Ser afetado - Revistas USP
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Ser afetado - Revistas USP
“Ser afetado”, de Jeanne Favret-Saada* �������� ������� PAULA SIQUEIRA TÂNIA STOLZE LIMA Mestranda em Antropologia Social pelo PPGAS/ MN/UFRJ e pesquisadora de grupos culturais, política e religião em Nilo Peçanha, no Baixo Sul da Bahia. Professora Doutora de Antropologia pelo ICHF/UFF. Meu trabalho sobre a feitiçaria no Bocage francês levou-me a reconsiderar a noção de afeto, e a pressentir o interesse que haveria em trabalhá-la: primeiro, para apreender uma dimensão central do trabalho de campo (a modalidade de ser afetado); depois, para fazer uma antropologia das terapias (tanto “selvagens” exóticas, como “cientí�cas” ocidentais); e �nalmente, para repensar a antropologia. Com efeito, minha experiência de campo com o desenfeitiçamento, e, em seguida, minha experiência com a terapia analítica levaram-me a pôr em questão o tratamento paradoxal do afeto na antropologia: em geral, os autores ignoram ou negam seu lugar na experiência humana. Quando o reconhecem, ou é para demonstrar que os afetos são o mero produto de uma construção cultural, e que não têm nenhuma consistência fora dessa construção, como manifesta uma abundante literatura anglo-saxã; ou é para votar o afeto ao desaparecimento, atribuindo-lhe como único destino possível o de passar para o registro da representação, como manifesta a etnologia francesa e também a psicanálise. Trabalho, ao contrário, com a hipótese de que a e�cácia terapêutica, quando ela se dá, resulta de um certo trabalho realizado sobre o afeto não representado. De um modo mais geral, meu trabalho põe em causa o fato de que a antropologia acha-se acantonada no estudo dos aspectos intelectuais da experiência humana, nas produções culturais do “entendimento”, para empregar um termo da �loso�a clássica. É – parece-me – urgente, reabilitar a velha “sensibilidade”, visto que estamos mais bem equipados para abordála do que os �lósofos do século XVII. Inicialmente, valem algumas re�exões sobre o modo como obtive minhas informações de campo: não pude fazer outra coisa a não ser aceitar deixar-me afetar pela feitiçaria, e adotei um dispositivo metodológico tal que me permitisse elaborar um certo saber posteriormente. Vou mostrar como esse dispositivo não era nem observação participante, nem (menos ainda) empatia. Quando viajei para o Bocage, em 1968, havia uma abundante literatura etnográ�ca sobre feitiçaria, composta de dois conjuntos de textos heterogêneos e que se ignoravam mutuamente: aquele dos folcloristas europeus (que se tinham recentemente condecorado com o título vantajoso de “etnólogos”, embora não tivessem mudado em nada sua forma de trabalhar), e aquele dos antropólogos anglo-saxões, sobretudo africanistas e funcionalistas. Os folcloristas europeus não tinham nenhum conhecimento direto da feitiçaria rural: seguindo as prescrições de Van Gennep, eles praticavam investigações regionais, encontrando-se com as * FAVRET-SAADA, Jeanne. 1990. “Être A�ecté”. In: Gradhiva: Revue d’Histoire et d’Archives de l’Anthropologie, 8. pp. 3-9. �������������������������������������� 156 | �������� �� ����� �������� elites locais (o grupo menos bem situado para saber alguma coisa sobre o assunto) ou enviandolhes questionários, interrogando também alguns camponeses para saber se “ainda se acreditava nisso”. As respostas recebidas eram tão uniformes quanto as questões: “aqui, não, mas na aldeia vizinha, são uns atrasados…”. Seguiam-se, ainda, algumas anedotas céticas ridicularizando os crentes. Para ir direto ao ponto, digamos que os etnólogos franceses, desde que se tratasse de feitiçaria, dispensavam-se tanto de observar como de participar (situação que permanece, aliás, a mesma, ainda em 1990). Os antropólogos anglo-saxões pretendiam, ao menos, pôr em prática a “observação participante”. Levei um certo tempo para deduzir dos seus textos sobre feitiçaria que conteúdo empírico podia-se atribuir a essa curiosa expressão. Em retórica, isso se chama oxímoro: observar participando, ou participar observando, é quase tão evidente como tomar um sorvete fervente. No campo, meus