A História da Igreja

Transcrição

A História da Igreja
A ndrew M
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il l e r
istöria
anos 0 a Î.000 d.C.
Volume 1
P r e fá c io
C
omo é de conhecimento geral, a História chega até nós por meio dos
livros. Eu examinei com cuidado os autores mais reconhecidos neste
país1e que considerei mais confiáveis. E embora haja muitas referências
ao volume e página de onde foram extraídas, isso de forma alguma indica que
todas as citações foram recolhidas dos livros que consultei. Seria impossível dizer
quantos pensamentos, palavras e frases desses autores estão entrelaçados com os
meus. As referências foram dadas não tanto para verificação, mas para induzir o
leitor a estudá-las ou para que possa aproveitá-las de alguma maneira, quando
tiver oportunidade. Os materiais são tão variados e abundantes que a dificuldade
consiste em fazer uma seleção deles, mantendo uma linha histórica continua e
desprezando o que não é proveitoso nem interessante.
Alguns de meus mais antigos e valiosos amigos, tais como Greenwood,
Milman, and Craigie Robertson, concluíram seus livros sobre o século XIV;
Waddington, DAubigne, and Scott, sobre os meados do século XVI; e Wylie
encerrou sua História do Protestantismo com o estabelecimento deste no reinado
de William e Mary. As histórias e biografias do Dr. M'Crie são extremamente
valiosas; assim também com a História do Protestantismo na França, escrita
por Felice, a História da Reforma no Países Baixos, de Brandt, a História
Resumida da Idade Média e da Reforma, de Hardwick e também a História de
Cunningham sobre a Igreja escocesa. No entanto, bons livros sobre a primeira
parte do século XVI até o século XIX são difíceis de encontrar.
Meu objetivo e bem maior que fazer um relato histórico. O meu desejo
é conectá-lo com Cristo e Sua Palavra para que o leitor receba a verdade e a
Nota do Tradutor: o autor se refere ao seu país de origem, ou seja, à Inglaterra.
4 I A Hlstúria da Igreja - Prefácio
bênção, através da graça, em sua alma. Como fica evidente, comecei com o
propósito revelado pelo Senhor para Sua Igreja em Mateus 16. Outras partes
do Novo Testamento foram examinadas meticulosamente no que diz respeito à
implantação dos primeiros alicerces da Igreja. Tentei traçar a história da igreja
cristã à luz das cartas dirigidas às sete igrejas na Ásia. Isso, é óbvio, teve de ser
feito de uma maneira bem geral, pois desejei dar ao leitor uma visão da história
eclesiástica tão ampla quanto possível, consistente, entretanto, com meu projeto
e concisão.
Que as bênçãos do Senhor acompanhem o volume que está agora
publicado.
Londres, Andrew Miller
Í n d ic e
Introdução......................................................................................9
As Sete Igrejas da Ásia ............................................................................... 11
1
A Pedra Angular.......................................................................... 15
A Fundação da Igreja ................................................................................ 16
A Abertura do Reino dos Céus ................................................................ 21
O Princípio Divino do Governo da Igreja .............................................. 25
2
O Dia de Pentecostes................................................................ 31
A Ressurreição e Ascensão de Cristo .................................................... 33
A Descida do Espírito Santo ....................................................................34
O Chamado Dirigido aos Gentios ...........................................................39
O Primeiro Mártir Cristão ........................................................................43
3
A Perseguição e a Dispersão dos Discípulos....................47
Jerusalém e Samaria Unidas pelo Evangelho ........................................... 50
A Conversão de Saulo de Tarso................................................................ 53
4
Os Primeiros Missionários da Cruz....................................... 59
Os Doze Apóstolos ....................................................................................60
A Linhagem Real Herodiana .................................................................... 65
O Apóstolo Paulo................................................
A
A
A
A
Primeira Visita de Saulo a Jerusalém .............................
Primeira Viagem Missionária de Saulo ..........................
Terceira Visita de Paulo a Jerusalém ..............................
Visita de Paulo a Atenas .................................................
85
..87
..89
...92
A Terceira Viagem Missionária de Paulo.........
111
Paulo deixa Éfeso e parte para a Macedonia.....................
A Quinta Visita de Paulo a Jerusalém ...............................
Paulo diante do Sinédrio ....................................................
O Martírio de Paulo ...........................................................
114
O Incêndio de Roma...........................................
151
1 c~»
A Primeira Perseguição sob os Imperadores ......................
A Queda de Jerusalém ........................................................
A Verdadeira Causa da Perseguição ....................................
As Perseguições na França ..................................................
A História Interna da Igreja (107 a 245 d.C.)
Os Pais Apostólicos.............................................................
A Origem da Distinção entre Clero e Leigos ...................
A Origem das Dioceses ......................................................
De Cômodo à Ascensão de Constantino.........
A Perseguição na África ......................................................
A Mudança na Abordagem ao Cristianismo .....................
O Estado Geral do Cristianismo ......................................
Um Exame na Condição da Igreja....................................
Constantino..........................................................
A Condição na qual Constantino Encontrou a Igreja .....
Os Efeitos do Favor Real ...................................................
O Batismo e a Morte de Constantino ..............................
120
126
147
154
161
180
187
190
198
201
203
206
209
216
219
229
238
241
244
11 O C o n cílio d e N ic é ia ......................................................................253
O Concílio de T iro .................................................................................258
Os Invasores Bárbaros ............................................................................ 267
12 A H istó ria Interna d a Igreja (2 4 5 a 451 d . C . ) ..................... 273
Reflexões sobre a História do Batismo Infantil .................................... 278
A Primeira Sociedade dos Ascetas ..........................................................285
Reflexões sobre as Calamidades de R om a.............................................292
13 A E p ísto la à Igreja de T iatira ......................................................305
Leão I, o Grande .................................................................................... 312
O Zelo Missionário de Gregório........................................................... 317
A Hierarquia Católica Estabelecida na Inglaterra ................................. 323
14 A E x p an são d o C ristian ism o na E u r o p a ................................. 329
Os Primeiros Pregadores do Cristianismo naIrlanda............................ 330
Os Primeiros Pregadores do Cristianismo naEscócia ............................334
O Prenúncio do Homem da Iniquidade ...............................................345
15 M ao m é, o F also P ro feta d a A r á b ia ...........................................349
A Religião do Islã .................................................................................... 351
Os Sucessores de M aom é........................................................................354
O Segundo Concílio de Nicéia ............................................................. 365
16 A Linha P ratead a d a G raça S o b e r a n a ..................................... 367
A Origem do Paulicianismo ...................................................................369
As Guerras Religiosas de Carlos Magno ................................................375
O Sistema Hierárquico Feudal ............................................................... 382
17 A P ro p ag aç ã o d o C ristia n ism o ................................................... 389
Luís, o Piedoso .........................................................................................391
Os Eslavônios Recebem o Evangelho .................................................... 393
Inglaterra, Escócia e Irlanda....................................................................395
In t r o d u ç ã o
abemos que muitos de nossos leitores não têm tempo nem
oportunidade de ler os numerosos livros que são, periodicamente,
escritos sobre a história da Igreja. No entanto, uma vez que ela tem sido
o lugar da ação de Deus pelos últimos dois mil anos, sua História tem de ser
objeto do mais profundo interesse por parte de Seus filhos. Falaremos da Igreja
não como esta é apresentada na História, mas como está descritas nas Escrituras.
Ali a vemos em seu caráter espiritual, como Corpo de Cristo, e como “habitação
de Deus no Espírito” (Efésios 2:22).
S
Temos de ter em mente ao lermos o que se chama de História da Igreja
que, dos dias dos apóstolos até agora, existem duas classes de pessoas totalmente
diferentes na Igreja professa: os cristãos meramente nominais e os cristãos
genuínos - os verdadeiros e os falsos. Isso foi predito. O apóstolo Paulo disse:
“Eu sei que, depois da minha partida, entre vós penetrarão lobos vorazes, que não
pouparão o rebanho. E que, dentre vós mesmos, se levantarão homens falando
coisas pervertidas para arrastar os discípulos atrás deles” (Atos 20:29-30). Sua
Segunda Epístola a Timóteo também está cheia de advertências e orientações
acerca das variadas formas nas quais o mal se manifesta abertamente. Uma
rápida mudança para pior aconteceu desde que Paulo escreveu a Timóteo pela
primeira vez. Ele exorta aos piedosos que se mantenham separados dos que têm
apenas uma capa de piedade, mas que negam o poder dela. “Destes afasta-te”,
é a recomendação do apóstolo (2 Timóteo 3:5). Tais exortações são sempre
necessárias e aplicáveis - tanto hoje quanto no tempo em que foram escritas.
E impossível nos separarmos da cristandade professa sem, ao mesmo tempo,
renunciarmos ao cristianismo. Mas podemos - e temos de - nos separar daqueles
que o apóstolo chama de “vasos de desonra”. A promessa é que “se alguém se
10 I A
H i s t ó r i a d a I g r e j a - Introdução
purificar dessas coisas, será vaso para honra, santificado e idôneo para uso do
Senhor, e preparado para toda a boa obra” (2 Timóteo 2:21).
É interessante —apesar de doloroso - perceber a nítida diferença entre a
Primeira e a Segunda Epístola a Timóteo. Na Primeira, a Igreja é vista andando
aqui no mundo de acordo com seu verdadeiro caráter e abençoada posição. E
vista como casa de Deus —a coluna e firmeza da verdade para a humanidade
(3:15). A Segunda Epístola mostra no que se tornou por causa do fracasso
daqueles em cujas mãos Deus a confiou.
Tomemos uma passagem de cada Epístola como exemplo: (1) 1 Timóteo
3:15: “Escrevo-te estas coisas, esperando ir ver-te bem depressa; mas, se tardar,
para que saibas como convém andar na casa de Deus... a coluna e firmeza da
verdade”; (2) 2 Timóteo 2:20: “Ora, numa grande casa não somente há vasos de
ouro e de prata, mas também de pau e de barro; uns para honra, outros, porém,
para desonra”. Aqui tudo mudou - trágica mudança! Ao invés da ordem divina
existe uma confusão desesperadora; ao invés de “casa de Deus, coluna e firmeza
da verdade”, há uma “grande casa” - praticamente o “mistério da iniqüidade”.
Em vez da casa ser mantida de acordo com a vontade de Deus e adequada a
Ele, ela está arranjada e ordenada segundo a vontade do homem, para a própria
vantagem e exaltação dos seres humanos. Portanto, desde o princípio houve
males, que foram e são o pecado e a desgraça da cristandade. Porém isso servirá
para o bem. O Espírito de Deus, em Sua grande misericórdia, tem nos suprido
de claros direcionamentos para enfrentarmos o dia mais escuro da História da
Igreja, e nos apontado o caminho da verdade em meio à pior época de todas, de
um modo tal, que não temos desculpas. Os tempos e as circunstâncias mudam,
mas não a verdade de Deus.
Os
E r r o s d o s H i s t o r i a d o r e s em G e r a l
Alguns historiadores, infelizmente, ao fazer seus relatos não levam em
consideração essa triste mistura de vasos de honra e desonra —os verdadeiros
e os falsos cristãos. Eles próprios não são homens cuja mente é espiritual.
Consequentemente, elegeram como principal objetivo registrar os abundantes
e ímpios erros dos cristãos professos. Trabalham exaustiva e minuciosamente
com as heresias que perturbam a Igreja, com os abusos que a maculam, e com
as controvérsias que a desviam da rota. Ao invés disso, nos esforçaremos para
localizar, por todas as longas e sombrias páginas da História, a linha prateada
da graça de Deus na vida dos verdadeiros cristãos; embora, por vezes, os metais
vis misturados ao celeste minério sejam tão predominantes que este se torna
quase imperceptível.
I n t r o d u ç ã o j 11
Deus jamais deixa a Si mesmo sem testemunho. Ele tem os Seus amados
e escolhidos, embora ocultos, em todos os lugares e épocas. Nenhum olho,
além do de Deus, podia contemplar os sete mil que não se prostraram diante
de Baal em Israel, nos dias de Acabe e Jezabel. Assim também com os milhares
que mesmo durante a era das mais densas trevas do cristianismo, farão parte
da “gloriosa Igreja”, a qual Cristo apresentará a Si mesmo no tão aguardado dia
de Suas núpcias. Muitas pedras preciosas dentre a escória da “Idade Média”
refletirão Sua graça e glória naquele dia sem par.
Abençoado pensamento! Ele enche a alma com júbilo e prazer. Senhor,
apresse esse maravilhoso dia por amor de Seu próprio nome!
Os cristãos genuínos são instintivamente humildes. Em geral são reservados e
a maioria deles não se destaca na multidão. Não há humilhação tão profunda e real
como a produzida pelo conhecimento da graça. Tais cristãos humildes e anônimos
ocupam um espaço ínfimo nas páginas históricas. Porém, os hereges agradáveis ou
fervorosos e os fanáticos barulhentos e visionários fazem muito alarde; é impossível
deixar de percebê-los. Por essa razão, os historiadores têm registrado com tanto
cuidado os princípios tolos e as práticas malignas de tais pessoas.
Agora iremos mudar de assunto um pouco e entrar na primeira parte de
nosso tema, que começa com as sete igrejas da Ásia.
Á s S ete I g r e ja s
da
Á sia
Essas sete epístolas irão guiar nossos estudos futuros. Cremos que não
são apenas históricas, mas também proféticas. Sem dúvida, essas sete igrejas
existiram de fato nas sete cidades mencionadas e nas condições descritas aqui.
Isso tem de ser levado em consideração ao estudarmos o caráter profético dessas
mensagens. Mas fica igualmente claro que Aquele que conhece o fim desde o
início intencionou que tais cartas tivessem tanto uma aplicação histórica quanto
um significado profético. Elas foram selecionadas entre muitas, dispostas e
descritas para prenunciarem o que virá. Limitar a aplicação da mensagem às
sete igrejas literais da Ásia seria desfigurar a unidade do Apocalipse, e perder a
bênção prometida. “Bem-aventurado aquele que lê, e os que ouvem as palavras
desta profecia” (Apocalipse 1:3). A característica do livro inteiro é ser profético e
simbólico. O segundo e terceiro capítulos não são exceção. Eles são apresentados
pelo próprio Senhor no caráter místico deles. “O mistério das sete estrelas, que
viste na minha destra, e dos sete castiçais de ouro. As sete estrelas são os anjos das
sete igrejas, e os sete castiçais, que viste, são as sete igrejas” (Apocalipse 1:20).
12 I A H
is t ó r i a d a
I g r e ja - Introdução
O número sete é peculiar. Ele marca um ciclo completo dos pensamentos ou
guerras de Deus em um determinado tempo. Daí termos, os sete dias da semana,
as sete festas de Israel, as sete parábolas do reino dos céus. Esse número é utilizado
várias vezes por todo o livro, apontando judeus, gentios e a Igreja de Deus como
responsáveis sobre essa terra. Temos sete igrejas, sete estrelas, sete candelabros,
sete anjos, sete selos, sete trombetas, sete ais ou sete últimas pragas. Apenas nos
capítulos 2 e 3 a Igreja é tida como responsável sobre a terra e como objeto do
governo divino. Dos capítulos 4 a 19 ela já é vista nos céus. Ali ela aparece em plena
glória manifesta com seu Senhor. “E seguiam-no os exércitos no céu em cavalos
brancos, e vestidos de linho fino, branco e puro” (Apocalipse 19:14).
No corpo do livro, especialmente a partir do capítulo 6, os judeus e
gentios são colocados em evidência, e judicialmente tratados diante do trono
de Deus nos céus. Isso não acontecerá até que a Igreja - a verdadeira Noiva
de Cristo - seja arrebatada do mundo, e o falso e corrompido sistema religioso
venha ser finalmente rejeitado.
A divisão do livro em três partes, feita pelo próprio Senhor, torna a ordem
dos eventos quase óbvia e tem imenso peso como um princípio de interpretação
no estudo de Apocalipse. No capítulo 1:19, Ele nos dá o conteúdo e o plano
do livro inteiro: “Escreve as coisas que tens visto, e as que são, e as que depois
destas hão de acontecer”. “As coisas que tens visto” se refere à revelação de Jesus
mostrada a João no capítulo 1; “as que são” ao tempo e à condição da cristandade
professa apresentados nos capítulos 2 e 3. “As que depois destas hão de acontecer”
são mostradas do capítulo 4 até o final do livro. A terceira divisão começa no
capítulo 4. Uma porta é aberta no céu, e o profeta é convidado a entrar por
ela. “Sobe aqui, e mostrar-te-ei as coisas que depois destas devem acontecer.” A
mesma frase está registrada no capítulo 4:1 e no 1:19. As coisas que são e as que
acontecerão depois disso não podem ocorrer simultaneamente. E preciso que
uma termine antes do início da outra.
Quando o número sete é usado em um sentido simbólico, sempre
significa perfeição. Portanto, é desse modo que ele é usado nos capítulos 2 e 3.
Havia muitas outras igrejas além das mencionadas; porém, apenas sete foram
escolhidas e reunidas para apresentar uma figura completa do que se desenvol­
veria futuramente na história da Igreja sobre a terra. O Senhor previu que os
mais importantes elementos morais que existiam então reapareceriam ao longo
do tempo. Deste modo, temos uma figura perfeita, divina e composta de sete
partes dos sucessivos estágios da Igreja professa durante todo o período de sua
responsabilidade no mundo.
Agora iremos examinar de maneira resumida o perfil das sete igrejas, e ter
uma idéia geral dos diferentes períodos na História aos quais elas se aplicam.
In t r o d u ç ã o 1 1 3
P er fil
das
S ete I g r eja s
Éfeso. Em Éfeso o Senhor detecta a raiz da decadência. “Deixaste o teu
primeiro amor”. Ela é ameaçada com a remoção do candelabro a menos que haja
arrependimento. Período histórico - da era apostólica até o segundo século.
Esmirna. A mensagem de Éfeso é geral, já a de Esmirna é específica. E
embora dirigida à assembléia que ali se reunia naquele tempo, seu conteúdo
anuncia de maneira surpreendente as repetidas perseguições pelas quais os
cristãos iriam passar debaixo das ordens de imperadores cruéis. Contudo, Deus
pode ter usado o poder do mundo para deter o progresso do mal dentro da
Igreja. Período histórico - do segundo século a Constantino.
Pérgamo. Aqui temos o estabelecimento do cristianismo como religião oficial
do Estado. Isso foi realizado por Constantino. Ao invés de perseguir os cristãos, ele
os favoreceu. Desse momento em diante, o declínio da Igreja foi rápido. Sua profana
aliança com o mundo promoveu sua mais triste e profunda queda. Foi então que
ela perdeu o verdadeiro senso de seu relacionamento com Cristo no céu, e de seu
caráter de peregrina e forasteira neste mundo. Período histórico - do começo do
quarto século ao sétimo século, quando o papado foi instituído2.
Tiatira. Em Tiatira temos a representação do poder papal durante a Idade
Média, praticando todo tipo de impiedade, perseguindo os santos de Deus e
isso sob um disfarce de zelo religioso, simbolizado por Jezabel. Entretanto, havia
um remanescente temente a Deus em Tiatira; a quem o Senhor conforta com
a brilhante esperança de Sua vinda, e com a promessa de poder sobre as nações
quando Ele estabelecer Seu reino. Mas a palavra de exortação aos restantes é “O
que tendes, retende-o até que eu venha”. Período histórico - do estabelecimento
do papado até a vinda do Senhor. Ele continua até o fim, mas é particularmente
caracterizado pela “Idade das trevas”.
Sardes. Aqui vemos a parte protestante da cristandade que levou a cabo a
grande obra da Reforma. As tolas características do papado se desvanecem, mas o
novo sistema não tem vida em si mesmo. “Tens nome de que vives, e estás morto.”
Mas existem santos nesses sistemas inertes, e Cristo conhece todos eles. “Mas
também tens em Sardes algumas pessoas que não contaminaram suas vestes, e
comigo andarão de branco; porquanto são dignas disso.” Período histórico - do
turbulento século XVI em diante. Protestantismo após a Reforma.
2 De acordo com o Dicionário de Datas de Haydn, o título “Papa” foi primeiramente adotado
por Higino em 139. O Papa Bonifácio III induziu Flavius Phocas Augustus, imperador
bizantino, a restringi-lo aos prelados de Roma em 606. Também com a conivência de Phocas,
a supremacia do Papa sobre a Igreja cristã foi estabelecida.
14 I A H
is t ó r i a d a
I g r e ja - Introdução
Filadélfia. A Igreja de Filadélfia representa o fraco remanescente, mas
que é fiel à palavra e ao nome do Senhor Jesus. A principal característica desse
pequeno grupo era guardar a palavra da paciência de Cristo e não negar o Nome
dEle. A condição deles não era marcada por nenhuma demonstração de poder
nem nada externamente maravilhoso, mas por uma íntima comunhão pessoal
com o Senhor. Ele estava no meio deles como o Santo e o Verdadeiro, e é repre­
sentado como Administrador da casa. Ele tem a “chave de Davi”. Os tesouros da
palavra profética estão destrancados para os que habitam dentro de Sua casa. Os
fiéis dessa igreja também compartilham de Sua paciência e esperam Sua vinda.
“Como guardaste a palavra da minha paciência, também eu te guardarei da hora
da tentação que há de vir sobre todo o mundo, para tentar os que habitam na
terra - Ap 3:10.” Período histórico - especialmente desde a primeira parte do
século XX, mas movimentos em todas as áreas estão rapidamente progredindo
para as últimas fases da cristandade sobre o mundo.
Laodicéia. Em Laodicéia temos mornidão - indiferença - tolerância
religiosa com as falsas religiões; temos também altas pretensões, um espírito
vaidoso, e enorme auto-suficiência. Esse é o último estado dos que ostentam o
nome de Cristo nessa terra. Só que isso é intolerável a Ele. O julgamento final
se aproxima. Tendo separado para Si os poucos cristãos genuínos das corrupções
da cristandade, o Senhor Jesus vomita o resto. Aquilo que era para ser doce ao
Seu paladar se tornou nauseante e será expelido para sempre. Período histórico começa após o tempo de Filadélfia, e registra, de modo especial, a cena final.
Tendo, portanto, uma visão geral das sete Igrejas, agora vamos nos
esforçar, com a ajuda do Senhor, para visualizar essas diferentes fases na História
da Igreja. E nosso propósito é examinar com mais detalhes cada uma das sete
cartas à medida que avançarmos. Assim, por meio dessas mensagens poderemos
averiguar que luz é lançada sobre os diversos períodos históricos; e até que ponto
os fatos da História da Igreja ilustram o relato bíblico desses dois capítulos. Que
o Senhor conduza, renove e abençoe Seus amados.
Capítulo 1
A P edra A n g u la r
) iniciar o estudo de qualquer objeto, é bom averiguar suas origens a intenção ou plano original, e os primeiros passos em sua história. Em
relação à Igreja, temos isso de maneira totalmente clara e detalhada
nas Santas Escrituras. Ali estão não apenas a intenção original, mas os planos e
especificações do Deus ETERNO, e a história primitiva da obra sob Sua direção.
A fundação foi colocada e a obra continuou; mas o próprio Senhor ainda é o
único Construtor: por isso, desde então, tudo tem sido real e perfeito.
Ao final da dispensação judaica, o Senhor acrescentou o remanes­
cente salvo de Israel à Igreja recém-formada. Porém, ao término desta atual
dispensação, ou seja, a crista, Ele levará todos os que crêem em Seu nome para
o céu com corpos glorificados. Nem sequer uma única pessoa que faz parte da
Igreja será acrescentada à congregação dos santos no milênio. “Porque o mesmo
Senhor descerá do céu com alarido, e com voz de arcanjo, e com a trombeta de
Deus; e os que morreram em Cristo ressuscitarão primeiro. Depois nós, os que
ficarmos vivos, seremos arrebatados juntamente com eles nas nuvens, a encontrar
o Senhor nos ares, e assim estaremos sempre com o Senhor” (1 Tessalonicenses
4:16-17). Essa será a maravilhosa cena final da história da igreja, a verdadeira
Noiva de Cristo, sobre a terra: os mortos ressuscitarão, os vivos serão transfor­
mados e todos juntos, em seus corpos de glória, serão reunidos para encontrar o
Senhor no ar. Portanto, temos os limites da Igreja definidos, e todo o período da
história dela diante de nós. Agora voltaremos aos primórdios de seu surgimento
no mundo.
16
A H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 1
& * °k
A Fu n d a ç ã o
da
I g r e ja
Utilizando a figura de um edifício, o Senhor apresenta o tema da Igreja.
Suas palavras são infinitamente preciosas, e podemos usá-las como lema de toda
a sua história. Elas têm sustentado o coração e reavivado a esperança de Seu povo
em todas as eras e circunstâncias. Para sempre serão o lugar fortificado sobre o
qual a fé poderá se apoiar. O que mais pode ser tão abençoado, tão animador
e tão tranqüilizador que as seguintes palavras de Jesus: “SOBRE ESTA PEDRA
EDIFICAREI A MINHA IGREJA, E AS PORTAS DO INFERNO NÃO PREVALECERÃO
CONTRA ELA”
(Mateus 16:18).
Em Mateus 16, o Senhor questiona Seus discípulos quanto à opinião do
povo sobre quem Ele era. Isso resultou na confissão de Pedro acerca de Sua
divindade, e na graciosa revelação do Senhor concernente à Sua Igreja. Iremos
reproduzir toda a conversa em nossas páginas, pois se relaciona de maneira
intrínseca com o nosso tema.
“E, chegando Jesus às partes de Cesaréia de Filipe, interrogou os
seus discípulos, dizendo: Quem dizem os homens ser o Filho do homem? E
eles disseram: Uns, João o Batista; outros, Elias; e outros, Jeremias, ou um
dos profetas. Disse-lhes ele: E vós, quem dizeis que eu sou? E Simão Pedro,
respondendo, disse: Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo. E Jesus, respondendo,
disse-lhe: Bem-aventurado és tu, Simão Barjonas, porque to não revelou a carne
e o sangue, mas meu Pai, que está nos céus. Pois também eu te digo que tu és
Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não
prevalecerão contra ela” (Mateus 16:13-18).
Temos aqui os dois principais elementos relacionados ao edifício planejado
- a Pedra angular (ou Pedra que serve de base, como referência, ao todo da
construção), e o Construtor divino. “Sobre esta pedra edificarei a minha igreja.”
Mas alguns podem se perguntar ao que ou quem “esta pedra” se refere. A resposta
é bem clara; a pedra se refere às palavras de Pedro e não ao próprio Pedro, como
os apóstatas ensinam. De fato, havia uma pedra - uma pedra viva no novo templo.
“Tu és Pedro” —ou seja, Pedro era uma pedra. No entanto, a revelação que Deus
deu a Pedro acerca da glória da Pessoa de Seu Filho é a verdadeira fundação sobre
a qual a Igreja é edificada. “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo.” Porém, a glória
da Pessoa de Seu Filho na ressurreição ainda é uma verdade encoberta aqui. “Bemaventurado és tu, Simão Barjonas, porque to não revelou a carne e o sangue, mas
meu Pai, que está nos céus.” Logo após a confissão de Pedro, o Senhor anuncia Seu
intento de edificar Sua Igreja, e garante a eterna segurança dela. “Sobre esta pedra
edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela.”
V e r d a d e s F u n d a m e n t a is
Ele mesmo, a Fonte da vida, não poderia ser vencido pela morte; mas,
ao morrer, voluntariamente, como Substituto pelos pecadores, triunfou sobre a
morte e a sepultura, e está vivo para sempre, como afirmou ao apóstolo João
após Sua ressurreição: “Eu sou o primeiro e o último; e o que vivo e fui morto,
mas eis aqui estou vivo para todo o sempre. Amém. E tenho as chaves da morte
e do inferno” (Apocalipse 1:17-18). Que palavras majestosas e triunfantes! São
palavras de um conquistador —de Alguém que tem poder, poder sobre a vida, a
morte e o Hades: lugar dos espíritos separados da presença de Deus. As chaves
- símbolos de autoridade e poder - estão em Suas mãos. O ataque da morte
pode recair sobre o cristão, mas o aguilhão dela foi retirado. Ela se torna uma
espécie de mensageira de paz para conduzir os cansados peregrinos ao descanso
da casa celestial. A morte, portanto, não mais governa sobre o cristão, ela o serve.
“Tudo é vosso; seja Paulo, seja Apoio, seja Cefas, seja o mundo, seja a vida, seja
a morte, seja o presente, seja o futuro; tudo é vosso; e vós de Cristo, e Cristo de
Deus” (1 Coríntios 3:21-23).
Portanto, a Pessoa de Cristo, o Filho do Deus vivo - em Sua glória da
ressurreição - é a fundação, sólida e imperecível, sobre a qual a Igreja é edificada.
Como aquele que “foi morto e reviveu” (Apocalipse 2:8), Ele transmite vida
ressurreta a todos os que estão edificados nEle. E isso o que fica evidente na
mensagem da primeira epístola de Pedro. “E, chegando-vos para ele, pedra
viva... Vós também, como pedras vivas, sois edificados casa espiritual” (1 Pedro
2:4-5). E no mesmo capítulo, ele afirma: “E assim para vós, os que credes, é
preciosa” ou “uma honra”, em outras versões (v. 7). Que possamos entender
essas duas mais preciosas verdades relacionadas à nossa “Pedra Angular” - a
vida divina e a divina preciosidade. Ambas são dadas e se tornam posse de todos
os que colocam sua confiança em Cristo. “Chegando-vos para ele”, e não para
alguma coisa; é à Pessoa de Cristo que nos achegamos e nos relacionamos. Sua
vida - vida ressurreta - se torna nossa. A partir desse momento, Ele é nossa vida.
“E, chegando-vos para ele, pedra viva... Vós também, como pedras vivas, sois
edificados casa espiritual.” A própria vida de Cristo, como Homem ressurreto, e
tudo o que Ele herdou é nosso. Maravilhosa, extraordinária, abençoada verdade!
Quem não deseja, sobre todas as coisas, esse tipo de vida, uma vida além do
poder da morte —além das portas do Hades? A vitória eterna está gravada na
vida ressurreta de Cristo, e ela jamais pode ser testada novamente; essa é a vida
daquele que crê em Cristo.
No entanto, existe mais que vida para as pedras desse templo espiritual.
Há também a preciosidade de Cristo. “E assim para vós, os que credes, é
preciosa” (1 Pedro 2:7). Portanto, assim como a vida de Cristo se torna nossa
quando passamos a crer nEle, assim ocorre com Sua preciosidade. O princípio é
1
18 I A H
is t ó r ia d a
I g r e ja - capítulo 1
o mesmo. A vida pode ser vista como nossa capacidade de desfrutar; e a precio­
sidade como nosso título para possuir ou herdar as riquezas do alto. As honras,
títulos, dignidade, privilégios, posses e glórias de Cristo são nossas - todas
nossas porque estamos nEle. “E assim para vós, os que credes, é preciosa.” Que
pensamento surpreendente! “Cristo amou a igreja, e a si mesmo se entregou
por ela” (Efésios 5:25). Essa, portanto, é nossa Pedra Angular, e a felicidade de
todos os que estão na Rocha. Todo o panorama das riquezas celestiais em graça
e glória passou diante de Jacó na antiguidade, quando peregrino e estrangeiro
descansou sobre a rocha no deserto (Gênesis 28).
C r is t o ,
o Ú n ic o C o n s t r u t o r
da
I g r e ja
Mas Cristo é também o Construtor de Sua Igreja. O edifício contra o
qual nenhum artifício ou poder do inimigo pode prevalecer é obra do próprio
Cristo, embora vários edificadores tenham participado do mesmo. “Sobre esta
pedra edificarei a minha igreja.” Esse ponto tem de ficar bem claro, a fim de
que não confundamos o que o homem constrói com o que Cristo constrói.
Haverá grande confusão, em relação à verdade de Deus e ao presente estado da
cristandade, a menos que essa distinção seja feita. E imprescindível que compre­
endamos que Cristo é o único Construtor de Sua Igreja; Paulo, Apoio, e todos os
verdadeiros evangelistas são pregadores por meio dos quais os pecadores crêem.
A obra do Senhor na alma dos crentes é perfeita. E uma obra real, espiritual e
pessoal. Por intermédio de Sua graça no coração, eles se achegam a Cristo, como
pedras vivas, e são edificados nEle, que ressuscitou dentre os mortos. Eles têm
experimentado a graça divina. Tais são as pedras vivas com as quais o Senhor
está edificando Seu santo templo; e as portas do inferno jamais podem prevalecer
contra ele. Por essa razão, o próprio Pedro, todos os apóstolos e os verdadeiros
crentes são edificados casa espiritual. Quando Pedro se refere a esse templo
em sua primeira epístola não menciona nada sobre ser ele mesmo o construtor.
Cristo é o Construtor. A obra é dEle, exclusivamente dEle. “Edificarei a minha
igreja”, Ele afirma.
Vejamos agora na Palavra de Deus o que o homem edifica, quais materiais
utiliza e como faz a obra. Em 1 Coríntios 3 e 2 Timóteo 2 temos essas coisas
reveladas diante de nós. “Uma grande casa” é erguida pela instrumentalidade
humana. Em certo sentido, ela também é a Igreja, e a casa de Deus. Em 1
Timóteo 3:15, Paulo usa a expressão “casa de Deus, que é a igreja do Deus
vivo”. Em Hebreus 3:6 fala-se sobre a casa de Cristo: “a qual casa somos nós”.
V e r d a d e s F u n d a m e n t a is | 1
Mas repentinamente, a casa se toma terrivelmente corrompida pela fraqueza
humana e patente impiedade. A autoridade da Palavra de Deus foi colocada de
lado, e a vontade humana se tornou suprema. O efeito das filosofias sobre os
ensinamentos de Cristo foi dolorosamente manifesto. Porém, a madeira, feno e
a palha jamais podem ser misturados ao ouro, prata e pedras preciosas. A casa
se torna grande no mundo; como a árvore de mostarda, em cujos galhos muitos
encontram um abrigo conveniente. Estar ligado à “grande casa” dá às pessoas
certo status no mundo, ao invés da rejeição e desprezo que o Mestre experimen­
tou aqui. O arcebispo está em uma posição próxima à realeza. Porém, a igreja
professa não é apenas grande exteriormente, é mais ambiciosa e quer colocar o
selo de Deus em sua própria obra profana. Essa é a maior impiedade dela e a
fonte de sua cegueira, confusão e mundanismo.
Paulo, como o escolhido do Senhor para realizar tal obra, lançou as
fundações do “edifício de Deus” em Corinto, e outros construíram sobre tais
bases. Mas nem todos os materiais eram divinos. A fundação estava correta, e
cada homem tem de prestar atenção como edifica depois disso. Alguns podem
edificar com ouro, prata e pedras preciosas, outros com madeira, feno e
palha. Ou seja, há pessoas que podem ensinar a sã doutrina, e que procuram a fé
viva em todos com os quais têm comunhão; há também quem ensine doutrinas
mentirosas e receba na comunhão da igreja pessoas que não têm a genuína fé —a
mera observância de rituais substitui a fé e a vida eterna. É nessa situação que a
instrumentalidade, responsabilidade e fracassos humanos aparecem. Contudo,
o próprio construtor pode ser salvo se tiver fé em Cristo, mas sua obra será
destruída.
Existe, porém, outra e terrível classe de construtores, que corrompem o
templo do Senhor e destroem a si mesmos. Para a conveniência do leitor, iremos
apresentar a passagem inteira, pois nada pode ser mais claro. “Segundo a graça
de Deus que me foi dada, pus eu, como sábio arquiteto, o fundamento, e outro
edifica sobre ele; mas veja cada um como edifica sobre ele. Porque ninguém
pode pôr outro fundamento além do que já está posto, o qual é Jesus Cristo.
E, se alguém sobre este fundamento formar um edifício de ouro, prata, pedras
preciosas, madeira, feno, palha, a obra de cada um se manifestará; na verdade
o dia a declarará, porque pelo fogo será descoberta; e o fogo provará qual seja
a obra de cada um. Se a obra que alguém edificou nessa parte permanecer, esse
receberá galardão. Se a obra de alguém se queimar, sofrerá detrimento; mas
o tal será salvo, todavia como pelo fogo. Não sabeis vós que sois o templo de
Deus e que o Espírito de Deus habita em vós? Se alguém destruir o templo
de Deus, Deus o destruirá; porque o templo de Deus, que sois vós, é santo”
(1 Coríntios 3:10-17).
20 I A
H i s t ó r i a d a I g r e j a - capítulo 1
Observemos também as palavras do Senhor: “Sobre esta pedra edificarei
a minha igreja”. O Senhor Jesus não disse a Pedro que tinha edificado, ou que
estava edificando. Ele lhe comunicou o que iria fazer. Ele edificaria a Igreja, e
começou essa obra no dia de Pentecostes.
Mas existe outra verdade ainda mais intimamente conectada com a
história da Igreja, ligada à condição e ao caráter dela sobre a terra, que temos de
compreender antes de continuar analisando a mesma 1. Referimo-nos à verdade
contida na seguinte expressão:
As
C h a v e s d o R e in o d o s C é u s
Isso leva à “grande casa” - já mencionada - da profissão de fé meramente
externa. Ao mesmo tempo, temos de ter em mente que, embora intimamente
ligados, o reino dos céus e a grande casa são totalmente distintos. Por direito, o
mundo pertence ao Rei. “O campo é o mundo.” Seus servos estão prestes a iniciar
a colheita. Mas na prática temos a “grande casa”, ou seja, a cristandade3.
Quando tudo o que é meramente nominal na cristandade for varrido pelo
juízo divino, o reino será estabelecido em poder e glória. Isso será o milênio.
Ainda falando com Pedro sobre a Igreja, o Senhor acrescentou: “E eu te
darei as chaves do reino dos céus” (Mateus 16:19). A Igreja edificada por Cristo e
o reino do céus aberto por Pedro são duas coisas completamente diferentes. Esse
é um dos maiores e mais comuns erros da cristandade: usar termos intercambiavelmente como se tivessem o mesmo significado. Teólogos de todas as épocas, ao
assumirem que essas duas coisas são sinônimas, têm escrito de maneira confusa
tanto sobre a Igreja quanto sobre o reino. A menos que tenhamos um conhe­
cimento sobre os caminhos dispensacionais de Deus, nunca poderemos dividir
3 Os termos “igreja”, “reino dos céus” , e “grande casa” são bíblicos e têm significados um
pouco diferentes dependendo de quem os utiliza: se é o Senhor ou os apóstolos. A expressão
“minha igreja” , usada pelo Senhor, abrange apenas os membros genuínos e vivos. O primeiro
pensamento quanto ao “reino de Deus” certamente remete à autoridade do Senhor ressurreto.
E todos os que se sujeitam a Ele são admitidos em Seu reino. N a “grande casa” vemos o mal
em atividade, corroendo o corpo professo através da falha humana. Portanto, na prática, o
resultado é sua coexistência com o reino dos céus e a igreja professa. Mas há outro termo
em constante uso que não é encontrado na Bíblia. Esse termo é cristandade. Tal expressão é
eclesiástica, e originalmente englobava todos os que foram cristianizados, ou aqueles lugares
do mundo nos quais o cristianismo prevalece, em distinção aos países ímpios e às nações de
maioria muçulmana. Mas hoje é usado como sinônimo dos três outros termos já considerados.
De maneira geral, as quatro expressões são utilizadas intercambiavelmente, apesar de serem
diferentes quanto ao significado e aplicação.
I
V e r d a d e s F u n d a m e n t a is |
21
corretamente Sua Palavra. Não podemos confundir o que Cristo está edificando
com o que os servos estão edificando, por assim dizer, através da pregação e
do batismo. A Igreja, corpo de Cristo, está fundamentada na confissão de que
Ele é o Filho do Deus vivo, glorificado na ressurreição. Cada pessoa realmente
convertida tem de se relacionar primeiramente com Cristo antes de ter algo a
dizer à Igreja. O reino é um lugar mais amplo, e abrange cada indivíduo batizado
—todo o cenário cristão, quer seja verdadeiro ou não.
Cristo não estava dizendo a Pedro que lhe daria as chaves da Igreja ou as
chaves do céu. Se o tivesse feito, haveria algum respaldo para o ímpio sistema do
papado. Ele apenas disse: “E eu te darei as chaves do reino dos céus” - isto é, da
nova dispensação. As chaves, como já dissemos, não são para construir templos,
mas para abrir portas; e o Senhor incumbiu Pedro de abrir a porta do reino
primeiro para os judeus, depois para os gentios (Atos 2, 10). Mas a linguagem
de Cristo quando fala sobre Sua Igreja é de uma outra ordem. É simples, bela,
enfática e inconfundível. “Minha igreja.” Que profundidade, que plenitude há
nessas palavras: “Minha igreja” ! Quando o coração está em sintonia com Cristo
acerca de Sua Igreja existe uma compreensão de Seus sentimentos em relação a
ela que nenhuma palavra é capaz de expressar. Por isso, amamos ouvir essas duas
palavras, “Minha igreja”! Mas quem é capaz de perscrutar quanto do coração de
Cristo está revelado nelas? Pensemos novamente em outras duas palavras: “Esta
pedra”. E como se Ele estivesse dizendo que a glória de Sua Pessoa e o poder
de Sua vida ressurreta formassem a sólida base de “Sua igreja”. E mais uma
vez: “Edificarei”. Portanto, nessas cinco palavras vemos que tudo está nas mãos
do próprio Cristo, pois Ele é “cabeça da igreja, que é o seu corpo, a plenitude
daquele que cumpre tudo em todos” (Efésios 1:22-23).
*
A A bertura
do
*
*
R e in o
dos
C éus
A administração do reino do Senhor foi conferida a Pedro de uma maneira
especial, como vemos nos primeiros capítulos de Atos. O termo é extraído do
Antigo Testamento (Daniel 2 e 7). No capítulo 2 temos o reino; no capítulo
7 temos o Rei. A expressão “reino dos céus” ocorre somente no Evangelho de
Mateus, onde o evangelista escreve especialmente para os israelitas.
O
estabelecimento do reino dos céus em poder e glória na terra, personifi­
cado na figura do Messias, era a expectativa natural de todo judeu piedoso. João
Batista, como precursor do Senhor, pregou que o reino dos céus estava às portas.
Mas, em vez dos judeus receberem seu Messias, eles O rejeitaram e O crucifi­
22
I A H i s t ó r i a d a I g r e j a - capítulo 1
caram; consequentemente, o reino, de acordo com as expectativas judaicas, foi
colocado de lado. No entanto, o reino foi apresentado de outra forma. Quando
0 Messias rejeitado subiu para os céus, e tomou Seu lugar à destra de Deus,
após ter triunfado sobre todos os Seus inimigos, o reino dos céus sobre a terra
teve início. Agora o Rei está no céu, e como Daniel disse: “o céu reina” (4:26),
embora não abertamente. E desde o tempo em que Ele subiu até quando retornar
de novo, é o reino em mistério (Mateus 13:11). Quando Ele vier em poder e
grande glória, será o reino manifesto.
Na nova dispensação, no novo sistema, Pedro teve o privilégio de abrir
a porta para os judeus e gentios. E isso ele fez em suas pregações aos judeus
(Atos 2), e em suas pregações aos gentios (Atos 10). Mas novamente, queremos
chamar a atenção para o fato de que a Igreja, ou assembléia de Deus, e o reino
dos céus não são a mesma coisa. Para começar, vamos ser bem claros quanto
a esse ponto fundamental. Misturar os dois conceitos tem produzido grande
confusão e pode ser considerado a origem do papado, do puseísmo4, e de todo
sistema humano na cristandade. Os comentários abaixo sobre o campo de joio,
extraídos dos Estudos sobre o Evangelho de Mateus, de William Kelly, tratam
exatamente desse assunto, embora se refiram a um período posterior ao relatado
nos primeiros capítulos de Atos.
A Pa r á b o l a
do
J o io
“Mateus 13:24-25: ‘Propôs-lhes outra parábola, dizendo: O reino dos céus
é semelhante ao homem que semeia a boa semente no seu campo; mas, dormindo
os homens, veio o seu inimigo, e semeou joio no meio do trigo, e retirou-se.’ E
isso o que tem acontecido com os que professam a Cristo. Existem dois requisitos
necessários para a invasão do mal no meio dos cristãos. O primeiro é o descuido
dos próprios cristãos. Eles ficaram desatentos, caíram no sono, e o inimigo veio
e semeou o joio. Isso começou nos primórdios da cristandade. Encontramos
essas sementes até em Atos dos Apóstolos e mais evidentes ainda nas epístolas.
1 Tessalonicenses foi a primeira epístola inspirada que o apóstolo Paulo escreveu,
a segunda foi escrita logo depois. Paulo diz aos tessalonicenses que o mistério
da iniqüidade já estava operando, que outras coisas iriam acontecer, como a
apostasia e o aparecimento do homem do pecado, e que quando a impiedade se
manifestasse plenamente (ao invés de se manter oculta), então o Senhor colocaria
um ponto final no iníquo e em tudo o que estivesse relacionado a ele. O mistério
4 O movimento que visa aproximar as igrejas anglicanas e católica romana”. O termo é pouco
conhecido no Brasil, de modo geral.
V e r d a d e s F u n d a m e n t a is
I
da iniqüidade parece intimamente conectado à semeadura do joio relatada aqui.
Algum tempo depois, ‘quando a erva cresceu e frutificou’, quando o cristianismo
começou a se espalhar com tremenda velocidade sobre a terra, ‘apareceu também
o joio’. Mas fica evidente que o joio foi semeado quase imediatamente após a
boa semente. Não importa onde a obra de Deus esteja, Satanás sempre está no
encalço dela. Quando o homem foi feito, ele deu ouvidos à serpente e caiu.
Quando Deus deu a Lei, ela foi quebrada mesmo antes de ter sido confiada a
Israel. Essa é sempre a história da natureza humana.
“O dano no campo foi feito, e jamais reparado. O joio não será tirado
agora do campo: nesse momento ainda não haverá julgamento para ele. Isso quer
dizer que temos de ter joio na igreja? Se o reino dos céus significa a igreja, não
deve haver disciplina: a impureza da carne ou do espírito será permitida. Aqui
está a importância de percebermos a distinção entre igreja e reino. O Senhor
proíbe que o joio seja arrancado do reino dos céus: ‘Deixai crescer ambos juntos
até à ceifa’ (v. 30), ou seja, até que o Senhor venha para julgar. Eu repito, caso o
reino dos céus correspondesse à igreja, isso significaria uma coisa: que nenhum
mal, flagrante ou comum, será extraído da igreja até o dia do julgamento.
Vemos, portanto, a importância de fazer tal diferenciação, para a qual muitos
não atentam. Ela é imprescindível para a verdade e santidade. Não existe nem
mesmo uma única expressão na Palavra de Deus que possamos ignorar.
“Qual é, portanto, o significado dessa parábola? Ela não tem relação
alguma com a questão da comunhão da igreja. E o ‘reino dos céus’ que está
em evidência aqui - a totalidade dos que confessam a Cristo, quer essa confissão
seja falsa ou genuína. Assim gregos, coptas, nestorianos, católicos romanos,
protestantes, estão no reino dos céus; não apenas os verdadeiros crentes, mas
também os ímpios que professam o nome de Cristo. Qualquer pessoa, não
judia nem pagã, que confessa exteriormente o nome de Cristo está no reino dos
céus. Pode ser imoral ou herege, ela não será tirada do reino dos céus. Mas seria
correto recebê-la na mesa do Senhor? Deus proíbe tal coisa! Se uma pessoa que
vive obstinadamente em pecado estiver na igreja, será excluída dela; mas não há
como removê-la do reino dos céus. Isso só pode ser feito tirando-lhe a vida; pois
significa arrancar o joio pela raiz. E foi nesse erro que o cristianismo mundano
caiu, não muito tempo depois da morte dos apóstolos. As punições temporais
surgiram para disciplina: leis foram feitas com o propósito de submeter os
obstinados ao poder civil. Se não honrassem a assim chamada igreja, aos deso­
bedientes não seria permitido viver. Deste modo, o mesmo mal contra o qual o
Senhor estivera protegendo os discípulos, continuou; o imperador Constantino
usou a espada para reprimir os ofensores da igreja. Ele e seus sucessores introdu­
ziram as punições temporais no intuito de lidar com o joio, prová-lo e arrancar
suas raízes. Veja a igreja de Roma, onde se confunde totalmente a igreja com
A H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 1
o reino dos céus: ela afirmou que se alguém fosse considerado herege, deveria
ser levado aos tribunais para ser queimado. Nunca confessou nem corrigiu seus
próprios erros, pois se julga infalível. Supondo que as vítimas dela fossem mesmo
joio, isso seria expulsá-las do reino. Se você arranca o joio do campo, você o
mata. Pode haver pessoas profanando o nome de Deus; mas temos de deixar o
próprio Deus lidar com elas.
“Isso não anula a responsabilidade cristã para com aqueles que estão à
volta da mesa do Senhor. Encontraremos instruções quanto a isso nos escritos
sobre a igreja. ‘O campo ê o mundo’, a igreja engloba apenas os membros do
corpo de Cristo. Examinemos 1 Coríntios, onde o Espírito Santo mostra a
verdadeira natureza da disciplina eclesiástica. Suponhamos que haja cristãos
professos vivendo na prática de pecado; enquanto tais pessoas estiverem nessa
condição, não pertencerão ao corpo de Cristo. Qualquer santo pode cair em
pecado, mas a igreja, sabendo disso, é obrigada a intervir com o propósito de
expressar o juízo de Deus sobre o pecado. Se ela deliberadamente permitisse
a tal indivíduo participar da mesa do Senhor, na verdade faria do Senhor um
cúmplice do pecado. A questão não é se tal pessoa é convertida ou não. Os
não-convertidos não têm relação alguma com a igreja; quanto aos convertidos,
o pecado não é para ser ignorado. Os culpados não são expulsos do reino dos
céus, mas são retirados da igreja. O ensino da Palavra de Deus se torna ainda
mais claro acerca dessas duas verdades. E errado usar punições mundanas para
lidar com um hipócrita, mesmo quando este é descoberto. Devemos procurar
o bem da alma dessa pessoa, porém isso não é desculpa para puni-lo. Mas se
um cristão é culpado de pecado, a igreja não tem de suportá-lo, embora seja
chamada para ser paciente no julgamento. Temos de deixar os culpados que não
são convertidos serem julgados pelo Senhor em Sua vinda.
“Esse é o ensinamento da parábola do joio; e ela nos dá uma profunda
visão do cristianismo. Tão certo como o Filho do homem semeou a boa semente,
Seu Inimigo também semeou a má, que brotaria com o restante, e esse mal não
pode ser retirado, pelo menos por enquanto. Existe uma solução para o mal que
entre na igreja, mas não para o mal que está no mundo.”
Fica perfeitamente claro, tanto bíblica quanto historicamente, que o maior
erro no qual o corpo professo incorreu foi ter confundido essas duas coisas - joio
e trigo; ou seja: a Igreja concedeu todos os privilégios temporais e oficiais da
igreja professa a certos indivíduos, simplesmente por terem passado pelo batismo,
junto com os que realmente se converteram e se submeteram a Deus. Porém, a
maior diferença entre o que chamamos de sistema sacramental e o sistema vital
fica patente e pode ser claramente distinguida se estudarmos a história da igreja
corretamente.
V e r d a d e s F u n d a m e n t a is
Como consequência, outro erro, igualmente sério, ocorre. O grande e
visível corpo professo se tornou - aos olhos e na linguagem dos homens —, a igreja.
Homens piedosos caíram nessa armadilha, e, portanto, a diferença entre igreja
e reino rapidamente foi apagada. Todos os mais sagrados lugares e privilégios,
no corpo professo, foram compartilhados tanto por pessoas piedosas quanto por
ímpios. A Reforma fracassou totalmente em limpar a igreja dessa triste mistura.
Isso também nos foi legado e os sistemas anglicanos, luteranos, presbiterianos,
bem como as diversas formas de batismo e admissão de membros são provas
cabais dessa herança. Em nossos dias, os sistemas sacramentais prevalecem de
maneira abrangente e alarmante e estão aumentando rapidamente. O real e o
formal, os vivos e os mortos estão mesclados indistintamente nas várias formas
de protestantismo. Infelizmente, e como isso é sério, há muitos na igreja professa
- no reino dos céus - que jamais entrarão no próprio céu. Aqui encontramos o
joio e o trigo, os servos maus e os fiéis, virgens néscias e virgens sábias. Embora
todas as pessoas que se batizaram sejam incluídas no reino dos céus, apenas
aquelas que foram vivificadas e seladas pelo Espírito Santo pertencem à Igreja
de Deus.
Existe mais uma coisa relacionada com a igreja professa que merece um
breve comentário aqui. E o princípio divino do governo da Igreja.
* * *
O P r in c íp io D iv in o
d o G o v e r n o d a I g r e ja
O Senhor não apenas deu a Pedro as chaves para que ele abrisse as portas
da nova dispensação, mas também lhe confiou a administração interna da igreja.
As palavras do comissionamento foram: “Tudo o que ligares na terra será ligado
nos céus, e tudo o que desligares na terra será desligado nos céus” (Mateus
16:19). A questão é o que elas significam. Cremos que significam autoridade e
poder vindos de Deus para serem exercidos na e pela igreja, limitados em seus
resultados a este mundo. Não há nas palavras do Senhor nenhuma insinuação
sobre a igreja decidindo algo nos céus. Essa é uma interpretação falsa e um
poderoso engano da apostasia. A igreja na terra pode não ter nada a dizer ou a
fazer quanto ao que acontece no céu na questão de ligar e desligar. A esfera de
sua atuação se restringe aos seus próprios limites e, quando age de acordo com
a comissão de Cristo, ela tem a promessa de ratificação nos céus.
Temos de acrescentar que também não existe aqui nenhuma menção
da igreja ou de qualquer de seus oficiais no papel de intermediário entre as
26 j A H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 1
pessoas e Deus no que tange ao perdão eterno ou ao juízo eterno. Essa é a
ousada blasfêmia de Roma. “Quem pode perdoar pecados, senão Deus?”
