Elias do Amaral Jonis ÀS MARGENS DA SOLIDARIEDADE

Transcrição

Elias do Amaral Jonis ÀS MARGENS DA SOLIDARIEDADE
Elias do Amaral Jonis
ÀS MARGENS DA SOLIDARIEDADE DIVINA
Campo Grande
2010
Elias do Amaral Jonis
ÀS MARGENS DA SOLIDARIEDADE DIVINA
Monografia apresentada ao Curso Bacharel em
Teologia da Faculdade Theológica – FATHEL,
para obtenção do título de Bacharel em Teologia
sob orientação do Profº Oclécio Cabral Filho.
Campo Grande
2010
Elias do Amaral Jonis
Às Margens da Solidariedade Divina
Monografia apresentada ao Curso de Teologia,
banca examinadora da FATHEL – Faculdade
Theológica para obtenção do título de Bacharel.
Aprovada em: _____ / _____ / _____
_________________________________________________
Profº Oclécio Cabral Filho
Fathel
_________________________________________________
Profº Haroldo Evangelista
Fathel
_________________________________________________
Profº Marcos Henrique Garcia
Fathel
Dedico aos meus pais, pela base da educação
que me propuseram. A minha esposa Gislayne,
pela compreensão e por fazer-me feliz. Aos
meus filhos, Jônatas e Hadassa, por fazerem
parte das minhas conquistas.
RESUMO
A raiz genealógica participativa na nação judaica leva-nos à reflexão quanto à postura
solidária em todos os aspectos, caracterizando a cerne da crise soteriológica da igreja. A
rebelião contra Deus persiste no fato da inconsistência de nossa história, cultura e da
etnia. Ninguém pode sobrepujar a soberania de um Deus criador que é também
interativo e participativo, mas nossas escolhas, criteriosamente envolvem solidariedade
e consequentemente, de toda a raça humana e para com os hebreus, a unidade garantia a
plena ligação eliminando a “morte de gerações sucessivas”. Para Paulo, a unidade entre
os seres humanos é a própria unidade de Deus e, com isso, a causa de toda a unidade da
raça humana, enfatizado, inclusive, nos sacramentos. Assim, a temática é relembrar o
passado e fazer com que, no presente, tenhamos uma unidade como igreja mais forte,
coerente e convicta de seus objetivos para que o plano de salvação alcance toda a terra.
Palavras-chave: Solidariedade. Unidade. Pecado. Salvação.
ABSTRAT
The root genealogical participative in the Jewish nation, takes us to the reflection to the
solidary posture in all the aspects, characterizing to duramen of the crisis soteriological
of the church. The rebellion against Lord persists in the fact of the inconsistency of our
history, culture and of the ethnicity. Nobody can surpass the sovereignty of a creative
Lord that is also interactive and participation, but our choices, critically involve
solidarity and consequently, of the whole human race and to the Hebrews, the unit
guaranteed the full connection eliminating the death of successive generations. To
Paulo, the unit among the human beings is the own unit of Lord and with that, the cause
of the whole unit of the human race, emphasized, besides, in the sacraments. Like this,
the thematic is to recollect the past and to do with that, in the present, let us have an unit
as church stronger, coherent and convict of your objectives so that the salvation plan
reaches the whole earth.
Word-keys: Solidarity. Unit. Sin. Salvation.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO............................................................................................................ 08
2 OS PRIMÓRDIOS DA SOLIDARIEDADE.............................................................. 12
2.1 AS ORIGENS E A SOLIDARIEDADE..................................................................... 12
2.2 A SOLIDARIEDADE NOS SACRAMENTOS, A DOUTRINA DO
“ZACUT ABOT” E A “MISHPĀH”................................................................................ 20
3 O PECADO NO CONCEITO DE COLETIVIDADE.............................................. 29
3.1 O PAPEL DE ADÃO.................................................................................................. 29
3.2 O CARÁTER SUBSTITUTIVO DE CRISTO E A NOVA ALIANÇA.................... 38
4 A SOLIDARIEDADE E A TEOLOGIA PAULINA................................................ 44
4.1 O ASPECTO SOLIDÁRIO DA RECONCILIAÇÃO................................................ 46
4.2 O PECADO SEGUNDO A SOLIDARIEDADE PAULINA..................................... 49
4.3 O DUALISMO............................................................................................................ 50
4.4 A CORRUPÇÃO DO CORPO E DA ALMA............................................................ 51
5 OS SACRAMENTOS NO PENSAMENTO DE PAULO........................................ 56
5.1 O BATISMO............................................................................................................... 56
5.2 A CEIA....................................................................................................................... 57
6 A SOLIDARIEDADE DA IGREJA........................................................................... 60
6.1 O CONCEITOBÍBLICO............................................................................................ 60
6.2 A DIACONIA DA IGREJA....................................................................................... 66
6.3 ESTRUTURA DA VERSÃO ECLESIOLÓGICA PÓS-MODERNA....................... 68
6.4 FORMAS DE ATUAÇÃO SOLIDÁRIA DA IGREJA.............................................. 70
CONCLUSÃO................................................................................................................. 75
REFERÊNCIAS.............................................................................................................. 77
8
1 INTRODUÇÃO
Um novo som se ouvirá
Uma só palavra irá brotar
Nos corações dos povos
Uma nova língua, um novo cântico e, então,
E O seu trono será, adornado
Com um coral de vozes de toda terra
Que jamais acabará
E seremos um só povo, uma nação
Cristo para as nações, Cristo para as nações!
Cristo para as nações, eu quero estar junto a Ti
Enquanto resta tempo vamos
Proclamar!
Enquanto resta fôlego
Anunciar!
Cristo para as nações!
Eu quero...
Cristo para as nações, Cristo para as nações!
Cristo para as nações, Cristo para as nações, eu quero!
No mesmo sonho de um dia ver
Toda tribo, povo, língua e nação
Prostrados
Diante do trono
9
Sobre toda a cidade, uma música: Hosana!
A luz sempre brilhará
E num segundo todos nós iremos Te encontrar!
Eu quero... Cristo para as nações!
(Música: “Cristo para as Nações” - Elias Jonis).
O Clamor das nações é ouvido por todos os lados. São inúmeras vozes que ecoam
retumbantes pelas vertentes ofuscadas da racionalidade, da incerteza e dos algozes itinerantes
de quem se têm notícia quanto aos emergentes sinais de destruição pela falta de paz e de
amor. São eles os cristãos? São os negociáveis líderes de multidões ou os neoliberais da época
com seus discursos veementes pelo sucesso? A solidariedade é a resposta pelo ego incutido na
sola dos pés de quem esqueceu sua prática e somente se prendeu na retórica.
Somos um povo de conceitos nômades, de flâmulas imponentes pela paz e pelo
amor; mas o que é o amor? O apóstolo Paulo na carta aos Coríntios, capítulo 1, versículo 10
diz: “Rogo-vos, porém, irmãos, pelo nome de nosso Senhor Jesus Cristo, que digais todos
uma mesma coisa, e que não haja entre vós dissensões; antes sejais unidos em um mesmo
pensamento e em um mesmo parecer.” A fé operava juntamente com Abraão e isto o
aperfeiçoou trazendo maturidade, confirmado no veredicto final na vida de Isaque, ou seja,
apenas confirmou o que já era notório na vida de Abraão.
A “fé de Paulo” e a “fé de Tiago” possuem conceitos inteiramente diferentes. Paulo
tem um conceito dinâmico por meio do qual o crente tem uma união íntima com Cristo e isso
inclui um compromisso de obediência por fé (Rm 1, 5). Para Tiago a fé que “algumas pessoas
afirmam possuir” é uma questão de discurso sem ação, ou seja, um discurso somente verbal. É
a esta fé “morta” que se refere Tiago como “fé somente” no verso 24 do segundo capítulo. O
próprio Paulo teria condenado qualquer pessoa praticante de tais atitudes. Existe um
complemento entre Paulo e Tiago, pois Paulo afirma que a pessoa é justificada por obras (Rm
4, 2-8) e Tiago diz o que a verdadeira fé deve produzir no crente. A fé não era algo que
Abraão, por exemplo, exercia numa ocasião isolada; ela estimulava, dirigia e operava
juntamente com suas obras.
10
De quem é a missão? A resposta mais comum é dizer que é a da igreja. Alguns
missiólogos usam a expressão Missio Dei para designar missão. O resgate do termo é de suma
importância para a igreja contemporânea, sendo que a perda da originalidade torna seus
efeitos nocivos para o verdadeiro papel do teólogo e suas raízes. Na verdade, a missão é de
Deus, vem de Deus. A igreja deixa de se preocupar em ser corpo e começa a se preocupar
com sua organicidade, voltada para uma política eclesiástica, dona da missão. Sendo assim,
ocorrem brigas por poder, espaço, influência e dinheiro. Não somos escolhidos para sermos
donos da verdade ou mesmo transmitir esta ideia. Precisamos revolver este conceito e admitir
que erramos.
Diante dessa perspectiva, precisamos descortinar os olhos e alçar à mão dos valores
que temos como espelho diante de uma sociedade regida por uma religião, como diz David
Wilkerson1, de “religião lua-de-mel”, mas que prospera numa caótica perversidade comunista.
Pessoas que se utilizam do status no emprego público para usufruírem de benefícios alheios,
aliciando para uma má distribuição da renda per-capita; um país rico em produtos agrícolas e
milhares de pessoas passando fome; um sistema político centralizado em facções da sociedade
“cambista” de favoritismo, numa obstrução do senso de cooperativismo que beneficiariam
milhares de família.
O nosso povo, a igreja brasileira, juntamente com o neopentecostalismo, está carente
de Deus e de sua doutrina (Os 4, 6). Os atributos de Deus, a sua grande disposição em se
manifestar ao seu povo, é diretamente proporcional a nossa intimidade em santidade com Ele.
Estamos acostumados a dimensionar o espaço de sua atuação em nossas vidas e isso tem
causado um enorme buraco na estrutura espiritual e organizacional da igreja brasileira, que
tem sofrido na alma as causas dessa doença que somente será sarada quando nos voltarmos
para o Deus criador, soberano e eterno em bondade e misericórdia.
A raça humana impõe uma generalização para o conceito do mal que, segundo
Calvino, interfere no apelo à corrupção total do ser, inclusive para o reino espiritual da
maldade como sendo um fruto da corrupção pecaminosa desse ser. Assim, o homem é um ser
totalmente depravado. Para o homem, o julgamento é um fator decisivo quando na condição
de ser justo ou não, ou seja, a própria dignidade do homem o torna indigno da capacidade de
torná-lo justo pela sua própria natureza humana que é boa, mas a corrupção que foi trazida por
Adão é que torna esta natureza pecaminosa.
1
Disponível em: <http://www.worldchallenge.org/pt/node/3071>. Acesso em: 17 set. 2010.
11
Com isso, a queda de Adão inseriu na humanidade sua característica decaída, em
que, sendo o “ancestral do velho eão”, conforme Russell Shedd (1995) sugere, desencadeou
uma estrutura de precariedade em toda a raça humana em virtude do erro e da maldade. Para
os rabinos, o homem trouxe dentro de si a “yetzer hará” na qual a essência de maldade, a
herança que todo homem recebeu de Adão corresponde à motivação maligna ou à inclinação
pecaminosa inerente à raça.
Para Paulo, o caminho de morte trazido por toda a raça é refeito pela ignomínia da
cruz (I Co 15, 43). O ressoar da boa nova enfim traz novamente a reconciliação pelo justo e
vivo caminho (Hb 10, 20). O chamamento é peculiar não na doutrina do Zacut Abot (doutrina
rabínica da aplicação coletiva do mérito dos pais derivado de que, em Abraão, toda uma nação
fora respaldada pelo mérito de seu “pai” na fé e, consequentemente, das gerações vindouras),
mas naquele que seu doou e se entregou de uma vez por todas (Hb 10, 14).
Resta à humanidade responder a este mérito conquistado não pela tradição ou cultura
de uma família situada no vínculo de sua geração posta no humano, na carne, mas agora
conquistada pelo poder de salvação de Cristo pela fé (Gl 3, 14).
12
2 OS PRIMÓRDIOS DA SOLIDARIEDADE
“A eficácia de ser único não bastou para que fosse intrépido; bastou uma forma e de
sua essência, deixou sua glória para vir aos homens”.
Elias Jonis
2.1 AS ORIGENS E A SOLIDARIEDADE
Gênesis, capítulo 1, versos de 26 a 27, relata:
Também disse Deus: Façamos o homem a nossa imagem, conforme a nossa
semelhança; tenha ele domínio sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre
os animais domésticos, sobre toda a terra e sobre todos os répteis que rastejam pela
terra. […] Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus os criou;
homem e mulher os criou.
O caráter solidário e testemunhal de uma vida transformada pelo evangelho reflete
em suas atitudes para com Deus e para com os outros e, principalmente, no que diz respeito
aos objetivos e planejamentos típicos de um individualismo ocidental, gerando uma morfose
social ambígua aos padrões cristãos. Quaisquer que sejam as situações, o elo peculiar criado
pela família por meio de seu ancestral insta o indivíduo a manter-se fiel a princípios, sejam
eles dogmáticos, psíquicos, morais peculiares a um grupo distinto ou não e acima de tudo a
ser contributivo numa linguagem conhecida para o meio social em que vivemos. É bem
verdade que em dias atuais a questão do ser solidário e ao mesmo tempo de ter alegria e
perseverança é uma questão mais de sobrevivência emocional contribuindo para uma vida
saudável e generosa do que estritamente espiritualizada. Esta ambiguidade causa uma reação
indissolúvel: Qual o verdadeiro caráter cristão que insurja numa vida solidária e contributiva
para a sociedade? A origem do pecado interfere na resposta aos padrões sociais do mundo e
nos desvios de caráter? Estas e outras perguntas remontam a conceitos quanto aos valores da
solidariedade no antigo testamento e do próprio judaísmo no que diz respeito à família e de
uma nação demonstradas nas cartas paulinas e de referência tanaítica2.
2
Tanaítica (Tanak): Expressão que é formada pelas palavras Torah (Lei), Nebhiim (Profetas) e Ketubim
(Escritos, composto por 11 livros: Livros Poéticos, três livros: Salmos, Provérbios, Jó; os rolos (Megilloth),
cinco livros: Cantares de Salomão, Rute, Lamentações, Eclesiastes, Ester; Livros Profético-Históricos, três
livros: Daniel, Esdras-Neemias, Crônicas (UNGER, 2007).
13
Antes do século VI e século VII, Javé nunca havia sido venerado como criador.
Gerhard Von Rad (1957, p. 144) afirma:
Não nos parece bastante dizer que, antes dos séculos VII ou VI, Javé nunca foi
venerado como criador. Custa-nos acreditar que Israel não tenha tido então
oportunidade de atribuir a Javé a criação do céu, da terra, dos astros, do mar, das
plantas e dos animais, pois vivia num mundo cananeu, com a atmosfera religiosa
permeada de mitos da criação.
Somente algum tempo depois, Israel conseguiu associar a teoria criacionista no
ambiente teológico da salvação e, certamente, levou algum tempo, pois habitavam num
ambiente mundano, particularmente denominado de cananeu. No livro de Isaías, a obra
criadora coincide com a obra remidora (Is 51), sendo o caráter histórico repassado para as
futuras gerações de forma a imbuir na mente o fator remissivo de Javé, pois a salvação pretere
ao povo de Israel. A cosmologia antropológica de Javé, criou o mundo bãrã3, a criação pela
palavra: “E disse Deus” (Gn 1, 24).
Deus é o Senhor e o mundo só existe por Sua vontade. Ele constrói Suas câmaras
altas e firma a abóboda da terra; Ele reúne as águas do mar e espalha sobre a
superfície da terra; Senhor é o Seu nome; Ele reúne as águas do mar e espalha sobre
a superfície da terra (Am 9, 6).
Há uma interrupção da palavra criadora: “a criação do homem a Sua imagem e
semelhança”. Von Rad (1957, p. 152) explica:
Aliás, ele não é criado pela palavra como o resto das criaturas. Deus resolveu criá-lo
após decisão particular e solene, que emanou do mais profundo do seu coração.
Antes de tudo, Deus tomou por modelo de sua última obra o que se encontra no
mundo celestial. Não há criatura que remonte a Deus de maneira imediata.
Israel associava esta semelhança, Eloim4 à sabedoria e à bondade. Von Rad (1957,
p.154) descreve: “Deus colocou o homem no mundo como sinal de Sua soberania para
guardar e executar Seus direitos de Senhor.” O sentido de estabelecimento da semelhança da
espécie não rechaça o que Deus cumpriu quando criou o homem. Instituiu também o caráter
de descanso não como efeito retrógrado do pensamento de abandono, mas num sentido amplo
de querer dizer o que será o futuro descanso do novo Israel.
3
bãrã (@¡X¡d): “criar, fazer”. Esta palavra é de profundo significado teológico, visto que só Deus é o sujeito desse
verbo. Somente Deus pode “criar” no sentido implicado em bãrã (VINE, 2003, p. 88).
4
„elõhîm: plural de majestade - é frequentemente traduzido como vocativo, quando o adorador está falando
diretamente a Deus, como no Salmo (79, 1). Há uma relação linguística geral óbvia entre „elôah (“Ó Deus”) e
„elõhîm (forma plural), mas é difícil determinar sua natureza precisa (VINE, 2003, p. 95).
14
Entre a Teologia e a obra científica da criação (Gn 1) não existe uma tensão,
conforme Von Rad (1957, p. 155) esclarece:
Não há dúvida de que a narrativa sacerdotal da criação quer transmitir não apenas
conhecimentos teológicos, mas também conhecimentos naturais de Gn 1. O que há
de especial e difícil de perceber é que a teologia e a ciência natural aí se encontram
tão intimamente entrosadas, que não há quase tensão entre elas. As duas séries de
afirmações não são apenas paralelas, mas entrelaçam-se a ponto de tornarem
impossível encontrarmos em Gn 1 passagens puramente “naturalistas”, sem
importância para nós, em oposição a passagens de pura teologia. A teologia serviuse de conhecimentos naturais da época como de um instrumento perfeitamente
adaptado ao desenvolvimento adequado de determinados assuntos como este  a fé
na criação.
Assim, as duas séries se entrelaçam: fé e criação, a independência das decisões
auferidas por Deus ao homem para que este decida fazer a Sua vontade ou não. Segundo Von
Rad (1957, p. 159), Israel tinha um noção de mundo diferente da que os gregos possuíam, já
que estes tinham uma visão filosófica, objetiva:
Para Israel, o “mundo” não era uma realidade estática, mas um acontecimento em
devir, algo que se apresentava ao homem sob um aspecto continuamente novo, que
sobrevinha nas mais diversas formas, o que se tornava difícil de ser aprendido
abstratamente. [...] O mundo é concebido como um edifício de três andares (Ex 20.4;
Sl 115.15-17). O céu é representado como algo sólido, um sino gigantesco sobre a
abóboda da terra e acima do qual está o oceano celestial (Gn 1.8; Sl 148.4-6). A terra
é um disco “sobre pilastras”, suspenso acima das águas inferiores do caos (Sl 104:5;
24.2). Dessas águas procedem as fontes e riachos da terra (Pv 8.28); mas, como já
transbordaram uma vez e quase destruíram a obra da criação (Gn 7.11), o
acontecimento pode repetir-se. Parece até que Israel temia mais uma sublevação
dessas potências desorganizadas contra Javé (Sl 46.4). A história de Israel se
desenrola nesse mundo ameaçado.
Numa análise antropológica do ser humano, Israel particularizava as atitudes do
homem sendo elas boas ou más, determinando suas consequências no meio ambiente em que
vive no arquétipo conceito subsecivo de cosmos conforme é descrito na figura na evidente
conquista de perplexidade de sociedade.
15
Concepção judaica de mundo.
(Disponível em: <www.teologiadacriação6.blogspot.com>. Acesso em: 17 set. 2010).
Von Rad (1957, p. 159) sugere que: “Um dos pontos ao qual se deve dar maior
ênfase é o de que a noção, hoje familiar, de „mundo‟ era totalmente estranha ao antigo Israel.
Desconheciam o conceito tão versátil como o do „cosmos‟ dos gregos”.
A noção antropológica é vista como a nepheph5 (alma no sentido de vida), Bâsâr6
(estrutura corpórea) e leb7 (coração) como sede dos sentimentos e também de toda a vida da
inteligência e da vontade (VON RAD, 1957, p. 160). Logo, a questão do pecado como
confissão, numa sucessão de fatos cujas consequências são irreversíveis para o homem e a
originalidade humana sob o ponto de vista teológico, antropológico e cultural, engloba um
conjunto que vai da condição original diante de Deus ao rompimento.
5
nephesh ([£T£B): termo hebraico que pode significar garganta, pescoço, anelo, alma, vida, pessoa ou pronome.
Nesse caso, especificamente representa “o que é vivo” (VINE, 2003, p. 34).
6
bâsâr (@¡X¡d): Carne. O termo hebraico pode significar carne, corpo, parentesco ou fraqueza (Nm 16, 22; Lv
15,2) (VINE, 2003). O termo é apresentado em grafias distintas de acordo com cada autor. O dicionário Vine
utiliza bãsãr; Russell P. Shedd, bāśar; Gerhard Von Rad utiliza a grafia bâsâr; e Wanderley Pereira da Rosa
grafa basar.
7
leb (A¤L): coração, mente, meio (VINE, 2003, p. 35 e 82).
16
A história da torre deve ser compreendida como termo de evolução seguida pelo
homem desde a queda e que resultou no aparecimento cada vez mais violento do
pecado. A queda  Caim  o canto de Lameque  a união de anjos a torre de babel8
são as etapas que o javista aponta como marcos do crescimento do pecado (VON
RAD, 1957, p. 169).
E ainda segundo Carson et al. (2009, p. 107-108):
A maior parte da atenção é dada a Lameque, que é descrito com detalhes cruentos.
Escravo da paixão casou-se com duas mulheres atraentes, Ada (“joia”) e Zilá
(“melodia”). A bigamia representa mais um retrocesso da monogamia que Deus
estabeleceu no Éden. Mais ainda, mais significativo é o apetite sanguinário que
Lameque tem de uma vingança 77 vezes maior, o que revela um homem que fez
pouco caso da justiça e estava preparado para esmagar todo aquele que estivesse em
seu caminho. A sociedade estava se esfacelando e estava pronta para o juízo. No
mundo antigo frequentemente se contavam histórias de relações sexuais entre os
deuses e os seres humanos; e acreditava-se que os filhos semidivinos de tais uniões
possuíssem uma energia anormal e também outros poderes. Rituais matrimoniais
sagrados que aconteciam nos templos. Supunha-se que tais rituais garantissem a
fertilidade da terra e de casamentos comuns. Envolviam pais que dedicavam suas
filhas solteiras para o serviço no templo. Na prática, essas mocinhas serviam de
prostitutas sagradas, dando prazer a sacerdotes e adoradores ricos. Os versos 1, 2, 4,
descrevem essas práticas. Filhos de Deus refere-se a seres espirituais (expressão
traduzida por “anjos”, NVI, em Jó 1.6; 2.1, embora não sejam benevolentes nem
aqui, nem em Jó. Às vezes, no AT, Israel (Dt 14.1) ou os reis (2 Sm 7.14) são
chamados de “filhos de Deus”, mas aqui nenhum dos dois sentidos é apropriado.
“Filhas dos homens” refere-se a mulheres humanas comuns. Segundo Gênesis, essa
prática de prostituição cultual é tanto desnecessária (os homens já estavam
aumentando em número, v.1) quanto uma abominação para Deus. Como
consequência a longevidade humana foi reduzida para 120 anos e o Senhor anunciou
um plano para varrer da terra a humanidade e outras criaturas vivas.
Uma análise mais detalhada da descendência de Noé e principalmente a de Cam,
revela os mais cruéis inimigos de Israel conforme descritos a seguir:
CAM - Os Camitas: Dentre os descendentes de Cam encontram-se alguns dos mais
próximos vizinhos e mais ferozes inimigos de Israel. Cuxe era a região ao sul do
Egito. Mizrain é identificado com o Egito e Pute com a Líbia. Canaã é identificada
ainda mais nos versos 15-19 do capítulo 10 de Gênesis. Os filhos de Cuxe parece
referir-se a uma região no sul da Arábia. As origens da cultura mesopotâmia são
identificadas com Cam, por intermédio de Cuxe, o que não é uma genealogia
lisonjeira, mas antecipa a crítica explícita das pretensões da Babilônia em 11, 1-9.