colegas pareciam combinar dois gêneros de comportamento: um, ativo, de trabalho regular com informantes pagos, os quais eles interrogavam e observavam; o outro, passivo, de observação de eventos ligados à feitiçaria (disputas, consultas a adivinhos…). Ora, o primeiro comportamento não pode de forma alguma ser designado pelo termo “participação” (o informante, ao contrário, é quem parece “participar” do trabalho do etnógrafo); e, quanto ao segundo, “participar” equivale à tentativa de estar lá, sendo essa participação o mínimo necessário para que uma observação seja possível. Portanto, o que contava, para esses antropólogos, não era a participação, mas a observação. Desta, eles tinham, aliás, uma concepção bastante estreita: sua análise da feitiçaria reduziase àquelas das acusações, porque, diziam eles, são os únicos “fatos” que um etnógrafo pode “observar”. Acusar é, para eles, um “comportamento”, é até mesmo o comportamento por excelência da feitiçaria, já que é o único empiricamente veri�cável, todo o resto sendo somen- te erros e imaginações nativas. (Ressaltemos de passagem que, para esses autores, falar não é um comportamento, nem um ato suscetível de ser observado). Esses antropólogos davam respostas precisas a uma única questão – quem acusa quem de o ter enfeitiçado em dada sociedade? – mas �cavam mudos quanto a todas as outras – como se entra numa crise de feitiçaria? Como se sai dela? Quais são as idéias, as experiências e as práticas dos enfeitiçados e dos seus magos? Nem mesmo um autor tão minucioso quanto Turner permite sabê-lo, e, para se fazer uma idéia disso, é preciso voltar à leitura de Evans-Pritchard (1937). De maneira geral, havia nessa literatura um perpétuo deslizamento de sentido entre vários termos que teria sido melhor distinguir: a “verdade” vinha escorrer sobre o “real”, e este, sobre o “observável” (aqui, havia uma confusão suplementar entre o observável como saber empiricamente veri�cável, e o observável como saber independente das declarações nativas), depois sobre o “fato”, o “ato” ou o “comportamento”. Essa nebulosa de signi�cações tinha por único traço comum o fato de opor-se a seu simétrico: o “erro” escorria sobre o “imaginário”, sobre o “inobservável”, sobre a “crença” e, por �m, sobre a “palavra” nativa. Aliás, não há nada mais incerto que o estatuto da palavra nativa nesses textos: às vezes, ele é classi�cado entre os comportamentos (acusar) e, às vezes, entre as proposições falsas (invocar a feitiçaria para explicar uma doença). A atividade de fala – enunciação – é escamoteada, não restando mais do discurso nativo que seu resultado, isto é, os enunciados são impropriamente tratados como proposições e a atividade simbólica reduz-se a emitir proposições falsas. Como se pode ver, todas essas confusões giram em torno de um ponto comum: a desquali�cação da palavra nativa, a promoção daquela do etnógrafo, cuja atividade parece consistir em fazer um desvio pela África para veri�car �������������������������������� ��� �������, �� ������ ������-����� | ��� que apenas ele detém… não se sabe bem o quê, um conjunto de noções politéticas, equivalentes para ele à verdade. Voltemos a minha pesquisa sobre a feitiçaria no Bocage. Lendo essa literatura anglo-saxã para ajudar em meu trabalho de campo, �quei impressionada com uma curiosa obsessão presente em todos os prefácios: os autores (e o grande Evans-Pritchard não era exceção) negavam regularmente a possibilidade de uma feitiçaria rural na Europa de hoje. Ora, não somente eu estava dentro dela, como a feitiçaria era amplamente veri�cada em várias outras regiões, ao menos pelos folcloristas europeus. Por que um erro empírico tão evidente, tão grande e tão compartilhado? Sem dúvida, tratava-se de uma tentativa absurda de realizar novamente a Grande Divisão entre “eles” e “nós” (“nós” também já acreditamos em feiticeiros, mas foi há trezentos anos, quando “nós” éramos “eles”), e assim proteger o etnólogo (esse ser a-cultural, cujo cérebro somente conteria proposições verdadeiras) contra qualquer contaminação pelo seu objeto. Talvez isso fosse possível na África, mas eu estava na França. Os camponeses do Bocage recusaram-se