The encounter between the 1 Mestranda em Crítica Literária na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) Geisy Nunes Adriano REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016 self and the other is achieved, in those narratives, due to the endless possibilities that the fantastic discourse promotes in the literature. KEYWORDS: Ursula K. Le Guin, Miyazaki, Shadow, Fantastic, Fantasy. Introdução ao fantástico e à fantasia Cuántas palabras, cuántas nomenclaturas para un mismo desconcierto. Julio Cortázar (1968, p. 15) Certo crítico literário que, pela travessura de algum portal mágico, fosse transportado para um mundo de fantasia, engajaria em uma dessas atitudes ao ver um dragão: após questionar ações e reações naquele universo, chamá-lo-ia de literatura fantástica, de maravilhoso, de estranho, de mimético ou ainda de fantasy literature, dentre outras tantas nomenclaturas (como saber o que o pobre ou sortudo literato diria?), conforme sua erudição mandar. Ainda, dependendo de sua categorização como low ou high fantasy2, como clássico ou bestseller, aquele mundo poderia gozar de maior ou menor prestígio nos olhos do viajante. Segundo Le Guin, no ensaio Why are 25 Americans Afraid of Dragons? (1974), a invalidação da fantasia é tão intensa e, por vezes, tão agressiva, que só pode estar pautada no medo. Afirma, “I began to realize that a great many Americans are not only antifantasy, but altogether antifiction. We tend, as a people, to look upon all works of the imagination either as suspect, or as contemptible.” Se o nosso personagem for um homem americano (e Le Guin fala da América porque é o povo que conhece profundamente, mas admite que esse problema seja o mesmo além-mar), desacreditará do dragão: "My wife reads novels. I haven't got the time", "I used to read that science fiction stuff when I was a teenager, but of course I don't now" ou "Fairy stories are for kids. I live in the real world." A menos que a fera 2 Segundo Angelskår (2005, p. 32): “These terms do not in any way contain a value judgement. In high fantasy the impossible or nonrational elements function according to the natural laws of the fictive universe. At least some of these elements are treated as commonplace or natural. High fantasy nearly always involves a secondary world. Low fantasy, however, is situated in our own recognisable world. The supernatural or impossible elements of the work are treated as such. Something exists or occurs which is explicitly in conflict with natural laws.” Geisy Nunes Adriano REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016 diga que foi escrita por Borges, Kafka, Dostoevsky ou Hawthorne ao invés de Tolkien, Lewis e MacDonald. Esse artigo explora o gênero fantasy literature, e, dentro do labirinto caótico de nomes que o fantástico leva, selecionamos como referência Rabkin (1976) e Manlove (1975), por serem definições que incluem, e não excluem, o corpus desse trabalho. Quanto ao uso confuso dos termos “fantástico”, “literatura fantástica” e “fantasy literature” nos estudos críticos ao redor do globo, adoto a solução modesta de Angelskår (2005, p. 31-32): 26 In order to include all the types of literature that can be understood as fantasy, I will try to use the phrases ―fantasy‖ and ―fantastic literature‖ synonymously. This would, then, include texts by authors like Chaucer, Spencer, Shakespeare, William Beckford, Lewis Carroll, Jan Potocki, Henry James, William Morris, George MacDonald, Dostoevsky, Kafka, Gogol, C. S. Lewis, Tolkien, Ursula LeGuin, Thomas Pynchon, Donald Barthelme, John Barth, Gabriel García Márquez, Gene Wolfe, Tad Williams, Stephen R. Donaldson and others. I do not want to appropriate works by these authors on behalf of fantasy, or in any way claim that they belong to the genre, but rather point out that they can be conceivably be read as fantasy literature. (…) It is important to be aware that for instance Rosemary Jackson sometimes uses ―fantasy‖ as synonymous with Todorov‖s term ―the fantastic‖, although at other times she uses it in a more inclusive sense. A tetralogia de Terramar, da qual pertence o livro O feiticeiro e a sombra, de Ursula K. Le Guin, aqui analisado, é considerada por críticos, pela editora e pela própria autora como pertencendo ao gênero fantasia (fantasy) (AIKI, 2007, p. 5). A escritora pensa na definição da fantasia e da ficção científica em gêneros como uma faca de dois gumes: de um lado, o estabelecimento do gênero (ou “genrification”) diferencia-o da literatura erudita (“polite literature”) e a reduz a um gueto de entusiastas, reduzindo as chances de receber críticas apropriadas; por outro, ela própria tenta definir as características destes gêneros (ibidem, p. 5-6). No discurso Spike the Canon (1989), Le Guin afirma que o gênero deve ser usado de forma neutra, livre de juízo de valor, caso contrário, se tornará uma ferramenta para diferenciar a “boa” da “má” literatura (ibidem, p. 6).Tal atitude é similar aquela que adota ao construir o mundo de Terramar na primeira trilogia, introduzindo o conceito de Equilíbrio para construir um mundo de limites claros (ibidem, p. 7). Geisy Nunes Adriano REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016 Le Guin concorda com a definição de Tolkien, pela qual a fantasia é a arte de criar “um Segundo Mundo” (ibidem, p. 10), independente do nosso, e adiciona: um mundo de certa forma introvertido e subjetivo, diferentemente da extroversão da ficção científica (ibidem, p. 9). Por fim, a diversidade das reflexões apenas vem reafirmar a riqueza desta literatura que, assim como as outras, não é estática: “the fantastic is not a stable form even today, despite being named” (SANDNER, 2004, p. 10). Críticos de todo o mundo tentaram explicar o fenômeno do fantástico: Tzvetan Todorov, Irwin, Rabkin, Rosemary Jackson, Colin N. Manlove, Kathryn Hume, Mark Bould, dentre outros, argumentam a favor de seus conceitos com base em uma dada seleção de escritores. Como resultado, há uma variedade de perspectivas no campo atualmente (ANADÓN, 1989, p. 3). O interesse pelo estudo teórico da literatura fantástica floresceu perceptivelmente na década de 70 do século XX ou, mais precisamente, a partir da publicação de Introdução à literatura fantástica (1968) de 27 Tzvetan Todorov – apesar de Louis Vax já ter publicado outras duas obras antes dele (MONTEIRO, 1997, p. 2). Desse momento em diante, críticos e teóricos se dividiram entre os que tentavam desenvolver a teoria estruturalista todoroviana, remendando-lhe as insuficiências logo notadas, e aqueles que procuravam formular outras definições (MONTEIRO, 1997, p. 2). Angelskår (2005, p. 33-34) propõe ainda a divisão desses críticos entre low fantasy theorists, como Todorov, Jackson, Brooke-Rose, T. E. Apter, Tobin Siebers, Neil Cornwell, Lucy Armitt, José B. Monléon, Darko Suvin, Eric S. Rabkin, Marcel Schneider e Harold Bloom; e high fantasy theorists, tal qual John H. Timmerman, Brian Attebery, Ann Swinfen, C. S. Lewis e J. R. R. Tolkien. C. N. Manlove pareceu transitar entre ambos os grupos. Dado o exposto, emergem uma vastidão de pesquisas questionando, principalmente (MONTEIRO, 1997, p. 2): o que é a literatura fantástica? Seria ela um gênero, um modo literário ou um impulso? Qual a relação entre literatura fantástica e realidade? Quais são os seus objetivos? Geisy Nunes Adriano REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016 Muitas dessas leituras têm como ponto de partida, seja para seguir, complementar ou criticar, as ideias do teórico búlgaro Todorov, portanto, entendamos o que faria nosso crítico literário se fosse de linha de análise todoroviana. Primeiramente, com base na leitura de Le Diable amourex, de Cazotte, Todorov afirma que o fantástico ocorre na “hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural” (2014, p. 31). Já Le Manuscrit trouvé à Saragosse, de Jan Potocki, leva-o a complementar sua afirmação anterior. Primeiro, irá sintetizar o espírito do fantástico na fórmula “cheguei quase a acreditar” e, depois, pontuar que a hesitação do leitor (como função implícita do texto) entre a explicação natural e sobrenatural, por vezes compartilhada pelo herói da narrativa, associada a uma atitude de recusar a interpretação alegórica ou poética do texto, são as condições essenciais para sua definição (TODOROV, 2014, p. 37-38). Assim, o fantástico “se define como uma visão particular de acontecimentos estranhos” (ibidem, p. 100) e pode ser desdobrado em diversos temas, apesar de admitir-se que esta 28 abordagem é limitada (ibidem, p. 150): Temas do eu (ou temas do olhar) Princípio gerador A passagem do espírito à matéria tornou-se possível (Ibid, p. 122). Esses temas podem ser interpretados como emprego da relação entre o homem e o mundo ou, em termos freudianos, do sistema percepção-consciência (Ibid, p. 148). Consequências Pandeterminismo ou temas que Metamorfoses e Multiplicação da podem ser personalidade gerados do A ruptura do limite entre sujeito e princípio objeto A transformação do tempo e espaço Temas do tu (ou temas do discurso) A relação do homem com seus desejos e, portanto, com seu inconsciente e seus “instintos” (Ibid, p. 148). Amor a vários Necrofilia (na atração por cadáveres e vampiros) Sensualidade excessiva Amor proibido (incesto) Conclui ainda que as três funções literárias do sobrenatural são: emocionar, assustar ou manter o leitor em suspense, isto é, produzir um efeito particular (função pragmática); Geisy Nunes Adriano REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016 permitir descrever um universo fantástico que só existe na linguagem, uma autodesignação, pois constitui sua própria manifestação (função semântica); e servir ao desenvolvimento da narrativa, afinal é o acontecimento sobrenatural que vem romper com o (des)equilíbrio (função sintática) (TODOROV, 2014, p. 100-101; 173). Tais funções literárias vão ao encontro da função social do sobrenatural, a de combater a censura institucional e individual de cada autor, permitindo-o falar de tabus (ibidem, p. 167), pois ambas configuram uma “transgressão da lei”, “uma ruptura no sistema de regras preestabelecidas e nela encontra justificação” (ibidem, p. 174). A literatura fantástica nos lembra da insatisfação humana para com a realidade e a literatura e como a conciliação do possível e impossível (que é a própria definição de “impossível”) move a criação literária (ibidem, p. 176; 183). Uma das principais críticas às contribuições de Todorov é a de que se reduzem a um corpus restrito, começando no século 18 com Cazotte e terminando com Maupassant, no século 19 (ANADÓN, 1989, p. 4). O espanhol David Roas, no prefácio 29 La amenaza de lo fantástico, texto introdutório das Teorías de lo fantástico, assim sintetiza um ponto frágil da teoria: En conclusión, lo fantástico es, para Todorov, esa categoría evanescente que se definiría por la percepción ambigua que el lector implícito tiene de los acontecimientos relatados, y que este comparte con el narrador o con alguno de los personajes. A mi entender, ésta es una definición muy vaga y, sobre todo, muy restrictiva de lo fantástico, puesto que si bien resulta perfecta para definir narraciones como Otra vuelta tuerca [...], de Henry James, quedarían fuera de tal definición muchos relatos en los que no hay vacilación posible, puesto que sólo se puede aceptar una explicación sobrenatural de los hechos. (ROAS, 2001, p. 16-17 apud GAMA-KHALIL, 2013, p. 24) Na tentativa de superar a redução do corpus da tese anterior, Eric S. Rabkin, em The Fantastic in Literature (1976) define o fantástico em termos estruturalistas, seguindo Todorov, mas oferecendo uma definição mais inclusive e que abarca obras que aquele relegou ao maravilhoso. Rabkin conversa não com dragões, mas com flores: “Ó Lírio-tigre! chamou Alice, dirigindo-se a um que ondulava graciosamente ao vento, “gostaria que pudesse falar!” “Pois podemos”, falou o Lírio-tigre, “quando há alguém com quem valha a pena conversar.” Geisy Nunes Adriano REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016 Alice ficou tão espantada que perdeu a voz por um minuto; quase pôs o coração pela boca. (LEWIS, 2009, p. 176) O que exatamente é o fantástico?, pergunta (RABKIN, 1976, p. 167) O fato de alguém falar com plantas, ou dragões, não torna uma obra fantástica, mas sim a perspectiva pela qual é contada: “The fantastic does more than extend experience; the fantastic contradicts perspectives. Alice‖s astonishment signals the fantastic” (ibidem, p. 168). Mesmo em um futuro distante no qual a comunicação homem-planta seja possível, o livro de Carroll não deixará de ser uma fantasia. A frase “gostaria que pudesse falar!” lembrará os leitores do futuro de que em 1872, data da publicação da obra, as flores eram vistas como mudas. Não pode haver sentido ou mesmo nonsense, caso o leitor não participe das regras do mundo narrativo. Para o autor (ibidem, p. 168-169), 30 The ability of art to create its own interior set of ground rules is fundamental to the aesthetic experience, an ability that Tolkien calls “subcreation,” but which more generally falls under the term “decorum.” Every work of art sets up its own ground rules. The perspectives that the fantastic contradicts are perspectives legitimized by these internal ground rules. Alice‖s underscored wish performs such a legitimization, and, coming immediately before the flower‖s answer, would always perform such a legitimization, whether the armchair world conceived of flowers as talkative or mute. Afirma, portanto, que a literatura fantástica é caracterizada pela contradição deliberada das regras da realidade com o objetivo de estabelecer um novo conjunto de regras para a obra em si (ANADÓN, 1989, p. 4). Ao ler Através do Espelho e o que Alice encontrou por lá, é dito que uma das regras do mundo narrativo no qual nossa mente se aventura é a de que flores não falam; e quando essa perspectiva é contrariada, virada às avessas, nosso choque é o de Alice: “quase pôs o coração pela boca” (RABKIN, 1979, p. 170). Rabkin enfatiza que as regras devem ser sempre inversamente opostas (diametrically contradicted). Nota-se que seus argumentos sobre o funcionamento do fantástico são baseados nas leituras de obras de Lewis Carroll e Jorge Luis Borges. Essa teoria já incluiria um grande continuum de obras começando pelo Genesis (ibidem). Geisy Nunes Adriano REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016 Também com base na definição de Todorov, assim como no marxismo e em teorias psicanalíticas, Rosemary Jackson analisa a função subversiva do fantástico, considerando o contexto social que o teórico búlgaro: In common with much structuralist criticism, Todorov‖s The Fantastic fails to consider the social and political