Não é possível identificar Ninrode com precisão, mas seus interesses em luta e caça
eram típicos dos grandes reis da mesopotâmia. As cidades que fundou são quase
todas bem conhecidas na região. Poucos desses povos ou tribos podem ser
identificados com precisão. Patrusim refere-se aos egípcios do sul. Os filisteus
foram os grandes rivais de Israel no controle de Canaã (I Sm 4-31). Caftorim é
8
Babel significa “porta do céu” e a Babilônia se considerava mais perto de deus do que qualquer outro lugar na
terra. Considerava-se a capital religiosa, intelectual e cultural do mundo antigo, a melhor expressão da
civilização. “Bobagem”, diz o verso nove, Babel não significa “porta do céu”, mas “confusão” ou “insensatez”.
E longe de demonstrar a sabedoria humana, o zigurate arruinado e abandonado da Babilônia mostra a impotência
humana diante do juízo de Deus. Em linguagem contemporânea, a construção da cidade e da torre pode ser vista
como uma tentativa dos seres humanos de, por si mesmos, alcançarem segurança com base no avanço
tecnológico. “O homem propõe, mas Deus dispõe” (CARSON, 2009, p. 114).
17
designação dos cretenses. Dá-se especial atenção aos moradores de Canaã, os quais
Israel esperava desalojar. Sidom era a mais antiga cidade costeira da Fenícia. Os
hititas, descendentes de Hete (cf. 23.2-40), não devem ser confundidos com os bem
conhecidos hititas da Turquia. Os jebuseus eram os habitantes de Jerusalém. Os
amorreus, os girgaseus e os heveus com frequência são designados como povos
cananeus. Os heveus [...] hamateus eram os habitantes de cidades bem conhecidas na
Síria. As fronteiras de Canaã iam desde Sidom, ao norte, até Gaza, ao sul e Sodoma
(ao lado do mar morto) a leste. Uma definição mais exata das fronteiras de Canaã
está em Números 34.2-12 (CARSON et al., 2009, p. 113-114).
SEM - Os Semitas: Visto que Abraão descendia de Sem, Israel sentia uma
afinidade especial com esses povos. Entretanto não é possível identificar quase
nenhum deles, embora muitos pareçam ser tribos arameias ou árabes. Está claro que
o filho mais novo de Noé era Cam (9.24), mas se Jafé ou Sem era o mais velho é
algo que depende de como esse versículo é traduzido (ver, e.g., a nota textual na
NVI). Elão ficava no sudoeste do Irã. É improvável que Assur seja referência a
Assíria; era, possivelmente, uma tribo do Sinai (Nm 24.22). Os arameus viviam na
Síria e os subgrupos aqui relacionados viviam, presumivelmente, naquela região.
Parece que Joctã e seus descendentes viveram no sul da Arábia (CARSON et al.,
2009, p. 113-114).
JAFÉ - Os Jafetitas: Não é possível identificar todos esses povos e só os que
podem identificar com confiança são analisados aqui. Mas os que podem ser
identificados parecem representar os que estão geograficamente mais distantes de
Israel, seja no extremo norte, seja no extremo oeste. São eles: Gomer, cimérios,
Magogue ficava em algum lugar no norte do Irã; Madai representa os medos no
norte do Irã; Javã são os gregos Jônios; e Tubal, Meseque e Tiras têm sido
identificados com a Turquia. Asquenaz representa os citas; e Togarma era um
distrito ao norte de Carquemis. Elisá provavelmente ficava em Creta. Társis era uma
cidade mediterrânea, possivelmente Cartago. Quitim é identificada com Chipre e
Dodanin talvez esteja associada ao Egeu (“Rodanin”, NVI, a leitura alternativa, é
identificada com Rodes) (CARSON et al., 2009, p. 113-114).
A reação de Deus em face à profanação da Sua ordem entra em confronto com o
aspecto misericordioso de Javé. No caso do dilúvio, por exemplo, entrega ao homem uma
nova realidade de comunhão com o criador e também de aliança, alicerçada no que um dia
daria aos homens a salvação em Jesus Cristo em que a humanidade estava espelhada no
hãmãs9 pós-diluviano conforme indica Von Rad (1957, p.163): “O sinal característico da
humanidade pós-diluviana é hãmãs, “violência, transgressão do direito”.
“O homem fora criado em forma de „Eloim‟. As palavras tselem10 (estátua) e
dãmãh11 (semelhança) inserem esta característica” (VON RAD, 1957, p. 152-153). O pecado
9
hãmãs (M G): violência, maldade, malignidade, agravo. hãmãs conota o rompimento das coisas divinamente
estabelecidas. Tem ampla extensão de acepções dentro desta esfera legal. hãmãs conota “maldade violenta” que
não foi corrigida, sendo que a culpa da qual se encontra numa região inteira (seus habitantes) que quebraram sua
relação com Deus e, assim, interfiram com suas bênçãos. É este último sentido que aparece na frase: “A terra,
porém, estava corrompida diante da face de Deus; e encheu-se a terra de violência” (Gn 6, 11, primeira
ocorrência da palavra) (VINE, 2003, p. 326).
10
tselem (ML£V): estátua, imagem, cópia (VINE, 2003).
11
dãmãh (D ^): ser como, assemelhar-se, ser ou agir como, comparar ou confrontar, inventar, pesar ou ponderar
(VINE, 2003).
18
na humanidade esboça um sentido de vergonha e medo, sinais da ruptura e surge a
consciência de desculpar-se, culminando na questão da linguagem, como um universo de
hierarquizar as coisas. O homem foi tirado da terra, o princípio maternal de sua existência: a
maldição da terra, a roupa, os usos e costumes como as ações agropastoris, os músicos,
ferreiros, a espada, tudo isso, sociologicamente, o fazem investir suas energias no que
chamaram de “torre de Babel”, num esforço comum em prol de um objetivo que
desencadearia toda uma estrutura organizacional de comunidade que tenta, de alguma forma,
desafiar o próprio Deus. Conforme Von Rad (1957, p. 166):
[...] o homem a empreender uma obra técnica colossal que a lenda, sem dúvida,
encara com incontestável desconfiança céptica, pois vê nesse empreendimento
titânico a maior ameaça feita às relações do homem com Deus e a obra imensa da
civilização como um ataque a esse próprio Deus.
Na realidade, o sentido próprio dessa história javista se tornará preciso a partir de
Abraão, quando Deus o faz pai das nações, o que, até então, a civilização parece
desenfreadamente cair numa sequência catastrófica de fatos:
A resposta a esta questão, que é mais universal de todas as questões teológicas, será
dada no complemento, que é a história da salvação, a vocação de Abraão e o plano
histórico de Javé então revelado e mediante o qual “todas as gerações da terra serão
abençoadas em Abraão (VON RAD, 1957, p. 170).
Presume-se em sua totalidade, para o javista, que os três filhos de Noé – Sem, Cão e
Jafé – refletem para existência de um povo formado em comunidade politicamente e
historicamente organizado, remonta de antigos esboços cartográficos. Von Rad (1957, p. 168)
explica que não possuíam um centro de ordenação dos diferentes povos e que Israel estaria
ausente. Mas considera-se que quando se estuda as origens procura-se enquadrar de forma
genérica e não teológica, pode-se assim dizer, partindo do caráter criador de Deus, que o
fenômeno do mundo das nações parte de um único tronco. O efeito da benção abraãmica gera
a resposta sobre a origem das nações no tocante ao complemento dessa história quando o
javista diz que, em Abraão, “serão benditas todas as famílias da terra” (Gn 12,1-3).
A partir dessa ligação entre a história das origens com a história da salvação de Israel
e da solidariedade divina é que desencadeará a lacuna deixada em aberto entre Javé e as
nações. A conclusão dessa história se torna indiscutível em Gênesis capítulo 8, versículo 21,
quando Deus se refere a não destruição da Terra por causa do gênero humano, pois seu íntimo
e desígnios são maus e nem tornar a ferir o ser vivente como fez no dilúvio. Von Rad (1957,
19
p. 171) assim afirma que “paralelamente, a história javista das origens revela depois do
dilúvio uma profunda censura”, ou seja, a origem das nações, segundo o autor, baseia-se em
acontecimentos marcantes que desenfrearam ações do homem, buscando profundamente algo
que parecia como “tampar um buraco” existencial no seu interior, deixando assim o período
de salvação do mundo antigo, marcado como uma época de desastre e sem esperança.
O projeto para as nações se desenrola em torno da família especificamente proposta
em Gênesis 12 e como um fenômeno desencadeante da disseminação das nações conforme
Shedd (1995, p. 19) salienta:
Uma vez que o Israelita continuava vivendo nos filhos de modo tal que realmente a
vida deles fosse sua, o nome transmitia a ideia desse relacionamento de vida
ininterrupta. Segue-se que a “eliminação do nome de sobre a face da terra” é mais do
que a destruição de um indivíduo isolado. É, antes, o extermínio de uma linhagem
familiar (cf. Js 7.9; Dt 29.20; 2 Rs 14.27; 1 Sm 24.21,22).
Köhler (apud SHEDD 1995, p. 31) afirma: “No conceito de aliança, o povo de Israel
seria „acima do tempo, atemporal‟, tendo o ponto marcante da multiforme graça e
misericórdia que, com amor, organiza e destrói para dar cunho ao seu plano remissivo e agir
de forma solidária para com sua criação”. O esboço do caráter vem com a fé abraãmica que
dissimula a verdadeira história das civilizações remida por Deus e encerra um cenário de
conflitos em que a família de Noé, no preâmbulo dos acontecimentos, fez toda a diferença na
contagem da civilização antiga.
O mundo é chamado à existência pela vontade livre de Deus, porque é propriedade
Dele e porque é o seu Senhor. Tecer uma ligação entre a criação e a salvação ainda é algo
muito
complexo. Assim,
pesquisas
no
campo
sociocultural
no
âmbito
judaico
veterotestamentário com uma contextualização do caráter emblemático do judaísmo na sua
interpretação de sociedade como um todo, para descortinar a raiz do significado de corpo,
traçando um paralelo desde a história das origens, ao plano soteriológico12 divino e também a
questão da hamartiologia13, para problemas expostos ao domínio missiológico da igreja atual.
12
Soteriologia: sõzo (ζώξω) sõteria, “salvação”. Parte da Teologia que trata da salvação do homem, espiritual e
eterna concedida imediatamente por Deus aos que creem no Senhor Jesus Cristo (VINE, 2003, p. 968).
13
Hamartia (άμαπηια): “perda da marca”. É usado acerca de pecado e logos (λόγρ) – discurso racional, útil,
estudo. Assim, subentende-se da expressão hamartiologia como o pensamento declarativo a respeito do pecado e
suas consequências (VINE, 2003).
20
2.2 A SOLIDARIEDADE NOS SACRAMENTOS, A DOUTRINA DO “ZACUT ABOT” E A
“MISHPĀH”
Viu-se dentro de um plano de ação na esfera divina, que a benção e a maldição
perfilam uma mesma trajetória no que tange à solidariedade dentro de um corpo, de um clã,
alcançando toda uma nação. Por intermédio da criação do homem e a sua queda em Adão, o
seu engodo pelo pecado culminou na estigmatização da sociedade tornando-a eclética no
campo sociológico, levando a uma sistematização do perfil da figura representativa do Israel
antigo na visão efêmera do ser e no seu fracasso missiológico, contribuindo para que o
primogênito da criação assumisse Nele, a forma e a essência de representatividade da raça
humana, incorporando toda uma magnitude do plano salvífico empenhado por Deus. Assim,
Deus em seu filho, Jesus Cristo, homem, uniu por meio da aliança do Espírito, toda uma
sociedade decaída pelo pecado, tornando-a solidária dentro de um mesmo corpo espiritual
trazendo o verdadeiro sentido de unidade na mais perfeita ordem dada na criação ao homem.
Shedd (1995, p. 17) afirma que:
É basicamente nesta área do pensamento que repousa o conceito hebraico de
unidade coletiva. É um notável reconhecimento de que o indivíduo é mais que um
átomo arrancado de seu grupo; pelo contrário, ele é um indivíduo como tal porque
faz parte do grupo de onde surge. Seria possível mostrar, com ligeiras modificações,
que o grupo é um indivíduo coletivo que vive por intermédio dos membros que o
constituem.
A personalidade de um povo, tecida para expressar uma reação da ação de um
indivíduo para com a totalidade, inclui-se desde sua família suscetível, ao único indivíduo,
excluindo-se o individualismo. Dodd (apud SHEDD, 1995, p. 16) afirma:
Na realidade, a personalidade humana, conforme a conhecemos em nós mesmos,
não é “simples”, mas indefinidamente complexa. Em particular, forma-se a partir
das relações pessoais. Desde o início de nossa existência individual lançamos
tentáculos, por assim dizer, para outras pessoas, e elas lançam tentáculos para nós.
Tal entendimento implica numa visão que enfrenta toda uma cadeia de estímulos,
filosofia de vida e de comportamento, acarretando para o indivíduo, uma sensibilidade maior
quanto aos desígnios de seu povo, sua família, sua raça. Tão contumaz é o enaltecimento das
características do ego  mas simplesmente descrevê-lo não é uma tarefa fácil quando se trata
de ser humano  que a consciência de coletividade é o pendor para que se tenha uma noção de
21
que é viver em sociedade e esta pressupõe que, para se viver num corporativismo, é necessária
a abertura do ser como um todo e não como um indivíduo apenas, ou seja, seus membros que
a constituem são capazes de superar desafios num forte sentimento de solidariedade. A
questão nominativa, ou seja, a expressão que carrega a paternidade característica do povo
hebreu em se destacar à ação do mesmo para com a sua filiação, numa dependência
ontológica de sua origem com seu ancestral, desencadeia uma raiz genealógica capaz de
influenciar as tendências e comportamentos de um povo, levando para gerações futuras sua
característica e personalidade. Moore (apud SHEDD, 1995, p. 75) ilustra que:
Todos os homens, apesar de terem aparências diferentes, foram marcados por Deus
com um único selo, o selo de Adão. Portanto, todo homem está na obrigação de
dizer: “Por minha causa o mundo foi criado”. Ou seja, deve sentir-se
individualmente responsável, como se toda a raça humana dependesse de sua
conduta.
Assim, a identificação da nação com um indivíduo de forma que expresse sua
personalidade, enaltece sua alma como um todo, carregando sua imagem em forma e
personalidade numa biografia única e representativa.
Analisando o comportamento e as características de uma raça, têm-se uma visão
geral ajoujada ao seu líder tribal, que impunha tão forte característica que prevalecia por
gerações vindouras o próprio nome (I Sm 24, 21). Esta linhagem familiar leva-nos ao termo
b
14
, indicando que sua prosperidade ou desgraça influenciaria toda uma geração. A
imagem da semelhança com o ocidente gera um efeito derivativo da intervenção espoliativa
do meio, inserindo características não inerentes a mesma, favorecendo ao caos, ao apelo
sussurrante do tipo não psíquico extrafamiliar degradante. Conforme Smith (apud SHEDD,
1995, p. 23): “[...] sustentou de forma tão convincente, a causa principal da forte consciência
de unidade psíquica na comunidade mais ampla do clã ou da tribo era o perigo comum de
desaparecimento por causa de guerras e incursões inimigas”.
Como se explica o caso da rebelião de Coré (Nm 16, 32), pelo fato de uma
consciência errada, implicaria no aspecto punitivo da unidade de todo o grupo? O todo sempre
envolveu responsabilidade mútua para um clã posto que a unidade solidária do ancestral
estivesse ameaçada e, portanto, o seu nome e de sua geração compreendiam tal ameaça.
Shedd (1995, p. 25) acrescenta:
14
al ( ): “mestre, baal”; “Senhor”. Implica não apenas direito de propriedade, mas também inteira
responsabilidade pela família. Ele era o centro do qual emanavam a força e a vontade (baalins, isto é, divindades
cananeias mencionadas no Antigo Testamento) é o plural de ba´al, que significava “possuidor da terra”
(PATTERSON, cf. RANKIN, apud SHEDD, 1995, p. 20).
22
É possível expressá-lo da seguinte maneira: o conceito que o indivíduo hebreu tinha
de si mesmo como uma unidade envolvia uma consciência mais forte de
solidariedade do que o conceito em que a pessoa via sua família como uma extensão
pessoal de sua nephesh (termo hebraico que pode significar garganta, pescoço,
anelo, alma, vida, pessoa ou pronome).
Nesse caso especificamente representa “o que é vivo” (VINE, 2003, p. 34). Dentro
desse mesmo raciocínio, a personalidade de um ancestral difundia-se de forma ainda mais
tênue no clã ou na tribo de seus descendentes.
O caráter da benção tem em comum no princípio da retidão de seu ancestral como
relatos da perpetualidade de Abraão, Isaque e Jacó para com Israel, assim também com a
idolatria que invadiu os alamares do povo hebreu incorporando um sinônimo de injúria para
com seu Deus (Num 14, 11). A geração que solidificou a generosidade do senhorio divino e
refletiu o caráter de seu ancestral supremo foi apenas Josué e Calebe. Logo, a razão da
unidade representativa para Israel residia no fato da aliança que se tinha com o seu Deus na
sua solidariedade e no relacionamento genuíno com Ele.
O conceito de mishpāhâ15 engloba uma família, sua etimologia, animais e coisas, um
clã, aparentadas com as mesmas características psíquicas que, generalizando, sintetiza toda
uma nação. Este conceito forte envolvia uma série de atributos como de irmão, vizinho,
parente, que os torna alegóricos na explicação do mishpāhâ divino e de seu povo. Conforme
Shedd (1995, p. 22-23) afirma: “[...] Com base nisso, não exagero supor que, se a humanidade
toda descende de Adão e Eva, todos os homens sejam considerados, em sentido mais amplo,
irmãos e pertencentes à mesma mishpāhâ”.
Na tentativa de entender o estigma do povo hebreu, animosamente se opunham ao
seu Deus no cerne soteriológico de se querer, Ele, o próprio Deus, difundir um nome por toda
uma geração e comunidades circunvizinhas. Esta característica imprescindível, favorecida
pelo forte chamado, quase levou a verdadeira extinção do povo pela não obediência aos
princípios e mandamentos do grande YHWH, em contraste com o povo hebreu que tinha a
alcunha de ser “o povo de DEUS”, sendo que na verdade, YHWH queria ser o “Deus das
nações” (Dt 4, 6). Vine (2002, p. 288) esclarece:
15
mishpāhâ (D¡G¡Tw¦N): família, clã. Uma forma desta palavra hebraica ocorre no ugarítico e no púnico, também
com o significado de “família” ou clã. A palavra encontrada nos rolos do mar Morto, como também no hebraico
misnaico e moderno. O termo mishpāhâ aparece trezentas vezes no Antigo Testamento hebraico. Todos os
integrantes de um grupo que estavam relacionados por sangue e que ainda sentiam um senso de consanguinidade
pertenciam ao “clã” ou à família de modo geral.
23
O nome divino YHWH só aparece na Bíblia. Seu significado preciso é muito
discutido. Deus o escolheu como seu nome pessoal pelo qual Ele se relacionava
especificamente com Seus escolhidos ou o povo do concerto. Sua primeira
ocorrência no registro bíblico é Gn 2.4: “Estas são as origens dos céus e da terra,
quando foram criados; no dia em que o SENHOR Deus fez a terra e os céus”.
Aparentemente, Adão o conheceu por este nome do concerto ou o nome pessoal
desde o princípio, visto que Sete chamou seu filho Enos (ou seja, homem na
qualidade de criatura fraca e dependente) e começou (junto com outras pessoas
piedosas) a invocar (adorar formalmente) o nome de YHWH, “Senhor” (Gn 4.26). O
concerto encontrou expressão e aplicação mais amplas quando Deus se revelou a
Abraão (Gn 12.8), prometendo redenção na forma de existência nacional. Esta
promessa se tornou realidade por Moisés, a quem Deus explicou que Ele não só era
o “Deus que existe”, mas o “Deus que faz a Sua vontade”: “Assim dirás aos filhos
de Israel: O SENHOR [YHWH] o Deus de vossos pais, o Deus de Abraão, o Deus
de Isaque e o Deus de Jacó, me enviou a vós; este é meu nome eternamente e este é
meu memorial de geração em geração. Vai e ajunta os anciãos de Israel e dize-lhes:
O SENHOR [YHWH], o Deus de vossos pais, o Deus de Abraão, de Isaque e de
Jacó, me apareceu dizendo: Certamente vos tenho visitado e visto o que vos é feito
no Egito. Portanto, eu disse: Far-vos-ei subir da aflição do Egito à terra do cananeu”
(Ex 3.15-17). Deus explicou o significado de “EU SOU O QUE SOU” (Ex 3.14).
Ele falou aos pais como YHWH, mas a libertação prometida e, portanto, a
significância mais ampla ou o significado experimentado do Seu nome lhes era
desconhecido (Ex 6.2-8)
Embora esta tendência de unidade servisse de base para uma consolidação e
confirmação da solidariedade, não só do povo hebreu, mas para uma geração de nações que se
aglutinariam diante de um único e verdadeiro “ancestral”, incutindo na mente do povo hebreu
uma responsabilidade solidária ao nome, esta amplitude repercutiu numa forte tendência
psíquica, como Shedd (1995, p. 103) cita: “Assim como todos participam da mesma carne e
sangue, de igual modo, por assim dizer, a mesma essência de alma propaga-se pela raça
humana”. Afetos ao orgulho tornaram-se indesculpáveis de uma consciência mútua pela
aplicação, não só da lei divina “[...] para serdes meus.” (Lv 20, 26). Mas partindo do
pressuposto de que, para que haja um povo é pertinente que exista em comum os mesmos
hábitos, costumes, tradições e principalmente uma história que interfira na peculiaridade, o
chamamento de Israel é atípico, puramente eucarístico e comutativo, ampliando-o por meio
das religiões pagãs ao conceito de relacionamento do “pacto da aliança”, uma ideia da
misericórdia de Deus por toda a raça humana estendida a todos no mais amplo conceito
legítimo de mishpāhâ: “Assim Josué fez paz com eles; também fez um pacto com eles,
prometendo poupar-lhes a vida; e os príncipes da congregação lhes prestaram juramento”
(Js 9, 15).
24
Em resposta ao contraste com o realismo da nação judaica, de englobar uma gama de
espécies ou denominações genéricas, é nos dada à primazia de se referir sobre a carne16.
Wanderley Rosa (2010, p. 160) acrescenta:
Portanto, basar descreve a pessoa humana toda em suas deficiências, suas limitações
características, sua enfermidade, esta também compartilhada pelos animais, a
solidária união de todo gênero humano em sua fraqueza ética. A carne é transitória,
fraca e mortal. Diante de tal fragilidade, sobressai um Deus que retém sua ira e que
providencia a força vital necessária para o ser humano viver.
Fiorenza e Mets (apud ROSA, 2010, p. 161) fornecem ainda a seguinte explicação de
basar, ou seja, “carne”:
Neste sentido é basar um designativo de parentesco que exprime uma comunidade e
um liame íntimo de importância vital. “Nossa carne”, significa então, “nosso irmão”
(Gn 37.27) ou também “nosso próximo” (Is 58.7) e a expressão “toda carne” inclui
toda a humanidade em sua criaturidade perante Deus. Aparece aqui, bem
nitidamente, que a palavra “carne” não só acentua a integridade individual do
homem – em oposição à antropologia dualista – mas que esta palavra exprimia
originalmente também a realidade intersocial e, até certo ponto, a existência política
– divergindo de toda antropologia individualista, que em certas circunstâncias talvez
acentuasse a de subproduto, com algo derivado.
E ainda:
O termo hebraico basar pode significar carne, corpo, parentesco ou fraqueza. A
palavra ocorre 273 vezes no Antigo Testamento, sendo que em 104 vezes a
referência é a animais. Isto demonstra que basar fala de algo típico tanto de seres
humanos quanto de animais. Em Isaías 22.13 temos um exemplo de utilização de
basar para designar a carne animal. Já o relato de Gênesis 2.21 que descreve a
criação da mulher a partir de uma parte do ser humano, em oposição aos ossos. Vale
lembrar que o hebreu tem apenas a palavra basar para designar aquilo que o grego
expressa utilizando os conceitos de sarx (carne) e soma (corpo). Assim, basar é
utilizado para descrever uma parte visível do corpo. Não obstante pode ser utilizado
também para descrever o corpo todo. [...] outra possibilidade é a utilização do basar
para designar parentesco. Judá afirma para José: “Este é nosso irmão, nosso basar”.