obstinadamente a jogar a Grande Divisão comigo, sabendo bem onde isso deveria terminar: eu �caria com o melhor lugar (aquele do saber, da ciência, da verdade, do real, quiçá algo ainda mais alto), e eles, com o pior. A Imprensa, a Televisão, a Igreja, a Escola, a Medicina, todas as instâncias nacionais de controle ideológico os colocavam à margem da nação sempre que um caso de feitiçaria terminava mal: durante alguns dias, a feitiçaria era apresentada como o cúmulo do campesinato, e este como o cúmulo do atraso ou da imbecilidade. Assim, as pessoas do Bocage, para proibir o acesso a uma instituição que lhes prestava serviços tão eminentes, ergueram a sólida barreira do mutismo, com justi�cações do gênero: “Feitiço, quem não pegou não pode falar disso” ou “a gente não pode falar disso com eles”. �������������������������������� Pois então, eles falaram disso comigo somente quando pensaram que eu tinha sido “pega” pela feitiçaria, quer dizer, quando reações que escapavam ao meu controle lhes mostraram que estava afetada pelos efeitos reais – freqüentemente devastadores – de tais falas e de tais atos rituais. Assim, alguns pensaram que eu era uma desenfeitiçadora e dirigiram-se até a mim para solicitar o ofício; outros pensaram que eu estava enfeitiçada e conversaram comigo para me ajudar a sair desse estado. Com exceção dos notáveis (que falavam voluntariamente de feitiçaria, mas para desquali�cá-la), ninguém jamais teve a idéia de falar disso comigo simplesmente por eu ser etnógrafa. Eu mesma não sabia bem se ainda era etnógrafa. Certamente, nunca acreditei ser uma proposição verdadeira que um feiticeiro pudesse me prejudicar fazendo feitiços ou pronunciando encantamentos, mas duvido que os próprios camponeses tenham algum dia acreditado nisso dessa maneira. Na verdade, eles exigiam de mim que eu experimentasse pessoalmente por minha própria conta – não por aquela da ciência – os efeitos reais dessa rede particular de comunicação humana em que consiste a feitiçaria. Dito de outra forma: eles queriam que aceitasse entrar nisso como parceira e que aí investisse os problemas de minha existência de então. No começo, não parei de oscilar entre esses dois obstáculos: se eu “participasse”, o trabalho de campo se tornaria uma aventura pessoal, isto é, o contrário de um trabalho; mas se tentasse “observar”, quer dizer, manter-me à distância, não acharia nada para “observar”. No primeiro caso, meu projeto de conhecimento estava ameaçado, no segundo, arruinado. Embora, durante a pesquisa de campo, não soubesse o que estava fazendo, e tampouco o porquê, surpreendo-me hoje com a clareza das minhas escolhas metodológicas de então: tudo se passou como se tivesse tentado fazer da “participação” um instrumento de conhecimento. 158 | �������� �� ����� �������� Nos encontros com os enfeitiçados e desenfeitiçadores, deixei-me afetar, sem procurar pesquisar, nem mesmo compreender e reter. Chegando em casa, redigia um tipo de crônica desses eventos enigmáticos (às vezes aconteciam situações carregadas de uma tal intensidade que me era impossível fazer essas notas a posteriori). Esse diário de campo, que foi durante longo tempo meu único material, tinha dois objetivos: – O primeiro era a curto prazo: tentar compreender o que queriam de mim, achar uma resposta a questões urgentes do gênero: “Por quem X me toma?” (uma enfeitiçada, uma desenfeitiçadora), “O que Y quer de mim?” (que eu o desenfeitice…). Eu tinha interesse em achar uma boa resposta, já que no encontro seguinte, me pediriam para agir. Mas, em geral, não tinha os meios necessários para isso: a literatura etnográ�ca sobre feitiçaria, tanto anglo-saxã quanto francesa, não permitia que se representasse esse sistema de lugares em que consiste a feitiçaria. Eu estava justamente experimentando esse sistema, expondo-me a mim mesma nele. – O outro objetivo era a longo prazo: por mais que vivesse uma aventura pessoal fascinante, em nenhum momento resignei-me a não compreender. Na época, aliás, não sabia muito para que ou por que queria poder compreender, se para mim, para a antropologia ou para a consciência européia. Mas eu organizava meu diário de campo para