(Marcos 2:7). Ele reserva esse poder somente para Si mesmo. Além disso, os
indivíduos que estão sob o governo da igreja já são perdoados, ou, pelo menos,
têm direito ao perdão. “Não julgais vós os que estão dentro?” Isso se aplica
unicamente aos que estão no seio da igreja. “Mas Deus julga os que estão de fora”
(1 Coríntios 5:12-13). É dito acerca de todos os crentes que estão no amplo
terreno da cristandade: “Com uma só oblação aperfeiçoou para sempre os que
são santificados” (Hebreus 10:14). Por esta razão, a atribuição da igreja de reter
ou perdoar pecados é apenas para o momento presente, e tem um caráter estrita­
mente administrativo. Esse é o princípio divino de receber pessoas para fazerem
parte da assembléia de Deus, devido ao bom testemunho de conversão, doutrina
sã, e santidade de vida; e também é o princípio de expulsar os pecadores impe­
nitentes até que sejam restarurados pelo arrependimento verdadeiro.
Porém, alguns de nossos leitores podem ter a impressão de que tal poder
foi concedido somente a Pedro e aos demais apóstolos e, consequentemente,
cessou quando eles morreram. Isso é um erro. E verdade que ele foi dado a Pedro
em primeiro lugar, como já vimos; e não há dúvidas que nos dias dos apóstolos
foi manifestado um tamanho poder, como jamais havia sido visto antes. Mas
a autoridade não era maior ou menor. A igreja tem a mesma autoridade agora
que tinha naquele tempo no tocante à disciplina na assembléia, embora hoje lhe
falte o poder. A palavra do Senhor permanece imutável. Cremos que apenas um
apóstolo poderia falar como Paulo em 1 Coríntios 5. “Em nome de nosso Senhor
Jesus Cristo, juntos vós e o meu espírito, pelo poder de nosso Senhor Jesus Cristo,
seja entregue a Satanás para destruição da carne, para que o espírito seja salvo no
dia do Senhor Jesus” (w. 4-5). Essa foi a manifestação do poder espiritual sobre
um indivíduo, não para julgamento da igreja5. O mesmo apóstolo, em referência
ao mesmo caso, diz à assembléia: “Tirai, pois, dentre vós a esse iníquo” (5:13).
O ato de tirar não era um ato exclusivo do apóstolo, mas de toda a assembléia.
Nesse caso, e dessa maneira, oa pecados da pessoa excomungada eram retidos,
5 “Entregar a Satanás é um ato de poder; expulsar uma pessoa é uma tarefa da assembléia
vinculada à fidelidade. Sem dúvida alguma, excluir alguém da assembléia de Deus é algo
muito sério e nos deixa expostos à dor e a vários transtornos vindos do inimigo; mas entregar
uma pessoa diretamente a Satanás é um ato de poder inegável. Isso foi feito no caso de Jó
para o bem deste. Isso foi feito por Paulo em 1 Coríntios 5, embora ele estivesse agindo
dentro do contexto de uma assembléia estabelecida. Neste caso, o objetivo era a destruição
da carne. E m 1 Timóteo 1, Paulo também entregou Himeneu e Alexandre a Satanás para
que aprendessem a não blasfemar. Toda disciplina tem como alvo a correção do indivíduo, e
também a manutenção da santidade da casa de Deus, e da pureza da consciência dos próprios
santos” - trecho extraído do livro Present Testimony, volume 1.
V e r d a d e s F u n d a m e n t a is
embora, evidentemente, ela fosse convertidoa Em 2 Coríntios 2, encontramos tal
homem totalmente restaurado. O arrependimento dele é aceito pela assembléia e
seus pecados são perdoados. O extravasar do coração do apóstolo nessa ocasião
e suas exortações à igreja são lições valiosas para todos os que estão envolvidos
na administração da igreja. O alvo de Paulo era remover a terrível desconfiança
com a qual na maioria das vezes os irmãos que erraram são reintegrados aos
privilégios da assembléia. “Basta-lhe ao tal esta repreensão feita por muitos. De
maneira que pelo contrário deveis antes perdoar-lhe e consolá-lo, para que o tal
não seja de modo algum devorado de demasiada tristeza. Por isso vos rogo que
confirmeis para com ele o vosso amor” (2 Coríntios 2:6-7). Aqui temos um
caso pontual, ilustrativo do governo da assembléia de acordo com a vontade de
Cristo. “Tudo o que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo o que desligares
na terra será desligado nos céus.”
E sse P r in c íp io d e G o v e r n o
A in d a é A plicável
da
I g r e ja
A dificuldade de muitas pessoas é saber se e como tais princípios ainda
podem ser aplicados hoje. Para isso temos de voltar à palavra de Deus. Temos
de ser capazes e estarmos dispostos a proclamar: “Porque nada podemos contra
a verdade, senão pela verdade” (2 Coríntios 13:8).
A autoridade administrativa e o poder sobre os quais falamos não foram
dados apenas para Pedro e os demais apóstolos, mas também para a igreja
como um todo. Em Mateus 18 temos a prática de um princípio estabelecido no
capítulo 16: “E, se não as escutar, dize-o à igreja; e, se também não escutar a
igreja, considera-o como um gentio e publicano. Em verdade vos digo que tudo
o que ligardes na terra será ligado no céu, e tudo o que desligardes na terra será
desligado no céu... Porque, onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome,
aí estou eu no meio deles” (Mateus 18:17-20).
Portanto, aprendemos que os atos de dois ou três, reunidos no nome de
Cristo, têm a mesma sanção divina que a administração de Pedro. E novamente
em João 20, o Senhor entrega o mesmo princípio de governo aos discípulos, não
somente aos apóstolos, e isso após a ressurreição, onde a assembléia está realmente
unida a Cristo como o Homem ressurreto. Isso é de suprema importância. O
espírito de vida em Jesus Cristo torna os discípulos livres —cada discípulo livre
—da lei do pecado e da morte (Romanos 8:2). E a igreja é edificada sobre “esta
rocha” - Cristo ressurreto, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela.
“Chegada, pois, a tarde daquele dia, o primeiro da semana, e cerradas as portas
27
28) A H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 1
onde os discípulos, com medo dos judeus, se tinham ajuntado, chegou Jesus, e
pôs-se no meio, e disse-lhes: Paz seja convosco. E, dizendo isto, mostrou-lhes as
suas mãos e o lado. De sorte que os discípulos se alegraram, vendo o Senhor.
Disse-lhes, pois, Jesus outra vez: Paz seja convosco; assim como o Pai me enviou,
também eu vos envio a vós. E, havendo dito isto, assoprou sobre eles e disse-lhes:
Recebei o Espírito Santo. Aqueles a quem perdoardes os pecados lhes são
perdoados; e àqueles a quem os retiverdes lhes são retidos” (João 20:19-23).
Podemos considerar que aqui o Senhor estabelece e inicia de fato a nova
criação. Os discípulos são cheios e revestidos de paz e do Espírito de vida em
Cristo Jesus. Eles serão enviados como Seus mensageiros, partindo de Seu túmulo
vazio devido à ressurreição, levando a abençoada mensagem de paz e vida eterna
a um mundo devastado pelo pecado, dor e morte. O princípio da administra­
ção interna dessa nova criação também é estabelecido claramente: é exatamente
essa administração que sempre dará à assembléia crista um caráter distintivo e
celestial, tanto na presença de Deus quanto na presença dos homens.
O P r in c íp io d e R ec eber P essoas
n o I n íc io d a I g r e ja
Por ser este princípio a base correta para todas as congregações cristãs,
é bom nos determos para observar como ele operava nos dias dos apóstolos.
Certamente eles entendiam seu significado e como aplicá-lo.
No dia de Pentecostes, e por algum tempo depois disso, não parece que
os novos convertidos fossem submetidos a algum exame quanto à realidade de
sua fé, seja da parte dos apóstolos ou de outros. “De sorte que foram batizados
os que de bom grado receberam a sua palavra; e naquele dia agregaram-se quase
três mil almas” (Atos 2:41). Portanto, receber a palavra era a base do batismo e
da comunhão, pois nesta ocasião a obra estava inteiramente nas mãos do próprio
Cristo. “E todos os dias acrescentava o Senhor à igreja aqueles que se haviam de
salvar” (v. 47). A tentativa de enganar os apóstolos maquinada por Ananias e
Safira foi detectada. Pedro fez o que deveria fazer, mas o Espírito Santo agiu com
poder e majestade, e Pedro reconheceu isso. Por essa razão ele disse a Ananias:
“Ananias, por que encheu Satanás o teu coração, para que mentisses ao Espírito
Santo...?” (Atos 5:3).
Mas esse virgem estado de coisas logo acabou. As falhas começaram - o
Espírito Santo foi entristecido, e se tornou necessário examinar os que se diziam
cristãos para verificar se as motivações, objetivos e estado de alma deles estavam
de acordo com a mente de Cristo. Agora estamos nas condições descritas em 2
V e r d a d e s F u n d a m e n t a is |
I
Timóteo 2. Temos de ter comunhão apenas “com os que, com um coração puro,
invocam o Senhor” (v. 22).
Depois que a igreja se tomou tão misturada devido à presença daqueles
cuja confissão de fé era apenas nominal, um grande cuidado tormou-se
necessário ao receber pessoas para participarem da comunhão. Não basta que
alguém diga que se converteu e peça para fazer parte da igreja baseado em
seu próprio discurso: tal candidato tem de se submeter ao exame de cristãos
experientes. Quando um indivíduo diz que sentiu convicção de pecado, e foi
levado ao arrependimento diante de Deus e à fé no Senhor Jesus Cristo, sua
confissão tem de ser investigada por pessoas que passaram pelo mesmo tipo
de experiência. E mesmo quando a conversão for notoriamente genuína, um
cuidado piedoso e gentil tem de ser exercido na admissão desse indivíduo, pois
alguém que desonre a Cristo, que seja prejudicial à própria congregação e que
a enfraqueça, pode também ser acolhido, embora inconscientemente. Nesse
momento é necessário discernimento espiritual. E essa é a maior manifestação
de bondade ao candidato, e o imprescindível zelo pela honra de Cristo e pela
pureza da comunhão. A comunhão cristã chegaria ao fim se as pessoas fossem
recebidas baseadas apenas nas opiniões delas mesmas.
Em Atos 9 vemos a prática desse princípio no caso da recepção do
próprio apóstolo. E certamente se ele mesmo não foi oficialmente aceito sem
um testemunho adequado, quem pode reclamar? E obvio que o caso dele foi
peculiar, mas ainda pode ser tomado como ilustração prática do assunto que
estamos tratando.
Encontramos Ananias em Damasco e toda a igreja em Jerusalém ques­
tionando a veracidade da conversão de Saulo, embora esta fosse miraculosa. É
claro que ele foi um inimigo declarado dos que proclamavam o nome de Cristo, e
isso tornava os discípulos ainda mais cautelosos. Ananias hesitou em batizá-lo até
que estivesse plenamente convencido da conversão dele. Ele consultou ao Senhor
sobre o assunto, e após ouvir Suas palavras, foi diretamente a Saulo; Ananias lhe
assegurou que fora enviado pelo mesmo Jesus que aparecera a Saulo no caminho
de Damasco, e confirmou a verdade do que ocorrera. Saulo foi grandemente
reconfortado, recobrou a visão e foi batizado.
Então, quanto à reação da igreja em Jerusalém lemos: “E, quando Saulo
chegou a Jerusalém, procurava ajuntar-se aos discípulos, mas todos o temiam,
não crendo que fosse discípulo. Então Barnabé, tomando-o consigo, o trouxe
aos apóstolos, e lhes contou como no caminho ele vira ao Senhor e lhe falara, e
como em Damasco falara ousadamente no nome de Jesus” (Atos 9:26-27). Paulo
é um modelo para a igreja em muitas coisas, e nisso também. Ele é recebido
30 I A
H i s t ó r i a d a I g r e j a - capítulo 1
na assembléia - como todos os candidatos deveriam ser recebidos - com base
em um testemunho condizente com a verdade de seu cristianismo proclamado.
Porém, enquanto toda cautela piedosa tem de ser tomada para que pessoas
como Simão, o mago (Atos 8), possam ser detectadas, é preciso demonstrar
toda paciência e ternura para com os tímidos e fracos na fé. Porém, imediata­
mente após a recepção, a vida em Cristo e a consistência têm de serem buscadas
(ver Romanos 14:15; 1 Coríntios 5 e 2 Coríntios 2). O caminho da igreja é
sempre apertado.
O Papado mostra sua desesperada impiedade no uso indevido que
tem feito da prerrogativa da igreja de reter ou perdoar pecados, daí todas as
abominações da absolvição sacerdotal. O protestantismo foi para outro extremo
- provavelmente por temer a aparência do papado - e tem quase desprezado a
disciplina. O caminho da fé é seguir a palavra de Deus.
O dia de Pentecostes - primeiro momento da história da igreja na terra - é
a base que esclarece os grandes princípios fundamentais da igreja e do reino. A
menos que compreendamos os princípios do cristianismo, jamais entenderemos
sua história.
C a p ítu lo 1
O D
ia d e
P en tec o stes
A
festa judaica de Pentecostes pode ser chamada de o dia do nascimento
da igreja cristâ. Essa era também a data em que se comemorava a
^entrega das tábuas da lei a Moisés, no monte Sinai. Aparentemente,
os judeus não comemoravam esse evento. Cinquenta dias após a ressurreição
do Senhor, a igreja foi formada e sua história teve início. Os santos do Antigo
Testamento não faziam parte dessa igreja do Novo Testamento. Ela nunca
existiu de fato, até o dia de Pentecostes.
Todos os santos, desde o início, tiveram direito a mesma vida eterna, já que
todos são filhos do mesmo Deus e Pai, e todos morarão no mesmo céu; mas os
santos do Antigo Testamento pertencem a outras dispensações, que aconteceram
antes da vinda de Cristo. Nas Escrituras, cada dispensação tem seu início, desen­
volvimento, declínio e término e todas terão seu próprio reflexo no céu. Tanto
as pessoas quanto as dispensações em que elas viveram serão indistintas lá.
Por isso, em Hebreus 11, ao falar sobre os antigos heróis da fé, o apóstolo
diz: “E todos estes, tendo tido testemunho pela fé, não alcançaram a promessa,
provendo Deus alguma coisa melhor a nosso respeito, para que eles sem nós não
fossem aperfeiçoados” (vv. 39-40). Obviamente, se Deus proveu alguma coisa
melhor para nós, tem de ser alguma coisa diferente também. Não nos oponhamos
à própria palavra de Deus. Além disso, em Mateus 16 diz: “Sobre esta pedra
edificarei a Minha igreja” (v. 18). E ao mesmo tempo, Ele deu as chaves para
Pedro abrir as portas da nova dispensação. Até então, Ele não tinha edificado
Sua igreja, e as portas do reino não estavam abertas. Mas a diferença entre o
32
I A H i s t ó r i a d a I g r e j a - capítulo 2
antigo e o novo se tornará mais evidente quando falarmos dos grandes eventos
do dia de Pentecostes. Vamos começar com os tipos de Levítico 23.
Foi ordenado aos fdhos de Israel que levassem ao sacerdote um feixe das
primícias da colheita deles, para que ele o movesse diante do Senhor, a fim
de que o povo fosse aceito por Deus (w. 9-11). Acreditamos que esse ritual
prenunciava a ressurreição de nosso Senhor, na manhã seguinte ao sábado judeu,
base da aceitação cristã diante de Deus no Cristo ressurreto. “Fala aos filhos de
Israel, e dize-lhes: Quando houverdes entrado na terra, que vos hei de dar, e
fizerdes a sua colheita, então trareis um molho das primícias da vossa sega ao
sacerdote; e ele moverá o molho perante o Senhor, para que sejais aceitos; no dia
seguinte ao sábado o sacerdote o moverá” (veja Mateus 28 e Marcos 16).
A festa de Pentecostes era celebrada sete semanas após o mover dos feixes.
A oferta das primícias era considerada o primeiro dia da colheita na judéia,
supostamente no dia de Pentecostes celebrava a colheita final do milho como
totalmente realizada. Então eles tinham uma santa convocação. Dois pães, feitos
com a farinha da nova colheita, caracterizavam essa festa. Os pães tinham de
conter fermento e de serem trazidos de cada casa. Alguns pensam que esses dois
pães prefiguravam a convocação para formar a igreja, composta tanto por judeus
quanto pelos gentios. Pode ser, mas o que importa aqui é o número. Em Israel
eram necessárias duas pessoas para validar um testemunho. O fermento indica,
sem dúvida, o pecado que habita dentro do crente e, é claro, na igreja, vista em
sua condição temporal.
Juntamente com a oferta movida - belo tipo do ressurreto Cristo puro
e santo — eram oferecidos sacrifícios de aroma suave, mas nenhum sacrifício
pelo pecado. Já com os dois pães —tipo dos que estão em Cristo - uma oferta
pelo pecado se faz necessária, pois o pecado está presente e tem de ser coberto.
Embora o perfeito e definitivo sacrifício de Cristo resolvesse totalmente a questão
da natureza pecaminosa e dos pecados cometidos ao longo da vida, ainda na
prática e na experiência, o pecado habita em nós e habitará enquanto estivermos
neste mundo. Todos reconhecem isso, embora nem todos possam compreender a
perfeição da obra de Cristo. O cristão foi aperfeiçoado para sempre através de uma
única oferta, ainda que tenha de se humilhar e confessar a Deus cada falha.
O significado simbólico de Pentecostes ficou evidenciado de maneira
notável na descida do Espírito Santo. Ele desceu para reunir os filhos de Deus
que se achavam espalhados (João 11:52). Devido a esse grande evento, o sistema
do judaísmo foi colocado de lado, e um novo vaso do testemunho - a igreja
de Deus - foi introduzido ao mundo. Agora observe a ordem dos eventos. Em
primeiro lugar, temos a ressurreição e ascensão de Cristo.
D
e
Pen teco stes
ao
M a r t ír io
de
E stev ã o I
* * *
A R e s su r r e iç ã o
e
A sc en sã o
de
C r is t o
Encarnação, Crucificação e Ressurreição são os grandes fatos ou
verdades fundamentais da igreja e do cristianismo. A encarnação foi necessária
à crucificação e ambas à ressurreição. E uma verdade bendita que Cristo morreu
na cruz por nossos pecados, porém, é igualmente verdade que o crente morreu
em Sua morte (Romanos 6; Colossenses 2). A vida cristã é vida na ressurreição.
A igreja está edificada sobre o Cristo ressurreto. Nenhuma verdade pode ser
mais abençoada e maravilhosa que a encarnação e a crucificação, mas a igreja
está associada com a ressurreição e glorificação de Cristo.
Em Atos 1 temos um quadro do que está relacionado à ressurreição e
ascensão do Senhor; e também com os atos dos apóstolos antes da descida
do Espírito Santo. O maravilhoso Senhor ainda fala e age por intermédio do
Espírito Santo. Foi “pelo Espírito Santo” que Ele deu ordenanças aos apóstolos
que escolhera. Isso é digno de nota por nos ensinar duas coisas:
1. O caráter de nossa união com Cristo; o Espírito Santo no cristão e no
Senhor ressurreto os une um ao outro de maneira extraordinária. “Mas
o que se ajunta com o Senhor é um mesmo espírito” (ICoríntios 6:17).
Pelo “mesmo Espírito” ambos são unidos.
2. Esse importante fato chama a atenção para a abençoada verdade de
que o Espírito Santo habita e age no cristão, também após este estar
efetivamente na ressurreição. Naquele momento, Ele não terá —como
tem agora - a carne em nós para combater, mas irá nos conduzir sem
qualquer impedimento às glórias do céu - à jubilosa adoração, ao
abençoado serviço, e à plenitude da vontade de Deus.
O Senhor ressurreto ordena aos apóstolos a aguardarem em Jerusalém
pela “promessa do Pai, que (disse ele) de mim ouvistes. Porque, na verdade, João
batizou com água, mas vós sereis batizados com o Espírito Santo, não muito
depois destes dias” (Atos 1:4-5). Não se trata mais de uma questão de promessas
temporais a Israel, isso será adiado para um dia futuro . A promessa do Pai em
relação ao Espírito Santo era uma coisa inteiramente distinta, e com resultados
radicalmente diferentes.
O Senhor falou muitas coisas relativas ao reino de Deus com Seus
apóstolos, subiu aos céus e então uma nuvem impediu que eles O vissem. A
volta do Senhor também é prenunciada de maneira clara e cristalina nessa
mesma ocasião. “E, quando dizia isto, vendo-o eles, foi elevado às alturas, e uma
nuvem o recebeu, ocultando-o a seus olhos. E, estando com os olhos fitos no
34 I A
H i s t ó r i a d a I g r e j a - capítulo 2
céu, enquanto ele subia, eis que junto deles se puseram dois homens vestidos de
branco. Os quais lhes disseram: Homens galileus, por que estais olhando para
o céu? Esse Jesus, que dentre vós foi recebido em cima no céu, há de vir assim
como para o céu o vistes ir” (Atos 1:9-11). A partir dessas palavras fica evidente
que Ele subiu pessoal, visível e corporalmente, e que é dessa mesma forma que
Ele deverá vir - Ele aparecerá novamente entre as nuvens, e será manifesto aos
povos sobre a terra, pessoal, visível e corporalmente; mas dessa vez com poder
e grande glória.
Os apóstolos e discípulos tiveram de aprender duas coisas:
1. Que Jesus foi tomado desse mundo e levado aos céus.
2. Que Ele virá novamente. O testemunho deles se baseava sobre esses
dois grandes fatos. Jerusalém seria o ponto de partida do ministério
apostólico, e para isso teriam de esperar pelo poder de cima. Agora
chegamos ao segundo grande evento, e mais importante de todos, que
se relaciona à condição humana neste mundo - o dom do Espírito
Santo. Já não seria Deus por nós, mas Deus em nós. Isso aconteceu no
dia de Pentecostes.
* í; *
A D e s c id a
do
E sp ír it o Sa n t o
O tempo determinado chegara. A redenção tinha sido cumprida, Deus
tinha sido glorificado - Cristo estava à destra do Pai no céu, e o Espírito Santo
descera à terra. Deus inaugura a igreja e o faz de maneira condizente com Sua
sabedoria, poder e glória. Um poderoso milagre foi realizado, um sinal exterior
foi dado. O grande evento é registrado como segue abaixo.
Atos 2. “E, cumprindo-se o dia de Pentecostes, estavam todos concordemente
no mesmo lugar; e de repente veio do céu um som, como de um vento veemente e
impetuoso, e encheu toda a casa em que estavam assentados. E foram vistas por eles
línguas repartidas, como que de fogo, as quais pousaram sobre cada um deles. E
todosforam cheios do Espírito Santo, e começaram a falar noutras línguas, conforme
o Espírito Santo lhes concedia que falassem. ” E bom fazermos uma pausa aqui
para percebermos algumas coisas relacionadas à descida do Espírito Santo e à
demonstração de Seu poder nesse importante dia.
Em primeiro lugar houve a consumação da promessa do Pai; o próprio
Espírito Santo foi enviado dos céus. Essa era a grande verdade de Pentecostes. Ele
veio do alto para habitar na igreja - o lugar preparado para Ele pela aspersão do
D
e
P en t ec o stes
ao
M a r t ír io
de
E st e v ã o
sangue do Jesus Cristo. Houve também o cumprimento da palavra do Senhor
aos apóstolos: “Vós sereis batizados com o Espírito Santo, não muito depois
destes dias” (Atos 1:5). Os discípulos não tinham a menor idéia do significado
dessa palavra, mas o fato estava consumado. A revelação total da doutrina de
“um só corpo” aguardava os ensinamentos de Paulo. “Pois todos nós fomos
batizados em um Espírito, formando um corpo, quer judeus, quer gregos, quer
servos, quer livres, e todos temos bebido de um Espírito” (1 Coríntios 12:13).
Porém, além dos vários dons concedidos para o serviço do Senhor, temos
algo mais bendito da perspectiva pessoal e inteiramente novo sobre a terra. O
próprio Espírito Santo veio para habitar, não apenas na igreja, mas também
em cada indivíduo que crê no Senhor Jesus. E, louvado seja o Senhor, que
isso é tão verdadeiro hoje como foi no primeiro dia. Ele habita agora em cada
crente que descansa na obra consumada de Cristo. Tendo em mente esse dia, o
Senhor disse: “Vós o conheceis, porque habita convosco, e estará em vós” (João
14:17). Esses dois grandes aspectos da presença do Espírito foram cumpridos
na íntegra no dia de Pentecostes. Ele veio habitar em cada cristão e na igreja,
e agora - gloriosa verdade - sabemos que Deus não apenas é por nós, mas em
nós e conosco.
Quando “Deus ungiu a Jesus de Nazaré com o Espírito Santo e com
virtude” (Atos 10:38), Este apareceu em forma de pomba - belo emblema da
pureza imaculada, da bondade e da humildade de Jesus. Ele não fazia ouvir Sua
voz nas ruas, ou esmagava a cana quebrada, nem apagava o pavio que fumega
(Isaías 42:3). Mas no caso dos discípulos que esperavam em Jerusalém, o que
aconteceu foi totalmente diferente. O Espírito desceu como línguas de fogo e
pousou sobre cada um. Isso foi característico. Foi uma demonstração do poder
de Deus, não apenas para Israel, mas um prenúncio para todas as nações da
terra. A Palavra de Deus também julgou tudo o que ocorreu antes disso - as
línguas eram de fogo. O julgamento de Deus em relação ao homem por causa
do pecado foi judicialmente expresso na cruz, e agora esse solene fato se tornará
conhecido por toda a parte, devido ao poder do Espírito Santo. No entanto, a
graça reina - reina através da justiça, da vida eterna por Cristo Jesus. O perdão
é proclamado para o culpado, a salvação para o perdido, a paz para o atribulado,
o descanso para o cansado. Todos os que crêem são, e sempre serão abençoados
no e com o ressurreto e glorificado Cristo.
A surpresa e a consternação do Sinédrio e do povo judeu, sem dúvida
foram enormes com o reaparecimento, em tal poder, dos seguidores do Jesus
crucificado. Eles haviam concluído que, agora que o Mestre estava morto,
os discípulos não iriam fazer mais nada. A maioria daqueles homens eram
pessoas simples, sem educação. Mas como o povo deve ter ficado espantado
36 I A
H i s t ó r i a d a I g r e j a - capítulo 2
ao ouvir esses homens modestos pregando ousadamente nas ruas de Jerusalém,
e convertendo milhares a um relacionamento vivo com Jesus! Mesmo sob o
ponto de vista histórico, essa cena é cheia do mais emocionante interesse, e não
encontra nenhum paralelo nos anais do tempo.
Jesus fora crucificado e, segundo a opinião popular, Suas declarações
de que Ele era o Messias tinham sido sepultadas junto com Seu corpo. Os
soldados que guardavam Seu sepulcro foram subornados para espalhar um falso
testemunho acerca de Sua ressurreição; a excitação das pessoas já tinha passado;
a cidade e a adoração no templo haviam retornado ao ritmo normal, como se
nada tivesse acontecido. Porém, da parte de Deus, as coisas não seriam silencio­
samente ignoradas. Ele esperava o tempo determinado para defender Seu Filho,
e fazer isso no mesmo lugar de Sua humilhação. Isso ocorreu de manhã cedo
no dia de Pentecostes. Repentina e inesperadamente, Seus dispersos discípulos
reapareceram com um miraculoso poder. Ousadamente acusaram os líderes e
o povo pela prisão, julgamento e crucificação de Jesus e afirmaram com todas
as letras que estes haviam assassinado o Messias prometido, mas que Deus O
levantou para ser Príncipe e Salvador, assentando-O à Sua destra no céu. “Onde
o pecado abundou, superabundou a graça” (Romanos 5:20).
Podemos dizer que a sentença sobre Babel foi o reverso desse maravilhoso
dia. Através de diferentes línguas, as quais os homens receberam como
condenação pela justa ira de Deus, a salvação foi proclamada. Essa poderosa e
miraculosa obra divina atraiu a multidão. Todos estão assombrados, especulando
o que seria aquela estranha cena. Cada um, na língua própria de seu país de
origem, ouvia dos lábios de galileus iletrados as maravilhosas obras de Deus.
Os judeus que moravam em Jerusalém, não entendendo as línguas estrangeiras,
zombavam deles. Então Pedro se levantou e explicou em sua própria língua,
provando com as Escrituras o verdadeiro caráter do que acontecia.
O P r im e ir o A pelo
de
P edro
aos
Jud eus
Lemos: “E em Jerusalém estavam habitando judeus, homens religiosos,
de todas as nações que estão debaixo do céu. E, quando aquele som ocorreu,
ajuntou-se uma multidão, e estava confusa, porque cada um os ouvia falar na sua
própria língua. E todos pasmavam e se maravilhavam, dizendo uns aos outros:
Pois quê! não são galileus todos esses homens que estão falando? Como, pois,
os ouvimos, cada um, na nossa própria língua em que somos nascidos? Partos e
medos, elamitas e os que habitam na Mesopotâmia, Judéia, Capadócia, Ponto
e Ásia, e Frigia e Panfília, Egito e partes da Líbia, junto a Cirene, e forasteiros
D
e
P en t ec o stes
ao
M a r t ír io
de
E stev ã o [
romanos, tanto judeus como prosélitos, cretenses e árabes, todos nós temos
ouvido em nossas próprias línguas falar das grandezas de Deus. E todos se mara­
vilhavam e estavam suspensos, dizendo uns para os outros: Que quer isto dizer?
E outros, zombando, diziam: Estão cheios de mosto. Pedro, porém, pondo-se
em pé com os onze, levantou a sua voz, e disse-lhes: Homens judeus, e todos
os que habitais em Jerusalém, seja-vos isto notório, e escutai as minhas palavras.
Estes homens não estão embriagados, como vós pensais, sendo a terceira hora
do dia”, ou segundo nossa forma de contar o tempo, às nove da manhã - hora
da oração no templo.
Então Pedro toma a liderança e explica aos judeus que as fantásticas coisas
que viram e ouviram não eram resultado de embriaguês, mas o que foi predito
pelas próprias escrituras proféticas dos judeus. “Mas isto é o que foi dito pelo
profeta Joel.” Note o fundamento no qual Pedro se apóia e prega com tamanha
audácia. Ele se baseia no fundamento da ressurreição e exaltação de Cristo. Isso é
algo para ser cuidadosamente observado, pois demonstra a fundação sobre a qual
a igreja descansa, e quando e onde a história dela começa. Esse foi o primeiro
dia de sua existência, a primeira página de sua história, e os primeiros triunfos
do inefável dom de Deus à humanidade.
“Deus ressuscitou a este Jesus, do que todos nós somos testemunhas. De
sorte que, exaltado pela destra de Deus, e tendo recebido do Pai a promessa do
Espírito Santo, derramou isto que vós agora vedes e ouvis. Porque Davi não
subiu aos céus, mas ele próprio diz: Disse o SENHOR ao meu Senhor: Assenta-te
à minha direita, até que ponha os teus inimigos por escabelo de teus pés. Saiba,
pois, com certeza toda a casa de Israel que a esse Jesus, a quem vós crucificastes,
Deus o fez Senhor e Cristo.”
Citaremos as palavras de outro autor sobre os abençoados efeitos do
primeiro sermão de Pedro e sobre a presença do Espírito Santo na terra:
“Não foi meramente uma mudança moral, mas um poder que deixou de
lado todas as motivações que individualizavam os que o receberam, unindo-os
em uma só alma e em uma só mente. Eles continuaram firmemente na doutrina
dos apóstolos, estavam em comunhão uns com os outros, partiam o pão,
passavam tempo em oração: a percepção da presença de Deus era poderosa entre
eles; muitos sinais e maravilhas foram realizados pelas mãos dos apóstolos. Eles
estavam unidos por íntimos vínculos, ninguém reclamava nada para si mesmo,
mas todos dividiam suas posses com os que necessitavam. Estavam diariamente
no templo, o lugar público de Israel para os exercícios religiosos, enquanto
mantinham o próprio e reservado partir do pão nas casas. Comiam com alegria
e singeleza de coração, louvando a Deus, e contando com o favor de todo o
38
I A H i s t ó r i a d a I g r e j a - capítulo 2
povo que os rodeava. Assim a assembléia foi formada, e o Senhor acrescentava
todos os dias à igreja o remanescente de Israel, o qual seria salvo dos julgamentos
que se abateriam sobre a nação que rejeitara o Filho de Deus, o Messias. Deus
introduzia na assembléia - pela presença do Espírito Santo - os que Ele pouparia
em Israel. Uma nova ordem de coisas começara, marcada pela presença do
Espírito Santo. Aqui se encontra a presença e a casa de Deus, embora a antiga
ordem de coisas ainda existisse até a execução do julgamento.
“A assembléia foi formada, portanto, pelo poder do Espírito Santo enviado
do céu sobre o testemunho de que Jesus, anteriormente rejeitado, foi levado aos
céus e feito Senhor e Cristo pelo próprio Deus. Era composta pelo remanes­
cente judeu que seria poupado, e dos gentios que Deus haveria de chamar para
integrá-la.”6
Essa é a igreja de Deus; a união dos que Deus tem chamado no nome
do Senhor Jesus, pelo Espírito de Deus. O amor governava e caracterizava a
recém-formada assembléia. As poderosas vitórias que a graça alcançou naquele
memorável dia atestaram cabalmente o poder do Senhor exaltado e a presença
do Espírito Santo na terra. Três mil almas foram convertidas por um único
sermão. Os que tinham sido inimigos declarados do Senhor, cúmplices de Seu
assassinato, agonizavam debaixo do poder das palavras de Pedro. Alarmados
com o terrível pensamento de terem matado o Messias prometido, e de que
Deus, em cuja presença estavam, O exaltara à Sua destra no céu, eles clamaram:
“Que faremos, homens irmãos?”
Pedro então procurou incutir as boas obras na alma deles, humilhando os
antes orgulhosos e zombadores judeus. Ele diz: “Arrependei-vos, e cada um de
vós seja batizado em nome de Jesus Cristo, para perdão dos pecados; e recebereis
o dom do Espírito Santo”. Ele não diz simplesmente: “Creiam no Senhor Jesus
Cristo e vocês serão salvos”, embora, é claro, a fé e o arrependimento sempre
andem juntos onde a obra é genuína. Mas, neste caso, Pedro enfatizou o arre­
pendimento. A culpa do povo era enorme, e uma profunda obra moral na
consciência deles era necessária para fazê-los se arrependerem. Eles tinham de ver
sua culpa à luz de Deus, e receber a remissão de seus pecados aos pés dAquele a
quem haviam rejeitado e crucificado. No entanto, tudo isso era graça. O coração
deles fora tocado. Eles reconheceram que a sentença divina que os condenava era
justa - mas se arrependeram de verdade, foram perdoados, e receberam o dom
do Espírito Santo. A partir de então se tornaram filhos de Deus e têm a vida
eterna: o Espírito Santo habita neles.
6 Sinopse dos Livros da Bíblia, por J. N . DARBY.
D e P e n te c o ste s a o M a r tír io d e E ste v ã o
j 39
A realidade da transformação foi manifesta por uma completa mudança
de caráter. “De sorte que foram batizados os que de bom grado receberam a
sua palavra; e naquele dia agregaram-se quase três mil almas, e perseveravam
na doutrina dos apóstolos, e na comunhão, e no partir do pão, e nas orações”
(Atos 2:41-42).
Batismo logo após a confissão de fé; ser recebido na assembléia; a ceia do
Senhor, a comunhão dos santos e a oração eram os hábitos que os caracteriza­
va. Naquele momento, a oração do Senhor, “Para que sejam um” (João 17:11),
foi respondida, como lemos no capítulo 4. “E era um o coração e a alma da
multidão dos que criam, e ninguém dizia que coisa alguma do que possuía era
sua própria, mas todas as coisas lhes eram comuns” (v. 32). Agora iremos analisar
o capítulo 10.
* ;% íc
O C h a m a d o D ir ig id o
aos
G e n t io s
Cornélio, o centurião, um homem piedoso, e os que estavam com ele são
recebidos na assembléia de Deus. Pedro havia anunciado o chamado gentílico
em seu primeiro discurso. De uma maneira especial e com indicações especiais
do propósito divino, ele foi escolhido por Deus para abrir a porta para os gentios
piedosos. Até aquele momento, a assembléia era composta principalmente, mas
não unicamente, de judeus. Mas Deus lidou com Seu povo de forma amorosa no
que se referia aos preconceitos nacionais. “Cornélio, centurião da coorte chamada
italiana, piedoso e temente a Deus, com toda a sua casa, o qual fazia muitas
esmolas ao povo, e de contínuo orava a Deus” (v. 1-2). A julgar pela conduta de
Cornélio, os judeus não poderiam se opor a receber um homem assim. Deus é
gracioso, bondoso e misericordioso. Mas Deus não deixou nenhuma dúvida na
mente de Pedro quanto à Sua vontade. Com uma repreensão, Deus graciosa­
mente silenciou a argumentação interna do apóstolo e deu fim ao desconforto
de Seu servo: “Não faças tu comum ao que Deus purificou” (v. 15).
Pedro faz o que lhe foi ordenado, embora com cautela, pois era uma
obra nova para ele. Porém, nada parece surpreender Pedro mais do que o fato
dos gentios receberem a bênção sem se tornarem judeus, ou se submeterem
a qualquer das ordenanças da lei. Foi um imenso passo para Pedro e para os
gentios. Isso aniquila pela raiz o Papado, o Puseísmo, a Sucessão Apostólica
e todos os demais sistemas de ordenanças. Através desse fato uma torrente de
luz é jogada sobre o caráter da atual dispensação. “E, abrindo Pedro a boca,
disse: Reconheço por verdade que Deus não faz acepção de pessoas; mas que
40
I A H i s t ó r i a d a I g r e j a - capítulo 2
lhe é agradável aquele que, em qualquer nação, o teme e faz o que é justo”
(w. 34-35). Ficou totalmente evidente que não é necessário se tornar judeu, nem
se submeter à ritos exteriores e cerimônias para se desfrutar as ricas bênçãos do
céu. Sem a imposição das mãos dos apóstolos —embora o próprio Pedro estivesse
presente cheio de poder e autoridade divinos -, antes mesmo de serem batizados
com água, aqueles gentios foram batizados com o Espírito Santo. Enquanto a
palavra de Deus saía dos lábios de Pedro, o Espírito Santo foi derramado sobre os
ouvintes. No entanto, antes disso, uma obra maravilhosa operada pela graça divina
tinha sido feita no coração de Cornélio: ele era uma alma divinamente vivificada.
Ser vivificado pelo Espírito é bem diferente de se ser selado com o Espírito.
Para que o Espírito Santo possa selar, tem de haver algo sl selar. O Espírito
não pode selar nossa velha natureza; é imperioso ter uma nova natureza
para que Ele a sele. Portanto, existe um momento na história de cada cristão
onde se é vivificado e não selado, mas cedo ou tarde a obra será completada
(Efésios 1:13). Por exemplo, o filho pródigo foi vivificado, ou convertido,
quando deixou o país estrangeiro no qual se encontrava, mas ainda era um
estranho ao amor e à graça do Pai; e, consequentemente, não tinha a fé que
descansa em Cristo por saber que Ele é a fonte de todas as bênçãos. A decisão que
ele tomou, de voltar ao Pai, demonstra que mesmo incrédulo ele já estava tocado
pelo Espírito. Quanto ao perdão e aceitação, certamente ele não fora selado pelo
Espírito até que recebeu o beijo de reconciliação, ou o anel, símbolo do amor
eterno. O Evangelho da salvação é mais que uma preocupação pela alma, ainda
que seja legítima. Uma incredulidade que desonra a Cristo pode acompanhar,
por um período, uma genuína obra do Espírito de Deus na alma de alguém.
O filho pródigo possuía um tipo de fé, uma crença na bondade do coração de
seu Pai, que o impulsionou a se aventurar a voltar para casa. Mas certamente
lhe faltava a plenitude da fé evangélica. “Aquele que aceitou o seu testemunho,
esse confirmou que Deus é verdadeiro” (João 3:33). Onde existe a fé em Cristo
e em Sua obra existe o selo de Deus. O próprio Paulo permaneceu três dias em
profundo tormento de alma, sem a paz e o descanso que o selo do Espírito Santo
promove. “E esteve três dias sem ver, e não comeu nem bebeu” (Atos 9:9).
Retornemos agora ao ponto principal.
O S elo
dos
G e n t io s
Note, pois, esse importante fato relacionado à entrada dos gentios na
assembléia dos salvos - eles receberam o dom do Espírito Santo simplesmen­
te pela pregação da palavra. Os judeus em Jerusalém foram batizados antes
D
e
Pen t ec o stes
ao
M a r t ír io
de
E stev ã o [
de terem recebido o Espírito Santo. Em Samaria, os samaritanos não apenas
foram batizados, mas os apóstolos tiveram de impor as mãos sobre eles e orar e,
depois disso, receberam o Espírito Santo. Mas, em Cesaréia, sem o batismo nas
águas, sem a imposição de mãos, sem oração, a mais preciosa bênção cristã foi
concedida aos gentios, embora a doutrina da igreja como corpo de Cristo não
tivesse sido revelada ainda.
A graça de Deus assim demonstrada aos gentios no início desta dispensação
tem sido sua principal característica desde então. Somos gentios, não somos
samaritanos nem judeus. Por essa razão, os caminhos graciosos de Deus e Seus
planos para os gentios têm uma aplicação especial para nós. Não há qualquer
registro da parte dos historiadores inspirados sobre alguém ter sido batizado
sem confessar a fé em Cristo; se formos seguir o padrão do que aconteceu em
Cesaréia, temos de procurar pelo selo bem como pela vivificação - pela paz com
Deus bem como pela fé em Cristo antes do batismo. O caso de Cornélio está no
início da nossa dispensação; e foi a primeira expressão direta da graça concedida
aos gentios; e sem dúvida, deve servir de modelo para os pregadores e discípulos
gentios. Quando se crê hoje na mesma palavra de Deus que foi pregada naquela
ocasião a Cornélio, podemos garantir que teremos o mesmo resultado, ou seja,
a paz com Deus.
Pregação, fé na palavra pregada, selo, batismo é a hierarquia divina aqui.
Deus e Sua palavra nunca mudam, embora os “tempos mudem”, as opiniões
humanas mudem, os ritos religiosos mudem; mas a palavra de Deus jamais
muda. Judeus, samaritanos e gentios professaram a fé em Cristo antes de serem
batizados. De fato, o batismo presume vida eterna da qual nos apoderamos
pela fé, e não transmitida após o ato de se batizar, como ensinam os católicos
anglicanos. Eles dizem: “Graça é vida transmitida, a qual é transmitida pelos
sacramentos, e somente efetivada por tais meios; independente de qualquer
exercício do intelecto por parte da pessoa trazida à união. O batismo santo é o
meio de se conferir ao receptor uma vida nova e espiritual”7.
Tais noções, nem precisamos dizer, são inteiramente opostas às Escrituras.
O batismo não concede nada. A Bíblia ensina de maneira clara que a vida é
concedida por outro meio. A conversão, ou o “nascer de novo”, é produzida em
todos os casos, sem exceção, pelo Espírito Santo. Como lemos em 1 Pedro 1:22:
“Purificando as vossas almas pelo Espírito na obediência à verdade, para o amor
fraternal, não fingido; amai-vos ardentemente uns aos outros com um coração
puro; sendo de novo gerados, não de semente corruptível, mas da incorruptível,
pela palavra de Deus, viva, e que permanece para sempre”. Aqui a verdade do
7 A Igreja e o Mundo, páginas 178-188. Tradução livre.
42 I A
H i s t ó r i a d a I g r e j a - capítulo 2
Evangelho é vista como o meio, e o Espírito Santo como o poder para a conversão.
Cristo, ou Deus em Cristo, é o novo objetivo da alma. E pelo Espírito e pela
verdade de Deus que essa maravilhosa mudança se efetiva. Aqueles que confiam
no batismo nas águas como meio de transformação, infelizmente, confiam em
uma grande e fatal mentira8.
No caso dos gentios, em questão aqui, antes do batismo ser administrado,
eles já tinham muito mais que vida. Eles possuíam o selo de Deus. O batismo
é um sinal da total libertação e salvação asseguradas ao crente pela morte e
ressurreição de Cristo. Cornélio tinha vida, era um homem piedoso, mas teve
de mandar buscar Pedro, e ouvir as palavras por meio das quais seria salvo ou
plenamente liberto. Tanto o Antigo Testamento como o Novo Testamento
8
As breves declarações dos religiosos do quarto século sobre o tema do batismo registradas a
seguir mostrarão aos nossos leitores as fontes, ou autoridades, de muito do que é dito e feito
na atualidade pelo ritualistas. A autoridade das Escrituras é colocada inteiramente de lado.
“N a páscoa, no Pentecostes, e em alguns lugares da Epifania, o ritual do batismo foi admi­
nistrado publicamente - ou seja, na presença dos fiéis —, a todos os neófitos daquele ano,
exceto em alguns casos nos quais foi conveniente realizar a cerimônia sem demora, ou em
que o tímido cristão a adiou até o fim da vida, após o exemplo de Constantino: uma prática
condenada pelo clero por muito tempo e em vão. Mas, o fato do adiamento revela como a
importância e a eficácia do ritual estão enraizados de forma profunda na mente cristã. Era uma
completa purificação da alma. O neófito, ou novo convertido, emergia das águas do batismo
em um estado de perfeita inocência. A pomba —o Espírito Santo - estava constantemente
pairando sobre a fonte batismal, santificando as águas para a misteriosa lavagem de todos
os pecados da vida passada. Se a alma não sofresse nenhuma mancha subseqüente, passava
imediatamente à esfera da pureza e felicidade; isto é, o coração era purificado, o entendimento
iluminado, o espírito revestido com imortalidade.
“Vestido de branco, emblema da pureza imaculada, o candidato se aproximava do batistério
- nas igrejas maiores era uma estrutura separada. Ali pronunciava os votos solenes, por meio
dos quais firmava um compromisso com sua religião. A personificação simbólica do Oriente
era acrescentada à cerimônias importantes. O catecúmeno (um dos primeiros estágios da
educação cristã) se voltava para o Ocidente, domínio de Satanás, e três vezes renunciava ao
poder diabólico, então se virava para o Oriente, para adorar o Sol da Justiça e proclamar seu
pacto com o Senhor da vida. O místico número três era predominante: os votos eram trinos,
três vezes declarados. O batismo usualmente era por imersão; tirar as vestes era um símbolo
do ‘despir-se do velho homem’, mas o batismo por aspersão também era permitido, segundo a
ocasião exigisse. N a vívida linguagem da igreja, a água em si mesma se transformava no sangue
de Cristo. Por uma analogia fantasiosa, se comparava ao Mar Vermelho: as ousadas metáforas
de alguns dos líderes religiosos pareciam até mesmo asseverar uma transmutação na cor dela.
“Quase todos os líderes da época —Basílio, os dois Gregórios, Ambrósio, etc —, têm tratados
sobre o batismo e competem, por assim dizer, uns com os outros quanto à exaltação da
importância e eficácia deste ritual. Gregório Nanziazeno quase esgotou a abundância da língua
grega ao falar sobre o batismo.” Extraído de História do Cristianismo de M ilman, volume 3.
D e P e n te c o ste s a o M a r tír io d e E ste v ã o |
ensinam essa abençoada verdade de modo cristalino. Israel, como um grupo
simbólico, foi batizado por Moisés na nuvem e no mar depois de serem trazidos
a Deus e de se abrigarem debaixo do sangue do cordeiro no Egito. Desse modo,
foram arrancados do Egito e viram a salvação do SENHOR. Depois, Noé e sua
família foram salvos através do dilúvio - e não pelo dilúvio. Deixaram o velho
mundo, passaram pelas águas da morte, e aportaram em um novo estado de
coisas. “Que também, como uma verdadeira figura, agora vos salva, o batismo...
pela ressurreição de Jesus Cristo” (Êxodo 14; 1 Pedro 3:21).
Mas qual foi a palavra que Pedro pregou e que trouxe tão notável bênção?
Ele pregou a paz por meio de Jesus Cristo, Senhor de todos. O Cristo ressurreto,
exaltado e glorificado foi o grande tema do testemunho dele. Ele resume tudo
com as seguintes palavras: “A este dão testemunho todos os profetas, de que todos
os que nele crêem receberão o perdão dos pecados pelo seu nome" (Atos 10:43).
A bênção continua. Os judeus presentes ficaram atônitos; mas se curvaram e
reconheceram a bondade de Deus para com os gentios. “E, dizendo Pedro ainda
estas palavras, caiu o Espírito Santo sobre todos os que ouviam a palavra. E osfiéis
que eram da circuncisão, todos quantos tinham vindo com Pedro, maravilharamse de que o dom do Espírito Santo se derramasse também sobre os gentios. Porque
os ouviam falar línguas, e magnificar a Deus. Respondeu, então, Pedro: Pode
alguém porventura recusar a água, para que não sejam batizados estes, que também
receberam como nós o Espírito Santo ? E mandou que fossem batizados em nome do
Senhor. Então rogaram-lhe que ficasse com eles por alguns dias” (Atos 10:44-48).
Agora voltemos um pouco e vejamos alguns eventos importantes que
precederam o capítulo 10.
ií
-k
O P r im e ir o M
ii
á r t ir
C r ist ã o
Estêvão, diácono e evangelista, é o primeiro a receber a coroa do martírio
por amor ao nome de Jesus. Ele lidera o “nobre exército dos mártires”. Como
símbolo, ele é perfeito - um proto mártir. Firme e inabalável em sua fé; ousado
e destemido diante de seus acusadores; claro e fiel em sua defesa perante o
Sinédrio; sem malícia em sua forte argumentação; cheio de compaixão por todos
os homens, Estêvão selou seu testemunho com o próprio sangue, e em seguida
dormiu em Jesus.
Em alguns aspectos, Estevão se parece com o próprio Senhor. “Senhor Jesus,
recebe o meu espírito” (Atos 7:59) é semelhante à “Pai, nas tuas mãos entrego o
meu espírito” (Lucas 23:46). “Senhor, não lhes imputes este pecado” (v. 60) é o
43
44 | A
H i s t ó r i a d a I g r e j a - capítulo 2
mesmo que “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lucas 23:34), com
a diferença de que Estevão não alegou ignorância da parte de seus algozes.
Já vimos que problemas internos e externos atacavam a jovem assembléia.
De fato, a palavra de Deus crescia, multidões se convertiam e um grande
número de sacerdotes judeus obedecia à fé. Mas os gregos, ou helenistas (judeus
de origem grega), murmuravam contra os judeus (naturais da Judéia), porque
suas viúvas eram negligenciadas na distribuição diária de alimentos. Isso levou
à escolha de sete diáconos. Tomando por base os nomes deles registrados em
Atos 6, parece que os sete eram “gregos”, ou seja, pertenciam todos ao lado dos
murmuradores. Com isso, o Espírito de Deus dominou em graça. Estêvão era
um dos sete, e sua vida foi um exemplo da palavra do apóstolo: “Porque os
que servirem bem como diáconos, adquirirão para si uma boa posição e muita
confiança na fé que há em Cristo Jesus” (1 Timóteo 3:13). Ele era cheio de fé e
poder, e fazia grandes maravilhas e milagres entre o povo. A energia do Espírito
Santo se manifestava de maneira especial em Estêvão.
Em Jerusalém havia diferentes sinagogas em razão das diferentes origens
dos judeus. Foi a sinagoga dos libertinos, e dos cireneus e dos alexandrinos,
e a dos que eram da Cilicia e da Ásia que se opuseram a Estêvão. Mas “não
podiam resistir à sabedoria, e ao Espírito com que falava” (Atos 6:9-10). Então
aconteceu o que geralmente acontece com os que confessam a Jesus em todas
as épocas: incapazes de responder, seus acusadores o levaram ao tribunal. Falsas
testemunhas foram subornadas, as quais juraram que tinham ouvido Estêvão
dizer “palavras blasfemas contra Moisés e contra Deus”, além de afirmar que
Jesus Nazareno haveria de destruir o templo e mudar os costumes que Moisés
dera ao povo. O caso agora estava no Sinédrio - começa o julgamento. Porém,
o que seus juizes devem ter pensado quando viram seu rosto brilhar, como a
face de um anjo?
Temos diante de nós o nobre discurso de Estêvão aos líderes da nação.
Convincente, perturbador, irresistível. Sem dúvida, tal discurso foi o testemunho
do Espírito Santo aos judeus, pela boca de Estevão. E o cúmulo da humilhação
para os orgulhosos israelitas foi ouvir dos lábios de um helenista sobre a
condenação divina que lhes estava reservada. Mas o Espírito de Deus, quando
desimpedido pelos esquemas humanos, age por meio de quem Ele quer.
Usando uma linguagem ousada, Estêvão recapitula os principais pontos da
história nacional. Ele se refere em especial à história de José e de Moisés. Os pais
do povo venderam o primeiro aos gentios; desprezaram o segundo como líder e
juiz. Ele também os acusou de sempre resistirem ao Espírito Santo, de sempre
desobedecerem à lei, e de agora terem traído e assassinado o Justo. Nesse ponto,
D
e
P en t ec o stes
ao
M a r t ír io
de
E stev ã o
a fiel testemunha de Cristo foi interrompida. Não permitiram que ele terminasse
seu discurso: uma figura, muito real, do tratamento dispensado aos mártires até
hoje. A murmuração, a indignação e a fúria do Sinédrio ficaram fora de controle.
“E, ouvindo eles isto, enfureciam-se em seus corações, e rangiam os dentes contra
ele” (Atos 7:54). Porém, ao invés de continuar sua fala, Estevão tem uma visão de
Jesus e fixa seus olhos no céu —casa e centro de reunião de Seu povo.
