Edição Nodoa no Brim
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AGOSTO DE 2016 - EDIÇÃO 36 | ISSN 2238-6467 CadernodeCultura Nódoano Brim ACONFIGURAÇÃODAMEMÓRIAEM LEITEDERRAMADO:UMPANDEMÔNIO Sandra Aparecida Jorge Gindri (PPGEL/UNEMAT) xalmente, dando origem a sociedades complexas marcadas principalmente pelo distanciamento e, consequente, isolamento entre as Uma das características do romance contemporâneo é a assimila- pessoas. Vivemos uma era marcada histórica e socialmente pela ção da relatividade da perspectiva, da consciência, do espaço e do prevalência de sujeitos que catalisam o multifacetamento da realitempo multifacetados à sua própria estrutura. Questionamentos como dade que o rodeia, além de refletir definitivamente a desconstrução a solidão, a melancolia, a crise de identidade e a busca por si mesmo, do indivíduo que se sente perdido e constantemente empurrado em tão frequentes na atualidade, são levantados nessas narrativas, não diferentes direções. Nesse contexto, inserem-se os romances de Chico Buarque, obras repletas de linguagem plurissignificativa, somente através do seu conteúdo, mas também da sua forma. O mundo contemporâneo, tão marcado pelo desenvolvimento flashbacks, paradoxos e crises de identidade, que questionam tecnológico e a facilidade de acesso à informação, acabou, parado- situações vivenciadas pelo homem da atualidade. AGOSTO DE 2016 - EDIÇÃO 36 | ISSN 2238-6467 LEITEDERRAMADO CHICOBUARQUE Caderno de Cultura ‘‘Nódoa no Brim’’ Realização: R ISSN 2238-6467 Universidade do Estado de Mato Grosso Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários EDITORES RESPONSÁVEIS Walnice Vilalva é doutora em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. É professora junto ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários - PPGEL. É, ainda, editora da Revista “Alere”- Revista do Programa de Pós-graduação em Estudos Literários; Líder do grupo de pesquisa (CNPq) “Estudos de Literatura: periferia e cânone”; e coordenadora do Núcleo de pesquisa Wlademir Dias-Pino. Helvio Moraes é doutor em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. É professor junto ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários - PPGEL; membro do U-Topos - Centro de Pesquisa sobre Utopia (IEL/Unicamp); co-editor da revista “Morus - Utopia e Renascimento”; editor da revista “Fronteira Digital” (DL - Pontes e Lacerda); Lilian Reichert Coelho é doutora em Letras. É professora da UNIR e colaboradora junto ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários. Claúdio Márcio da Silva é doutorando em Letras/PPGEL. É professor do IFMT de Campo Novo do Parecís. Fabíola Tormes, direção e jornalismo do Diário da Serra. e-mail: [email protected] ENDEREÇO Av. Tancredo Neves, 1247-W, Jardim do Lago II • Tangará da Serra - MT Fone (65) 3326-4724 Fax 3326-6501 Este caderno é parte integrante do Diário da Serra www.diariodaserra.com.br CEP: 78300-000 Quando eu sair daqui, vamos nos casar na fazenda da minha feliz infância, lá na raiz da serra. Você vai usar o vestido e o véu da minha mãe, e não falo assim por estar sentimental, não é por causa da morfina. Você vai dispor dos rendados, dos cristais, da baixela, das joias e do nome da minha família. Vai dar ordens aos criados, vai montar no cavalo da minha antiga mulher. E se na fazenda ainda não houver luz elétrica, providenciarei um gerador para você ver televisão. Vai ter também ar condicionado em todos os aposentos da sede, porque na baixada hoje em dia faz muito calor. Não sei se foi sempre assim, se meus antepassados suavam debaixo de tanta roupa. Minha mulher, sim, suava bastante, mas ela já era de uma nova geração e não tinha a austeridade da minha mãe. Minha mulher gostava de sol, voltava sempre afogueada das tardes no areal de Copacabana. Mas nosso chalé em Copacabana já veio abaixo, e de qualquer forma eu não moraria com você na casa de outro casamento, moraremos na fazenda da raiz da serra. Vamos nos casar na capela que foi consagrada pelo cardeal arcebispo do Rio de Janeiro em mil oitocentos e lá vai fumaça. Na fazenda você tratará de mim e de mais ninguém, de maneira que ficarei completamente bom. E plantaremos árvores, e escreveremos livros, e se Deus quiser ainda criaremos filhos nas terras de meu avô. Mas se você não gostar da raiz da serra por causa das pererecas e dos insetos, ou da lonjura ou de outra coisa, poderíamos morar em Botafogo, no casarão construído por meu pai. Ali há quartos enormes, banheiros de mármore com bidês, vários salões com espelhos venezianos, estátuas, pé-direito monumental e telhas de ardó¬ sia importadas da França. Há palmeiras, abacateiros e amendoeiras