Assim também em Gênesis 29.14; Gênesis 2.23; Juízes 9.2; 2 Samuel 5.1; 19.13s.
Este parentesco aplica-se tanto a membro de mesma família ou clã, quanto àquilo
que une o gênero humano (Isaías 40.5,6; 49:26b; Salmos 136.25). Finalmente, temos
basar designando pessoa humana como limitada fraca e deficiente: “Espero em
Deus; não temo. Que me pode fazer basar? (Salmos 56:4). Por isso, o termo nunca é
utilizado para descrever Deus, mas é usado muitas vezes, como algo tipicamente
humano em oposição a Deus. Assim, Jó pergunta a Deus: “Será que tens olhos de
carne (basar)? Olhas como um ser humano olha? (Jó 10:4). Ou ainda, em referência
a Senaqueribe, o poderoso rei da Assíria: “Com ele está um braço de basar. Mas
conosco está Javé, nosso Deus, para nos ajudar” (2 Crônicas 32:8) (ROSA, 2010, p.
159-160).
16
bãsãr (X¡z¡d): carne. O termo hebraico bãsãr pode significar carne, corpo, parentesco ou fraqueza (VINE,
2003).
25
Bāśar, assim sendo, vai englobar uma integralidade do ser humano e este com toda a
humanidade, diferente da conotação grega que particulariza uma parte específica do
indivíduo. Bāśar é uma interação condição de debilidade e fraqueza, não suficiente e
dependente. Logo, para o povo hebreu a carne era o elo de vida, o que significava a razão da
existência de uma totalidade, como uma árvore genealógica que se prende aos seus galhos.
Shedd (1995, p. 104 e 121) afirma:
Os homens como indivíduos são os galhos de uma árvore humana que vai crescendo
em sua dimensão histórica a partir de uma única semente. Foi Deus quem criou e
plantou aquela semente que faz dos homens uma unidade orgânica. [...] Seria útil
comparar a raça a uma árvore, que, embora possua folhas distintas, dá a cada folha
uma vida e um caráter comum, visto que a folhagem está organicamente interrelacionada por intermédio da raiz e do tronco.
O fato de tirar a vida é o mesmo que romper com a unidade com o grupo psíquico, o
que permeia toda uma vida descrita na Nefesh17 e esta totalidade recebe vida quando Deus, ao
inserir o sopro em suas narinas, reflete no homem o seu caráter e as suas características.
Shedd (1995, p. 98) acrescenta que: “A humanidade é universalmente confrontada com a
existência de manter um padrão moral que é dela própria, por ter sido criação de Deus”.
Numa extensão da representatividade e da essência de um povo, pode-se inferir a ideia de
semelhança por meio de um indivíduo consoante a uma nação, possuindo nele as
características do ser criador. Logo, o ser criado, faz parte desta animação, inserindo nos
demais a sua personalidade, variando de ser para pseudônimo, ou seja, carrega em sua
personalidade as características do ser maior que é YHWH.
A maior preocupação para o judaísmo era, então, a perda da exclusividade divina, ou
seja, que a nação se dissolvesse e se embrenhasse no individualismo devido à influência
helênica pós-exílio, pelo desejo de se identificar na esperança escatológica e no advento do
messias, descritas na torá, miswãh18, que era o referencial de moral e civismo na unidade para
o judaísmo, reflete estas analogias, embora configure algumas divergências rabínicas no
tocante ao remanescente e se a salvação alcançaria a todos os ímpios de Israel ou não. De
qualquer forma, a questão psíquica incorpora fatores puramente físicos e materiais no tocante
a dogmas, ritos e procedimentos que anteviam de uma visão ressurgente do divino na vida de
um povo, sendo os aspectos espirituais empreendidos além do conhecimento, numa visão
mais profunda de solidariedade para o judaísmo.
17
nephesh ([£T£B): termo hebraico que pode significar garganta, pescoço, anelo, alma, vida, pessoa ou pronome.
Neste caso, especificamente representa “o que é vivo” (VINE, 2003, p. 34).
18
miswãh: sinônimo de tôrãh (VINE, 2003).
26
A verdadeira garantia da aliança judaica postulava em três pontos fundamentais
baseados na circuncisão19 no batismo e no sacrifício20. Werner H. Shimidt (2004, p. 185-186),
explora os aspectos cultuais de Israel de forma que inclui a circuncisão dentre uma das
categorias primordiais da história do povo hebreu. Para o autor. Julios Welhausen introduziu,
para designar o Escrito Sacerdotal, o nome “livro das quatro alianças”. Este escrito divide o
decurso da história em quatro períodos. Cada período é marcado por um ato cultual: a criação
(Gn 1, 1-2.4: descanso de Deus no sétimo dia), Noé (Gn 9: proibição do consumo de sangue e
do homicídio), Abraão (Gn 17: circuncisão) e Sinai (Ex 16: a observância do sábado; Êx
25ss.: normas cultuais). A aliança com Abraão é, em primeiro lugar, palavra afirmativa de
Deus, promessa de multiplicação e dádiva da terra, com o objetivo: “Eu serei o seu Deus” (Gn
17, 2-8), porém, nenhuma aliança meramente é gratuita, pois a promessa é introduzida com:
Eu sou El Shadday; anda na minha presença; e sê perfeito (íntegro) (17, 1; cf. 6, 9; Dt 18, 13;
supra Excurso 3, 3 § 6b).
Shedd (1995, p. 55) afirma:
O judaísmo postulava três exigências básicas para a entrada de gentios na
comunidade: 1) mîlâ (“circuncisão”), 2) tebîlâ (“batismo”) e 3) hal‟āat dāmîm
(“sacrifício). [...] É inevitável inferir que, na prática, a circuncisão era considerada
um bilhete de entrada no mundo vindouro, e seus benefícios irrevogáveis. [...] Além
disso, a circuncisão servia de termo conveniente para distinguir judeus de gentios
(cf. Gl 2.7-9).
Krauss (apud SHEDD, 1995, p. 55) explica que a segunda exigência para os gentios
e
era o t bîlâ (“banho de prosélito”), que era uma consequência do reconhecimento da
necessidade de o gentio se purificar da contaminação (especialmente da idolatria) e de uma
convicção de que o tebîlâ tinha o poder de restituir ao iniciado a pureza de um recém-nascido.
O autor ressalta um significado adicional no “banho do prosélito”. O tebîlâ era, em certo
sentido, o meio pelo qual o noviço podia experimentar os acontecimentos passados da história
de Israel, especialmente o êxodo, a travessia do mar vermelho e a preparação para a revelação
no Sinai. Da mesma forma que, de modo simbólico, Israel havia posto de lado todo o estilo de
vida gentílico, deixando-o na margem ocidental ou afundando-o no mar junto com os
egípcios, o prosélito também era orientado a reexperimentar de forma sacramental o mesmo
acontecimento.
19
Circuncisão: Rito de iniciação, que consiste em cortar o prepúcio (Dicionário Aurélio).
Sacrifício: zebah (GA¢£F). Como mostram as leis sobre sacrifícios em Levítico, capítulo 1, verso 7, ou o
calendário de sacrifícios de Números 28s. (também Js 22, 23ss.; 2 Rs 16, 12ss. e outras), Israel conhecia diversos
tipos de sacrifício. Cada tipo de sacrifício teve, em si e em sua relação com os outros, uma história de profundas
transformações – impossível de ser descrita aqui.
20
27
Um acontecimento passado da história (ou da mitologia), incorporado na ação ritual,
tornou-se um símbolo eficaz para produzir uma mudança no caráter do fiel. A variedade do
batismo praticado por João incluía outro significado, pois seu batismo não se limitava a
convertidos ao judaísmo, mas incluía, sem restrições, todos os que desejassem indicar,
mediante arrependimento, que aguardavam o reino vindouro. Era um símbolo de purificação
moral, “um batismo de arrependimento para remissão de pecados” (Mc 1, 4), e não uma
purificação cerimonial ou levítica (KRAUSS apud SHEDD, 1995).
Shimidt (2004, p. 210-212) acrescenta:
O holocausto („ola) era imolado, retalhado e queimado por inteiro sobre o altar, com
exceção da pele, que cabia aos sacerdotes (Gn 8.20; Jz 6.26; 13.15ss). [...] sacrifício
inteiro (Kalil: 1 Sm 7.9 e outras). Ele é oferecido, sobretudo em ocasiões públicas
festivas (1 Rs 9.25; 18 e outras). O sacrifício de abate (sebah = “Schlachopfer”; nas
bíblias em português simplesmente “sacrifício”), pelo contrário, é um sacrifício
comunitário ou de comunhão, e consistia originalmente numa refeição realizada no
âmbito da família ou num círculo maior de convidados (Gn 31.54; 46.1; 1 Sm 1.21;
2.13ss.; 9.12s., 22; 16.2ss. e outras). [...] Os sacrifícios finais, de salvação ou de paz
– a tradução de shelamim é controvertida –, caracterizados pela aspersão de sangue,
eram oferecidos originalmente após os holocaustos (Êx 20.24; Dt 27.6.; Js 8.31; Jz
20.26; 21.4; 2 Sm 6.17s). [...] O termo para oferta alimentícia (min-ha) designa
primeiramente a oferenda, de modo geral – sangrenta ou não – (Gn 4.3ss.; Jz 6.18;)
[...] Em épocas posteriores, sacrifícios especiais pelo pecado (Lv 4s.; 6.17ss.;
8.14ss.; 12.6ss.; 16) e de reparação (ou pela culpa; Lv 5.14ss). [...] Além disso,
conhecem-se ainda a libação (Gn 35.14; 1Sm 7.6), a oferta de incenso (Lv 10) e
além de ofertas motivadas por um pretexto concreto – a oferta de ação de graças (Lv
7.16;22.18ss e outras).
Embora a mera postulação destas figuras não nos é suficientemente inteligível pela
expressão de referência que representam no cenário judaico. Na manifestação, nas festas
judaicas, celebrava-se a páscoa, antecedida pela festa dos pães ázimos21, conforme elucida
Shimidt (2004, p. 202):
A festa dos pães ázimos (Êx 23.15; 34.18; 12.15ss. P; 13.3ss. Dt e outras) Em sua
origem, provavelmente é uma festa de peregrinação de camponeses cananeus,
festejada no início da colheita dos cereais: após o primeiro corte de cevada (cf. Dt
16.9), comia-se o primeiro pão do ano sem fermento. O costume desenvolveu-se
para uma festa de sete dias provavelmente em Israel. [...] Visto que a festa dos pães
ázimos foi relacionada bem cedo com a saída do Egito, fixada em um determinado
mês (abibe) e festejada durante uma semana, defende-se, ao lado da interpretação
habitual esboçada acima, também a opinião de que o próprio Israel desenvolveu, na
21
Na festa da páscoa: a principal festa judaica no período neotestamentário (Mc 14. 1,12,14 e outros), juntaramse dois ritos totalmente distintos em sua origem. Como as formas de sacrifício mencionadas em Gn 4.3s., os dois
ritos remontam a dois modos de vida, o nômade e o sedentário. A páscoa (hebraico: pésah ) – provavelmente é
de origem nômade. Como rito pastoril, ela não estava ligada a um lugar santo, também não era celebrada por
sacerdotes (num altar), mas pelos anciãos do clã. O testemunho mais antigo, transmitido por palavra de Moisés a
“todos os anciãos de Israel” já pressupõe a páscoa (Ex 12, 21-22a, 23b).
28
terra, a festa dos pães ázimos a partir da páscoa (J.Halbe). Porém, neste caso fica
difícil explicar por que a prescrição da páscoa e a dos pães ázimos correm em tantos
trechos separadamente lado a lado e porque os calendários de culto mais antigos
mencionam a festa dos pães ázimos em lugar da páscoa que remontava a saída do
povo do Egito como um memorial para gerações vindouras. Tal celebração
organizava-se no mês de Nisã (também chamado de Abibe, provavelmente marçoabril) e marca a nova vida de Israel como povo, como nação, sendo o ponto chave da
festa, a escolha de um cordeiro que é sacrificado quatro dias depois e servido como
parte de uma refeição numa celebração ainda de maior vulto. Sendo assim, a páscoa
denota esperança, alegria e um novo começo, demonstradas numa linguagem que
refuta o castigo da escravidão para a liberdade sendo o sacrifício para o judeu, a
manifestação do Deus único e representativo na sua totalidade.
Até o ponto de inserção dos benefícios de que Israel gozava como nação escolhida,
favorecida pelos patriarcas, denota a partilha pelas suscetíveis gerações no âmbito do vínculo
de Israel. A causa desse amor irremediável e incompreensível baseia-se na fé e determinismo
dos pais, ou seja, dos patriarcas e especificamente de Abraão. Este zakut22 (doutrina rabínica
da aplicação coletiva do mérito dos pais) deriva de que, em Abraão, toda uma nação fora
respaldada pelo mérito de seu “pai” na fé e, consequentemente, das gerações vindouras. O
protótipo de benção e prosperidade para Israel sintetizava nos patriarcas e sua relevância era
ilimitada. “A ênfase do Antigo Testamento na extensão do amor de Deus a Israel por causa de
seu amor pelos antepassados foi plenamente desenvolvida na doutrina rabínica do Zakut
Abot” (SHEDD, 1995, p. 64).
22
zkwh (zacut): “virtude”, “retidão”, “bom merecimento”. [...] significa absolvição no sentido legal. No sentido
teológico, pode referir-se a algo que tenha valor protetor ou expiatório. Veio a significar “por amor de”
(MOORE e SCHECHTER, apud SHEDD, 1995, p. 64).
29
3 O PECADO NO CONCEITO DE COLETIVIDADE
“[...] posto que ao homem, no sentido antropológico, a falha é um sinônimo natural.”
Doutrina Agostiniana
3.1 O PAPEL DE ADÃO
Em contrapartida, num conceito mais amplo de suscetibilidade a angustiante
explicação para o conceito da origem do pecado predispõe antes de tudo ao elo entre a raça
humana e a sua origem, embora a questão antropológica de revolta contra o seu criador (Rm
7, 7) perfaz um conceito de hamartia23 com „ãwõn24.
Logo, o “Eu” sobrepuja a vontade divina, sendo o centro das atenções. Agora não se
pode falar em descuido ou deslize, e sim, no amor exagerado por si próprio de forma
subjetiva. Segundo Berkouwer (1970, p. 57):
[...] a tendência monística que relaciona Deus e o mal de tal maneira que não se pode
deixar de atribuir a Deus a origem do pecado. O monismo tem a tendência de
atribuir tudo a Deus, inclusive o pecado. Ao rejeitar-se, porém, este monismo, de
qualquer forma depara-se imediatamente com outra solução, que pode ser chamada
de dualismo. [...] Neste conflito entre a igreja e o dualismo achamo-nos diante de um
problema muito relevante. A igreja, confessando a santidade e a glória de Deus,
encontrou no dualismo a doutrina que queria assinalar que Deus de modo nenhum
era responsável pela realidade do mal, porque Ele não tinha nada a ver com o mal e
este passou a existir de princípio idôneo.
Puech (apud Berkouwer, 1970) afirma que a origem do pecado está no ataque do
reino original das trevas contra o Pai da grandeza e do reino da luz. Numa análise
fenomenológica neutra e, por isso, fora da criação e salvação, fora de Jesus Cristo, do
problema do mal, pode-se incorrer no risco de cair em uma espécie de dualismo, para enfim
ser dominado pela sugestão do poder excessivo do mal, sob o vínculo do mal devorador, do
reino e poder das trevas. Contudo, é neste ponto que o testemunho bíblico opõe-se a esta
23
Hamartia (άμαπηια): “perda da marca”. É usado acerca de pecado e logos (λόγρ) – discurso racional, útil,
estudo. Assim, subentende-se da expressão hamartiologia, como o pensamento declarativo a respeito do pecado e
suas consequências (VINE, 2003, p.845, 858 – com alterações).
24
„ãwõn (O\): aparece com frequência ao longo do Antigo Testamento em paralelismo com outras palavras
relacionadas com pecado, como hattã‟t (“pecado”) e pesa (transgressão) (VINE, 2003).
30
ideia, pois se a Bíblia fala da queda de satanás (Lc 10, 18; cf. Ap 12), este testemunho nos
afasta da esfera do dualismo.
Este elo era robustecido, segundo o judaísmo, pela unidade da humanidade em Adão,
embora existam controvérsias de muitas linhas de pensamento e teorias que dizem respeito à
origem do pecado. Desde casamento misto entre os anjos e as filhas dos homens, passando
pela teoria da sedução de Eva referindo-se a uma linha de pensamento que diz:
[...] as quais a poluição pecaminosa da raça tem origem na sedução de Eva pela
serpente. Essa hipótese foi empregada para explicar o início do princípio da morte.
Por isso Adão repreende Eva: “Que fizeste? Grande praga trouxeste sobre nós,
transgressão e pecado sobre todas as nossas gerações” (SHEDD, 1995, p. 82).
A mais plausível, que é aceita inclusive pelo judaísmo primitivo, menciona a Teoria
do papel Decisivo de Adão, para explicar a origem do mal atribuída a Adão a culpa pela
miséria humana em geral e pela morte em particular, que o pecado de Adão envolveu toda a
sua posteridade, tanto os justos quanto os maus, é o ensino constante dos rabinos. Os antigos
conceitos de solidariedade não questionavam essa teoria de que os pecados dos pais recaem
nos filhos. Era a doutrina das experiências e também das escrituras (WEBER; KLAUSNER,
apud SHEDD, 1995).
O fato intrínseco do pecado de Adão causou a desgraça da humanidade, a morte no
mundo. Em Adão é sintetizada toda uma estrutura decisiva e temática para a explicação do
mal e do pecado. Figura não menos exógena e pouco elucidativa persiste no fato de que o
pecado não teria lugar na esfera dogmática do ser, (conforme afirmam os pelagianos 25 e
Celestianos26 na tentativa de descrevê-lo na incapacidade humana de superá-lo). Segundo
preceitua Juan Antonio Estrada (2004, p. 137-138):
25
Pelágio foi combatido na Palestina por Jerônimo, mas dois sínodos, em 415, aprovaram sua doutrina.
Seguidores de Pelágio – frade britânico, mestre e exegeta em Roma, falecido em 418. Segundo Pelágio e o
pecado original, todas as coisas, boas ou más, que nos tornam dignos de louvor ou de censura, são feitas por nós
e não nascidas conosco. Não nascemos completamente desenvolvidos, mas capacitados para o bem e para o mal;
fomos concebidos tanto sem virtude como sem vício e, antes da atividade de nossa vontade pessoa, nada há em
nós exceto aquilo que Deus depositou em nós.
26
Celéstio, “Celestianos”: discípulo de Pelágio, acusado no Sínodo de Cartago, em 412, e condenado. Sua
doutrina baseava-se em um Adão que teria sido criado mortal e morrido com pecado ou sem pecado; o pecado de
Adão prejudicou somente ele e não à estirpe humana; a lei conduz ao reino tão bem quanto o evangelho; houve
homens sem pecado antes da vinda de Cristo; não é por meio da queda ou da morte de Adão que morre toda raça
humana, nem pela ressurreição de Cristo que ela ressurgirá; dentre outras (BETTENSON, 2001, p. 104).
31
Mais do que problemas exegéticos, a teologia atual enfrenta dificuldades dogmáticas
quando procura avaliar a tradição agostiniana do pecado original, partindo-se de
Adão e Eva como nossos primeiros pais, que viviam em um paraíso natural, foram
elaboradas diferentes respostas às diversas heresias. Nem os pronunciamentos
oficiais da igreja nem as contestações heterodoxas jamais questionaram o caráter
histórico do primeiro casal, do mesmo modo como também não se questionou a
cosmologia bíblica até que surgisse o novo paradigma moderno. O enfoque
historicista foi compartilhado por todos, embora se discutisse seu significado
teológico. A problemática muda quando admitimos que não houve nem um primeiro
casal histórico nem uma etapa preternatural, e que o relato bíblico é uma mensagem
religiosa endereçada às diferentes épocas que precisa ser constantemente atualizada
e reinterpretada. A contraposição paulina entre Adão e Cristo foi a primeira
reelaboração cristã (Rm 5:12,17; 1Cor 15:21 -22.45-47) a extrapolar o literalismo
bíblico.
Os fatores participativos do primeiro homem e a explicação do pecado original se
bifurcam na expectativa de se encontrar uma forma de evidenciar seus atos e descrevê-los de
forma sincrética, como se para isso, bastasse a elucidação na fenomenologia ontológica do
ser, ou seja, de se encontrar uma verdade absoluta para a causa e os efeitos que levaram o
homem à queda. Uma releitura do Gênesis seria uma saída cabível para uma interpretação
mais detalhada da historicidade de um contexto heterogêneo de civilizações.
Essa hermenêutica, acredito, pode ser aceita sem que se descarte a visão do pecado
original como um símbolo da situação em que todo homem vive. Contrariamente às
teorias otimistas sobre a natureza humana, como por exemplo, postulado
rousseauniano acerca da bondade do homem natural, a concepção judeu-cristã tem
uma perspectiva moderadamente pessimista. Sublinha-se a ambiguidade do homem,
bem como a alienação radical dos indivíduos e das coletividades. As ciências
humanas e a própria reflexão filosófica e psicológica esclarecem a ambiguidade da
condição humana apontada pela concepção cristã do pecado original. A partir daí é
possível elucidar seu simbolismo como condição existencial. Uma hermenêutica não
agostiniana permitiria repensar o mal como algo extrínseco e simultaneamente
intrínseco ao homem, sem recair nas distorções antropológicas, éticas e teológicas
de um pecado originário transmitido por procriação (ESTRADA, 2004, p. 137-138).
Dessa forma, traça-se um paralelismo entre a ciência, que prefere uma explicação
mais realista voltada para o sociocultural, enquanto a doutrina agostiniana insere conclusões
da casuística adâmica-degenenerativa, que para tanto, é perfeitamente entendida, posto que ao
homem, no sentido antropológico, a falha é um sinônimo natural. Tal explicação para o
judaísmo canaliza-se tão somente para Adão como o centro das falibilidades humanas até o
momento em que se levantou o significado da existência humana, em que era necessária, uma
nova estimativa menos dogmática para o efeito da solidariedade da raça humana paralela aos
desígnios divinos. Consequentemente, a questão do pecado tornou evidente que somente na
cruz, encontramos a ação do pecado entre os homens.
32
Para Berkouwer (1970) é expressivo que, na cruz, não somente encontramos o agir
pecaminoso dos homens e a resposta divina na ressurreição de Jesus Cristo, como também
temos uma relação entre o agir humano e o agir divino. O Adão histórico, segundo Paulo
afirma em I Coríntios, capítulo 15, versículo 47, determinou que o homem possuísse um
corpo perecível, sendo a mortalidade da carne sua principal característica. Dessa forma, surge
a tônica de que Adão é o biótipo de toda a raça humana. Como “o cabeça” de um grupo é o
representante desse grupo na sua totalidade, o que desencadeou de forma coletiva o pecado,
estendendo, assim, a todos os homens. A confissão de Augsburgo, de 1530, no seu Artigo 2
nos diz:
Ensina-se, outrossim, entre nós que, depois da queda de Adão (Gn 3) todos os
homens naturalmente nascidos em pecado, isto é, que desde o ventre materno todos
estão plenos de concupiscência e inclinação más e por natureza, não podem ter
verdadeiro temor de Deus e verdadeira fé em Deus. Também, que essa inata
pestilência e pecado hereditário verdadeiramente é pecado e condena à eterna ira de
Deus a quantos não renascem pelo batismo e pelo Espírito Santo. Condenam-se,
além disso, os Pelagianos27 e outros que não consideram pecado ao hereditário, com
o que tornam a natureza justa por virtudes naturais, para a ignomínia da paixão e do
mérito de Cristo.
De forma explícita, toda a coletividade engloba também a questão do juízo, ou seja,
da mesma forma que a originalidade do pecado veio por meio de um único homem, a culpa
solidária gerou na humanidade o reflexo desse pecado. Intrinsecamente, o fato de Adão ser
legitimado ao caráter coletivo da culpa de toda uma raça, se faz lembrar que o aspecto do
relacionamento interferia na responsabilidade pautada na família tendo Deus seu
representante. O termo assim sugere que de um lado exista a solidariedade coletiva e de outro,
a responsabilidade dessa solidariedade ativa, determinando assim, a questão do envolvimento
do pecado com a raça.