implications of literary forms. Its attention is confined to the effects of the text and the means of its operation. It does not move outwards again to relate the forms of literary texts to their cultural formation. It is in an attempt to suggest ways of remedying this that my study tries to extend Todorov‖s investigation from being limited to the poetics of the fantastic into one aware of the politics of its form. (JACKSON, 1981, p. 6 apud ANGELSKAR, 2005, p. 42) Em Fantasy: The Literature of Subversion (1981), ela propõe olhar o fantástico como um modo literário, caracterizado por “delinear o que não é dito ou observado na cultura; o que foi silenciado, tornado invisível, escondido e considerado ausente” (p. 4 apud MONTEIRO, 1997, p. 2-3). Como arte, ao falar daquilo que é tido como impossível, o fantástico pode “compensar uma falta que resulta de constrangimentos 31 culturais” (JACKSON, p. 3 apud MONTEIRO, 1997, p. 12). Possui, portanto, a função social de provocar a transformação da sociedade a partir de seus efeitos (MONTEIRO, 1997, p. 12). Isso explica o aparecimento de elementos fantásticos em obras de épocas, línguas, culturas e gêneros diferentes. Cabe salientar que a presença de elementos fantásticos em, por exemplo, As Metamorfoses, O Burro de Ouro, A tempestade, Sonho de uma noite de verão ou As viagens de Gulliver, não torna essas obras parte do gênero fantástico (MONTEIRO, 1997, p. 3). Dado o exposto, Jackson consegue incluir uma gama de obras abandonadas pela análise todoroviana, mas pontua fundamentalmente o fantástico como subversão “explicitamente” direcionada do real e, portanto, dá pouca atenção a autores como Tolkien, Lewis ou Le Guin (Ibid, p. 13). Para ser ainda mais precisa, Jackson estuda apenas exemplos da low fantasy e anuncia sua teoria como válida para todo o gênero quando, na verdade, deixa a enorme gama de obras da high fantasy em um vácuo teórico e terminológico (ANGELSKAR, 2005, p. 42). O esforço de adentrar um novo campo teórico é louvável, mas a seleção limitada que descarta obras que não condizem com sua Geisy Nunes Adriano REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016 teoria é desapontadora; ao passo que, Todorov, com sua definição de porta de entrada ainda mais estreita, chega a proclamar a morte do gênero (ibidem, p. 43). Cabe salientar que Jackson cita Charles Kingsley, William Morris e George MacDonald ao tratar da Victorian fantasy e Ursula LeGuin, C. S. Lewis e J. R. R. Tolkien, ao falar daqueles que perpetuam essa tendência, como veículos conservadores da repressão social e instintiva (ibidem, p. 43-44). (…) the best-selling fantasies by Kingsley, Lewis, Tolkien, Le Guin or Richard Adams are not discussed at great length. This is not simply through prejudice against their particular ideals, nor through an attempt to recommend other texts as more ―progressive‖ in any easy way, but because they belong to that realm of fantasy which is more properly defined as faery, or romance literature. The moral and religious allegories, parables and fables informing the stories of Kingsley and Tolkien move away from the unsettling implications which are found at the centre of the purely ―fantastic‖. (JACKSON, 1981, p. 9 apud ANGELSKAR, 2005, p. 44) Por fim, Colin Manlove em Modern Fantasy: Five Studies (1975) e The Impulse of Fantasy Literature (1983) propõe uma definição suficientemente abrangente 32 para permitir a inclusão das mais variadas espécies de fantástico, especialmente da high fantasy. (…) a fantasy is: A fiction evoking wonder and containing a substantial irreducible element of the supernatural with which the mortal characters in the story or the readers become on at least partly familiar terms. (MANLOVE, 1975, p. 1 apud ANGELSKAR, 2005, p. 65) Delineia ainda um tema central recorrente nessas obras, o prazer em ser, tal como ocorre em O feiticeiro e a sombra: “(…) the theme of the restoration of true being in Ursula Le Guin‖s A Wizard of Earthsea, The Tombs of Atuan and The Farthest Shore” (MANLOVE, 198, p. ix apud ANGELSKAR, 2005, p. 65). Fantasy é uma ficção envolvendo o supernatural ou o impossível (MANLOVE, 2003, p. 10 apud ANGELSKAR, 2005, p. 66). Manlove (ibidem) ainda critica o foco restrito da crítica: de um lado, Tzvetan Todorov, Christine Brooke-Rose, T. E. Apter, Tobin Siebers, Neil Cornwell e Lucy Armitt discutem os mesmos tipos de textos e constroem definições a partir de uma classe de animal ao invés do zoológico completo; e, Geisy Nunes Adriano REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016 de outro, Tolkien e Lewis, falam da fantasia como forma de recuperar valores passados e ignorariam as fantasias selecionadas por Jackson. Cabe salientar que nos seus próximos trabalhos, suas reflexões sofrem mudanças e ele passa a discutir que qualquer definição deve cobrir os seis modos do fantástico: “secondary world, metaphysical, emotive, comic, subversive and children‖s fantasy” (ibidem). A proposta de Manlove foi bem recebida por Karl Kroeber, mas ignorada pela crítica francófona, que cultuava a análise estruturalista de Todorov (MONTEIRO, 1997, p. 9). Segundo Angelskår (2005, p. 67), as fronteiras do gênero fantástico são, por necessidade, vagas e imprecisas, mas se um gênero é uma ferramenta para ler e interpretar o texto, como afirma Fowler, então se deve identificar aquilo que é central e não buscar onde estariam as cercas. Voltando no tempo, a própria possibilidade de falar do fantástico como gênero literário autônomo só existiria a partir dos finais do século XVIII, com o movimento estético-literário romântico (AGUIAR SILVA, P. 682-683 apud MONTEIRO, 1997, p. 33 4). Tal qual o romance, o fantástico desenvolveu vários tipos ou subgêneros desde o século XVIII até os dias atuais. Suas formas de manifestação são das mais variadas e podem, inclusive, ser relacionadas ao período histórico-artístico em que são geradas. Compartilham, entretanto, o fato de trazerem em seu íntimo uma impossibilidade. Impossibilidade ou estranheza por definição se comparadas às noções consensuais que se tem do que seria “normal” no mundo físico, daí a relação inevitável entre realidade e fantástico. Segundo Monteiro (1997, p. 4), até o século XVII, a relação entre o real e o fantástico era outra: a magia fazia parte da cosmovisão do homem ocidental. Grandes pensadores como Descartes, Bacon, Newton e Locke preparam o terreno para o racionalismo iluminista que dominará o século XVIII. A razão é a luz capaz de iluminar toda e quaisquer trevas por onde as leis do mundo se escondem. O mistério e a magia deveriam ser expurgados como supertições dos incultos, portanto, não é de se surpreender que a cultura iluminista perseguisse e excluísse tudo aquilo que fosse fantástico (KROEBER apud MONTEIRO, 1997, p. 6). Para Blau, Peter e Meyer (1971, Geisy Nunes Adriano REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016 p. 5 apud MONTEIRO, 1997, p. 7), as consequências da racionalização são a perda do encanto e do mistério do mundo e a mudança na forma de pensar a existência humana: Muito da magia e mistério que antes impregnava a vida humana, e lhe conferia algum encantamento, desapareceu do mundo moderno. Este é, em grande parte, o preço que se paga pela racionalização. Antigamente a natureza encontrava-se repleta de mistérios e os maiores esforços intelectuais do indivíduo estava orientado para a descoberta