no jardim, que virou estacionamento depois que a embaixada da Dinamarca mudou para Brasília. Os dinamarqueses me compraram o casarão a preço de banana, por causa das trapalhadas do meu genro. Mas se amanhã eu vender a fazenda, que tem duzentos alqueires de lavoura e pastos, cortados por um ribeirão de água potável, talvez possa reaver o casarão de Botafogo e restaurar os móveis de mogno, mandar afinar o piano Pleyel da minha mãe. Terei bricolagens para me ocupar anos a fio, e caso você deseje prosseguir na profissão, irá para o trabalho a pé, visto que o bairro é farto em hospitais e consultórios. Aliás, bem em cima do nosso próprio terreno levantaram um centro médico de dezoito andares, e com isso acabo de me lembrar que o casarão não existe mais. E mesmo a fazenda na raiz da serra, acho que desapropriaram em 1947 para passar a rodovia. Estou pensando alto para que você me escute. E falo devagar, como quem escreve, para que você me transcreva sem precisar ser taquígrafa, você está aí? [...] Fragmento retirado da obra: BUARQUE, Chico. Leite Derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. AGOSTO DE 2016 - EDIÇÃO 36 | ISSN 2238-6467 ACONFIGURAÇÃODAMEMÓRIAEM LEITEDERRAMADO:UMPANDEMÔNIO Sandra Aparecida Jorge Gindri (PPGEL/UNEMAT) diante da oportunidade de ver o homem contemporâneo em toda sua fragmentação, lacunas e vazios deixados por uma incompletude de Lançado em 2009, o romance Leite derramado, assim como outros vida, produtos da sociedade atual na qual predominam as turbulências e textos que o escritor já produziu, logo ganhou destaque e se tornou alvo inquietações. Chico Buarque, em Leite derramado, soube para além do da critica especializada. Chico Buarque sempre esteve sob os olhares da estabelecimento de uma crítica política ou social, conformar e traduzir critica, admirado por muitos e criticados por outros. numa narrativa, sem dúvida engraçada, irônica e debochada, mas Por compreender o romance Leite derramado como uma das obras também marcada pela melancolia, desilusão e dor, as transformações produzidas na contemporaneidade e filiada a uma tradição romanesca do homem contemporâneo ao apresentar um narrador personagem memorialística é que nos sentimos desafiados a analisar, pela configura- velho e senil que narra sua história de vida por meio de um relato inconção do discurso memorial de Eulálio Montenegro de Assumpção, para gruente e descontínuo, por num discurso abarrotado de preconceito, por além de questões de cunho historiográficos, sociais e políticos, já tão uma história que não avança, que se interrompe, que deixa vazios, que bem explicitadas pela critica, as ressonâncias desse discurso dialógico/ ignora os nexos, mobilizando características cada vez mais presentes na polifônicas na acepção que nos coloca Bakhtin de que toda enunciação vida contemporânea. é o produto da interação entre indivíduos socialmente organizados, já Permeada por lapsos da memória, a narrativa de Eulálio Assumpção que sua natureza é social. vai tentando reconstruir uma vida que se apresenta de modo esfacelado, Conduzimos nossas pesquisas na confiança de que a obra em tela nos como os próprios acontecimentos ao longo de sua história. As perspecpossibilitaria ampliar, pelo modo confessional e íntimo como se cons- tivas que esse narrador nos oferece sobre si mesmo e sobre seus familiatroem essas memórias, nosso entendimento acerca do complexo e res se constituem de formas variadas, oscilando numa ambivalência fragmentado universo do homem contemporâneo, tema cada vez mais entre vítimas e vilões. recorrente na literatura. Embora o que se registra e o que se perde na voz desse narrador só Uma vez que nenhuma enunciação pode existir fora de um contexto reafirme a dúvida no leitor entre o que é verdade, ilusão ou delírio nos sócio ideológico, em que cada locutor tem um “horizonte social” bem fatos narrados, a narrativa nos alcança com uma profunda verdade: a de definido, pensado e dirigido a um conjunto social, também definido, que o tempo desse ancião está se esgotando e é preciso, mesmo que com então toda enunciação que procede de alguém também se destina a esforço e imprecisão, passar a limpo essa existência. alguém. Nessa ótica qualquer enunciação propõe uma réplica, ou seja, Assim, ainda que não pareça ser possível dar crédito a essa narratiuma reação. É a análise dessas enunciações, seus sentidos e configura- va, um elemento nos possibilita não só estabelecer um laço de confiações que, articuladas pelo discurso memorialista de um narrador velho bilidade entre o dito e o não dito, entre o lembrado e o esquecido, e moribundo, diante da iminência da morte, buscamos