Embora a questão do mal originado na raça seja pungente, há de se retratar a questão
do Kosmos, que pode ter um significado mais restrito que a de „awõn (velho eão28), designado
para sintetizar a raça humana.
27
Seguidores de Pelágio, frade britânico, mestre exegeta em Roma, falecido em 418.
Velho eão, awõn (O\): “velha natureza”. Shedd (1995, p.109) designa de “eão” apenas como um cognitivo da
expressão relacionada com uma velha era, ou seja, a sujeição da raça humana a forças poderosas que controlam
toda a existência material.
28
33
Isso significa que “Kosmos” é um conceito escatológico. Denota o mundo de
homens e a esfera da atividade humana sendo, de um lado, algo temporário que se
apressa para o seu fim e, de outro, a esfera de poder antipiedoso sob cuja influência
cai o indivíduo que é cercado por ele. É a esfera dos “poderosos desta época” (I Co
2.26,8) e do “deus deste século” (II Co 4.4) (BULTMAN apud SHEDD 1995,
p.115).
Logo, forças contrárias trazidas da velha natureza, subordinadas a satanás contra a
humanidade e sua criação, englobam o homem e sua natureza. A liberdade, então, não está
condicionada ao meio, mas aos princípios que foram determinados pelo velho eão à
humanidade e que, ao fazê-lo, determinou a sua sentença em Adão. Segundo Wayne Grudem
(2007, p. 230), “essa natureza pecaminosa herdada é às vezes chamada simplesmente pecado
original” e, outras vezes, chamada mais precisamente “poluição original”.
Possuímos uma “herança herdada” baseada numa predisposição para o pecado desde
o ventre materno (Sl 51,5) numa fusão de que éramos merecedores da ira de Deus, ou seja,
numa incapacidade de se fazer o bem, tanto nossa consciência quanto nossa mente estão
corrompidas pelo pecado (Tt 1,15). Assim, também somos totalmente incapazes
espiritualmente de nos achegarmos a Deus pelos nossos próprios méritos. A incapacidade
reside no fato de que, quem não conhece a graça regenerativa não possui também liberdade de
escolha, e esta escolha em se fazer o bem está condicionada àqueles que de fato são livres
(Jo 8, 34).
O caráter geral de Deus se revelou pelo seu Espírito, porque o Espírito penetra todas
as coisas, nas profundezas de Deus (I Cor 2, 10) e o caráter especial de Deus revelado
especificamente a Abraão, denota a benção de uma geração comprometida com sua palavra e
evolui ao imaginarmos em propriedade exclusiva de Sua mensagem. Richardson (2008,
p.169-170 e 172) cita o Dr. Ralph Winter, diretor do United States Center for World Mission
(Centro Norte Americano para Missões Mundiais) e considera:
“O principal tema da Bíblia”, respondeu ele, “é a benção de Deus sobre todos os
povos da terra, abençoando em primeiro lugar Abraão”. [...] “Gênesis, capítulo 12, é
então o verdadeiro começo da Bíblia”, concluiu o Dr. Winter. “Tudo o que vem
antes de Gênesis 12 é a introdução”. Claro que essa parte também é naturalmente
inspirada! Mas mesmo assim é a introdução. [...] Esses três versículos (referindo-se
aos três versículos de Gênesis 12) têm a articulação inicial de Javé com relação a
algo que judeus e cristãos chamam de aliança abrâmica. [...] A aliança abrâmica da
revelação, porém, levanta-se como uma ilha em meio ao mar da revelação geral.
Essa ilha é chamada de revelação especial: “o fator Abraão” na história.
34
Embora existam aqueles que se esquecem de que existe um Deus que interage na
humanidade e se revela a quem Ele quer se revelar; é necessário levar a se perscrutar seus
objetivos e responsabilidades, sendo a revelação exclusivamente de Deus para humanidade de
forma solidária e objetiva.
Considerando que Israel era um organismo vivo, o pecado era visto como uma
representação da culpa de um indivíduo assim como a benção se estendia a toda sociedade.
Variando o termo para a sua origem, vem à mente a dialética origem e resposta para o pecado
em parceria com a origem do mal. Interessante se faz destacar que a origem do pecado é
relevante à origem do próprio ser em um ambiente existencial e na desculpa causal.
Berkouwer (1970, p. 57) esclarece:
Surgiu então, aqui, a possibilidade de tornar a explicação do mal uma desculpa, e o
dualismo29 numa desculpa cósmica em trajes metafísicos. [...] Nesta concepção de
dualismo, apesar de todos os motivos de luta, apesar de drama e ética, a atenção é
voltada mais para a sorte do que para a culpa.
Não se pode fugir da solidariedade da culpa tão verossímil quanto o próprio erro de
querer fugir do pecado. Mas o simples fato de não admiti-lo é resposta cabal ao erro, ao
veredicto de suas ações e atos. Assim, para o povo hebreu, a necessidade da resposta diante
aos desígnios divinos era o referencial do seu pecado em dar as suas próprias “desculpas”. É
bem verdade que o coração é a fonte dos desejos malignos mais íntimos do homem (Tg 3, 1112) e não se pode atribuir a origem do pecado a Deus (I Jo 1, 5), mas a própria origem do
homem, que é um ser antitético ao próprio criador. Sendo o homem obscurecido da luz,
seguiu-se a queda pelo engodo de satanás, porque em Deus “não existe variação nem
mudança” (Tg 1, 17). Assim, o homem foi levado por sua própria cobiça: “[...] agradável aos
olhos [...]” (Gn 3, 6). Entra em cena o caráter substitutivo real, que para o hebreu, encarnava
na transferência sacrificial da culpa. Em síntese, a objetividade de se providenciar a
substituição já se fundamentava nos desígnios divinos, pois o próprio rito identificava o
pecador com a sua culpa. A natureza do homem o torna partícipe da natureza divina numa
visão solidária de Deus que se fez pecado. Shedd (1995, p. 44-45) acrescenta:
29
Tendência monística que relaciona Deus e o mal de tal maneira que não se pode deixar de atribuir a Deus a
origem do pecado. O monismo tem a tendência de atribuir tudo a Deus, inclusive o pecado. Ao rejeitar-se,
porém, este monismo, de qualquer forma depara-se imediatamente com outra solução, que pode ser chamada de
dualismo. O dualismo dá esta explicação sobre o mal do mundo: há originalmente, uma antítese entre dois
princípios, a luz e a sombra, desde que surgiram todas as formas de bem e mal. A base deste dualismo é sempre
o medo de que a oposição aguda entre luz e sombra se obscureceria e, finalmente, desapareceria na síntese
monística.
35
O conceito hebraico de sacrifício envolve o elemento de substituição real. A
doutrina universal da indivisibilidade do pecado e sua consequente pena de morte é
fundamental para o conceito veterotestamentário do sacrifício. [...] o culpado
participa da experiência da vítima em sua morte. [...] O que se deve reconhecer é a
substituição vicária da experiência da morte. Pelo princípio de comutação sacrificial
da penalidade, aquilo que deveria sobrevir sobre o primogênito recai sobre a vítima
substitutiva.
North (apud SHEDD, 1995, p. 45) comenta:
Aqui temos um claro exemplo do conceito de culpa transferida de seres humanos
que a contraíram para um animal sem culpa, e é significativo que a culpa assim
transferida fosse culpa adquirida ao cometer pecados reais, não apenas os pecados de
inadvertência, que eram todos os que qualquer oferta pelo pecado, mesmo as do dia
da expiação, podia remover.
Antecipa a ideia, assim, de que somente a morte, na substituição vicária de um
animal, substituiria a representatividade realística de um povo (no conceito estrito da palavra),
pois tanto o ofertante quanto a oferta participavam de uma mesma ideia de posse (b
)30
para ser o representante da raça psíquica do grupo. Alguns conceitos doutrinários sugeridos
pelo judaísmo dão indícios de como a questão do pecado e sua origem norteiam os
pensamentos judaicos na perspectiva da yetzer hara ante ao yetzer hatob:
A yetzer hara – O coração maligno – (cor malignun) que o escritor de 4 Esdras
considera ser a herança que todo homem recebeu de Adão corresponde à yetzer hará
dos rabinos. Yetzer hará era a motivação maligna ou a inclinação pecaminosa
inerente à raça. Foram dadas a Adão em sua criação e não são passadas de pai para
filho por meio da procriação, sendo recebidas pelo homem por ocasião do
nascimento contrapondo com a yetzer hatob – boa inclinação ou impulso benéfico.
(“The Yeçer Hará” em Biblical and Semitic Studies, Yale Bicentennial Publications,
1901 apud SHEDD, 1995, p. 87).
Diante da fragmentação de conceitos pautados na personalidade do grupo
especificamente do judaísmo e de sua falibilidade de se basear em Abraão, o “Pai das nações”
tornou-se um referencial, dado que ao patriarca, no tocante aos desígnios divinos, perscruta a
uma amplitude estabelecida no caráter de ser, nele, personificado o “povo de Deus”, pois ser
povo, necessariamente, não somente denota peculiaridade, mas abrangência de personalidade,
de caráter e de serviço solidário inseridos nesse grupo. Abraão sendo assim “o Pai das
nações” na solidariedade do antigo Israel, sendo hoje, na nova dispensação, a capacitação para
30
al ( ): “mestre, baal”; “Senhor”. Implica não apenas direito de propriedade, mas também inteira
responsabilidade pela família. Ele era o centro do qual emanavam a força e a vontade (baalins, isto é, divindades
cananeias mencionadas no Antigo Testamento) é o plural de ba´al, que significava “possuidor da terra”
(PATTERSON, 1953, p. 55; cf. RANKIN, TWBB, p. 95, apud SHEDD, 1995, p. 20).
36
e através de Cristo, ser do novo Israel, ou seja, sua igreja, e assim participar deste elo perdido
conforme na carta de Paulo aos Romanos, capítulo 9, versículo 26: “E no lugar em que se lhes
disse: Vós não sois meu povo; ali mesmo serão chamados filhos do Deus vivo”. E em
Romanos, capítulo 2, versículos 28 e 29: “Porque não é judeu quem o é apenas exteriormente.
[...] Porém judeu é aquele que o é interiormente”. A possibilidade da santificação por meio do
sangue e sacrifício viu-se somente na esperança, sendo que a esperança é o pressuposto de
uma vontade ínfima de querer fazer o bem. Ainda na carta aos Romanos no capítulo 7, verso
18, o apóstolo acrescenta: “Porque eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem
algum; e com efeito o querer está em mim, mas não consigo realizar o bem”. A vontade
somente é apenas a ferramenta divina para se descobrir que a razão é o que levou a queda e
não a queda é o pressuposto da vontade humana em querer fazer o mal num ato de rebelião
contra Deus por intermédio de um mistério que não lhe fora digno conhecer, aplicando toda a
sua conduta na perversidade e loucura. Conforme Ridderbos (2004, p. 103):
Para Paulo, portanto, o pecado não é, primeiramente, um ato individual ou condição
a ser considerada isoladamente, mas sim um modo supraindividual de existência do
qual se compartilha por meio do simples fato de fazer parte do contexto de vida
humano e do qual só se pode ser redimido ao ser levado para dentro do contexto de
vida revelado em Cristo (Cl 2.13).
O simples fato de querer Deus um relacionamento com sua criação resultou em todo
um amor e bondade, sendo este amor a razão do bem que havia entre eles, pois onde exista o
bem, não persiste o mal. A partir do momento em que o homem desejou este mal em seu
coração por estar num estado de submissão, de base, forjou na sua mente um desejo de
suplantar uma realidade pura, cristalina, coberta logo após a queda. Segundo Bultmann (apud
RIDDERBOS, 2004, p. 110):
Antes a carne tipifica todo o modo de existência do homem. Em sua visão, ele parte
do significado de “carne” como uma designação da esfera do visível, do
“disponível”, aquilo que se encontra a sua “disposição” (o tangível) e, assim, do
transitório e temporal. Por certo, o pecado não consiste na existência “carnal”,
natural e transitória como tal, mas sim em permitir-se ser determinado pela “carne”
[...] Isso ocorre quando o homem vive “segundo a carne”, ou seja, permite-se ser
tentado a buscar dentro dessa esfera da sua vida, sua felicidade e sua liberdade. O
que está envolvido não é apenas o desejo de coisas materiais, mas também todo o
esforço no sentido de adquirir para si uma base para a vida, vantagens e mérito a
partir daquilo que se encontra ao alcance das possibilidades humanas, e que o
indivíduo tem a sua disposição.
37
É exatamente neste aspecto peculiar que o apóstolo Paulo, genuinamente, explora a
inserção de uma nova estrutura para o “povo escolhido de Deus” e não somente uma nação
espúria inserida numa árvore genealógica, em que a raiz continua sendo a mesma judaizante,
embora seus ramos sejam diferentes, como explica Shedd (1995, p. 168):
A referência mais explícita de Paulo à imagem do mundo botânico é seu uso da
oliveira para representar o vínculo do verdadeiro povo de Deus. [...] Outra referência
casual a uma árvore ocorre em Colossenses 2.7, onde a igreja está “radicada” em
Cristo. É impossível estabelecer todas as implicações de um relacionamento
orgânico que une a igreja com Cristo, tal como na metáfora da videira e dos ramos
em João 15.1-8. Tal ligação orgânica é amplamente desenvolvida no conceito de
corpo. Com a mesma despreocupação em apresentar uma ilustração coerente, que
permitiu ao apóstolo falar de um templo que cresce, esse trecho apresenta a ideia de
estar “arraigado” a de estar sendo edificado e firmado em Cristo. Isso indicaria que
as figuras do templo e da árvore estão intimamente relacionadas. O denominador
comum dessas figuras de crescimento e edificação é o aumento quantitativo que
envolve expansão geográfica e estrutura orgânica.
Num conceito mais amplo, Deus afirma um relacionamento vertical com seu povo
numa conjectura patrística muito forte. A única forma de Deus solidarizar-se com o homem é
por meio da fé e da comunhão com o seu povo, ou seja, uma quebra da aliança especial
promovida em Abraão trouxe à equivalência o novo Israel que é a igreja atual (Ekklesia)31:
“[...] a salvação do indivíduo judeu, assim como a do indivíduo gentio, só é alcançada
mediante a incorporação no Israel escatológico pela aceitação da nova aliança e pela fé em
Jesus Cristo, o Messias” (SHEDD, 1995, p. 189).
A solidariedade participativa no tocante aos méritos e castigos, passíveis de
aplicação na igreja atual, numa semelhança da nova mishpāhâ, como ilustra Shedd (1995,
p.187): “[...] Ao designar Cristo como o cabeça, Paulo (o apóstolo) reúne toda a complexa
ideia semítica de personalidade coletiva que gira em torno do membro principal do grupo, seja
ele sacerdote, rei, ancestral, seja um humilde ba‟al32 sobre sua mishpāhâ”.
Num plano mais descritivo da igreja no aspecto comunitário, encontra-se o papel
eucarístico representativo da sociedade solidária. Não se pode falar em “Koinonia”33 sem
expressar a questão eucarística como fonte de inspiração da vida e obra de Cristo. Segundo
Irineu (2001, p. 134), “os judeus não ofereceram uma oblação apresentada em forma de ações
de graças por sua criação, porquanto rejeitaram seu mediador”.
31
ekklesia ('εκκληζία): é traduzido em Hebreus (2, 12) por “congregação”, em vez da tradução habitual – igreja.
(VINE, 2003, p. 493).
32
ba‟al: o significado do termo vai além da ideia de marido ou pai e abrange o conceito de senhorio (SHEDD,
1995, p. 20).
33
koinonia (κοινωνία): “tendo em comum” (koinos), sociedade, companheirismo” (VINE, 2003, p. 485).
38
Nessa nova ordem, o corpo da nova aliança personificado na pessoa de Cristo,
participa com a nova humanidade por meio de um relacionamento mútuo, assim como Adão
tinha no antigo éon (velha natureza) Cristo num novo conceito de solidariedade desta nova
aliança por intermédio do Espírito da promessa no Pentecoste. O Espírito Santo incorpora
com a nova raça uma união espiritual no novo eão34, estabelecendo a aliança em Cristo,
denominado por Paulo de Tarso de “segundo Adão” ou “Último Adão”, o cabeça ou o
ancestral de uma nova comunidade, ou seja, criando um verdadeiro vínculo de um novo
“Zakut arquetípico” para gerações sucessivas e não mais por meio de patriarcas, mas com o
novo representante da humanidade: Cristo.
A personalidade do fiel, assim, torna-se uma espécie de “união estável”, que para o
apóstolo Paulo é uma consoante significativa na personalidade da igreja. Nesta análise, a nova
comunidade tornou-se um em Cristo assim como o homem e a mulher no matrimônio. Este é
o entendimento de Paulo sobre corpo de Cristo: unidade vinculada em Cristo através do
Espírito. A manifestação dessa estrutura magnífica irrompe com o pensamento judeu sobre
corpo e espírito. Assim, o espírito da promessa corrobora para uma nova junção de Cristo com
a humanidade numa espécie de “reimagem” do unigênito na criação, o filho de Deus, pela sua
solidariedade em se manifestar em carne (Sarx).
3.2 O CARÁTER SUBSTITUTIVO DE CRISTO E A NOVA ALIANÇA
Sendo partícipe desta nova aliança, Cristo agora feito “o cabeça” da raça humana,
encerra a expectativa de tornar-se Nele, todo o pecado e degradação da raça desde Adão,
recaindo sobre Ele o que deveria ser da igreja, numa inclusão metafórica em razão de
peculiaridade do erro, o que denota um amor transcendente. Seja de origem helênica ou
judaica, a razão da existência do corpo de Cristo é fruto da dissolução de uma realidade
estreita de Adão para uma corporificação plena em Cristo, tornando-se uma só carne pela
solidariedade do Pai em manifestar-se.
Johannes Blauw (1966, p. 10), afirma que:
34
eão: cognitivo de „awõn (SHEDD, 1995).
39
Nas discussões sobre obra missionária, e o seu lugar próprio na igreja, concordou-se
em geral, que a igreja tem vocação missionária. O problema tem sido saber qual é a
relação entre esta vocação, cuja existência não é questionada, e a forma que deve
tomar, o que é um ponto de disputa em nosso tempo e época, e que geralmente é
expresso pela palavra “missões” (missões estrangeiras, âussere Mission).
Não é possível envolver no aspecto orgânico o sentido de corpo de Cristo sem um
envolvimento típico desse corpo com o que o determina, ou seja, o real envolvimento com o
ser, que é o próprio homem, “[...] a sua imagem e semelhança o criou [...]”. A que corpo a
igreja hoje está fazendo parte e a sua vontade de envolvimento e o que com ele determina é a
questão. Logo, o exclusivismo encarado pelos judeus, não por Deus, ressurge a ideia da
inclusão, haja vista que Deus é Senhor de toda Terra e a obra desenvolvida para os judeus
interferiu drasticamente na oposição de uma escolha étnica não sugerida por sangue, cor e
língua, mas numa espécie específica em que se canaliza toda a criação, que é o homem. Deus
participou de forma genuína na construção desta espécie e que esta se solidarizasse com o
mundo e não apenas na retratação de uma “minicosmovisão”.
“Paulo não sentia nenhuma obrigação de defender a natureza da responsabilidade
humana baseando-se na ideia de que o homem foi criado à imago Dei35 (SHEDD, 1995, p.
98). Paulo rechaça a ideia de separatismo entre judeus e gregos e de toda uma classe menos
favorecida (I Cor 12, 13), ou seja, fora de uma visão escolástica, científica e religiosa. Cristo,
assim, aplica a si mesmo o conceito do mérito, deposto por Adão e retificado na nova aliança
no Espírito. Em Cristo fomos chamados para uma nova e ampla família, mishpachah, tendo
Cristo por cabeça, sendo o primogênito da criação (Cl 1, 15).
Toda uma estrutura desenvolvida para o Antigo Testamento tem uma mensagem
tipicamente missionária e não somente universal. A responsabilidade atribuída no
chamamento de Abraão em contraste com o chamado de Adão no jardim do Édem
corresponde a um peso de importantíssimo valor na história das nações e para o próprio Israel.
O seu chamado específico equivale a dizer que é o chamado de todos os povos da terra, não
por haver uma ambiguidade na criação decaída, mas por assim determinar antes da fundação
do mundo (cf. Ap 13, 8; I Pe 1, 20).
35
Imago Dei: Expressões do Latim que significam: Imago – Imagem e Dei – Deus, ou seja, “imagem de Deus”.
O Antigo Testamento não relata como surge o ato da pessoa ser imagem de Deus, mas apenas mantém que a
pessoa foi criada “como imagem de Deus” (esta tradução é mais apropriada do que a habitual “segundo a
imagem de Deus”). Pois “imagem de Deus”, no AT , não é mais algo rigorosamente mítico, mas apenas um
título (SCHMIDT, 2004).
40
A magnitude divina não se expressa em um relacionamento individual, mas crescente
e diverso na expressão máxima do seu amor, Cristo. Este Kérigma é visto de forma reflexiva
para os judeus conforme cita o “apóstolo dos gentios”. “[...] mas pela sua queda veio a
salvação aos gentios, para incitá-los à emulação (Rm 11, 11). Textos correlatos de que o
chamado do patriarca Abraão enleva-se às “famílias da terra”, encontram-se também em
Romanos, capítulo 4, versículo 13, cognominando agora Cristo como “a justiça de Deus” aos
homens no universo de se aceitar o mérito de Cristo como predominantemente digno de
aceitação.
A doutrina do mérito, ou o zacut característico dos patriarcas, simbolizava um
sinônimo de respeito e benefícios vindouros da perfeição atribuída aos mesmos para com todo
o Israel em cada contexto específico do povo e de suas famílias. Esta herança deveria ser
trazida sempre em mente a fim de permanecer o elo de fiança para com todas as gerações
subsequentes numa filiação mútua de responsabilidade. Na figura do mérito, Abraão era
simplesmente o ápice da perfeição, atribuindo-se a ele todos os atos meritórios do povo, ou
seja, a sobrevivência de todo o Israel dependia deste. Em contraste, a referência de Amós
capítulo 3, verso 2, no tocante ao ato punitivo de rejeição, não denota favoritismo de uma
eleição, mas de responsabilidade na ação de serviço. Abraão fora escolhido para servir de elo
representativo para o povo no alcance máximo de ser agora, depois de Abraão, a
responsabilidade corporativa de Israel, que passa de um indivíduo apenas para uma nação
inteira, ou seja, o mérito recai no próprio povo a quem Deus chama. Shedd (1995, p. 124) diz
que “não é judeu quem o é apenas exteriormente. [...] Porém, judeu é aquele que o é
interiormente”.
É inegável a razão missiológica inequívoca de Israel para com o seu chamado em ser
protótipo para as nações e o determinismo que o levou para um monoteísmo sincrético, ou
seja, uma mistura de culto ao Deus único e verdadeiro e a difusão de religiões pagãs
circunvizinhas, levando a própria ira de Deus. O fato é que no velho testamento, afora o
Deutero-Isaías e Jonas, que são textos que condizem e perfazem uma avaliação lógica da
tarefa específica de Israel em compreender a abrangência de sua missão, levam-nos a pensar
conforme os comentários de Desmond Alexander (2001, p. 102) sobre a atitude de Jonas com
respeito à cidade de Nínive:
41
Contudo não há como fugir de Deus. Reconduzido para a cidade, Jonas proclama
sua mensagem de condenação. Sem o menor sinal de protesto, a cidade inteira,
vestida de saco, busca perdão. Os piores receios de Jonas se concretizam; Deus cede
e não castiga a cidade. [...] Em atrito com Deus Jonas tipifica os que vêem os
atributos divinos de justiça e misericórdia funcionando de acordo com sua própria
conveniência; misericórdia para si mesmos, mas justiça para seus inimigos.
Felizmente, porém, esses atributos não são conduzidos por motivações ou desejos
humanos. Conforme o livro de Jonas deixa muito óbvio, Deus é soberano, sua
justiça é totalmente imparcial e sua misericórdia pode alcançar qualquer pessoa.
Mesmo diante de uma situação completamente hipotética, o profeta Jonas, após,
cumprir seu chamado, depois de passar atordoado no nicho estomacal de um peixe, se
contrapõe ao orgulho de sua introspecção étnica com relação ao povo ninivita, concernente ao
perdão e arrependimento numa incrível teodiceia divina em prol de sua soberania divina. Não
se deve ocultar a tamanha incredulidade e cegueira de não compreender o que realmente é ser
livre, que para os judeus, é ter sido liberto do jugo da servidão de Faraó, não acreditando
assim na hipótese de se ter na pessoa de Moisés, um homem chamado por Deus para uma
visão missionária.