do derradeiro significado da existência. Hoje em dia, a natureza esconde-nos menos segredos. É contra este domínio que o Romantismo luta, propondo, dentre outros pontos, recuperar o equilíbrio perdido e reintroduzir os temas da magia e do sobrenatural. E, nesse ponto, muitos críticos concordam: o gênero fantástico surge aqui, com os românticos (MONTEIRO, 1997, p. 8). Sua gênese é apontada já com Cazottecom a obra Le Diable Amourex (1772), mas são outros quatro autores que merecem destaque na estruturação daquilo que seria a base do gênero: Coleridge com os poemas The Rime of the Ancient Mariner (1798), Christabel e Kubla Khan (1816); Keats e sua La Belle 34 Dame Sans Merci (1819); os contos de E.T.A. Hoffmann; e a novela Der Runenberg (1804) de Tieck (ibidem). Apesar da complexidade e variedade dentro do movimento, pelo menos em sua primeira fase o fantástico romântico apresentou uma característica comum: valer-se do impossível ou sobrenatural para questionar a realidade e os fundamentos do racionalismo iluminista (ibidem). Com o advento do Realismo e do Naturalismo, o fantástico mais uma vez se transforma e adota as técnicas narrativas desses movimentos, não mais se opondo ao realismo dominante, como é visto nas narrativas da segunda metade do século XIX. Eis o que Jacques Finné define, em La Littérature Fantastique (1980), por fantástico canônico, coincidentemente também aquele estudado por Todorov (p. 15 apud MONTEIRO, 1997, p. 14). Finné fala ainda de dois outros tipos: o neofantástico e o fantástico contemporâneo. Entretanto, há ainda outro gênero ou subgênero fantástico ignorado pelos críticos continentais, como Todorov, Finné ou Baronian, mas de grande aceitação na crítica anglo-americana: trata-se da fantasy literature (MONTEIRO, 1997, p. 15). Para Geisy Nunes Adriano REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016 alguns, a fantasia (fantasy) está ligada ao fantástico romântico (MONTEIRO, 1997, p. 15) ou, como faz Jackson, é mera continuidade da victorian fantasy (ANGELSKAR, 2005, p. 43). São exemplos dessa produção, dentre outras, as obras de George MacDonald, E. Nesbit, Lord Dunsany, David Lindsay, Charles Williams, J. R. R. Tolkien, C. S. Lewis e Ursula K. Le Guin (Ibid, p. 16). Autores tão diferentes, mas que compartilham entre si a crença da força da imaginação como criadora de mundos verossímeis alternativos; assim argumenta Kroeber (p. 23 apud MONTEIRO, 1997, p. 16): (...) [fantasy] procura desenvolver a visão de um mundo no qual seres humanos coabitam com seres não-humanos, em vez de extrapolar, como faz a ficção científica, os processos contemporâneos de desumanização. Porque o fantasista adquire uma certa sensação de partilha da existência com seres diferentes, ele atinge uma posição formal análoga à do poeta de Beowulf, que habita num espaço onde estranhas criaturas são naturais, apesar de poderem ser odiosas tanto para o homem como para deus. Duas fantasias: “O feiticeiro e a sombra” e “Contos de Terramar” 35 Segundo Le Guin (198, p. 435), dois são seus livros mais estimados: o I Ching, ou Livro das Mutações, e o Oxford English Dictionary. Ao consultar o dicionário, redescobre a palavra “fantasia”, do grego, ―aparição‖, relacionado à ―tornar visível‖, ―imaginar‖, ―ter visões‖. Na Idade Média, fantasia significava “a apreensão mental de um objeto da percepção”, porém, mais tarde, será usada para tratar de alucinações, fantasmas ou o hábito de se iludir (ibidem, p. 436). Aparentemente próximo ao significado escolástico, depois será definido como “o processo, a faculdade ou o resultado de formar representações mentais de coisas que não estão de fato presentes”. Com a psicologia, teremos ainda novas acepções e um novo verbo, fantasiar (ibidem, p. 437). Dado o exposto, a palavra fantasia é, por si só, ambígua, situada no limiar da ilusão e da conexão da mente com o real. Na literatura, seu tratamento também mudou com os tempos. Na década de 1890, a fantasia era como um “fungo literário”; na década de 1920, continuava vista como secundária; e na década de 1980, foi alvo de forte exploração comercial (ibidem, p. 440). Apesar de esses serem fortes motivos para a crítica ignorar tal ficção, Le Guin Geisy Nunes Adriano REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016 afirma que tal literatura avança, vagarosa, mas com direção clara, no caminho da fantasia (ibidem, p. 441). De forma que, provavelmente, a sociedade de hoje só possa ser descrita pela linguagem da fantasia, e por ela se farão sãs descrições mais reveladoras e precisas: “Por isso é que, para muitos de nós, As cidades invisíveis, de Ítalo Calvino, são um guia bem mais útil para o nosso mundo do que qualquer Michelin ou Fodor‖s” (ibidem). Dado o exposto, este artigo analisa duas fantasias: primeiramente, o romance O feiticeiro e a sombra, de Ursula K. Le Guin, e, na sequência, sua adaptação cinematográfica Contos de Terramar, de Goro Miyazaki. “O feiticeiro e a sombra”, de Ursula K. Le Guin Ursula Kroeber Le Guin (1929-) nasceu em Berkeley, Califórnia, e mora em Portland, Oregon (EUA), informa a autora em seu website. Filha da escritora Theodora Kroeber e do antropólogo Alfred L. Kroeber, ela casou-se com o historiador Charles A. Le Guin, somando três filhos e quatro netos. Até 2015, publicou vinte e um romances, 36 onze volumes de contos, quatro coletâneas de ensaios, doze livros infantis, seis volumes de poesia e quatro de traduções, além de receber uma gama de prêmios como Hugo, Nebula, National Book Award, PEN-Malamud e National Book Foundation Medal. Suas últimas publicações foram The Unreal and the Real: Selected Stories of Ursula K. Le Guin (2012) e Steering the Craft: A 21st-Century Guide to Sailing the Sea of Story (2015). Na ficção, destacamos as ficções científicas The Left Hand of Darkness (1969), que ganhou os prêmios Nebula e Hugo, The Lathe of Heaven (1971), e The Dispossessed (1974); na fantasia, o Ciclo de Terramar, formado de seis livros: A Wizard of Earthsea (1968), The Tombs of Atuan (1971), The Farthest Shore (1972), Tehanu (1990), Tales from Earthsea (2001) e The Other Wind (2001). A autora diz em 1973 que a história estaria completa na primeira trilogia, mas, dezoito anos depois de ser finalizada, surgiu um novo trio de livros - como resultado, foram todos os seis livros reunidos em uma mesma coleção pela editora (AIKI, 2007, p.3). Em janeiro de 2016, foi lançada uma nova tradução de A Wizard of Earthsea, dessa vez, para o árabe, por Mona Elnamoury, com direitos reservados pelo Egyptian National Center for Translation. Geisy Nunes Adriano REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016 A tetralogia se passa no arquipélago fantástico de Terramar, já inicialmente esboçado nos contos “The Word of Unbinding” e “The Rule of Names”, ambos de 1964. Em especial, a primeira trilogia foca a maturação de jovens personagens (Bildungsromans), como Gued, Tenar e Arren, e delineia a construção daquele universo a partir do Nome Verdadeiro e do Equilíbrio. 