“Eis que vejo os céus abertos.” Ele está cheio de Espírito Santo quando
olha para cima, e vê o Filho do homem em pé, pronto a receber o espírito de
Seu servo. Alguém escreveu o seguinte: “Essa é a posição do verdadeiro crente
- posição celestial sobre a terra - na presença do mundo que rejeitou Cristo,
o mundo assassino. O crente, vivo na morte, pelo poder do Espírito Santo
perscruta o céu, e vê o Filho do homem à destra de Deus. Estêvão não disse
‘Jesus’. O Espírito O mostrou como ‘Filho do homem’. Precioso testemunho à
humanidade! Ele não testificou sobre a glória, mas sobre o Filho do homem na
glória, e acerca dos céus abertos para ele... No que se refere ao objeto da fé e à
posição do crente, essa cena é definitivamente característica”.
"Eis o proeminente, o mais próximo ao trono
Perfeitas vestes triunfais trajando
Aí está o que mais ao mestre se assemelha
Este santo, este Estêvão que se ajoelha
Fixando o olhar enquanto os céus
Se abriam aos seus olhos que se fechavam
Que, tal como lâmpada quase apagada retoma seu fulgor,
E faz vê-lo o que a morte esconde a rigor.
Ele, que parece estar na terra
H á de voar como pomba vera
E da amplitude do céu sem nuvens
Extrair o mais puro dos ares
Para que os homens contemplem sua face angelical
Plena do resplendor da graça celestial,
Mártir íntegro, apto a se conformar
A morte de Jesus, vitória sem par!
(tradução livre da poesia constante da edição original em inglês)
Já examinamos, com certa minúcia, a primeira seção da história da
igreja. Em geral, os livros sobre história da igreja começam com um período
posterior. A maioria deles inicia onde as Escrituras terminam, pelo menos com
46 I A
H i s t ó r i a d a I g r e j a - capítulo 2
relação aos detalhes. Nenhum dos que vimos se refere a Mateus 16, e poucos
fazem um exame crítico de Atos dos Apóstolos, que, acima de tudo, é a única
parte da história da igreja que comanda nossa fé e a qual temos de obedecer
absolutamente.
No capítulo 8 encontramos o Espírito Santo em Samaria agindo por meio
de Filipe. Este tinha, por assim dizer, saído de Jerusalém. Isso marca uma época
diferenciada na história da igreja, especialmente na ligação dela com Jerusalém.
Por ora, vamos deixar os furiosos e atormentados judeus e seguir o caminho do
Espírito até a cidade de Samaria. Mas temos de passar os olhos por um momento
naquilo que alguns chamam de a terceira perseguição.
3
Á P e r s e g u iç ã o e
a D i s p e r s ã o d o s D i s c í p u lo s
A
pós a morre de Estêvão, uma grande perseguição teve inicio contra
a Igreja (Atos 8). Os líderes judeus, convencidos de ter obtido uma
^ grande vitória sobre os discípulos, estavam determinados a perseguir,
o aparente triunfo, com todo o ímpeto. Mas Deus, que está acima de tudo e
sabe como impor limites às paixões humanas, fez uso da oposição deles para o
cumprimento de Sua vontade.
A humanidade ainda não aprendeu a verdade do provérbio que diz: “O
sangue dos mártires é a semente da Igreja”. No caso do primeiro e mais nobre
dos mártires, o provérbio foi sem dúvida comprovado. Entretanto, ao longo de
todos esses séculos, a humanidade tem sido tardia em aprender ou acreditar
nesse fato histórico tão simples. Em geral, as perseguições acabam promovendo
as causas que procuram reprimir. Isso tem se provado verdadeiro na maioria dos
casos, em qualquer tipo de perseguição ou de oposição. Resistência, convicção
e firmeza têm a sua origem nesse tipo de tratamento. De fato, por causa da
perseguição, as mentes tímidas e fracas podem ser levadas à apostasia por um
tempo, mas é comum que essas pessoas, profundamente arrependidas, procurem
voltar à condição anterior, enfrentando com ânimo os sofrimentos mais cruéis
e demonstrando grande coragem em seus últimos momentos! E a perseguição,
de uma forma ou de outra, é algo que os seguidores de Jesus já esperavam. Eles
48
I A H i s t ó r i a d a I g r e j a - capítulo 2
foram e são exortados a tomar a cruz diariamente e segui-lO - um teste para a
sinceridade de nossa fé, a pureza de nossas motivações, a força de nosso amor
por Cristo e a medida de nossa confiança nEle.
Os que não amam verdadeiramente a Cristo abandonarão a fé no tempo
da dura perseguição. O amor, porém, resistirá até o fim, quando não houver
mais nada a fazer. Vemos isso perfeitamente no maravilhoso Senhor Jesus. Ele
enfrentou a cruz, que vinha de Deus, e desprezou a vergonha, que vinha do
homem. E foi em meio à vergonha e aos sofrimentos da cruz que a força de Seu
amor se manifestou plenamente, e triunfou sobre tudo. Nada poderia afastar Seu
amor do objeto deste, ou seja, do Pai, pois era mais forte que a morte. Nisso,
e em todas as coisas, Ele nos deixou um exemplo para que andemos em Seus
passos. Que sempre O sigamos de perto!
Em Atos, aprendemos com a história da Igreja que o resultado do martírio
de Estêvão foi a imediata propagação da verdade, a qual os perseguidores
tentavam impedir. As impressões deixadas por essa testemunha e por uma
morte assim acabaram por derrotar os inimigos e convencer os imparciais e os
indecisos. O último recurso da crueldade humana é a morte, mas a fé cristã em
seu primeiro teste se provou mais forte que a morte, e esta manifestada em uma
de suas mais terríveis facetas. O inimigo testemunhou essa vitória e jamais a
esquecerá. Estêvão estava sobre a Rocha, e as portas do inferno não prevaleceram
contra ela.
Nessa ocasião, toda a igreja de Jerusalém foi dispersa, com exceção dos
apóstolos, e os cristãos iam por toda parte pregando a Palavra. Como a nuvem
que se dissipa perante o vento, produzindo uma refrescante chuva que sacia
a terra sedenta, os discípulos foram dispersos de Jerusalém pela tempestade
da perseguição, levando a água viva às almas sedentas de terras distantes.
“Fez-se, naquele dia, uma grande perseguição contra a igreja que estava em
Jerusalém; e todos foram dispersos pelas terras da Judéia e da Samaria, exceto
os apóstolos” (Atos 8:1). Alguns historiadores pensam que o fato de os apóstolos
terem permanecido em Jerusalém depois que os discípulos fugiram comprova
a sua grande firmeza e fidelidade à causa de Cristo. Nós, porém, temos outro
pensamento: consideramos isso umfracasso, em vez de uma prova de fidelidade.
A ordem que receberam do Senhor foi esta: “Ide, ensinai todas as nações,
batizando-as em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo” (Mateus 28:19).
Antes disso, haviam sido alertados: “Quando [...] vos perseguirem nesta cidade,
fugi para outra” (Mateus 10:23). Até onde a Bíblia nos informa, essa ordem do
Senhor jamais foi cumprida pelos Doze. No entanto, Deus agiu poderosamente
na vida de Paulo para alcançar os gentios, e em Pedro, para chegar aos judeus.
D e E stev ã o
ao
A po sto la d o
de
Pau lo
O Espírito Santo agora deixa de manifestar o Seu poder visivelmente
em Jerusalém —uma verdade solene! Mas a cidade culpada preferiu o apoio de
Roma ao poder da ressurreição de seu Messias. “Os principais dos sacerdotes e os
fariseus formaram conselho e diziam: Que faremos? Porquanto este homem faz
muitos sinais. Se o deixamos assim, todos crerão nele, e virão os romanos e tirarnos-ão o nosso lugar e a nação” (João 11:47-48). Eles rejeitaram o Messias em
Sua humilhação, e agora rejeitavam o testemunho do Espírito Santo a respeito
de Sua exaltação. A iniquidade deles era completa, e inimaginável a ira que lhes
pairava sobre a cabeça. Mas, por ora, nossa tarefa, seguindo o curso da história
da Igreja, é acompanhar o Espírito Santo em direção a Samaria. O caminho do
Espírito é o fio de prata da graça salvadora.
O S TRIUNFOS DO EVANGELHO EM SAMARIA
Filipe, o diácono, cujo zelo e energia se igualavam aos de Estêvão, desce
para Samaria. O Espírito Santo age por meio dele. Na sabedoria dos caminhos
do Senhor, a desprezada Samaria é o primeiro lugar, fora da Judéia, em que
o Evangelho foi pregado por Suas testemunhas escolhidas: “Descendo Filipe
à cidade de Samaria, lhes pregava a Cristo. E as multidões unanimemente
prestavam atenção ao que Filipe dizia, porque ouviam e viam os sinais que ele
fazia [...] E havia grande alegria naquela cidade” (Atos 8:5-8). Muitos creram
e foram batizados. Até Simao, o mago, reconheceu a presença de um poder
diferente daquele que ele mesmo possuía e se curvou à força e à obra que o
Espírito realizou no povo, embora a verdade nunca tivesse penetrado o seu
coração nem a sua consciência. E, como já viajamos para outra parte do país, a
esta altura é oportuno dizer algumas palavras sobre sua história.
A Terra Santa, a mais interessante de todas as nações do planeta, moral
e historicamente, é bem pequena em tamanho: “E um território do tamanho
ao País de Gales9, com menos de 224 quilômetros de comprimento e apenas 64
quilômetros de largura”.10 A parte norte é a Galiléia; o centro, Samaria; ao sul,
fica a Judéia. Ainda que geograficamente tão pequena, ela tem sido o cenário dos
momentos mais importantes da história humana. Ali o Salvador nasceu, viveu
e foi crucificado - e também foi sepultado e ressuscitou. Ali também os Seus
apóstolos e mártires viveram, testificaram e sofreram. Pregou-se ali o primeiro
sermão evangélico, e ali a Igreja teve seu início.
9 Algo equivalente à metade do estado de Alagoas, no Brasil.
10 William SM IT H , Sm ith’s Bible Dictionary.
50 | A
H i s t ó r i a d a I g r e j a - capítulo 2
A terra originariamente ocupada por Israel ficava entre os antigos impérios
da Assíria e do Egito. Essa é a razão das frequentes menções ao “rei do norte” e ao
“rei do sul” no Antigo Testamento. Em razão de estar posicionada no centro, ela
era o campo de batalha dos dois reinos, e sabemos que será o palco do derradeiro
conflito (Daniel 11). Muitas superstições têm sido criadas acerca da Terra Santa,
objeto de cobiça e pretexto para guerras religiosas, desde os dias dos apóstolos, e
quem pode calcular quanto sangue foi derramado e quantos tesouros foram des­
perdiçados nessas planícies sagradas? E tudo, diga-se, sob a égide de zelo religioso
e sob os estandartes da cruz (emblema cristão) e do Crescente Fértil (emblema
islâmico). E para lá que peregrinos de todas as épocas têm viajado, a fim de adorar
no santo sepulcro e cumprir seus votos. Também é uma grande atração para
turistas de todos os tipos e nacionalidades e o maior mercado de relíquias ditas
miraculosas. Cristãos, historiadores e antiquários buscam-nas diligentemente e
divulgam suas descobertas. Desde os dias de Abraão, a Terra Santa é o mais inte­
ressante e atraente ponto da superfície terrestre. E, para os estudantes da profecia
bíblica, o futuro histórico dela será melhor que seu passado. Eles sabem que está
chegando o dia em que toda essa faixa de terra será povoada novamente pelas doze
tribos de Israel e estará cheia da glória e da majestade do Messias prometido. Então
os seus habitantes serão reconhecidos como o principal povo do mundo. Mas
voltemos a Samaria, com a nova vida e a alegria recebidas do Espírito Santo.
Os samaritanos, por meio da graça divina, creram prontamente no
Evangelho pregado por Filipe. Os resultados da verdade, recebida de forma tão
simples, foram imediatos e maravilhosos: “Havia grande alegria naquela cidade”, e
muitos foram batizados. Quando se crê de fato, esses são necessariamente os efeitos
do Evangelho, a menos que haja algum obstáculo de nossa parte. Onde existe a
genuína simplicidade da fé, há também a genuína paz, verdadeira felicidade e uma
obediência espontânea. Ficou patente o poder do Evangelho sobre um povo que
durante séculos resistiu ao judaísmo. Nesse aspecto, o que a Lei não pôde fazer o
Evangelho realizou. Alguém escreveu: “Samaria foi uma conquista que nem toda
a força do judaísmo foi capaz de obter. Ela foi um novo e esplêndido triunfo do
Evangelho. A subjugação espiritual do mundo pertencia à Igreja”.
* * *
J er u sa lém
U n id a s
pelo
e
Sa m a r ia
Ev a n g e l h o
A amarga rivalidade existente entre judeus e samaritanos havia se tornado
proverbial, por isso lemos: “Os judeus não se comunicam com os samaritanos”
D f. E s t e v ã o
ao
A po sto la d o
de
Pa u l o
(João 4:9). Mas agora, por causa do Evangelho da paz, a raiz de amargura
desapareceu. Apesar disso, na sabedoria dos caminhos de Deus, os samaritanos
tiveram de esperar pelas maiores bênçãos do Evangelho até que os crentes
judeus, os apóstolos da igreja de Jerusalém, impusessem as mãos e orassem
por eles. Nada é mais interessante que esse fato, considerando-se a rivalidade
religiosa por tanto tempo manifesta de ambos os lados. Se Samaria não tivesse
recebido essa oportuna lição de humildade, teria mantido a sua orgulhosa
independência de Jerusalém. Mas o Senhor não permitiria isso. Os samaritanos
creram, alegraram-se e foram batizados, mas ainda não haviam recebido o
Espírito Santo. “Os apóstolos [...], que estavam em Jerusalém, ouvindo que
Samaria recebera a palavra de Deus, enviaram para lá Pedro e João, os quais,
tendo descido, oraram por eles para que recebessem o Espírito Santo. (Porque
sobre nenhum deles tinha ainda descido, mas somente eram batizados em
nome do Senhor Jesus.) Então, lhes impuseram as mãos, e receberam o Espírito
Santo” (Atos 8:14-17).
A imposição de mãos tem por trás o conceito da identificação. Já o dom
do Espírito Santo nos lembra da preciosa verdade da unidade da Igreja. Ambas
são realidades fantásticas relacionadas ao progresso da Igreja. Assim, Samaria é
introduzida numa abençoada união com sua antiga rival e se torna uma com
a igreja de Jerusalém. Não há na mente de Deus nenhum pensamento sobre
uma congregação ser independente da outra. Se a assembléia de Samaria e a
de Jerusalém fossem abençoadas separada e independentemente, a rixa entre
elas tenderia a se agravar. Desse momento em diante, não seria mais “neste
monte nem em Jerusalém” (João 4:21), “mas uma Cabeça no céu, um corpo
na terra, um. Espírito, uma família redimida adorando a Deus em espírito e
em verdade, pois o Pai procura os que assim O adorem”.11 (Leia 2 Reis 17
para saber mais sobre a origem da miscigenação do povo de Samaria e da
adoração deles.)
Apesar de serem apenas judeus mestiços, os samaritanos vangloriavam-se
de ser descendentes de Jacó. Consideravam sagrados os cinco livros de Moisés,
mas subestimavam o restante das Escrituras. Eram circuncidados e, em certa
medida, guardavam a Lei e esperavam o Messias prometido. A visita pessoal
do Senhor a Samaria é de interesse profundo e comovente. O poço no qual
Ele descansou ficava no vale, entre dois famosos montes: o Ebal e o Gerizim,
sobre os quais a Lei foi lida. No topo do monte Gerizim, estava o templo dos
samaritanos, rival do templo de Jerusalém, que afligia os judeus mais zelosos por
sua ousada oposição ao santuário escolhido no monte Moriá.
11 Veja W. KELLY, Lectures on the New Testament Doctrine o f the Holy Spirit [Estudos sobre a
doutrina do Espírito Santo no Novo Testamento], estudo 6 sobre Atos 2, 8, 10 e 19.
52 I A
H i s t ó r i a d a I g r e j a - capítulo 2
O EUNUCO ETÍOPE RECEBE O EVANGELHO
Filipe é agora chamado a deixar a sua abençoada e interessante obra em
Samaria e descer para Gaza - um deserto - e ali pregar o Evangelho a uma única
pessoa. Nesse fato, sem dúvida, reside uma lição da maior importância para o
evangelista, e não podemos passar pelo texto sem um breve comentário.
O pregador, no contexto do despertamento e da conversão que houve em
Samaria, torna-se bastante interessado na obra, como era de se esperar. Deus
colocara o Seu selo sobre o ministério da Palavra, aprovando as reuniões com a
Sua presença. A obra do Senhor prospera. O evangelista está cercado de respeito
e admiração, e os seus filhos na fé naturalmente o procuram em busca de mais
luz e de instrução para o caminho. Muitos podem perguntar: como abandonar
um campo de trabalho assim? Seria correto deixar tudo para trás? Sim, mas
somente se o Senhor der ao Seu servo ordem para fazê-lo, como nesse caso. Mas
como alguém pode ter certeza disso hoje? Se os anjos e o Espírito não falam,
como falaram com Filipe? Embora possa não ser dito dessa maneira, é preciso
buscar e esperar a orientação divina. A fé tem de ser o guia. As circunstâncias
são guias incertos. Podem servir como meios de repreensão e correção, mas os
olhos do próprio Deus têm de ser o meio pelo qual Ele nos direciona. A promessa
é: “Instruir-te-ei e ensinar-te-ei o caminho que deves seguir; guiar-te-ei com os
meus olhos” (Salmos 32:8).
Só o Senhor sabe o que é melhor para o Seu servo e Sua obra. O evangelista
em tal cenário poderia correr o risco de superestimar a própria importância, daí
a conveniência, se não a necessidade, da mudança do local de trabalho.
“O anjo do Senhor falou a Filipe, dizendo: Levanta-te e vai para a banda
do Sul, ao caminho que desce de Jerusalém para Gaza, que está deserto. E
levantou-se e foi. E eis que um homem etíope, eunuco, mordomo-mor de
Candace, rainha dos etíopes, o qual era superintendente de todos os seus
tesouros e tinha ido a Jerusalém para adoração, regressava e, assentado no seu
carro, lia o profeta Isaías. E disse o Espírito a Filipe: Chega-te e ajunta-te a esse
carro” (Atos 8:26-29).
A obediência imediata de Filipe, sem questionamentos, é uma bela atitude.
Ele não faz nenhuma pergunta acerca da diferença entre Samaria e Gaza nem
sobre o fato de deixar o favorável campo de trabalho e ir para um lugar deserto,
com o objetivo de falar da salvação a uma única pessoa. O Espírito de Deus
estava com Filipe. E o único desejo do evangelista era obedecer ao comando do
Espírito. Por falta de discernimento espiritual, o pregador pode ficar num lugar
em que o Espírito já parou de agir e, assim, todo o seu trabalho será em vão.
D e E stevão
ao
A po sto la d o
de
Pa u l o
Deus, por Sua providência, cuida de Seu servo, enviando um anjo para
mostrar a estrada que ele deveria tomar. Quando se trata do Evangelho e do
trabalho com as almas, o Espírito assume a direção. “Disse o Espírito a Filipe:
Chega-te e ajunta-te a esse carro”. Em toda a história da Igreja, não há nada
mais interessante que a cena no caminho para Gaza. O anjo e o Espírito de
Deus acompanharam o evangelista: o primeiro representando a providência
de Deus, indicando a estrada a ser percorrida, o último representando o poder
espiritual para lidar com as almas. E, como naquele tempo, assim é nos dia de
hoje, apesar de estarmos mais acostumados a pensar na orientação do Espírito
que na providência de Deus. Que possamos confiar em Deus em todas as coisas!
Ele não mudou!
O Evangelho abre caminho rumo à Abissínia, na pessoa do tesoureiro da
rainha. O eunuco crê, é batizado e, muito alegre, segue o seu caminho. O que
havia procurado em vão em Jerusalém, enfrentando uma longa jornada até aquela
cidade, ele encontrou no deserto. Belo símbolo da graça do Evangelho. A ovelha
perdida é achada no deserto, as águas vivas fluem no deserto. Ele também é um
belo exemplo de uma alma sedenta. Sozinho e com tempo livre, o tesoureiro lê o
profeta Isaías. Medita sobre a profecia do sofrimento sem resistência do Cordeiro
de Deus. Então chegou o momento da iluminação e da libertação. Filipe explica
a profecia, e o eunuco é ensinado por Deus e crê. Imediatamente, sente o desejo
de se batizar, e retorna à sua casa transbordante das boas-novas da salvação. Será
que ele se calou acerca do que lhe acontecera? Certamente que não. Um homem
com tal caráter e influência teria muitas oportunidades de divulgar a verdade.
Mas tanto a Bíblia quanto a história silenciam com relação aos resultados desse
acontecimento, e não nos arriscaremos a fazer especulações.
O Espírito ainda está com Filipe e o leva para bem longe. O apóstolo
acha-se agora em Azoto e evangeliza todas as cidades pelo caminho, até chegar
a Cesaréia.
Uma nova era na história da Igreja começa a raiar. Entra em cena um
novo trabalhador, e em muitos aspectos o mais notável, que já serviu ao Senhor
e Sua igreja.
*
A C o n v ersã o
*
de
*
Sa u lo
de
T a r so
Nenhum fato no desenvolvimento da Igreja afetou tão profunda e gracio­
samente a sua história quanto a conversão de Saulo de Tarso. De principal dos
pecadores, ele se tornou o mais ilustre dos santos, do mais violento opositor de
5 4 1A H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 2
Cristo, ele se tornou o mais zeloso defensor da fé. Como inimigo e perseguidor
do nome de Jesus na terra, ele era o “chefe”, ao qual todos os outros, quando
comparados a ele, eram inferiores (Atos 9; 1 Timóteo 1:15).
Fica evidente, a se considerar o que ele escreve sobre si mesmo, que Saulo
acreditava que o judaísmo não era apenas divino, mas a religião perpétua e
imutável que Deus legara ao homem. A não ser por essa crença, é difícil explicar
a razão da força de seus preconceitos como judeu. Portanto, qualquer tentativa
de rejeitar ou anular a religião dos judeus para introduzir outra crença era
considerada por ele como algo proveniente do Inimigo, devendo ser combatida
sem piedade. Ele ouviu o magnífico discurso de Estêvão e testemunhou a
sua morte triunfante, mas a subsequente perseguição que promoveu contra os
cristãos provou que a glória moral daquela cena não deixou o menor vestígio
em sua alma. Saulo estava cego pelo zelo, mas o zelo pelo judaísmo, depois
da vinda de Cristo, significava zelo contra o próprio Senhor. Nessa ocasião,
ele estava “respirando ainda ameaças e mortes contra os discípulos do Senhor”
(Atos 9:1).
Ouvindo que alguns santos perseguidos haviam se escondido em
Damasco, antiga cidade da Síria, ele decidiu ir até lá a fim de trazê-los para
Jerusalém e julgá-los como criminosos. Para tal propósito, ele recebeu cartas do
sumo sacerdote e apoio dos anciãos, para que os prendesse e os reconduzisse a
Jerusalém, onde seriam punidos (Atos 22 e 26). Desse modo, Saulo tornou-se o
próprio apóstolo judeu da maldade contra os discípulos de Jesus, mas ao fazer
isso, sem o saber, estaria prestes a se tornar um ardoroso missionário deles.
Com a mente dominada por violento zelo perseguidor, ele prossegue
em sua memorável jornada. Inabalável em sua visceral ligação com a religião
de Moisés, e determinado a punir os convertidos ao cristianismo - por serem
apóstatas da fé de seus ancestrais —, ele se aproxima de Damasco. Mas ali, no
clímax de sua perversa missão, o Senhor Jesus o detém. Uma luz celestial, mais
forte que a do Sol, o cerca e o subjuga com um brilho ofuscante. Ele cai ao
chão - com a vontade quebrantada, a mente dominada e o espírito humilhado,
prestes a ser transformado inteiramente. O coração dele agora está rendido à voz
que lhe fala, na qual percebe autoridade e poder. Questionamento, desculpas,
justificação: nada disso tem lugar na presença do Senhor.
Uma voz de excelente glória lhe diz: “Saulo, Saulo, por que me persegues?
E ele disse: Quem és, Senhor? E disse o Senhor: Eu sou Jesus, a quem tu
persegues” (v. 4-5). Portanto, o próprio Jesus, embora esteja nos céus, declara-Se
identificado com os Seus discípulos na terra. A unidade da Igreja com Cristo,
o Cabeça dela nos céus, origem da maravilhosa verdade de “um só corpo”, é
D e E ste v ã o a o A p o s to la d o d e P a u lo | 55
revelada aqui nestas poucas palavras: “Saulo, Saulo, por que me persegues? [...]
Eu sou Jesus, a quem tu persegues”. Declarar guerra aos santos é declarar guerra
contra o próprio Senhor. Maravilhosa revelação para o crente; horrenda para o
perseguidor!
A visão e a terrível descoberta resultante da experiência absorveram Saulo
inteiramente. Ele ficou cego por três dias, nos quais não comeu nem bebeu.
Entrou em Damasco cego, humilhado e sob severo juízo da parte do Senhor!
Como sua entrada foi diferente da que imaginara! Agora iria se juntar ao grupo
que estava decidido a exterminar. No entanto, ele ingressa nesse grupo pela porta
e humildemente toma o seu lugar entre os discípulos do Senhor. Ananias, um
discípulo piedoso, é enviado para confortá-lo. Saulo volta a enxergar, é cheio com
o Espírito Santo e é batizado. Então se alimenta e é fortalecido.
E a opinião de muitos que, na conversão de Saulo, o Senhor dá um
exemplo não apenas de Sua longanimidade, demonstrada a todos os pecadores,
mas também um sinal da futura restauração de Israel. O próprio Paulo declara
que ele mesmo obteve misericórdia por ter feito o que fez na ignorância e na
incredulidade. Essa é a mesma base para a misericórdia a ser estendida a Israel
no último dia. O Senhor mesmo orou por eles: “ Pai, perdoa-lhes, porque
não sabem o que fazem” (Lucas 23:34). Pedro também afirmou: “Agora,
irmãos, eu sei que o fizestes por ignorância, como também os vossos príncipes”
(Atos 3:17).
Mas o apostolado de Paulo difere de muitas maneiras do apostolado dos
Doze, e será preciso fazer um resumo disso aqui. A menos que tal diferença seja
compreendida, teremos apenas um pálido vislumbre do verdadeiro caráter da
atual dispensação.
O APOSTOLADO DE PAULO
A Lei e os Profetas vigoraram até João. Depois de João, o próprio Senhor
ofereceu o reino a Israel, mas “os seus não o receberam” (João 1:11). Eles crucifi­
caram o Príncipe da vida, mas Deus O ressuscitou da morte e O fez assentar-se
à Sua direita, nos lugares celestiais. Depois, tivemos os doze apóstolos. Eles foram
revestidos com o Espírito Santo e deram testemunho da ressurreição de Cristo.
Mas o testemunho dos Doze foi rejeitado, houve resistência ao Espírito Santo, e
Estêvão foi martirizado. Israel recusou a última oferta de misericórdia, e agora o
tratamento do Senhor à nação, na qualidade de povo escolhido, será interrompido
por um período. O cenário de Siló se configura outra vez: Icabode é escrito sobre
Jerusalém, e uma nova testemunha é convocada, como nos dias de Samuel.
56
I A H i s t ó r i a d a I g r e j a - capítulo 2
O grande apóstolo dos gentios agora está diante de nós. Ele nasce fora de
tempo e de lugar. Seu apostolado não tem ligação alguma com Jerusalém nem
com os Doze. Não há conexão alguma entre ambos. Sua chamada foi extraor­
dinária, feita diretamente do céu pelo Senhor. Ele teve o privilégio de apresentar
um novo fato, ou seja, o caráter celestial da Igreja: Cristo e a Igreja são um, e
o céu é a casa de ambos (Efésios 2). Enquanto Deus interagiu com Israel, essas
maravilhosas verdades foram mantidas em segredo. “A mim, o mínimo de
todos os santos, me foi dada esta graça de anunciar entre os gentios, por meio
do evangelho, as riquezas incompreensíveis de Cristo e demonstrar a todos qual
seja a dispensação do mistério, que, desde os séculos, esteve oculto em Deus,
que tudo criou”, diz Paulo em Efésios 3:8-9.
Não há dúvida quanto ao caráter da chamada do apóstolo, bem como de
sua divina autoridade: “Paulo, apóstolo (não da parte dos homens, nem por
homem algum, mas por Jesus Cristo e por Deus Pai, que o ressuscitou dos
mortos)”, assim ele se apresenta em sua Epístola aos Gálatas. “Não da parte
dos homens” diz respeito à origem do chamado, que não se deu em nenhum
sínodo humano. “Nem por homem algum” foi o meio pelo qual a sua comissão
foi comunicada. Ele não era apenas um santo, mas um apóstolo chamado por
Jesus Cristo e por Deus Pai, que ressuscitou o Filho dentre os mortos. Em alguns
aspectos, seu apostolado era de ordem superior à dos Doze. Eles haviam sido
chamados quando Jesus ainda estava na terra; ele foi chamado pelo ressurreto e
glorificado Cristo no céu. E, portanto, sua vocação era celestial, não necessitando
de sanção nem de reconhecimento dos outros apóstolos. “Mas, quando aprouve
a Deus [...] revelar seu Filho em mim, para que o pregasse entre os gentios, não
consultei carne nem sangue, nem tornei a Jerusalém, a ter com os que já antes
de mim eram apóstolos, mas parti para a Arábia e voltei outra vez a Damasco”
(Gálatas 1:1, 15-17).
A maneira pela qual Saulo foi chamado para ser apóstolo é digna de
nota, pois arrancou pela raiz o orgulho judaico e pode ser vista como um
golpe mortal no fútil conceito da sucessão apostólica. Os apóstolos, escolhidos
e comissionados enquanto o Senhor estava na terra, definitivamente não foram
nem a fonte nem o canal da vocação de Saulo. Eles nem tiraram a sorte, como
no caso de Matias —o que indica que eles não estavam tão afastados assim de
sua base judaica, que costumava basear as suas decisões por meio de sortes, uma
forma antiga de descobrir a vontade divina em certos assuntos. Mas a ênfase na
declaração “Paulo, apóstolo (não da parte dos homens, nem por homem algum,
mas por Jesus Cristo)” exclui a intervenção humana. A sucessão apostólica
é ignorada. Somos santos por vocação e servos por vocação. E essa vocação
tem de vir do céu. Paulo é posto diante de nós como o padrão para todos os
D e E ste v ã o a o A p o s t o la d o d e P a u lo j
pregadores do Evangelho e para todos os ministros da Palavra. Embora fosse
um grande apóstolo, nada é mais simples que o fundamento sobre o qual ele
se firma como pregador: “Temos, portanto, o mesmo espírito de fé, como está
escrito: Cri; por isso, falei. Nós cremos também; por isso, também falamos” (2
Coríntios 4:13).
Imediatamente após ter sido batizado e fortalecido, ele começou a confessar
a sua fé no Senhor Jesus e a pregar nas sinagogas que Jesus era o Filho de Deus.
Isso era uma coisa nova. Pedro havia pregado que Ele fora exaltado à destra de
Deus, que havia sido feito Senhor e Cristo, mas Paulo prega uma doutrina mais
sublime acerca de Sua glória pessoal: Ele é o Filho de Deus. Em Mateus 16, o
Pai revela Cristo aos discípulos como “o Filho do Deus vivo”. Mas agora Ele é
revelado não apenas a Paulo, mas em Paulo: “Aprouve a Deus [...] revelar seu
Filho em mim”. Mas quem é capaz de falar dos privilégios e bênçãos daqueles a
quem o Filho de Deus é revelado dessa maneira? A dignidade e a segurança da
Igreja repousam sobre essa abençoada verdade, bem como o Evangelho da glória,
especialmente confiado a Paulo, ao qual ele chama de “meu evangelho”.
“No Filho assim revelado”, escreveu alguém, “fundamenta-se tudo que
é peculiar à chamada e à glória da Igreja: sua santa prerrogativa; aceitação no
Amado e perdão por meio de Seu sangue; acesso aos tesouros da sabedoria
e do conhecimento, pois os mistérios da vontade de Deus nos foram feitos
conhecidos; futura herança nEle e com Ele, no qual todas as coisas nos céus e
na terra serão congregadas; e o atual selo e garantia dessa herança é o Espírito
Santo. Essa fulgurante lista de privilégios é descrita pelo apóstolo como ‘bênçãos
espirituais nos lugares celestiais’. São bênçãos que fluem pelo Espírito e nos ligam
a Jesus, Senhor nos céus (Efésios 1:3-14)”.12
Contudo, a doutrina da igreja e a sua unidade com Cristo - mistério de
amor, graça e privilegio - não foi revelada até que Paulo a declarou. O Senhor
havia falado a respeito dela e sobre a presença do Consolador que viria, ao
afirmar: “Naquele dia, conhecereis que estou em meu Pai, e vós, em mim, e eu,
em vós” (João 14:20). E novamente, quando Se dirigiu aos discípulos após a
ressurreição: “Eu subo para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus” (João
20:17). Paulo era o apóstolo especial e especialmente encarregado de declarar
essa fulgurante lista de bênçãos.
Agora, precisamos deixar a história de Paulo por um tempo e voltar a Pedro,
que ocupa a cena até que Saulo inicie seu ministério público, em Atos 13.
12 Veja mais detalhes sobre esse assunto em John Gifford BELLET, Christian Witness [Testemunho
cristão], v. 4, p. 221; William KELLY, Introductory Lectures on Galatians [Estudos introdutó­
rios sobre Gálatas], cap. 1.
57
4
Os
P r im e ir o s M is s io n á r io s
d a C ruz
C
m vez de comentar consecutivamente os capítulos restantes de
Atos, julgamos mais interessante e instrutivo para os nossos leitores
analisá-los em conexão com a história dos apóstolos, em especial com
a dos dois grandes apóstolos. O Livro de Atos é quase integralmente dedicado
aos atos de Pedro e de Paulo - sob a direção do Espírito Santo, obviamente. O
primeiro como o grande apóstolo dos judeus; o segundo como o grande apóstolo
dos gentios. Mas também devemos aproveitar a oportunidade para examinar de
maneira resumida os primeiros companheiros e missionários escolhidos pessoal­
mente por nosso amado Senhor: os doze apóstolos.
Todavia, antes de traçar um perfil dessas interessantes vidas, seria melhor
explicar o que temos em mente ao fazer isso. Estamos saindo um pouco do
caminho usual. Em nenhuma das publicações sobre a história da Igreja que
conhecemos consta a vida dos apóstolos apresentada de maneira ordenada, e é
estranho que os grandes fundadores da Igreja não tenham lugar na história dela.
Temos notado também, com certa surpresa, que a maioria dos textos encerra
com o surgimento da Reforma. Sem dúvida, esse é o mais brilhante período da
história eclesiástica - pelo menos desde os dias de Constantino - e uma época
que sobressai a todas as outras, na qual o Espírito de Deus agiu poderosamente.
Por isso, tem de ser a parte mais especial de sua história.
60
IA H
is t ó r ia d a
I g r e ja - capítulo 4
Ao mesmo tempo, com relação aos apóstolos, precisamos entender que,
além da narrativa sagrada, há bem pouco material sobre o qual possamos nos
apoiar. O tradicional e o escriturai, o certo e o incerto estão inseparavelmen­
te mesclados nos relatos sobre os Pais da Igreja. Valorizamos muito cada raio
de luz histórico, mas temos de voltar às Escrituras para ter certeza das coisas.
Entretanto, os escassos textos bíblicos sobre os apóstolos, somados ao que
podemos coletar em outros lugares, quando reunidos podem dar ao leitor uma
visão inteiramente nova da pessoa e da individualidade dos apóstolos. Outros,
dignos de nota, surgirão diante de nós por estarem relacionados aos apóstolos,
principalmente a Paulo. Assim, nossos leitores terão um perfil resumido, mas
confiável, de quase todos esses nobres pregadores, mestres e mártires do Senhor
Jesus mencionados no Novo Testamento.
•k
Os
*
*
D o ze A p ó sto lo s
Os doze eram Simão Pedro, André, Tiago e João (filhos de Zebedeu),
Filipe, Tomé, Bartolomeu, Mateus, Tiago (filho de Alfeu), Tadeu, Simão Zelote
e Matias, este escolhido para o lugar de Judas Iscariotes (veja Mateus 10; Lucas
6; Marcos 3; Atos 1).
Paulo era também apóstolo por uma chamada direta do Senhor glorificado,
no mais pleno sentido da palavra, como já vimos. Houve outros que foram
chamados “apóstolos”, mais particularmente apóstolos das igrejas. Os Doze
e Paulo foram preeminentemente os apóstolos do Senhor (compare com 2
Coríntios 8:23; Filipenses 2:25; Romanos 16:7).
O título oficial, “apóstolo” significa “enviado”. “Jesus enviou estes doze”
(Mateus 10:5). O título foi dado aos Doze pelo próprio Senhor: “ [Jesus] chamou
a si os seus discípulos, e escolheu doze deles, a quem também deu o nome de
apóstolos” (Lucas 6:13). O conhecimento pessoal de todo o curso ministerial do
Senhor era a qualificação original e necessária a um apóstolo. Isso foi declarado
por Pedro antes da eleição de um sucessor para o lugar do traidor Judas: “E
necessário [...] que, dos varões que conviveram conosco todo o tempo em que
o Senhor Jesus entrou e saiu dentre nós, começando desde o batismo de João
até ao dia em que dentre nós foi recebido em cima, um deles se faça conosco
testemunha da sua ressurreição” (Atos 1:21-22). Por esse relacionamento próximo
com o Senhor, eles eram particularmente qualificados a serem testemunhas de
Sua vida aqui no mundo e da sua ressurreição.
O próprio Senhor Jesus os descreve como: “E vós sois os que tendes
permanecido comigo nas minhas tentações” (Lucas 22:28).
Os A p ó s t o l o s
e os
P io n e ir o s
It 61
O número doze, assim acreditamos, estabelece distintivamente uma
relação com as doze tribos de Israel. As fantasias dos Pais da Igreja, no tocante
ao significado do número aqui escolhido, mostra quão pouco a mente deles era
governada pelo contexto inerente. Agostinho pensava que o Senhor aqui fazia
referência aos quatro cantos do mundo, que seriam alcançados pela pregação do
Evangelho e que, multiplicados por três, denotando a Trindade, resultaria em
doze. Por não ser feita a distinção entre Israel e a Igreja, há muita confusão em
tais escritores.
Julgamos que o número doze nas Escrituras signifique a perfeição admi­
nistrativa no homem. Essa é a razão das doze tribos, dos doze apóstolos, e a
promessa futura de que eles se sentariam em doze tronos para julgar as doze
tribos de Israel (Mateus 19:28). Contudo, em Mateus 10 o Senhor limita, em
termos mais simples, a missão dos Doze às ovelhas perdidas da casa de Israel.
Eles não deveriam visitar os samaritanos nem ir pelo caminho dos gentios. A
missão era estritamente judaica: “Não ireis pelo caminho das gentes, nem
entrareis em cidade de samaritanos; mas ide, antes, às ovelhas perdidas da casa
de Israel”. Nada pode ser mais claro. A chamada da Igreja não está inferida aqui.
Isso aconteceu mais tarde, quando outro e extraordinário apóstolo foi escolhido
com um propósito especial para os gentios. Depois, os Doze teriam seu lugar na
Igreja, mas Paulo era o ministro qualificado e divinamente vocacionado.
Não podemos concordar com a idéia generalizada de que os Doze eram
iletrados. Consideramos que a expressão “sem letras e indoutos” de Atos
4:13 signifique apenas pessoas não educadas no saber rabínico e nas tradições
judaicas. O termo “leigo” transmitiria a mesma idéia, ou seja, pessoas de
educação comum, não envolvidas nos “negócios santos”, em contraste com
os que receberam educação especial em escolas. Portanto, embora Pedro e
João estivessem plenamente familiarizados com as Sagradas Escrituras e com
a história de seu povo e de sua nação, ainda assim eram considerados pelo
Concílio homens “sem letras e indoutos”. Tiago e João no mínimo tiveram todas
as vantagens da criação por uma mãe piedosa e devotada, as quais costumam
prestar um grande serviço à Igreja de Deus.
Apresentaremos agora um resumo da vida dos Doze, e o primeiro, pela
ordem, é o apóstolo Pedro. Não há dúvida de que Pedro figura em primeiro
lugar entre os Doze. O Senhor concedeu-lhe essa posição. Ele é o primeiro a ser
nomeado em todas as listas dos apóstolos. Sabemos que tal precedência não se
deve ao fato de ele ter conhecido o Senhor primeiro, pois nesse aspecto não foi
o primeiro nem o último. André e provavelmente João conheceram o Senhor
antes de Pedro. Analisemos mais detidamente a primeira reunião desses amigos,
que seriam unidos para sempre (veja João 1:29-51).
62 | A
H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 4
João Batista deu testemunho de que Jesus era o Cordeiro de Deus que
tira o pecado do mundo. Dois discípulos de João o deixaram para seguir a
Jesus: “Era André, irmão de Simão Pedro, um dos dois que ouviram aquilo de
João e o haviam seguido. Este achou primeiro a seu irmão Simão e disse-lhe:
Achamos o Messias (que, traduzido, é o Cristo). E levou-o a Jesus” (João 1:40-42).
Esse foi o primeiro encontro entre Pedro e o Senhor e a fonte de sua eterna
felicidade. E quão significativa foi essa primeira reunião! “E, olhando Jesus para
ele, disse: Tu és Simão, filho de Jonas; tu serás chamado Cefas (que quer dizer
Pedro).” Impulsivo por natureza, rápido em apoderar-se das coisas, mas pronto a
desistir delas sob a força de qualquer pressão, Pedro firmou-se na graça de Deus
concedida a ele, embora a sua personalidade sempre sobressaísse.
A primeira coisa que levou Pedro a uma posição de destaque foi a sua
nobre confissão de que Cristo era o Filho do Deus vivo (Mateus 16). O Senhor
honrou-o com as chaves do Reino dos céus e concedeu-lhe proeminência entre
os seus irmãos. No entanto, como já examinamos essa parte da história de
Pedro e alguns capítulos iniciais de Atos, iremos nos referir apenas ao que não
foi mencionado até agora.
Não fizemos referência ao capítulo 4 de Atos, embora creiamos que nele
esteja o relato do mais brilhante dia da história desse apóstolo, assim como o
batismo de Cornélio, mais tarde, que coroou o seu ministério. Um elemento
sempre presente no grande apóstolo é a mistura de força e fraqueza, de
excelências e defeitos, e por isso é profundamente interessante seguir o caminho
dele em meio às primeiras tormentas que assolaram a jovem Igreja. Mas não nos
esqueçamos de que o grande segredo da ousadia, sabedoria e poder dos apóstolos
não era o caráter natural deles, e sim a presença do Espírito Santo. Ele estava
com eles e dentro deles e agia por meio deles. O Espírito Santo era a força do
testemunho dos apóstolos.
Observe especialmente os abençoados efeitos de Sua presença em quatro
aspectos distintos.
1. Na coragem demonstrada por Pedro e pelos outros: “Pedro, cheio
do Espírito Santo, lhes disse: Principais do povo e vós, anciãos de
Israel, visto que hoje somos interrogados acerca do benefício feito a
um homem enfermo e do modo como foi curado, seja conhecido de
vós todos e de todo o povo de Israel, que em nome de Jesus Cristo, o
Nazareno, aquele a quem vós crucificastes e a quem Deus ressuscitou
dos mortos, em nome desse é que este está são diante de vós. Ele é a
pedra que foi rejeitada por vós, os edificadores, a qual foi posta por
cabeça de esquina. E em nenhum outro há salvação, porque também
debaixo do céu nenhum outro nome há, dado entre os homens, pelo
Os
A pó sto lo s
e os
P io n e ir o s 1
qual devamos ser salvos”. A grande e solene questão entre Deus e os
líderes de Israel está formalmente expressa aqui. Nada pode ser mais
claro. O testemunho de Deus não está mais com os sacerdotes do
Templo, mas com os apóstolos do Messias exaltado.
2. Em Sua presença entre os discípulos reunidos como assembléia:
“Tendo eles orado, moveu-se o lugar em que estavam reunidos; e todos
foram cheios do Espírito Santo e anunciavam com ousadia a palavra de
Deus”. Esse versículo ensina claramente o que já dissemos quanto ao
fato de o Espírito estar com os discípulos e dentro deles. O lugar em que
se reuniram foi sacudido: isso prova a Sua presença entre eles. E todos
foram cheios do Espírito Santo - de tal forma que naquele momento
não havia espaço para a carne atuar.
3. No grande poder para o serviço: “Os apóstolos davam, com grande
poder, testemunho da ressurreição do Senhor Jesus, e em todos eles
havia abundante graça”. Total disposição e energia caracterizavam os
apóstolos.
4. Na dedicação sincera: “Não havia [...] entre eles necessitado algum;
porque todos os que possuíam herdades ou casas, vendendo-as, traziam
o preço do que fora vendido e o depositavam aos pés dos apóstolos”.
No capítulo dois, os ricos ajudavam diretamente os pobres, ato que
quase sempre faz aumentar a influência de quem está doando. Mas
no capítulo 4 o rico entrega o seu dinheiro aos apóstolos. Podemos
considerar essa atitude um sinal de crescente humildade e de maior
devoção.
E também nesse rico e instrutivo capítulo que temos a famosa resposta de
Pedro e João ao Concílio: “Julgai vós se é justo, diante de Deus, ouvir-vos antes
a vós do que a Deus”. Desse dia em diante, os que confessavam verdadeiramente
o nome de Jesus encontravam nessas palavras uma resposta apropriada aos seus
inquisidores e opressores. Que diferença entre o homem sentado ao redor da
fogueira no pátio do sumo sacerdote e o homem que toma a palavra em Atos
4, entre o homem que desaba diante da acusação de uma empregada e o que
faz a nação tremer com o seu discurso! O que mudou? A presença e o poder do
irresistível e maravilhoso Espírito Santo explica tudo. E a fraqueza ou o poder
de muitos em nossos dias também são devidos ao mesmo princípio. O poder
que age no cristão é o Espírito de Deus. Que possamos experimentar a bemaventurança de viver, andar e servir no poder salvífíco e santificador do Espírito
Santo! “Não entristeçais o Espírito Santo de Deus, no qual estais selados para o
dia da redenção” (Efésios 4:30).
64 ] A H
is t ó r i a d a
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Agora chegamos à última seção da narrativa sagrada sobre a vida de Pedro.
Em Atos 9.32—11.18, temos um relato de sua pregação e obras miraculosas. Mais
uma vez, vemo-lo exercendo plena autoridade apostólica, com a cooperação do
Espírito Santo. Sua missão nesse meio-tempo foi grandemente abençoada, tanto
nas cidades de Israel quanto em Cesaréia. Toda a cidade de Lida e o distrito de
Sarona parecem ter sido despertados. Os milagres realizados por meio de Pedro
e o evangelho que ele pregou foram instrumentos de Deus para a conversão
de muitos. “Viram-no todos os que habitavam em Lida e Sarona, os quais se
converteram ao Senhor”. A bênção foi geral. E em Jope também, por causa da
ressurreição de Dorcas, houve notável movimento divino e grande bênção. “Foi
isto notório por toda a Jope, e muitos creram no Senhor.”
No capítulo 10, que já analisamos, os gentios são introduzidos na Igreja.
E agora Pedro, tendo encerrado a sua missão nesses lugares, retorna a Jerusalém.
Além do registro de sua libertação do poder de Herodes, no capítulo 12, não
temos a continuidade da história do apóstolo da circuncisão.
Como Herodes Agripa, o rei idumeu, aparece diante de nós de maneira
tão proeminente, seria oportuno analisar o papel desse governante. Ele
professava grande zelo pela lei de Moisés e tinha certo respeito pela observação
de seus aspectos externos. Portanto, motivado por uma suposta piedade, estava
inclinado a ficar do lado dos judeus e contra os discípulos de Cristo. Essa era a
sua política. Ele é um símbolo do rei adversário.
Foi por volta de 44 d.C. que Herodes tentou conquistar a amizade de
seus súditos judeus perseguindo os indefesos cristãos. Não que houvesse algum
afeto entre Herodes e os judeus, pois eles se detestavam visceralmente, mas nessa
ocasião se uniram pelo ódio comum contra o testemunho celestial. Herodes
matou Tiago e lançou Pedro na prisão. Seu plano malévolo era mantê-lo preso
até depois da Páscoa, quando uma multidão de judeus vindos de toda parte
estaria em Jerusalém, e então fazer da execução do apóstolo um espetáculo.
Deus, porém, preservou e libertou o Seu servo, em resposta às orações dos santos,
os quais possuíam armas de guerra que os governos do mundo desconhecem.
Deus permitiu que Tiago selasse o seu testemunho com o próprio sangue, mas
preservou Pedro para outro testemunho sobre a terra. Nosso Deus governa tudo
e todos. Ele é o Governador das nações, independentemente da vontade ou do
orgulho do ser humano. O poder pertence a Ele. De fato, o poder de qualquer
inimigo é inútil quando Ele interfere. Herodes, confuso e perplexo pelas mani­
festações de um poder que não conseguia entender, condena os guardas da prisão
à morte e deixa Jerusalém. Mas ele não imaginava que a sua morte precederia
a de seus prisioneiros.
Os A p ó s t o l o s
e os
P io n e ir o s
Em Cesaréia, sede gentia de sua autoridade, Herodes promoveu um
esplêndido festival em honra do imperador Cláudio. Um grande número de
pessoas pertencentes à alta sociedade, provenientes de todo o império, estava ali.
Na segunda manhã das festividades, o rei apareceu vestido com um brilhante
traje prateado, que resplandecia com os raios do sol, ofuscando os olhos de todos
e despertando a admiração geral. Sentado no trono, fez um discurso, e alguns
bajuladores começaram a gritar: “E a voz de um deus!”. Em vez de repreender
aquela ímpia adulação, que contagiou toda a platéia, Herodes a aceitou. Mas
um senso do juízo de Deus penetrou o coração do rei no mesmo instante. Em
tom de profunda melancolia, Ele disse: “O deus de vocês logo sofrerá a universal
sina da mortalidade”. Na forte linguagem bíblica, é dito: “No mesmo instante,
feriu-o o anjo do Senhor, porque não deu glória a Deus; e, comido de bichos,
expirou”. Ele foi acometido de violentas dores internas e saiu carregado para o
seu palácio. Agonizou durante cinco dias e morreu, em terrível angústia, na
condição mais humilhante e asquerosa possível.
* * *
Á L in h a g e m R eal H e r o d i a n a
Não seria fora de propósito nem tedioso para o leitor um breve comentário
sobre a linhagem real herodiana. Ela aparece com frequência, tanto na vida de
nosso Senhor quanto na história da Igreja primitiva. E bem conhecido de todos,
desde a infância, o massacre das crianças de Belém, ordenado por Herodes,
rei da Judéia. E extraordinário o fato de Flávio Josefo, principal historiador de
Herodes, não registrar esse evento. Uma explicação geralmente aceita é que o
assassinato de algumas crianças numa vila obscura, comparado com outros atos
de Herodes, tenha sido algo de menor importância, indigno de nota aos olhos
de Josefo, mas não aos olhos de Deus: tanto o engano quanto a crueldade do
traiçoeiro coração do rei estão expostos na história sagrada. Os olhos de Deus
estavam sobre o “Menino” de Israel - a única fonte de esperança para todas as
nações. Portanto, o cruel desígnio de Herodes foi frustrado.
Herodes, o Grande, primeiro rei idumeu a governar Israel, recebeu poderes
do Senado de Roma, por influência de Marco Antônio. Isso aconteceu cerca de
35 anos antes do nascimento de Cristo, e 37 antes de sua morte. Os idumeus
eram uma ramificação dos antigos edomitas, que tomaram posse da parte sul
de Israel, enquanto os judeus estavam no cativeiro babilónico e o país estava
desolado. Eles se apoderaram de todas as terras pertencentes à tribo de Simeão
e de metade da herança da tribo de Judá, ocupando desde então esse território.
No decorrer do tempo, os idumeus foram conquistados por João Hircano, e se
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I g r e ja - capítulo 4
converteram ao judaísmo. Após a conversão, foram circuncidados, submeteramse às leis judaicas e acabaram por se integrar à nação dos judeus. Dessa maneira,
tornaram-se judeus, embora não fizessem parte da linhagem original de Jacó.
Esse processo alcançou o seu auge por volta de 129 a.C.. Como governantes,
os idumeus eram espertos, audaciosos e cruéis. Tinham grande visão política,
buscavam sempre o favor de Roma e se importavam apenas com o estabele­
cimento de uma dinastia própria. No entanto, com a permissão de Deus, a
dinastia iduméia desapareceu com a destruição de Jerusalém, e o próprio nome
de Herodes se desvaneceu entre as nações.
Além do massacre das crianças de Belém, ocorrido pouco antes de sua
morte, Herodes também manchou as mãos no sangue da própria família e de
muitos nobres da linhagem asmonéia. Sua inveja brutal contra a heróica família
jamais sossegou. Um de seus últimos atos foi assinar a ordem de execução do
próprio filho. Às portas da morte - que evidentemente foi um juízo de Deus,
tal como no caso de seu neto, Herodes Agripa -, conseguiu levantar-se na cama
para ordenar a execução de Antípater e nomear Arquelau seu sucessor no trono.
Feito isso, caiu e morreu.
Era deste modo que os monarcas sempre morriam: distribuindo mortes
com uma mão e reinos com a outra. Mas isso não é tudo. Na crua realidade da
própria condição, eles terão de comparecer diante do tribunal de Deus. O manto
púrpura não irá mais protegê-los. A justiça inflexível governa o trono divino.