O caráter Cristológico ainda se torna mais convincente quando da passagem de
Deuteronômio, capítulo 18, versículo 15, evidenciando o futuro que levaria a todos os povos
da terra a um único ente da família espiritual, da linhagem de Judá, o rei das nações (Jr 10, 7).
Nisto consiste o redirecionamento da doutrina da reconciliação conforme II Coríntios,
capítulo 5, verso 19. O próprio Deus participa e religa novamente a humanidade num novo
conceito típico de solidariedade divina, quando seu Filho exauriu de toda a sua magnitude e se
fez expiação por nós, “mesmo nós ainda sendo pecadores” (Rm 5, 8) num caráter substitutivo,
quando um, o primogênito do Pai, consegue por si só, aplainar o desnível descabido de
separação entre Deus e os homens, não só do próprio Israel, mas de toda uma geração do
presente, passado e futuro. O pecado, englobando todo o seu misticismo no criacionismo
humano, passa para o segundo Adão que reúne toda a humanidade a fim de satisfazer a
vontade do Pai desde o princípio. Na visão Paulina de solidariedade humana, se um morre,
todos conjuntamente participam numa visão de comunidade solidária, assim como as bênçãos
e o erro, conforme uma estrutura organizacional em que cada um responde reciprocamente
um pelos outros (I Co 12, 26-27).
Embora o sacrifício substitutivo de Cristo como ato expiatório não se traduza na
maioria das interpretações judaicas como um ato salvífico, conforme elucida Ridderbos
(2004, p. 192):
42
[…] e onde há muita lei, há muita vida. É por causa dessa atribuição de valor às
muitas ordenanças, etc., como meio de obter méritos, que Paulo reflete
repetidamente sobre esse caráter complexo e detalhado da lei, sobre seu caráter de
“mandamentos”. […] Fica claro que nessa visão de “justiça pela lei”, o conceito de
justiça tem um conteúdo diferente para os judeus do que para Paulo. De fato, o
conceito volta os pensamentos para o trono de julgamento de Deus, certamente
move-se dentro da esfera legal, mas não é uma justiça conferida ao homem por
Deus, mas sim uma justiça afirmada, reconhecida por ele. Assim, a justificação, a
absolvição, tem aqui um caráter analítico; baseiam-se naquilo que o homem tem e é,
não naquilo que recebe como justiça de Deus e, consequentemente, Paulo é capaz de
contrastar essa justiça com a justiça divina ou proveniente de Deus, como sendo uma
justiça do próprio homem que ele realiza ou adquire (Rm 10.3; Fp 3.9; Rm 3.17,21).
O ressuscitamento de Jesus por Deus demonstrou a renovação de uma égide aplicada
ao lume da redenção adâmica demonstrando assim a realeza de um Deus presente e autêntico,
que se envolve com sua criação apesar da decadência e falibilidade humana. Na solidariedade
divina, não sobra espaço para o orgulho e o individualismo; somente a morte substitutiva de
Cristo provou o seu amor e renovou a aliança por intermédio do Espírito da promessa. O
contraste entre Cristo e Adão permite inteirar-se da grandeza e profundidade participativa do
Pai em sua criação, no seu papel de querer, numa atitude antidespótica, englobando o seu
mais íntimo amor e dedicação e conhecendo o interior do homem e sendo sabedor da
incapacidade humana, não se limitou, sendo Ele Deus, a participar solidariamente com a
humanidade por meio de seu primogênito, refazendo a aliança decaída no Éden.
Logo, mesmo sendo o pecado algo intrínseco ao homem decaído, a manifestação
divina no segundo Adão trouxe novamente o caráter único de uma raça e de uma etnia
peculiar, de um Deus único no seu íntimo para com a imagem da sua criação. Assim também
Ele deseja o envolvimento uns com outros numa participação de solidariedade
verdadeiramente ativa, num conceito de que a genealogia que sublinha toda uma história de
inclusão social seja intrínseca às características de uma igreja que conheça seus objetivos e
bases a partir do seu líder máximo: Cristo. Nisto tem-se que crer em sua majestosa graça, que
Ele outorgou seu sangue pelo Seu amor incrementando à humanidade seu caráter, pois assim,
provamos verdadeiramente que o conhecemos (I Jo 2, 5).
Sobre um retrospecto, Richardson (2008, p. 229) descreve da seguinte forma:
O que por fim os convenceu de colocar realmente em prática a última comissão do
Senhor? Teria sido a leitura do livro de Lucas, “Os Atos dos Apóstolos”, explicando
como realizá-la, que finalmente os levou a crer que podiam alcançar outros povos
como o evangelho, como Paulo e Barnabé já faziam? [...] Em último lugar, vou
mostrar que nós, como cristãos modernos, nos apoiamos sobre os ombros dessa
pequena minoria de precursores que compreenderam que a linha de baixo da aliança
definia a imutabilidade do propósito de Deus. Eles nos transmitiram esse entusiasmo
que pode nos levar a abençoar todos os povos ainda não abençoados na terra – caso
não percamos esse impulso vital!
43
Deus é um Deus de todos os povos, raças, tribos e línguas e não somente um Deus
cultivado sobre uma ótica nacionalista. Referir sobre as potencialidades de um “deus” pessoal,
íntimo nas nossas próprias faculdades é esquecer de que, conforme o chamamento de Abraão,
Ele queria que “todas as famílias da terra conhecem o Seu nome”. Richardon (2008) refere-se
às “linhas de cima e de baixo” numa expressão que envolve os gentios (linha de baixo) na
participação ativa da descendência dos filhos e filhas de Abraão, ou seja, a forma como esta
“linha de cima” (referindo-se a aliança Abraãmica) interferiu na humanidade.
No Novo Testamento a forma enaltecida em que Paulo refere-se a Cristo como
“descendente” de Abraão, nesta sincronia das “linhas de cima e de baixo”, confirmam-se em
uma consolidação em Gálatas, capítulo 3, versículo 16: “Ora, as promessas foram feitas a
Abraão e à sua descendência”. Não diz: e às descendências, como falando de muitas, mas
como de uma só: e à sua descendência, que é Cristo. A responsabilidade de perpetuar a
multiforme graça divina por meio das nações pertence a todos.
O próprio Abraão deu testemunho aos cananeus, filisteus, heteus e apesar de
negativamente, aos egípcios; José foi um filho de Abraão que compensou a falta de
um testemunho claro por parte de seu ancestral à nação egípcia! José abençoou os
egípcios de maneira verdadeiramente admirável; os espias que entraram em Jericó
antes da destruição tornaram-se uma benção para Raabe, uma prostituta cananeia e
sua família; Noemi, filha de Abraão, foi uma benção para duas mulheres moabitas,
Rute e Órfã; Moisés tornou-se uma benção para Jetro, seu sogro midianita (Ex 18.112); o rei Davi fez até mesmo os seus inimigos, filisteus, reconhecerem a grandeza
de Deus; o profeta Elias foi uma benção para a viúva de Sarepta, em Sidom (Lc
4:26); o profeta Eliseu, também foi uma benção para Naamã, um Sírio; (Lc 4:27);
Jonas, embora com relutância, tornou-se uma benção para a população gentia de
Nínive; o rei Salomão foi uma benção para “a Rainha do Sul”, procedente de Sabá
(Lc 11:31) Daniel e seus três companheiros, Sadraque, Mesaque e Abednego, foram
uma benção para os babilônicos; Ester e seu tio Mordecai foram uma benção para
todo o império persa (Et 8:17); Ezequiel, Jeremias, Esdras, Neemias e outros
profetas levaram a palavra do Senhor a várias nações gentias (RICHARDSON,
2008, p. 175).
Torna-se latente o zelo com que o próprio Espírito Santo, ao introduzir os
acontecimentos na história, manifestou a peculiaridade de um Deus que é solidário para com
todos os povos. Difícil tarefa é incutir na igreja atual o chamado de Deus para as nações,
através de quatro mil anos de história desde a aliança Abraãmica, fazendo com que
necessariamente, revejam-se os conceitos e planejamentos para que a grande comissão
alcance toda a terra.
44
4 A SOLIDARIEDADE E A TEOLOGIA PAULINA
“O senso de perda do homem resulta, em parte, de estar ele despojado da
comunidade e dos esforços em conflito para interpretar sua humanidade [...]”.
G. Ernest Wright
Hebreu de hebreus, da tribo de Benjamim, da cidade helenista de Tarso surgiu o
apóstolo dos gentios de uma linhagem materna aramaica. Embora provenha de uma família
judaica, sua educação lhe garantiu uma ortodoxia grega em Jerusalém aos pés de Gamaliel
sucessor da escola de Hillel, sem, contudo, Gamaliel possuir nenhuma influência na premissa
de que sua escola detivesse algum vínculo com a de Hillel. Na expectativa de superação de
um aluno “excelente”, mas, todavia, bem menos interativo com as questões relacionadas ao
zelo de suas raízes, Paulo destacadamente era veemente enquanto não possuía as mesmas
características de Gamaliel numa situação similar de Atos, capítulo 5, versículo 38: “E agora
digo-vos: Dai de mão a estes homens, e deixai-os, porque, se este conselho ou esta obra é de
homens, se desfará.”
Seu repúdio e forma de ação o levaram ao genocídio contra os cristãos em prol da
aplicação de seu compêndio de doutrinas judaicas. Da lei do “amarás a teu próximo como a ti
mesmo” e “amarás ao Senhor Teu Deus...” implicavam uma relação entre o cristianismo e os
seguidores de Qumram36 e das escolas de Hillel e Shammai37 até o momento de sua
aplicabilidade, o que gerou controvérsias nocivas com tais religiosos.
36
A devoção apaixonada à lei de Deus e o helenismo chocou com os ideais dos asideus (fariseus assim
denominados no livro de Macabeus) na ação de Antíoco Epifânio que prometia extinguir a identidade religiosa e
nacional dos judeus, que intensificou a identidade dos asideus patriotas e mais autênticos, opondo uma luta
ferrenha às forças selêucidas, iniciando a guerra das guerrilhas. Perto do fim de 164 a.C., ocorreu uma espécie de
equívoco contra as forças aliadas do rei que permitiram que os fariseus novamente praticassem sua religião e
restaurassem o templo, quando Jônatas aceitou o sumo sacerdócio em 152 a.C., de um pretendente de um grupo
selêucida, um grupo de asideus revoltou-se pela usurpação da dignidade da casa de Zadoque, formando assim a
comunidade de Qumram.
37
Nos primórdios da era cristã havia duas escolas principais de interpretação legal, fundadas respectivamente
por Shammai e Hillel. À escola de Shammai tradicionalmente é atribuída uma interpretação mais rígida do que a
escola de Hillel – não apenas na aplicação das leis individuais, mas também na postura em relação à lei como um
todo. Os discípulos de Shammai consideravam a quebra da lei (por ação ou omissão) uma quebra da lei como tal,
enquanto os discípulos de Hillel ensinavam que o julgamento divino estava relacionado à preponderância do bem
ou do mal, na vida inteira da pessoa.
45
Como um bom Zelote da lei, Paulo sabia da divisão das três eras judaicas: a era do
caos, da lei e da messiânica, mas crer num messias crucificado era improvável segundo as
tradições judaicas e mesmo sabendo mais tarde que o crer num messias “maldito” tornava
seus seguidores “malditos pela lei” e dignos de morte. Contrapor a todos os argumentos dos
costumes, tradições antigas contra sua própria mente por alguém que fora mencionado como
messias seria incerto, acrescido ainda da crucificação que o fariam como alguém descabido de
aceitação.
Esta mesma aceitação fora sua maior dificuldade no início de seu ministério. Como o
“perseguidor da igreja” tornar-se-ia perseguido agora pelos seus algozes políticos de outrora e
pior: provar para a igreja sua conversão inconteste. Os primeiros passos foram supostamente
dados por Ananias em Damasco e por Barnabé em Jerusalém. Podiam ser feitos com
dificuldade de ação, mas o aspecto da intervenção divina era aceitável. Dar-se-ia o caso de
início, pintar o pano de fundo de solidariedade Paulina segundo o qual, a única forma de Deus
se solidarizar com o homem é por meio da comunhão (koinonia)38.
Cônscio das plausíveis influências estoicas e pelo próprio gnosticismo, Paulo as
refuta, bem como as religiões de mistério helenista individualistas, o que gera uma antítese
sem precedentes para a concepção paulina. A genealogia da criação divina constitui seu
marco na semente plantada por Deus no homem e na sua unidade como um todo, e que reflete
em toda a ração humana dada a sua quebra da aliança especial (Israel) e também a quebra na
sua aliança natural (gentios), partindo sempre do pressuposto de Adão sendo o representante
realístico de toda a raça humana, ou seja, o ancestral desde grupo coletivo nesta grande
família no mais estrito significado de mishpāhâ39 divino visto anteriormente.
Segundo afirma G. Ernest Wright (1966), um artigo ao qual temos nos apegado com
tenacidade desde a Renascença é certa noção humanista do indivíduo. O mundo ocidental
vem-se concentrando no homem como indivíduo, em seu valor, em sua excelência, em seus
direitos e em sua liberdade, disso resultando que o sentido da significação e propósito da
comunidade se evaporou. Esse fato ocorreu tão rapidamente a ponto de determinar um vácuo
que foi e continua sendo preenchido por meios extremos e radicais. A sociedade foi
atomizada, ouvindo-se agora, em consequência e pela primeira vez, do homem massa na
38
koinonia (коινωία): “tendo em comum” (Koinos), sociedade, companheirismo (VINE, 2003, p. 485).
mishpāhâ (D¡G¡Tw¦N): família, clã. Uma forma desta palavra hebraica ocorre no ugarítico e no púnico, também
com o significado de família ou clã. A palavra foi encontrada nos rolos do mar Morto, como também no hebraico
misnaico e moderno. O termo mishpāhâ aparece trezentas vezes no Antigo Testamento hebraico. Todos os
integrantes de um grupo que estavam relacionados por sangue e que ainda sentiam um senso de consanguinidade
pertenciam ao “clã” ou à família de modo geral.
39
46
economia industrial de nossa era. Para o autor, o senso de perda do homem resulta, em parte,
de estar ele despojado da comunidade e dos esforços em conflito para interpretar sua
humanidade. Admitir valores que escusam sua responsabilidade social é uma forte tendência
individualista réproba e ao mesmo tempo clamorosa.
A posição paradoxal em que Paulo se encontra fica evidente quando com
sinceridade e sem qualquer condescendência, sem nenhuma reserva esotérica, trata
os fariseus por “seus irmãos” quando ele toma absolutamente a sério o fato de ser
“parente deles segundo a carne”; quando ele, consciente do desconhecimento, com
eles se curva sob o avassalador incógnito divino que caracteriza a igreja (BARTH,
1999, p. 522).
A unidade da raça gera um compromisso, um relacionamento desta com o criador,
capaz de usufruir de uma responsabilidade mútua e isso, para Paulo, simbolizava
solidariedade. Não se pode distinguir um padrão humano sem tecer um padrão divino de
família. Efésios, capítulo 3, versículo 15, sugere um compromisso revelado no escopo do
termo de uma grande família dominada por Deus, relacionando o termo “nome” com
“família” e sua responsabilidade para com Ele. Assim, a base de uma solidariedade paulina
repousa na responsabilidade dos homens para com Deus, embora esta responsabilidade
repouse na magnificência divina no seu aspecto dotativo.
4.1 O ASPECTO SOLIDÁRIO DA RECONCILIAÇÃO
Herman Ridderbos (2004, p. 208), afirma:
[...] “justificar” é um conceito legal-religioso extremamente típico da estrutura
escatológica básica da pregação de Paulo, “reconciliação” (no sentido de Katallagē)
tem um significado mais geral e menos qualificado no jargão teológico. Origina-se
da esfera societal (Cf. I Co 7:11) e refere-se em geral à restauração do direito de
relacionamento entre duas partes. Nos pronunciamentos de Paulo, o termo é
colocado em contraste com “inimizade”, “alienação” (Rm 5:10; Ef 2.14ss; Cl 1.22),
assim como de modo positivo significa “paz” (cf. Rm 5.1, 10; Ef 2.15ss; Cl 1.20ss).
Refere-se a um conceito de restauração do relacionamento entre duas partes: Deus e
o homem (II Co 5,19). A premissa é da autoria do próprio Deus em reconciliar o mundo,
conforme os pronunciamentos nos livros de Colossenses (1, 20-22) e Efésios (2, 16).
47
Por meio de seu plano salvífico, o objetivo primordial de Deus em restaurar todas as
coisas sujeitas a Ele, fez confirmar o sentido da paz que temos agora em Cristo no seu sangue,
pela pacificação da dádiva divina alcançada pela fé. Portanto, a compreensão de que, a
amplitude do caráter reconciliador de Deus para Paulo, reside no fato da busca pelo homem
enquanto “inimigo da cruz de Cristo”, isto é, pela obra e vida de Cristo em sua atividade
reconciliadora (Cl 1, 21-22), trazendo assim um novo perfil de relacionamento: é Deus
interagindo com o homem, num contraste de dependência da natureza falível e decaída sem
condições possíveis de se achegar ao Criador. Entre a reconciliação e os meios de
propiciação, Cristo se propôs, derramando assim seu sangue como justo no único meio
veiculado por Deus pela humanidade.
Ao associar sacrifício como o meio de propiciação da justiça divina, Paulo revela a
forma de desvalorização da linguagem bíblica expressa em Romanos, capítulo 3, versículo 25,
do qual Cristo em sua carne entregou-se. Assim, a ira divina no pecado não fora neutralizada
pela morte vicária de Cristo, mas em seu amor revelado por Deus aos homens. Parte desta
solidariedade divina é o reflexo da exaustiva forma de expressão da grandeza de Deus junto a
sua criação e na sua expectativa de um relacionamento ainda maior com os homens,
entregando o seu próprio filho para a reconciliação com a humanidade. Cristo assim, se
tornou o elo entre Deus e os homens (hilasmos) e sua morte expiatória foi o marco essencial
para a obra redentora de Deus em todo o tempo, antes da fundação do mundo.
O termo resgate para Paulo está intimamente ligado à ideia (antilytron) do costume
judaico relacionado ao oferecimento de alguém em prol da absolvição de outra, motivando a
liberdade da vida pela condenação por meio da morte de forma favorável àquele que concede
lytroseta. Romanos, capítulo 3, versículos 24 e 25, nos fornecem os pressupostos da redenção
por intermédio da reconciliação pelo sangue de Cristo: “Sendo justificados gratuitamente pela
sua graça, pela redenção que há em Cristo Jesus. Ao qual Deus propôs para propiciação pela
fé no seu sangue, para demonstrar a sua justiça pela remissão dos pecados dantes cometidos,
sob a paciência de Deus.”
Paulo aqui e também no livro de Efésios, especificamente no capítulo primeiro,
relaciona o termo reconciliação com liberdade que está estritamente legado ao resgate como
termo central. Presume-se que se refira a um conceito comercial como “pagar” e “comprar”
no exemplo substitutivo de Cristo em favor dos homens ampliando o conceito deliberativo da
multiforme graça divina. Mas uma vez caracteriza-se a ação de Deus diante dos homens que
torna, em Cristo, maldito pela cruz. O caráter divino de Cristo se consubstancia pela vergonha
da crucificação em nosso lugar tendo sido consumada a justiça de Deus por nós, justiça esta
48
que fora correlacionada com a plena certeza da compensação integral da obra redentora de
Cristo Jesus.
Nesse aspecto é que se concretiza a missão reconciliadora de Cristo pelo fato de nos
ter sido feitos filhos adotivos como consequência da sua obra salvífica. Esta adoção volta-se à
epígrafe da história da raça humana criada por Deus e é evidente que Paulo deixa claro o
aspecto filial de Israel (cf. Rm 9, 7-8) e a semente de Abraão, sendo a plenitude dos tempos
concretizada em Cristo para o verdadeiro povo Seu. Cristo é o filho, “o primogênito da
criação” (Cl 1, 15) e nós somos feitos filhos pelo dom concedido por meio da redenção do seu
Espírito em nós e isto é implícito nas cartas paulinas numa reciprocidade de testificação dessa
adoção. Os textos de Gálatas (3, 26-27 e 4, 26) nos mostram a solidariedade de Deus em
estender sua filiação a todos quantos o receberam pela fé no batismo. Deus envia Seu Espírito
para “testemunhar” em nosso espírito, ou seja, levando-nos a um relacionamento com Deus de
“Pai para filho”, Aba, Pai (Gl 4, 6).
Este Espírito comutativo proporciona não só no aspecto do convencimento, mas
também nos traz vida por meio da comunhão. São Dele as virtudes de capacitação e de
interlocução junto ao Pai; é Dele a certeza que nos proporciona diante das nossas
falibilidades; é o mesmo Espírito que nos aceita quando nos rendemos. Para àqueles que
amam o Pai e desejam ser “parecidos” com Ele, são chamados para uma comunhão íntima e
sincera diante de um mundo enclausurado pelas circunstâncias provocadas pela problemática
social, física e espiritual. Seguindo uma escatologia abraâmica, o conceito de herdeiro é
definido por Paulo como uma consumação em Cristo de uma promessa, juntamente com os
termos “filhos” e “semente de Abraão”, traçando uma ligação, de um epílogo que começa a
partir do momento da aceitação em Cristo, conduzindo o arrependido ao passo de filho
adotivo e herdeiro das promessas da igreja que reinará com Cristo para sempre, bastando para
isso vivermos de glória em glória (II Co 3, 18).
49
4.2 O PECADO SEGUNDO A SOLIDARIEDADE PAULINA
A visão da doutrina Paulina sobre o pecado restringe-se de uma análise históricoredentora e coletiva sobre o aspecto da vida humana antes e depois de conhecer a Cristo
inserido num mundo chamado de cosmos. Em Gálatas capítulo 1, verso 4, Paulo denomina
este cosmos de “perverso” dominado por uma era de pecado numa conotação de “era” como
sendo mundo, ou seja, o cosmos. Os dominadores desta “era” embora estejam sujeitos a Deus
(II Co 12, 7), nesta representatividade encarnam a perspectiva de sofrimento, fome, opressão,
calamidades, englobando assim o domínio de satanás, a qual a criação “geme” aguardando
com expectativa a redenção (Rm 8, 19-23). Pela concepção Paulina de cosmos, este
estereótipo que envolve o homem nas suas tendências concêntricas de liberdade, sendo muitas
vezes resumida de forma catastrófica para o seu próprio ser, o próprio homem na sua
pseudoperformance virou-se para o seu criador numa conjectura distorcida da visão de Deus,
sendo que este queria preservar incólume sua criação. Mas o preservar não é aglutinar ou
mesmo injetar no homem o senso de retidão embora o pudesse. Mas Deus fez o homem livre
e esta liberdade no contexto humano, numa realização além indivíduo, correlaciona sua
própria existência a sua falibilidade, podendo somente ser redimido em Cristo.
Romanos (2, 1 e 21-24; 3, 9) e Gálatas (3, 22) nos mostram que a universalidade do
pecado não é específica, mas estendida a todos os homens, encerrando de forma solidária a
origem pecaminosa da sua carne (sarx), não sendo entendida de forma dúbia como sendo de
significado físico, mas sim, aquilo que se contrapõe com o divino (I Co 1, 29).
Em Romanos, capítulo 5, versos de 12 a 21, Paulo expressa de maneira clara que
existe um poder dominador ou mesmo uma personificação para que o pecado tivesse entrado
no mundo. O pecado de Adão e a pecaminosidade universal e não os pessoais de seus
descendentes. Romanos (5, 12) diz: “Portanto, como por um homem entrou o pecado no
mundo, e pelo pecado a morte, assim também a morte passou a todos os homens por isso que
todos pecaram”.
Deu início o domínio da morte e da corrupção do gênero humano a partir da entrada
triunfal do pecado no mundo e acima de tudo pela inoperância da lei frente ao pecado, embora
não exclua a responsabilidade individual, a universalidade do pecado, porém, é de
responsabilidade de todos os homens, não se tratando de um exclusivismo pessoal, mas um
conjunto de tudo o que se refere ao ser humano.