37 Fonte: Le Guin website Para fazer feitiçaria em Terramar, é preciso usar palavras e nomes e assim controlar cada uma das coisas da terra: “the name is the thing, […] and the true name is the true thing. To speak the name is to control the thing.”, explica em “The Rule of Names” (AIKI, 2007, p. 12). Depois, quando o ar ficou limpo e Duny pôde voltar a falar, [a tia bruxa] ensinou-lhe o nome verdadeiro do falcão, aquele que obriga a ave a responder ao chamado. Foi assim o primeiro passo de Duny no caminho que iria seguir toda a sua vida, o caminho da magia (...). Quando verificou que os falcões selvagens desciam sobre ele abandonando o vento e pousando com um trovejar de asas no seu pulso, como as aves de altanaria de um príncipe, foi tomado pela sede de conhecer mais nomes como aquele e foi ter com a tia, rogando que lhe ensinasse o nome do gavião, do grifo e da águia. (LE GUIN, p. 8-9) Geisy Nunes Adriano REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016 Porém, a magia não pode ser usada a bel prazer, pois se corre o risco de destruir a ordem cósmica, de tirar o mundo dos eixos. O Equilíbrio em Terramar é baseado no conceito de um dualismo interdependente, em que um oposto não pode existir sem o outro. Observa-se já na epígrafe do livro O feiticeiro e a sombra, “A Criação de Éa” - a mais antiga canção conhecida do mundo de Terramar -, como silêncio e palavra, luz e trevas, morte e vida são entendidas como complementares: Only in silence the word, only in dark the light, only in dying life: bright the hawk‖s flight on the empty sky. ―The Creation of Éa Cada um dos livros da primeira trilogia trata de um dualismo: luz e trevas para o embate entre Ged e sua sombra em A Wizard of Earthsea; homem e mulher para as aventuras de Ged e a sacerdotisa Tenar no labirinto de The Tombs of Atuan; e vida e 38 morte para a descida de Ged e Arren ao mundo dos mortos em The Farthest Shore. Tal entendimento é baseado na experiência e no estudo de Le Guin sobre o Tao: The world of Earthsea is “a creative, dynamic balance, Yin and Yang, not a Manichean contention between light as good and darkness as evil”. As Elizabeth Cummins says, Manichean understanding of dualism is common with Western thought in which “light and dark are often regarded as symbols of the dualistic, warring powers of good and evil”. Le Guin replaces such hierarchical understanding of dualism with Taoistic one, and thus her Equilibrium is “the idea that opposites are actually complementary”. (AIKI, 2007, p. 15) Por fim, O feiticeiro e a sombra, de Ursula K. Le Guin, narra uma aventura de antes de Gued (nome verdadeiro), Gavião ou Dunny (antigo nome dado pela mãe e abandonado após atingir a maturidade) se tornar o maior de todos os magos. Nascido em um vilarejo chamado Gont, Gued desde cedo se mostrava diferente dos irmãos e revelou ter um talento nato para a magia. Com treze anos, é tomado por aprendiz do grande feiticeiro Óguion, o Silencioso; mas, impaciente com os métodos do mestre, escolhe ir para a escola em Roke. E será que, apesar de todos os avisos, Gued tenta um feitiço para Geisy Nunes Adriano REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016 invocar o espírito dos mortos e acaba por libertar uma sombra terrível pelo mundo. A sombra sem nome o caçaria por onde quer que fosse, pois seu objetivo era tomar o corpo de Gued e, a partir daí, trazer o mal para Terramar. “Contos de Terramar”, dir. Goro Miyazaki (Studio Glibli) O Studio Ghibli é um dos estúdios japoneses mais conhecidos fora da Terra do Sol Nascente (SANTOS, 2013, p. 9). Suas animações impecáveis e emocionantes ganharam repercussão internacional especialmente depois de A Viagem de Chihiro (Sen to Chihiro no Kamikakushi), sob a direção de Hayao Miyazaki, receber o Oscar de Melhor Animação em 2002. Em 2005, também O Castelo Animado (Hauru no Ugoku Shiro) foi indicado ao Oscar. O estúdio produziu 17 filmes de animação, além de comerciais e animações, sendo reconhecido por prêmios como o Animage Anime Grande Prix Award, Japan Academy Prize for Animation of the Year, Urso de Ouro e o já citado Oscar de Melhor Animação (ibidem, p. 31). Cabe salientar que o nome Ghibli 39 reflete a intenção dos seus criadores. Do árabe, Qibli é o vento mediterrâneo que se forma no Sahara e viaja através do norte da África e sudeste da Europa; com tal força, seus donos esperavam que o estúdio lançasse novos ventos à indústria dos animes (ibidem). Contos de Terramar (Gedo Senki), 2006, foi dirigido por Goro Miyazaki (1967-), um paisagista e diretor de cinema, filho de Hayao Miyazaki – o legendário diretor e cocriador do Estúdio Ghibli. Ele já dirigiu dois filmes, Tales from Earthsea (2006) e From Up on Poppy Hill (2011), e uma série de TV chamada Sanzoku no Musume Rōnya (2014) – baseado no livro Ronia the Robber's Daughter (Ronja Rövardotter) de Astrid Lindgren. O enredo do filme aqui analisado teve seu enredo baseado nos livros do Ciclo de Terramar e, inicialmente, conta-se que um grande mal abate as terras do arquipélago, perturbando o Equilíbrio. Em uma estranha sequência de acontecimentos que fogem à compreensão do próprio personagem, príncipe Arren mata o pai e foge do castelo. Longe de casa, é salvo pelo arquimago andarilho chamado Haitaka, que significa Gavião (Gued), e levado para a casa de Tenar e Therru. Arren carrega consigo a espada mágica Geisy Nunes Adriano REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016 do pai e tem sempre um semblante preocupado no rosto, como se algo invisível o perseguisse. Aos poucos, nasce também uma amizade entre Arren e Therru, a garotadragão. Mas não há tempo, pois a bruxa que controla a cidade, ao saber da chegada de Haitaka, fará de tudo para por as mãos no segredo da vida eterna. O filme provocou opiniões contrárias, desde aqueles que o celebraram a outros que o consideraram decepcionante. Le Guin (2006) publica abertamente em seu website seus pensamentos sobre a adaptação, deixando claro que o escritor tem pouco ou nenhum poder sobre seus livros depois que o contrato com o estúdio é assinado. Inicialmente, Ursula Le Guin recusou a proposta de Hayao Miyazaki para fazer um filme animado com base em seus livros, porém, muitos anos depois, após assistir Meu Vizinho Totoro, ela se torna uma fã e muda de ideia. Nas suas correspondências com Toshio Suzuki, fez as seguintes sugestões: 40 In our correspondence, I urged the unwisdom of radical changes to the story or the characters, since the books are so well known to so many readers, in Japan as elsewhere. In order to have the freedom of imagination he ought to have in making his film, I suggested that Mr Miyazaki might use the period of ten or fifteen years between the first two books: we don't know what Ged was doing in those years, aside from becoming Archmage, and Mr Miyazaki could have him doing anything he liked. (There is no other film maker to whom I would make such a proposition.) Em uma visita em agosto de 2005, Toshio Suzuki e Hayao Miyazaki anunciaram para Le Guin que Goro Miyazaki, filho de Hayao e ainda sem experiência em produção de filmes, seria o responsável pela produção, pois o pai planejava se aposentar. Após assistir o filme, responde casualmente à pergunta de Goro Miyazaki: "Yes. It is not my book. It is your movie. It is a good movie." Afirma que o filme tem qualidades, porém guarda diferenças demais para com seus livros: Of course a movie shouldn't try to follow a novel exactly — they're different arts, very different forms of narrative. There may have to be massive changes. But it is reasonable to expect some fidelity to the characters and general story in a film named for and said to be based on books that have been in print for 40 years. Geisy Nunes Adriano REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016 