Julgados de acordo com os atos praticados por meio do corpo, serão banidos
eternamente para o “abismo” que foi “posto” pelo juízo de Deus (Lucas 16:36).
Ali lembrarão, em tormentos, cada instante de seu passado - os privilégios dos
quais abusaram, as oportunidades que perderam e todo o mal que praticaram.
Que o Senhor livre cada alma que estiver lendo estas páginas do terrível peso
destas palavras: “lembrar”; “atormentado”; “posto”. Elas caracterizam o futuro
estado das almas impenitentes (v. 19-31).
E provável que a seita dos herodianos fosse constituída dos partidários
de Herodes e tivesse caráter estritamente político, cujo principal objetivo era a
manutenção da independência nacional dos judeus em face do poder e da ambição
de Roma. Talvez tenham pensado em usar Herodes para alcançar esse propósito.
Na história evangélica, eles aparecem agindo de maneira maliciosa contra o
Senhor, em conluio com os fariseus (Mateus 22:15-16; Marcos 12:13-14).
Mas retornemos à história de nosso apóstolo.
Em Atos 15, após uma ausência de cinco anos, aproximadamente, Pedro
aparece outra vez. Durante esse tempo, nada sabemos sobre a sua vida nem
sobre a sua obra. Ele desempenha um papel ativo na assembléia de Jerusalém e
parece ter mantido o seu lugar original entre os apóstolos e anciãos.
Os
P edro
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A n tio q u ia
Logo depois, como lemos em Gálatas 2, ele visitou Antioquia. No entanto,
a despeito da decisão dos apóstolos e da igreja em Jerusalém, a instabilidade
característica de Pedro induziu-o à dissimulação. Uma coisa é estabelecer um
princípio, outra é pôr em prática esse princípio. De fato, Pedro havia declarado
diante de toda a assembléia que o evangelho que Paulo pregava, por revelação
divina, era a mesma bênção, tanto para os judeus quanto para os gentios. E,
enquanto estava sozinho em Antioquia, agiu de acordo com esse princípio,
andando na liberdade da verdade celestial e comendo com os s;entios. Mas
quando alguns cristãos judeus chegaram, enviados por Tiago, Pedro não mais se
atreveu a usar tal liberdade. “Depois que chegaram, se foi retirando e se apartou
deles, temendo os que eram da circuncisão. E os outros judeus também dissimu­
lavam com ele, de maneira que até Barnabé se deixou levar pela sua dissimula­
ção” (v. 12). Alguém lamentou: “Que triste coisa é o ser humano! Somos fracos
na mesma proporção de nossa importância diante dos outros. Quando somos
nada, podemos fazer todas as coisas, no que diz respeito à opinião humana [...].
Somente Paulo, incisivo e fiel, por meio da graça, permanece justo, e censura
Pedro diante de todos”.
Desde então, de 49 ou 50 d.C., o seu nome não aparece mais nos Atos dos
Apóstolos, e não temos nenhum conhecimento seguro de sua esfera de atuação.
No entanto, em sua primeira epístola ele se dirige aos cristãos hebreus da seguinte
maneira: “Pedro, apóstolo de Jesus Cristo, aos estrangeiros dispersos no Ponto,
Galácia, Capadócia, Ásia e Bitínia”. Disso podemos inferir que ele trabalhou
nesses países. Sua segunda epístola, datada de um período bem posterior, deve
ter sido escrita pouco antes de sua morte. Deduzimos isso do que ele escreve
no primeiro capítulo: “... sabendo que brevemente hei de deixar este meu
tabernáculo, como também nosso Senhor Jesus Cristo já mo tem revelado” (v.
14; ver João 21:18-19).
A data exata da visita de Pedro a Roma tem sido objeto de grande con­
trovérsia entre escritores católicos e protestantes de todas as épocas. Mas agora
podemos considerar como certo que Pedro nao visitou aquela cidade até bem
próximo ao final de sua vida. A data de seu martírio é também incerta. O mais
provável é que tenha ocorrido por volta de 67 ou 68 d.C., aos 70 anos de idade.
O incêndio de Roma, provocado por Nero, é datado do mês de julho de 64 d.C.,
aproximadamente, por Tácito. A perseguição aos cristãos se deu logo após, e foi
durante essa perseguição que o apóstolo foi honrado com a coroa do martírio.
Ele foi sentenciado à crucificação, a morte mais severa e vergonhosa,
mas quando viu a cruz, rogou aos oficiais que não fosse crucificado da maneira
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ist ó r ia da
I g r e ja - capítulo 4
comum, mas de cabeça para baixo, afirmando ser indigno sofrer na mesma
postura que o seu amado Senhor e Mestre. O pedido foi atendido, e Pedro foi
crucificado de cabeça para baixo. Ninguém sabe se isso aconteceu realmente ou
se é mera lenda, mas a história combina com o temperamento impulsivo e com
a profunda humildade do grande apóstolo.13
Vejamos agora o apóstolo André.
A história sagrada é pródiga em descrever os atos de Pedro, mas bastante
frugal no que se refere ao irmão dele, André. Ambos trabalhavam no ramo de
negócio do pai, ou seja, a pesca, e continuaram nesse trabalho até o Senhor
chamá-los para serem “pescadores de homens”.
André, como outros jovens da Galiléia, era discípulo de João Batista. No
entanto, ao ouvir o seu mestre afirmar duas vezes que Jesus era o Cordeiro de
Deus, deixou João para seguir a Jesus. Logo depois, ele foi o instrumento que
apresentou Pedro ao seu novo Mestre e teve a honra de ser o primeiro apóstolo
a indicar Cristo a alguém (João 1). André aparece nos capítulos 6 e 12 de João,
e no capítulo 13 de Marcos. Além dessas poucas informações, as Escrituras não
relatam nada mais a respeito dele. Seu nome não aparece em Atos, exceto no
primeiro capítulo.
As conjecturas e a tradição têm muito a dizer a respeito dele, mas falaremos
apenas de fatos estabelecidos. É dito que ele pregou na Cítia e que viajou pela
Trácia, Macedônia e Tessália, sofrendo martírio em Petra, na Acaia. Diz-se
que a cruz, na qual morreu, era formada por dois pedaços de madeira que se
cruzavam no meio, na forma da letra X, sendo por isso conhecida até hoje como
“cruz de santo André”. Ele morreu orando e exortando o povo à constância e à
perseverança na fé. O ano de sua morte é incerto.
Dos dois irmãos Pedro e André, passaremos agora a outro par de irmãos,
Tiago e João. Os quatro também eram parceiros nos negócios.
E o primeiro a aparecer, pela ordem, é Tiago. Zebedeu e seus dois filhos,
Tiago e João, estavam ocupados em sua atividade costumeira, no mar da Galiléia,
quando Jesus passou por ali. Vendo os dois irmãos, Ele “logo os chamou. E eles,
deixando o seu pai Zebedeu no barco com os empregados, foram após ele”
(Marcos 1:20). Pedro e André estavam presentes nesse momento também. Foi
nessa ocasião que o Senhor ordenou a Pedro que fosse para o alto-mar e lançasse
a rede mais uma vez. Pedro argumentou que tinham sido malsucedidos na noite
anterior. Contudo, sob a palavra do Senhor, a rede foi lançada, “e, fazendo assim,
13 Veja William CAVE, Lives o f the Apostles [A vida dos apóstolos]; Edward B U R T O N , Lectures
upon the Ecclesiastical History, [Palestras sobre história eclesiástica]; William SM IT H , Smith’s
Bible Dictionary.
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e os
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colheram uma grande quantidade de peixes, e rompia-se-lhes a rede” (Lucas
5:4-11). Maravilhado com o resultado da pesca, Pedro acenou, pedindo ajuda
aos companheiros para levar a carga até a praia.
A plena convicção de que Jesus era o verdadeiro Messias havia dominado
a mente dos quatro jovens. Talvez houvesse dúvidas antes, mas nenhuma agora.
À chamada de Jesus, todos abandonaram tudo e se tornaram, para sempre, Seus
discípulos. Dali por diante, seriam “pescadores de homens”. Em todas as listas
que temos dos apóstolos, esses quatro nobres homens aparecem nos primeiros
lugares. Eram os mais destacados entre os Doze (Mateus 4:17-20; Marcos
1:16-20; Lucas 5:1-11).
Essa foi a chamada de Tiago para o discipulado. Cerca de um ano depois,
ele foi convocado ao apostolado, com os outros onze (Mateus 10; Marcos 3;
Lucas 6; Atos 1).
Pedro, Tiago, João, e ocasionalmente André eram os companheiros mais
chegados do Senhor. Os três primeiros foram os únicos a ter permissão para
testemunhar a ressurreição da filha de Jairo (Marcos 5; Lucas 8). Apenas os três
estavam presentes na transfiguração (Mateus 17; Marcos 9; Lucas 9). Os três
também viram a agonia do Senhor no Getsêmani (Mateus 26; Marcos 14; Lucas
22). Mas os quatro - Pedro, Tiago, João e André - estavam reunidos quando
perguntaram ao Senhor em particular sobre a destruição do templo (Marcos 13).
Como a mudança - ou o acréscimo —ao nome de Pedro, os filhos de
Zebedeu são apelidados de Boanerges, “filhos do trovão”. A ousadia e a fidelidade
de Tiago devem ter chamado a atenção de Herodes para este escolhê-lo como o
primeiro a ser capturado e silenciado. Não é nenhuma surpresa que o “filho de
trovão” e a “pedra” tenham sido os primeiros a ser presos. Em 44 d.C., Tiago
teve a honra de receber a coroa do martírio antes de todos. Pedro foi miraculo­
samente resgatado.
A inveja de uma mãe e a ambição de seus filhos levou Salomé (mãe de
Tiago e João) a pedir lugares de destaque para eles no Reino do Senhor. Jesus não
levou o pedido em consideração, censurando-a de maneira suave, mas afirmou
que Tiago e João beberiam de Seu cálice e seriam batizados com o Seu batismo.
Tiago logo foi convocado para cumprir a profecia. Após a ascensão de Jesus,
ele é visto na companhia dos outros apóstolos em Atos 1, depois desaparece da
narrativa sagrada até a sua prisão e morte, em Atos 12. Na sucinta linguagem
do historiador inspirado, é dito simplesmente que o rei Herodes matou Tiago,
irmão de João, com a espada.
Clemente de Alexandria registra uma história concernente ao martírio
de Tiago, a qual pode ser verossímil. Enquanto se dirigia ao lugar da execução,
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A H istó ria
da
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o soldado ou oficial que o havia denunciado ao tribunal, mais exatamente seu
acusador, ficou tão admirado com a coragem e a ousada confissão de Tiago
durante o julgamento que se arrependeu do que fizera. Então ajoelhou-se aos pés
do apóstolo, implorando perdão por tudo que dissera contra ele. Tiago, depois
de se recuperar do espanto, colocou-o de pé, e o beijou e abraçou, dizendo: “Paz,
meu filho! A paz seja contigo e o perdão de seus pecados!”. Imediatamente, o
ex-inimigo confessou diante de todos que agora também era cristão, e os dois
foram decapitados juntos. Assim caiu Tiago, o proto-mártir apostólico, bebendo
alegremente do cálice, como o Senhor, muito tempo antes, lhe havia alertado.14
João era filho de Zebedeu e Salomé e irmão mais novo de Tiago.
Embora seu pai fosse pescador, infere-se da narrativa bíblica que eles tinham
boas condições financeiras. Alguns textos antigos informam que a família era
rica, até mesmo nobre. Essas tradições não encontram respaldo nos fatos das
Escrituras, contudo sabemos de seus empregados contratados, e é possível que
fossem donos de mais de um barco. Salomé, sem dúvida, era uma das nobres
mulheres que serviam ao Senhor com os seus bens. Além disso, João tinha casa
própria (Lucas 8:2-3; João 19:27). Podemos concluir com segurança, tendo
por base esses fatos, que a condição social deles estava consideravelmente acima
da pobreza. Como muitos vão ao extremo de afirmar que os apóstolos eram
iletrados e pobres, achamos melhor prestar atenção a essas poucas alusões das
Escrituras sobre o assunto.
Nada sabemos sobre a pessoa de Zebedeu. Ele não fez objeção quando seus
filhos o abandonaram para seguir a chamada do Messias, porém não ouvimos
mais nada a seu respeito. Encontramos a mãe em companhia dos filhos, porém
nenhuma menção é feita ao pai. A probabilidade é que ele tenha morrido logo
depois que os seus filhos foram chamados por Jesus.
O evangelista Marcos, listando os doze apóstolos (Marcos 3:17-19), ao
mencionar Tiago e João diz que o Senhor “pôs [neles] o nome de Boanerges, que
significa: Filhos do trovão”. O que o Senhor pretendia comunicar com esse título
é difícil determinar. Há muitas conjecturas. Alguns supõem que era pelo fato de
ambos terem uma disposição mais impetuosa e resoluta, um temperamento mais
ardente e apaixonado que os demais apóstolos. Mas não vemos base nos relatos
evangélicos para tal suposição. No entanto, em uma ou duas ocasiões, o zelo deles
foi desmedido. Isso aconteceu antes de terem entendido a natureza do chamado
que receberam. E mais provável que o Senhor os tenha apelidado assim como um
prognóstico do inflamado zelo com o qual proclamariam as grandes verdades do
Evangelho, após tomarem pleno conhecimento delas. Isso transparece nos primeiros
14 Veja William CAVE, Lives o f the Apostles.
Os A p ó s t o l o s
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P io n e ir o s
capítulos de Atos, nos quais João, na companhia de Pedro, demonstra uma coragem
inabalável diante das ameaças, que nenhuma oposição podia intimidar.
Presume-se que João tenha sido o mais jovem dos apóstolos e, a julgar por
seus escritos, parece que tinha um temperamento singularmente afetuoso, brando
e cordial. Era caracterizado como o “discípulo a quem Jesus amava”. Em várias
ocasiões, admitiu ter livre e íntimo relacionamento com o Senhor (João 13).
“O que distinguia João”, escreve Neander, “era a combinação das mais
opostas qualidades, como sempre observamos nos grandes instrumentos da
propagação do Reino de Deus - a combinação de uma personalidade inclinada
à profunda e silenciosa meditação com um zelo ardente, embora não impelido
a realizar atividades tremendas e diversificadas no mundo exterior; um zelo não
passional, que, segundo imaginamos, incitava Paulo antes de sua conversão.
Também havia amor - não um amor suave e complacente, mas do tipo que
se agarrava com todas as forças ao objeto de sua afeição, repelindo com vigor
qualquer coisa que pudesse aviltá-lo ou que tentasse arrancá-lo de seu coração.
Essa era sua característica principal”.
Pelo fato de a história de João estar tão intimamente ligada à de Pedro e
Tiago, já analisadas, agora seremos muito breves. Esses três nomes raramente
aparecem separados no relato bíblico. Mas existe uma cena em que João está
sozinho, merecendo um comentário especial. Ele foi o único apóstolo que seguiu
Jesus até o lugar da crucificação e ali foi honrado com o respeito e confiança
de seu Mestre: “Ora, Jesus, vendo ali sua mãe e que o discípulo a quem ele
amava estava presente, disse à sua mãe: Mulher, eis aí o teu filho. Depois, disse
ao discípulo: Eis aí tua mãe. E desde aquela hora o discípulo a recebeu em sua
casa” (João 19:26-27).
Após a ascensão de Cristo e a descida do Espírito Santo no dia de
Pentecoste, João tornou-se um dos principais apóstolos da circuncisão. Mas
seu ministério acaba no final do primeiro século. Com a morte de João, a era
apostólica naturalmente se encerra.
Há uma bem conhecida e geralmente aceita tradição, segundo a qual
João permaneceu na Judéia até a morte de Maria, a mãe do Senhor. A data
desse evento é incerta. Mas logo depois ele foi para a Ásia Menor. Ali fundou
e pastoreou diversas igrejas, em diferentes cidades, mas fez de Efeso a sua base.
Dali foi banido para a ilha de Patmos, perto do final do reinado de Domiciano.
Foi onde escreveu Apocalipse (1:9). Com a ascensão de Nerva ao trono imperial,
João foi libertado do exílio e retornou a Éfeso, cidade na qual escreveu seu
evangelho e suas epístolas. Morreu aos 100 anos de idade, no terceiro ano do
imperador Trajano, por volta de 100 d,€..
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IA H
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Das muitas tradições sobre João, selecionamos uma em especial, que
consideramos a mais interessante, cujo conteúdo é verossímil. Como alguém
incansável em seu amor e cuidado para com a alma humana, ele estava profunda­
mente triste pela apostasia de um jovem, por quem nutria um interesse singular.
Ao visitar o lugar em que vivia o jovem, João soube que ele havia se juntado a
um grupo de ladrões, tornando-se o chefe deles. Seu amor era tão grande por
aquela alma que ele se propôs encontrá-lo. Assim, foi ao encalço dos ladrões e
deixou-se capturar, implorando para que o levassem à presença do líder. Quando
o rapaz viu a nobre aparência do velho apóstolo, a sua consciência foi abalada. A
recordação do passado foi esmagadora, e ele fugiu consternado da presença de
João. O apóstolo, cheio de amor paternal, correu atrás dele e suplicou-lhe que se
arrependesse e voltasse atrás em seus caminhos, encorajando-o com a certeza do
perdão dos pecados em nome do Senhor Jesus. A fantástica afeição e o profundo
interesse de João por sua alma conquistaram o rapaz. Ele se arrependeu, voltou,
foi restaurado e depois se tornou um membro importante da comunidade cristã.
Que possamos fazer o mesmo para restaurar os que se desviaram!
Agora, chegou a vez do que podemos chamar de segundo grupo de quatro
apóstolos. Assim como Pedro era o líder do primeiro grupo, Filipe liderava o
segundo.
Filipe. Nos três primeiros evangelhos, ele aparece nessa ordem. Menciona-se
que ele era de Betsaida, mesma cidade de André e Pedro (João 1:44). E bem mais
que provável que Filipe estivesse entre os galileus daquele distrito que formavam
multidões para ouvir a pregação de João Batista. Embora nenhuma outra
região da Palestina tenha sido tão menosprezada quanto a Galiléia, foi dentre
os desprezados, simples, fervorosos e devotados galileus que o Senhor escolheu
os Seus apóstolos. “Es tu também da Galiléia? Examina e verás que da Galiléia
nenhum profeta surgiu”, disseram os fariseus (João 7:52). Argumentos generaliza­
dos e superficiais, porém, na maioria das vezes não são verdadeiros. Um exemplo
é a afirmação: “Pode vir alguma coisa boa de Nazaré?” (João 1:46).
Na Bíblia, nada é dito a respeito da família ou da profissão de Filipe.
É mais provável que ele fosse um pescador, trabalho mais comum naquela
região. Pela similaridade existente na linguagem usada por Filipe e André e
também pelo fato de sempre serem mencionados juntos, podemos concluir que
o nosso apóstolo e os filhos de Jonas e Zebedeu eram amigos íntimos, e todos
aguardavam o Messias prometido. De todo o círculo dos discípulos do Senhor,
Filipe teve a honra de ser o primeiro convocado. Os três anteriores vieram a Cristo
e conversaram com Ele antes de Filipe, mas voltaram às suas atividades, sendo
chamados para seguir ao Senhor cerca de um ano depois. Mas Filipe o seguiu
Os A p ó s t o l o s
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P io n e ir o s
imediatamente: “No dia seguinte, quis Jesus ir à Galiléia, e achou a Filipe, e
disse-lhe: Segue-me” (João 1:43). A ordem: “Segue-me” é plena de significado
e de riqueza para a alma, e cremos que foi dirigida pela primeira vez a Filipe.
Quando os Doze foram separados para o apostolado, Filipe estava entre eles.
Imediatamente após seu chamado, ele encontra Natanael e o apresenta a
Jesus. E evidente, pela alegre surpresa que transparece em sua informação, que
ambos haviam conversado antes sobre o assunto. O coração de Filipe agora tinha
total certeza da verdade, e, consequentemente, a alegria é estampada nas palavras:
“Havemos achado aquele de quem Moisés escreveu na Lei e de quem escreveram
os Profetas: Jesus de Nazaré, filho de José” (João 1:45). É evidente a sinceridade
de Filipe, embora pouco seja dito sobre ele nos Evangelhos. Nosso último encontro
com esse apóstolo é tão interessante quanto o primeiro. Percebendo que o Senhor
Se referia repetidamente ao Pai em João 12-14, Filipe manifesta um grande
desejo de conhecer melhor o Pai. As emocionantes palavras do Senhor acerca do
Pai parecem marcar profundamente o coração do discípulo: “Pai, salva-me desta
hora” (João 12:27); “Pai, glorifica o teu nome” (12:28); “Na casa de meu Pai há
muitas moradas” (João 14:2). Todas são palavras que por certo calaram fundo no
coração dos discípulos. Mas há uma admirável simplicidade em Filipe, embora lhe
falte entendimento: “Disse-lhe Filipe: Senhor, mostra-nos o Pai, o que nos basta”.
Percebe-se uma censura, ou mesmo uma repreensão, na resposta do Senhor a Filipe:
“Disse-lhe Jesus: Estou há tanto tempo convosco, e não me tendes conhecido,
Filipe? Quem me vê a mim vê o Pai; e como dizes tu: Mostra-nos o Pai? [...]
Crede-me que estou no Pai, e o Pai, em mim; crede-me, ao menos, por causa das
mesmas obras” (João 14:8-11). A revelação do Pai estava na Pessoa de Jesus: Ele
tomou o Pai conhecido. Ele passou muito tempo com os discípulos, e, portanto,
eles devem ter percebido que Ele estava no Pai e que o Pai estava íiEle. Assim,
sabiam para onde Ele estava indo, pois estava indo para o Pai. Eles tinham tanto
as “palavras” quanto as “obras” do Filho para convencê-los de que o Pai habitava
nEle. Os discípulos ouviram as Suas palavras, viram as Suas obras e testemunharam
o Seu caráter. O objetivo de tudo isso era revelar o Pai. A Pessoa de Jesus era a
resposta a qualquer pergunta. “Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida”. Ele era o
caminho - o único caminho para o Pai. Ele era a verdade - a verdade concernente
a tudo e a todos. Ele era a vida —“a vida eterna, que estava com o Pai e nos foi
manifestada” (1 João 1:2). Contudo, é apenas pelo ensino e poder do Espírito que
Ele, o “caminho, e a verdade e a vida”, pode ser conhecido e apreciado. E tem de
HavêFlfma rendição a Cristo, se quisermos ser ensinados pelo Espírito.
Depois dessa interessante e instrutiva conversa com o Senhor, tudo é
incerto com respeito à trajetória de Filipe - o nome dele desaparece da narrativa
bíblica. A tradição tem confundido tanto Filipe, o evangelista, com Filipe, o
73
74 I A
H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 4
apóstolo, que nada pode ser afirmado com precisão. Entretanto, não há dúvida
de que os seus últimos anos de vida foram gastos no serviço de seu Senhor e
Salvador, mas é difícil dizer onde. Alguns acreditam que a Ásia foi o lugar em
que Filipe trabalhou nos primeiros anos e que ele passou o período final de sua
vida em Hierápolis, na Frigia, onde sofreu um martírio cruel.
Bartolomeu. Há um consenso entre os antigos e modernos estudiosos de
que a história de Bartolomeu está oculta sob outro nome. É absolutamente claro
que ele era um dos doze apóstolos, embora nada mais seja dito a respeito dele, a
não ser a simples menção de seu nome. Nos três primeiros evangelhos, Filipe e
Bartolomeu são mencionados em sequência; no evangelho de João, temos Filipe
e Natanael. Isso tem dado origem à conjectura de que são diferentes nomes para
a mesma pessoa - prática bastante comum na cultura judaica. Por exemplo,
Simão Pedro era chamado “Bar-jonas”, que significa simplesmente “filho de
Jonas”. “Bar-timeu” significa “filho de Timeu”, e “Bar-tolomeu” também é
um nome dessa espécie. Não eram nomes próprios, e sim nomes que faziam
referência à família. Sendo um costume tão difundido entre os judeus, às vezes
é extremamente difícil identificar uma pessoa na história dos Evangelhos.
Portanto, presumindo-se que o Natanael de João seja o Bartolomeu dos
evangelhos sinóticos, continuemos a examinar o que sabemos de sua história.
Como os demais apóstolos, ele era galileu, mais exatamente de “Caná da Galiléia”
(João 21:2). Já vimos que ele foi o primeiro a ser conduzido a Cristo por Filipe.
Nesse encontro, o Senhor saudou-o com uma referência honrosa: “Eis aqui um
verdadeiro israelita, em quem não há dolo”. Sem dúvida, ele era um homem
simples e íntegro, alguém que aguardava a redenção de Israel. Surpreso com tão
graciosa saudação e imaginando de onde Jesus poderia conhecê-lo, “disse-lhe
Natanael: De onde me conheces tu? Jesus respondeu e disse-lhe: Antes que
Filipe te chamasse, te vi eu estando tu debaixo da figueira”. Declaração solene
e maravilhosa! Ele estava diante do único homem no mundo que conhecia os
segredos de seu coração. Natanael foi plenamente convencido da divindade do
Messias e Lhe atribuiu a mais alta glória ao chamá-lO “Filho de Deus” e “Rei
de Israel” (João 1:47-49).
O caráter de Natanael e a forma em que foi chamado são considerados
tipos do fiel remanescente de Israel no último dia. A alusão à figueira conhecido símbolo de Israel - confirma essa interpretação, assim como o belo
testemunho: “Rabi, tu és o Filho de Deus, tu és o Rei de Israel”. O remanes­
cente salvo através dos juízos, visto e conhecido pelo Senhor, confessará sua fé
nEle, como demonstram os profetas. E, de acordo com o salmo 8, todos os que
reconhecerem o Messias verão a Sua glória universal na condição de Filho do
homem. Esse dia vindouro e de glória sem precedentes é antecipado pelo Senhor
Os A p ó s t o l o s
e os
P io n e ir o s
em Sua réplica a Natanael: “Na verdade, na verdade vos digo que, daqui em
diante, vereis o céu aberto e os anjos de Deus subirem e descerem sobre o Filho
do Homem” (João 1:51). Então os céus e a terra estarão reunidos, como na visão
da escada de Jacó, Mas voltemos à história de nosso apóstolo.
A passagem mais distinta e conclusiva no que se refere ao seu apostolado
é João 21. Aqui o encontramos na companhia dos outros apóstolos, aos quais
o Senhor apareceu no mar de Tiberíades após Sua ressurreição. “Estavam
juntos Simão Pedro, e Tomé, chamado Dídimo, e Natanael, que era de Caná
da Galiléia, e os filhos de Zebedeu, e outros dois dos seus discípulos”, provavel­
mente André e Filipe.
Uma tradição geralmente aceita relata que Bartolomeu viajou até a índia
a fim de pregar o Evangelho - talvez para a região mais próxima da Ásia. Depois
de percorrer vários lugares divulgando o cristianismo, chegou a Albanópolis,
na Armênia Maior, infestada pela idolatria. Ali foi preso pelo governador e
condenado à crucificação. A data não pode ser determinada.
Mateus - também chamado Levi; filho de Alfeu. Acreditamos não ser a
mesma pessoa que Alfeu, pai de Tiago (Mateus 10:3; Marcos 2:14; Lucas 5:27-29).
Apesar de ser um oficial romano, ele era “um hebreu de hebreus”, provavelmen­
te galileu, mas de uma cidade ou tribo nao informada. Antes de ser chamado
para seguir o Messias, Mateus era publicano, ou seja, um coletor de impostos a
serviço de Roma. Parece que ele trabalhava em Cafarnaum, cidade marítima na
orla do mar da Galiléia e era o que costumamos chamar “fiscal alfandegário”.
Jesus encontrou-o nessa condição. Quando passava, Ele viu Mateus “e disse-lhe:
Segue-me. E ele, levantando-se, o seguiu” (Mateus 9:9). Todavia, antes de
continuar com a história de Mateus, discorreremos sobre o caráter de sua profissão,
tão mencionada no Novo Testamento, mas cujo termo é realmente genérico.
Os publicanos, como são apropriadamente chamados, eram homens
que arrecadavam taxas e impostos para os romanos. Em geral, eram pessoas
ricas e de prestígio. Entre os romanos, era uma função nobre, concedida em
especial aos cavaleiros. Sabino (pai do imperador Vespasiano) era o publicano
das províncias asiáticas. Eles contratavam subordinados, na maioria das vezes
nativos das províncias em que os impostos eram coletados, e sem dúvida Mateus
pertencia a esse grupo.
Esses subalternos eram conhecidos por suas cobranças fraudulentas, mas
para os judeus eles eram especialmente odiosos. Os judeus consideravam-se um
povo livre, que recebera esse privilégio do próprio Deus. “Somos descendência de
Abraão, e nunca servimos a ninguém”, vangloriavam-se (João 8:33). Por isso, os
coletores de impostos de Roma eram a prova viva da escravidão a que estavam
7 6 I A H i s t ó r i a d a I g r e j a - capítulo 4
submetidos e do vergonhoso estado da nação. Esse era o grilhão que os afligia e
os incitava a muitos atos de rebelião contra os romanos. Por isso, os publicanos
eram abomináveis aos judeus. Eles os viam como traidores e apóstatas, instru­
mentos a serviço do opressor. Além disso, os publicanos praticavam a extorsão e
cometiam injustiças na cobrança dos impostos. Contudo, tendo a lei a seu favor,
podiam arrancar o dinheiro do povo. Era tarefa deles examinar cada carrega­
mento de produtos importados ou exportados e calcular o tributo da maneira
mais opressiva. Com base no que João Batista disse a eles, podemos deduzir que
os publicanos cobravam em excesso sempre que tinham oportunidade: “Não
peçais mais do que aquilo que vos está ordenado” (Lucas 3:13; veja também o
caso de Zaqueu, em Lucas 19:9).
Sem dúvida, tais coisas eram mais que suficientes para fazer com que a
classe inteira fosse profundamente detestada pelo povo. Mas vamos nos ater ao
que aprendemos a respeito deles no Novo Testamento. O Espírito da verdade
nunca exagera. Ali são equiparados aos pecadores (Mateus 9:11; 11:19), às
meretrizes (Mateus 21:31-32) e aos gentios (Mateus 18:17). Como categoria, os
publicanos não tinham direito aos privilégios do Santuário e da sociedade civil.
No entanto, com todas essas desvantagens, de suas fileiras saíram os primeiros
discípulos de João Batista e do Senhor. Eles eram menos hipócritas que os
religiosos, não tinham a moralidade tradicional nem precisavam desaprender os
costumes da falsa religião. Esses argumentos podem ser extraídos da parábola
do fariseu e do publicano, em Lucas 18. A bondade convencional é o maior
obstáculo à salvação da alma. E difícil alguém que se acha “bom” perceber que é
um pecador perdido e decaído e permitir que a graça flua livremente e faça a sua
obra abençoada e salvadora dentro dele. Quem quiser ser justificado por Deus
terá de se colocar no lugar do publicano e clamar, como ele: “Ó Deus, tem
misericórdia de mim, pecador!”. Mas voltemos à história de nosso apóstolo.
Com total prontidão, Mateus obedeceu ao chamado de Jesus. Abandonou
a sua lucrativa função, e a sua conversão, tão completa e evidente, abençoou a
muitos, pois despertou grande interesse entre os de sua classe: “Fez-lhe Levi um
grande banquete em sua casa; e havia ali uma multidão de publicanos e outros
que estavam com eles à mesa” (Lucas 5:29). Uma festa é símbolo de alegria e
regozijo - consequência imediata de um coração rendido a Cristo. E digno de
nota o fato de apenas Mateus, em seu evangelho, registrar a expressão pela qual
era mais conhecido: nenhum dos outros evangelistas usa a alcunha de “Mateus,
o publicano”. Ele era um dos escolhidos, um dos doze. Desde a sua chamada,
Mateus permaneceu com o Senhor, como o restante dos apóstolos. Maravilhoso
privilégio é acompanhar a Sua Pessoa, ser um espectador de Sua vida pública
e privada, um ouvinte de Suas declarações e discursos, um observador de Seus
Os
A pó sto lo s
e os
P io n e ir o s 1
í
milagres, uma testemunha de Sua ressurreição e ascensão à glória. Mateus não
registrou a ascensão, ainda que a tenha presenciado. Ele estava com os demais
apóstolos no dia de Pentecostes e recebeu o dom do Espírito Santo. Não temos
informação de quanto tempo ele permaneceu na Judeia depois disso. Acredita-se
que o seu evangelho foi o primeiro a ser escrito, e é dirigido especialmente a
Israel.
A Etiópia costuma ser apontada como o lugar de sua obra apostólica.
Ali, afirmam alguns, pela pregação e pelos milagres realizados, Mateus triunfou
poderosamente sobre o erro e a idolatria e foi o instrumento da conversão de
muitos. Ele designou líderes espirituais e pastores para fortalecer e edificar os
neófitos e trazer outros à fé. Ali também ele teria encerrado a sua carreira. Mas
as fontes dessa informação não são confiáveis.
Tomé. O apóstolo Tomé foi chamado por nosso Senhor para o apostolado,
e figura devidamente nas várias listas apostólicas. As Escrituras não nos
informam o local de seu nascimento nem dizem quem eram os seus pais, mas
segundo a tradição ele nasceu em Antioquia. Tudo que sabemos a respeito dele
com fidedignidade é relatado por João. No entanto, apesar de nosso conheci­
mento ser limitado, entre os apóstolos não há caráter mais marcante que o dele.
De fato, o nome de Tomé se tornou, no âmbito da Igreja e no mundo, sinônimo
de dúvida e incredulidade. Um famoso artista, ao receber uma encomenda para
pintar um quadro de Tomé, pôs uma régua na mão do apóstolo, simbolizando
a justa medida da evidência e da argumentação. Sua mente era inquiridora,
meditativa, lenta para crer. Ele sondava todas as dificuldades de uma questão
e era inclinado a ver o lado negro de tudo. Mas contemplemos por um instante
o retrato de Tomé que a pena inspirada pintou nas três passagens seguintes.
1. Em João 11, o seu verdadeiro caráter se manifesta de maneira clara.
Não há dúvida de que ele tinha os mais sombrios pressentimentos
quanto à viagem do Senhor à Judéia: “Disse [...] Tomé, chamado
Dídimo, aos condiscípulos: Vamos nós também, para morrermos com
ele” (v. 16). Em vez de acreditar que Lázaro seria ressuscitado, ele temia
que todos fossem mortos na Judéia. Não conseguia esperar nada de
bom daquela viagem, apenas um completo desastre. Contudo, ele não
procurou dissuadir o Senhor, como os outros discípulos. Isso também
é muito característico. Tomé nutria profunda afeição pelo Senhor, e
essa devoção era tanta que, embora a jornada pudesse custar a vida de
todos eles, ele estava disposto a ir.
2. A segunda menção é após a Última Ceia, em João 14. O Senhor
falava de Sua ida para o Pai e das moradas que iria preparar para eles
78
I A H istó ria
da
I g r e j a - capítulo 4
no céu, prometendo voltar para buscá-los, a fim de que eles pudessem
estar para sempre com Ele. O Mestre acrescentou: “Mesmo vós sabeis
para onde vou e conheceis o caminho” (v. 4). Todavia, para a mente de
nosso apóstolo, essas belas promessas só fizeram despertar tenebrosos
pensamentos sobre um futuro desconhecido e misterioso: “Disse-lhe
Tomé: Senhor, nós não sabemos para onde vais e como podemos saber
o caminho?”. Evidentemente, ele estava ansioso para prosseguir e era
sincero em seus questionamentos, mas o que realmente desejava era
certificar-se do caminho antes de dar o primeiro passo. A resposta de
Jesus foi: “Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida. Ninguém vem ao
Pai senão por mim”. Enquanto os olhos estiverem fixos em Cristo, não
é possível dar um passo errado. E é esse olhar simples que recebe a luz
do céu, a qual resplandece e ilumina todo o caminho.
3. A terceira menção é após a ressurreição, em João 20. Ele estava
ausente quando o Senhor apareceu pela primeira vez aos discípulos.
Quando lhe disseram que tinham visto o Senhor, Tomé obstinadamen­
te se recusou a acreditar neles. Pelas suas palavras, podemos deduzir
que ele contemplara o Senhor na cruz e que tal visão o havia marcado
de maneira profunda. “Disseram-lhe [...] os outros discípulos: Vimos
o Senhor. Mas ele disse-lhes: Se eu não vir o sinal dos cravos em suas
mãos, e não puser o dedo no lugar dos cravos, e não puser a minha
mão no seu lado, de maneira nenhuma o crerei.” Na semana seguinte,
quando os discípulos estavam outra vez reunidos, Jesus apareceu e
pôs-se no meio deles - Seu lugar de direito como centro da assembléia.
Ele os saudou com as mesmas palavras do primeiro encontro: “Paz
seja convosco”. Dirigindo-se a Tomé, como se este fosse o principal
motivo de Sua aparição naquele dia, Ele disse: “Põe aqui o teu dedo e
vê as minhas mãos; chega a tua mão e põe-na no meu lado; não sejas
incrédulo, mas crente”. O efeito em Tomé foi imediato. Todas as suas
dúvidas foram removidas, e com verdadeira fé ele exclamou: “Senhor
meu, e Deus meu!”. Jesus retrucou: “Porque me viste, Tomé, creste;
bem-aventurados os que não viram e creram”.
Alguns pensam que a fé de Tomé nesse instante se ergueu acima da dos
outros discípulos e que nenhuma palavra tão sublime saiu de outros lábios
apostólicos. Tal opinião, embora comum, não pode ser sustentada pelo contexto
geral. Cristo, respondendo a Tomé, afirmou que os que não viram e ainda assim
creram eram os mais abençoados. A atitude do apóstolo mal pode ser chamada
“fé cristã”, como o Senhor sugere. A fé cristã consiste em crer nEle, a Quem não
temos visto. Devemos andar por fé, não por vista.
Os A p ó s t o l o s
e os
P io n e ir o s [
Não temos dúvidas de que Tomé representa a mente Incrédula e difícil dos
judeus nos últimos dias, os quais só crerão quando O contemplarem (Zacarias
12). Ele não estava presente na primeira reunião dos santos após a ressurreição.
A razão disso não foi registrada. Mas quem pode avaliar as bênçãos perdidas
pela ausência às reuniões dos santos? Tomé perdeu as maravilhosas revelações
de Cristo quanto ao relacionamento: “Meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso
Deus” (João 20:17). A fé de nosso apóstolo não estava conectada à condição de
filho. Certo autor escreveu: “Ele não tinha o entendimento da eficácia da obra
do Senhor nem do relacionamento com o Pai, no qual Jesus introduziu os Seus,
a Igreja. Talvez ele tivesse a paz, mas perdera a revelação a respeito da Igreja.
Quantas almas —almas salvas - estão nas mesmas condições!”.
As obras apostólicas de Tomé e o final de sua vida estão tão envoltos em
histórias e lendas, de modo que não podemos distinguir o real da ficção. Alguns
dizem que ele trabalhou na índia; outros, que foi para a Pérsia. Seu martírio,
conforme a tradição, foi ocasionado por lanças e ainda é comemorado pela igreja
latina, em 21 de dezembro, pela igreja grega, em 6 de outubro, e pelos indianos,
em 1? de julho.
Tiago, filho de Alfeu. A identificação dos Tiagos, das Marias e dos irmãos
do Senhor há muito tem sido um ponto de difícil consenso com os críticos.
Aqui nao seria o lugar mais apropriado para analisar as teorias e argumentos
deles. No entanto, depois de considerar os diferentes lados da questão, ainda
acreditamos ser nosso apóstolo o Tiago que era o principal homem da igreja
de Jerusalém, autor da Epístola de Tiago, também chamado “irmão do
Senhor”, cognominado “o Justo” e “o Menor”, talvez por ter baixa estatura. A
identificação exata de pessoas é extremamente difícil em tais relatos, em razão
do costume, comum entre os judeus, de serem conhecidos pela alcunha dos
parentes próximos, de irmãos ou irmãs, e também de quase todos terem dois
ou mais nomes.
Nas quatro listas dos apóstolos, Tiago ocupa a mesma posição. Ele
encabeça o terceiro grupo de quatro apóstolos. Pedro lidera o primeiro grupo, e
Filipe, o segundo. Bem pouco é dito a respeito Tiago até depois da ressurreição.
Pelo que Paulo diz em 1 Coríntios 15:7, fica evidente que o Senhor, antes de
Sua ascensão, honrou Tiago com um encontro pessoal. Isso foi antes do dia de
Pentecoste, e pode ter sido o ensejo para um encorajamento especial, orientação
e fortalecimento do apóstolo. Iremos agora examinar as principais passagens das
quais extrairemos o nosso conhecimento sobre Tiago.
No primeiro capítulo de Atos, ele e os demais aguardavam o cumprimento
da promessa do Pai acerca do dom do Espírito Santo. Depois disso, nós o
80
I A H i s t ó r i a d a I g r e j a - capítulo 4
perdemos de vista até o momento em que é visitado por Paulo (Gálatas 1:18-19),
por volta do ano de 39 d.C.. Aqui ele ocupa uma posição igual à de Pedro como
apóstolo. Na ocasião, Tiago era o supervisor da igreja em Jerusalém e estava no
mesmo nível dos principais apóstolos. A medida da estima de Pedro por Tiago
pode ser verificada no fato de que quando Pedro escapou da prisão, ele mandou
que a informação fosse dada “a Tiago e aos irmãos” (Atos 12:17).
No ano 50 d.C., encontramo-lo no concílio apostólico, ocasião em que
ele parece proferir a sentença da assembléia sobre a circuncisão dos gentios:
“Julgo que não se deve perturbar aqueles, dentre os gentios, que se convertem
a Deus” (Atos 15:19). Nenhum dos outros apóstolos falou dessa maneira. Fica
subentendido que Tiago conquistara uma elevada posição de autoridade no
apostolado. Por volta de 51 d.C., ao visitar Jerusalém outra vez, Paulo reconheceu-o como uma das “colunas” da Igreja e registrou o nome dele antes de Cefas
e João (Gálatas 2:9). Já em 58 d.C., Paulo fez uma visita especial a Tiago na
presença de todos os anciãos: “No dia seguinte, Paulo entrou conosco em casa
de Tiago, e todos os anciãos vieram ali” (Atos 21:18). E fácil depreender desses
poucos relatos que Tiago era um homem que desfrutava a mais alta estima entre
os apóstolos e que ocupava o cargo mais importante na igreja em Jerusalém. Sua
ligação com o judaísmo era profunda e intensa, e seu progresso no cristianismo
parecer ter sido gradual e lento. Tiago era o oposto perfeito de Paulo, e Pedro
era o meio-termo entre ambos.
O martírio de Tiago aconteceu por volta de 62 d.C., cerca de 30 anos após
o dia de Pentecoste. Os testemunhos da Antiguidade são unânimes quanto à
notável piedade e santidade dele. Sua humildade também era notória: apesar de
ser meio-irmão - ou parente muito próximo —do Senhor, ele chama a si mesmo
“servo de Jesus Cristo” e jamais se intitula apóstolo. Por causa da reputação de
sua vida justa e santa, ele ganhou a alcunha de “Tiago, o Justo”. E, uma vez que
ainda observava alguns dos costumes judeus, ele não se mostrava tão ofensivo
aos olhos de seus conterrâneos incrédulos quanto o apóstolo dos gentios. Não
obstante a alta reputação que desfrutava, sua vida foi prematuramente ceifada
pelo martírio.
Temos uma enorme dívida para com Hegésipo, cristão de origem judaica
que viveu na metade do século II, no que se refere ao registro da vida, caráter
e morte de Tiago. De modo geral, Hegésipo é considerado um historiador
fidedigno. Sua narrativa sobre o martírio de Tiago está relatada na íntegra, nas
palavras dele próprio, no Smith’s Bible Dictionary, que apresentamos aqui em
resumo:
Os A p ó s t o l o s
e os
P io n e ir o s
Por meio dos esforços de Tiago, muitos líderes judeus e gente do povo se
tornaram crentes em Jesus, e isso despertou a ira dos escribas e fariseus
contra ele. Eles diziam que todo o povo creria em Jesus. Portanto foram ao
encontro de Tiago e lhe disseram: “Nós te rogamos que detenhas o povo,
pois estão se desviando para seguir a Jesus, como se Ele fosse o Messias.
N ós te rogamos que convenças a todos os que virão [a Jerusalém] para a
Páscoa a respeito desse assunto. Convence o povo a não seguir a Jesus,
porque todos, inclusive nós, costumamos dar atenção ao que tu falas.
Põe-te de pé no pináculo do Templo, para que todos te vejam e para que
tuas palavras sejam ouvidas por todo o povo, pois todas as tribos e até
os gentios estarão reunidos para a Páscoa”. Mas, em vez de falar o que
lhe fora sugerido, ele proclamou com grande voz, aos ouvidos de todo o
povo, que Jesus era o verdadeiro Messias, no qual cria firmemente, que
Jesus agora estava no céu à destra de Deus e que retornaria com poder e
grande glória. Muitos foram convencidos pela pregação de Tiago e deram
glórias a Deus, bradando: “Hosana ao Filho de Davi!’’.
Quando os escribas e fariseus ouviram isso, disseram uns aos outros:
“Erramos ao indicar tal testemunha de Jesus. Vamos jogá-lo lá de cima,
para que o povo fique com medo e não creia nEle!”. Então gritaram,
afirmando que até mesmo
Tiago, o Justo,
havia se desviado. Por fim,
empurraram-no do pináculo do Templo. M a s como o apóstolo não
morreu com a queda, eles passaram a apedrejá-lo. Um deles, que era
tecelão, tomou um pisão [instrumento usado para dar consistência aos
tecidosj e bateu com ele na cabeça de Tiago. O apóstolo então morreu
e, como o proto-mártir Estêvão, enfrentou a morte orando por seus
carrascos. Quase imediatamente, Vespasiano sitiou Jerusalém, a cidade
manchada com o sangue de Cristo e dos seus fiéis, e o exército romano
fez dela um cenário de desolação, ruínas e sangue.
Simão, o Zelote, também chamado Simão Cananeu, parece ser uma
pessoa diferente de Simão, o irmão de Tiago. Não temos nenhum relato da
vida dele na história evangélica. Apenas o seu nome aparece nos Evangelhos e
no Livro de Atos e depois desaparece das páginas sagradas.
SupÕe-se que antes de ser chamado para o apostolado ele pertencia à seita
conhecida entre os judeus como “os zelotes”. Eram famosos por sua veemente
defesa dos rituais mosaicos. Eles se consideravam sucessores de Finéias, o qual,
em seu zelo pela honra de Deus, matou Zinri e Cosbi (Números 25). Julgando
seguir o exemplo desse sacerdote do passado, eles usurpavam o direito de
82
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is t ó r ia d a
I g r e ja - capítulo 4
condenar à morte os blasfemos, os adúlteros e os criminosos sem as formalidades
exigidas pela Lei. Diziam que Deus fizera uma aliança perpétua com Finéias e
com a descendência deste, “porquanto teve zelo pelo seu Deus e fez propiciação
pelos filhos de Israel”. Essas nobres alegações e intenções enganaram o povo e
os líderes durante algum tempo. Além disso, a impetuosidade e o zelo deles pela
lei de Moisés e pela libertação do povo do jugo romano fez com que obtivessem
o favor de toda a nação. No entanto, como sempre acontece nesses casos, o zelo
deles rapidamente degenerou em todas as formas de licenciosidade e extravagân­
cias absurdas. Os zelotes tornaram-se a praga de todas as classes da sociedade.
Alegando zelo por Deus, eles acusavam de blasfêmia ou de qualquer outro
pecado grave qualquer um conforme desejassem e imediatamente assassinavam
os “culpados”, apossando-se da propriedade deles. Josefo diz que eles deixaram
de acusar alguns dos que pertenciam à “nata da sociedade” e, embora tenham
conseguido tornar tudo uma confusão, não deixavam de pescar “em águas
turbulentas”. Ele os classificou como a grande calamidade da nação. Várias
tentativas, em diferentes épocas, foram feitas para suprimi-los, mas ao que parece
o número deles nunca diminuiu. Os zelotes só foram varridos do mapa no cerco
fatal empreendido pelos romanos.
Simao é frequentemente denominado Simão, o Zelote, e supostamente
pertenceu a essa terrível facção. Talvez houvesse entre eles homens verdadeiros e
sinceros, mas os bons e os maus recebiam igualmente o odioso título de “zelotes”.
Nada é sabido com certeza sobre o trabalho desse apóstolo. Alguns dizem que,
após viajar por um tempo pelo Oriente, ele retornou ao Ocidente, chegando às
ilhas Britânicas, onde pregou, operou milagres, enfrentou muitas provações e
por fim foi martirizado.
Judas, irmão de Tiago. Esse apóstolo também é chamado de Judas Tadeu,
ou Lebeu. Seus diferentes nomes têm diferentes nuances quanto ao significado,
mas o exame de tais minúcias não está na esfera deste livro. Judas era filho de
Alfeu, e um dos parentes do Senhor, como lemos em Mateus 13:55: “Não é este
o filho do carpinteiro? e não se chama sua mãe Maria, e seus irmãos Tiago, e
José, e Simão, e Judas?”
Quando ou como ele ingressou no apostolado não sabemos, e quase não
há menção dele no Novo Testamento, exceto nas listas dos doze apóstolos.
Seu nome aparece apenas uma vez na narrativa evangélica, quando ele faz a
Jesus uma pergunta: “Disse-lhe Judas (não o Iscariotes): Senhor, de onde vem
que te hás de manifestar a nós e não ao mundo?” (João 14:22). Fica evidente
nessa pergunta que ele, assim como os seus companheiros, nutria a idéia de um
reino temporal ou de uma manifestação do poder de Cristo sobre a terra que o
Os
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e os
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j 83
mundo inteiro pudesse contemplar. Eles ainda não compreendiam a dignidade
do Messias. Estavam alheios à grandeza de Seu poder, à glória de Sua Pessoa e
à natureza espiritual de Seu reino. Seus súditos são libertos, não apenas deste
mundo perverso, mas do poder de Satanás e do domínio da morte e da sepultura:
“Ele [o Pai] nos tirou da potestade das trevas e nos transportou para o Reino do
Filho do seu amor” (Colossenses 1:13). A resposta de Cristo ao questionamento
de Judas é de suma importância. O Senhor menciona as bênçãos que advêm da
obediência. O discípulo obediente irá experimentar a doçura da comunhão com
o Pai e com o Filho, na luz e no poder do Espírito Santo. Não se trata aqui do
amor de Deus pelo pecador, mas do relacionamento entre o Pai e Seus filhos.
Portanto, é na trilha da obediência que a manifestação do amor do Pai e de
Cristo é encontrada (João 14:23-26).
Ao observar as perguntas e palavras dos apóstolos, precisamos ter em
mente que o Espírito Santo ainda não lhes havia sido concedido, pois Jesus ainda
não fora glorificado. Os pensamentos, sentimentos e expectativas dos apóstolos
depois desse fato foram transformados. Por essa razão, encontramos o nosso
apóstolo, como o seu irmão Tiago, intitulando-se “Judas, servo de Jesus Cristo
e irmão de Tiago” (Judas 1). Ele não se apresenta como apóstolo nem como
irmão do Senhor. Isso é humildade genuína, proveniente de um real senso da
mudança de relacionamento com o Senhor exaltado. No dia de Pentecostes foi
proclamado: “Saiba, pois, com certeza, toda a casa de Israel que a esse Jesus, a
quem vós crucificastes, Deus o fez Senhor e Cristo” (Atos 2:36).
Nada pode ser tomado como certo na história posterior de nosso apóstolo.
Alguns dizem que ele pregou primeiro na Judéia e na Galiléia, indo depois para
Samaria, Iduméia e algumas cidades da Arábia. Já próximo ao final da vida, a
Pérsia teria sido o lugar em que trabalhou e cenário de seu martírio.
Com base em 1 Coríntios 9:5, deduzimos que ele era um dos apóstolos
casados: “Não temos nós direito de levar conosco uma mulher irmã, como
também os demais apóstolos, e os irmãos do Senhor, e Cefas?”
Existe uma tradição muito interessante e aparentemente verdadeira a
respeito de dois netos de Judas. A história é contada por Hegésipo, judeu
convertido a Eusébio. Domiciano, o imperador, tendo ouvido que existiam
alguns membros da linhagem de Davi e parentes do Senhor ainda vivos,
movido pela inveja, ordenou que eles fossem presos e trazidos para Roma. Dois
netos de Judas foram levados à presença de Domiciano. Ambos confessaram
abertamente pertencer à linhagem de Davi e serem parentes do Senhor. O
imperador perguntou sobre os bens e o patrimônio deles. Eles responderam que
possuíam apenas um pedaço de terra, cuja produção servia para pagamento de
84 [ A H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 4
impostos e sustento próprio. As mãos deies foram examinadas: tinham calos e
eram ásperas por causa do trabalho pesado. Então foram inquiridos acerca do
Reino de Cristo, sobre quando e onde se manifestaria. Eles responderam que
não se tratava de um reino temporal, mas de um reino espiritual e celeste, que
não seria manifesto até que chegasse o final dos tempos. O imperador, satisfeito
pelo fato de serem homens pobres e inofensivos, mandou-os embora e pôs
fim à perseguição geral aos cristãos. Os dois netos de Judas retornaram para a
Palestina, sendo recebidos pela igreja com grande emoção, por serem parentes do
Senhor e também por terem confessado nobremente o Seu nome, o Seu Reino,
o Seu poder e a Sua glória.
Matias, o apóstolo eleito para ocupar o lugar deixado pelo traidor
Judas. Não era um apóstolo da primeira eleição - chamado e escolhido pelo
próprio Senhor. E bem provável que tenha sido um dos Setenta, alguém que
acompanhou o Senhor Jesus durante todo o curso de Seu ministério. Essa era
uma qualificação necessária para quem quisesse ser testemunha da ressurreição,
segundo o que foi estabelecido por Pedro (Atos 1:20-26). Até onde sabemos, o
nome de Matias não aparece em nenhum outro lugar do Novo Testamento.