50
4.3 O DUALISMO
É inegável a dualidade existente entre o ser antropos e o ser teocêntrico, muito
embora esta discussão seja muito antiga, da mística grega, a realidade nos mostra um
veredicto diferente. Apesar de demonstrar uma tendência focada no cosmos pelo poder que
satanás dá ao homem pecador (energeia), a visão teológica, diferente da visão
antropocêntrica, baseia-se acima de tudo na ética, muito embora este entendimento, não reflita
o verdadeiro sentido de uma doutrina que se centra no homem interior controlando o exterior,
ou seja, englobando não só o homem carnal, mas também o espiritual. Diferente da doutrina
judaica que encara o mal como pendor da natureza humana instituído por Deus, a concepção
paulina vê numa visão antropológica, o ser como uma expressão de fé em busca de uma
realidade material (carne) para o espiritual, partindo do pressuposto de que esta realidade
encontra-se, para o homem carnal, intangível e uma transformação da maneira de agir no ser
humano é o cerne da pregação de Paulo. Assim, o conceito de “viver segundo a carne” para o
apóstolo é estar inclusivamente exposto a ela. Como diz Gutbrod (1934, p.150): “[...] que o
pecado do homem consiste no fato de que ele não quer ser carne (no sentido de “homem de
fraquezas e transitoriedade”), não quer, desse modo, ser carne conforme esta lhe foi dada
como fundação de uma vida segundo a vontade de Deus”.
À medida que o homem torna-se espiritual a prefiguração de carnal deixa sua esfera
mais preeminente para se enxergar o que Paulo chama de “viver segundo o Espírito”. Essa
dualidade histórica, e ao mesmo tempo de redenção desse ser, implica na ameaça da morte
pela inimizade contra o seu próprio criador e é exatamente neste aspecto que a visão
antropológica deve ser compreendida, ou seja, sua verdadeira humanidade. A nova criatura
resgatada por Deus é o retorno à criação originalmente predisposta. O homem foi criado para
glorificá-lo e a rejeição a esta ideia o torna pecador (Rm 11, 36). Esta rejeição é confirmada
no aspecto que consiste na ruptura aos padrões dados por Deus em não querer viver sob Sua
dependência. E é justamente neste ponto que a visão antropológica sustenta-se na teologia
paulina, de que a vida do homem deve ter seu sentido pleno, bem como todas as suas
potencialidades em Deus, sendo Ele o dono e autor da vida. O pecado assim é definido como
a violação a todos os direitos proporcionados ao homem para um relacionamento correto com
Deus e a quebra destes parâmetros culminou em sua morte (Rm 1, 23; 5, 10; 8, 7; 7, 12;
11,32; Cl 1, 2; I Co 1, 19; Ef 2, 1-12) e fazendo da transgressão da lei sua sentença, não
tornando inescusável àqueles que a têm de forma natural como os judeus.
51
O fruto da indignação de Deus (tymos) como consequência desse afastamento, é
atribuído nas cartas de Paulo como uma revelação escatológica já no presente juntamente com
Sua justiça e fé, sendo esta justiça alcançada somente pela proclamação no evangelho,
tornando a redenção à vida possível de ser alcançada (Rm 9 e 11). Assim, a ira de Deus
permeia a designação de “filhos enxertados” como endurecimento por parte dos judeus e o
que o mesmo Deus não nos designou para a ira (I Ts 5, 9).
A alienação aos desígnios dados por Deus ao homem constitui na sua morte pela
corrupção, ou seja, o fim de uma vida no pecado e fora dos padrões de Cristo. O pecado é o
oposto à vida, é desta maneira o corpo do pecado, definido por Paulo aos Romanos, tornando
o homem escravo e prisioneiro, privando-o de sua liberdade oferecida pelo próprio Deus
(Rm 8, 12).
4.4 A CORRUPÇÃO DO CORPO E DA ALMA
A força cativa e dominante do homem exterior reverso ao homem interior (também
designado de coração, mente ou “nous”), é determinada no somā40 (corpo) no sentido de
“carne” (sarx)41, denotando o modo de vida desse homem exterior de forma contrária ao
homem interior. Embora pareçam iguais os termos corpo e carne são distintos no tocante ao
termo que os distinguem. Enquanto carne representa sua temporalidade e falibilidade, corpo
denota imagem e semelhança e que será glorificado (I Co 15, 44). Ridderbos (2004, p. 125)
define:
Por outro lado, é nesse “ser um corpo” que existe a possibilidade de distinção entre o
homem em si mesmo, entre o “eu” e o seu próprio “vir a ser” em assumir a forma de
um corpo que ocupa uma posição de independência em relação ao “eu”, que tem
seus próprios “desejos” e suas próprias “práticas”, que o “eu” deve fazer morrer [...].
É na harmonia do “eu” com o “corpo” que é revelada a unidade da existência
humana (“exterior” e “interior”), tanto no bem como no mal; por outro lado, é nessa
distinção entre o “eu” e o “corpo” que também existe a possibilidade de uma
discórdia interior na existência humana, como resultado em cores vívidas [...].
40
somā (ζωμα): é utilizado no Novo Testamento para designar tanto o cadáver (como em Homero) quanto o
corpo vivo do ser humano. Paulo [...] o utiliza muitas vezes como sinônimo de sarx. Contudo, o apóstolo faz
uma distinção significativa ao tratar da ressurreição. Aqui, sarx, à medida que significa o “homem velho”, é
chamada a desaparecer. O corpo, pelo contrário, é chamado à ressurreição (ROSA, 2010, p. 174).
41
sarx (δάπξ): “carne” é o equivalente grego para o basar hebraico. Tal como basar pode designar tanto o ser
humano inteiro, como parentesco ou comunidade (ROSA, 2010, p. 172).
52
Na busca de uma responsabilidade para o recebimento da discórdia que sensibiliza
tanto o homem interior quanto o exterior, interessante observar que Paulo em algumas
passagens, como em Romanos (1, 20; 14, 5), I Coríntios 10 e Colossenses (2, 18), dão um
sentido central ao que se pode denominar de entendimento ou nous42. Esta expressão
cognominativa do pensar, do agir e do retroceder no tocante ao homem interior, fazendo-o
pensar em adquirir um conjunto de tomada de decisões capaz de influenciar, motivar, julgar,
determinar, não é suficientemente capaz àquele que se deixa levar pelo “eu” (Rm 6, 12),
dando a entender que o corpo aqui não denota uma interdependência do ser material, mas
ambos interagem numa continuidade do ser que esse corpo pode se tornar por intermédio do
domínio do “eu”, sendo ambos de Deus. Assim nous pode caracterizar um bom senso entre o
ser e a magnitude divina da “paz que excede todo o entendimento” (Fp 4, 7).
No nivelamento da questão, tem-se que a conversão é o retrocesso do nous, ou seja, é
a mudança de entendimento com que o coração está intimamente ligado. Na rebelião moral
contra Deus o homem se distancia de suas características morais naturais e o quanto está
longe de seu verdadeiro sentido para o qual fora criado e da mais íntima revelação dada pelo
próprio Deus ao homem (Rm 2, 14). Assim, quando se omite no crepúsculo de sua honra,
reveste o coração à obscuridade e na junção com seu nous, faz-se perverso e vergonhoso
diante de Deus.
Para Paulo, não existe nenhuma ligação entre o conceito greco-helenista e o conceito
de aprisionamento da espiritualidade pelo corpo no pecado, contrastando assim com I
Coríntios capítulo 12, versículo 18. Não existe uma oposição de ideias entre o homem exterior
e o interior, mas uma inclinação natural para o mal e para o engodo do pecado, pois, sem o
auxílio do Espírito Santo, o homem é vulnerável num modelo de escravidão no qual o pecado
serve ao homem que lhe dá prazer. A predisposição para o bem se choca com a carne que lhe
é pertinente pelo pendor solidário da humanidade para o pecado.
O papel inverso que o pecado exerce na vida dos homens é comumente enfatizado
nas cartas de Paulo principalmente nas perícopes na carta aos Romanos, capítulo 6, versículo
6: “Sabendo isto, que o nosso homem velho foi com ele crucificado, para que o corpo do
pecado seja desfeito, para que não sirvamos mais ao pecado”. Interessante é a forma que o
apóstolo vê a questão do pecado como uma atitude coletiva, universal, pelo fato da
impossibilidade da humanidade de praticar o bem na discórdia entre o corpo e o ego numa
42
nous (νộςρ): “mente”, denota, falando em geral, o lugar da consciência reflexiva, compreendendo as
faculdades da percepção e entendimento, e do sentimento, julgamento e determinação (VINE, 2003, p. 784).
53
dessimetria casuística da solidariedade do pecado. A impotência do ego frente ao Espírito e a
impotência da lei no tocante à carne e sua concupiscência, relatada em Romanos, capítulo 7,
relembra a luta do homem interior e uma análise da visão antropológica do apóstolo. Ele vê a
questão do pecado como uma situação já resolvida, porém obscurecida pelo “eu”. Não se deve
esquecer que, para o judeu Paulo, a carta aos romanos tipifica a luta da lei contra as forças do
ego, interagindo de forma incisiva no período de transição entre o homem pré-cristão (regido
sob a lei) e o homem guiado pela fé.
Mais uma vez queremos retratar aqui, o que já fora mencionado no capítulo primeiro
a respeito da yetzer hará43 (seguir os próprios instintos) pertinentes da natureza humana. De
acordo com o Manual da Disciplina da comunidade de Qumram, retratado por Ridderbos
(2004, p. 139-140):
[...] segundo a doutrina judaica da pecaminosidade universal, pode ser encontrada na
ideia de dois espíritos, um de luz e outro de escuridão, ambos criados por Deus,
sendo que o homem encontra-se posicionado entre os dois e compelido a escolher
[...]. Em outras passagens, fala-se de um gérmen ou raiz do mal que deve ser
vencido pela lei.
Assim, para o judaísmo, a lei era o sustentáculo de toda a estrutura apropriada para se
vencer a yetzer hará existente no ser humano. Sobre esse álibi da lei que o apóstolo se
contrapõe diante da qual ela pode se tornar um caminho perfeito para se alcançar o bem, não
que este esteja traçando um duelo entre o judaísmo e sua doutrina, mas uma premissa de que a
lei é boa, justa, santa e perfeita (Rm 7, 12), porém seus princípios são insuficientes para se
alcançar a salvação por meio dela. Logo, para Paulo, a lei tornou-se um caminho para que o
homem alcançasse plenamente a salvação por mediação de Cristo na sua morte e ressurreição
(Rm 7, 25), pela sua justificação por meio da fé.
43
yetzer hará: inclinação para o mal. Era a motivação maligna ou inclinação pecaminosa inerente à raça [...] Há
menos diferenças de opinião acerca do lugar da yetzer, isto é, no coração ou no interior. É, na pior das hipóteses,
um incentivo dinâmico e poderoso para o pecado. Embora seja possível resistir-lhe com sucesso, quando o
indivíduo se rende às imposições da yetzer, descobre que o poder do mal cresce como uma correnteza. Uma
opinião rabínica citada no Talmude (doutrina e jurisprudência da lei mosaica, com explicações dos textos
jurídicos do Pentateuco – Aurélio) sustentava que “satanás, a yetzer má e o anjo da morte” eram a mesma coisa.
Não se pode afirmar nada de conclusivo a partir de uma declaração dessas. É suficiente ver uma forte relação
entre a yetzer e satanás como a fonte da tentação, que, por sua vez, produz a morte (identificada como o anjo da
morte) para aqueles que sucumbem diante de suas exigências. O antídoto para a inclinação maligna é a lei. Por
essa razão, nos escritos rabínicos, há um intercâmbio constante entre a yetzer hatob (a boa inclinação) e a Torá.
A luta pelo controle do indivíduo é travada no coração. A personificação da yetzer hará como um todo é
utilizada pelo rabino Judá como uma figura para predizer que o indivíduo estará livre das tentações na era
vindoura. No porvir, Deus trará o impulso mau e o matará na presença dos justos e dos perversos. Os rabinos
sustentavam um ponto de vista modificado da queda, apegando-se à doutrina da yetzer hará, porque ela não
negava a liberdade da vontade humana nem afetava o valor do arrependimento. A teologia popular sustentava
com menos antipatia um ponto de vista de que os descendentes de Adão tinham, de fato, herdado certos efeitos e
consequências da primeira transgressão (SHEDD, 1995, p. 81 e 87-88).
54
O Teor da morte e ressurreição de Cristo não se satisfaz na lei no tocante à
justificação concebida por Ele na cruz do calvário descrita por Paulo aos Filipenses, capítulo
3, versículos de 6 a 14, compreendendo a declaração do apóstolo quanto ao seu ponto de vista
com relação à lei:
Segundo o zelo, perseguidor da igreja, segundo a justiça que há na lei,
irrepreensível. Mas o que para mim era ganho reputei-o perda por Cristo. E, na
verdade, tenho também por perda todas as coisas, pela excelência do conhecimento
de Cristo Jesus, meu Senhor; pelo qual sofri a perda de todas estas coisas, e as
considero como escória, para que possa ganhar a Cristo. E seja achado nele, não
tendo a minha justiça que vem da lei, mas a que vem pela fé em Cristo, a saber, a
justiça que vem de Deus pela fé. Para conhecê-lo, e à virtude da sua ressurreição, e à
comunicação de suas aflições, sendo feito conforme a sua morte. Para ver se de
alguma maneira posso chegar à ressurreição dentre os mortos. Não que já a tenha
alcançado, ou que seja perfeito; mas prossigo para alcançar aquilo para o que fui
também preso por Cristo Jesus. Irmãos, quanto a mim, não julgo que o haja
alcançado; mas uma coisa faço, e é que, esquecendo-me das coisas que atrás ficam, e
avançando para as que estão diante de mim, prossigo para o alvo, pelo prêmio da
soberana vocação de Deus em Cristo Jesus.
Em Gálatas, capítulo 2, versículo 21, prossegue: “se a justiça é mediante a lei, seguese que morreu Cristo em vão”. Paulo, assim, prefigura a justificação pela lei insustentável
quanto aos parâmetros da reconciliação ampliados na morte vicária de Cristo a toda a
humanidade. O caráter da pregação de Paulo se mantém fiel aos desígnios de que a
intervenção humana para a questão do pecado é totalmente intolerável pela intenção do
homem manter-se fiel pelos seus próprios méritos. Voltamos a destacar que na doutrina do
Zacut Abot (doutrina rabínica da aplicação coletiva do mérito dos pais derivado de que, em
Abraão, toda uma nação fora respaldada pelo mérito de seu “pai” na fé e, consequentemente,
das gerações vindouras), caracteriza o conceito de uma raiz genealógica gloriar-se no que ele
determina de “jactância” (Rm 2, 23), aniquilando assim o pressuposto do reconhecimento
genuíno da justificação. No seu tropeço na lei, Israel não vislumbrou a excelência do caráter
divino em estender-se ao homem por meio de Cristo, mas sim, na sua lei, contrastando com a
doutrina judaica da salvação por seus próprios méritos tornando-o pecaminoso por natureza.
O sentimento que a lei provoca no homem, de despertamento do pecado, pode ser
entendido como um senso antropológico na visão paulina para o conflito entre o velho e o
novo homem. Porém, se a lei provoca a catáfase do mal, insurge uma aliança assombrosa
entre a lei e o pecado: “O qual nos fez também capazes de ser ministros de um novo
testamento, não da letra, mas do espírito; porque a letra mata e o espírito vivifica” (II Co 3, 6).
55
Portanto, a ideia primária de um conceito para lei e pecado é de aprisionamento e
senhorio do homem sendo consistente e, portanto, valho de consideração a premissa segundo
também afirma em Gálatas, capítulo 3, verso 24, sob a hostilidade da lei: “De modo que a lei
se tornou nosso aio, para nos conduzir a Cristo, a fim de que pela fé fôssemos justificados.
Mas, depois que veio a fé, já não estamos debaixo de aio. Pois todos sois filhos de Deus pela
fé em Cristo Jesus”.
O duplo sentido da lei é, ao mesmo tempo, um contrassenso estimulável para o
pecado e também categoricamente soberano quanto aos propósitos divinos, pelo fato de ser a
lei, uma criação divina. A consistência considerável da lei pelo apóstolo consiste no fato da
promessa de redenção em Cristo e a questão da nomística usual da lei, empreendida pelos
legalistas da sinagoga com o intuito de fomentar a antiga aliança dada por Moisés, extrapola o
veredicto dado pelo próprio profeta em justificar-se pela lei no sentido literal de contrapor-se
ao erro, sendo que, obedecendo-a, tornar-se-iam observadores da lei e de seus preceitos
justificadores e, portanto, sem fundamento. Sendo assim, a lei serviu de estímulo para o
pecado, sem a qual não conheceríamos a justificação plena de Cristo e seu caráter remissivo.
56
5 OS SACRAMENTOS NO PENSAMENTO DE PAULO
Paulo herdou um pensamento de que a água e o espírito assumiam um caráter não
tipicamente casuístico, mas somático no aspecto realístico da genuína salvação, enquanto o
batismo e a ceia interferem drasticamente no aspecto comunitário cristão e envolvem toda
uma estrutura solidária no corpo de Cristo.
5.1 O BATISMO
Anteriormente, o batismo envolvia lavagem ou purificação (I Co 6, 11; At 22, 16; Ap
22, 14; Hb 10, 22). Não era a retirada da imundícia da carne, mas a indagação de uma boa
consciência (I Pe 3, 21). Acompanhando essa lavagem, havia o perdão dos pecados (At 2, 38).
O batismo também significava a dádiva do Espírito. “Pois por um só Espírito fomos todos nós
batizados” (I Co 12, 13). Em Atos, a dádiva do Espírito é separada do batismo (At 8, 12; 10,
47), mas de acordo com a perspectiva usual, os dois acontecem juntos. Isso significava um
novo nascimento. Sabemos que é impossível a pessoa ver o reino de Deus a menos que nasça
da água e do Espírito (Jo 3, 5). O batismo é, portanto, uma lavagem de regeneração (Tt 3, 5-7)
que traz iluminação (Hb 6, 4; 10, 32). Além disso, o batismo podia envolver o ato de
“revestir-se de Cristo” ou morrer e ressuscitar com Cristo (Gl 3, 27; Cl 2, 12; Rm 6, 4-6)
(CRAIG apud SHEDD, 1995, p. 174)
Sendo por intermédio de João Batista a célere frase proferida de forma clássica por
Jesus: “Deixa por agora, porque assim nos convém cumprir toda a justiça. Então ele o
permitiu”, não é de se estranhar que com o advento do Espírito, os cristãos se mantiveram na
crença, porém de forma menos disseminada. O sentido de batismo para Paulo consiste um
teor mais convicto de quando se inicia a vida com Cristo, enfatizando o aspecto da morte e
ressurreição para a vida. A sujeição ao Espírito em resposta à fé era uma dádiva consistente
do batismo na absolvição da escravidão trazida pelo pecado. Paulo, que antes de sua
conversão trazia as marcas de ser dominado pela lei, incorpora agora um novo sentido
determinante da graça pela liberdade e comunhão no Espírito trazidos pelo batismo (Rm 6, 14). Essa liberdade agora é vivida na carne, embora ela ainda esteja aprisionada pelo pecado
(Rm 7, 24).
57
Esta nova ordem é transmitida aos crentes no intuito de fazer-lhes capazes de
vencerem sua condição pecaminosa e miserável trazida pela lei e ao mesmo tempo serem
incluídos em Cristo, mas por certo, não por uma condição obsoleta e meramente adicional ao
convertido, mas a consciência de que foram batizados “em o nome do Senhor Jesus e
receberam o Espírito da promessa” (Ef 1, 13).
A ideia era de um sepultamento para o velho homem e um ressurgimento mediante a
fé dentre os mortos. Paulo aqui rechaça a questão de que os homens sem o conhecimento da
verdade, que é Cristo, estão mortos em seus delitos (Ef 2, 1), ao vislumbrar a ressurreição
como uma experiência real na vida de Cristo, o qual Deus o ressuscitou dentre os mortos (Cl
2, 12). Efésios, capítulo 5, versículo 25 diz: “Vós, maridos, amai a vossas mulheres, como
também Cristo amou a igreja, e a si mesmo se entregou por ela, a fim de a santificar, tendo-a
purificado com a lavagem da água, pela palavra”. A expressão presente em Efésios refere-se
ao termo casual da expressiva fé ocasionada pela determinação proferida por todos àqueles
que confessam a Jesus Cristo como Senhor de suas vidas na ocasião da sua entrega pela
igreja, sendo a purificação um sinônimo ocasionado pela redenção originada pela palavra.
Assim, o apóstolo Paulo deixou um legado de conduta perfeitamente imbuído de um
segmento temático do que o batismo representa para a igreja no mais amplo sentido da
expressão, englobando tanto um sentido veterotestamentário quanto uma realidade presente na
nova dispensação.
5.2 A CEIA
A carta de I Coríntios, capítulo 11, versículo 23, afirma:
Porque eu recebi do SENHOR o que também vos ensinei: que o Senhor Jesus, na
noite em que foi traído, tomou o pão; e, tendo dado graças, o partiu e disse: tomai,
comei; isto é o meu corpo que é partido por vós; fazei isto em memória de mim.
Semelhantemente também, depois de cear, tomou o cálice, dizendo: Este cálice é o
novo testamento no meu sangue; fazei isto, todas as vezes que beberdes, em
memória de mim. Porque todas as vezes que comerdes este pão e beberdes este
cálice anunciais a morte do Senhor, até que venha. Portanto, qualquer que comer
este pão, ou beber o cálice do Senhor indignamente, será culpado do corpo e do
sangue do Senhor. Examine-se, pois, o homem a si mesmo, e assim coma deste pão
e beba deste cálice. Porque o que come e bebe indignamente, come e bebe para sua
própria condenação, não discernindo o corpo do SENHOR.
58
Assim como no batismo, o sentimento de comunidade é observado quanto ao
costume “na noite trágica da traição”. Pelo fato de “fazei isto em memória de mim”,
representar dentro do cenário eclesiástico a sua ênfase à comunhão (Koinonia)44 conceituando
o pão como o corpo de Cristo e sua coletividade.
Corolário ao paganismo enfrentado pela igreja de Corinto, o apóstolo demonstra com
sutileza e especificidade as divisões sugeridas pelo cálice do Senhor, no tocante ao cálice da
benção45 e o cálice demoníaco dando ênfase às divindades pagãs. O elo existente também no
pão traduz uma uniformidade não meramente simbólica, mas real, absoluta na prática e não
somente à mesa. A indignação é pressuposto de uma consciência cauterizada pelo
conformismo secular e fútil de seus deveres dentro desse corpo institucional que é senão o
próprio corpo de Cristo.
O simples fato de comer ou beber indignamente é favorável para o absoluto descaso
e desprezo relacionados a esse corpo que foi santificado em sua morte vicária destituído de
glória para que, em glória, fôssemos transformados em um corpo sem mácula (Ef 5, 27). Uma
resposta ao sincronismo desse corologismo, ou seja, uma distribuição perfeita desse corpo que
foi moído pelas nossas transgressões, é o sustento de cada um dos órgãos que o compõem
tornando-o sadio e perfeitamente compreensível numa dinâmica enlaçada pelo Espírito. O que
na verdade deve ocorrer nas insatisfações pelo sentimento de cólera ou de ira, remonta-nos à
lembrança de que, tentar dissolver esse corpo, é torná-lo disforme e que a disjunção dos
órgãos é indissolúvel.
Paulo ainda relembra-nos que tanto a incorporação dada pelo batismo quanto à ceia
são sinônimos de que a vida em comum dos crentes que fazem parte do corpo de Cristo deve
ser preservada, ou seja, não é algo solitário, envolvido no individualismo, mas sim, solidário,
no mais amplo conceito ético e pautado na abrangência da vida de Cristo enquanto aqui na
terra. “Pois todos nós fomos batizados em um Espírito, formando um corpo, quer judeus, quer
gregos, quer servos, quer livres, e todos temos bebido de um Espírito” (I Co 12, 13).
44
koinonia (коινωία): “tendo em comum” (koinos), sociedade, companheirismo (VINE, 2003, p. 485).
Cálice da benção: expressão comum no judaísmo para o cálice de vinho tomado no fim de uma refeição, talvez
porque era o sinal para dar graças após comer. A benção dita sobre o cálice expressa a gratidão a Deus (o verbo
em I Co 10, 16 é eulogéo, sinônimo de euxaristéo usado em 11, 24). No costume judaico ela tomou esta forma:
“Bendito és, Senhor nosso Deus, Rei do universo, que criaste o fruto da videira”; a benção eucarística pode ter
recebido um conteúdo mais explicitamente cristão, como: “Damos-te graças, nosso Pai, pela videira santa do teu
servo Davi, que nos tornaste conhecida por meio do teu servo Jesus; a ti seja a glória para sempre” (Didaquê 9,2)
(BRUCE, 2003, p. 278).