O aspecto moral, conforme representado no filme, se torna confuso, pois o grande mal é exteriorizado em uma vilã, a bruxa Kumo, enquanto que Le Guin não busca soluções simples como simplesmente matar o outro em uma suposta guerra entre o bem e o mal. Critica também que nenhuma adaptação parece acertar a cor da pele de seus personagens, tornando-os brancos, quando isso representaria apenas uma pequena parte da Terramar que idealizou. No filme de Goro Miyazaki, há, entretanto, uma razoável variação de bege e castanho-amarelo e o retrato de Therru foi fiel. Elogia os animais e as cenas de trabalho com a terra, tal como os dubladores em japonês. Um correspondente do Japão, em resposta, confirma a existência das diferentes opiniões e sabiamente aponta a importância de se estar bem equipado com conhecimento e experiência: 41 (And more recently the same correspondent observed of those who most ardently defend the movie:) The ones affected the most are in a sense the most open and innocent. They only know that they have been moved, are happy and relieved when the boy lays aside his guilt and anxiety at the end, and so hurt by the more objective viewpoints that they tend to go on the offensive. Some are still willing to think, some are swayed by your comments (which they read with a dictionary) — and sadly some can't abide any criticism of the movie, protecting the director and blaming its incoherence on the books. Even so, they all are victims of the chain reaction which started when too much responsibility was shouldered by someone not equipped for it. Devido à crítica negativa, o filme não foi lançado no Brasil. Também os livros de Terramar são atualmente editados somente pela editora portuguesa Presença. Uma leitura: A libertação da sombra There are more enigmas in the shadow of a man who walks in the sun than in all the religions of the past, present and future. Giorgio de Chirico (1912) Segundo Brett Cooke (1998, p. ix), o que quer que o Outro seja, o que há de mais fascinante é o nosso enorme interesse nele. Tal fascínio, amplificado na literatura fantástica, fica evidente na frequência com que ocupa nossa atenção na narrativa. Ele Geisy Nunes Adriano REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016 pode assumir as mais diversas formas, um fantasma, um bruxo, um alien, o sexo oposto, o vizinho, o lado negro da psique, pode ser outro ser ou você mesmo. O mais curioso é que esse desejo é insaciável. Stequen H. Daniel afirma que a ficção científica (e toda a literatura fantástica) está centrada justamente nessa impossibilidade: a própria alteridade. Fantasy literature por vezes tende a comprimir o Outro em estereótipos ou arquétipos (ibidem, p. xii), de forma que pode ser ambos a causa e a cura da divisão do Eu do seu Outro interior (ibidem, p. xiv). Se o inferno são os outros, diz Sartre; mais infernal ainda é ser privado do seu Outro que, no fantástico, pode aparecer no seu reflexo, nos sonhos, retratos e daí em diante. Ligado ao tema geral do duplo, a primeira história de perda da sombra a fascinar o mundo foi Peter Schlemihl (1813), de Adelbert Von Chamisso. Em sua alegoria da caverna em A República, Platão já havia ensinado que confundir sombras e corpos reais é um erro hermenêutico derivado de uma percepção limitada e distorcida; ainda assim, 42 no mundo fantástico, desobedientes, elas assumem força física e abandonam o corpo de seus mestres (MICALI, 2010, p. 100). Peter Schlemihl troca sua sombra por uma bolsa cheia de ouro só para se arrepender, descobrindo que a fortuna não compensava aquilo que lhe faltava. Sem sua sombra, ele se torna um pária da sociedade e apenas se realizará como um estudioso devoto a explorar o mundo natural. Com relação ao fantástico, têm se aqui a oposição concreto/não-concreto e animado/inanimado na libertação da sombra. Mesmo o garoto da Terra do Nunca teve que ter sua sombra costurada de volta aos seus pés. Diferentemente do livro, na peça Peter Pan, or The Boy Who Wouldn't Grow Up (1904), a sombra agradece por voltar a estar junto de Peter (Peter Pan e não de Peter Schlemihl) e comemora: “[the shadow] awakes and is glad to be back with him as he to have it. He and his shadow dance together” (Peter Pan: 99 apud MICALI, 2010, p. 103). No século XX, foi a vez da Fada de A mulher sem sombra (1913), de Hugo von Hofmannsthal, ir atrás de uma sombra para salvar seu marido humano de uma maldição Geisy Nunes Adriano REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016 e ela própria ganhar humanidade. Tal como em Shlemihl, a sombra simboliza uma qualidade essencial para se viver entre os homens, sua perda significa a exclusão da sociedade (MICALI, 2010, p. 103). Há somente uma diferença, em The Woman without a Shadow não ter sombra não é mais uma marca de vergonha que lhe nega a dignidade humana e sim um indicador de uma categoria não-humana, sobre-humana. Também em The Fisherman and His Soul, de Oscar Wilde, o jovem pescador desiste de sua alma, que é sua sombra, para se juntar a uma sereia no mar. Depois de muitas desventuras ao ser tentado pela sua antiga sombra, se une a ela novamente na hora da morte: And as through the fulness of his love his heart did break, the Soul found an entrance and entered in, and was one with him even as before (Wilde, p. 124 apud MICALI, 2010, p. 104). No conto de Wilde e de Hoffmann temos uma sombra que não é mais objeto, mas sujeito, um duplo, criando a terceira oposição fantástica humano/não-humano (Ibid, p. 105). Segundo Calvino (2004, p. 285), E. T. Hoffman ficou tão encantado com a 43 história “Peter Schlemihl” que pegou o personagem Peter emprestado e o fez se encontrar com um homem que perdeu o reflexo no espelho em Aventuras de São Silvestre (1817). Vê-se nesse conto, a ponte entre dois motivos: o da sombra objeto e o da sombra como duplo assombroso (MICALI, 2010, p. 105). Nota-se que em todas as histórias, a separação da sombra equivale à morte (seja ela física ou social, daquele que se torna excluído ou não mais humano), de forma que a solução ideal é sempre tê-la de volta. Ambos o homem e a sombra também estão intrinsecamente ligados, pois, mesmo depois de rejeitada, a alma do pescador retorna para falar de crueldade e de prazeres e tentar seu mestre – fato que se tornará mais claro na análise de “A Sombra”, de H. C. Andersen. A narrativa de Terramar não está alheia a estas – e outras – tendências do modelo romântico da “sombra desobediente”, e busca superar a visão maniqueísta do doppelganger clássico. Em O feiticeiro e a sombra, o herói Gued tem seu primeiro contato com a sombra na casa do mestre, ou como Óguion explica mais tarde “era apenas o seu Geisy Nunes Adriano REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016 presságio, a sombra de uma sombra” (LE GUIN, 2001, p. 174). Provocado por uma garota, também feiticeira, lê escondido um feitiço para invocar os espíritos dos mortos: Depois, ao levantar a cabeça, viu que fazia escuro na casa. Tinha estado a ler sem a mínima luz, na escuridão. Agora, ao baixar os olhos para o livro, já não conseguia distinguir as runas. Mas, mesmo assim, o horror voltou a crescer dentro dele, parecendo que o deixava preso à cadeira. Sentia-se frio. Olhando por cima do ombro, viu qualquer coisa que se agachava junto à porta fechada, um coágulo informe de sombra, mais escuro que a escuridão. Parecia querer