De acordo com algumas tradições antigas, ele pregou o Evangelho e
sofreu martírio na Etiópia; outros acreditam que foi na Capadócia. Desse
modo, aos grandes fundadores da Igreja foi designado passar da terra para o
céu sem uma pena confiável que registrasse as suas obras, os seus últimos dias,
as suas últimas palavras ou mesmo o local de descanso do corpo. Mas tudo
está devidamente escrito no céu, e será mantido para lembrança eterna. Como
os caminhos de Deus são maravilhosos e como são opostos aos caminhos dos
homens!
A escolha desse apóstolo deu-se por sorteio - um antigo costume judeu.
Os nomes dos candidatos foram colocados numa urna, e o de Matias foi retirado.
Assim, ele se tornou um apóstolo divinamente escolhido: “Apresentaram dois:
José, chamado Barsabás, que tinha por sobrenome o Justo, e Matias. E, orando,
disseram: Tu, Senhor, conhecedor do coração de todos, mostra qual destes dois
tens escolhido [...]. E, lançando-lhes sortes, caiu a sorte sobre Matias. E, por
voto comum, foi contado com os onze apóstolos”. O método de lançar sortes era
uma maneira de recorrer à decisão de Deus: “Arão lançará sortes sobre os dois
bodes: uma sorte pelo SENHOR e a outra sorte pelo bode emissário”; “A sorte se
lança no regaço, mas do SENHOR procede toda a sua disposição” (Levítico 16:8;
Provérbios 16:33). E bom lembrar que os apóstolos ainda não haviam recebido o
dom do Espírito Santo. Depois do dia de Pentecostes, esse procedimento nunca
mais foi usado.
Capítulo 5
O A p ó s t o l o Pa u l o
^ “^ P ^ e n d o já descrito resumidamente a vida dos doze apóstolos, é natural
1 que cheguemos ao que pode ser chamado de o décimo terceiro
apóstolo - o apóstolo Paulo.
No capítulo 3, falamos a respeito da “conversão” e do “apostolado”
de Paulo'3. Agora iremos tentar traçar seu maravilhoso percurso, e examinar
alguns aspectos distintivos de sua vida e obra. Mas, antes de tudo, reuniremos
as informações que temos acerca dele.
A ntes
de
S u a C o n v e r sã o
Fica evidente nas poucas linhas que temos na narrativa sagrada sobre a
vida pregressa de Paulo que ele foi forjado de maneira notável, durante todo
o período de estudos, para se tornar o que se tornaria, e para fazer o que lhe
foi designado. Isso procedeu de Deus, que cuidou do desenvolvimento dessa
maravilhosa mente desde a mais tenra infância (Gálatas 1:15). Nessa época, ele
era conhecido como “Saulo de Tarso” - seu nome judeu, nome dado por seus
pais judeus. Paulo era seu nome gentio. Portanto, iremos nos referir a ele como
“Saulo” até que seja denominado “Paulo” pelo historiador sagrado.
Tarso era a capital da Cilicia e, como Paulo diz, “cidade não pouco
célebre” (Atos 21:39), famosa por ser um local de intenso comércio e berço de
Páginas 53 e 55.
86
IA H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 5
literatura. Os tutores tanto de Augusto e de Tibério, imperadores romanos, eram
de Tarso. Mas ficou mais conhecida em todos os tempos por ser a cidade natal
do grande apóstolo.
No entanto, apesar de ter nascido em uma localidade gentia, Saulo era
“hebreu de hebreus”. Seu pai pertencia à tribo de Benjamim e à seita dos
fariseus, mas estabeleceu-se em Tarso. Comprou a cidadania romana, e, por isso,
seu filho pôde afirmar ao tribuno: “Eu o sou de nascimento” (Atos 22:28). Em
Tarso, Saulo aprendeu a fazer tendas. Era um costume salutar entre os judeus
ensinar a seus filhos algum ofício, ainda quando não houvesse muita perspectiva
disso se tornar o ganha-pão deles.
Quando Paulo fez sua primeira defesa perante seus compatriotas
(Atos 22), ele lhes disse que, embora tivesse nascido em Tarso, fora criado “aos
pés de Gamaliel, instruído conforme a verdade da lei de nossos pais”. A História
fala de Gamaliel como um dos mais eminentes doutores da lei; as Escrituras
relatam que era moderado em suas opiniões e possuidor de grande sabedoria
mundana. Mas o zelo perseguidor de seu pupilo contrasta fortemente com os
conselhos do mestre pela busca da tolerância.
Na ocasião do martírio de Estevão, Saulo é descrito como um jovem
que concordava com o que estava acontecendo e que guardava as roupas dos
que apedrejavam o primeiro mártir da fé cristã. Supõe-se que sua conversão
ocorreu por volta de dois anos após a crucificação de Jesus, mas a data exata é
desconhecida.
Do relato de Atos 9 aprendemos que Saulo, após a conversão, não tardou
em confessar aos que o rodeavam, sua fé em Cristo. “E esteve Saulo alguns dias
com os discípulos que estavam em Damasco. E logo nas sinagogas pregava a
Cristo, que este é o Filho de Deus” (w. 19-20). Esse novo testemunho é espe­
cialmente digno de nota. Pedro havia proclamado Jesus como Senhor e Cristo
exaltado; Paulo o proclamava em Sua mais alta e pessoal glória: a de Filho
de Deus. Mas o tempo para seu ministério público ainda não havia chegado,
pois tinha de aprender muitas coisas, e, guiado pelo Espírito, ele se retira
para a Arábia, permanecendo lá por três anos, retornando depois a Damasco
(Gálatas 1:17).
Fortalecido e confirmado na fé durante seu retiro, ele prega com incrível
ousadia, provando que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus. Os judeus, que daqui
por diante seria seus impiedosos inimigos, em sua fúria guardavam os portões da
cidade para matá-lo. Mas os discípulos o colocaram em um cesto e o desceram
pelo muro (2 Coríntios 11:32-33). Então partiu para Jerusalém e, através do
amigável testemunho de Barnabé, ele pôde ficar entre os discípulos. Maravilhoso
e abençoado triunfo da graça soberana!
As
*
*
D
uas
P r im e ir a s V ia g e n s
de
Pa u lo
j 87
*
Á P r im e ir a V is it a d e Sa u lo a J eru sa lém
(por volta de 39 d.C.)
O apóstolo agora está em Jerusalém - a santa cidade de seus antepassados,
a capital da religião judaica, e o reconhecido centro do cristianismo, Mas como
sua própria condição tinha sido alterada desde o começo da memorável jornada
a Damasco!
A essa altura, temos que fazer uma pausa e olharmos por um momento
para a respeitável cidade de Damasco. Ela está intimamente ligada à conversão,
história e ministério de nosso apóstolo. Além disso, aparece repetidas vezes em
toda a Escritura.
Damasco é supostamente a cidade mais antiga do mundo. De acordo
com o historiador Josefo, ela foi fundada por Uz, filho de Arã, neto de Sem
(Gênesis 10:23). E mencionada pela primeira vez nas Escrituras ligada ao nome
de Abrão, cujo mordomo era um nativo desse lugar: “Então disse Abrão: Senhor
DEUS, que me hás de dar, pois ando sem filhos, e o mordomo da minha casa é
o damasceno Eliézer?” (Gênesis 15:2). Portanto, Damasco é uma conexão entre
a era patriarcal e os tempos modernos. Sua beleza e opulência foram proverbiais
por quatro mil anos. Os reis de Nínive, da Babilônia, Pérsia, Grécia e Roma
a conquistaram consecutivamente, mas a cidade prosperou sob cada dinastia,
e sobreviveu a todas elas; porém Damasco deve seu resplendor e sua fama
duradoura ao nome do apóstolo Paulo16.
Voltemos agora a Jerusalém. Após passar quinze dias com Pedro e Tiago,
argumentando com os gregos, os irmãos “o acompanharam até Cesaréia, e o
enviaram a Tarso. Assim, pois, as igrejas em toda a Judéia, e Galiléia e Samaria
tinham paz, e eram edificadas; e se multiplicavam, andando no temor do Senhor
e consolação do Espírito Santo” (Atos 9:30-31). Durante um tempo, o inimigo
foi silenciado. A paz reinava por meio da bondade de Deus. A perseguição havia
cumprido os propósitos de Sua graça. Os dois grandes elementos da bênção —o
temor do Senhor e a consolação do Espírito Santo - prevaleciam nas assembléias.
Andando no temor do Senhor e na consolação do Espírito Santo, elas eram
edificadas e cresciam rapidamente em número.
Enquanto Saulo estava em Tarso, sua cidade natal, a boa obra do Senhor
progredia muito em Antioquia. Entre os que foram dispersos pela perseguição
16 Para os mais recentes e melhores relatos sobre a cidade e suas cercanias, indicamos Cinco Anos
em Damasco, de Porter.
A H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 5
desencadeada após a morte de Estêvão havia “alguns homens cíprios e cirenenses,
os quais entrando em Antioquia falaram aos gregos, anunciando o Senhor Jesus.
E a mão do Senhor era com eles; e grande número creu e se converteu ao Senhor”
(Atos 11:19-21). Uma nova ordem de coisas se estabelece aqui. Até esse momento,
o Evangelho não tinha sido pregado “senão somente aos judeus”. Quando a
notícia dessa maravilhosa obra de Deus entre os gentios chegou a Jerusalém,
Barnabé foi enviado a Antioquia pela igreja em uma missão especial. “O qual,
quando chegou, e viu a graça de Deus, se alegrou, e exortou a todos a que per­
manecessem no Senhor, com propósito de coração; porque era homem de bem e
cheio do Espírito Santo e de fé. E muita gente se uniu ao Senhor” (19:23-24).
Conforme o trabalho crescia, Barnabé - sem dúvida impelido pela
necessidade de ajuda -, pensou em Saulo; e, guiado pelo Senhor, partiu
para encontrá-lo. Tendo achado Saulo, ambos foram para Antioquia, e ali
trabalharam juntos “todo um ano”, tanto nas reuniões dos crentes, como entre
o povo. Barnabé ainda detinha a liderança. Por isso, lemos “Barnabé e Saulo”.
Mais adiante, a ordem muda e se registra “Paulo e Barnabé”.
Logo surge uma oportunidade para os jovens convertidos de Antioquia
demonstrarem seu afeto para com os irmãos de Jerusalém. Um profeta “por
nome Agabo, dava a entender pelo Espírito, que haveria uma grande fome em
todo o mundo, e isso aconteceu no tempo de Cláudio César. E os discípulos
determinaram mandar, cada um conforme o que pudesse, socorro aos irmãos
que habitavam na Judéia. O que eles com efeito fizeram, enviando-o aos anciãos
por mão de Barnabé e de Saulo” (11:28-30).
A
S e g u n d a V is it a d e S a u l o a Je r u sa lé m
(por volta de 44 d.C.)
Encarregados desse serviço, Barnabé e Saulo vão a Jerusalém. Até
então, Jerusalém era reconhecida como o centro da obra cristã, embora esta se
estendesse rapidamente aos gentios. Mas a união estava preservada, e a conexão
com a capital se fortalecia por meio da coleta enviada. Todavia, um novo centro,
uma nova comissão, um novo caráter de poder relacionados à história da igreja
surgem aqui diante de nós. Barnabé e Saulo, tendo cumprido a tarefa designada,
retornam a Antioquia, levando com eles João, cujo era Marcos.
Atos 13 descortina um panorama inteiramente novo no que se refere à
obra apostólica, e é proveitoso enfatizarmos essa mudança considerável. O grande
fato a ser notado aqui é a posição que o Espírito Santo ocupa na separação e no
envio de Barnabé e Saulo. Não é mais Cristo sobre a terra enviando os apóstolos
As D
uas
P r im e ir a s V ia g e n s
de
Pa u l o
por Sua autoridade pessoal, mas, sim, o Espírito Santo. “Apartai-me a Barnabé
e a Saulo para a obra a que os tenho chamado... E assim estes, enviados pelo
Espírito Santo, desceram a Selêucia e dali navegaram para Chipre” (w. 2-4).
E óbvio que a questão em pauta não é a mudança nem na autoridade nem no
poder do Senhor ou do Espírito Santo, mas no método de ação dEles. O Espírito
Santo na terra, ligado ao Cristo glorificado nos céus, agora se torna a fonte e
o poder da obra que vemos, confiada a Barnabé e Saulo. Por isso, nesse ponto
analisaremos a primeira viagem missionária de Saulo.
* * *
A P r im e ir a V ia g e m M is s io n á r ia d e S a u lo
(por volta de 48 d.C.)
E aqui, antes de partirmos com os apóstolos em sua jornada, temos de
observar como tudo está mudado. Eles partem não do antigo centro, Jerusalém,
mas de Antioquia, cidade gentia. Isso é significativo. Jerusalém e os doze
perderam posição no que tange à autoridade exterior e ao poder. O Espírito
Santo chama Barnabé e Saulo para a obra, os capacita e os envia sem a jurisdição
dos doze.
Não se espera que em um livro, cujo conteúdo se propõe a ser resumido,
possamos analisar detalhadamente todos os eventos ocorridos nas viagens de
Paulo. O leitor poderá encontrá-los em Atos e nas epístolas. Tencionamos
apenas traçar um esboço deles, e comentar certos marcos proeminentes, pelos
quais o leitor será capaz de refazer os vários caminhos percorridos pelo maior
dos apóstolos, o maior dos missionários, o maior dos servos que já viveu, exce­
tuando-se nosso maravilhoso Senhor. Mas, em primeiro lugar, observemos seus
companheiros e o ponto de partida deles.
Barnabé foi por um tempo o companheiro mais constante de Saulo. Ele
era levita, nascido na ilha de Chipre. Fora chamado cedo para seguir a Cristo, e
“possuindo uma herdade, vendeu-a, e trouxe o preço, e o depositou aos pés dos
apóstolos” (Atos 4:37). Comparando sua liberalidade com o belo testemunho
que o Espírito Santo dá sobre ele, Barnabé nos é apresentado como um homem
de caráter amoroso e extraordinário. E de seu imediato relacionamento com
Saulo, e pela prontidão em apresentá-lo aos demais apóstolos, julgamos que era
mais generoso e liberal que as pessoas educadas nas minúcias do judaísmo. No
entanto, em termos de eficácia e determinação no serviço, ele perdia para seu
companheiro Saulo.
A H
is t ó r ia d a
I g r e ja - capítulo 5
João Marcos era parente próximo de Barnabé - “o sobrinho de Barnabé”
(Colossenses 4:10). Sua mãe era uma certa Maria que morava em Jerusalém, cuja
casa parece ter sido um local de reunião para os apóstolos e primeiros cristãos.
Quando Pedro foi libertado da prisão, seguiu direto para “casa de Maria, mãe
de João, que tinha por sobrenome Marcos, onde muitos estavam reunidos e
oravam” (Atos 12:12). Supõe-se que nessa ocasião tenha se convertido por
meio da pregação de Pedro, pois este mais tarde se refere a ele como “meu filho
Marcos” (1 Pedro 5:13).
Dessas passagens deduzimos que Marcos não era nem apóstolo nem um
dos setenta discípulos, portanto, não havia acompanhado de perto o Senhor
durante Seu ministério público. Mas podemos supor que estava ansioso para
servir a Cristo, se juntando a Barnabé e Saulo, embora sua fé não estivesse à
altura das tremendas dificuldades de uma vida missionária. “E, partindo de
Pafos, Paulo e os que estavam com ele chegaram a Perge, da Panfília. Mas João,
apartando-se deles, voltou para Jerusalém” (Atos 13:13). Marcos escreveu seu
evangelho por volta de 63 d.C..
Antioquia, a antiga capital da Selêucia, foi fundada por Selêucio Nicator
por volta de 300 a.C.. Era a segunda cidade em importância, perdendo apenas
para Jerusalém, na história da igreja primitiva. O que Jerusalém havia sido
para os judeus, Antioquia se tornou para os gentios. Era um ponto central.
A partir desse momento, ela ocupou o principal lugar na propagação do cris­
tianismo entre os pagãos. Em Antioquia foi plantada a primeira igreja gentia
(Atos 11:20-21). Foi ali também que os discípulos foram chamados pela primeira
vez de cristãos (Atos 11:26). E onde, Saulo começou seu ministério público.
Agora retornemos à missão.
Barnabé e Saulo, acompanhados por João Marcos, são enviados pelo
Espírito Santo. Os judeus, por causa da ligação deles com as promessas divinas,
foram os primeiros a ouvir a pregação do Evangelho; mas a conversão de Sérgio
Paulo assinala, de maneira especial, o início da obra entre os gentios. Assinala
também uma crise, uma mudança na história de nosso apóstolo. Aqui seu nome
é mudado de Saulo para Paulo e agora - exceto em Listra e Jerusalém (Atos
14:14; 15:12-22), não é mais “Barnabé e Saulo”, mas “Paulo e seus companhei­
ros”. Ele toma a liderança; os outros são apenas os que o acompanham. Mas esse
cenário também tem um caráter distinto.
O proconsul evidentemente era um homem cuidadoso, prudente e sentia
a necessidade de sua alma. Ele chamou Barnabé e Saulo, pois desejava ouvir
a Palavra de Deus. Mas Elimas, o encantador, se opunha a eles. Sabia muito
bem que se o governador cresse na verdade que Paulo pregava, ele perderia sua
As D
ua s
P r im e ir a s V ia g e n s
de
Pa u l o )
influência na corte. Portanto, procurava afastar Sérgio Paulo da fé. Mas Paulo, na
plena dignidade e poder do Espírito Santo, “fixando os olhos nele”, com palavras
esmagadoras, o repreendeu na presença do governador. “O filho do diabo, cheio
de todo o engano e de toda a malícia, inimigo de toda a justiça, não cessarás
de perturbar os retos caminhos do Senhor? Eis aí, pois, agora contra ti a mão
do Senhor, e ficarás cego, sem ver o sol por algum tempo... Então o proconsul,
vendo o que havia acontecido, creu, maravilhado da doutrina do Senhor” (Atos
13:7-12). O impressionante poder de Deus acompanhava a palavra de Seu servo,
e a sentença pronunciada é executada de imediato. Sérgio Paulo é dominado pela
glória moral da cena, e se rende ao Evangelho.
Certo autor escreveu o seguinte: “Eu não tenho dúvidas que no ímpio
Barjesus vemos uma figura dos judeus da atualidade, esmagados por uma
cegueira temporária, devido à inveja da abrangência do Evangelho. Para
completarem a medida da iniquidade deles, resistem que ele seja pregado aos
gentios. A condição deles está julgada; a história deles demonstrada na missão de
Paulo. Contrários à graça e tentando aniquilar os efeitos dela sobre os gentios, os
judeus têm sido afligidos com cegueira; embora, apenas por um tempo”17.
Durante sua primeira missão entre os gentios, uma grande e magnífica
obra foi realizada. Compare Atos 13 e 14. Muitos lugares foram visitados,
igrejas foram plantadas, anciãos foram designados, a hostilidade dos judeus se
manifestou, e o poder do Espírito Santo ficou patente no impacto e no progresso
da verdade. Em Listra, o cristianismo foi confrontado pela primeira vez com o
paganismo; mas em todos os lugares o evangelho triunfou, e os diversos dons
de Paulo como obreiro brilharam de maneira abençoada. Quer se dirigindo aos
judeus, os quais conheciam as Escrituras, ou a bárbaros ignorantes, ou aos cultos
gregos, ou a multidões furiosas, ele provou ser um vaso escolhido e talhado
divinamente para tão imensa obra.
Antioquia, na Pisídia, é digna de uma menção específica pelos fatos que
aconteceram na sinagoga. Embora haja uma semelhança nos discursos de Paulo,
de Pedro e de Estevão nos primeiros capítulos de Atos, podemos descobrir aqui
certas marcas características de Paulo. Seu estilo conciliatório, a maneira com a
qual apresenta Cristo, e sua ousada proclamação da justificação pela fé podem
ser consideradas típicas de seus discursos e epístolas. Nenhum escritor sagrado
fala da justificação pela fé como Paulo o faz. Sua tocante abordagem faz desse
um dos textos bíblicos favoritos dos pregadores de todos os tempos. Em poucas
palavras, ele descreve as bênçãos de todos os que recebem a Cristo, e o horrendo
destino dos que O rejeitam; provando que não existe meio-termo ou terreno
Sinopse dos Livros da Bíblia, por J. N. DARBY.
92 | A
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is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 5
neutro quando Cristo é a questão. “Seja-vos, pois, notório, homens irmãos, que
por este se vos anuncia a remissão dos pecados. E de tudo o que, pela lei de
Moisés, não pudestes ser justificados, por ele é justificado todo aquele que crê.
Vede, pois, que não venha sobre vós o que está dito nos profetas: Vede, ó desprezadores, e espantai-vos e desaparecei; porque opero uma obra em vossos dias,
obra tal que não crereis, se alguém vo-la contar” (Atos 13:38-41).
O efeito que a primeira missão de Paulo causou sobre os discípulos de
Jerusalém levou a uma grande crise na história da Igreja. A inveja das mentes
farisaicas ficou tão excitada que uma divisão entre Jerusalém e Antioquia
ameaçou esse primeiro período da história da Igreja. Mas Deus agiu em graça e a
questão com Antioquia foi rapidamente resolvida. Porém o fanatismo dos crentes
judeus era insuperável. Na própria igreja em Jerusalém eles ainda ligavam o cris­
tianismo às exigências da Lei, e procuravam impor isso aos crentes gentios.
Alguns dos mais fanáticos desceram a Antioquia e afirmaram para
os novos convertidos que, a menos que se circuncidassem de acordo com os
preceitos de Moisés e guardassem a Lei, jamais poderiam ser salvos. Paulo e
Barnabé discutiram muito com eles; mas esse era um ponto significativo demais
para ser solucionado pela autoridade apostólica de Paulo, ou apenas por uma
resolução da igreja de Antioquia. Portanto, ficou acertado que uma delegação
deveria ir a Jerusalém e expor a questão diante dos doze apóstolos e dos anciãos
de lá. A escolha naturalmente recaiu sobre Paulo e Barnabé, por serem os mais
ativos na propagação do cristianismo entre os gentios. E assim chegamos à
* * *
A
T e r c e i r a V is it a d e P a u lo a Je r u sa lé m
(por volta de 50 d.C.)
Quando chegaram a Jerusalém encontraram a mesma coisa, não apenas
nas mentes de uns poucos irmãos, mas no seio da própria Igreja. A fonte dos
problemas não estava entre os judeus incrédulos, mas entre os que professavam
o nome de Jesus. “Alguns, porém, da seita dos fariseus, que tinham crido, se
levantaram, dizendo que era mister circuncidá-los e mandar-lhes que guardassem
a lei de Moisés” (Atos 15:5). Essa afirmação trouxe todo o assunto à tona —com
veemência -, e deu início a importantes deliberações. O capítulo 15 contém o
relato do que ocorreu e de como a questão foi resolvida. Os apóstolos, anciãos, e
todo o grupo da igreja em Jerusalém não somente estavam presentes unidos com
um mesmo propósito, como também participaram da discussão. Os apóstolos
As D
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P r im e ir a s V ia g e n s
de
Pa u l o |
não assumiram nem exerceram o poder exclusivo sobre o assunto. Esse é
geralmente chamado de “O Primeiro Concílio da Igreja”, mas também pode ser
chamado de o último concílio da Igreja, o qual introduziu suas resoluções com
as palavras: “Na verdade pareceu bem ao Espírito Santo e a nós” (v. 28).
Muitos, segundo as modernas noções de “essencial e não-essencial”, dirão
que o simples fato de circuncidar ou não uma criança não era relevante. Mas
tinha importância decisiva de acordo com a mente de Deus. Era uma questão
vital. Afetava os próprios fundamentos do cristianismo, os insondáveis princípios
da graça, e toda a questão do relacionamento dos homens com Deus. A epístola
de Paulo aos gálatas é um comentário sobre isso.
Não havia nenhuma cerimônia ou rito que um judeu convertido relutasse
mais em abrir mão que a circuncisão. Ela era um selo de seu próprio relacio­
namento com SENHOR, e das bênçãos hereditárias da aliança para seus filhos.
Uma opinião recorrente é que o batismo infantil foi introduzido na igreja para
satisfazer esse forte preconceito judeu. Mas se o Senhor desejasse manter essa
prática, o concílio em Jerusalém seria o lugar ideal para reafirmá-la. Isso iria
eliminar completamente a dificuldade, resolver a questão e restaurar a paz
e a unidade entre as duas congregações irmãs. Mas nenhum dos apóstolos
mencionou isso.
Antes de virarmos a página dessa importante e sugestiva parte da história
de nosso apóstolo, seria bom tratarmos de certos fatos que ele expõe em Gálatas
capítulo 2, e não relatados em Atos. Foi nessa ocasião que Paulo viajou devido a
uma revelação, levando Tito consigo. Em Atos temos o relato exterior de Paulo se
curvando às motivações, desejos e objetivos dos homens; em Gálatas temos algo
mais profundo, que regia o coração do apóstolo. Mas Deus sabe como combinar
as circunstâncias exteriores com a orientação interior do Espírito Santo. O tema
aqui era a liberdade cristã ou a escravidão legalista: se a lei de Moisés - e em
particular a circuncisão - teria de ser imposta aos gentios convertidos. Paulo,
guiado por Deus, vai a Jerusalém e leva Tito. Diante dos doze apóstolos, e de
toda a igreja, ele apresenta Tito, um grego incircunciso. Introduzir um gentio,
não circuncidado, ao coração do judaísmo intolerante foi um ato ousado! Mas
o apóstolo foi a Jerusalém por revelação. Ele tinha instruções positivas de Deus
quanto ao assunto. Esse foi o meio divino de decidir a querela, definitivamente,
entre ele mesmo e os cristãos judaizantes. Tal passo foi necessário, como ele disse,
“por causa dos falsos irmãos que se intrometeram, e secretamente entraram a
espiar a nossa liberdade, que temos em Cristo Jesus, para nos porem em servidão;
aos quais nem ainda por uma hora cedemos com sujeição, para que a verdade
do evangelho permanecesse entre vós” (Gálatas 2:4).
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I g r e ja - capítulo 5
O apóstolo, tendo atingido seu principal objetivo e lhes comunicado
seu evangelho em Jerusalém, parte com Barnabé e retorna aos cristãos gentios
de Antioquia. Os dois companheiros, Judas e Silas, trazendo as resoluções do
concílio, os acompanharam. Quando a multidão dos discípulos se reuniu e ouviu
o conteúdo da epístola, todos se alegraram e foram confortados.
Encerremos o primeiro concílio apostólico e a primeira controvérsia
apostólica. E, do que extraímos disso em Atos, poderíamos concluir que a divisão
entre os cristãos judeus e gentios foi completamente sanada pela decisão da
assembléia; porém, as epístolas nos mostram que a oposição do grupo judaizante
contra a liberdade dos cristãos gentios jamais arrefeceu. Logo iria se manifestar
novamente, e Paulo teve de enfrentá-la e combatê-la constantemente.
A S e g u n d a V ia g e m M i s s i o n á r i a
(cerca de 51 d.C.)
de
Pa u lo
Depois de Paulo e Barnabé terem passado algum tempo com a igreja em
Antioquia, outra viagem missionária foi proposta. “E alguns dias depois, disse
Paulo a Barnabé: Tornemos a visitar nossos irmãos por todas as cidades em que
já anunciamos a palavra do Senhor, para ver como estão. E Barnabé aconselhava
que tomassem consigo a João, chamado Marcos. Mas a Paulo parecia razoável que
não tomassem consigo aquele que desde a Panfília se tinha apartado deles e não
os acompanhou naquela obra. E tal contenda houve entre eles, que se apartaram
um do outro. Barnabé, levando consigo a Marcos, navegou para Chipre. E Paulo,
tendo escolhido a Silas, partiu, encomendado pelos irmãos à graça de Deus. E
passou pela Síria e Cilicia, confirmando as igrejas” (Atos 15:36-41).
Em uma jornada tão importante, tão cheia de dificuldades, que exigia
coragem e perseverança, segundo a opinião de Paulo, eles não poderiam confiar
em Marcos como companheiro de viagem. Paulo não conseguia desculpar
alguém cujos laços familiares o tornaram infiel no cumprimento do serviço
do Senhor. Quando a obra de Cristo estava em pauta, o apóstolo abria mão de
todos os sentimentos e desejos pessoais, e queria que os outros fizessem o mesmo.
Nessa oportunidade, a afeição natural pode ter compelido Barnabé a forçar
seu sobrinho a acompanhá-los no ministério; mas o que caracterizava Paulo
era uma total sinceridade. Os laços e relacionamentos humanos ainda tinham
grande influência sobre o caráter compassivo de Barnabé. Isso fica evidente na
atitude dele em Antioquia por ocasião da dissimulação de Pedro quando vieram
os judaizantes de Jerusalém (Gálatas 2). A propagação do Evangelho em um
mundo hostil era muito sagrada aos olhos de Paulo para que ele admitisse expe­
As D
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P r im e ir a s V ia g e n s
de
Pa u lo |
rimentos. Marcos preferiu Jerusalém ao ministério; Silas preferiu o ministério
a Jerusalém. Esse foi o fator preponderante na escolha de Paulo, embora, sem
dúvida, ele tenha sido guiado pelo Espírito Santo.
Barnabé leva Marcos, seu parente, e navega para Chipre, sua terra natal.
E aqui nos separamos de Barnabé, amado, santo e precioso servo de Cristo! Seu
nome não é mencionado novamente em Atos. As palavras “parente” e “terra
natal” têm de falar por si mesmas ao coração de cada leitor compreensivo destas
páginas. Se meditarmos nessa dolorosa cena, ao invés de darmos um mero
resumo da grande história, teremos muito a dizer sobre o assunto. Por hora,
nos contentemos com duas reflexões: 1) Isso foi administrado de tal maneira
que redundou em bênção para os gentios, pois as águas da vida agora fluiriam
em duas direções, e não em uma só. Contudo, foi a bondade de Deus, e não
significa aprovação às divisões dos cristãos; 2) Paulo fala posteriormente de
Barnabé com total afeição, e deseja que Marcos viesse ao seu encontro, pois era
útil para o ministério (1 Coríntios 9:6; 2 Timóteo 4:11). Não temos dúvida que
a fidelidade de Paulo se tornou uma bênção para ambos. Mas o mel das afeições
humanas jamais pode ser aceito no altar de Deus.
Tendo sido recomendados à graça de Deus pelos irmãos, eles partiram.
Tudo é maravilhosamente simples. Nenhum desfile ou parada é feito pelos
amigos na despedida, e nenhuma promessa é feita por eles mesmos quanto
ao que estavam determinados a fazer. “Tornemos a visitar nossos irmãos” são
palavras simples e modestas que conduziram Paulo à segunda e grande viagem
missionária. O Mestre estava cuidando de Seus servos e providenciando tudo
para eles. Não tiveram de ir muito longe para descobrir um novo companheiro:
Timóteo, em Listra. Este supriu a lacuna deixada por Barnabé. Se Paulo perdeu
a comunhão de Barnabé como amigo e irmão, encontrou em Timóteo, seu filho
na fé, uma afeição e companheirismo que se encerrou somente com a morte
do apóstolo. “Paulo quis que este fosse com ele”, mas antes, “tomando-o, o
circuncidou, por causa dos judeus que estavam naqueles lugares; porque todos
sabiam que seu pai era grego” (Atos 16:3). Paulo, nesta ocasião, se rendeu aos
preconceitos dos judeus, e circuncida Timóteo.
Timóteo era fruto de uma daquelas uniões mistas, fortemente condenadas
tanto no Antigo quanto no Novo Testamentos. Seu pai era gentio, cujo nome
nunca é mencionado. Sua mãe era uma judia piedosa. Supõe-se, a partir da
ausência de qualquer referência tanto em Atos quanto nas epístolas, que o pai de
Timóteo tenha morrido quando este ainda era criança. A educação de Timóteo
foi evidentemente deixada a cargo de sua mãe Eunice, e de sua avó Lóide, que
o ensinaram as Sagradas Escrituras. E das muitas alusões nas epístolas paulinas
à ternura, à sensibilidade e às lágrimas de seu amado filho na fé, acreditamos
95
96 I A
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is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 5
que ele manteve durante a vida inteira as marcas amorosas, santas e nobres de
seu lar. O maravilhoso amor de Paulo por Timóteo, as doces lembranças do
lar deste em Listra, e seu treinamento inicial ali foram o tema de algumas das
mais tocantes passagens nos escritos do grande apóstolo. Quando já velho - na
prisão, em necessidade e com o martírio diante de si-, ele escreve: “A Timóteo,
meu amado filho: Graça, misericórdia, e paz da parte de Deus Pai, e da de
Cristo Jesus, Senhor nosso. Dou graças a Deus, a quem desde os meus antepas­
sados sirvo com uma consciência pura, de que sem cessar faço memória de ti
nas minhas orações noite e dia; desejando muito ver-te, lembrando-me das tuas
lágrimas, para me encher de gozo; trazendo à memória a fé não fingida que em
ti há, a qual habitou primeiro em tua avó Lóide, e em tua mãe Eunice, e estou
certo de que também habita em ti” (2 Timóteo 1:2-5). Ele anseia, e repete seu
urgente convite para que Timóteo vá vê-lo. “Procura vir ter comigo depressa...
Procura vir antes do inverno” (2 Timóteo 4:9 e 21). Cremos que a um filho
tão amado assim foi permitido chegar a tempo de amenizar as últimas horas de
seu pai em Cristo, receber os últimos conselhos e bênçãos, e testemunhar Paulo
terminando sua carreira com alegria.
Silas, ou Silvano, aparece diante de nós primeiro como um mestre na
igreja em Jerusalém; e provavelmente era um helenista e também cidadão
romano, como o próprio Paulo (Atos 16:37). Ele foi apontado como um repre­
sentante para acompanhar Paulo e Barnabé no retorno a Antioquia com as
resoluções do concílio. Porém, muitos detalhes da vida de Timóteo e de Silas
surgirão naturalmente ao traçarmos o caminho do apóstolo, e, portanto, nada
mais precisamos acrescentar no momento. Prossigamos com a jornada.
Paulo e Silas, com seu novo companheiro, “passando pelas cidades, lhes
entregavam, para serem observados, os decretos que haviam sido estabelecidos
pelos apóstolos e anciãos em Jerusalém” (Atos 16:4). Os decretos eram deixados
com as igrejas, para que os judeus conferissem a decisão dos líderes em Jerusalém
de não impor a lei aos gentios. Após visitar e confirmar as igrejas já plantadas
na Síria e Cilicia, eles viajaram pela “Frigia e pela província da Galácia”. Aqui
faremos uma pausa e nos deteremos nessas palavras: “pela Frigia e pela província
da Galácia”. Ambas não eram meras cidades, mas sim províncias, ou grandes
distritos do país. E, apesar disso, Lucas usou poucas palavras para relatar a
enorme obra feita ali. Como é diferente o estilo condensado do Espírito Santo
do estilo enfatuado do homem! Estima-se que no século VI a.C., segundo alguns
historiadores, havia 62 cidades somente na província da Frigia! E ao que parece,
Paulo e os que com ele estavam percorreram todas elas.
As mesmas observações quanto à obra se aplicam à Galácia. E sabemos a
partir do estudo da epístola aos gálatas que nessa ocasião Paulo estava sofrendo
As
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Pa u lo
fisicamente. “E vós sabeis que primeiro vos anunciei o evangelho estando em
fraqueza da carne.” Mas o poder de sua pregação contrastava tão fortemente com
a debilidade de seu corpo que os gálatas foram movidos à uma simpatia e genero­
sidade singulares. “E não rejeitastes, nem desprezastes isso que era uma tentação
na minha carne, antes me recebestes como um anjo de Deus, como Jesus Cristo
mesmo. Qual é, logo, a vossa bem-aventurança? Porque vos dou testemunho
de que, se possível fora, arrancaríeis os vossos olhos, e mos daríeis” (Gálatas
4:13-15). Os gálatas tinham origem celta, eram impulsivos e inconstantes18. A
epístola inteira é uma deprimente ilustração da instabilidade deles e dos terríveis
efeitos do grupo de judaizantes. “Maravilho-me de que tão depressa passásseis
daquele que vos chamou à graça de Cristo para outro evangelho; o qual não é
outro, mas há alguns que vos inquietam e querem transtornar o evangelho de
Cristo.” Retornemos agora à história em Atos.
O caráter e os resultados da ministração de Paulo, relatados nos capítulos
16 a 20 dos Atos, são realmente maravilhosos. Impares na História. Todo servo
de Cristo, e especialmente os pregadores deveriam estudá-los e relê-los com
frequência. “O vaso do Espírito”, como alguém disse, “brilha com a luz celestial
por toda obra do evangelho: ele condescende em Jerusalém, troveja na Gálacia
quando as almas estavam sendo corrompidas, leva os apóstolos a decidir pela
liberdade dos gentios, e ele mesmo usa toda a liberdade para ser judeu com os
judeus, para os que não tinham lei como se ele também não tivesse, sempre
sujeito a Cristo. Ele também tinha uma consciência” sem ofensa, tanto para
com Deus como para com os homens” (Atos 24:16). Nada dentro dele impedia
sua comunhão com. Deus, da qual Paulo extraía suas forças para ser fiel entre os
homens. O apóstolo podia afirmar com toda confiança: “Sede meus imitadores,
como também eu de Cristo” (1 Coríntios 11:1). E também podia dizer:
“Portanto, tudo sofro por amor dos escolhidos, para que também eles alcancem
a salvação que está em Cristo Jesus com glória eterna” (2 Timóteo 2:10)19.
O modo como o Espírito lida com o apóstolo nesses capítulos também
é notável. Somente Ele o direciona nessa maravilhosa jornada, e o sustenta em
meio a várias provações e circunstâncias adversas. Por exemplo, Ele proíbe Paulo
de pregar a Palavra na Ásia - não o permitindo ir à Bitínia, mas orienta Seu servo
por uma visão a se dirigir para a Macedônia. “E Paulo teve de noite uma visão,
em que se apresentou um homem da Macedônia, e lhe rogou, dizendo: Passa
à Macedônia, e ajuda-nos. E, logo depois desta visão, procuramos partir para
a Macedônia, concluindo que o Senhor nos chamava para lhes anunciarmos o
18 História do Novo Testamento, de Smith.
19 Sinopse dos Livros dã Bíblia, por J. N. DARBY.
98 I A
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I g r e ja - capítulo 5
evangelho. E, navegando de Trôade, fomos correndo em caminho direito para a
Samotrácia e, no dia seguinte, para Neápolis; e dali para Filipos, que é a primeira
cidade desta parte da Macedônia, e é uma colônia; e estivemos alguns dias nesta
cidade” (Atos 16:9-12).
Pa u lo
leva o
pa r a a
Ev a n g e l h o
Eu r o p a
Isso marca um novo período na história da Igreja, na história de Paulo, e no
progresso do cristianismo. Paulo e seus companheiros agora levam o Evangelho
para a Europa. E aqui queremos pedir desculpas aos nossos leitores, pois vamos
parar por um momento e relembrar alguns interessantes fatos históricos sobre os
conquistadores macedônicos e suas conquistas. Vamos descansar na planície de
Filipos, famosa também na história romana. A grande luta entre a república e
o velho império havia terminado. Para comemorar tal evento, Augusto fundou
uma colônia em Filipos. Essa foi a primeira cidade na qual Paulo entrou em sua
chegada à Europa. É chamada de “primeira cidade desta parte da Macedônia,
e é uma colônia”. Uma colônia romana era caracteristicamente uma miniatura
de Roma; e Filipos era o local adequado, mais que qualquer outro no império,
para ser considerado como um representante da Roma imperial.
Para muitos de nossos jovens e curiosos leitores, essa pequena digressão
parecerá tediosa. Porém, o conhecimento de tais histórias é útil para os estudantes
da profecia, pois são o cumprimento das visões de Daniel, especialmente do
capítulo 7. A cidade de Filipos era em si mesma um monumento ao poder
grego emergente, que estava esmagando o poder persa em declínio. Os gregos a
chamavam de “Crenides”. Alexandre, o Grande, filho de Filipe, foi o conquista­
dor do grande rei Dario. O “Leopardo” da Grécia venceu o “Urso” da Pérsia20.
Ao olharmos para a época em que Paulo navegou da Ásia para a Europa,
já haviam se passado cerca de quatro séculos desde que Alexandre navegara da
Europa para a Ásia. Mas como eram opostas as motivações e os objetivos, os
conflitos e as vitórias de cada um deles! O entusiasmo de Alexandre se devia às
lembranças de seus antecessores, e por sua determinação em subverter as grandes
dinastias do oriente, mas, inconsciente e involuntariamente, ele estava cumprindo
os propósitos de Deus. Paulo tinha cingido sua armadura com outra intenção, e
para obter maiores e mais duradouras vitórias. Ele foi enviado pelo Espírito Santo,
não apenas para conquistar o ocidente, mas para trazer o mundo inteiro cativo
20 Notas no Livro de Daniel, por W. KELLY.
As D
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de
Pa u lo j 9 9
à obediência de Cristo. O cristianismo não é para uma nação ou povo somente,
mas para todos os indivíduos do planeta. O próprio Paulo expressou isso em
Colossenses 1:28: “Cristo... a quem anunciamos, admoestando a todo o homem,
e ensinando a todo o homem em toda a sabedoria; para que apresentemos todo o
homem perfeito em Jesus Cristo”. Essa é a missão e a abrangência do Evangelho.
Mas há outra coisa que temos de apreciar antes de continuarmos com a
jornada de Paulo.
Lucas, o “médico amado”, historiador e evangelista, parece ter se juntado
a Paulo nesse momento em particular. Do versículo 10 em diante, ele escreve
na primeira pessoa do plural: “E, logo depois desta visão, procuramos partir para
a Macedônia, concluindo que o Senhor nos chamava para lhes anunciarmos o
evangelho”. Supõe-se que era gentio e tenha se convertido em Antioquia. Ao
que tudo indica, ele também permaneceu um fiel companheiro do apóstolo até
o final dos labores e das aflições deste (2 Timóteo 4:11).
O s E fe it o s
P r eg a ç ã o
em F ilip o s
da
de
Pa u lo
O número de judeus em Filipos provavelmente era pequeno, pois não
havia nenhuma sinagoga ali. Mas o apóstolo, como de costume, vai primeiro
a eles, mesmo que “eles” fossem um grupo de poucas mulheres reunido na
margem do rio (Atos 16). Paulo prega para elas, Lídia se converte, a porta é
aberta, e outros também crêem. Aquele era um lugar simples, e para aquelas
mulheres piedosas o Evangelho foi pregado pela primeira vez na Europa e ali foi
batizada a primeira família21. Mas esse tranquilo começo e os calmos triunfos
logo iriam ser transtornados pela malícia de Satanás e a avareza do homem. O
Evangelho não avançaria fácil e confortavelmente em meio ao paganismo, mas
com grande oposição e sofrimento.
Quando o apóstolo e seus companheiros iam para um lugar onde se
costumava fazer orações, uma moça possessa de espírito maligno os seguia, e
gritava, dizendo: “Estes homens, que nos anunciam o caminho da salvação,
21 “A ação do Espírito Santo no tocante à família parece ter sido notável entre os gentios; já
entre os judeus, até onde sei, não ouvimos falar disso. Encontramos, porém, distritos judeus
e também samaritanos que foram poderosamente marcados (para dizer o mínimo) pelo
Evangelho. N o entanto, entre os gentios, famílias parecem ter sido visitadas pela graça divina,
segundo os registros do Espírito. A casa de Cornélio, a do carcereiro filipense, a de Estéfanas,
e muitas outras. Isso é extremamente encorajador - especialmente para nós.” Extraído de
Estudos Introdutórios aos Atos dos Apóstolos, de W. KELLY.
I
100 | A
H
is t ó r ia d a
I g r e ja - capítulo 5
são servos do Deus Altíssimo”. No início, Paulo a ignorou. Continuava seu
abençoado trabalho de pregar a Cristo e ganhar almas para Ele. Mas a pobre
escrava persistia em segui-los, gritando a mesma coisa. Isso era uma tentativa
maliciosa do inimigo de atrapalhar a obra de Deus colocando a ênfase nos
ministros da Palavra. Observe que ela não deu testemunho de “Jesus” ou do
“Senhor”, mas de Seus “servos” e do “Deus altíssimo”. Paulo não queria um
testemunho para si mesmo, muito menos um vindo de um espírito maligno. Ele
“perturbado, voltou-se e disse ao espírito: Em nome de Jesus Cristo, te mando
que saias dela. E na mesma hora saiu”.
Como a jovem não mais podia continuar a adivinhar, seus donos se viram
privados dos lucros que ela dava. Irados com a perda de dinheiro, e reunindo
a multidão a seu favor, eles prenderam Paulo e Silas e os arrastaram à presença
dos magistrados. Apesar de saber que não havia acusação real contra os cristãos,
eles suscitaram a velha desculpa de “perturbação da paz”, ou seja, que Paulo e
Silas estavam tentando introduzir costumes judeus em uma colônia romana,
ensinando práticas contrárias às leis de Roma. E, como tem acontecido desde
então, o clamor da multidão foi aceito. Não houve qualquer evidência, exame
ou deliberação. Os magistrados, sem nenhuma averiguação, ordenaram que eles
fossem açoitados publicamente e lançados na prisão. E, como era de se esperar,
esses abençoados servos de Deus, feridos, fracos e sangrando, foram entregues
aos cuidados de um carcereiro cruel, o qual aumentou o sofrimento deles ao
lhes prender os pés no tronco. Porém, em vez de se sentirem deprimidos pelos
sofrimentos físicos e pela prisão, eles se alegraram de terem sido considerados
dignos de sofrerem vergonha e dor por amor a Cristo. E, em vez do silêncio da
meia-noite ser quebrado pelos suspiros e gemidos dos prisioneiros, “Paulo e Silas
oravam e cantavam hinos a Deus, e os outros presos os escutavam”.
Se Satanás tem à disposição inúmeros recursos para exercer sua obra
maligna, Deus tem à disposição infinitos recursos para exercer Sua boa obra.
Nessa ocasião, Ele faz uso de tudo o que aconteceu para direcionar o progresso
da obra do Evangelho, e para cumprir os propósitos de Seu amor. O carcereiro
se converteria, a igreja seria reconfortada, e um testemunho seria estabelecido
no coração do paganismo. A meia-noite, enquanto Paulo e Silas cantavam, e
os prisioneiros ouviam esse som incomum, houve um grande terremoto. Deus
entrou em cena com majestade e graça. Ele ergue sua voz e a terra treme: as
paredes da prisão foram sacudidas, as portas se escancararam, e as algemas de
todos os presos caíram. E agora, o que significam os grilhões e as cadeias? As
legiões romanas? O que é o poder do inimigo? A voz de Deus é ouvida na
tempestade (Salmo 29): mas a violência do turbilhão é substituída pela doce voz
do Evangelho e pela paz celestial.
A s D u a s P r im e ir a s V ia g e n s
df .
Pa u lo
Acordado repentinamente pelo terremoto, a primeira coisa que o carcereiro
pensou foi nos prisioneiros sob sua tutela. Desesperado por ver as portas abertas,
e imaginando que todos haviam fugido, ele desembainhou sua espada para se
matar. “Mas Paulo clamou com grande voz, dizendo: Não te faças nenhum mal,
que todos aqui estamos.” Essas palavras amorosas quebrantaram o coração do
carcereiro. A serenidade de Paulo e Silas, a recusa deles em aproveitar a opor­
tunidade para escapar, a preocupação de ambos com o bem-estar do carrasco,
tudo isso combinado fez aquele atordoado homem considerá-los seres de uma
classe superior. Ele largou sua espada, pediu luz, entrou no cárcere interior; e,
tremendo, se prostrou aos pés do apóstolo. A consciência dele foi tocada, seu
coração quebrantado, e sua alma foi agitada com a violência de um terremoto. Ele
se colocou na posição de pecador perdido, e clamou: “Senhores, que é necessário
que eu faça para me salvar?”. Ele não diz como o doutor da lei: “Senhores, que
farei para herdar a vida eterna?” (Lucas 10:25). Esse homem não questionou
nada sobre fazer alguma coisa para obter vida-, ele perguntou sobre a salvação do
perdido. O mestre da lei, como a maioria das pessoas, não se reconhecia como
pecador perdido, pois não quis saber nada acerca da salvação.
Em resposta à pergunta mais importante feita por lábios humanos,
“Que farei para herdar a vida eterna?”, o apóstolo direciona os pensamentos do
carcereiro para Cristo: “Crê no Senhor Jesus Cristo e serás salvo, tu e a tua casa”.
Deus concedeu Sua bênção, e toda a casa daquele homem creu, se alegrou, e
foram batizados. E a partir de então tudo mudou; o carcereiro levou os prisio­
neiros para sua própria casa - a crueldade deu lugar ao amor, à compaixão, e à
hospitalidade. Na mesma hora, ele lavou os vergões de Paulo e Silas, lhes deu
comida, e se alegrou, crendo em Deus. Que noite agitada! Que transformação
em tão pouco tempo! Que maravilhoso amanhecer para aquela família! A Deus
toda a glória!
Como o rei Dario, os magistrados parecem ter tido uma noite incômoda.
Talvez as notícias sobre o terremoto chegaram até eles, ou sobre a cidadania
romana de Paulo e Silas. Seja como for, assim que o dia raiou, eles mandaram
uma ordem ao carcereiro para que os soltasse. Este imediatamente os fez saber
das novidades, e queria os despedir em paz. Mas Paulo se recusou a aceitar a
liberdade sem o reconhecimento público do erro de que fora vítima. Também
revelou que ele e Silas eram cidadãos romanos. As famosas palavras de Cícero
se tornaram um provérbio, e tinham um peso enorme em todo o império:
“Acorrentar um cidadão romano é um ultraje, açoitá-lo é um crime”. Os
magistrados evidentemente haviam violado a lei romana. Paulo exigiu que,
assim como ele e Silas tinham sido publicamente tratados como criminosos, os
magistrados deveriam publicamente se retratar e declará-los inocentes. A última
102 I A
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ist ó r ia da
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parte os magistrados fizeram, percebendo o erro que cometeram. “E, vindo, lhes
dirigiram súplicas; e, tirando-os para fora, lhes pediram que saíssem da cidade.”
Paulo e Silas prontamente concordaram com o pedido das autoridades, saíram
da prisão, foram à casa de Lídia, e, ao acabar de ver e confortar os irmãos,
deixaram a cidade..
Antes de deixarmos para trás esse memorável capítulo de Atos, somente
podemos acrescentar que é muito gratificante encontrar provas do vínculo que
unia o apóstolo e os irmãos dessa cidade, o qual permaneceu desde o “princípio
do evangelho” até a prisão de Paulo em Roma, conforme registrado na Epístola
aos Filipenses. Seu afeto pelos amados filipenses era enorme. Paulo se dirigia a
eles como “meus amados e mui queridos irmãos, minha alegria e coroa, estai
assim firmes no Senhor, amados” (4:1). E reconhece, com grande regozijo, a
incansável comunhão mútua que possuíam no evangelho, e as muitas provas
práticas do amor e da afinidade para consigo. Quando o apóstolo ficou durante
um período em Tessalônica, os filipenses se preocuparam com as necessidades
dele. “Porque também uma e outra vez me mandastes o necessário a Tessalônica”
(Filipenses 4:15-19).
Pa u l o
em
T e ssa l ô n ic a
e em
B er éia
Paulo e Silas agora rumam para Tessalônica. Timóteo e Lucas parecem
ter ficado um pouco mais em Filipos. Passando por Anfípolis e Apolônia, Paulo
e Silas chegaram a Tessalônica, onde encontraram uma sinagoga. Tessalônica era
uma cidade comercial de grande importância, na qual moravam muitos judeus.
“E Paulo, como tinha por costume, foi ter com eles; e por três sábados disputou
com eles sobre as Escrituras.” O coração de muitos foi tocado por sua pregação;
uma grande multidão de gregos piedosos e de mulheres da sociedade creu. Mas os
velhos inimigos de Paulo surgiram em cena novamente. “Mas os judeus desobe­
dientes, movidos de inveja, tomaram consigo alguns homens perversos, dentre os
vadios e, ajuntando o povo, alvoroçaram a cidade, e assaltando a casa de Jasom,
procuravam trazê-los para junto do povo. E, não os achando, trouxeram Jasom
e alguns irmãos à presença dos magistrados da cidade, clamando: Estes que têm
alvoroçado o mundo, chegaram também aqui; os quais Jasom recolheu; e todos
estes procedem contra os decretos de César, dizendo que há outro rei, Jesus.”
Tais versículos são suficientes para nos mostrar o caráter da inimizade universal
dos judeus contra o Evangelho e contra Paulo, seu principal ministro.
Obviamente o apóstolo tinha pregado aos tessalonicenses a verdade acerca
da exaltação de Cristo, e Sua vinda futura em glória: “... dizendo que há outro rei,
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Pau lo
Jesus”. Essa é a razão de suas constantes alusões à vinda do Senhor e ao “dia do
Senhor” nas epístolas de Paulo a essa igreja. Aprendemos daquilo que Paulo relata
em sua primeira epístola que suas obras foram mais abundantes e grandemente
reconhecidas e abençoadas pelo Senhor. (1 Tessalonicenses 1:9-10; 2:10-11).
O apóstolo agora viaja para Beréia, onde os judeus eram mais nobres. Eles
checavam na Palavra de Deus aquilo que ouviam. Houve uma grande bênção ali
também. Muitos creram, mas os judeus, como caçadores perseguindo a presa,
partiram apressadamente de Tessalônica para Beréia, insuflando um tumulto
de tal proporção que obrigou Paulo a abandonar a cidade quase de imediato.
Acompanhado por alguns bereanos convertidos, ele parte rumo a Atenas. Silas
e Timóteo ficam para trás.