45
59
Assim sendo, “a ardente expectação da criatura que aguarda a manifestação dos
filhos de Deus”, citado em Romanos, capítulo 8, verso 19, possui uma característica muito
mais ampla para o apóstolo Paulo na divisão do corpo pelos seus atos subsequentes ao novo
renascimento proporcionado pelo batismo e consequentemente, pela comunhão que este corpo
irá influenciar numa cosmovisão realística. Mesmo que a aliança judaica postule-se em três
pontos fundamentais baseados na circuncisão, no batismo e no sacrifício, (embora não nos
forneça uma postulação convincente), demonstra um grau meramente simbólico quanto ao
aspecto participativo ou puramente semítico, sendo o teor da aliança o que é promovida pela
fé e na justificação em Cristo.
Nele, habita toda a essência da representatividade divina em favor da raça humana,
na qual em Sua magnitude e soteriologia favorecida por Deus, Jesus, empenhou-se e se fez
também homem por nós, para alcançar, incorporando em sua forma humana, todo um
contexto de solidariedade espiritual para a humanidade. Assim, Deus em seu filho, Jesus
Cristo, homem, uniu através da aliança do Espírito, toda uma sociedade decaída pelo pecado,
voltando às origens quanto ao enredo criado por Deus para o ser humano em seu plano
salvífico. Conforme afirma Barth (1999, p. 517):
Quanto mais fiel a igreja for à verdade evangélica, mais alto ela falará do NÃO
divino e mais claramente apontará à luz da renúncia, do sofrimento, da vergonha, da
dor e da aflição; mais fortemente proclamará a absoluta necessidade de homem
perder a sua vida para ganhá-la. Tal igreja não apoiará o povo, antes o despertará, o
sacudirá, até que cada um clame “Deus meu, Deus meu!”.
60
6 A SOLIDARIEDADE DA IGREJA
“A igreja precisa apresentar Cristo através de suas próprias vidas, tornando-se a
resposta de suas próprias orações”.
Projeto AME
6.1 O CONCEITO BÍBLICO
Romanos, capítulo 8, versículos de 17 a 22 diz:
E, se nós somos filhos, somos logo herdeiros também, herdeiros de Deus, e coherdeiros de Cristo: se é certo que com ele padecemos, para que também com ele
sejamos glorificados. Porque para mim tenho por certo que as aflições deste tempo
presente não são para comparar com a glória que em nós há de ser revelada. Porque
a ardente expectação da criatura espera a manifestação dos filhos de Deus. Porque a
criação ficou sujeita à vaidade, não por sua vontade, mas por causa do que a
sujeitou. Na esperança de que também a mesma criatura será libertada da servidão
da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus. Porque sabemos que
toda a criação geme e está juntamente com dores de parto até agora.
O conceito da origem da solidariedade na raça humana, suas consequências com a
questão da maldade e do pecado que permeia e enrijece a coletividade na sua amplitude e no
sentido mais lato da expressão e uma visão panorâmica do sentido Paulino do termo, que
sugere uma reflexão quanto aos costumes da lei judaica e uma nova realidade em Cristo no
aspecto remissivo da reconciliação de toda a humanidade que se fez Nele a compensação de
seus pecados e injúrias. O texto do apóstolo Paulo aos romanos submete-nos a uma nova
reflexão baseada em: “a criação geme [...]”, e ainda, “[...] a expectação da criatura que espera
a manifestação dos filhos de Deus [...]”. Considerando todo um contexto político-econômico e
acima de tudo, estudando-se o comportamento humanístico de uma nova realidade, perguntase: a igreja precisa experimentar o Kairós46 de Deus? Neste novo cenário atual, qual o
46
kairós (καιπόρ): primariamente, “medida de tempo, proporção devida”, quando usado acerca de “tempo”
oportuno ou apropriado (por exemplo, Rm 5, 6, “a seu tempo”; Gl 6, 10, “tempo”). Em Marcos (10, 30), neste
“tempo”, e Lucas (18, 30), “neste mundo” (kairós), ou seja, nesta vida, é oposto em contraste com “a era
vindoura”. Em I Tessalonicenses (5, 1), na frase “dos tempos e das estações”, o termo “tempos” (chronos)
refere-se à duração do intervalo anterior à parousia de Cristo e à duração que o “tempo” ocupará como também
outros períodos.
61
capítulo que a igreja irá escrever para a nova sociedade em declínio? Qual a resposta da igreja
diante das catástrofes: o que a igreja pode e deve fazer? Será que tudo que está perfeitamente
ajustado é sinal de que tudo vai bem? A igreja precisa por meio de suas próprias vidas tornarse a resposta de suas próprias orações.
De 11 de Agosto a 10 de Setembro, 1,5 bilhões de pessoas envolvem-se em uma das
principais festas religiosas praticadas pelos muçulmanos: o jejum do Ramadã. Um período no
qual os muçulmanos se concentram na sua fé sem perder tempo com suas preocupações
cotidianas, não só baseado na abstinência de comida e água, mais do que isso: é a intenção
(niyyah) que faz toda a diferença, ou seja, é o desenvolvimento espiritual do praticante para
achegar mais perto de Deus. Durante todo o dia, ao pôr do sol, o jejum é finalizado com uma
oração para que não se transforme em um ritual vazio e sem expressão. A racionalização, a
obsessão, delimita a compreensão poética do homem ao seu redor. A autonomia da ciência
gerou um conformismo pelo diálogo, de resoluções menos interativas para a humanidade,
capaz de desprender o homem do seu habitat natural enquanto ser humano. A impressão que
datamos em nossos relacionamentos precisa ser cognitiva para gerações futuras, capaz de
aludir nossa imagem, nossa cultura e hábitos na construção de uma sociedade ainda melhor.
Necessário se faz descortinar os valores de uma ciência ambígua e hierarquizada, metódica.
Ao escrever uma história, o homem planta na terra suas raízes e seus frutos que, muitas vezes,
são medo, discórdia, rancor e mágoa e é capaz de se perguntar a si mesmo: o que eu fiz de
errado? As inconsequências são o reflexo de incertezas dos atributos delineativos da razão.
Carvalho et al. (1998, p. 32) retrata a questão da razão e da ética quando afirma que:
“Vivemos um tempo de contradições. Se por um lado a técnica e as ciências produziram
desenvolvimentos notáveis neste século, vive-se uma profunda crise ética. Faz-se necessária
uma conjugação orgânica entre verdade, liberdade individual e justiça social.”
A magnitude do amor, da graça e da ternura, são pressupostos da ética, da prudência,
da tolerância e de uma vida livre da falta de superficialidade que é incoerente. É possível
transformar a ética numa estética de vida, desde que entendamos vida e pensamento como um
coletivo entre homens e coisas, conforme expressão de coisas. A ideia da ética como estética
da vida pressupõe, entre outras coisas, entender o homem como uma matéria desejante, o
único ser que sonha acordado e é capaz de construir, não o melhor dos mundos, mas um
mundo melhor (CARVALHO et al. 1998).
62
E o que seria então uma ética da prudência? Limita-se à transferência para o
insucesso eclético do construtivismo social, da liberdade de escolha e da justiça? Deveu-se o
fato de uma heterogênea classificação demonizada dos efeitos gnósticos 47 no cristianismo e
sua discordância com o mundo criado, suas excentricidades, que delimitavam pagãos e
ascetas devotos a Roma ortodoxa?
A centralização da doutrina e os seus conteúdos no período pós-reforma levaram
inúmeras igrejas a lutar para se manterem firmes diante da disputa pela fé, pela doutrina, pela
ortodoxia. Uma prévia de que a igreja preocupava-se com a “doutrina correta” esquecendo-se
da primazia da fé, envolvendo-se numa religiosidade caótica e enclausurada. Isto a reforma
não fez: trazer a escusa seu verdadeiro significado, sua identidade, sua ética. Até meados do
século XVIII surge o pietismo aspirando uma tentativa de santificação, ressaltando uma
renovação de pensamento, das ideias do iluminismo em que o forte é a edificação, numa
práxis da vida no tocante a sua conduta diária que agradasse a Deus, ou seja, a sua
santificação.
A mais absoluta realidade construtivista do século XXI reside não só à ciência, mas
ao relacionamento incrédulo entre as pessoas na sociedade. Falta-lhes o intuito da exuberância
do ser participativo para a excentricidade do ser. Segundo Schütz (apud BOSCH, 2002, p.22):
Assim, ele conclama a igreja a voltar do campo de missão, onde ela não proclamava
o evangelho. E sim o individualismo e os valores do Ocidente, e tornar-se o que ela
não era, mas deveria ser: Igreja de Jesus Cristo em meio aos povos da terra. “Intra
muros!” [“para dentro dos muros!”], bradou ele, “o resultado é determinado pelo que
acontece dentro da igreja, não fora, no campo de missão”.
Não há o que se falar em relativismo ético, ou mesmo interação de ideais culturais,
normatização de filosofia denominacional ou mesmo dogmas. A realidade é atual e mesmo
que não se perceba, a igreja precisa voltar-se ao termo da sua originalidade, ou seja, ser o
qāhāl48 de Deus na missão de reunir a sua ekklēsia49.
Ao que se percebe, vivem-se dias de tensão social promovida pelo capitalismo
exacerbado. Weber (1980, p. 199) considera a seguinte proposição:
47
Gnósticos: tentativa de explicar Cristo em termos da filosofia pagã ou a “teosofia” (BETTENSON, 2001,
p.59).
48
qāhāl: “assembleia, companhia.” Em muitos contextos, a palavra significa uma assembleia reunida para
planejar ou executar guerra. Com bastante frequência, qāhāl é usado para denotar um ajuntamento com o
propósito de julgar ou deliberar (VINE, 2003, p. 47).
49
ekklēsia (εκκληζία): formado de ek, “para fora de”, e klesis, “chamado”, referindo-se para os gregos com o
intuito de discutir os assuntos do estado (VINE, 2003, p. 419).
63
Estes, porém, são fenômenos de uma época em que o capitalismo moderno tornou-se
dominante e emancipou-se de seus antigos suportes. Mas assim como, era certa
época, somente lhe foi possível destruir as velhas formas de regulamentação
medieval de vida econômica aliando-se ao crescente poder do Estado moderno,
poder-se-á dizer, provisoriamente que o mesmo pode ter-se dado quanto às suas
relações com as forças religiosas. [...] Porque é quase desnecessário provar que a
concepção de ganhar dinheiro como um fim em si, à qual as pessoas estiveram
ligadas, como uma vocação, foi contrária aos sentimentos éticos de épocas inteiras.
A igreja está inserida num contexto social, político e econômico, mas sua essência
deve sempre vislumbrar para o social. A polemitização de suas raízes de fins religiosos,
alternando para a concretização de “castelos ecléticos”, viçosos pela sua exuberante
ostentação, não é incólume aos vícios remanescentes da religiosidade frívola e decadente e até
mesmo, com gestos bargantes. Conforme Weber (1980, p. 200):
[...] a verdade é que a igreja só veio a reconsiderar a proibição do juro relativamente
tarde. No tempo em que isso ocorreu, as formas de investimento puramente
comercial não eram empréstimos a juros fixos, mas a faenus nauticum, a commenda,
a societas maris, e o dare ad proficuum de mari (um empréstimo no qual as partes
de lucro e perda eram ajustadas de acordo com o risco [...].
Christoph Schneider-Harpperecht (2005, p. 277) salienta: “A comunidade deve
cuidar para não ser explorada por um christemporos, isto é, uma pessoa que faz da fé cristã
um negócio”. Erickson (1997) diz que em contrapartida, o caráter específico da igreja, qual
seja, a evangelização, a edificação, a adoração e a preocupação social, não coadunam com as
práticas religiosas sustentadas pela maioria das igrejas brasileiras. O apoio financeiro do
Apóstolo Paulo, por exemplo, vinha das igrejas por ele evangelizadas, era o sustento que o
ajudava em suas missões num ato de amor e generosidade50 (Fp 4, 16). O aspecto financeiro
não é assunto excluso da igreja, mas deve e precisa ser discutido de forma elucidativa e
prática, capaz de emancipar projetos caracteristicamente sociais. Conforme afirma Sérgio
Torres (apud BOSCH, 2002, p. 506): “Este „novo mundo‟ é tipicamente uma nova práxis da
50
Não obstante o que ele diz sobre esse princípio espiritual básico da dependência de Deus, Paulo quer assegurar
que muito apreciou a generosidade dos filipenses. Ela o sustentou na sua tribulação. Ele fala do tempo do “início
do evangelho”. [...] Paulo havia saído da Macedônia onde ficava a cidade de Filipos e ido para Tessalônica (At
17,1). Enquanto lá, os cristãos filipenses mandaram-lhe ajuda não somente uma vez, mas duas. Repare que Paulo
também fala da parceria que havia entre ele e os cristãos de Filipos, mencionando que eles estavam associados
no tocante a dar e receber. Uma parceria verdadeira precisa funcionar nos dois sentidos (CARSON, 2009, p.
1892).
64
igreja, uma nova filosofia de vida, de forma que venha influenciar e não ser influenciada, uma
ruptura epistemológica tradicional e um envolvimento com a epistemologia emergente”51.
A resposta encontra-se numa ortopráxis e não numa ortodoxia, conforme explica
Lamb (apud BOSCH, 2002, p. 507):
[...] objetiva transformar a história humana, redimindo-a mediante um conhecimento
nascido de um amor capacitador do sujeito e doador de vida, que acaba com os
preconceitos que, desnecessariamente, vitimam milhões de nossos irmãos e irmãs.
Vox victimarum vox Dei. Os clamores das vítimas são a voz de Deus. Na medida em
que não se ouvem esses clamores devido a nossas celebrações ou contendas
políticas, culturais, econômicas, sociais e eclesiais, já iniciamos um descendo ao
inferno.
Samuel Rayan (apud BOSCH, 2002, p. 508) acrescenta: “Em nossa metodologia,
prática e teoria, ação e reflexão, discussão e oração, movimento e silêncio, análise social e
hermenêutica religiosa, engajamento e contemplação constituem um único processo”.
O caminho da igreja não é outro senão adaptar sua metodologia de projetos
sociorreligiosos e canalizá-los para uma assistência social concisa do local no qual está
inserida, tendo em vista o Reino de Deus. Esta prática deve vir acompanhada de uma
contemplação menos favorecida de si mesma, ou seja, capaz de enxergar as necessidades do
reino antes das suas próprias. A igreja, aos “olhos de Deus”, é bem diferente quando perfilam
os mesmos ideais, quando seus líderes inspiram e suscitam na igreja, o que realmente
significa “corpo de Cristo”, pois quando se têm uma noção específica de corpo, sabe-se da
importância deste na sociedade. Ridderbos (2004, p. 415) esclarece:
Em Romanos 12.3ss os crentes são admoestados sobre o fato de que todos devem
saber qual é o seu lugar na igreja como um todo, e isso é explicado com o uso da
imagem do corpo, no qual há muitos membros, mas cada membro tem uma função
diferente. É desse modo, também que a igreja deve ver-se: nós, como muitos, somos
um corpo em Cristo, mas individualmente somos membros uns dos outros (v.5). O
que vem em seguida mostra que os crentes devem portar-se de acordo com essa
regra , estando cada um contente com seu próprio dom e sendo útil por meio dele.
Tal informação não é explícita quando não se tem a noção de organismo52, de
partilha, do real sentido de corpo. A irmandade necessita expor suas características no corpo e
51
A verdadeira ruptura, nesse sentido, veio com as teologias do Terceiro Mundo, em suas diversas formas. Esse
evento foi visto como fundamental, que [...] o designou como a “libertação da teologia”. A teologia contextual
representa, efetivamente, uma mudança paradigmática no pensamento teológico (cf. FROSTIN, 1988, p. 1-26
apud BOSCH, 2002, p. 506).
52
O professor L. Cerfaux liderou a concepção seguido por outros autores católicos como P. Benoit, W.
Goossens, J. Havet, entre outros. De acordo com Cerfaux, em Paulo ocorreu um desenvolvimento com relação à
igreja como corpo de Cristo. O ponto de partida é a comparação, tomada emprestada do pensamento grego, da
igreja com o corpo, sendo que os membros encontram-se numa relação orgânica entre si (1 Co 12; Rm 12).
65
fora dele, conforme elucida Hopwood (apud SHEDD, 1995, p. 126): [...] Ao adotar ekklesia
ou seu equivalente aramaico para se designar, a comunidade primitiva demonstrou que estava
consciente de que pertencia virtualmente à “ekklesia”53 mais antiga, Israel, o povo escolhido;
estava cônscia de sua solidariedade social com o povo de Deus.
Esta solidariedade da igreja não se trata de um fato isolado, mas de um membro
representativo do todo, conforme explica Hort (apud SHEDD 1995, p. 131):
É claro que em sentido restrito, as palavras dizem respeito apenas a única ekklesia
cristã universal: mas aqui (At 20.28) são aplicadas a encarregados de pastorear. Nas
Epístolas encontraremos uma atribuição similar dos elevados atributos da ekklesia
universal a partir dela. [...] Esses atributos não lhe poderiam ser atribuídos como se
ela fosse totalmente independente e como se fosse uma sociedade isolada: eles só
lhe pertencem porque ela é membro representativo do grande todo.
Assim, a solidariedade participativa da igreja e seus atributos como povo da aliança,
influenciam também no tocante aos méritos, castigos, eleição, santidade que são passíveis de
aplicação na igreja atual, reestruturados na nova realidade de Cristo e pela participação do
Espírito Santo, ativos no corpo de Cristo, como acrescenta Shedd (1995, p. 132 e 147):
Desse modo, entende-se que os atributos de castigo transferíveis, representação real,
substituição vicária e assim por diante podem ser aplicados à igreja como mesmo
rigor com que foram aplicados a Israel. [...] Por essa razão, estar “em Cristo” é, para
Paulo, uma fórmula que expressa a solidariedade entre Cristo e os membros da
comunidade. Ela transmite certeza de “vida” no presente (Ef 2.1-10; cf. Rm 6.5-11;
Gl 3.27) e no futuro (1 Co 15.22, 50-57; 1 Ts 4.13-17). É nesse sentido que Paulo
declara que o propósito e a graça de Deus foram manifestados em Cristo Jesus, “o
qual não só destruiu a morte, como trouxe à luz a vida e a imortalidade, mediante o
evangelho” (2 Tm 1.10). [...] Em Cristo, o fiel também foi feito “justiça de Deus”
[...] A característica determinante da raça adâmica – o pecado – foi substituída na
nova raça mediante a solidariedade com seu cabeça, que é justo. “Agora, pois, já
nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus. Porque a lei do Espírito
da vida em Cristo Jesus te livrou do pecado e da morte” (Rm 8.1), exulta o apóstolo.
Esse é o “dom gracioso” que “superabunda” ao tomar o lugar da influência
destrutiva que o pecado de Adão tem sobre a natureza da raça.
Naturalmente, porém, nos escritos de Paulo essa expressão “tornou-se mais envolvida”. Uma vez que Paulo
infere a unidade da igreja a partir da eucaristia, isto é, de possuir uma participação comum no pão como corpo de
Cristo (I Co 10), num determinado momento ele combina esse corpo de Cristo com “o corpo” da símile grega a
fim de, subsequentemente, substituir o primeiro pelo segundo: o corpo único da expressão helenista denota o seu
“corpo real e pessoal”. Consequentemente, esse corpo, no sentido literal, é a fonte e o ponto central de unidade
no mundo cristão: “Identificados com esse corpo, eles são um. Entre eles, todos são „um‟ por meio da referência
a corpo de Cristo”.
53
ekklesia ('εκκληζία): é traduzido em Hebreus (2, 12) por “congregação”, em vez da tradução habitual – igreja
(VINE, 2003, p. 493).
66
6.2 A DIACONIA DA IGREJA
Uma das características de uma igreja solidária reside no aspecto do serviço. Não
comumente observado em nossos dias atuais, a igreja foi instituída por Jesus para o servir (Lc
8, 3; Mt 25, 44). Em um sentido mais amplo, a palavra diaconia54 refere-se a servir às mesas,
espelhando-se em Jesus na última ceia, apresentando assim como Àquele que serve lavando
os pés dos discípulos (Jo 13). A diaconia, segundo Schneider-Harpperecht (2005, p. 272),
pode ser definida de três compreensões diferentes:
A primeira é a ação social a partir de uma motivação cristã. Movimento diaconal
nascido na Alemanha no século XIX, que tem uma característica pertinente à área da Teologia
prática, ligada à ética social e à responsabilidade sociopolítica da igreja, ou seja uma
responsabilidade coletiva ou individual, como expressão de obediência e fé.
A segunda é a forma específica do ministério eclesiástico. Na igreja católica pósvaticano II há iniciativas para introduzir o “diaconato permanente”. Dentro desta proposta,
porém, o diaconato é visto como um ministério subordinado, e na prática, continua sendo o
primeiro degrau na hierarquia. No movimento ecumênico também há vozes fortes em favor
do restabelecimento do diaconato. Nesta compreensão, a diaconia não é mais situada na
atuação social da igreja, mas em sua forma estrutural e principalmente ligada à teologia do
ministério.
E, finalmente, a terceira é o princípio fundamental da igreja. Nesta linha de
compreensão, a diaconia faz parte da reflexão sistemático-teológica como dimensão essencial
da própria natureza da igreja. A este fundamento eclesiológico 55, alguns acrescentam o
cristológico56. Aqui o estudo da diaconia é visto como um exercício interdisciplinar, pois,
além do seu desdobramento na área sistemático-histórica, existe também uma elaboração das
raízes bíblicas, uma ligação imprescindível para prática social da igreja.
54
Diaconia ou diácono (διάκονορ) – denota primariamente “criado”, que quer dizer aquele que faz trabalhos
servis, ou o ajudante que presta serviços voluntários, sem referência particular ao seu caráter. A palavra está
provavelmente relacionada com o verbo diõkõ, “apressar-se após, perseguir” (talvez dito originalmente acerca de
um corredor). O termo diakonos deve, falando de um modo geral, ser distinguido do termo doulos, “servo,
escravo”; o termo diakonos encara o servo em relação ao seu trabalho; o termo doulos o vê em relação ao seu
mestre.
55
Etimologia da palavra “Eclesiologia”: (εκκληζία) “ekklesia” = igreja + “logia” = estudo. Eclesiologia: um
estudo da/sobre a igreja; um estudo sobre as doutrinas, a natureza e as características da igreja (Por Álvaro César
Pestana – SerCris 2008 – aulas iniciais de Escatologia).
56
Cristologia – do grego “cristós” (σπιρηορ) + “logia” = estudo = Estudo sobre o Cristo, a pessoa de Cristo: sua
Humanidade (Profº Haroldo Evangelista dos Santos – aula expositiva de Cristologia – FATHEL, 2009).
67
Todo o fundamento do caráter missiológico de Cristo enquanto esteve aqui na terra,
sua missão, seu legado e sua vontade foram inseridos ao institucionalizar o ministério do
serviço no âmbito eclesiológico como verdadeiro diácono, pois “veio não para ser servido,
mas para servir” (Mc 10, 45). No judaísmo, a figura do filho do homem era uma espécie de
figura apocalíptica, conforme descrito em Deuteronômio (7, 13-14) e Marcos (13, 26), dando
um sentido altruísta e politicamente polido. Esta visão de “servo” demonstrado em Jesus era
algo totalmente novo e até incompreensível para os discípulos. A estrutura judaica intrínseca à
época, ferveu suas mentes na visão escatológica de reino que Jesus veio implantar, conforme
explica Schneider-Harpperecht (2005, p. 275-276):
Neste momento escatológico Jesus anuncia uma inversão dos conceitos deste
mundo: ser grande agora não é aquele que domina e quer ser o primeiro, mas o que
serve a todos. Essa situação é algo totalmente novo, trazido pelo próprio “Filho do
homem”. A vinda dele é um servir que salva e liberta, é vida dada “em resgate de
muitos”. É a mesma opção pelo servir que se manifesta aqui. [...] Mas também é
exemplo, pois os discípulos são chamados a viver aquilo que essa novidade traz. O
que possibilita o seguimento de Jesus, porém, não é uma nova ética que implique
uma vontade de ser humilde e bondoso. Aqui também é o novo momento
escatológico que garante uma comunhão profunda entre Jesus e o Seu povo. Trata-se
de uma unidade orgânica, igual a uma videira e os seus ramos (Jo 15.1-10). Desta
maneira, a figura do mestre torna-se parte da identidade do seu povo; assim como
ele foi enviado, também eles serão enviados (Jo 20.21).