consolidar entre a realidade e a invenção, como também alcançar compreensão nossos estudos. sobre a urgência dizê-lo: a morte. Certamente é entre a vida que se esvai em um leito de hospital e a A presença da morte é constante e se dissemina por todos os espaços morte que já se anunciava bem antes da velhice, pelo abandono, pela da narrativa assumindo, desde uma forma simbólica representada pelo solidão e pelo sofrimento, entre a memória que constrói ardilosamente abandono e pela invisibilidade, até a morte física, derradeiro fim do um percurso de lembranças, que oscilando entre imaginação e invenção personagem, dando fim a narrativa. Essa presença é sem dúvida uma tornando as recordações possíveis de serem encaradas, e o esquecimen- das grandes propulsoras de um relato que se constrói por lacunas e por to, que como um véu protetor trabalha para resguardar o não “dito” ou o vazios que por si só significam mais do que mostram. Por esses caminão “lembrado”, que a força propulsora da narração no romance em nhos se constitui uma história bem mais intensa e humana do que aquela questão se rompe na pungência do relato, mostrando que a literatura oferecida por memórias de um querer-ser nunca realizado. A tessitura dessa existência, ainda que configurada por uma arquitepermanece em constante transformação acompanhando as muitas e tura incongruente e lacunar conformada por um discurso apologético diferentes mudanças da sociedade. Além da possibilidade de análise pelo viés historiográfico, pelo que busca justificar erros e escolhas, torna imperioso no relato, sem qual seria possível fazer um diagnóstico crítico da sociedade brasilei- dúvida, o peso da balança entre o que valeu ou não a pena em sua vida. ra por intermédio da narração de um filho de senador da República, O que Chico Buarque coloca em movimento são os percalços, as fratuneto de nobre do Império, bisneto de um figurão da corte de dom João ras e os descaminhos do homem moderno, configurados pelo relato de e que como herdeiro de todos os vícios e preconceitos de seus ante- uma vida medíocre e vazia de um personagem que busca, mais do que passados poderia se constituir como a prova viva de como males qualquer outra coisa, encontrar a si mesmo para alcançar remissão e ancestrais ainda infectam o presente, vislumbramos, nesse trabalho, morrer com a certeza de que de alguma forma valeu a pena viver. uma abordagem dialógico polifônica, pois só podemos compreender um enunciado quando reagimos às palavras que despertam em nós ressonâncias ideológicas ou que nos convidam a estabelecer relação com nossa vida. Nesse sentido compreender não é só aceitar o enunciado, mas opor à palavra do locutor uma contra palavra. Vale lembrar Bakhtin, que dirá que “o ser, refletido no signo, não apenas nele se reflete, mas também se refrata. O que determina essa refração do ser no signo ideológico? O confronto de 102 interesses sociais nos limites de uma só e mesma comunidade semiótica [...]” (Bakhtin, 1999, p. 46). É o olhar sobre o romance moderno e sobre o homem em toda sua perplexidade e dialogicidade que nos autoriza a afirmar que o romance de Chico Buarque, mais do que oferecer uma possibilidade de analisar a sociedade em seus vícios e descaminhos, nos coloca AGOSTO DE 2016 - EDIÇÃO 36 | ISSN 2238-6467 GIRATA AONDA Everton Almeida Barbosa (UNEMAT) A onda é um filme de 2008, alemão de diretor e atores, inspirado no livro de mesmo nome, do americano Todd Strasser, que fala de uma experiência que um professor, Rainer Wenger, realiza com seus alunos de ensino médio. Durante uma semana, a turma precisa executar um projeto com o tema da autocracia, o que evoca uma discussão cara para a história alemã: a ditadura e o nazismo. Uma questão é fundamental: é possível que a Alemanha possa voltar à ditadura? A resposta é predominantemente negativa. Por fim, a proposta de Wenger será demonstrar na prática como o autoritarismo está latente na sociedade e pode facilmente se revelar, principalmente porque está relacionado a desejos e carências humanas não suficientemente observadas. Um primeiro passo tomado pelo professor é alterar a disposição das carteiras na sala: ao invés de rodas em que os alunos ficam frente a frente, as fileiras tradicionais que se dirigem à autoridade do professor, que se torna o líder, o führer. É o primeiro elemento destacado na aula como típico de uma ditadura. O líder é aquele que não vacila, que tem convicção do que fala com voz de comando e transmite confiança a seus seguidores, concentrando em si a responsabilidade que muitos não têm, por diversos motivos, de dirigir sua própria vida e tomar decisões. É aquele que dá sentido aos