que servisse mais tarde a uma operação de conhecimento: minhas notas eram de uma precisão maníaca para que eu pudesse, mais tarde, realucinar os eventos, e então – como eu não estaria mais “enfeitiçada”, apenas “reenfeitiçada” – compreendê-los, eventualmente. Os leitores de Corps pour Corps terão notado que não há nada neste diário que o assemelhe àqueles de Malinowski ou de Métraux. O diário de campo era para eles um espaço íntimo onde podiam en�m se deixar livres, reencon- trar-se fora das horas de trabalho, durante as quais eram obrigados a representar diante dos nativos. Em suma, um espaço de recreação pessoal, no sentido literal do termo. As considerações privadas ou subjetivas estão, ao contrário, ausentes do meu próprio diário, exceto se tal evento de minha vida pessoal tivesse sido evocado com meus interlocutores, quer dizer, se tivesse sido incluído na rede de comunicação da feitiçaria. Uma das situações que vivia no campo era praticamente inenarrável: era tão complexa que desa�ava a rememoração, e de todos os modos, afetava-me demais. Trata-se das sessões de desenfeitiçamento a que assistia, seja como enfeitiçada (minha vida pessoal estava passando pelo crivo e eu era instada a modi�cá-la), seja como testemunha dos clientes, mas também da terapeuta (eu era constantemente instada a intervir bruscamente). No começo, tomei muitas notas depois de chegar em casa, mas era muito mais para acalmar a angústia de ter-me pessoalmente engajado. Uma vez que aceitei ocupar o lugar que me tinha sido designado nas sessões, praticamente não tomei mais notas: tudo se passava muito depressa, deixava-as correr sem pôr-me questões, e, da primeira sessão até a última, não tinha compreendido praticamente nada do que tinha acontecido. Mas registrei discretamente umas trinta sessões das aproximadamente duzentas a que assisti para constituir um material sobre o qual pudesse trabalhar mais tarde. A �m de evitar os mal entendidos, gostaria de ressaltar o seguinte: aceitar “participar” e ser afetado não tem nada a ver com uma operação de conhecimento por empatia, qualquer que seja o sentido em que se entende esse termo. Vou considerar as duas acepções principais e mostrar que nenhuma delas designa o que pratiquei no campo. Segundo a primeira acepção (indicada na Encyclopedia of Psychology), sentir empatia consistiria, para uma pessoa, em “vicariously expe�������������������������������� ��� �������, �� ������ ������-����� | ��� riencing the feelings, perceptions and thoughts of another”1. Por de�nição, esse gênero de empatia supõe, portanto, a distância: é justamente porque não se está no lugar do outro que se tenta representar ou imaginar o que seria estar lá, e quais “sensações, percepções e pensamentos” ter-se-ia então. Ora, eu estava justamente no lugar do nativo, agitada pelas “sensações, percepções e pelos pensamentos” de quem ocupa um lugar no sistema da feitiçaria. Se a�rmo que é preciso aceitar ocupá-lo, em vez de imaginar-se lá, é pela simples razão de que o que ali se passa é literalmente inimaginável, sobretudo para um etnógrafo, habituado a trabalhar com representações: quando se está em um tal lugar, é-se bombardeado por intensidades especí�cas (chamemo-las de afetos), que geralmente não são signi�cáveis. Esse lugar e as intensidades que lhe são ligadas têm então que ser experimentados: é a única maneira de aproximá-los. Uma segunda acepção de empatia – einfühlung, que poderia ser traduzida por comunhão afetiva – insiste, ao contrário, na instantaneidade da comunicação, na fusão com o outro que se atingiria pela identi�cação com ele. Essa concepção nada diz sobre o mecanismo da identi�cação, mas insiste em seu resultado, no fato de que ela permite conhecer os afetos de outrem. A�rmo, ao contrário, que ocupar tal lugar no sistema da feitiçaria não me informa nada sobre os afetos do outro; ocupar tal lugar afeta-me, quer dizer, mobiliza ou modi�ca meu próprio estoque de imagens, sem contudo instruir-me sobre aquele dos meus parceiros. Mas – e insisto sobre esse ponto, pois é aqui que se torna eventualmente possível o gênero de conhecimento a que viso –, o próprio fato de que aceito ocupar esse lugar