'-k
A V isit a
de
it
Pa u l o
a
A tenas
A estada do apóstolo em Atenas é um evento de grande importância em
sua história. Atenas era, em alguns aspectos, a capital do mundo, além do centro
da cultura e filosofia gregas; mas também era o ponto central da superstição e
idolatria.
E interessante notar que o apóstolo não estava com pressa de iniciar seu
trabalho ali. Ele tomou tempo para refletir. Pensamentos profundos, a análise
de todas as coisas na presença de Deus e à luz da morte e ressurreição de Cristo
enchiam a mente de Paulo. Sua intenção primordial era esperar pela chegada de
Silas e Timóteo. Ele enviara uma mensagem a Beréia na qual pedia que ambos
viessem encontrá-lo o mais rápido possível. Porém, quando se viu cercado de
templos, altares, estátuas, e adoração idólatra, não pôde mais ficar em silêncio.
Como de costume, ele procurou os judeus, mas também debatia diariamente
com os filósofos no mercado. Portanto, cristianismo e paganismo se confronta­
ram abertamente. Um fato digno de nota é que o apóstolo do cristianismo estava
sozinho em Atenas, lugar tão apinhado de apóstolos do paganismo e de objetos
de adoração que certo observador disse: “Em Atenas é mais fácil encontrar um
deus que um homem”.
Alguns zombavam do que Paulo falava; outros escutaram e desejaram
ouvir mais. “E alguns dos filósofos epicureus e estóicos contendiam com ele;
e uns diziam: Que quer dizer este paroleiro? E outros: Parece que é pregador
de deuses estranhos; porque lhes anunciava a Jesus e a ressurreição.” Em seus
debates diários, Paulo conseguiu chamar a atenção do povo e de diferentes classes
de filósofos. Era por causa de “Jesus e a ressurreição”. Tais palavras causaram
1 0 4 I A H i s t ó r i a d a I g r e j a - capítulo 5
uma impressão enorme, e permaneceram fortes na mente deles. Que novidade
e que realidade maravilhosa para as almas! A Pessoa de Cristo; não uma teoria:
o fato da ressurreição, e não uma incerteza sombria em relação ao futuro. O
ministério de Cristo desnudou a terrível condição dos cultos atenienses aos olhos
do verdadeiro Deus. Contudo, eles quiseram ter uma exposição mais completa e
detalhada sobre esses misteriosos assuntos, e trouxeram Paulo ao Areópago.
O Areópago era o local mais conveniente e adequado para reuniões
públicas. A mais solene tribuna de justiça se estabeleceu desde os tempos
imemoriais na colina do Areópago. Os juizes se sentavam ao ar livre em assentos
lavrados na rocha. Nesse lugar muitas questões importantes foram discutidas,
e muitos casos solucionados, começando com o lendário julgamento de Marte,
que deu ao local o nome de “Campo de Marte”.
Foi nesse cenário que Paulo se dirigiu à multidão. Não há momento na
história do apóstolo ou na história do cristianismo primitivo mais interessante e
mais conhecido que esse. Inspirado por sentimentos relacionados com a honra
de Deus, e plenamente sabedor da condição da humanidade à luz da cruz, o que
ele deve ter sentido ali, no Campo de Marte? Para onde quer que seus olhos se
voltassem, os sinais da idolatria, em seus milhares de aspectos, gritavam diante
de Paulo. Talvez ele, devido às circunstâncias, fosse induzido a falar de maneira
severa; mas, controlou seus sentimentos e não usou uma linguagem intempestiva.
Considerando o fervor de seu espírito, e a grandeza de seu zelo pela verdade, isso
foi uma notável demonstração de domínio próprio. Seu Senhor e Mestre estava
com ele, embora aos olhos humanos ele estivesse sozinho diante dos atenienses
e dos muitos estrangeiros que afluíam àquele centro do saber universal.
Nos anais da história humana, não há nada semelhante ao discurso de Paulo
no que se refere à sabedoria, prudência, argumentação e perfeita habilidade. Ele
não começou atacando os falsos deuses dos gregos, nem denunciando a religião
deles como um engano satânico, ou como objeto de sua total repugnância.
Alguém com zelo, mas sem o conhecimento teria feito isso, e ficaria satisfeito
com sua própria fidelidade. Contudo, no discurso paulino temos um exemplo
da melhor maneira de abordar a mente e o coração das pessoas ignorantes e
preconceituosas em todas as épocas. Que o Senhor conceda tal sabedoria aos
Seus servos para seguir este exemplo!
Suas palavras de abertura são ao mesmo tempo cativantes e reprovadoras.
“Homens atenienses, em tudo vos vejo um tanto supersticiosos”. Ele começa
reconhecendo que os atenienses tinham sentimentos religiosos, os quais estavam
direcionados de maneira errada. Em seguida, Paulo se apresenta como uma pessoa
disposta a levá-los ao conhecimento do único Deus verdadeiro. “Esse, pois, que
vós honrais, não o conhecendo, é o que eu vos anuncio.” O apóstolo sabiamente
As D
uas
P r im e ir a s V ia g e n s
de
Pa u l o
escolheu a inscrição “Ao DEUS DESCONHECIDO”. I sso lhe deu uma oportunida­
de de galgar o primeiro degrau da escada da verdade. Falou sobre a singularidade
do Deus Criador, e do relacionamento da humanidade com Ele. Depois deixa
a argumentação contra a idolatria e passa a pregar o Evangelho. Além disso,
toma o cuidado de não introduzir o nome de Jesus em seu discurso público. Ele
já havia feito isso em suas ministrações privadas; no entanto, estando cercado
agora por discípulos e admiradores de nomes tais como Sócrates, Platão, Zeno
e Epicuro, o apóstolo preserva o santo nome de Jesus do risco de ser comparado
a Suas criaturas. Ele sabia muito bem que o nome do humilde Jesus de Nazaré
era “loucura para os gregos” (1 Coríntios 1:23). E fácil perceber que, apesar de
Seu nome não ser mencionado durante o discurso, a atenção de toda a audiência
estava concentrada em Cristo Jesus homem. Paulo continua: “Mas Deus, não
tendo em conta os tempos da ignorância, anuncia agora a todos os homens, e em
todo o lugar, que se arrependam; porquanto tem determinado um dia em que
com justiça há de julgar o mundo, por meio do homem que destinou; e disso
deu certeza a todos, ressuscitando-o dentre os mortos”. Nesse ponto a paciência
dos ouvintes se esgotou —seu discurso foi interrompido. Mas a última impressão
deixada na mente deles teve peso e importância eternos. O apóstolo inspirado
se dirigiu, não ao intelecto ávido por informações, mas à consciência de seus
ouvintes. A menção à ressurreição dos mortos e ao julgamento do mundo, com
tamanho poder e autoridade, não podia deixar de incomodar aquelas pessoas
orgulhosas e que buscavam apenas seu próprio prazer. O princípio essencial e
objetivo mais elevado do epicurismo era gratificar a si mesmo; do estoicismo, a
arrogante indiferença ao bem e ao mal, ao prazer e à dor.
Alguns zombaram, outros ficaram totalmente indiferentes. Será que
devemos nos surpreender com o fato dessa notável reunião ter acabado dessa
maneira? Mas, apesar de tudo, o cristianismo ganhou sua primeira e esplêndida
vitória sobre a idolatria. E, quaisquer que tenham sido os resultados imediatos
da fala de Paulo, sabemos que tem sido uma bênção para muitos desde então e
que produziu numerosos frutos em numerosas almas e que continua a frutificar
para a glória de Deus eternamente.
Logo após, Paulo vai embora da cidade. Não parece que ele tenha tomado
essa decisão por causa do tumulto ou da perseguição. O maravilhoso Senhor
lhe concedeu experimentar da alegria celestial, da alegria que os anjos sentem
quando um pecador se arrepende: “Todavia, chegando alguns homens a ele,
creram; entre os quais foi Dionísio, areopagita, uma mulher por nome Dâmaris,
e com eles outros.” Porém, em Filipos - uma cidade militar, e em Tessalônica
e Corinto - cidades comerciais, o número de conversões parece ter sido bem
maior que na cultíssima e sofisticada cidade de Atenas. Isso é profundamente
105
106 [ A H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 5
humilhante para o orgulho humano, e para os vãos poderes da mente. Uma
epístola foi escrita aos filipenses, duas aos tessalonicenses e duas aos coríntios;
mas não há qualquer registro de Paulo ter escrito uma carta aos atenienses, e
também não lemos acerca de uma segunda visita do apóstolo a Atenas.
A V isit a
de
Pa u lo
a
C o r in t o
A conexão de Corinto com a história, ensino e escritos de nosso apóstolo
é quase tão íntima e importante quanto a que ele tinha com Jerusalém ou
Antioquia. Ela pode ser considerada como a base de Paulo na Europa, Aqui Deus
tinha “muito povo”, e aqui Paulo ficou “um ano e seis meses, ensinando entre
eles a palavra de Deus” (Atos 18:11). Foi também em Corinto que ele escreveu
suas primeiras cartas apostólicas: as duas Epístolas aos Tessalonicenses.
Corinto, a capital romana na Grécia, era uma grande cidade comercial,
com estreitas ligações com Roma e a parte ocidental do Mediterrâneo, tendo
Tessalônica e Efeso pelo lado do mar Egeu, e pelo lado leste Antioquia e
Alexandria. Portanto, devido aos seus dois notáveis portos, Corinto recebia
navios tanto dos mares ocidentais quanto dos orientais22.
Parece que Paulo viajou sozinho a Corinto. Se Timóteo se encontrou com
Paulo em Atenas (1 Tessalonicenses 3:1), este o mandou de volta a Tessalônica,
lugar pelo qual, como veremos em breve, o coração do apóstolo pulsava. Logo
após sua chegada, ele inesperadamente encontrou dois amigos e companheiros
de trabalho: Aquila e sua esposa, Priscila. Naquela ocasião em especial, havia um
número maior de judeus em Corinto que o usual, “pois Cláudio tinha mandado
que todos os judeus saíssem de Roma”. O Senhor usou o banimento de Áquila
e Priscila para providenciar uma residência temporária para Seu servo solitário.
Eles eram da mesma nação e tinham o mesmo ofício do apóstolo. “E, como
era do mesmo ofício, ficou com eles, e trabalhava; pois tinham por ofício fazer
tendas” (Atos 18:2-3).
Os caminhos do Senhor para com Seu servo eram maravilhosos e
cheios de graça. Em uma cidade de riqueza e abundante comércio cercada por
nativos gregos, colonizadores romanos, e judeus de todas as partes do mundo,
Paulo trabalhava silenciosamente em seu ofício para não se tornar oneroso a
ninguém. Aqui temos um exemplo da mais profunda e grandiosa espiritualidade
22 Para detalhes geográficos completos e detalhados, veja A vida e as Epístolas de São Paulo, de
Conybeare e Howson. Temos de acrescentar que essa é nossa fonte primordial no que se refere
a datas. Provavelmente, esse é o melhor e mais abrangente livro sobre a história do grande
apóstolo.
As D
uas
P r im e ir a s V ia g e n s
de
Pa u lo
combinada com trabalho diligente nas coisas comuns da vida. E que exemplo!
E que lição! A labuta diária não impedia sua comunhão com Deus. Poucos
conheceram tão bem, e sentiram tão fortemente, o valor do Evangelho que
traziam consigo: questões da vida e da morte estavam ligadas à essa mensagem,
mas, ainda assim o mensageiro deveria se entregar ao trabalho cotidiano. E, com
o mesmo fervor da pregação, Paulo fez isso para o Senhor e para Seus santos. Ele
frequentemente mencionou isso em suas epístolas, falando desse trabalho como
um dos privilégios que recebera. “E em tudo me guardei de vos ser pesado, e
ainda me guardarei. Como a verdade de Cristo está em mim, esta glória não me
será impedida nas regiões da Acaia” (2 Coríntios 11:9-1023).
Há uma outra coisa relacionada a essa peculiaridade da história do
apóstolo, a qual é de grande interesse. Existe um consenso de que Paulo tenha
escrito as duas Epístolas aos Tessalonicenses nesse período, e alguns acham que
a Epístola aos Gálatas também. Ambas estão diante de nós como testemunhas
da intimidade e da comunhão que ele tinha com Deus, enquanto se mantinha
com o próprio trabalho. Mas chega o descanso sabático, a oficina é fechada, e
Paulo vai para a sinagoga. Esse era seu costume. “E todos os sábados disputava
na sinagoga, e convencia a judeus e gregos.” E enquanto Paulo estava ocupado,
tanto nos dias da semana quanto aos sábados, Silas e Timóteo chegaram da
Macedônia. E evidente que ambos trouxeram alguma ajuda, a qual supriu a
necessidade do apóstolo naquela ocasião, e o aliviaram da constante labuta.
A chegada de Silas e Timóteo parece ter encorajado e fortalecido o
apóstolo. Seu zelo e energia no Evangelho cresceram visivelmente. Ele “impulsio­
nado no espírito, testificando aos judeus que Jesus era o Cristo”; mas os judeus
23 Com o muitos têm supervalorizado essa passagem, e outros a têm subestimado, será útil
relatarmos o que cremos ser o significado real dela. A decisão do apóstolo de não ser pesado
aos santos, como ele expressa de maneira forte aqui, aplica-se principal, senão exclusivamente,
à igreja de Corinto. Um importante princípio estava envolvido, o qual não era geral, mas de
particular aplicação ao caso de Paulo. Ele reconhece as dádivas das outras igrejas da forma mais
grata possível (Filipenses 4). E, mais tarde, escrevendo aos coríntios, ele diz: “Outras igrejas
despojei eu para vos servir, recebendo delas salário; e quando estava presente convosco, e tinha
necessidade, a ninguém fui pesado, porque os irmãos que vieram da Macedônia supriram a
minha necessidade; e em tudo me guardei de vos ser pesado, e ainda me guardarei” (2 Coríntios
11:8-9). Sem dúvida, o apóstolo tinha a melhor das razões para não ter qualquer comunhão
com a igreja em Corinto. Sabemos que ali havia muitos “falsos apóstolos” e inimigos; muitas
graves e sérias desordens no meio deles, as quais reprovou com veemência e tentou corrigilas. Sob tais circunstâncias, com receio de que seus motivos pudessem ser mal-interpretados,
o apóstolo preferia trabalhar com as próprias mãos a receber suporte financeiro da igreja em
Corinto. “Por quê? Porque não vos amo? Deus o sabe. Mas o que eu faço o farei, para cortar
ocasião aos que buscam ocasião, a fim de que, naquilo em que se gloriam, sejam achados assim
como nós” (2 Coríntios 11:11-12).
108 I A H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 5
se opuseram à sua doutrina e blasfemaram. Isso estimulou Paulo a seguir seu
caminho com grande ousadia e determinação. Ele sacudiu suas roupas como
um sinal de estar livre do sangue daquelas pessoas, e lhes declarou que iria para
os gentios. Em tudo isso ele foi dirigido por Deus e agiu de acordo com Sua
mente. Ele pregou na sinagoga o quanto pôde, e quando não teve mais como
permanecer ali, foi obrigado a usar um local mais conveniente. Em Efeso, pregou
na escola de Tirano; em Roma, “ficou dois anos inteiros na sua própria habitação
que alugara” (Atos 28:30); e aqui em Corinto, um prosélito chamado Justo
abriu sua casa para hospedar o apóstolo rejeitado.
Nessa crise em particular, Paulo foi favorecido com outra especial
revelação do próprio Senhor: “E disse o Senhor em visão a Paulo: Não temas,
mas fala, e não te cales; porque eu sou contigo, e ninguém lançará mão de ti
para te fazer mal, pois tenho muito povo nesta cidade. E ficou ali um ano e seis
meses, ensinando entre eles a palavra de Deus”. Mas novamente seus impiedosos
inimigos estavam ao derredor. O grande sucesso do Evangelho entre os gentios
despertou a ira dos judeus contra Paulo; e eles procuraram usar Gálio, o novo
governador, para executar suas más intenções.
Gálio era irmão de Sêneca, o filósofo, e, como este, inclinado à instrução.
Como governador foi sábio, justo e tolerante, apesar de tratar as coisas sagradas
com certo desprezo. Mas o Senhor, que estava com Seu servo conforme
prometera, usou a indiferença de Gálio para arrasar os maliciosos desígnios
dos judeus, e voltar as falsas acusações contra eles mesmos. Visto que os judeus
tiveram seus maus propósitos frustrados, o apóstolo desfrutou de maior liberdade
e menos incômodo na divulgação do Evangelho. Os abençoados frutos disso
logo se manifestaram por toda a província da Acaia (1 Tessalonicenses 1:8-9).
A R á p id a V isit a
de
Pa u lo
a
É feso
Chega o momento em que Paulo considera adequado deixar Corinto
e revisitar Jerusalém. Ele tem um grande desejo de estar na festa que se
aproximava. Mas antes de sua partida, ele se despede solenemente da jovem
assembléia, prometendo que voltaria, se o Senhor assim o quisesse.
Em paz e acompanhado de Aquila e Priscila, o apóstolo deixa Corinto.
Já no porto, aconteceu uma cerimônia que tem suscitado não pouca discussão.
Paulo, tendo feito um voto, raspou a cabeça em Cencréia. Temos certeza de
que em sua própria mente, e guiado pelo Espírito Santo, ele tinha convicção
de estar muito além de uma religião de cerimônias e votos, mas em graça
condescende com os costumes de sua nação. Ele se torna judeu para os judeus.
A s D u a s P r im e ir a s V i a g e n s d e P a u l o |
A constante oposição dele às doutrinas judaizantes e a violenta perseguição dos
judeus em relação a Paulo nunca enfraqueceu os sentimentos do apóstolo para
com seu amado povo, pois certamente isso provinha de Deus. Enquanto buscava
a energia do Espírito Santo para pregar aos gentios, por causa da fidelidade à
Palavra de Deus, ele jamais se esqueceu de pregar antes de tudo aos judeus.
Portanto, Paulo é um exemplo para nós da brilhante expressão da graça de Deus
aos gentios e da persistente afeição para com os judeus.
A equipe missionária chega a Éfeso. Paulo vai à sinagoga e debate com os
judeus. Estes parecem inclinados a ouvi-lo, porém o apóstolo tem um ardente
desejo de ir a Jerusalém e participar da festa. Então “se despediu deles, dizendo:
E-me de todo preciso celebrar a solenidade que vem em Jerusalém; mas querendo
Deus, outra vez voltarei a vós. E partiu de Efeso”.
A Q u a r t a V is it a
de
P a u lo a J e r u sa lé m
A narrativa sagrada não nos fornece qualquer informação acerca do que
aconteceu em Jerusalém nessa ocasião. Ela simplesmente nos diz que Paulo “subiu
a Jerusalém e, saudando a igreja, desceu a Antioquia”. No entanto, o intenso
desejo do apóstolo de ir a Jerusalém pode nos assegurar da grande importância
dessa visita. Talvez Paulo tenha sentido que chegara a hora dos judeus cristãos,
reunidos para a festa, ouvirem um completo relato da recepção do Evangelho
entre os gentios. As colônias romanas e as cidades gregas haviam sido visitadas,
e Deus tinha realizado uma obra poderosa. Tudo isso seria perfeitamente natural
e correto, mas nós não tentaremos remover o véu que o Espírito Santo colocou
sobre esse episódio.
Paulo vai de Jerusalém para Antioquia, revendo todas as assembléias que
formara e, de certo modo, unindo sua obra —Antioquia e Jerusalém. Até onde
sabemos, essa foi a última visita de Paulo a Antioquia. Já vimos como novos
centros de vida cristã foram estabelecidos por ele nas cidades gregas próximas ao
Egeu. A trilha do Evangelho ruma cada vez mais para o ocidente, e depois de
um curto período de profundo interesse na Judéia, a parte inspirada da biografia
do apóstolo finalmente se concentra em Roma.
O R eto rno
de
Pa u l o
a
A n t io q u ia
Após um período de viagens que abrangeu cerca de três ou quatro anos,
nosso apóstolo retorna a Antioquia. Ele percorreu longas distâncias e disseminou
o cristianismo em muitas cidades prósperas e populosas, e praticamente à
109
110 j A
H
is t ó r i a
d a I g r e ja - capítulo 5
custa de seus próprios esforços. Se o leitor quiser manter o interesse na história
de Paulo tem de marcar distintamente e conservar diante de si os principais
períodos na vida de Paulo, e os pontos primordiais em suas diferentes jornadas.
Mas antes de começar com Paulo em sua terceira viagem missionária, será muito
útil observarmos outro grande pregador do Evangelho, o qual surge em cena
exatamente nessa altura e cujo nome, abaixo de nosso apóstolo, talvez seja o mais
importante no início da história da igreja.
Apoio era um judeu nativo de Alexandria. Ele era “homem eloquente e
poderoso nas Escrituras... conhecendo somente o batismo de João”. Era piedoso,
fervoroso e justo, confessando e pregando publicamente o que conhecia, e o
poder do Espírito Santo era manifesto nele. Ao que parece, Apoio não tinha
recebido mandato, ordenação ou autorização de qualquer tipo, seja dos doze ou
de Paulo. Mas o Senhor que está acima de todos o chamara, agia nele e através
dele. Portanto, vemos no caso de Apoio a manifestação do poder e da liberdade
do Espírito Santo, sem nenhuma intervenção humana. Esse é um ponto que
merece atenção. O conceito de um clericalismo exclusivo é a negação prática da
liberdade que o Espírito Santo tem de agir por meio de quem Ele queira. No
entanto, apesar do ardente zelo e poderosa retórica, Apoio conhecia somente
aquilo que João havia ensinado aos seus discípulos. O Senhor sabia disso e
providenciou mestres para Apoio. Entre os que ouviram os discursos dele, dois
bem-instruídos discípulos de Paulo demonstraram um interesse especial. E
apesar de ser erudito e eloquente, ele foi humilde o bastante para permitir que
Áquila e Priscila o ensinassem. Eles o convidaram para a casa deles e, sem
dúvida com toda a humildade, “lhe declararam mais precisamente o caminho
de Deus”. Simples, espontâneo e belo! Tudo isso provinha de Deus. Ele fez com
que Áquila e Priscila ficassem em Efeso, que Apoio estivesse ali e despertasse o
povo de Efeso antes da chegada do apóstolo e que, após ter sido ensinado, fosse
a Corinto para ajudar a boa obra iniciada lá por Paulo. Apoio regou o que Paulo
plantou, e Deus deu abundante crescimento. Em Seu cuidadoso amor e gentil
afeto, esses foram os maravilhosos caminhos do Senhor para com todos os Seus
servos e todas as Suas assembléias.
6
V ia g e m
A T e r c e ir a
M is s io n á r ia
de
Pa u l o
(em 54 d.C.)
epois de passar “algum tempo” em Antioquia, Paulo deixa esse centro
V i
1 gentio e inicia outra viagem missionária. Desta vez nada é dito sobre
vW
seus companheiros. Ele “partiu, passando sucessivamente pela província
da Galácia e da Frigia, confirmando a todos os discípulos” (Atos 18:23); e dando
também instruções relativas à coleta destinada aos santos de Jerusalém (1 Coríntios
16:1-2). Em pouco tempo chegou à base de seu trabalho na Ásia.
Éfeso. Nessa época era a maior cidade da Ásia Menor, e a capital da
província. Devido à sua posição central, era um local de encontro de toda
classe de gente. Apoios já havia partido de Corinto, mas doze remanescentes
dos discípulos de João ainda estavam ali. Paulo fala sobre o estado ou condição
deles. Temos de ver rapidamente o que aconteceu.
O batismo de João exigia arrependimento, mas não a separação da sinagoga
judia. O Evangelho ensina que o cristianismo está baseado sobre a morte e res­
surreição de Cristo. O batismo cristão é um símbolo marcante e significativo
dessas verdades. “Sepultados com ele no batismo, nele também ressuscitastes pela
fé no poder de Deus, que o ressuscitou dentre os mortos” (Colossenses 2:12).
Como aqueles homens estavam inteiramente alheios às verdades fundamentais
1 1 2 I A H is t ó r i a
da
I g r e ja - capítulo 6
do cristianismo, supomos que jamais se misturaram com os cristãos. O apóstolo,
sem dúvida, lhes explicou a eficácia da morte e ressurreição de Cristo, e também
sobre a descida do Espírito Santo. Eles creram e receberam o batismo cristão.
Então Paulo, em sua autoridade apostólica, impôs suas mãos sobre eles, foram
selados com o Espírito, “e falavam línguas, e profetizavam” (Atos 19:6).
Imediatamente após a menção desse importante fato, nossa atenção
é dirigida para o trabalho do apóstolo na sinagoga. Durante três meses,
ousadamente pregou a Cristo ali, argumentando e tentando convencer seus
ouvintes de todas as coisas “acerca do reino de Deus” (Atos 19:8). O coração
de alguns permaneceu endurecido, ao passo que outros se arrependeram e
creram; mas como muitos dos judeus se aliassem aos adversários, “falando mal
do Caminho perante a multidão”, Paulo age da forma mais assertiva possível.
Ele “separou os discípulos” da sinagoga judia, e os ajunta em um grupo distinto,
reunindo-se com eles na “escola de um certo Tirano”. Essa atitude do apóstolo
é bastante instrutiva e interessante, mas ele age na plena consciência do poder
e da verdade de Deus. A Igreja em Éfeso agora está perfeitamente diferenciada
dos judeus e dos gentios. Vemos aqui o que o apóstolo se referiu mais tarde em
sua exortação: “Portai-vos de modo que não deis escândalo nem aos judeus, nem
aos gregos, nem à igreja de Deus” (1 Coríntios 10:32). Onde essa vital distinção
não é percebida, há uma enorme confusão quanto à Palavra e os caminhos de
Deus.
O apóstolo nos é mostrado como um instrumento do pode de Deus de uma
maneira notável e impressionante. Por meio dele, o Espírito Santo é derramado
sobre os doze discípulos de João, os discípulos de Jesus são separados e a Igreja
em Éfeso é formalmente fundada. O testemunho de Paulo acerca do Senhor
Jesus ressoa em toda a Ásia, tanto entre os judeus como entre os gregos; milagres
espetaculares são feitos por suas mãos, muitos são curados apenas tocando nos
lenços e aventais de Paulo. O poder do inimigo desaparece diante do poder
que estava em Paulo, e o nome de Jesus é glorificado. Os espíritos malignos
reconheciam tal poder, seus inimigos eram expostos à vergonha e à perda; a
consciência dos ímpios era tocada e o domínio satânico sobre eles desfeito. O
temor caiu sobre muitos que praticavam magia, a ponto de queimarem seus
livros de mágica. O valor dos livros queimados era extraordinário. “Assim a
palavra do Senhor crescia poderosamente e prevalecia” (Atos 19:1-20). O poder
do Senhor se revelou na pessoa e na obra de Paulo e seu apostolado ficou esta­
belecido de forma inquestionável.
O apóstolo passa cerca de três anos trabalhando intensamente em Éfeso.
Ele mesmo diz isso ao se dirigir aos anciãos de Mileto: “Portanto, vigiai,
A T
e r c e ir a
V ia g e m
de
Pau lo
lembrando-vos de que durante três anos, não cessei, noite e dia, de admoestar
com lágrimas a cada um de vós” (Atos 20:31). Alguns historiadores também
acreditam que durante esse período ele fez uma curta visita a Corinto e tenha
escrito a Primeira Epístola aos Coríntios.
O T u m u lto
em
É feso
Uma grande e abençoada obra está sendo realizada pelo poder do Espírito
de Deus, por meio da instrumentalidade de Seu servo escolhido, Paulo. O
Evangelho foi plantado na capital da Ásia, e dali se espalhou pela província
inteira. O apóstolo sente como se seu trabalho naquele lugar tivesse acabado,
e deseja ir para Roma, capital do ocidente e metrópole do mundo. A Grécia
e a Macedônia já haviam recebido o Evangelho, mas ainda havia Roma. “E,
cumpridas estas coisas, Paulo propôs, em espírito, ir a Jerusalém, passando pela
Macedônia e pela Acaia, dizendo: Depois que houver estado ali, importa-me ver
também Roma” (Atos 19:21).
Mas enquanto Paulo estava fazendo os preparativos para outra viagem,
o inimigo também preparava um novo ataque. Os recursos satânicos ainda
não tinham chegado ao fim. Demétrio incitou a multidão ignorante contra
os cristãos. Um enorme tumulto se formou, os ânimos se exaltaram contra os
instrumentos do testemunho de Deus. Os artesãos deram início à gritaria, não
apenas porque o ganha-pão deles estava em jogo, mas porque o próprio templo
da grande deusa Diana corria risco de ser desprezado. Quando a multidão ouviu
essas coisas, se encheram de ira e bradaram: “Grande é a Diana dos efésios”
(Atos 19:34). A cidade inteira foi tomada pela confusão, mas Paulo foi miseri­
cordiosamente preservado —por seus irmãos, e por alguns dos líderes na Ásia,
os quais eram amigos dele —de aparecer no teatro.
Os judeus, evidentemente, começaram a temer que a perseguição se
voltasse contra eles mesmos, pois a maioria não sabia por qual razão aquilo
estava acontecendo. Eles, portanto, trouxeram para frente um certo Alexandre,
talvez com a intenção de colocar a culpa nos cristãos; mas no instante em que
os ímpios descobriram que Alexandre era judeu, a ira de todos se inflamou,
e por um espaço de quase duas horas, o povo gritou: “Grande é a Diana dos
efésios”. Felizmente para todas as partes, o escrivão da cidade era um homem de
grande tato e admirável diplomacia. Ele acalmou, aliviou, lisonjeou e despediu
a multidão. Mas nós, os que cremos, sabemos que foi Deus quem usou a
eloqüência persuasiva daquele oficial ímpio para proteger Seu servo e muitos de
Seus filhos ali.
114 |
A H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 6
O famoso templo de Diana era considerado pelos antigos como um das
maravilhas do mundo antigo; dizia-se que não havia nada mais magnífico
no percurso do sol que o templo de Diana. Ele era construído do mais puro
mármore e levou cerca de 220 anos para ficar pronto. Mas com o crescimento
do cristianismo entrou em decadência, e hoje nem sequer restam ruínas para
que possamos determinar a sua localização original. O ofício de Demétrio era
fazer miniaturas em prata desse templo, que eram colocadas nas casas, guardadas
como memoriais ou usadas como amuleto em viagens. A introdução do cristia­
nismo necessariamente afetaria a venda dessas peças, e por isso os artesãos foram
instigados por Demétrio para suscitar um clamor popular a favor de Diana e
contra os cristãos.
*
*
*
Pa u l o d e ix a É feso
E PARTE PARA A MACEDÔNIA
Atos 20. Depois que o tumulto cessou, o perigo acabou e os desordeiros
foram dispersos, Paulo manda chamar os discípulos, se despede deles e parte
para a Macedônia. Dois dos irmãos efésios, Tíquico e Trófimo, o acompanham e
permanecem fiéis a ele durante todas as suas aflições. Ambos são freqüentemente
mencionados, e aparecem no último capítulo da última epístola de Paulo, ou
seja, 2 Timóteo 4:12 e 20.
O historiador sagrado é excessivamente conciso quanto ao relato dos pro­
cedimentos de Paulo nessa ocasião. Toda a informação que ele dá está resumida
nas seguintes palavras: “E partiu para a Macedônia. E, havendo andado por
aquelas terras, exortando-os com muitas palavras, veio à Grécia. E passando ali
três meses... determinou voltar pela Macedônia”. Em geral se supõe que essas
breves palavras cubram um período de nove ou dez meses —do início do verão
de 57 d.C. à primavera de 58 d.C.. Mas essa falta de informações felizmente é
suprida pelas cartas do apóstolo, que foram escritas durante suas viagens e que
nos suprem com muitos detalhes históricos e nos dão um vívido quadro do que
se passava no coração e na mente de Paulo.
Parece que Paulo tinha se preparado para encontrar Tito em Trôade, o
qual trazia novidades de Corinto. Mas semana após semana se passava e Tito
não vinha. Sabemos um pouco sobre a obra do apóstolo nesse período, a partir
do que ele fala acerca de si mesmo: “Ora, quando cheguei a Trôade para pregar
o evangelho de Cristo, e abrindo-se-me uma porta no SENHOR, não tive descanso
no meu espírito, porque não achei ali meu irmão Tito; mas, despedindo-me
A T
e r c e ir a
V ia g e m
de
Pa u l o
deles, parti para a Macedônia” (2 Coríntios 2:12-13). Sua ansiedade, contudo,
não o impediu de continuar com a grande obra do Evangelho. Isso fica evidente
nos versículos 14 a 17.
Finalmente, o tão esperado Tito chegou à Macedônia, provavelmente
em Filipos. E agora Paulo está aliviado e confortado. Tito traz boas novidades
de Corinto, melhores até do que Paulo esperava ouvir. A reação é: “Grande é
a ousadia da minha fala para convosco, e grande a minha jactância a respeito
de vós; estou cheio de consolação; transbordo de gozo em todas as nossas
tribulações. Porque, mesmo quando chegamos à Macedônia, a nossa carne
não teve repouso algum; antes em tudo fomos atribulados: por fora combates,
temores por dentro. Mas Deus, que consola os abatidos, nos consolou com a
vinda de Tito” (2 Coríntios 7:4-6).
Logo depois disso, Paulo escreve sua Segunda Epístola aos Coríntios, onde
não se dirige apenas a eles, mas a todas as igrejas na Acaia. Todas foram mais ou
menos afetadas pelo que acontecia em Corinto. Tito é de novo o servo enviado
do apóstolo, não apenas para entregar a segunda carta à igreja em Corinto,
mas como alguém que possuía um interesse especial nas ofertas que ali seriam
recolhidas para os pobres. Paulo não somente deu instruções detalhadas a Tito
acerca das ofertas, mas escreveu dois capítulos sobre esse assunto (8 e 9), embora
isso fosse mais da alçada dos diáconos que propriamente dos apóstolos. Porém,
ele havia dito em resposta à sugestão de Tiago, Pedro e joão que se lembraria
dos pobres. “Recomendando-nos somente que nos lembrássemos dos pobres, o
que também procurei fazer com diligência’ (Gálatas 2:10).
O espaço que o apóstolo reserva a tudo o que se relaciona com a coleta para
os pobres é singular, e merece nossa total atenção. Talvez algum de nós tenhamos
ignorado essas passagens e, como consequência, sofrido perdas em nossas vidas
espirituais. Note, por exemplo, o que ele diz de uma determinada igreja. Temos
boas razões pra crermos que os filipenses, desde o início, se preocuparam com o
apóstolo - eles o pressionaram a aceitar as contribuições para o seu sustento desde
a primeira visita de Paulo a Tessalônica até sua prisão em Roma, sem falar na
liberalidade deles para com os outros (2 Coríntios 8:1-4). Poderíamos imaginar,
portanto, que eles eram uma congregação rica. Exatamente o oposto. Paulo nos
diz como “no meio de muita prova de tribulação, manifestaram abundância
de alegria, e a profunda pobreza deles superabundou em grande riqueza da sua
generosidade” (2 Coríntios 8:2). Era justamente por causa da grande pobreza
em que viviam é que davam com tamanha generosidade.
O que os filipenses eram nas epístolas, a viúva pobre era nos Evangelhos —
duas moedinhas era tudo o que possuía. Ela poderia ter dado uma e ficado com
a outra; mas a viúva não tinha um coração dividido e, portanto, deu as duas.
115
116 I A
H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 6
Ela, também, por causa de sua pobreza, deu generosamente, e onde o Evangelho
for pregado, essa história será contada como um memorial à liberalidade dos
filipenses e da viúva.
Depois de ter enviado Tito e seus companheiros, ele permaneceu na Grécia
fazendo o trabalho de evangelista. Seu coração, no entanto, estava desejoso de
ver os coríntios pessoalmente; mas ele deixou o tempo passar para que a carta
que lhes enviou produzisse efeitos debaixo da benção de Deus. Um dos objetivos
do apóstolo era preparar o caminho para sua ministração pessoal entre eles.
Existe um consenso de que foi durante esse tempo de espera que ele pregou o
Evangelho de Cristo “desde Jerusalém, e arredores, até ao Ilírico” (Romanos
15:19). E provável que tenha chegado a Corinto no inverno, de acordo com
sua expressa intenção: “E bem pode ser que fique convosco, e passe também o
inverno” (1 Coríntios 16:6). Ali ficou por três meses.
Podemos dizer que é de opinião geral que nesses meses de inverno
Paulo tenha escrito a grande Epístola aos Romanos. Alguns autores também
afirmam que a Epistola aos Gálatas foi escrita ao mesmo tempo. Mas há
uma diversidade de opiniões entre os cronologistas sobre esse ponto. Tomando
como base a ausência de nomes e de saudações, tais como temos na Epístola
aos Romanos, é difícil precisar a data. Mas se ela não foi escrita nesse período,
deve ter sido um pouco antes, não depois. O apóstolo ficou surpreso com o
rápido desvio da verdade. “Maravilho-me de que tão depressa passásseis daquele
que vos chamou à graça de Cristo para outro evangelho” (Gálatas 1:6). Seu
grande desapontamento é manifesto no calor do espírito com o qual escreve a
epístola.
Mas retornemos à história de nosso apóstolo: as minúcias da cronologia
não cabem em nossas “notas”. Porém, após compararmos os últimos escritos,
relataremos o que acreditamos ser as datas mais confiáveis.
Pa u lo
d e ix a
C o r in t o
O trabalho do apóstolo em Corinto agora chegou ao fim, e ele se prepara
para deixar a cidade. Sua mente estava voltada para Roma; mas havia uma
missão de caridade em seu coração, à qual ele tinha de cumprir em primeiro
lugar. Somos brindados com as próprias palavras dele acerca dessas diferentes
posições. “Mas agora, que não tenho mais demora nestes sítios, e tendo já há
muitos anos grande desejo de ir ter convosco, quando partir para Espanha irei ter
convosco; pois espero que de passagem vos verei, e que para lá seja encaminhado
por vós, depois de ter gozado um pouco da vossa companhia. Mas agora vou a
A T e r c e i r a V ia g e m d e P a u l o | 1
Jerusalém para ministrar aos santos. Porque pareceu bem à Macedônia e à Acaia
fazerem uma coleta para os pobres dentre os santos que estão em Jerusalém”
(Romanos 15:23-26). Supõe-se que a lista de nomes em Atos 20:4 - Sópater,
Aristarco, Segundo, Gaio, Timóteo, Tíquico e Trófimo —seja de irmãos respon­
sáveis pela coleta feita nos diferentes lugares mencionados. Ao invés de navegar
direto para a Síria, eles voltaram pela Macedônia, por causa dos judeus que o
aguardavam lá. Seus companheiros, por sua vez, o esperavam em Trôade, onde
ele ficou por uma semana inteira, para ver os irmãos.
Temos de parar por um momento para observar o que acontece neste
estágio da jornada de Paulo. Duas coisas, importantes para todo cristão, estão
presentes aqui: o Dia do Senhor e a Ceia do Senhor. O escritor, que estava
com Paulo neste instante, relata os detalhes daquele dia com uma minúcia
incomum.
Fica evidente a partir dessa nota incidental que era um costume entre
os cristãos primitivos se reunirem no “primeiro dia da semana” para “partir o
pão”. Temos aqui o principal propósito e o tempo usual para se reunirem. “E no
primeiro dia da semana, ajuntando-se os discípulos para partir o pão, Paulo,
que havia de partir no dia seguinte, falava com eles” (Atos 20:7; 1 Coríntios
16:2; João 20:19; Apocalipse 1:10). Até mesmo o discurso do apóstolo, precioso
como era, é colocado como algo secundário. A lembrança do amor do Senhor
ao morrer por nós, e de tudo o que Ele conquistou ao ressuscitar, era, e é, o
essencial. Se existe uma oportunidade para ministrar a Palavra, e para levar os
pensamentos e sentimentos dos adoradores a Cristo, ela tem de ser aproveitada,
porém, o partir do pão tem de ter a primazia e ser a razão primordial da reunião
da assembléia. A celebração da Ceia do Senhor nessa ocasião se alongou até tarde
da noite. Nos primeiros tempos, ela acontecia em alguns lugares durante o dia;
em outros, após o pôr-do-sol. Mas aqui os discípulos não eram obrigados a se
reunirem em segredo, “havia muitas luzes no cenáculo onde estavam juntos.” E
Paulo continuou falando até a meia-noite, pois iria partir no dia seguinte. Era
uma ocasião ímpar, e Paulo aproveitou para lhes falar a noite toda. Ainda não
havia chegado o tempo no qual os ternos discursos do coração seriam cronome­
trados, quando a duração da ardente agonia do pregador pelas almas perdidas
seria contada no relógio pela frieza ou indiferença dos cristãos mundanos.
Eutico, um jovem, vencido pelo sono, “caiu do terceiro andar... e foi levantado
morto”. Alguns têm considerado esse fato como um castigo pela desatenção,
porém, um milagre foi realizado: o jovem foi resgatado da morte pelo poder e
bondade de Deus por meio de Seu servo Paulo, e todos ficaram grandemente
reconfortados.
1 8 I A H ís t ó r i a
da
I g r e ja - capítulo 6
Pa u l o
em
M
ileto
O ponto mais importante desta viagem é Mileto, embora os diferentes
lugares pelos quais passaram tenham sido cuidadosamente registrados pelo
historiador sagrado. Paulo, cheio do Espírito Santo, dita os rumos da jornada.
Seus companheiros voluntariamente o obedecem, não como a um senhor, mas
como alguém impulsionado na humildade do amor e na sabedoria de Deus. Ele
planeja não ir a Efeso, embora esse fosse um lugar central, pois tinha em seu
coração estar em Jerusalém no dia de Pentecostes. Mas como o navio teria de se
demorar algum tempo em Mileto, ele pede que os anciãos da igreja em Êfeso
venham até seu encontro. A distância era de aproximadamente 48 quilômetros,
portanto, seriam necessários dois ou três dias para ir a Mileto e voltar para Efeso,
mas eles tinham tempo suficiente para essa reunião antes da partida do navio.
O Senhor cuida de Seu servo e faz tudo cooperar juntamente para o bem dele
e para Sua própria glória.
O discurso de Paulo aos anciãos de Efeso é singular e representativo.
Requer nosso mais minucioso estudo. Ele demonstra a profunda e comovente
afeição do apóstolo, a situação da igreja naquele período, e a obra do Evangelho
entre as nações. Ele os exorta com incomum severidade e ternura; sabia que
estava falando àqueles irmãos pela última vez, portanto, os relembra de como
se portou entre eles, “servindo ao Senhor com toda a humildade, e com muitas
lágrimas” (v. 19). Paulo os adverte contra os falsos mestres e as heresias —os lobos
vorazes que penetrariam na igreja, e os homens que se levantariam entre eles
mesmos falando coisas pervertidas com o propósito de arrebanhar seguidores.
“E, havendo dito isto, pôs-se de joelhos, e orou com todos eles. E levantou-se
um grande pranto entre todos e, lançando-se ao pescoço de Paulo, o beijavam,
entristecendo-se muito, principalmente pela palavra que dissera, que não veriam
mais o seu rosto. E acompanharam-no até o navio”.
O testemunho de Paulo é da maior importância e marca uma fase
distinta na história da igreja, além de lançar a luz divina sobre todos os sistemas
clericais. Por isso, a seguir estão registrados os pensamentos de certo autor sobre
a abrangência e amplitude desse discurso.
“A igreja estava consolidada sobre uma extensa área do território, e em
diversas partes, havia tomado a forma de uma instituição comum, como as
outras tantas existentes. Anciãos eram estabelecidos e reconhecidos. O apóstolo
os convocou para uma reunião. A autoridade deles também era reconhecida pelo
apóstolo. Paulo fala de seu ministério como algo passado —pensamento solene!
(...) Assim, o que o Espírito Santo coloca aqui diante de nós é que, no momento
em que os detalhes do trabalho de Paulo de plantar igrejas são relatados como
A T
e r c e ir a
V ia g e m
de
Pa u lo | 1
um panorama entre os judeus e gentios, ele diz adeus ao trabalho, em vez de
dar a seus ouvintes uma nova direção e os deixa, em certo sentido, entregues
a si mesmos. E um discurso que marca o fim de uma fase da igreja - a das
obras apostólicas —e o começo de outra. Que enfatiza a responsabilidade da
igreja de não esmorecer agora que o trabalho apostólico está terminado; que
assinala o serviço dos anciãos, os quais o Espírito Santo constituiu bispos (v.
28); explicita os perigos e as dificuldades que viriam como decorrência do fim
da era apostólica, e que complicariam o trabalho dos anciãos, sobre quem a
responsabilidade agora recairia.
“A primeira observação que flui do exame desse discurso é que a sucessão
apostólica é inteiramente negada. Devido à ausência do apóstolo, muitas dificul­
dades surgiriam e não haveria ninguém no lugar dele para enfrentar ou prevenir
tais problemas. Portanto, Paulo não tinha nenhum sucessor. Em segundo lugar,
parece que esse poder, que restringe o espírito do mal, uma vez afastado, daria
espaço para que lobos devoradores vindos de fora, juntamente com mestres de
doutrinas pervertidas vindos do meio dos irmãos, levantassem suas cabeças e
atacassem a simplicidade e a felicidade da igreja. Esta seria afligida pelos esforços
de Satanás, sem ter a força apostólica para lhe opor resistência. Em terceiro
e último lugar, o que de primordial deveria ser feito para impedir o mal era
alimentar o rebanho, e vigiar, tanto por si mesmo como pelo rebanho. Então
ele os encomenda (de tal maneira que elimina todos os recursos oficiais) - não a
Timóteo ou a qualquer bispo, mas a Deus e à palavra de Sua graça. Nesse ponto
ele deixa a Igreja. Os trabalhos do apóstolo dos gentios em liberdade haviam
chegado ao final. Ele fora o instrumento escolhido de Deus para comunicar ao
mundo os desígnios divinos quanto à igreja e estabelecer na mente do mundo
esse precioso objeto de Seu amor. O que seria dela aqui?”24
Atos 21. Com vento favorável, Paulo e seus companheiros partiram de
Mileto por navio, enquanto os pesarosos anciãos de Éfeso se preparavam para
a viagem de volta. Navegaram para Cós, Rodes, de onde passaram a Pátara e
Tiro. A partir do que ocorreu ali - tão similar à cena de Mileto -, é evidente que
Paulo conquistou o coração dos discípulos. O apóstolo não conhecia os cristãos
de Tiro, mas embora tenha ficado apenas uma semana, ganhou a afeição deles.
“E, havendo passado ali aqueles dias, saímos, e seguimos nosso caminho, acompanhando-nos todos, com suas mulheres e filhos até fora da cidade; e, postos
de joelhos na praia, oramos.” O espírito de profecia foi derramado sobre esses
afetuosos cristãos de Tiro, pois advertiram o apóstolo a não ir para Jerusalém.
Após permanecer ali sete dias, foram para Ptolemaida, onde ficaram um dia.
2q The Present Testemony [O Atual Testemunho], v. 8, p. 405-407.
120 I A
H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 6
Em Cesaréia, se hospedaram na casa de Filipe, o evangelista. Este já nos é bem
conhecido, mas é bastante interessante encontrá-lo novamente, cerca de vinte
anos depois. Agora ele tinha sete filhas, virgens, que profetizavam. Aqui Ágabo,
o profeta, falou sobre o aprisionamento de Paulo, e suplicou que o apóstolo não
fosse para Jerusalém. Todos os discípulos disseram a mesma coisa, e lhe rogaram
com muitas lágrimas a não subir. No entanto, por mais que o coração sensível e
cuidadoso de Paulo tenha se comovido com as lágrimas e súplicas de seus amigos
e filhos na fé, ele determinou a não mudar sua decisão nem a se afastar de seu
propósito. Ele se sentia constrangido no espírito a ir, e estava pronto para deixar
todas as conseqüências com Deus e Sua vontade.
A
Q u i n t a V is it a d e P a u lo a Je r u sa lé m
(por volta de 58 d.C.)
O apóstolo e seus companheiros foram muito bem recebidos na chegada
a Jerusalém. “Lucas declara: “E, logo que chegamos a Jerusalém, os irmãos
nos receberam de muito boa vontade.” No dia seguinte, os viajantes visitarem
Tiago, em cuja casa os anciãos estavam presentes. Paulo, como orador principal,
expunha particularmente as coisas que Deus havia realizado entre os gentios
por intermédio de seu ministério. Contudo, apesar de estarem grandemente
interessados, e de louvarem ao Senhor pelas boas noticias, era evidente que eles
se sentiam incomodados. Certa vez tinham chamado a atenção de Paulo para
o fato de que um grande número de judeus que criam em Jesus como Messias
eram zelosos observadores da lei de Moisés e tinham um enorme preconceito
para com o próprio Paulo.
Como fazer cessar os preconceitos desses judeus cristãos se tornou,
portanto, a questão mais urgente entre Paulo e os anciãos. Milhares de judeus,
convertidos e não-convertidos, iriam se ajuntar assim que ouvissem sobre a
chegada de Paulo. Eles acreditavam há muito tempo nas sérias e graves acusações
contra ele, ou seja, “que ensinas todos os judeus que estão entre os gentios a
apartarem-se de Moisés, dizendo que não devem circuncidar seus filhos, nem
andar segundo o costume da lei”. O que teria de ser feito então? Os anciãos
propuseram que Paulo mostrasse publicamente que obedecia à lei. Isso foi algo
doloroso e desconcertante para o apóstolo dos gentios. O que ele pode fazer
agora? Será que o mensageiro do Evangelho da glória - o ministro da chamada
celestial, iria se render às regras dos votos nazireus? Essa é uma questão muito
séria. Se ele se recusasse a ceder ao desejo deles, a suspeita dos judeus ficaria
A T e r c e i r a V ia g e m d e P a u l o
confirmada; se ele concordasse, teria de se humilhar, colocar seu alto chamado
em segundo plano, render-se à ignorância, preconceito e orgulho dos judaizantes.
Porém o que mais ele poderia fazer? Paulo estava no centro do judaísmo fanático,
e desejava sinceramente conquistar a igreja em Jerusalém para levá-la a um cris­
tianismo mais puro e superior.
Muitos têm sido bastante arbitrários ao criticar a atitude do apóstolo nessa
ocasião. Mas embora seja nosso privilégio examinar com humildade tudo o que
o historiador sagrado escreveu, tememos ter nos arriscado a dizer coisas muito
duras sobre o apóstolo. Reverentemente podemos inquirir o quanto a vontade e
os sentimentos de Paulo o influenciaram aqui, além das advertências do Espírito
dera por meio dos irmãos; mas, com certeza, devemos nos manter dentro dos
limites do que o próprio Espírito Santo relata. Agora iremos examinar com
cuidado os fatos exteriores que levaram o apóstolo a esse momento turbulento
de sua vida.
Roma estava há muito tempo na mente de Paulo. Ele tinha um grande
desejo de pregar o Evangelho lá. Isso era certo, estava de acordo com a vontade
de Deus, e não vinha dele mesmo, pois Paulo era o apóstolo dos gentios. Deus já
operava ali grandemente, pois nem Paulo nem Pedro, ou qualquer outro apóstolo
tinha visitado Roma. Paulo teve o privilégio de escrever uma epístola aos cristãos
romanos, na qual expressa o mais profundo desejo de vê-los e de trabalhar entre
eles. “Porque desejo ver-vos, para vos comunicar algum dom espiritual, a fim
de que sejais confortados.” Esse era seu estado de espírito e o objetivo que tinha
diante de si, o qual nós também devemos manter em vista ao estudarmos essa
parte da história paulina (Romanos 1:7-15; 15:15-33).
O F im d o s T r a b a l h o s
em L ib e r d a d e
de
P a u lo
Agora chegamos a uma importante questão, e ao ponto de virada na
história futura de Paulo. Ele seguiria direto para Roma ou iria para o lado oposto,
para Jerusalém? Tudo depende disso. Jerusalém também estava no coração
de apóstolo. Mas se Cristo o tinha enviado aos gentios, o mesmo Espírito da
parte de Cristo, o guiaria a Jerusalém? E acreditamos que foi aqui que o grande
apóstolo se permitiu seguir os desejos de seu coração, desejos belos e corretos em
si mesmos, mas não de acordo com a vontade de Deus para aquele momento. Ele
amava essa nação profundamente, e em especial, os santos pobres de Jerusalém;
e, tendo sido bastante mal-interpretado ali, Paulo queria provar seu amor pelos
judeus pobres lhes trazendo pessoalmente as ofertas dos gentios. “Assim que,
121
122 I A
H
is t o r ia d a
I g r e ja - capítulo 6
concluído isto, e havendo-lhes consignado este fruto, de lá, passando por vós, irei
à Espanha” (Romanos 15:28). Com toda certeza, isso era louvável e nobre. Sim,
mas isso provinha de um lado apenas e, infelizmente, esse lado era o da carne, e
não do Espírito. “E, achando discípulos, ficamos ali sete dias; e eles pelo Espírito
diziam a Paulo que não subisse a Jerusalém” (v. 4). E bem claro, mas Paulo estava
inclinado a cumprir sua vontade de suprir os “pobres dentre os santos que estão
em Jerusalém” (Romanos 15:26). Acaso poderia existir um erro mais perdoável?
Impossível! Foi o amor dele pelos pobres, e o prazer de levar-lhes as ofertas dos
gentios que conduziu Paulo, em seu caminho para Roma, a dar a volta indo para
Jerusalém. No entanto, isso continuou sendo um erro, erro esse que custaria a
liberdade do apóstolo. Os trabalhos de Paulo em liberdade se encerram aqui. Ele
deu vazão à carne, e Deus permitiu que os gentios lhe prendessem com grilhões.
Essa foi a expressão do mais verdadeiro amor do Mestre por Seu servo. Paulo era
muito precioso para que o Senhor o deixasse sem a justa disciplina nessa ocasião.