atos, anima os caídos, dirime as dúvidas, convence... ainda que esteja errado. O segundo elemento de uma ditadura: disciplina, o que se traduz na forma de se sentar em sala, de se levantar para falar, de dar respostas claras, curtas e objetivas, tudo justificado positivamente como benéfico à saúde e à expressão. Toda essa “mudança de forma” impressiona os alunos, porque houve uma “energia diferente”, o reconhecimento da necessidade de disciplina. A aula segue: condições para uma ditadura? Desemprego e injustiça social, inflação alta, insatisfação política, nacionalismo extremista (exemplos tomados da história alemã)... Some-se a isso a necessidade de pertencimento a algo maior, uma unidade – de pensamento, de sentimento, de objetivos – que garante que não se está sozinho no mundo em luta contra os demais, ou ainda, que dá poder para lutar e subjugar os demais, que são o inimigo. Essa mistura perigosa recai na figura do líder como salvador, aquele que unifica o grupo e os convence de que a união os torna mais fortes. Daí por diante, seguem-se consequências naturais, positivas: uniformes como maneira de eliminar diferenças sociais, um nome, um sinal que identifica o grupo, festas reservadas, admiração e interesse dos que não fazem parte do grupo, o sentimento de que há algo maior pelo qual vale a pena existir etc. No mesmo pacote, as consequências negativas: a vontade de marcar a superioridade sobre os demais, a discriminação e inferiorização de quem não faz parte do grupo, a repressão de ideias opostas com violência etc... No clímax, o discurso do líder, com afirmações superficiais e genéricas, mas de efeito: sobre o terrorismo, a injustiça social, a luta de fortes contra fracos, a autoproclamação como salvadores do mundo etc.; tudo seguido do ato de punição pública de traidor. Wenger reconhece que chegou longe demais com a atividade, apesar de parecer ter alcançado seus objetivos com ela. E tenta concluir com a lição de que todos devem refletir sobre suas atitudes durante aquela semana. O filme sinaliza algumas das carências que podem levar as pessoas a fazerem, não necessariamente o que querem, mas o que o líder diz que devem fazer: o sentimento de solidão ou de inadequação, a baixa auto-estima, a desestrutura familiar. Os personagens que não apresentam notoriamente essas características são problemas para A Onda. Outra sacada importante: o filme lida com jovens, cuja idade é mais suscetível para as carências e os sonhos. Etapa da vida em que se vive e sente mais intensamente, e na qual o discurso fácil, objetivo e direto, que dá mais certeza do que dúvidas, pode alimentar facilmente o egocentrismo e a vaidade, se for usado com o fim de manipular os outros em prol de um interesse particular. LOLITA Luan Paredes Almeida Alves (UNEMAT) Dentre as inúmeras obras que causaram impacto ao serem publicadas, Lolita consta no rol de uma das mais emblemáticas do século XX. O romance escrito por Vladimir Nabokov (1899-1977) é publicado, inicialmente, na França, em 1955, enveredou por uma temática controversa para o crivo da sociedade de seu tempo. Acusada de pornografia por algumas editoras, a obra passou por um longo processo antes de consolidar-se como um marco literário. Narrado em primeira pessoa, o polêmico romance traz à baila o envolvimento do protagonista Humbert Humbert ─ professor britânico recémchegado aos Estados Unidos ─ com sua enteada pré-adolescente de doze anos, Dolores Haze; ou, como foi apelidada pelo próprio algoz: Lolita. Mais do que uma obra que lida com tabus, Lolita é uma construção dotada de grande sensibilidade. Toda a prosa do narrador mostra-se floreada e de forte apelo poético. Nabokov não apenas constrói um caso infame de pedofilia, mas se equilibra no tênue limiar entre a ética e a estética para criar uma história incomum de amor, obsessão e vingança, além de dar certos requintes que variam do erotismo sórdido ao sadismo cru. A ironia que permeia o romance ultrapassa a intelecção da obra: todas as palavras são dadas ao abusador; às impressões da vítima, restam apenas a imaginação. Com efeito, o uso do narrador não-confiável em Lolita é um dos casos mais bem empregados da Literatura mundial. Mais importante do que observar a relevância histórica e cultural de uma obra, é a fruição de uma boa história que nos traz a marca indelével do prazer literário. Com a magnum opus de Nabokov, o usufruto do romance é uma inconstante. As justificativas do narrador são expostas detalhadamente, e fica a cargo do leitor ponderar sobre a culpabilidade do réuprotagonista. A arte imita a vida, e Lolita, certamente, imita as profundezas mais obscuras da perversão humana.