e ser afetada por ele abre uma comunicação especí�ca com os nativos: uma comunicação sempre involun1. Nota da tradutora: “experimentar, de uma forma indireta, as sensações, percepções e pensamentos do outro”. �������������������������������� tária e desprovida de intencionalidade, e que pode ser verbal ou não. Quando é verbal, acontece mais ou menos isto: alguma coisa me impele a falar (digamos, o afeto não representado), mas não sei o quê, e tampouco sei por que isso me impele a dizer justamente aquilo. Por exemplo, digo a um camponês, em eco a alguma coisa que ele me disse: “Pois é, eu sonhei que…”, e eu não teria como explicar esse “pois é”. Ou então meu interlocutor observa, sem fazer qualquer ligação: “Outro dia, fulano lhe disse que… Hoje, você está com essas erupções no rosto”. O que se diz aí, implicitamente, é a constatação de que fui afetada: no primeiro caso, eu própria faço essa constatação, no segundo, é um outro quem a faz. Quando essa comunicação não é verbal, o que é então que é comunicado e como? Trata-se justamente da comunicação imediata que o termo einfühlung evoca. Apesar disso, o que me é comunicado é somente a intensidade de que o outro está afetado (em termos técnicos, falar-se-ia de um quantum de afeto ou de uma carga energética). As imagens que, para ele e somente para ele, são associadas a essa intensidade escapam a esse tipo de comunicação. Da minha parte, encaixo essa carga energética de um modo meu, pessoal: tenho, digamos, um distúrbio provisório de percepção, uma quase alucinação, ou uma modi�cação das dimensões; ou ainda, estou submersa num sentimento de pânico, ou de angústia maciça. Não é necessário (e, aliás, não é freqüente) que esse seja o caso do meu parceiro: ele pode, por exemplo, estar completamente inafetado na aparência. Suponhamos que não lute contra esse estado, que o receba como uma comunicação de alguma coisa que não saiba o que é. Isso me impele a falar, mas da forma evocada anteriormente (“então, eu sonhei que…”), ou a calarme. Nesses momentos, se for capaz de esquecer que estou em campo, que estou trabalhando, se for capaz de esquecer que tenho meu estoque 160 | �������� �� ����� �������� de questões a fazer… se for capaz de dizer-me que a comunicação (etnográ�ca ou não, pois não é mais esse o problema) está precisamente se dando, assim, desse modo insuportável e incompreensível, então estou direcionada para uma variedade particular de experiência humana – ser enfeitiçado, por exemplo – porque por ela estou afetada. Ora, entre pessoas igualmente afetadas por estarem ocupando tais lugares, acontecem coisas às quais jamais é dado a um etnógrafo assistir, fala-se de coisas que os etnógrafos não falam, ou então as pessoas se calam, mas tratase também de comunicação. Experimentando as intensidades ligadas a tal lugar, descobre-se, aliás, que cada um apresenta uma espécie particular de objetividade: ali só pode acontecer uma certa ordem de eventos, não se pode ser afetado senão de um certo modo. Como se vê, quando um etnógrafo aceita ser afetado, isso não implica identi�car-se com o ponto de vista nativo, nem aproveitar-se da experiência de campo para exercitar seu narcisismo. Aceitar ser afetado supõe, todavia, que se assuma o risco de ver seu projeto de conhecimento se desfazer. Pois se o projeto de conhecimento for onipresente, não acontece nada. Mas se acontece alguma coisa e se o projeto de conhecimento não se perde em meio a uma aventura, então uma etnogra�a é possível. Ela apresenta, creio eu, quatro traços distintivos: 1. Seu ponto de partida é o reconhecimento de que a comunicação etnográ�ca ordinária – uma comunicação verbal, voluntária e intencional, visando à aprendizagem de um sistema de representações nativas – constitui uma das mais pobres variedades da comunicação humana. Ela é especialmente imprópria para fornecer informações sobre os aspectos não verbais e involuntários da experiência humana. Noto, aliás, que, quando um etnógrafo lembra-se do que houve de único em sua estada no campo, ele fala sempre de situações em que não estava em condições de praticar essa comunicação pobre, pois estava invadido por uma situação e/ou por seus