Também provaria que a metrópole do cristianismo não era Jerusalém nem
Roma. Cristo, o Cabeça da Igreja, está nos céus, e é somente onde a metrópole
do cristianismo tem de ser. Jerusalém perseguiu o apóstolo, Roma o aprisionou e
o martirizou. Contudo, o Senhor estava com Seu servo, agindo para o bem dele,
para o avanço da verdade, a benção da igreja, e a glória de Seu excelso nome.
Pausa para fazermos uma reflexão aqui. Em quantas histórias, desde a
quinta visita a Jerusalém, essa cena está gravada? Quantos santos têm estado
agrilhoados por cadeias de diversos tipos, mas quem pode dizer o por quê ou
por qual motivo? Todos nós diríamos - a menos que iluminados pelo Espírito
Santo que o apóstolo não poderia ter atuado com a motivação mais nobre em
ir para Jerusalém. Mas o Senhor havia dito para ele não fazer isso. Tudo giram
em torno disso. Como é indispensável constatarmos, em cada passo de nossa
jornada, que temos a Palavra de Deus como regra de fé, a obra de Cristo como
motivação, e o Espírito Santo como guia. Agora voltemos aos fatos.
Deixamos Paulo com os anciãos reunidos na casa de Tiago. Eles haviam
sugerido um processo de conciliação com os judeus crentes, e a refutação
das acusações de seus inimigos. Deslealdade para com sua nação e para com
a religião de seus pais eram as principais acusações contra ele. Mas sob a
superfície dos eventos, e especialmente tendo a luz dos apóstolos iluminando a
cena, descobrimos que a raiz de toda a questão está na inimizade do coração
humano contra a graça de Deus. Para entendermos isso, temos de compreender
que o ministério de Paulo era duplo: 1) sua missão era pregar o Evangelho “a
toda criatura que há debaixo do céu, e do qual eu, Paulo, estou feito ministro”
(Colossenses 1:23) - missão essa que não apenas ultrapassou os limites do
judaísmo, mas era totalmente antagônica a ele: 2 ) Paulo também era ministro da
A T
e r c e ir a
V
ia g e m d f,
Paulo !
í
Igreja de Deus, e pregava a exaltada posição dela e seus maravilhosos privilégios
por estar unida a Cristo, o Homem glorificado nos céus. Essas benditas verdades
tratarão de elevar a alma do crente muito acima da religião da carne, tão
apurada, tão rica em cerimoniais e ritos. Votos de jejuns, festas, ofertas, purifi­
cações, tradições e filosofias são práticas consideradas inúteis diante de Deus, e
opostas à própria natureza do cristianismo. Isso exasperava tantos os religiosos
judeus, fortemente apegados às suas tradições, quanto aos incircuncisos gregos,
com todas suas diversas filosofias. Ambos se uniram para perseguir o porta-voz
desse duplo testemunho. E tem sido assim desde então. Os religiosos com suas
ordgnancas e os ímpios com suas filosofias, por natureza, prontamente se opõem
ao testemunho do cristianismo celestial. Veja Colossenses 1 e 2.
Se Paulo pregasse a circuncisão, a ofensa da cruz seria eliminada, pois isso
daria aos judeus um espaço e uma oportunidade de ser e fazer alguma coisa,
e até de participar com Deus de Sua religião. Nisso consistia o judaísmo, e era
o que conferia ao judeu seu senso de importância. Mas o Evangelho da graça
de Deus mostra os homens como criaturas já perdidas - “mortos em ofensas e
pecados” (Efésios 2:1) - sem qualquer distinção entre judeus ou gentios. O sol
no firmamento brilha para todos. Nenhuma nação, nenhuma família, língua
ou povo fica excluído de seus raios. Pregar o Evangelho “a toda criatura que
há debaixo do céu” é a ordem divina e o grande campo de trabalho de um
evangelista; ensinar os que crêem nesse Evangelho acerca da perfeição que
possuem em Cristo é privilegio e dever de todo ministro do Novo Testamento.
Tendo, portanto, esclarecido as motivações, objetivos e a posição do
grande apóstolo, iremos resumir a história do restante de sua memorável vida.
Chegou o tempo em que ele estaria diante de reis e governantes, e até mesmo
diante do próprio César, por causa do nome de Jesus.
P a u lo n o T em plo
Obedecendo a proposta de Tiago e dos anciãos, Paulo agora segue para
o templo, com “quatro homens que fizeram voto”. “Paulo, tomando consigo
aqueles homens, entrou no dia seguinte no templo, já santificado com eles,
anunciando serem já cumpridos os dias da purificação; e ficou ali até se oferecer
por cada um deles a oferta”. Na conclusão do voto do nazireado, a Lei exigia que
certas ofertas fossem oferecidas no templo. Tais ofertas envolviam uma grande
soma de dinheiro, como vemos em Números 6. Considerava-se um ato de muita
honra e piedade um irmão rico pagar tais ofertas para um irmão pobre e assim
possibilitar que este completasse seu voto. Paulo não era rico, mas tinha um
coração grande e generoso, e graciosamente se incumbiu das despesas dos quatro
123
124 [ A
H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 6
nazireus pobres. Tal prontidão da parte de Paulo em agradar alguns e ajudar a
outros deveria ter aquietado e aplacado os judeus e, provavelmente, teria se tão
somente estivessem presentes os que estavam associados a Tiago, mas teve um
efeito contrário nos inveterados zelotes: eles ficaram ainda mais furiosos com
Paulo. A celebração da festa atraía multidões para Jerusalém, portanto, o templo
estaria apinhado de adoradores de todas as partes do mundo.
Entre esses judeus estrangeiros estavam alguns vindos da Ásia, talvez
inimigos antigos de Paulo, que moravam em Efeso e aguardavam apenas uma
oportunidade para se vingar dele. Quase no final dos sete dias, nos quais os
sacrifícios seriam oferecidos, esses judeus asiáticos viram Paulo no templo, e ime­
diatamente o agarraram, gritando: “Homens israelitas, acudi; este é o homem
que por todas as partes ensina a todos contra o povo e contra a lei, e contra este
lugar; e, demais disto, introduziu também no templo os gregos, e profanou este
santo lugar... E alvoroçou-se toda a cidade, e houve grande concurso de povo; e,
pegando Paulo, o arrastaram para fora do templo, e logo as portas se fecharam”.
A cidade inteira agora estava em polvorosa, a multidão se dirigia furiosamente
para o ponto de ataque. Todos estavam quase à beira da loucura, e se não fosse
pelo zelo deles em não derramar sangue no lugar santo, Paulo seria despedaçado
ali mesmo. O objetivo deles naquele momento era arrancar logo o apóstolo do
edifício sagrado. Porém, antes que os planos homicidas fossem executados, a ajuda
da parte divina chegou, e os judeus foram inesperadamente interrompidos.
Sem dúvida, os sentinelas dos portões comunicaram rapidamente à
guarnição romana que se encontrava defronte do templo do tumulto próximo
à coorte. O tribuno, Cláudio Lísias, correu pessoalmente para o local, levando
soldados e centuriÕes consigo. Quando os judeus viram o tribuno e os soldados
romanos se aproximando, pararam de bater em Paulo. Cláudio, percebendo que
o apóstolo era a causa de toda aquela agitação, logo o prendeu. Atos 21:33.
Tendo feito isso, Lísias tentou saber qual a real causa do tumulto, mas
como nenhuma informação exata poderia ser obtida da multidão ignorante e
excitada, ele ordenou que Paulo fosse levado à fortaleza. A massa, desapontada,
agora vai atrás de sua vítima com enorme ímpeto. Paulo foi arrancado das mãos
da turba, a qual pressionou violentamente os soldados, a ponto de Paulo ter de ser
carregado; enquanto gritos ensurdecedores vinham da multidão irada. A mesma
coisa aconteceu trinta anos antes, só que com Jesus, quando o povo clamou:
“Tira, tira, crucifica-o” (João 19:15).
Nesse momento de total interesse, o apóstolo conserva grande presença
de espírito e controla perfeitamente a agitação de seus sentimentos. Ele age
com prudência e sem comprometer a verdade. Assim que chegam à entrada
A T
e r c e ir a
V ia g e m
de
Pa u l o |
i
da fortaleza, Paulo se dirige com toda cortesia ao tribuno, e pergunta: “E-me
permitido dizer-te alguma coisa? E ele disse: Sabes o grego? Não és tu porventura
aquele egípcio que antes destes dias fez uma sedição e levou ao deserto quatro
mil salteadores? Mas Paulo lhe disse: Na verdade que sou um homem judeu,
cidadão de Tarso, cidade não pouco célebre na Cilicia; rogo-te, porém, que me
permitas falar ao povo”. Por incrível que pareça, o pedido lhe foi concedido.
Paulo já havia conquistado o respeito da autoridade romana. Mas a mão de
Senhor estava nisso tudo; Ele estava cuidando de Seu servo. Paulo havia, por
conta própria, se colocado nas mãos dos inimigos ao tentar agradar os crentes
judeus; mas Deus estava com ele, e sabia como livrá-lo do poder deles, e usar
seu servo para a glória de Seu próprio Nome (Atos 21:26-40).
nas
O D is c u r s o
E sc a d a r ia s
de
da
Pa u io
F o r ta leza
Ao tribuno, ele falou em grego; aos judeus, em hebraico. Esses pequenos
gestos de consideração e gentileza são belas mesclas de amor e sabedoria, e
servem como lição para nós. Ele estava sempre disposto a se fazer “servo de todos
para ganhar ainda mais” (1 Coríntios 9:19). Vemos o surpreendente efeito da
influência dele sobre a massa enfurecida, e também sobre o oficial comandante.
No instante em que Paulo fala, toda a cena muda. O revoltoso mar de paixões
humanas se acalma ao som das sagradas palavras. Foi como água fria na fervura;
imediatamente se fez “grande silêncio”. Sua nobre defesa, dirigida aos seus irmãos
e antepassados, é relatada detalhadamente em Atos 22:1-21.
Ao lermos o discurso, percebemos que seus conterrâneos escutaram com
grande atenção enquanto Paulo falava sobre sua vida, a perseguição aos cristãos,
sua embaixada em Damasco, a conversão miraculosa, a visão no templo, a
conversa com Ananias, porém, no momento em que mencionou sua missão para
com os gentios, um rompante de indignação explodiu na multidão, e silenciou
o orador. Eles não podiam suportar a idéia da graça de Deus ser estendida aos
gentios. Esse nome odiado os levou à fúria. O orgulho patriótico dos judeus
se rebelou contra o raciocínio de que os incircuncisos gentios pudessem ser
iguais aos filhos de Abraão. O povo rejeitou com desprezo qualquer argumento,
humano ou divino, que poderia influenciar a opinião deles. Em vão, o apóstolo
enfatizou muito o que aconteceu entre ele e o piedoso Ananias. Cada apelo era
inútil, quando se tratava dos gentios. Seguiu-se então uma completa desordem.
Os judeus tiraram suas vestes, lançaram pó para o ar, e “levantaram a voz,
dizendo: Tira da terra um tal homem, porque não convém que viva”.
125
1 2 6 ] A H i s t ó r i a d a I g r e j a - capítulo 6
O tribuno, vendo a violência incontida do povo e não entendendo o que
significava, ficou perplexo. Ele viu os resultados do discurso em hebraico língua a qual talvez não compreendia -, e, naturalmente concluindo que seu
prisioneiro deveria ser culpado de um crime horrível, ordenou que ele fosse
acorrentado e açoitado para confessar sua culpa. Mas tal procedimento foi ime­
diatamente suspenso quando Paulo disse que era um cidadão romano.
Os soldados envolvidos na prisão se afastaram, alarmados, e avisaram para
tribuno sobre o que ele estava prestes a fazer. Lísias veio e “disse-lhe: Dize-me,
és tu romano? E ele disse: Sim. E respondeu o tribuno: Eu com grande soma
de dinheiro alcancei este direito de cidadão. Paulo disse: Mas eu o sou de
nascimento”. Lísias se encontrava agora em sérias dificuldades, pois violara a lei
romana. Expor um cidadão a tal vexame era uma traição contra a grandiosidade
do povo romano. Mas a única maneira de salvar a vida de Paulo era mantê-lo em
custódia; e o tribuno planejou outra forma mais branda de investigar a natureza
do crime de seu prisioneiro.
* * *
Pa u l o
d ia n t e d o
S in é d r io
No dia seguinte, ele “mandou vir os principais dos sacerdotes, e todo o
seu conselho; e, trazendo Paulo, o apresentou diante deles”. A diplomacia de
Lísias aqui é interessante. Ele é ativo em reprimir o tumulto; protege um cidadão
romano; demonstra deferência à religião e aos costumes dos judeus. Essa mistura
de diplomacia e cortesia em um romano orgulhoso, sob tais circunstâncias, seria
digna de reflexão, mas temos de prosseguir.
Paulo se dirige ao conselho com seriedade e respeito; mas com evidente
expressão de integridade consciente. “E, pondo Paulo os olhos no conselho, disse:
Homens irmãos, até ao dia de hoje tenho andado diante de Deus com toda a boa
consciência”. Esse senso de justiça inflexível enfureceu Ananias, sumo sacerdote,
a tal ponto, deste ordenar aos que estavam próximos de Paulo que o ferissem na
boca. A violação arbitrária da lei por parte do líder do conselho mexeu tanto com
os sentimentos do apóstolo que, sem temor, exclamou: “Deus te ferirá, parede
branqueada; tu estás aqui assentado para julgar-me conforme a lei, e contra a lei
me mandas ferir?” E óbvio que o sumo sacerdote não estava vestido de maneira
que o diferenciasse dos demais; portanto Paulo se desculpa por ignorar o fato, e
cita a proibição formal da lei: “Não dirás mal do príncipe do teu povo”.
O texto bíblico diz que o apóstolo percebeu que o conselho estava dividido
em duas partes: saduceus e fariseus. Por essa razão, exclama: “Homens irmãos,
A T e r c e i r a V ia g e m d e P a u l o
1 12 7
eu sou fariseu, filho de fariseu; no tocante à esperança e ressurreição dos mortos
sou julgado”. Tal declaração, quer tenha tido esse objetivo ou não, serviu para
dividir a assembléia, e colocar uma parte contra a outra. E as divergências
se tornaram tão impetuosas que alguns fariseus tomaram partido de Paulo:
“Nenhum mal achamos neste homem, e, se algum espírito ou anjo lhe falou, não
lutemos contra Deus”. A sala do julgamento imediatamente se transformou em
palco de violenta discussão, e a presença de Cláudio Lísias se fez absolutamente
necessária. Paulo mais uma vez é levado recluso à fortaleza.
Assim se desenrolou essa agitada manhã na história de nosso apóstolo.
À noite, sozinho, será que o coração dele estava desanimado? A partir de tudo
o que acontecera, e da sombria situação que o cercava, podemos inferir que o
apóstolo nunca precisou tanto do consolo e do ânimo que só a presença do
Mestre traz. Quem poderia conhecer melhor a situação ou se compadecer mais
profundamente do pobre prisioneiro a não ser o Senhor? Então, Ele aparece
em maravilhosa graça para confortar e alegrar o coração de Seu servo. Foi um
conforto divinamente cronometrado. O Senhor Se apresentou a ele, como fizera
em Corinto, e como faria depois na viagem a Roma, e disse: “Paulo, tem ânimo;
porque, como de mim testificaste em Jerusalém, assim importa que testifiques
também em Roma” (Atos 18:9-10; 23:11; 27:23-24). Uma conspiração tramada
por mais de quarenta homens para assassinar Paulo é descoberta, e todos os
planos malignos, frustrados. Assim que ficou sabendo disso, Cláudio Lísias
imediatamente chamou seus soldados e centuriões, e deu ordens rigorosas para
que Paulo fosse levado em segurança a Cesaréia. Esse fato é relatado por Lucas
com singular detalhamento (Atos 23:12-25).
P a u lo c o m p a r e c e d i a n t e de F élix
Como alguns de nossos leitores puderam observar, o caráter do tratamento
de Deus para com Seu servo muda um pouco aqui. Será útil pararmos por um
momento, e em reverência, investigar as causas aparentes dessa mudança. E
como muitos têm dado opiniões livremente sobre esse ponto difícil, iremos citar
aqui algumas linhas de certo autor que parece ter captado a mente do Espírito.
“Eu creio, portanto, que a mão de Deus estava nessa jornada de Paulo; que
em Sua soberana sabedoria, Ele quis que Seu servo a empreendesse, e também
que tivesse bênçãos nela. Creio que o meio utilizado para conduzir Paulo a isso,
de acordo com a soberana sabedoria, foi a afeição humana do apóstolo pelo povo
ao qual pertencia; e que não foi levado a tal jornada pelo Espírito Santo agindo
da parte de Cristo na assembléia. Esse apego ao seu povo, essa afeição humana,
128 I A
H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 6
somou-se àquele sentimento que existia entre o seu povo, e isso o encaminhou.
Humanamente falando, era um sentimento nobre; mas não provinha do poder
do Espírito Santo fundado na morte e ressurreição de Cristo. Aqui, não há
mais judeu nem gentio. A afeição de Paulo era boa em si mesma, porém, como
atitude, não chegou ao nível da obra do Espírito, que, da parte de Cristo, o
mandou se afastar de Jerusalém e ir para os gentios, a fim de revelar a Igreja
como Seu corpo unido a Ele no céu. “Ele era um mensageiro da glória celestial,
que revelou a doutrina da assembléia composta por gentios e judeus, unidos sem
distinção no único corpo de Cristo, aniquilando assim o judaísmo; mas o amor
por sua nação o impeliu, repito, ao próprio centro do judaísmo hostil - judaísmo
enfurecido contra a igualdade espiritual.
“Contudo, a mão de Deus estava nisso. Paulo, como indivíduo, estava
realizado.
“O que Paulo disse suscitou um tumulto, e o tribuno o tirou do meio
dos judeus. Deus tem todas as coisas à Sua disposição. Um sobrinho de Paulo,
jamais mencionado em nenhum outro lugar, ouve acerca de uma emboscada
preparada para o tio, e vai avisá-lo. Paulo o envia ao tribuno, o qual acelera a
saída de Paulo, sob escolta, para Cesaréia. Deus o protegia, mas tudo isso na
esfera dos meios humanos e circunstanciais. Não houve um anjo, como no caso
de Pedro, nem um terremoto como em Filipos. Perceptivelmente, estamos em um
terreno diferente.”25
Os acusadores de Paulo não demoraram em se dirigir para Cesaréia. “E,
cinco dias depois, o sumo sacerdote Ananias desceu com os anciãos, e um certo
Tértulo, orador, os quais compareceram perante o presidente contra Paulo” (Atos
24:1). Tértulo, com um discurso breve e cheio de bajulação, acusa Paulo de
sedição, heresia e profanação do templo.
Félix, então, faz um sinal permitindo que Paulo falasse. E podemos
dizer que agora o apóstolo dos gentios está no lugar certo. Apesar da situação
humilhante, ele ainda é o mensageiro de Deus para os gentios, e Deus está
com Seu amado servo. Os judeus foram silenciados e Paulo, com sua habitual
franqueza, rebateu as acusações.
Ao que parece, Félix tinha um bom conhecimento sobre essas questões, e
é evidente que ficou bastante impressionado. Muitos anos antes, o cristianismo
havia penetrado no exército romano em Cesaréia (Atos 10). Então, provavelmen­
te ele sabia algo acerca disso, e estava convencido da veracidade das declarações
de Paulo, mas não deu o devido valor às suas convicções e ao seu prisioneiro. Ele
25 Sinopse dos Livros da Bíblia, por J. N . DARBY.
A T
e r c e ir a
V ia g e m
de
Pa u l o
I 129
I
“adiou” o caso, dando como justificativa a vinda de Lísias. Nesse ínterim, deu
ordens para que Paulo fosse tratado com brandura e respeito, e que seus amigos
tivessem livre acesso a ele.
Poucos dias depois, Félix entrou na sala de julgamento acompanhado
por sua esposa, Drusila, e mandou chamar Paulo. O casal evidentemente estava
curioso para ouvi-lo falar “acerca da fé em Cristo”. Mas Paulo não era homem de
satisfazer a curiosidade de um romano libertino, nem de uma princesa devassa.
O fiel apóstolo, ao pregar a Cristo, atingiu clara e ousadamente a consciência
de seus ouvintes. Por suas cadeias, ele tinha agora uma oportunidade que talvez
jamais tivesse de outra maneira. “E, tratando ele da justiça, e da temperança,
e do juízo vindouro, Félix, espavorido, respondeu...”. Não é de se estranhar.
Segundo os relatos de historiadores da época, Josefo e Tácito, nunca um casal tão
imoral e dissoluto sentou diante de um pregador. Porém, embora sua consciência
tenha sido afetada, Félix continuou impenitente. Terrível condição! “Por agora
vai-te, e em tendo oportunidade te chamarei.” Mas tal oportunidade jamais
chegou, apesar de ter freqüentes encontros com o apóstolo, nos quais, sem
dúvida, insinuou que um suborno garantiria a liberdade de Paulo. O governador
romano sequer imaginou que sua justiça mercenária ficaria registrada no Livro
de Deus, estampada para as gerações vindouras. Seu caráter é descrito como
medíocre, cruel, dissoluto; capaz de qualquer impiedade, ele exerceu o poder de
um rei com o temperamento de um escravo. “Mas, passados dois anos, Félix
teve por sucessor a Pórcio Festo; e, querendo Félix comprazer aos judeus, deixou
a Paulo preso.”
P a u lo c o m p a r e c e d i a n t e
d e F e s t o e A g r ip a
Imediatamente após a chegada de Festo à província, este visitou Jerusalém.
Ali, os líderes judeus aproveitaram a oportunidade para pedir a volta de Paulo.
O argumento era que ele deveria ser julgado novamente no sinédrio, mas a
real intenção era matá-lo no caminho. Festo recusou a petição. No entanto, os
convidou para subir com ele a Cesaréia e lá acusar Paulo. O julgamento começou
e se pareceu com o que ocorrera diante de Félix. E óbvio que Festo percebeu
claramente que a ofensa de Paulo estava conectada com as opiniões religiosas
dos judeus, e que não havia transgredido a lei. Mas, ao mesmo tempo, querendo
angariar a simpatia dos judeus, pergunta se Paulo deseja ir para Jerusalém e ser
julgado ali. Isso soava melhor que pedir que se oferecesse em sacrifício devido ao
ódio dos judeus. Paulo, consciente disso, apela o imperador: “Apelo para César”.
130 I A
H i s t ó r i a d a I g r e j a - capítulo 6
Sem dúvida, Festo se surpreendeu com a dignidade e independência de
seu prisioneiro. Era um privilégio de Paulo como cidadão romano ter sua causa
transferida para o supremo tribunal do imperador em Roma. “Então Festo, tendo
falado com o conselho, respondeu: Apelaste para César? para César irás.”
Até onde podemos ver em termos humanos, esse era o único recurso
de Paulo, dada as circunstâncias. Mas a mão e o propósito de Deus estavam
nisso. Paulo tinha de testemunhar sobre Cristo e a verdade em Roma também.
Jerusalém havia rejeitado o testemunho aos gentios; Roma também teve sua
parte ao rejeitar o mesmo testemunho e ao prender o mensageiro. Mas em todas
essas coisas, Paulo foi grandemente favorecido pelo Senhor. A posição dele se
parece com a do Mestre, quando Este foi entregue aos gentios por causa do ódio
dos judeus; mas, apenas o Senhor foi perfeito em tudo, e Ele estava no lugar
predeterminado por Deus. Ele veio para os judeus —essa era a missão dEle;
Paulo foi liberado dos judeus —essa era a diferença. Cristo Se entregou: “Pelo
Espírito eterno se ofereceu a si mesmo imaculado a Deus” (Hebreus 9:14). O
Senhor descreveu parte da missão de Paulo nos seguintes termos: “Livrando-te
deste povo, e dos gentios, a quem agora te envio” (Atos 26:17). Mas o apóstolo
voltou para o “povo” na força de seus sentimentos humanos, após ter sido levado
para longe deles na força do Espírito Santo (Atos 26:17). Jesus o separou tanto
dos judeus quanto dos gentios para exercer um ministério que unisse os dois em
um só corpo, o de Cristo. Como o próprio Paulo afirma: “Assim que daqui por
diante a ninguém conhecemos segundo a carne” (2 Coríntios 5:16). Em Cristo
não há judeu nem grego.
Vamos resumir a história de nosso grande apóstolo.
Pa u l o c o m p a r e c e d ia n t e
de A g r ip a e B e r e n ic e
Aconteceu nesse ínterim que Agripa, rei dos judeus, e sua irmã Berenice
vieram fazer uma visita de cortesia a Festo. E este, não sabendo como relatar o
caso de Paulo ao imperador, aproveitou a oportunidade para consultar Agripa,
o qual estava melhor informado sobre os pontos em questão. O príncipe judeu,
que deveria saber algo sobre o cristianismo e sobre o próprio Paulo, expressou o
desejo de ouvi-lo falar. Festo prontamente consentiu. “Amanhã o ouvirás.”
O apóstolo agora tem o privilégio de testemunhar do nome de Jesus diante
da mais nobre assembléia jamais reunida. Reis judeus, governadores romanos,
oficiais militares, e os líderes de Cesaréia reunidos “com grande pompa” para
ouvir o prisioneiro contar seu relato a Agripa. Não era uma audiência medíocre,
A T e r c e i r a V ia g e m d e P a u l o
1131
e fica perfeitamente evidente que eles não consideravam Paulo um prisioneiro
comum. Festo, percebendo a dificuldade em que estava, submete a questão ao
conhecimento do rei judeu. Agripa faz um sinal para que Paulo fale. Chegamos
agora a um dos momentos mais interessantes de toda a história do apóstolo.
A dignidade de sua conduta diante dos juizes, embora acorrentado pela
mão a um soldado, certamente impressionou bastante a todos. A profundida­
de de sua humilhação serviu para manifestar de forma ainda mais admirável
a elevação moral da alma do apóstolo. Ele não falou sobre si mesmo nem
sobre suas cadeias. Perfeitamente tranqüilo em Cristo, e cheio de amor pelos
que os cercavam, o ego e as circunstâncias foram completamente esquecidos.
Com muito respeito pela posição dos que ali estavam, por meio das genuínas
declarações de boa consciência, ele se elevou muito além de todos os presentes.
Ele se dirige à consciência dos ouvintes com a ousadia e retidão de um homem
acostumado a andar com Deus e a obedecê-Lo. O caráter e a conduta daqueles
líderes foram colocados em total contraste com o caráter e a conduta do apóstolo,
e nos mostram o que o mundo é quando desmascarado pelo Espírito Santo.
Certo autor escreveu: “Não mencionarei a vaidade mundana que se revela
em Lísias e Festo por meio da conjetura de toda classe de boas qualidades e boa
conduta - mistura de uma consciência tocada e falta de princípios nos líderes - e
do desejo de agradar os judeus, pela importância que tinham ou para facilitar
o governo de um povo rebelde. A posição de Agripa e todos os detalhes da
história têm o extraordinário cunho da verdade, cujos vários personagens são
apresentados de maneira tão vívida que parece que estamos presenciando a cena
aqui descrita, e vendo as pessoas se movendo nela. Além do mais, essa é uma
característica marcante dos escritos de Lucas”.
Capítulo 26. Paulo fala com o rei Agripa como alguém versado nos
costumes e questões predominantes entre os judeus; e relata sua miraculosa
conversão e os fatos subseqüentes para tocar a consciência do rei. Pela clara e
franca narrativa do apóstolo, Agripa estava bem próximo de ser convencido,
pois sua consciência foi despertada, mas o mundo e suas próprias paixões o
impediram. Festo o ridicularizou. Para ele, aquilo não passava de entusiasmo
extravagante - um delírio. Ele interrompeu o apóstolo bruscamente, dizendo
“em alta voz: Estás louco, Paulo; as muitas letras te fazem delirar”. A resposta de
Paulo foi nobre e calma, mas intencionalmente franca e, com grande sabedoria e
discernimento, por fim Paulo apela a Agripa. “Não deliro, ó potentíssimo Festo;
antes digo palavras de verdade e de um são juízo. Porque o rei, diante de quem
falo com ousadia, sabe estas coisas, pois não creio que nada disto lhe é oculto;
porque isto não se fez em qualquer canto.”
132 I A H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 6
Então, virando-se para o rei judeu, o qual estava ao lado de Festo, lhe
fez um apelo direto e solene: “Crês tu nos profetas, ó rei Agripa? Bem sei que
cres .
A
>5
“E disse Agripa a Paulo: Por pouco me queres persuadir a que me faça
cristão!”
Naquele momento, o rei estava sendo conduzido pelo poder das palavras
de Paulo, e pelos agudos ferrões de seus apelos. O apóstolo faz sua réplica - que
permanece sem resposta. Ela é caracterizada pelo zelo, gentileza cristã, ardente
amor pelas almas, e grande alegria no Senhor.
“E disse Paulo: Prouvera a Deus que, ou por pouco ou por muito, não
somente tu, mas também todos quantos hoje me estão ouvindo, se tornassem
tais qual eu sou, exceto estas cadeias.”
Com a expressão desse nobre desejo, a conferência foi encerrada. A
assembléia se dissolveu. Agripa não queria ouvir mais nada. Os apelos tinham
sido tão penetrantes, tão pessoais, tão misturados com dignidade, afeição e
solicitude que ele foi vencido. “E, dizendo ele isto, levantou-se o rei, o presidente,
e Berenice, e os que com eles estavam assentados.” Após uma breve conversa,
Festo, Agripa e seus companheiros chegaram à conclusão de que Paulo não era
culpado de nada digno de morte ou mesmo de prisão. “E Agripa disse a Festo:
Bem podia soltar-se este homem, se não houvera apelado para César.”
Esse era o cuidado do Senhor para com Seu servo amado. Ele teve sua
inocência provada e reconhecida por seus juizes, e completamente estabeleci­
da perante o mundo. Terminada a sessão, o rei e os demais líderes voltaram
para suas posições e pompas no mundo, e Paulo para a sua cela. Mas, naquele
momento seu coração estava feliz e cheio do Espírito de seu Mestre.
A V ia g em
Pa u l o
(60 AC.)
de
a
R om a
Atos 27. Agora é o momento da viagem de Paulo a Roma. O apóstolo
ainda não tinha tido nenhum julgamento formal. E, sem dúvida, desgastado
pela inflexível oposição dos judeus - e por dois anos de prisão em Cesaréia,
com repetidos interrogatórios diante dos governadores e Agripa, ele exigiu um
julgamento diante da corte imperial. Lucas, o historiador de Atos, e Aristarco
de Tessalônica foram abençoados por acompanhá-lo. Paulo foi entregue aos
cuidados de um centurião chamado Júlio, da guarda imperial; oficial que, em
todas as ocasiões, tratou o apóstolo com grande cordialidade e consideração.
A T e r c e i r a V ia g e m d e P a u l o |
Ficou determinado que Paulo deveria seguir com outros prisioneiros para
a Itália pelo mar. Lucas relata :“E, embarcando nós em um navio adramitino,
partimos navegando pelos lugares da costa da Ásia, estando conosco Aristarco,
macedônio, de Tessalônica. E chegamos no dia seguinte a Sidom, e Júlio,
tratando Paulo humanamente, lhe permitiu ir ver os amigos, para que cuidassem
dele”. Partindo de Sidom, eles foram forçados a navegar a sotavento de Chipre,
por causa dos ventos contrários, e chegaram a Mirra, uma cidade de Lícia. Ali o
centurião transferiu seus prisioneiros para um navio de Alexandria que navegava
para a Itália. Nessa embarcação, depois de partir de Mirra, navegaram vagaro­
samente por muitos dias, pois o clima lhes era desfavorável. Mas rumando até
Creta, chegaram em segurança a “Bons Portos”.
O inverno estava próximo, e isso se torna uma questão séria no que tangia a
permanecer em Bons Portos durante o inverno ou a procurar um porto melhor.
Aqui temos de parar por um momento e examinar a maravilhosa posição
de nosso apóstolo nessa séria consulta. Como anteriormente diante de Festo
e Agripa, ele se apresenta diante do capitão, do mestre, do centurião, e de
toda tripulação como alguém que conhece os pensamentos de Deus. Paulo
aconselha, dirige e age como se realmente fosse o capitão do barco e não como
um prisioneiro sob custódia. Ele os advertiu que deveriam permanecer onde
estavam. Ele afirmou que iriam enfrentar um clima violento se se aventurassem
no mar aberto, e que isso traria muito prejuízo ao navio, à carga, e até à vida dos
que estavam a bordo. Mas o piloto e o capitão do navio, que tinham o máximo
interesse no próprio navio, foram guiados pelas circunstâncias e não pela fé. Eles
quiseram correr o risco de procurar um porto mais confortável para invernar, e o
centurião naturalmente concordou com o julgamento deles. Tudo estava contra
o conselho do homem de Deus, homem que falava e agia segundo Deus. Até
mesmo o cenário que os rodeava parecia confirmar a opinião dos marinheiros,
e não a palavra do apóstolo. Porém nada pode falsificar a palavra da fé. Ela é
verdadeira independente de qualquer circunstância.
Portanto, ficou resolvido pela maioria que deveriam partir de Bons Portos
e navegar para Fenice, um porto considerado mais seguro para o inverno. “E,
soprando o sul brandamente...”. Eles estavam tão otimistas, como Lucas diz,
que pensaram que o seu objetivo tinha sido alcançado (v. 13). De comum acordo,
levantaram âncora e com uma suave brisa sul, o barco com “duzentas e setenta
e seis almas” a bordo, deixou Bons Portos. Porém, mal navegaram cerca de nove
quilômetros e um forte vento da costa alcançou o navio, e o agitou de tal modo que
não foi possível ao timoneiro manter a rota. E como Lucas observa: “Nos deixamos
ir à toa”, ou seja, nada havia mais a fazer senão serem impelidos pelo vento.
133
134 ( A H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 6
Mas nosso principal interesse aqui é com Paulo como homem de fé. O que
seus companheiros de viagem estariam pensando e sentindo agora? Eles haviam
confiado no vento, e nesse momento colhiam tempestade. As sérias advertências
e conselhos da fé foram rejeitados. Infelizmente, muitos negligenciam as adver­
tências registradas aqui, e sob os agradáveis ventos das circunstâncias favoráveis,
iniciam a grande viagem da vida rejeitando completamente a voz da fé. Porém,
como o lisonjeiro vento que levou o barco para longe do porto, tudo logo se
transforma em uma violenta tempestade no agitado mar da vida.
T em pesta d e
no
M a r A d r iá t ic o
O termo “euro-aquilao” dado a esse fenômeno indica uma tempestade da
máxima magnitude. Era acompanhada pela agitação e rodopio das nuvens, e por
um forte abalo marítimo, com enormes ondas. O historiador sagrado prossegue
escrevendo um apurado relato do que ocorreu no navio sob tal perigosa
situação. Sendo empurrados para Clauda, eles puderam escapar por um pouco
da violência da tempestade. Isso lhes deu a oportunidade de se prepararem para
enfrentar a tormenta.
No dia seguinte, partiram de Clauda. A violência da tempestade continuava
a mesma. Eles começaram a aliviar o navio de tudo o que poderia ser eliminado.
Ao que parece todos ajudaram nessa tarefa. “E, andando nós agitados por uma
veemente tempestade, no dia seguinte aliviaram o navio. E ao terceiro dia nós
mesmos, com as nossas próprias mãos, lançamos ao mar a armação do navio. E,
não aparecendo, havia já muitos dias, nem sol nem estrelas, e caindo sobre nós
uma não pequena tempestade, fugiu-nos toda a esperança de nos salvarmos”.
Nada era mais apavorante para os marinheiros da antiguidade que um
céu continuamente nublado, pois costumavam se guiar pela observação dos
corpos celestes. Foi nesse momento de perplexidade e desespero que o apóstolo
se colocou “em pé no meio deles” e levantou sua voz acima da tempestade.
A partir de suas palavras de solidariedade, aprendemos que todos os outros
sofrimentos deles foram agravados pela dificuldade de preparar comida. “E,
havendo já muito que não se comia, então Paulo, pondo-se em pé no meio
deles, disse: Fora, na verdade, razoável, ó senhores, ter-me ouvido a mim e não
partir de Creta, e assim evitariam este incômodo e esta perda. Mas agora vos
admoesto a que tenhais bom ânimo, porque não se perderá a vida de nenhum
de vós, mas somente o navio. Porque esta mesma noite o anjo de Deus, de quem
eu sou, e a quem sirvo, esteve comigo, dizendo: Paulo, não temas; importa
que sejas apresentado a César, e eis que Deus te deu todos quantos navegam
A T
e r c e ir a
V ia g e m
de
Pa u lo
contigo. Portanto, ó senhores, tende bom ânimo; porque creio em Deus, que há
de acontecer assim como a mim me foi dito. E, contudo, necessário irmos dar
numa ilha” (vv. 21-26).
O N a u fr á g io
O naufrágio não demorou. “E, quando chegou a décima quarta noite, sendo
impelidos de um e outro lado no mar Adriático, lá pela meia-noite suspeitaram
os marinheiros que estavam próximos de alguma terra. E, lançando o prumo,
acharam vinte braças; e, passando um pouco mais adiante, tornando a lançar o
prumo, acharam quinze braças.” Durante catorze dias e noites a tempestade não
deu trégua, e nesse período o sofrimento daqueles homens foi indescritível.
No fim do décimo quarto dia, “lá pela meia-noite”, os marinheiros ouviram
um som que indicava a proximidade de terra firme. O som, sem dúvida, era de
ondas de arrebentação, que se quebram nos rochedos. Não havia tempo a perder;
imediatamente lançaram quatro âncoras da popa, e ansiosamente esperaram pelo
amanhecer. Aqui surge uma tentativa natural mas egoísta por parte da tripulação
de salvar a própria pele. Eles baixaram o bote com o pretexto de lançar âncoras
da proa, mas o que queriam de fato era abandonar o navio. Percebendo isso, e
sabendo do real propósito deles, na mesma hora “disse Paulo ao centurião e aos
soldados: Se estes não ficarem no navio, não podereis salvar-vos. Então os soldados
cortaram os cabos do batel, e o deixaram cair”. Portanto, o conselho divino dado
pelo apóstolo foi o meio de salvar todos a bordo. “Se estes não ficarem no navio,
não podereis salvar-vos.” Não era mais no capitão ou na tripulação do navio que
se buscava sabedoria ou segurança. Todos os olhos estavam postos em Paulo,
o prisioneiro - o homem de fé, homem que acreditava e agia de acordo com a
revelação de Deus. As circunstâncias sempre nos levam para o caminho errado
quando olhamos para elas procurando orientação; somente a Palavra de Deus é
nosso guia seguro, nos dias bons e maus.
Durante o tenso intervalo até o amanhecer, Paulo teve uma oportunidade
de levantar a voz para testemunhar e encorajar. Como deve ter sido uma cena
fantástica! A noite escura e tempestuosa; o frágil barco a ponto de naufragar ou ser
despedaçado pelos rochedos. Mas havia uma pessoa a bordo perfeitamente em paz
apesar da situação. O estado do barco, as águas revoltas, o som alarmante da arre­
bentação, enfim, nada o aterrorizava. Ele estava tranqüilo no Senhor, e em plena
comunhão com Seus pensamentos e propósitos. Essa é a posição cristã em meio a
quãlquiTwfmSttvèmÊora poucos a desfrutem, pois somente a fé pode alcançá-la.
Tal foi a última exortação clêTaulo aos seus companheiros de viagem.
135
136 [ A H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 6
“E, entretanto que o dia vinha, Paulo exortava a todos a que comessem
alguma coisa, dizendo: É já hoje o décimo quarto dia que esperais, e permaneceis
sem comer, não havendo provado nada. Portanto, exorto-vos a que comais
alguma coisa, pois é para a vossa saúde; porque nem um cabelo cairá da cabeça
de qualquer de vós. E, havendo dito isto, tomando o pão, deu graças a Deus
na presença de todos; e, partindo-o, começou a comer. E, tendo já todos bom
ânimo, puseram-se também a comer” (vv. 33-36).
A única esperança deles era levar o navio à costa e escapar para a terra
firme. Embora não vendo a costa, “enxergaram, porém, uma enseada que tinha
praia”, e decidiram encalhar o navio ali. Então levantaram as âncoras, soltaram
as amarras do leme, desfraldaram a vela maior e rumaram para a praia. O
navio encalhou, a proa ficou encravada na areia, mas a popa se partiu devido à
violência das ondas.
O barco havia chegado à costa; e mais uma vez o homem de fé foi o
instrumento utilizado para salvar todos os prisioneiros. O centurião, grandemente
influenciado pelas palavras de Paulo e ansioso pela segurança dele, impede que os
prisioneiros fossem mortos pelos soldados, e dá ordens aos que sabiam nadar que
pulassem no mar e alcançassem a terra. O restante deveria se agarrar aos pedaços
do navio e nadar para a praia. “E assim aconteceu que todos chegaram à terra a
salvo.” O livramento foi cumprido como Paulo tinha profetizado que seria.
Pa u lo
em
M alta
Atos 28. Os habitantes da ilha receberam os náufragos com muita
gentileza, e imediatamente acenderam uma fogueira para aquecê-los. O
historiador sagrado nos pinta um quadro vívido da cena toda. Vemos as pessoas
descritas se movendo nele: o apóstolo juntando lenha para a fogueira; a víbora
mordendo sua mão; os nativos pensando nele primeiramente como um assassino,
e depois como um deus, por ter escapado ileso da mordida. Públio, o principal
líder da ilha, lhes hospedou gentilmente por três dias. O pai dele, que estava
doente, foi curado pela imposição de mãos e oração de Paulo. O apóstolo pôde
fazer muitos milagres durante sua estada na ilha; e todos os seus companheiros
de viagem, por causa dele, receberam muitas honras. Vemos que Deus estava
com Seu amado servo, o qual exerceu seu poder entre os habitantes de Malta.
Como a parte final da jornada de Paulo a Roma foi tão próspera, quase não há
nenhum incidente registrado, e, portanto, passaremos por ele com rapidez.
Após três meses em Malta, os soldados e os prisioneiros partiram rumo à
Itália em um navio alexandrino. Alcançaram Siracusa, ficando ali por três dias;
A T
e r c e ir a
V ia g e m
de
Pa u l o I 1 3 7
depois costearam até Régio, chegando no dia seguinte a Potéoli. Nesse lugar
“achando alguns irmãos”, passaram com eles cerca de uma semana, desfrutando
da comunhão fraternal, e as notícias da chegada do apóstolo atingiram Roma.
Os cristãos saíram ao encontro de Paulo e seus amigos na Praça de Ápio e nas
Três Vendas. Um belo exemplo e ilustração da comunhão dos santos. Como o
apóstolo deve ter se sentido no primeiro encontro com os cristãos da igreja de
Roma! Seu longo anseio por fim se cumpriu; seu coração se encheu com louvor;
“deu graças a Deus e tomou ânimo”.
A C h e g a d a d e P a u lo a R o m a
Paulo e seus companheiros muito provavelmente viajaram para Roma
pela Via Ápia. Na chegada deles, “o centurião entregou os presos ao capitão
da guarda26; mas a Paulo se lhe permitiu morar por sua conta à parte, com o
soldado que o guardava”. Apesar de não ser liberado do constante incômodo de
estar acorrentado a um soldado, todas as indulgências possíveis a um prisioneiro
lhes foram concedidas.
Paulo agora tinha o privilégio de também anunciar o evangelho aos que
estavam em Roma (Romanos 1:15); e executou sem demora a ordem divina: “...
aos judeus primeiro”. Ele convocou os principais líderes judeus e lhes explicou
sua verdadeira situação. Ele os assegurou de que não havia cometido nenhuma
ofensa contra a nação, nem contra os costumes de seus antepassados. A razão
de estar em Roma era para responder certas acusações feitas pelos judeus na
Palestina, tão infundadas que o próprio governador romano estava disposto a
liberá-lo, ao que se opunham os judeus. Como ele disse: “pela esperança de Israel
estou com esta cadeia”. Seu único crime era sua sólida fé nas promessas de Deus
a Israel por meio do Messias.
Os judeus romanos, em resposta, disseram a Paulo que nada acerca da
questão havia chegado ao conhecimento deles, e que desejavam ouvi-lo declarar
sua fé; e além disso, que em toda parte se falava mal dos cristãos. Foi marcada
uma data para outra reunião na casa de Paulo. No dia designado, muitos
vieram, “aos quais declarava com bom testemunho o reino de Deus, e procurava
persuadi-los à fé em Jesus, tanto pela lei de Moisés como pelos profetas, desde a
manha até à tarde”. Mas os judeus de Roma, como os de Antioquia e Jerusalém,
eram tardios de coração para crer. “E alguns criam no que se dizia; mas outros
26 O sábio e humano Burrus era o chefe da guarda pretoriana quando Júlio chegou com os
prisioneiros. Ele era um romano íntegro e sempre tratou Paulo com a maior consideração e
gentileza possível. —Dicionário de Biografias do Dr. Smith.
A H
is t ó r ia d a
I g r e ja - capítulo 6
não criam.” Como Paulo trabalhou sincera e incansavelmente para conquistar
o coração deles para Cristo! Da manhã até à tarde não apenas pregou a Cristo,
mas buscava convencê-los no tocante a Ele. Temos certeza de que o apóstolo
procurou persuadi-los quanto à divindade e humanidade, o perfeito sacrifício,
a ressurreição, ascensão e glória de Jesus. Que lição e que assunto para os
pregadores de todas as épocas: persuadir os homens no que concerne a Jesus de
manhã até à tarde!
A condição dos judeus nos é exposta pela última vez. O juízo pronunciado
por Isaías estava prestes a cair sobre eles com todo o poder destruidor - um
juízo debaixo do qual estão ainda hoje; um juízo que continuará até que Deus
lhes dê arrependimento, e os liberte por Sua graça para glória do Seu nome.
Mas, nesse ínterim, “a salvação divina é pregada aos gentios, e eles a ouvirão”,
e como sabemos - louvado seja Seu nome -, eles a ouviram, pois nós mesmos
somos testemunhas disso27.
“E Paulo ficou dois anos inteiros na sua própria habitação que alugara, e
recebia todos quantos vinham vê-lo; pregando o reino de Deus e ensinando com
toda a liberdade as coisas pertencentes ao Senhor Jesus Cristo, sem impedimento
algum.”
Essas são as últimas palavras de Atos. A cena na qual a cortina se fecha
é bastante sugestiva: a oposição dos judeus incrédulos naquilo que se referia
à salvação da alma deles, era infelizmente, uma amostra do que logo recairia
sobre esse povo. E aqui também termina a história desse precioso servo de Deus,
até onde é diretamente revelado. A voz do Espírito da verdade silencia no que
tange a esse assunto. Nossas informações sobre a subseqüente história de Paulo
têm de ser obtidas quase exclusivamente em suas epístolas. Nelas aprendemos
muito mais que meros fatos históricos, pois nos dão uma fantástica visão dos
sentimentos conflitantes e das emoções do grande apóstolo, além do estado geral
da igreja de Deus até o período do martírio de Paulo.
O L iv r o
de
A t o s T r a n s ic io n a l
Paremos por um momento e observemos nosso apóstolo como prisioneiro
na cidade imperial. O evangelho agora havia sido pregado de Jerusalém a Roma.
Grandes mudanças aconteceram nos caminhos dispensacionais de Deus. O
livro de Atos é transicional por natureza. Os judeus foram colocados de lado,
ou melhor, eles mesmos se colocaram à parte por terem rejeitado o que Deus
estava edificando. Os conselhos de Sua graça em relação a eles sem dúvida
27 Veja Estudos Introdutórios ao Livro de Atos, de W. Kelly.
I
A T e r c e ir a V ia g em
de
Pa u l o 1 1 3 9
permanecem para sempre; porém, nesse meio-tempo, foram rejeitados e outros
vieram e se apossaram do maravilhoso relacionamento com Deus. Paulo era
uma testemunha da graça divina a Israel, pois ele mesmo era um israelita, mas
escolhido de Deus para introduzir algo totalmente novo: a Igreja, o Corpo de
Cristo, “do qual fui feito ministro... me foi dada esta graça de anunciar entre
os gentios, por meio do evangelho, as riquezas incompreensíveis de Cristo, e
demonstrar a todos qual seja a dispensação do mistério, que desde os séculos
esteve oculto em Deus, que tudo criou por meio de Jesus Cristo” (Efésios
3:7-9). Essa novidade acabou com toda a distinção entre judeus e gentios como
pecadores e na unidade desse corpo. Como temos visto, a hostilidade dos judeus
quanto a tais verdades jamais diminuiu, e assim também são perceptíveis os
resultados dessa inimizade. Os judeus desaparecem do cenário completamente,
e a igreja se torna o vaso do testemunho de Deus na terra, e Sua habitação pelo
Espírito (Efésios 2:22). E claro que indivíduos judeus que crêem em Jesus são
abençoados por estarem em conexão com o Cristo celestial e Seu corpo, mas
Israel é deixado sem Deus por um tempo e sem a presente comunicação com
Ele. A Epístola aos Romanos e aos Efésios revelam claramente essa doutrina (em
especial os capítulos 9 a 11 de Romanos).
Á O c u pa ç ã o de Pa u lo
d u r a n t e seu C o n f in a m e n t o
Embora fosse um prisioneiro, a Paulo foi permitido ter livre comunicação
com seus amigos e, portanto, estava cercado de muitos de seus mais antigos e
fiéis companheiros. A partir das epístolas, vemos que Lucas, Timóteo, Tíquico,
Epafras, Aristarco e outros estavam com o apóstolo naquele tempo. Temos de
ter em mente que, como prisioneiro, vivia atrelado a um soldado e exposto a
rude controle. Devido à longa demora em seu julgamento, o apóstolo ficou nessa
condição por dois anos, durante os quais pregou o evangelho e descortinou
as Escrituras às congregações que vinham ouvi-lo, além de ter escrito várias
epístolas a igrejas de lugares distantes.
Tendo inteira e fielmente cumprido a tarefa para com os judeus, o povo
favorecido de Deus, ele se dirige aos gentios, não tendo, contudo, excluído
os judeus. A porta de sua casa estava aberta de manha à noite para todos
os que quisessem entrar e ouvir as grandes verdades do cristianismo. E em
alguns aspectos, Paulo nunca teve melhores oportunidades, porque os judeus
não puderam mais incomodá-los devido ao fato dele estar sob a proteção dos
romanos.
140 |
A H
is t ó r ia d a
I g r e ja - capítulo 6
Os efeitos da pregação de Paulo por meio da benção do Senhor logo se mani­
festaram. A guarda romana, a casa de César e outros lugares foram abençoados por
seu intermédio. “E quero, irmãos, que saibais que as coisas que me aconteceram
contribuíram para maior proveito do evangelho; de maneira que as minhas
prisões em Cristo foram manifestas por toda a guarda pretoriana, e por todos os
demais lugares” (Filipenses 1:12-13). E o apóstolo acrescenta: “Todos os santos
vos saúdam, mas principalmente os que são da casa de César” (4:22). A bênção
parece ter chegado em primeiro lugar ao pretório, ou entre os guardas pretorianos.
“Minhas prisões em Cristo foram manifestas por toda a guarda pretoriana” —o
alojamento dos guardas e das tropas. O evangelho da glória que Paulo pregava foi
ouvido por todos eles. Até mesmo o gentil prefeito romano Burrus e seu amigo
íntimo, Sêneca, tutor de Nero, devem ter ouvido o evangelho da graça de Deus.
Os modos educados de Paulo e suas grandes habilidades, natas e adquiridas, eram
totalmente adequadas para atrair tanto o estadista quanto o filósofo. Sua estada
por dois anos ali deu-lhes inúmeras oportunidades.
Podemos dizer que a quase totalidade dos guardas deve tê-lo conhecido
pessoalmente. A porta para o evangelho se alargava mais e mais com cada troca
de guarda. Estando sempre acorrentado ao soldado que o vigiava, e sendo tal
sentinela constantemente substituído, Paulo se tornou conhecido por muitos,
e com que amor, ardor e eloqüência deve ter falado com eles sobre Jesus e da
necessidade que tinham do Salvador! Mas teremos de esperar até a manhã da
primeira ressurreição para ver os resultados da pregação de Paulo ali. O dia o
declarará, e Deus terá toda a glória.
O apóstolo nos dá a entender também que o evangelho penetrou no
próprio palácio. Havia santos na casa de César. O cristianismo foi plantado
dentro das paredes imperiais, e “por todos os demais lugares”. Sim, nos “demais
lugares”, diz o historiador sagrado. Não apenas Paulo estava trabalhando nos
domínios imperiais, mas também seus companheiros, sem dúvida, pregavam o
evangelho “por todos os demais lugares”, dentro e ao redor da cidade imperial.
Portanto, o sucesso do evangelho pode ser atribuído ao esforço de outros, bem
como às ações vigorosas e incansáveis do grande apóstolo em seu cativeiro.
O E sc ra v o F u g i d o , O n é s im o
Mas de todos os convertidos que o Senhor deu ao apóstolo em suas
cadeias, nenhum parece ter conquistado seu coração como o pobre escravo
fugido, Onésimo. Bela figura de força, humildade, e do amor divino em um
coração movido pelo Espírito, brilhando em todos os detalhes da vida de uma
A T
e r c e ir a
V ia g e m
de
Pa u lo
pessoa! O sucesso do apóstolo no palácio imperial não enfraqueceu seu interesse
por um jovem discípulo da mais baixa camada da sociedade. Nenhuma porção
da comunidade era mais depravada que os escravos; e como deveriam ser os
companheiros de um escravo fugitivo em uma cidade devassa? No entanto,
Onésimo é arrancado das profundezas por uma mão invisível de amor eterno.
Ele cruza o caminho do apóstolo, ouve a pregação do evangelho, se converte, se
consagra ao Senhor e à Sua obra, e encontra em Paulo um amigo e um irmão,
bem como um líder e mestre. E agora refulgem as virtudes e o valor do cristia­
nismo. Bem como as doces ações da graça divina na vida de um escravo pobre,
solitário, destituído e fugitivo.