Na visão de Reino instituído por Jesus, o aspecto comunitário é visto como a
identidade do corpo como sua primazia. Antes que haja uma distribuição igualitária e justa,
necessário se faz uma comunicação que vise à qualidade da comunidade. O estereótipo deve
refletir o interior daqueles que inserem uma nova realidade solidária na sociedade e a
sociedade enxergar as qualidades deste reino na igreja. Bosch (2002, p. 462-463) expressa a
seguinte realidade:
[...] a igreja é chamada a ser um “sinal” profético, uma comunidade profética através
da qual e pela qual a transformação do mundo pode se concretizar. Unicamente uma
igreja que parte de seu centro eucarístico, fortalecida pela palavra e pelo sacramento
e, portanto, fortalecida em sua própria identidade, tem condições de colocar o
mundo em sua ordem do dia. Jamais haverá um tempo em que o mundo, com todas
as suas questões políticas, sociais e econômicas, cessará de ser a ordem do dia da
igreja. Ao mesmo tempo, a igreja pode sair para as margens da sociedade, sem temer
que seja distorcida ou confundida pela ordem do dia do mundo, mas confiante e
capaz de reconhecer que Deus já se encontra lá (WCC 1983:50 – Relatório do grupo
que discutiu “Passos em Direção à Unidade” na Assembleia de Vancouver).
68
6.3 ESTRUTURA DA VERSÃO ECLESIOLÓGICA PÓS-MODERNA
Falar em reforma é falar em mudança e quando se fala em mudança, atinge o cerne
de liberais, neoliberais, ortodoxos, libertinos e neopentecostais, que na verdade, em campo
aberto, renegam sua verdadeira identidade e deixam escapar a sua autoridade e a secularizam
em plano secundário por vários motivos: medo, ambição e busca pelo poder. A igreja, como
um organismo vivo e destinado a glorificar a Deus, enfrenta hoje um bombardeio de classes
heterogêneas de conceitos que dissimulam e norteiam a vida das pessoas e líderes. Um clamor
pela reforma é evidente. Augustus Nicodemus (2008, p. 84), acrescenta:
Acredito que qualquer modelo de espiritualidade deve estar estribado no Novo
Testamento. E nele não acho qualquer fundamento para viver, por exemplo, uma
vida de contemplação. A espiritualidade bíblica é muito “mundana” – ou seja,
coloca-nos como gente nesse mundo, onde temos de fazer a diferença como sal e
luz. É claro que tiramos tempo, com o Senhor, para orar, meditar e estar com Deus,
mas é só um tempo, não a vida toda. Há muito a ser feito.
A solução para enfrentarmos o caos do neoliberalismo57 e a tese de libertinos
desvairados de igrejas pelo Brasil afora, a neo-ortodoxia (uma nova plumagem para o
liberalismo que não tem nada a ver com as crenças clássicas do cristianismo histórico),
enfatiza que espiritualidade e santidade não possuem ligação com a teologia, salientando que,
como a “fonte de águas cristalinas da reforma”, a igreja atual não tem mais sede. O caminho é
mais curto quando se fala de proselitismo, para atender a uma prática avessa aos conceitos
teológicos e doutrinários de igrejas neopentecostais e neoliberais. As escrituras ainda
continuam sendo a nossa única regra de fé e prática e, acima de tudo, fruto de lábios que
confessam o seu nome (Hb 13, 15). Pastores que abandonaram a fé e se rebelaram na
“mitologia” da bíblia, fundamentalistas em seus próprios ideais e perderam seu referencial
que é Cristo.
57
Neoliberalismo: Segundo Nicodemus (2008), também se incluem os neo-ortodoxos. Surgiu como uma
tentativa de corrigi-lo, não descartou os resultados do liberalismo quanto às escrituras, mas os pressupõe. Podem
ser chamados, assim, de neoliberais, os novos liberais do presente. Assim, os neo-ortodoxos, ou neoliberais,
adotam conceitos aproximados com relação à falibilidade das escrituras e usam o mesmo método de
interpretação bíblica, englobando, segundo ele, um grupo único de liberais, neo-ortodoxos e neoliberais.
69
O método histórico-crítico e o gramático-histórico de interpretação bíblica58 foi
deixado às margens, criando um universo distinto entre os dois, capaz de trazer um verdadeiro
abismo teológico no tocante à interpretação bíblica. Explica-se ainda pelo fato que reside na
carência de que o crente não quer mais buscar ou “labutar” nas escrituras e que boa parte dos
que aderem ao método histórico, usurpam a teoria de que Deus se revelou proposicionalmente
por meio de histórias, frases, experiências, fruto do iluminismo e filosofias existencialistas. A
questão da separação da ciência e a teologia é também um “filho gerado” pelo iluminismo do
século XIX e da filosofia de Kant59, sendo que esta “guerra” entre a ciência e a teologia, seja
culpa da própria igreja. Aliás, os primeiros acadêmicos cristãos eram cientistas e não pastores.
Mas em tudo isso, existe a premissa de que vários cientistas foram adeptos às
verdades bíblicas e não fugiram disso como Kepler, Galileu e Newton. Continua englobando a
mística e a ausência da Bíblia no meio evangélico. Toda e qualquer revelação de
espiritualidade deve estar voltada para Cristo, nosso exemplo de vida e contemplação. Não
devemos ser alheios ao que está ao nosso redor como se estivéssemos numa “redoma
espiritual” e as “coisas esquentando” lá fora. Viver no nosso “mundinho” místico de
espiritualidade nada vai adiantar. Precisamos ser sal e luz. O liberalismo, segundo afirma,
Nicodemus (2008), insiste no casamento da igreja católica e o protestantismo, sendo que a
igreja católica já se manifestou contrária aos protestantes considerando-os incompletos:
Somos a única igreja verdadeira, a única igreja genuinamente cristã, e os
protestantes [...] bem, são comunidades cristãs, sem os sacramentos e sem o
apostolado, igrejas incompletas, se é que podem ser chamadas de igreja. É esse, em
resumo, o pronunciamento do Papa Bento XVI quanto às igrejas protestantes
(NICODEMUS, 2008, p. 101)
Em defesa dos ideais da reforma que os puritanos se desempenharam em cumprir e
que levaram muitos a pensarem num dogmatismo austero e inflexível por parte dos mesmos,
traz à luz a verdadeira história dos puritanos históricos e dos neopuritanos, sendo abordados
temas e exemplos, que não podem ser ignorados, sustentando o vínculo de uma igreja forte,
indelével, imutável, afirma. A questão do reformismo mutativo, ou seja, igrejas que estão
perdendo suas características em face das influências liberais. Quaisquer que sejam as
58
É preciso levar em consideração o objetivo ou desígnio do livro ou passagem em que ocorrem as palavras ou
expressões obscuras. O objetivo ou desígnio se obtém, sobretudo, lendo, estudando com atenção, repetidas vezes
um livro ou passagem, tendo em conta em que ocasião e a que pessoas originalmente foi escrito. Deixar que a
Bíblia interprete a si mesma, comparando uma parte com outra, comparando o espiritual com o espiritual (I Co 2,
13) (Aula expositiva sobre métodos gramatical e histórico crítico – Hermenêutica – Profº Gustavo Espíndola de
Oliveira).
59
Em seu artigo Resposta à pergunta: O que é Iluminismo? Kant propõe a separação entre o que se acredita em
público e o que se crê em particular (KANT apud NICODEMUS, 2008, p. 74).
70
mudanças é preciso que nos tragam para mais perto de Deus e uma aplicação para nossos dias.
Existem inovações nos Estados Unidos que traduzem mudanças reformistas em apelos a
casamentos homossexuais e inclusão de gays e lésbicas no ministério. A ideia do novo sempre
tem sondado as mentes de líderes e da própria sociedade e isto é muito nocivo para a igreja.
Esta é a diferença entre reformado e reformista. Segundo Battista Mondin (apud
NICODEMUS, 2008, p. 44):
[...] [o homem] perdeu a referência que lhe sirva de orientação e não consegue mais
encontrar parâmetros válidos sobre os quais fundar seus juízos. Não sabe mais
distinguir entre o bem e o mal, entre o verdadeiro e o falso, entre o belo e o feio,
entre o justo e o injusto, entre o útil e o prejudicial, entre o lícito e ilícito, entre o
decente e o inconveniente [...]. As antigas certezas culturais e morais jazem por toda
a terra; os valores sobre os quais se fundava a nossa civilização foram como que
esmagados e dissolvidos; os pontos de referência do progresso e da ação perderam
sua consistência.
Necessário se faz uma abordagem sistêmica de introspecção teológica na vida da
igreja brasileira. É preciso haver um genuíno despertamento e quebrantamento espiritual, na
busca de um compromisso ministerial por parte de pastores, líderes e uma transformação nas
mentes de reformados que não aceitam mudanças litúrgicas. A quebra de paradigmas não
significa quebra de valores intrínsecos e bíblicos, mas sim, a mudança no contexto
panorâmico de culto, ou seja, o medo do “pentecostalismo” por parte dos tradicionais leva
muitas vezes a uma retração da liberdade, que não se traduz no emocionalismo, mais ao
quebrantamento que a palavra verdadeira, genuína e sólida, pode trazer no coração daqueles
que a ouvem. É a boa semente que precisa e deseja cair em solo fértil da igreja brasileira.
6.4 FORMAS DE ATUAÇÃO SOLIDÁRIA DA IGREJA
No cenário atual, são oclusos e ofuscados os exemplos de atuação solidária da igreja
pós-moderna, embora persistam os trabalhos das chamadas “forças de frente”, incansáveis e
não apenas contemplativas, conforme o artigo intitulado: “Missões Urbanas – A
responsabilidade da Igreja”, que diz:
71
[...] Os grupos urbanos diferenciam-se pelas formas de expressão, ou seja, por suas
ideologias político-sociais, pelas músicas, vestimentas, linguagens, inclinações
religiosas ou anti-religiosas. Hoje, encontramos nas grandes cidades diversos grupos
étnico-linguísticos, alguns denominados “tribos urbanas”, “alternativos”, movimento
Underground”, e é neste meio que encontramos pessoas feridas, amarguradas, presas
a vícios, com seus sonhos roubados, identidades trocadas e na maioria das vezes,
vivendo neste contexto inconscientemente. “Vendo Pilatos que nada conseguia,
antes pelo contrário, aumentava o tumulto, mandando vir água, lavou as mãos
perante o povo, dizendo: Estou inocente do sangue deste justo; fique o caso
convosco” (Mt 27.24). O que cristãos têm a ver com os problemas dos centros
urbanos? Por que devem os cristãos se envolver com o social? No final das contas,
existem duas atitudes que eles podem adotar com relação ao mundo. Uma é a fuga,
outra é o engajamento. “Fugir” significa voltar as costas ao mundo em rejeição,
lavar as mãos das coisas do mundo, mesmo sabendo, como Pilatos, que nem assim
desaparece a responsabilidade, e endurecer o coração aos agonizantes gritos de
socorro. “Engajar-se”, por outro lado, significa voltar o rosto para o mundo em
compaixão, sujar as mãos, sofrer e gastar-se a serviço deste e sentir no fundo do ser
o incontido amor a Deus. Viver dentro da igreja em comunhão uns com os outros é
mais conveniente do que servir em um ambiente externo apático ou mesmo hostil.
Ao invés de tentarmos fugir a nossa responsabilidade social, precisamos abrir os
ouvidos e escutar a voz daquele que conclama seu povo em todo tempo a sair. É
todo um estilo de vida cristão, que tanto inclui evangelismo quanto responsabilidade
social, sob a convicção de que Cristo nos envia ao mundo assim como o Pai o
enviou. Se a missão cristã é para ser modelada pela missão de Cristo, ela certamente
implicará – assim como Ele o fez – penetrarmos no mundo das pessoas. Isto
significa entrar no mundo dos seus pensamentos, da sua tragédia e solidão, a fim de
compartilhar Cristo com eles lá onde eles estão. Significa disposição para renunciar
o conforto e a segurança de nossa própria formação cultural, a fim de nos doarmos
em serviço a indivíduos de outra cultura. Não se deve separar fé de amor: a fé sem
obras é morta, Tiago 2,17-18; aquele que tem recursos, deve repartir com quem não
tem, I João 3,17; fomos criados para as boas obras, Efésios 2,10; a única coisa que
não tem valor é a fé que atua pelo amor, Gálatas 5,6. Portanto, temos a
surpreendente sequência de fé, amor e serviço: a verdadeira fé se expressa pelo
amor, o verdadeiro amor se revela através do serviço. Fé salvadora e amor salvador
caminham lado a lado. Onde quer que um deles falte, faltará também o outro. Que
faremos diante dos desafios de nossas metrópoles? Lavaremos nossas mãos como
Pilatos, tentando nos isentar da responsabilidade frente a um mundo não apenas sem
salvação, mas sem pão, sem roupas, sem casa, sem esperança? Busquemos o
equilíbrio bíblico em nossas igrejas. Ofereçamos ao mundo perdido o Pão vivo que
desceu do céu – JESUS, sem, no entanto, nos esquivarmos da ordem de Jesus diante
60
da multidão faminta: “dai-lhes vós mesmos de comer” (Lc 9, 13) .
A práxis da igreja deve refletir numa análise de sua releitura da criação do ser
humano, da imagem do “semelhante a Deus”, da sua forma de enxergar as características de
um Deus harmonioso em tudo o que faz. Segundo Silas Barbosa Dias (2007, p. 74), uma
releitura da teologia da criação poderia ajudar a discernir certos exageros que não deixam de
inserir-se nas abordagens parciais e regionais que fazemos do real. Fato de o mundo criado
não ser sagrado, mas chamado a santificar-se mostra o lugar da responsabilidade daquele a
quem ele foi confiado.
60
Disponível em: <http://www.nascidodenovo.org/estudos/missoes-urbanas.html>. Acesso em: 17 nov. 2010.
72
Pela responsabilidade que a igreja possui ante as falácias da realidade atual, do medo,
da angústia e pela hipocrisia religiosa, o processo de cultivar uma teologia prática autêntica,
necessita passar pelo crivo do caráter proclamativo da igreja, seguido pela cooperação mútua,
pelo ensino bíblico autêntico e, assim, a práxis se tornará algo verdadeiramente explícito e
uma realidade no seio da igreja. Dias (2007, p. 29) orienta:
Devemos lembrar sempre que da proclamação, ou seja, do kerigma, nasce a
koinonia (comunhão), que por sua vez, num dado espaço se processa a liturgia, ou
seja, a adoração, o culto (doxologia). Portanto, na koinomia deve ao mesmo tempo
acontecer a didake (ensino), dai nasce a diakonia que é o serviço e a práxis (pratica)
da fé.
As formas de atuação do corpo de Cristo e sua solidariedade na mistura do
corporativismo, na política e nas ciências sociais, corroboram pela valorização do engodo
evangélico que passa, não somente a uma desvalorização de suas raízes, mas pela
desesperança de se encontrar a única solução de fé e de vida perdidas na história. Essa mistura
deve vir acompanhada de sua essência, na qual um vínculo divino incorporou na essência
humana, ou seja, o próprio verbo da criação externou sua característica maior: o
relacionamento com a humanidade, de um Deus que se fez humano, servo, pobre e pecado.
A secularização transformou a igreja em individualismo, numa comercialização pela
troca de favorecimentos pessoais, na informação automática, na evolução da comunicação
audiovisual, no frio sentimento de viver uma sociedade pós-moderna desestruturada tanto
emocional quanto espiritualmente. E ainda:
Devido a certos mecanismos estruturais foi implantada no mundo uma injustiça
planetária como consequência do controle econômico das multinacionais, relações
de comércio desiguais, exploração do trabalho, distribuição injusta da riqueza no
interior dos países e a divida externa dos povos empobrecidos e explorados. No
plano econômico é obvio que o benefício econômico de uns poucos se antepõe a
partilha solidária da riqueza conseguida. Os produtores buscam o máximo de lucro e
os consumidores a máxima utilidade ou satisfação. O fato é que a humanidade
encontra-se neste terceiro milênio, na mais escandalosa verdade, pobreza radical.
Segundo informes da PNUD (Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento) sobre desenvolvimento mundial, dos 6 bilhões de seres humanos
que aproximadamente tem o planeta, 2.800 (quase a metade) vivem com menos de
$2 (dois dólares) por dia, e 1.200( a quinta parte), com menos de $ 1 (um dólar) por
dia. Assim uma quarta da humanidade vive debaixo da pobreza absoluta, e outra
grande parte vive debaixo de uma pobreza relativa. Podemos dizer que 20% tem
poder aquisitivo, e 50% das crianças estão subnutridas. E ainda, 40% da humanidade
não têm acesso à eletricidade61 (DIAS, 2007, p. 59).
61
Cf. F. Gesualdi, Los mecanismos estruturales de la injustiça planetária: Iglesia Viva 184/185 (1996) 315-322;
F. Almansa y otros, 1996, Ano de la erradicación de la pobreza, Cuaderno Cristianismo i Justicia, n.72. apud
Casiano Floristan, Teologia Prática, pp.782. 2002. Casiano Floristán, Teologia Prática. Salamanca: Sigueme.
(Silas Barbosa Dias - Curso de Teologia Prática – UNIFIL, 2007).
73
A AME/SOS Global62 – Associação Missão Esperança – juntamente com a rede
S.O.S Global, é uma organização não governamental que trabalha no Timor Leste e Sudeste
Asiático, atuando nas áreas educacional, social e integral, física, emocional e espiritual. Após
a eleição a favor da independência, 80% da infraestrutura do país foi destruída. A AME
desenvolveu projetos de ministração integral, satisfazendo as necessidades emocionais, físicas
e espirituais do povo timorense, bem como no sudeste asiático e onde há catástrofes como o
ciclone que atingiu Mianmar, em 3 de Maio de 2008. O S.O.S Nordeste 2009, atuou em
cidades como Maranhão e Piauí. A ONG atuou também em casos como o Terremoto em
Padang, Indonésia, em Setembro de 2009; o Tufão no Vietnã e Filipinas no mesmo período; a
inundação em São Luiz do Paraintininga, São Paulo, em Janeiro de 2010, com 80% da
população desabrigada; terremoto no Haiti, em Janeiro de 2009 com mais de 150.000 mortos;
S.O.S Chile, em Fevereiro de 2010, e em São Gonçalo, Rio de Janeiro, em Abril deste ano.
Como a igreja tem reagido diante das catástrofes, diante das guerras e diante do
caos? São sustentáveis a negativa diante dos apelos clamorosos das nações em chamas? São
surrealistas as críticas severas ao misticismo religioso e às práticas egocêntricas do
cristianismo do Século XXI? É o que diz a música de João Alexandre (2005/2009) “Quem diz
a verdade”:
Vejo no olhar das pessoas tanta falsidade
Tanta hipocrisia, tanta falta de amor!
Gente distante de Deus, bem longe da verdade,
Enganando a todos e a si mesmo sem pudor!
Quem pensa que a vida não passa de uma brincadeira,
Quem se entrega aos erros, com seu jeito de viver
Se esquece que todos colhemos o que semeamos,
Que Deus é puro e Santo, não se deixa escarnecer!
62
Disponível em: < http://www.amesperanca.com.br/> e < http://www.sosglobal.org.br/sosglobal/Portugues/>.
Acesso em: 17 nov. 2010.
74
Quem diz a verdade, você sabe não merece castigo
E é por isso que eu canto, e é por isso que eu digo,
Quem diz a verdade nem sempre vive cercado de amigos,
Mas viver de mentira, só faz bem pro inimigo!
Que Deus nos dê todo dia um coração mais puro,
Nossas mãos mais limpas, humildade, retidão!
Vivamos a paz e a justiça em boa consciência,
Sob a transparência de Sua graça e perdão!
Que a nossa vida ilumine a escuridão do Mundo,
Seja o Sal da Terra, seja exemplo pra seguir,
Que a nossa fé se transforme sempre em boas obras,
Bem mais que as palavras, no pensar e no agir!
No livro do Apocalipse, capítulo 21, versos de 1 ao 4, a nova igreja ressurge das
cinzas, descrita pelo apóstolo João diante de um “novo céu” e “de uma nova terra”, na qual o
cordeiro enxugará dos olhos toda a lágrima e retomará para si, a verdadeira criação, dando a
ela o seu projeto inicial: ser semelhante ao criador conforme a Sua imagem:
E vi um novo céu e uma nova terra. Porque já se foram o primeiro céu e a primeira
terra, e o mar já não existe. E vi a santa cidade, a nova Jerusalém, que descia do céu
da parte de Deus, adereçada como uma noiva ataviada para o seu noivo. E ouvi uma
grande voz, vinda do trono, que dizia: Eis que o tabernáculo de Deus está com os
homens, pois com eles habitará, e eles serão o seu povo, e Deus mesmo estará com
eles. Ele enxugará de seus olhos toda lágrima; e não haverá mais morte, nem haverá
mais pranto, nem lamento, nem dor; porque já as primeiras coisas são passadas.
75
CONCLUSÃO
A pesquisa sobre os aspectos da representação realística da raça é genérica e não se
prende somente aos aspectos antropológicos, mas se esguia pelos caminhos da esfera
espiritual, psíquica e sociorrealístico de uma sociedade. Adão, como representante desta
comunidade, participou do contato metafísico com o seu criador e mesmo assim, conheceu a
precariedade do instinto mal existente na sua personalidade que usufruía de realeza no aspecto
da amplitude de suas emoções e anseios em plena paz consigo e com a criação, haja vista, que
“tudo era bom”, não havendo sinais de degradação, tampouco as catástrofes flamburiantes
pelo engodo da maldade, apenas a tranquilidade de pertencer à primazia da criação.
A tentação foi o fator supralapsariano de se ver o destino da humanidade ou
infralapsariano o caminho encontrado pelo próprio Deus de tornar cabal seu projeto para a
humanidade, vendo as consequências do mal, a forma de atuação pelo bem. Não é o pecado o
esguicho provocado no coração do homem, mas o próprio homem dotado da semelhança e da
imagem do próprio Deus provocou sua escolha, sua forma de se adaptar ao novo mundo
criado por ele mesmo e não pelo Deus criador.
A ênfase da solidariedade na sua perspectiva igualitária insurge na pecaminosidade
do coração humano e suas tendências individualistas, seu ego dotado de querer suplantar os
limites nocivos de sua própria rigidez frente ao arquétipo medo, angústia e frieza provocados
pela queda, a inquietude e a falta de caráter, deprimente do laborioso mal escolhido.
Somos a raça humana adaptada por Deus segundo o novo Israel usufruindo dos
benefícios de seus direitos, afinal, “são deles as promessas [...]” (Rm 9,4). Somos
participantes solidários de uma nova mishpāhâ, tendo como mérito sublime, a justificação de
Cristo em seu sangue, não sendo de animais, doravante, senão a própria justiça encarnada,
fazendo-se sarx para uma nova ekklesia, o seu qahal inviolável pela vitória da cruz.
Na retórica temos a certeza de uma igreja viva, vitoriosa, mas precisamos agir numa
práxis autêntica da liberdade de sermos participantes do kerigma da proclamação do
evangelho e da koinonia genuína do serviço do reino instituído e não institucionalizado, não
feito por mãos humanas, mas arquetipicamente elaborado desde a fundação do mundo
76
A mística implementada pelo mal, pelo dualismo existencial de ser criação divina ou
inerente ao declínio humano é abstrato em sua análise no que se refere às características de
um ser que é bom e inseriu esta bondade na humanidade. Porém, o que é sólido na visão
neoplatônica é incoerente na visão espiritualista, ou seja, na dicotomia do ser criado e suas
tendências capciosas.
A vontade passa pelo crivo do bem quando se tem o auge da quiescência de abraçar a
causa do próximo no exemplo máximo de relacionamento Daquele que se deu por nós e o fez
por livre vontade, não obstante sua realeza, sua autoridade em demandar poder, mas no amor
demonstrado no ser relacional do “eu” divino. O fortalecimento de quem está à margem da
solidariedade é não somente a inquietude na ardente expectativa de estender a mão, mas em
dar um passo de fé na certeza do bem que há em nós. Pensar no próximo é pensar em Deus,
pois quem vê a um dos pequeninos, a ausência da família perdida, quem vê o pão ou o calor
que acalenta o frio cinzento da destruição, vê o Pai e não somente a complexidade do ser
humano.
77
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