próprios afetos. Ora, nas etnogra�as, essas situações, apesar de banais e recorrentes, de comunicação involuntária e desprovida de intencionalidade não são jamais consideradas como aquilo que são: as “informações” que elas trouxeram ao etnógrafo aparecem no texto, mas sem nenhuma referência à intensidade afetiva que as acompanhava na realidade; e essas “informações” são colocadas exatamente no mesmo plano que as outras, aquelas que são produzidas pela comunicação voluntária e intencional. Poder-se-ia dizer, inclusive, que virar um etnógrafo pro�ssional é tornar-se capaz de maquiar automaticamente todo episódio de sua experiência de campo em uma comunicação voluntária e intencional visando ao aprendizado de um sistema de representações nativas. Eu, ao contrário, escolhi conceder estatuto epistemológico a essas situações de comunicação involuntária e não intencional: é voltando sucessivamente a elas que constituo minha etnogra�a. 2. Segundo traço distintivo dessa etnogra�a: ela supõe que o pesquisador tolere viver em um tipo de schize. Conforme o momento, ele faz justiça àquilo que nele é afetado, maleável, modi�cado pela experiência de campo, ou então àquilo que nele quer registrar essa experiência, quer compreendê-la e fazer dela um objeto de ciência. 3. As operações de conhecimento acham-se estendidas no tempo e separadas umas das outras: no momento em que somos mais afetados, não podemos narrar a experiência; no momento em que a narramos não podemos compreendêla. O tempo da análise virá mais tarde. 4. Os materiais recolhidos são de uma densidade particular, e sua análise conduz inevitavelmente a fazer com que as certezas cientí�cas mais bem estabelecidas sejam quebradas. �������������������������������� ��� �������, �� ������ ������-����� | ��� Consideremos, por exemplo, os rituais de desenfeitiçamento. Se não tivesse sido assim afetada, se não tivesse assistido a tantos episódios informais de feitiçaria, teria dado aos rituais uma importância central: primeiro, porque sendo etnógrafa, sou levada a privilegiar a análise do simbolismo; segundo, porque os relatos típicos de feitiçaria lhes dão um lugar essencial. Mas, por ter �cado tanto tempo entre os enfeitiçados e entre os desenfeitiçadores, em sessões e fora de sessões, por ter escutado, além dos discursos de conveniência, uma grande variedade de discursos espontâneos, por ter experimentado tantos afetos associados a tais momentos particulares do desenfeitiçamento, por ter visto fazerem tantas coisas que não eram do ritual, todas essas experiências �zeram-me compreender isso: o ritual é um elemento (o mais espetacular, mas não o único) graças ao qual o desenfeitiçador demonstra a existência de “forças anormais”, as implicações mortais da crise que seus clientes sofrem e a possibilidade de vitória. Mas essa vitória (não podemos sobre esse assunto falar de “e�cácia simbólica”) supõe que se coloque em prática um dispositivo terapêutico muito complexo antes e muito tempo �������������������������������� depois da efetuação do ritual. Esse dispositivo pode, é claro, ser descrito e compreendido, mas somente por quem se permitir dele se aproximar, quer dizer, por quem tiver corrido o risco de “participar” ou de ser afetado por ele: em caso algum ele pode ser “observado”. Para �nalizar, uma palavra sobre a ontologia implícita de nossa disciplina. Em Meurtre dans l’Université Anglaise (L’Âne, nº 21, abril-junho, 1985), Paul Jorion mostra que a antropologia anglo-saxã pressupõe, entre outras coisas, uma transparência essencial do sujeito humano a si mesmo. Ora, minha experiência de campo – porque ela deu lugar à comunicação não verbal, não intencional e involuntária, ao surgimento e ao livre jogo de afetos desprovidos de representação – levou-me a explorar mil aspectos de uma opacidade essencial do sujeito frente a si mesmo. Essa noção é, aliás, velha como a tragédia, e a ela sustenta também, desde há um século, toda a literatura terapêutica. Pouco importa o nome dado a essa opacidade (“inconsciente” etc.): o principal, em particular para uma antropologia das terapias, é poder daqui para frente postulá-la e colocá-la no centro de nossas análises.