alcançá-lo e segredar e chamá-lo num sussurro, mas não conseguia entender as palavras. (Ibid, 30) Neste primeiro encontro já são delineadas as principais características dos seus encontros com o sobrenatural: a escuridão, o frio e o medo profundo que o imobilizam; a aparência inicialmente disforme na ausência de um corpo (“um coágulo informe de sombra”), afinal a sombra é um ser outro que veio do reino dos mortos; e a incapacidade de se comunicar, senão por sussurros ou emprestando a voz alheia. Na segunda vez, já na escola em Roke, Gued é mais uma vez tentado pelo orgulho e desafia o rival Jasper a um 44 duelo mágico. Ao repetir o mesmo feitiço de invocação dos mortos, rasga a matéria do mundo e, daquela fenda, escapa a fera-de-sombra: “E através daquela brilhante e disforme brecha trepou algo de semelhante a um borrão de sombra negra, célere e hediondo, que se lançou diretamente sobre o rosto de Gued” (LE GUIN, 2001, p. 84). Na forma de uma besta, a sombra dá a Gued uma ferida na face que lhe acompanharia por toda a vida. Nota-se aqui um detalhe que diferencia a narrativa de Le Guin de todas as outras, o caráter metamórfico da sombra. Aiki (2007, p. 19) afirma que existem semelhanças entre as sombras descritas por Le Guin e Poe em Sombra – uma parábola e William Wilson. Com Sombra – uma parábola, a semelhança está na ausência de uma forma e no habitar o mundo dos mortos (Poe descreve que a sombra fala com a voz dos mortos acima do cadáver de Zoilus). No terceiro encontro com a sombra, no meio de um feitiço para tentar salvar um menino da morte inevitável, Gued descobre que ela o esteve esperando por anos na fronteira entre os dois mundos: Geisy Nunes Adriano REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016 Em todo o vasto reino das trevas apenas ele se movia, lentamente, subindo. Chegou ao cume do monte e ali deparou com um muro baixo, de pedras. Mas do lado de lá do muro, em frente dele, havia uma sombra. A sombra não tinha a forma de homem nem de fera. Era informe, dificilmente visível, mas segredava-lhe, embora sem palavras no seu segredar, e estendia-se para ele. E erguia-se do lado dos vivos enquanto ele permanecia do lado dos mortos. (LE GUIN, 2001, p. 110) Porque fora a própria escuridão que o esperava, a coisa inominada, o ser que não fazia parte do mundo, a sombra que ele libertara ou criara. Em espírito, acoitando-se no muro da fronteira entre a morte e a vida, esperara por ele todos esses longos anos. E ali o encontrara finalmente. Agora, seguir-lhe-ia o rasto, procurando aproximar-se dele, apoderar-se da sua força, sugar-lhe a vida e revestir-se da sua carne. (LE GUIN, 2001, p. 112) Com William Wilson, compartilham as sombras o falar em sussurros, como se uma voz fosse o eco da outra – e Gued chega à conclusão de que a sombra pareceu usar a voz dele na única ocasião que lhe fala claramente: William tinha uma fraqueza nas cordas vocais que o impedia de falar alto. Quando falava, a sua voz não passava de um murmúrio. (POE, 2008, p. 240) 45 Não podia imitar meu tom alto, mas o timbre e a entonação eram idênticos. Quando eu falava baixo, sua voz dir-se-ia o eco da minha. (POE, 2008, p. 241) — Não sei. Talvez seja só da minha fraqueza que ela consegue a força para falar. E é quase com a minha língua que fala, pois senão como teria sabido o meu nome? Sim, como teria sabido o meu nome? Tenho dado voltas à cabeça com isto, por todos os mares que naveguei desde que saí de Gont e não encontro resposta. Talvez ela não consiga falar de todo, na sua própria forma ou ausência dela, mas só com uma língua de empréstimo, como um gebbeth. Não sei. (LE GUIN, 2001, p. 212) No filme Gedo Senki nota-se outra semelhança com Poe e diferença para com o livro de Le Guin: o príncipe Arren constantemente olha para locais vazios, como se tivesse medo de algo que está lá e não vemos. Também em Poe, William parece ver coisas que os outros não veem: “Assim que disse a última palavra, o estranho personagem [Wilson²] desaparecera, e tão bruscamente como entrara” (POE, 2008, p. 249). O cenário carregado de sonho e ópio denota a frágil situação de equilíbrio em que William oscila entre os dois universos, imaginação/realidade. Já em Gedo Senki e O Feiticeiro e a Sombra, os personagens sofrem com pesadelos constantes aonde a sombra se esgueira em seus pensamentos. Geisy Nunes Adriano REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016 — (...) Deves permanecer aqui até que obtenhas a força e a sabedoria necessárias para dela [da sombra] te defenderes... se alguma vez o conseguires. Mesmo agora ela espera por ti. Seguramente que espera por ti. Voltaste a vê-la desde aquela noite? — Em sonhos, Senhor. (LE GUIN, 2001, p. 90) A sombra precisa de Gued e teria por objetivo se apoderar do corpo do garoto para só assim espalhar o mal; porém, no filme, ela parece já possuir poder sobre as ações de Arren: o assassinato do pai ou a mudança de atitude ao lutar contra os soldados na cidade, do seu temperamento calmo usual para outro selvagem. Dado isso, Arren experimenta a mesma condição de ostracismo descrita por Adelbert Von Chamisso e Hans Andersen e é obrigado a fugir, dizendo que é como se houvesse outro alguém dentro dele e não compreende porque matou o pai, por exemplo. Por fim, tratemos da questão da revelação da verdadeira identidade da sombra. Até agora, as sombras da literatura foram símbolo da “essência fugidia da pessoa, ―duplo‖ que cada um de nós carrega consigo” (CALVINO, 2004, p. 285): 46 (…) the shadow is literally the physical manifestation of the dark element projected by a man, that part which his diurnal life casts behind and which should remain subdued, at his feet. The splitting thus always takes on the appearance of an unveiling and a liberation; the materialised shadow is the rebelling slave, the suppressed desire or memory breaking the silence and speaking out loud. Furthermore, as we have seen, the voice is in fact the most remarkable manifestation of the shadow-double; while its physical appearance is never described, its ”discourse” is exactly what characterises the shadowsubject as Other, contradicting the hero‖s discourse and showing its mystifications, contradictions and weak points. (MICALI, 2010, p. 107-108) No romance, sob a voz do arquimago, Le Guin (2001, p. 90) explica que o equilíbrio entre luz e sombra, vida e morte, bem e mal foi afetado pelo encantamento de Gued: E foste levado a fazê-lo por orgulho e ódio. Será de admirar que o resultado tenha sido ruinoso? (...) Maléfico, o seu desejo é praticar malefícios através de ti. O poder que tiveste para o chamar dá-lhe poder sobre ti. Estais ligados. É a sombra da tua arrogância, a sombra da tua ignorância, a sombra que projetas. Terá uma sombra nome? Geisy Nunes Adriano REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016 O nome verdadeiro representa a essência do ser no universo de Terramar; saber o nome de algo ou alguém, lhe dá poder sobre ele. Por isso, a fuga de Gued é entrelaçada a possibilidade de descobrir o nome da sua sombra inimiga, de forma a derrotá-la. E aqui há ecos de "Rumplestiltskin" e "Tom Tit Tot". Assim como Shlemihl, Gued aprende sua lição e por duas vezes resiste à tentação de ter um ser ou objeto mágico revelar tal segredo, por um preço que seria caro demais. Para Aiki (2007, p. 20), a solução de Le Guin não será a de Poe, matar a sombra e, assim, destruir-se; mas outra bem diferente: deixar o protagonista se unir com seu doppelganger, sem vitória ou derrota, conseguindo atingir sua completude. No filme, o duplo diz para Therru que é uma mísera sombra amaldiçoada a seguir o corpo, uma alma jogada nas trevas e entende-se, portanto, que ela e Arren são um só, daí o porquê da sombra saber o nome verdadeiro do outro. Já muito depois do pacto demoníaco do Fausto goethiano, “a perda da sombra foi interpretada como a perda da alma” (CALVINO, 2004, p. 285). Aproxima-se também daquilo que Freud entendia 47 como “conteúdo reprimido”; Roque Perrone (2009 apud VELOSO JÚNIOR, p. 8) sintetiza: “a sombra é o outro em nós”. No livro, a vida do feiticeiro era inicialmente guiada pelo medo da sombra, depois Gued deixa de ser presa para se tornar caçador da sombra e, por fim, chega a conclusão de que não se tratava de um ou de outro: “Sabia agora, e era duro sabê-lo, que a sua tarefa não era desfazer o que fizera, mas acabar o que começara” (LE GUIN, 2001, p. 197). Instintivamente, como ferro e imã, segue a sombra em seu barco até, literalmente, o fim do mundo. Passam pela ilha de Astowell, chamada de a Última terra, e chegam num lugar aonde o mar vai se acabando e se transformando em areia sombria, eram as costas do reino da morte, o abismo do oceano. Gued reencontra a sombra naquela praia sobrenatural: sem forma definida a princípio, primeiro o feiticeiro reconhece nela o pai, depois Jaspe, Petchvarri, Skiorh e uma fera até se contorcer em tudo o que é forma (in)imaginável. (...) A essa luz [do bordão], tudo o que era forma de homem se soltou da coisa que se avizinhava de Gued. Mais uma vez se concentrou, se reduziu, Geisy Nunes Adriano REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016 enegrecendo mais, caminhando agora sobre quatro pernas armadas de garras, marcando o rasto na areia. Mas continuava ainda a avançar, erguendo para ele uma espécie de tromba cega e informe, sem lábios, orelhas ou olhos. E quando ficaram mesmo juntos, a coisa tornou-se impossivelmente negra no clarão mágico que ardia branco ao seu redor e ergueu-se sobre as pernas traseiras. Em silêncio, homem e sombra enfrentaram-se, cara a cara, e imobilizaram-se. Alta e claramente, quebrando aquele velho silêncio, Gued pronunciou o nome da sombra e, nesse mesmo momento, a sombra falou sem lábios nem voz, dizendo a mesma palavra: «Gued.» E as duas vozes eram uma única voz. Gued estendeu os braços, deixando cair o bordão, e apoderou-se da sua sombra, daquele seu outro e negro eu que se estendia para ele. Luz e treva encontraram-se, uniram-se e tornaram-se um. (LE GUIN, p. 239-240) O percurso da demanda de Gued é semelhante, portanto, ao do herói mítico de Campbell na jornada à maturidade e no embate entre o consciente e o inconsciente (MONTEIRO, 1997b, p. 13). No ensaio The Child and The Shadow (1975, p. 140), Le Guin propõe uma leitura do conto A Sombra, de Hans C. Andersen: a sombra é o egoísmo do homem, os seus desejos insatisfeitos, os palavrões nunca ditos, os crimes nunca cometidos, em síntese, é o lado negro de sua alma. E Andersen diz que esse monstro é parte do homem 48 e não pode ser negada, sem ela, não poderá entrar na Casa da Poesia. O erro do erudito é não seguir sua sombra e deixá-la desprender-se dele naquela noite no balcão. As grandes fantasias são como sonhos e falam conosco pelo inconsciente e no inconsciente. Cabe lembrar que o fantástico, iniciado no século XVIII e desenvolvido no século seguinte, era de início um termo amplamente usado como o oposto da literatura de realismo tradicional (FRÓIS, 2009, p. 16). Segundo Ceserani (2006 apud FRÓIS, 2009 p. 16), Ursula K. Le Guin sintetiza ideia similar na metáfora do dia e da noite: o fantástico, proveniente do inconsciente, está para a linguagem da noite; tal como o realismo tradicional, fruto da racionalidade, à linguagem do dia. Mesmo o famoso Freud já definira o fantástico como uma das formas da linguagem do inconsciente, concluindo que “o fantástico é a interioridade que aflora e se desenvolve” (CESERANI, 2006, p. 62 apud FRÓIS, 2009 p. 16). Para Le Guin (1975, p. 141), a história de Andersen, se reduzida à luz do dia, diz apenas que aquele que não confrontar sua sombra está perdido, ou fala ainda sobre a natureza da arte. Mas se movermos nossa vela e projetarmos Geisy Nunes Adriano REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016 sombras em outra direção, veremos o que a psicologia tem a dizer. A partir das teorias de Carl Gustav Jung, afirma (ibidem, p. 143): The shadow is the other side of our psyque, the dark brother of the conscious mind. It is Cain, Caliban, Frankstein‖s monster, Mr. Hyde. It is Vergil, who guided Dante through hell, Gilgamesh‖s friend Enkidu, Frodo‖s enemy Gollum. It is the Doppelganger. It is Mowgli‖s Grey Brother; the werefolf; the wolf, the bear, the tiger of a thousand folktales; it is the serpent, Lucifer. The shadow stands on the threshold between the conscious and the unconscious mind, and we meet it in our dreams, as sister, brother, friend, beast, monster, enemy, guide. It is all we don‖t want to, can‖t, admit into our conscious self, all the qualities and tendencies within us which have been suppressed, denied, or not used. O desenvolvimento da sombra é paralelo ao do ego, de forma que tendências indesejadas ou não usadas são colocadas de lado ou reprimidas. Rejeitada pelo consciente, a sombra é projetada nos outros: “não há nada de errado comigo – são eles!”. Entretanto, quanto mais um individuo ignorá-la, mais forte e negra ela se torna, por isso é preciso admitir que isso tudo está dentro de você: “The person who denies his own profound relationship with evil denies his own reality. He cannot do, or make; He can only undo, 49 unmake” (ibidem). Não é fácil, mas é gratificante, pois, de acordo com Jung, aquele que lida com sua sombra fez uma pequena-grande mudança no mundo. Dessa forma, o sujeito cresce em direção ao auto-conhecimento e criatividade. Le Guin acredita que será na pré-adolescência que esse processo se mostra mais marcante: “The only way for a youngester to get past the paralyzing self-blame and self-disgust of this stage is really look at that shadow, to face it, warts and fangs and pimples and claws and all – to accept it as himself – as part of himself” (ibidem, p. 144). A autora afirma que a maioria das grandes fantasias parecem falar dessa jornada, afinal essa literatura é o melhor meio para tal: “fantasy is the natural, the appropriate, language for the recounting of the spiritual journey and the struggle of good and evil in the soul” (ibidem, p. 147). Jornada essa que é não só psíquica, mas ética: porém não se trata do maniqueísmo usual, com o mal diametricamente oposto ao bem, mas como no símbolo yang-yin (ibidem, p. 145). Fantasia não é escapismo, nem o mesmo que SuperHomem e Batman, é uma forma de falar da verdade do mundo para a criança e preparála para quando tiver de encarar as sombras da sociedade (ibidem, p. 147): “What he needs Geisy Nunes Adriano REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016 to grow up is reality, the wholeness which exceeds all our virtue and our vice. He needs knowledge; he needs self-knowledge. He needs to see himself and the shadow he casts.” REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AIKI, Hiroshi. 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