Em vista dessa nova coisa em Roma, no mundo, podemos perguntar o
que é o cristianismo e qual sua origem. Será que foi aos pés de Gamaliel que
Paulo aprendeu a amar? Não, caro leitor, foi aos pés de Jesus. Quisera Deus que
o eloqüente historiador de “O Declínio e a Queda do Império Romano” tivesse
entrado em cena e aprendesse a valorizar, ao invés de ridicularizar o cristianismo
divino! Se pensarmos um momento no esforço do apóstolo nesse período, na
idade em que estava, em suas enfermidades, nas circunstâncias adversas, sem
mencionar os elevados temas e as sublimes verdades fundamentais que ocupavam
sua mente então, podemos admirar a graça que havia em cada detalhe do rela­
cionamento entre mestre e escravo, e as gentis considerações por cada pedido.
A carta que enviou com Onésimo a Filemom, o proprietário prejudicado, é
certamente a mais tocante que escreveu. Lendo-a por alto, perderemos a ternura
e a veemência de seus sentimentos, a sensibilidade e justiça de seus pensamentos,
e a sublime dignidade que permeia a epístola inteira.
E p íst o l a s E s c r it a s
DURANTE O ENCARCERAMENTO
Não há dúvidas que as seguintes epístolas — Filemom, Colossenses,
Efésios e Filipenses, foram escritas durante a parte final do encarceramento de
Paulo em Roma. Ele se refere às suas “prisões” em todas elas, e repetidamente
à expectativa de ser liberto (compare Efésios 3:1, 4:1, 6:20; Filipenses 1:7,25;
2:24; 4:22; Colossenses 4:18; Filemom 2). Além disso, ele ficou tempo bastante
em Roma para que as notícias de sua prisão chegassem aos afetuosos filipenses,
e estes lhe mandassem algum refrigério.
SupÕe-se que as primeiras três tenham sido escritas na primavera de 62 dC e
enviadas por meio de Tíquico e de Onésimo. Já a Epístola aos Filipenses foi escrita
algum tempo depois, no outono, e entregue por Epafrodito. Paulo fala sobre um
141
1 4 2 | A H is t ó r i a
da
I g r e ja - capítulo 6
assunto urgente o qual teve de ser resolvido em sua epístola a eles. “De sorte que
espero vo-lo enviar logo que tenha provido a meus negócios. Mas confio no Senhor,
que também eu mesmo em breve irei ter convosco” (Filipenses 2:23-24).
Alguns supõem também que a Epístola aos Hebreus tenha sido escrita nesse
mesmo período, e cada exame leva à conclusão de que Paulo seja o autor dela. A
expressão no fim da epístola, “os da Itália vos saúdam”, parece ser decisiva quanto
ao lugar onde o escritor estava ao escrevê-la. As seguintes passagens parecem ser
decisivas quanto ao tempo: “Sabei que já está solto o irmão Timóteo, com o
qual, se ele vier depressa, vos verei”. Compare isso como que Paulo escreveu aos
filipenses: “Espero no Senhor Jesus que em breve vos mandarei Timóteo... mas
confio no Senhor, que também eu em breve irei ter convosco” (2:19, 24). E difícil
acreditar que essas passagens foram escritas pela mesma pena ao mesmo tempo,
e que se refiram aos mesmos planos. Mas não iremos insistir nesse ponto. Uma
coisa, contudo, é evidente: que essa epístola foi escrita antes da destruição de
Jerusalém em 70 d.C., pois o templo ainda estava de pé e a adoração continuava
sem intercorrências. Compare Hebreus 8:4; 9:25; 10:11; 13:10-13.
A L ibertaçã o
de
Pa u lo
Após quatro anos inteiros de prisão, parte na Judéia e parte em Roma,
o apóstolo mais uma vez está em liberdade. Mas não temos detalhes quanto
ao caráter de seu julgamento, ou do motivo de sua liberação. O historiador
sagrado nos diz que Paulo morou dois anos em uma casa que alugara; mas não
diz o que aconteceu no final desse período. Será que o apóstolo foi condenado e
martirizado ou absolvido e libertado? Essa é uma pergunta crucial, e a resposta
correta a ela tem de ser procurada primordialmente nas Epístolas Pastorais. A
Primeira a Timóteo e a Tito parecem ter sido escritas quase ao mesmo tempo;
e a Segunda a Timóteo um pouco depois.
Atualmente aceita-se como verdadeiro por todos os que são competentes
para julgar tal questão que Paulo foi libertado, e passou alguns anos viajando,
em perfeita liberdade, antes de ser novamente detido e condenado. E embora
seja difícil rastrear as pegadas do apóstolo nesse período, podemos tirar certas
conclusões a partir de suas cartas sem resvalar para a esfera da conjectura. E
mais provável que ele tenha viajado rapidamente e visitado muitos lugares. No
seu prolongado encarceramento, muitos danos foram feitos por seus inimigos nas
igrejas que Paulo havia plantado. Elas precisavam da presença, do conselho, e do
encorajamento do apóstolo. E do que sabemos sobre sua energia e zelo, temos
certeza de que ele não poupou nenhum esforço ao visitá-las.
A T e r c e ir a V ia g e m
Pa u l o
d e ix a a
de
Pa u lo | 1 4 3
It á l ia
1. Quando escreveu aos romanos, antes de sua prisão, Paulo expressou
o desejo de ir à Espanha. “Quando partir para Espanha irei ter
convosco... assim que, concluído isto, e havendo-lhes consignado este
fruto, de lá, passando por vós, irei à Espanha” (Romanos 15:24, 28).
Alguns acham que ele foi imediatamente à Espanha após sua libertação.
A principal evidência a favor dessa hipótese é fornecida por Clemente,
um colaborador mencionado em Filipenses 4:3, o qual depois se tornou
bispo de Roma. O escritor afirma que Paulo pregou o evangelho do
oriente ao ocidente-, que falou ao mundo todo (significando, sem dúvida,
o Império Romano), e que também foi às extremidades do ocidente, ou
seja, a Espanha. Como Clemente era discípulo e colaborador do próprio
Paulo, seu testemunho é digno de crédito, ainda que não esteja nas
Escrituras e, portanto, não conclusivo em si mesmo.
2. Transparece, a partir das cartas mais recentes de Paulo, que ele alterou
seu planos, e deve ter desistido de ir à Espanha, pelo menos por um
tempo. Recolhemos essa indicação principalmente nas Epístolas a
Filemom e aos Filipenses. A Filemom ele escreveu: “E juntamente
prepara-me também pousada, porque espero que pelas vossas orações
vos hei de ser concedido” (v. 22). Aqui o apóstolo diz a Filemom para
esperá-lo porque logo estaria com ele pessoalmente. Já aos Filipenses,
falando sobre Timóteo, acrescenta: “E espero no Senhor que em breve
vos mandarei Timóteo, para que eu também esteja de bom ânimo,
sabendo dos vossos negócios... Mas confio no Senhor, que também eu
mesmo irei ter convosco” (Filipenses 2:19, 23). Os planos do apóstolo
e de seu amado Timóteo parecem bem claros nessas passagens.
Evidentemente era propósito do apóstolo enviar Timóteo a Filipos
assim que a provação que enfrentava tivesse acabado, permanecendo
ele mesmo na Itália até que Timóteo retornasse com notícias deles.
3. E razoável esperar que Paulo tenha cumprido sua intenção que tão
tardiamente expressou, e que tenha visitado as igrejas na Ásia Menor,
algumas das quais jamais haviam visto seu rosto. Tendo realizado os
objetivos de sua missão na Ásia Menor, alguns acham que, então, ele
empreendeu sua tão aguardada jornada à Espanha; mas quanto a isso
não temos nenhuma informação confiável, e meras conjecturas não
têm qualquer valor.
144 j A H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 6
4. Outra teoria é que ele foi direto da Itália para a Judéia, e dali para
Antioquia, Ásia Menor e Grécia. Esse esquema é fundamentado
principalmente sobre Hebreus 13:23-24. “Sabei que já está solto o
irmão Timóteo, como o qual, se ele vier depressa, vos verei... Os da
Itália vos saúdam.” Especula-se também que, enquanto esperava uma
embarcação em Potéoli, na Itália, imediatamente após o retorno de
Timóteo, chegaram notícias de que uma grande perseguição havia
sido deflagrada contra os cristãos em Jerusalém. Essa terrível novidade
contristou tanto o coração do apóstolo a ponto dele escrever de pronto
sua famosa carta: a Epístola aos Hebreus. Pouco depois Timóteo teria
chegado, e Paulo e seus companheiros navegaram para a Judéia28.
L u g a r e s q u e Pa u l o V is it o u
QUANDO EM LIBERDADE
Tendo mostrado as diferentes teorias acima para análise do leitor, iremos
agora nos deter nos lugares mencionados por Paulo em suas epístolas.
1. Algum tempo depois de deixar Roma, Paulo e seus companheiros
devem ter visitado a Ásia Menor e a Grécia. “Como te roguei, quando
parti para a Macedônia, que ficasses em Efeso, para advertires a alguns,
que não ensinem outra doutrina” (1 Timóteo 1:3). Talvez se sentindo
um pouco ansioso quanto a Timóteo e ao peso da responsabilidade da
posição dele em Efeso, o apóstolo lhe envia da Macedônia uma carta de
encorajamento, conforto e autoridade: a Primeira Epístola a Timóteo.
2. Pouco depois disso, Paulo visitou a ilha de Creta em companhia de
Tito,deixando-o ali. Logo também lhe mandou uma carta de instrução
e autoridade: a Epístola a Tito. Timóteo e Tito podem ser considerados
como representantes do apóstolo. “Por esta causa te deixei em Creta,
para que pusesses em boa ordem as coisas que ainda restam, e de cidade
em cidade estabelecesses presbíteros, como já te mandei” (Tito 1:5).
3. Paulo planejava passar o inverno em um lugar chamado Nicópolis.
“Quando te enviar Ártemas, ou Tíquico, procura vir ter comigo a
Nicópolis; porque deliberei invernar ali” (Tito 3:12).
4. Ele visitou Trôade, Corinto, e Mileto. “Quando vieres, traze a capa
que deixei em Trôade, em casa de Carpo, e os livros, principalmente
os pergaminhos... Erasto ficou em Corinto, e deixei Trófimo doente
em Mileto” (2 Timóteo 4:13, 20).
28 Para mais detalhes sobre essa perseguição, veja Josefo, Ant. 20, 9,1.
A T
Á S e g u n d a P r is ã o
de
e r c e ir a
Pa u l o
em
V ia g e m
de
Paulo
R oma
Cogita-se que o apóstolo tenha sido preso em Nicópolis (onde pretendia
passar o inverno) e dali levado como prisioneiro a Roma. Outros, porém, acham
que, após passar o inverno em Nicópolis e visitar os lugares mencionados acima,
retornou livre para Roma, mas foi preso durante a perseguição ordenada por
Nero e foi lançado na prisão.
Não há como verificar com exatidão a acusação feita contra o apóstolo
dessa vez. Talvez fosse simplesmente pelo fato dele ser cristão. A perseguição
generalizada contra os cristãos estava atingindo limites extremos. Já não se
tratava mais de questões sobre a lei mosaica, e não havia mais o humano e gentil
Burrus para protegê-lo; Paulo agora era tratado como malfeitor, um criminoso
comum: “Por isso sofro trabalhos e até prisões, como um malfeitor” (2 Timóteo
2:9); prisões muito diferentes de seu primeiro encarceramento, quando morou
em sua própria casa que alugara.
Cremos que Alexandre, de Efeso, deve ter algo relacionado com essa
prisão. Se não era um de seus acusadores, no mínimo, era uma testemunha
contra Paulo. Este escreveu a Timóteo: “Alexandre, o latoeiro, causou-me
muitos males”. Dez anos antes, Alexandre declaradamente se colocou como
um feroz antagonista do apóstolo em Efeso (Atosl9). Quem sabe agora ele
tenha procurado sua vingança e dado queixa contra o apóstolo. Paulo advertiu
Timóteo acerca desse mesmo Alexandre de Efeso: “Tu, guarda-te também dele”
(2 Timóteo 4:14-15).
Durante seu primeiro e longo encarceramento, ele estava cercado por
muitos de seus antigos e valorosos companheiros, a quem chamou de “cooperadores” e “prisioneiros comigo”. Por meio deles, seus mensageiros, apesar de
acorrentado, ele manteve constante contatos com seus amigos por todo império,
e com as igrejas gentias que ainda não o conheciam pessoalmente. Mas sua
segunda prisão contrastava totalmente com a anterior. Ele foi separado de todos.
Erasto ficou em Corinto, Trófimo estava doente em Mileto, Tito foi para a
Dalmácia, Crescente para a Galácia, Tíquico havia sido enviado para Efeso, e
Demas o abandonou, “amando o presente século” (2 Timóteo 4:10).
O apóstolo estava completamente sozinho. “Só Lucas está comigo.”
Contudo, o Senhor pensou em Seu solitário e abandonado servo. Um raio
de luz, vindo da fonte de amor, brilha em meio à escuridão e tristeza. Houve
alguém que não o abandonou e nem se envergonhou das cadeias do apóstolo.
Quão especialmente doce e reconfortante para o coração de Paulo deve ter sido
o ministério de Onesíforo nesse período! Não se pode esquecer disso. Onesíforo
146 I A H
is t ó r i a da
I g r e ja - capítulo 6
e sua casa, a qual Paulo relaciona a si mesmo, tem de ser lembrado sempre, e
colherá o fruto de sua coragem e devoção ao apóstolo para sempre. “Estive na
prisão, e fostes ver-me” (Mateus 25:31-46).
Não temos nenhuma informação fidedigna em relação às circunstâncias do
julgamento de Paulo. Provavelmente na primavera de 66 ou 67 d.C. Nero tomou
seu lugar no tribunal, cercado pelos membros do júri e pela guarda imperial; e
Paulo foi trazido à sua presença. Temos razões para acreditar que o grande lugar
estava cheio de uma mescla de judeus e gentios. O apóstolo ficou mais uma vez
diante do mundo. Mais uma vez tinha a oportunidade de proclamar a todas
as nações o motivo pelo qual estava preso: “Para que por mim fosse cumprida
a pregação, e todos os gentios a ouvissem” (2 Timóteo 4:17). Imperadores e
senadores, príncipes e nobres, e todos os poderosos da terra tinham de ouvir o
glorioso evangelho da graça de Deus. Tudo o que o inimigo havia feito se tornou
um testemunho para o nome de Jesus. Aqueles que, de outro modo, eram ina­
cessíveis ouviram o evangelho pregado com poder do alto.
Seria bastante proveitoso nos demorarmos nessa maravilhosa cena por
alguns momentos. Jamais houve tal testemunha, e tal testemunho, na sala
de julgamento de Nero. A sabedoria de Deus em tornar todos os esforços do
inimigo em testemunho é profundíssima; Seu amor e graça no evangelho
brilham indescritivelmente e da mesma forma para todas as classes de pessoas.
O próprio apóstolo nos suscita admiração. Embora naquele período seu coração
estivesse partido pela infidelidade da igreja, ele permaneceu firme no Senhor e
na força do Seu poder. Embora tivesse sido abandonado pelos homens, o Senhor
ficou ao seu lado e o fortaleceu. Paulo confrontou ousadamente seus inimigos,
advogando em causa própria e do evangelho. Ele teve a oportunidade de falar
de Jesus, de Sua morte e ressurreição, de modo que uma multidão de gentios
pudesse ouvir o evangelho. A idade, as enfermidades, a aparência, os grilhões,
enfim, tudo parecia enfraquecer o impacto da valorosa e franca eloqüência
do apóstolo. Porém, felizmente, temos um relato de sua própria pena sobre a
primeira audiência. Ele escreve a Timóteo imediatamente após isso: “Ninguém
me assistiu na minha primeira defesa, antes todos me desampararam. Que isto
lhes não seja imputado. Mas o Senhor assistiu-me e fortaleceu-me, para que por
mim fosse cumprida a pregação, e todos os gentios a ouvissem', e fiquei livre da
boca do leão” (2 Timóteo 4:16-17).
“Observe agora, e veja o santo escolhido de Cristo
Em triunfo usar cadeias como seu Senhor;
Nenhum temor irá desviá-lo ou abatê-lo
Sua vida é Cristo, sua morte é lucro.”
A T e r c e i r a V ia g e m d e P a u l o
O M a r t ír io
de
1 147
Pa u lo
Embora não tenhamos nenhum relato da segunda audiência, temos razões
para acreditar que foi logo depois da primeira, e que acabou na condenação e
morte de Paulo. A Segunda Epístola a Timóteo é o registro divino do que se
passava em seu interior naquele solene momento. Apenas suas próprias palavras
podem descrever seu profundo zelo pela verdade e pela igreja de Deus, seu
tocante amor pelos santos, e em especial por seu amado filho Timóteo e sua
triunfante esperança diante do iminente martírio. “Porque eu já estou sendo
oferecido por aspersão de sacrifício, e o tempo da minha partida está próximo.
Combati o bom combate, acabei a carreira, guardei a fé. Desde agora, a coroa
da justiça me está guardada, a qual o Senhor, justo juiz, me dará naquele
dia; e não somente a mim, mas também a todos os que amarem a sua vinda”
(2 Timóteo 4:6-8).
O tribunal de Nero desvanece perante seus olhos. A morte em sua mais
violenta forma não exerce terror sobre o apóstolo. Cristo na glória é o objeto de
seus olhos e coração; a fonte de sua alegria e força. Sua missão está terminada,
e sua amorosa labuta se finda. Embora prisioneiro e pobre; embora idoso e
rejeitado; Paulo era rico em Deus, pois possuía a Cristo e, por meio dEle,
todas as coisas. O mesmo Jesus que ele tinha visto na glória no começo de sua
carreira, o mesmo que o conduzira por todas as provas e batalhas do evangelho,
Ele mesmo era sua coroa e herança. O injusto tribunal de Nero e a espada
manchada de sangue do carrasco eram para Paulo mensageiros da paz, os quais
vinham encerrar sua longa e cansativa jornada e introduzi-lo na presença de
Jesus na glória. Era o tempo do Senhor que o amava recolher Seu servo para
Si. Paulo havia lutado o bom combate do evangelho até o fim, completara a
carreira, e, portanto, para ele só resta ser coroado quando o Senhor, justo Juiz,
vier em glória.
“M a s em todas estas coisas somos mais do que vencedores.
Por aquele que nos amou.
Porque estou certo de que, nem a morte, nem a vida
Nem os anjos, nem os principados, nem as potestades
Nem o presente, nem o porvir
Nem a altura, nem a profundidade
Nem alguma outra criatura
N os poderá separar do amor de Deus
Que está em Cristo Jesus nosso Senhor.”
148 |
A H
is t ó r ia d a
I g r e ja - capítulo 6
Temos simultâneos testemunhos da antiguidade de que Paulo sofreu
martírio durante a perseguição de Nero, mais provavelmente em 67 d.C.. Como
cidadão romano, ele foi decapitado ao invés de ser açoitado e crucificado ou
exposto às terríveis torturas que inventaram para os cristãos. Como seu Mestre,
ele sofreu “fora da porta”. Há um local na Via Ostia, cerca de 3,5 quilômetros
fora dos muros da cidade, onde supõe-se que tenha ocorrido seu martírio. Ali
o último ato de crueldade humana foi executado, e o grande apóstolo deixou
seu corpo para habitar com o Senhor (2 Coríntios 5:8). Seu ardoroso e forte
espírito foi libertado de seu frágil e decrépito corpo; e o antigo desejo de seu
coração finalmente se realizou: o “desejo de partir, e estar com Cristo, porque
isto é ainda muito melhor” (Filipenses 1:23).
C r o n o l o g ia
d a v id a d e
Pa u lo
Ano 36 - Conversão de Saulo de Tarso (Atos 9).
Anos 36 a 39 - Em Damasco: prega na sinagoga; vai para Arábia. Volta
para Damasco. Foge de Damasco. Faz sua primeira
visita a Jerusalém, três anos após sua conversão, e
depois vai dali para Tarso (Atos 9:23-26; Gálatas
1:18).
Anos 39 e 40 - Paz nas igrejas judias (Atos 9:31).
Anos 40 a 43 — Paulo prega o evangelho na Síria e na Cilicia (Gálatas
1:21). Durante um período indeterminado, ele enfrenta
a maior parte dos perigos e sofrimentos que relata aos
coríntios (2 Coríntios 11). É trazido de Tarso para
Antioquia por Barnabé, e fica ali um ano antes da
grande fome (Atos 11:25-28).
Ano 44 - Segunda visita a Jerusalém, com as ofertas (Atos
11:30).
Ano 45 - Paulo retorna à Antioquia (Atos 12:25).
Anos 46 a 49 - A primeira viagem missionária com Barnabé: vai
para Chipre, Antioquia na Pisídia, Icônio, Listra,
Derbe, retornando pelos mesmos lugares à Antioquia,
onde permanece longo tempo. Dissensão e contenda
sobre a circuncisão dos gentios (Atos 13 a 15).
A T e r c e ir a V ia g e m
de
Pa u lo j
Ano 50
Terceira visita a Jerusalém com Barnabé, catorze anos
depois de sua conversão (Gálatas 2:1). Eles participa­
ram do concílio em Jerusalém (Atos 15). Retorno de
Paulo e Barnabé a Antioquia, com Judas e Silas (Atos
15:32-35).
Ano 51
Segunda viagem missionária, com Silas e Timóteo.
Ele parte de Antioquia e vai para Síria, Cilicia, Derbe,
Listra, Frigia, Galácia, Trôade. Lucas se junta ao grupo
apostólico (Atos 16:10).
Ano 52
Entrada do evangelho na Europa (Atos 16:11-13). Paulo
visita Filipos, Tessalônica, Beréia, Atenas, Corinto,
onde passa um ano e meio (Atos 18:11). Escreve a
Primeira Epístola aos Tessalonicenses.
Ano 53
Escreve a Segunda Epístola aos Tessalonicenses. Paulo
deixa Corinto e navega para Éfeso (Atos 18:18-19).
Ano 54
Quarta visita a Jerusalém por ocasião da festa. Retorna
à Antioquia.
Anos 54 a 56
Terceira viagem missionária. Parte de Antioquia, visita
a Galácia, Frigia e alcança Éfeso, onde fica dois anos e
três meses. Ali Paulo separa os discípulos da sinagoga
judia (Atos 19:8, 10). Escreve a Epístola aos Gálatas.
Primavera do ano 57
Escreve a Primeira Epístola aos Coríntios. Tumulto em
Éfeso. Paulo vai para a Macedônia (Atosl9:23; 20:1).
No outono, escreve a Segunda Epístola aos Coríntios
(2 Coríntios 1:8; 2:13-14; 7:5; 8:1; 9:1). Paulo visita
a região do Ilírico. Vai para Corinto, onde passa o
inverno (Romanos 15:19; 1 Coríntios 16:6).
Primavera do ano 58
Escreve a Epístola aos Romanos (Romanos 15:25-28;
16:21-23; Atos 20:4). Paulo deixa Corinto, atravessa a
Macedônia, navega para Filipos, prega em Trôade, fala
aos anciãos em Mileto, visita Tiro e Cesaréia (Atos 20;
21:1-14).
Anos 58 a 60
Quinta visita a Jerusalém antes da festa de Pentecostes.
Ele é preso no templo, trazido diante de Ananias e
do sinédrio, enviado por Lísias à Cesaréia, e mantido
cativo por dois anos.
150 | A
H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 6
Ano 60 — Paulo se defende perante Festo e Félix. Apela para
César. Prega diante de Agripa, Berenice e dos líderes
de Cesaréia. No outono navega para Itália. No inverno
naufraga em Malta (Atos 27).
Primavera do ano 61 - Chega a Roma. Aluga uma casa, na qual mora por dois
anos.
Primavera do ano 62 - Escreve as Epístolas a Filemom, aos Colossenses e aos
Efésios. Escreve a Epístola aos Filipenses no outono.
Primavera do ano 63 - Paulo é libertado. Escreve a Epístola aos Hebreus. Faz
outra viagem, pretendendo visitar a Ásia Menor e a
Grécia (Filemom 22; Filipenses 2:24).
Ano 64 - Visita Creta, onde deixa Tito. Exorta Timóteo a se
estabelecer em Efeso. Escreve a Primeira Epístola a
Timóteo e a Primeira Epístola a Tito.
Anos 64 a 67 - Planeja passar o inverno em Nicópolis (Tito 3:12).
Visita Trôade, Corinto, Mileto (2 Timóteo 4:13-20).
Paulo é preso e mandado para Roma. Abandonado
por todos os seus antigos companheiros, tinha apenas
Lucas ao seu lado. Escreve a Segunda Epístola a
Timóteo, provavelmente pouco antes de sua morte.
Supõe-se que tais eventos e viagens tenham acontecido
durante um período de três anos.
Ano 67 - Paulo é martirizado.
Capítulo 7
O I n c ê n d io
de
R oma
C
omo nossos dois grandes apóstolos, Pedro e Paulo, sofreram martírio
durante a primeira perseguição imperial pode ser interessante para
muitos de nossos leitores conhecer as particularidades que culminaram
nesse édito cruel.
Porém aqui, ainda que de modo relutante, teremos que deixar a fidedigna
Palavra de Deus e nos voltarmos às incertas escritas dos homens. Neste momento
passamos do terreno firme e sólido da inspiração divina para o fundamento
inseguro de historiadores romanos e da história eclesiástica. Não obstante, todos
os historiadores, antigos e modernos, cristãos e não-cristãos, estão de acordo sobre
os principais fatos relativos ao incêndio de Roma e à perseguição dos cristãos.
No mês de julho do ano 64, um grande fogo começou em volta do Circo
Máximo e continuou se espalhando até que transformou em ruínas toda a antiga
grandeza da cidade imperial. Sendo Roma uma cidade de longas ruas estreitas e
de colinas e vales, as chamas avançaram com grande rapidez. A força do vento
ajudou o fogo a se alastrar e logo o caos se instalou. Em pouco tempo a cidade
inteira parecia envolvida em um mar de chamas ardentes.
Tácito, historiador romano da época, considerado um dos mais confiáveis
de seu tempo, nos fala: “Das catorze áreas nas quais Roma era dividida,
apenas quatro permaneceram inteiras, três foram reduzidas à ruínas e as sete
restantes não eram nada mais que um amontoado de casas em escombros”.
O fogo queimou furiosamente durante seis dias e sete noites. Palácios, templos,
1 5 2 I A H i s t ó r i a d a I g r e j a - capítulo 7
monumentos, as mansões dos ricos e as habitações dos pobres pereceram neste
fogo fatal. Mas isso não era nada comparado aos sofrimentos dos habitantes. As
enfermidades dos idosos, a fraqueza dos jovens, o desamparo dos doentes, os
pavorosos gritos e lamentações das mulheres se somaram às misérias desta cena
terrível. Alguns fizeram o possível para se salvar, outros para salvar seus amigos,
mas não havia onde encontrar qualquer lugar seguro. Ninguém podia dizer
para onde ir ou o que fazer; o fogo ardia por todo lado, de maneira tal que as
pessoas caíam prostradas na rua, abraçando uma morte voluntária e perecendo
nas chamas.
A pergunta mais importante, ou seja, como o fogo se originou, era
discutida agora em todos os lugares. Quase todos acreditavam que a cidade
foi queimada por incendiários, e pelas ordens do próprio Nero. Era certo que
vários homens foram vistos alimentando as chamas ao invés de extinguí-las; e
eles afirmaram ousadamente que tinham autoridade para agir assim. Também
foi relatado que, enquanto Roma ardia, o monstro Nero estava em uma torre
de onde podia assistir o progresso do incêndio, divertindo-se tocando a “Queda
de Tróia” em sua lira favorita.
Sem dúvida, muitos de nossos leitores se perguntarão que objetivo Nero
poderia ter para queimar completamente a maior parte de Roma. Acreditamos
que o objetivo dele talvez fosse reconstruir a cidade com maior esplendor, e
chamá-la pelo próprio nome. E imediatamente ele tentou isso do modo mais
impressionante. Mas tudo o que fez nao lhe restabeleceu o favor popular ou
retirou a infame pecha de ter ateado fogo à cidade. E quando acabou toda a
esperança de obter o favor das pessoas e dos deuses, Nero lançou mão de um
expediente para colocar a culpa em outros. Ele sabia o bastante acerca da impo­
pularidade dos cristãos, tanto com os judeus como com os gentios, para decidir
fazer deles seu bode expiatório. Logo foi espalhado um rumor que os incendiá­
rios tinham sido descobertos, e que os cristãos eram os criminosos. Muitos foram
imediatamente presos e punidos à altura para satisfazer a indignação popular.
* * *
A P r im e ir a P e r se g u iç ã o
so b o s I m p e r a d o r e s
Aqui teremos de parar um pouco e observar o progresso do cristianismo
e o estado da igreja em Roma neste momento. Muito cedo, e sem a ajuda de
qualquer apóstolo, o cristianismo penetrou em Roma. Sem dúvida, foi levado
R oma
e seu s
G o vernantes
(64 dG. - 177 dG.) | 153
para lá por alguns que tinham se convertido por causa da pregação de Pedro
no dia de Pentecostes. Entre seus ouvintes, os “forasteiros romanos, tanto
judeus como prosélitos” são mencionados expressamente (Atos 2:10). E Paulo,
em sua epístola para aquela igreja, agradece a Deus “porque em todo o mundo
é anunciada a vossa fé” (Romanos 1:8). E nas saudações fala de “Andrônico
e Júnia”, parentes dele e também prisioneiros, os quais eram líderes entre os
apóstolos e cuja conversão acontecera antes da dele. Grandes maravilhas tinham .
sido feitas pelo evangelho no período de trinta anos. Os cristãos se tornaram um
povo marcado, separado, peculiar. Eles se distinguiam totalmente dos judeus, e
eram amargamente condenados por eles.
Os esforços de Paulo e de seus companheiros durante os dois anos da prisão
dele indubitavelmente foram abençoados por Deus e levaram à conversão de
centenas. De forma que os cristãos nessa época não formavam uma comunidade
secreta ou insignificante, mas contavam em suas fileiras tanto com judeus como
com gentios, de todas as camadas e condições sociais, da casa imperial ao escravo
fugitivo. Mas, como vimos, o sofrimento deles não era devido ao cristianismo.
Eles foram sacrificados por Nero para aplacar a fúria popular e apaziguar as
divindades ofendidas.
Essa foi a primeira perseguição oficial aos cristãos; e algumas de suas
características são ímpares nos anais da brutalidade humana. A criatividade
dos perversos deu origem a modos novos de tortura para agradar o sanguinário
Nero - o imperador mais brutal que já reinou. Os pacíficos, calmos e inofensivos
seguidores do Senhor Jesus eram costurados nas peles de bestas selvagens e
despedaçados por cachorros; outros foram vestidos com uma espécie de tecido
coberto com cera, piche, ou outro material inflamável, tendo uma estaca
debaixo do queixo para mantê-los na vertical e eram queimados ao entardecer
para servirem como tochas nos jardins públicos de diversões populares. Nero
emprestou os próprios jardins para tais exibições, e proporcionou entretenimento
para as pessoas. Ele tomou parte ativa nos jogos; às vezes se misturando com
a multidão e às vezes assistindo o terrível espetáculo de sua carruagem. Mas
os romanos, acostumados com as execuções públicas e com os espetáculos
dos gladiadores, passaram a se compadecer dos cristãos pelas crueldades sem
precedentes infligidas a eles.
Eles começaram a ver que os cristãos sofriam, não para o bem público,
mas para satisfazer a crueldade de um monstro. Contudo, por mais horrível que
fosse a morte, ela terminaria logo, e para os primeiros mártires, sem dúvida, era
o momento mais feliz de sua existência. Muito, muito tempo antes das chamas se
apagarem no jardim de Nero, os mártires tinham chegado à casa e ao descanso
154 I A
H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 7
celestiais, ao jardim florescente das delícias eternas de Deus. Aprendemos essa
preciosa verdade a partir do que o Salvador disse ao ladrão penitente na cruz:
“Em verdade te digo que hoje estarás comigo no Paraíso” (Lucas 23:43).
Embora os historiadores não estejam de acordo sobre a extensão ou a
duração desta perseguição horrenda, há razões muito boas para acreditarmos
que abrangeu todo o império, e que durou até o fim da vida do tirano. No ano
68 d.C., aproximadamente quatro anos depois do incêndio de Roma, e um ano
depois do martírio de Pedro e Paulo, em completa miséria e desespero, Nero
se matou. Já no final de seu reinado, debaixo das mais severas penalidades,
até mesmo a de morte, exigia-se dos cristãos que oferecessem sacrifícios ao
imperador e aos deuses pagãos. A perseguição deve ter continuado enquanto
tais éditos vigoravam.
Depois da morte de Nero cessou a perseguição e os seguidores de Jesus
desfrutaram uma paz relativa até o reinado de Domiciano, um imperador um
pouco menos cruel do que Nero em maldade. Mas, nesse ínterim, temos que
nos desviar por um momento e contemplarmos a realização da mais solene
advertência de Deus.
k
í;
'k
A Q u e d a d e J er u sa lém
(70 d.C.)
A dispersão dos judeus e a destruição total de sua cidade e templo são os
próximos eventos para considerarmos no restante do primeiro século, embora,
a rigor, essa terrível catástrofe não faça parte da história da igreja; pertence à
história dos judeus. Porém, como era um cumprimento literal da profecia do
Salvador e afetou imediatamente os que eram cristãos, merece um lugar em
nossa história.
Os discípulos, antes da morte e ressurreição de Cristo, eram distintivamente
judeus em todos os seus pensamentos e relacionamentos. Eles associavam o Messias
ao templo. Pensavam que Ele iria libertá-los do poder dos romanos, e que todas
as profecias sobre a terra, as tribos, a cidade e o templo seriam cumpridas. Mas
os judeus rejeitaram o próprio Messias, e, por conseguinte, todas as esperanças
e promessas que tinham nEle. Mais significativas e solenes são as palavras de
Mateus 24: “Não vedes tudo isto? Em verdade vos digo que não ficará aqui pedra
sobre pedra que não seja derrubada”. Agora o templo estava realmente vazio aos
olhos de Deus. Tudo aquilo que tinha valor para Ele se foi. “Eis que a vossa casa
vai ficar-vos deserta” (Mateus 23:38). Estava agora pronta para destruição.
R om a e seu s G o v e r n a n te s
(64 d.C. - 177 d.C.) | 155
“E, quando Jesus ia saindo do templo, aproximaram-se dele os seus
discípulos para lhe mostrarem a estrutura do templo”. Eles ainda estavam
ocupados com a grandeza e glória dessas coisas. “Não vedes tudo isto? Em
verdade vos digo que não ficará aqui pedra sobre pedra que não seja derrubada”.
Taís palavras foram literalmente cumpridas pelos romanos cerca de quarenta
anos após terem sido proferidas, e exatamente da maneira como o Senhor
havia dito. “Porque dias virão sobre ti, em que os teus inimigos te cercarão de
trincheiras, e te sitiarão, e te estreitarão de todos os lados; e te derrubarão, a ti
e aos teus filhos que dentro de ti estiverem, e não deixarão em ti pedra sobre
pedra, pois que não conheceste o tempo da tua visitação (Lucas 19:43-44).
Após os romanos terem experimentado muitos fracassos e derrotas na
tentativa de romper os muros, por causa da resistência desesperada dos judeus
insurgentes e, embora houvesse pouca esperança de tomar a cidade, Tito mesmo
assim conclamou um conselho de guerra. Foram discutidas três estratégias: atacar
violentamente a cidade de imediato, consertar os aparatos militares e reconstruir
as máquinas; ou sitiar e induzir a fome na cidade para forçar a rendição. A última
foi escolhida e o exército inteiro trabalhou para “entrincheirar” toda a cidade.
Mas o cerco foi longo e difícil. Durou quase um ano. E nesse tempo, os sitiados
experimentaram sofrimentos sem precedentes. Então o fim chegou, quando a
cidade e o templo caíram nas mãos dos romanos. Tito estava ansioso para poupar
o magnífico templo e seus tesouros. Mas, contrariando suas ordens, um soldado
montado nos ombros de um dos companheiros ateou fogo em uma pequena
porta dourada no pátio exterior. As chamas se espalharam. Tito, vendo isto,
correu velozmente para o local; ele gritou, fez sinais para os soldados apagarem
o fogo; mas ninguém notou por causa da terrível confusão. O esplendor do
interior maravilhou Tito. E como as chamas ainda não tinham chegado ao lugar
santo, ele fez um último esforço para salvá-lo e exortou os soldados para apagar o
incêndio; mas era tarde demais. Labaredas ardentes voavam em todas as direções
e a excitação feroz da batalha, com a esperança insaciável da pilhagem, tinha
alcançado seu auge. Tito não conhecia o que Alguém maior já estabelecera: “Não
ficará aqui pedra sobre pedra que não seja derrubada”. A Palavra de Deus, não
os comandos de Tito, tem de ser obedecida. O templo foi inteiramente arrasado
até às fundações, de acordo com a Palavra do Senhor.
No que se refere a quase todos os detalhes desse pavoroso cerco, estamos
endividados com Josefo, o qual estava no acampamento romano e na ocasião era
alguém próximo de Tito. Ele agiu como intérprete quando as condições foram
negociadas entre Tito e os insurgentes. Os muros e as fortalezas de Sião pareciam
inexpugnáveis ao romano, e ele se sentia compelido a chegar logo aos termos de
paz; mas os judeus rejeitaram cada proposta e os romanos, enfim, triunfaram.
j A H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 7
Ao entrar na cidade, Josefo nos fala que Tito ficou surpreendido com a robustez
dela. De fato, ao contemplar a espantosa altura das torres, a magnitude das
pedras e a precisão com que eram edificadas, e ao ver como eram largas e altas,
exclamou: “Seguramente, nós lutamos com Deus do nosso lado; e foi Deus quem
arrancou os judeus dessas fortalezas, pois o que poderiam fazer mãos humanas
ou máquinas contra estas torres?”. Tais foram as confissões do general gentio.
Certamente foi o cerco mais terrível registrado em toda a história humana.
Os relatos dados por Josefo dos sofrimentos dos judeus durante o cerco
são horríveis demais para serem transferidos para nossas páginas. Dos anos 67
a 70 d.C., o número dos que morreram no país inteiro debaixo do domínio de
Vespasiano, e debaixo de Tito na cidade, seja por escassez, facções internas ou
pela espada romana chegou a 1.350.460 pessoas, além de cem mil vendidos
como escravos29. Infelizmente, essas foram as graves conseqüências de não terem
crido nas advertências solenes, sérias e apaixonadas do próprio Messias deles.
Precisamos mesmo nos surpreender das lágrimas do Redentor derramadas pela
cidade louca? E, hoje, é de surpreender as lágrimas do Pastor, quando Ele tenta
atrair pecadores loucos, tendo em vista os julgamentos eternos que logo virão?
Na verdade, o que surpreende é quão poucas lágrimas são derramadas pelos
pecadores endurecidos, descuidados, e perdidos. Oh, que haja corações capazes
de sentir como o Salvador e olhos para chorar como os Seus!
Os cristãos, com quem temos especialmente tratado, lembrando da
advertência do Senhor, em grupo deixaram Jerusalém antes do cerco acontecer.
Eles viajaram a Pella, uma aldeia além do Jordão, onde permaneceram até que
Adriano lhes permitisse voltar às ruínas da cidade antiga. E isto nos traz ao final
do Primeiro Século.
Durante os reinados mais moderados de Vespasiano e seu filho, Tito, o
número de cristãos deve ter aumentado consideravelmente. Deduzimos tal coisa
não de algum relato direto que tenhamos da prosperidade deles, mas de circuns­
tâncias incidentais que provam isso.
O C r u el R e in a d o
de
D
o m ic ia n o
Domiciano, irmão mais novo de Tito, subiu ao trono no ano 81 d.C..
Mas ele tinha um temperamento totalmente diferente do pai e do irmão. Estes
toleravam os cristãos, aquele os perseguiu. Possuía um caráter covarde, duvidoso
e cruel. Ele começou uma perseguição contra os cristãos por causa de um
29 História dos Judeus, de Dean Milman, livro 16, volume 2, página 380.
R o m a e s e u s G o v e r n a n t e s (64
d.C. - 177 d.C.) I 1 5 7
medo vago e supersticioso que alimentava de que alguém nascido na Judéia, da
família de Davi, iria conquistar o império do mundo. Domiciano não poupou
nem mesmo os romanos de nascimento mais ilustre e alta posição que haviam
abraçado o cristianismo. Alguns foram martirizados na mesma hora em que fora
aprisionados, outros foram banidos para serem martirizados no exílio. A própria
sobrinha dele, Domitila e seu primo, Flávio Clemente, para quem ela tinha sido
dada em matrimônio, se tornaram vítimas de sua crueldade por terem abraçado
o evangelho de Cristo. Assim nós vemos que o cristianismo, pelo poder de Deus,
apesar de exércitos e imperadores, fogo e espada, estava se espalhando, não só
entre as classes baixa e média, mas também entre mais altas da sociedade.
“Domiciano”, diz Eusébio, o pai da história eclesiástica, “tendo exercitado
sua crueldade contra muitos, e assassinado injustamente um grande número de
nobres e ilustres em Roma e tendo, sem causa, punido inúmeros homens ilustres
com o exílio e o confisco de suas propriedades, por fim se estabeleceu como o
sucessor de Nero no ódio e na hostilidade para com Deus. Ele também seguiu
Nero ao se divinizar. Ele ordenou que sua própria estátua fosse adorada como
um deus, reavivou a lei da traição e colocou em prática suas sinistras providên­
cias: sob tais circunstâncias, rodeado como estava de espiões e informantes,
como deve ter sido essa segunda perseguição aos cristãos!30
Mas o fím deste tirano fraco, presunçoso e desprezível chegou logo. Ele
tinha por hábito escrever em um rolo os nomes das pessoas a quem planejava
matar, mantendo tal lista cuidadosamente consigo. E para desviar a atenção das
futuras vítimas, ele as tratava com a maior consideração. Mas, certo dia, uma
criança que brincava no aposento, retirou essa lista fatal de sob uma almofada na
qual Domiciano se reclinara para dormir, e a levou à imperatriz. Ela ficou chocada
e alarmada ao encontrar o próprio nome na lista negra, junto com outros que apa­
rentemente contavam com o alto favor do imperador. A imperatriz revelou a tais
pessoas o perigo que corriam, e, apesar de toda a precaução gerada pela covardia
e astúcia, Domiciano foi morto por dois oficiais de sua própria família.
O C urto,
m as
Pa c íf ic o R e in a d o
de
N e rv a
Em 18 de setembro do ano 96 d.C., mesmo dia da morte de Domiciano,
Nerva foi escolhido pelo Senado como imperador. Ele era um homem de
reputação imaculada. Seu reinado foi o mais favorável à paz e à prosperidade
da igreja de Deus. Os cristãos que tinham sido banidos por Domiciano foram
30 Veja a História Romana, Enciclopédia Britanica, volume 19.
158 | A
H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 7
chamados de volta e recuperaram as propriedades confiscadas. O apóstolo João
voltou do exílio na ilha de Patmos e retomou seu serviço entre as igrejas na Ásia.
Ele sobreviveu até o reinado de Trajano, quando, devido à idade avançada de
cerca de 100 anos, dormiu em Jesus.
Nerva começou seu reinado reparando injustiças, revogando estatutos
iníquos, promulgando leis boas e dispensando favores com grande liberalidade.
Mas sentindo inadequado aos deveres de sua posição, adotou Trajano como
sucessor e morreu no ano 98 d.C..
A C o n d iç ã o d o s C r ist ã o s
n o R e in a d o d e T r a ja n o
(anos 98-117)
Como a situação externa da igreja era então afetada pela vontade de um
homem, será então necessário notar, ainda que brevemente, a disposição ou
paixão dominante do príncipe regente. Portanto, em todos os lugares a condição
dos cristãos dependia em grande parte de quem era o mestre do mundo romano,
e em certo sentido, do mundo inteiro. Porém, Deus estava e está no domínio
de tudo.
Trajano era um imperador de grande renome. Talvez como nenhum outro
que se sentou no trono dos Césares. O mundo romano alcançou seus limites
máximos graças às vitórias dele. Ele deu origem à fama de invencível que o
exército romano tinha. A disciplina romana pôde ser sentida nas fronteiras como
nenhum antes dele havia feito. Era um grande general e um soberano militar;
e possuindo uma mente inteligente e vigorosa, Trajano foi um administrador
eficiente e Roma floresceu debaixo de seu governo. Mas quanto à história
da igreja, o caráter dele aparece sob uma luz menos favorável. Ele tinha um
preconceito declarado contra o cristianismo e apoiou a perseguição de cristãos.
Alguns dizem que cogitou a extinção do Nome. Essa é a mancha mais profunda
na memória de Trajano.
Mas o cristianismo, apesar dos imperadores romanos, das prisões romanas
e das execuções romanas, continuou seu silencioso e firme caminho. Em pouco
mais de setenta anos após a morte de Cristo, tinha feito tal progresso em alguns
lugares que forçava a queda do paganismo. Os templos pagãos estavam desertos,
não havia mais adoração aos deuses e as vítimas para sacrifícios raramente eram
compradas. Isso naturalmente suscitou um clamor popular contra o cristianis­
mo, como aconteceu em Efeso: “E não somente há o perigo de que a nossa
profissão caia em descrédito, mas também de que o próprio templo da grande
R oma
e seu s
G overnantes
(64 d.C. - 177 d.C.) f 15 9
deusa Diana seja estimado em nada, vindo a ser destruída a majestade daquela
que toda a Ásia e o mundo veneram” (Atos 19:27). Aqueles cujo sustento
dependia da adoração às deidades pagãs faziam muitas e sérias acusações contra
os cristãos perante os governadores. Isso acontecia especialmente nas províncias
asiáticas onde o cristianismo prevalecia.
No ano 110 d.C., muitos cristãos foram trazidos perante o tribunal de
Plínio, o Jovem, governador da Bitínia e Ponto. Mas Plínio, sendo por natureza
um homem sábio, moderado e humano se esforçou para se informar dos
princípios e práticas dos cristãos. E quando descobriu que vários deles foram
condenados à morte sem qualquer prova de terem cometido algum crime
público, ficou bastante constrangido. Ele não tinha se inteirado dessas questões
antes, e nenhuma lei estabelecida sobre o assunto existia. Os éditos de Nero
haviam sido revogados pelo Senado, e os de Domiciano pelo sucessor dele,
Nerva. Dada tais circunstâncias, Plínio solicitou o conselho de seu mestre, o
imperador Trajano. As cartas trocadas por eles, com justiça consideradas o mais
valioso registro da história da igreja durante aquele período, merece um lugar
em nossas Notas. Mas transcreveremos só uma porção da célebre carta de Plínio,
e em especial as partes que se referem ao caráter dos cristãos e à abrangência do
cristianismo.
C arta
de
P l ín io
ao
I m p e r a d o r T r a ja n o
“Saúde. E meu costume habitual, senhor, consultar-me contigo em todas
as coisas das quais tenho dúvida. Pois quem pode melhor guiar meu julgamento
quando na hesitação, ou instruir minha compreensão quando na ignorância?
Nunca tive a fortuna de estar presente em qualquer interrogatório de cristãos
antes de chegar a esta província. Portanto, estou confuso para determinar
qual seria o assunto corrente tanto da investigação quanto do castigo, e que
duração qualquer um deles deveria ter.... Enquanto isso, esse tem sido o meu
método com respeito aos que foram trazidos perante mim como cristãos. Eu
lhes perguntei se eram cristãos: caso se declarassem culpados, eu os interrogava
- uma segunda e uma terceira vez - sob ameaça de pena capital. No caso de
perseverança obstinada, eu os mandava para execução.... Um ‘libelo’ anônimo
foi publicado, contendo nomes de muitos que negaram que eram, ou tinham
sido, cristãos e invocavam os deuses, como prescrevi, e faziam preces à imagem
deles, com incenso e vinho, e além disso insultavam o Cristo; ouvi que um
verdadeiro cristão jamais seria compelido a fazer nenhuma de tais coisas. Assim
eu considerei adequado liberá-los.... Todo crime ou erro dos cristãos se baseia
nisso: eles estão acostumados a se encontrar antes do amanhecer em um dia
160 I A
H istó ria
da
I g r e j a - capítulo 7
determinado, e cantar entre eles um hino para Cristo, como um deus, e se
comprometer através de juramento a não cometer maldade; não serem culpados
de furto, ou roubo ou adultério; nunca mentir, nem negar a devolver um penhor
quando solicitados a fazê-lo. Quando estas coisas eram realizadas, o costume
deles era se separarem, e em outro dia se reunirem de novo para uma refeição
inofensiva, da qual participavam em comum sem qualquer desordem; porém,
esta última prática eles deixaram de observar desde a publicação de meu édito,
pelo qual, de acordo com as suas ordens, eu proibi assembléias.
“Depois deste relato, julguei mais necessário investigar, e sob tortura,
duas mulheres que seriam diaconisas, mas não descobri nada, exceto uma
superstição ruim e excessiva. Então, suspendendo todos os processos judiciais,
recorro a ti para aconselhar-me. O número dos acusados é tão grande que
necessita de uma consulta séria. Muitas pessoas estão sendo denunciadas, de
todas as idades e níveis, e de ambos os sexos; e muitos mais serão acusados.
A influência desta superstição não tem apenas dominado as grandes cidades,
mas as menores também, e os campos: não obstante, parece a mim que pode
ser contida e corrigida. É certo que os templos que estavam quase abandonados
começariam a ser mais freqüentados; e as solenidades sagradas, após um longo
intervalo, reavivadas. Igualmente, as vítimas serão compradas em todos lugares,
considerando que durante um tempo poucos compradores havia. Por isso é fácil
imaginar a quantidade deles que poderiam ser recuperados se o perdão fosse
concedido aos que se arrependessem.”
C arta
de
T r a ja n o
pa r a
P l ín io
“Você agiu perfeitamente correto, meu querido Plínio, no tocante à inves­
tigação relativa aos cristãos. Pois, de fato, nenhuma regra geral se aplicará a todos
os casos. Essas pessoas não devem ser procuradas; se forem trazidas e condenadas,
deixe que sejam punidas com a pena capital, mas com essa restrição: que se
qualquer um renunciar ao cristianismo e evidenciar sua sinceridade suplicando
aos nossos deuses, ainda que possa ter sido suspeito no passado, permita que no
arrependimento este obtenha perdão. Mas em nenhum caso libelos anônimos
têm de ser levados em consideração; pois isso é um precedente muito perigoso, e
totalmente incongruente com as máximas de nossa época.”
O testemunho claro e insuspeito destas duas cartas suscita na mente do
cristão de hoje pensamentos e sentimentos do mais profundo interesse. A Primeira
Epístola de Pedro se dirigia aos pais [na fé\ desses santos sofredores, e possivel­
mente a alguns deles que estavam vivos na ocasião; e também não é improvável
que Pedro tenha trabalhado pessoalmente entre eles. Portanto, de antemão foram
R om a e seu s G o v e r n a n te s
(64 d.C . - 177 d .C .) | 1 6 1
ensinados e encorajados a estar “sempre preparados para responder com mansidão
e temor a qualquer que vos pedir a razão da esperança que há em vós”, inclusive
ao governador romano (1 Pedro 3:15). De fato, o conteúdo dessa primeira epístola
parece divinamente moldado para fortalecer esses inocentes cristãos contra o
procedimento injusto e irracional de Plínio. “Ora, pois, já que Cristo padeceu
por nós na carne, armai-vos também vós com este pensamento” (IPedro 4:1).
Pedro descreve em sua epístola a família da fé como em uma viagem pelo deserto,
e Deus como o Governador supremo que rege tudo - os crentes e incrédulos.
“Porque os olhos do Senhor estão sobre os justos, e os seus ouvidos atentos às
suas orações; mas o rosto do Senhor é contra os que fazem o mal” (1 Pedro
3:12). Com tal cena e tais testemunhas diante de nós, levando em consideração a
posição de Trajano e Plínio como estadistas gentios, podemos bem indagar nessa
fase tão inicial de nossa história qual a real causa da perseguição.
* * *
A V e r d a d e ir a C a u sa
da
P e r se g u iç ã o
Embora razões diferentes possam ser dadas por diferentes pessoas e
governos para perseguir os cristãos, acreditamos, contudo, que a verdadeira causa
é a inimizade do coração contra Cristo e Sua verdade, manifesta na vida piedosa
de Seu povo. Além disso, a luz deles toma evidente a escuridão ao redor, expõe
e reprova as inconsistências dos falsos mestres e a vida ímpia dos perversos. O
inimigo, aproveitando-se de tais coisas, incita as paixões cruéis dos que estão no
poder para extinguir a luz perseguindo os portadores dela. “Porque todo aquele que
faz o mal odeia a luz” (João 3:20). Essa tem sido a experiência de todos os cristãos,
em todas as épocas, tanto em tempos de paz quanto em tempos de dificuldade.
Não há como escapar da perseguição, secreta ou declarada, se vivermos de acordo
com o Espírito e a verdade de Cristo. Entre as últimas palavras que o grande
apóstolo escreveu estavam as seguintes: “E também todos os que piamente querem
viver em Cristo Jesus padecerão perseguições” (2 Timóteo 3:12).
Essas verdades divinas, dadas para instruir e orientar a igreja em todas as
eras, ficaram notavelmente patentes no caso de Plínio e dos cristãos de Bitínia.
Todos os historiadores falam dele como um dos homens mais iluminados,
virtuosos e hábeis da antiguidade. Ele também possuía grande riqueza, e tinha
a reputação de ser muito liberal e benevolente na vida privada. Por que então,
podemos perguntar, como estadista romano e governador, Plínio se tornou
um perseguidor dos cristãos? Essa pergunta ele responde em sua própria
carta. Simplesmente pela fé que tinham em Cristo - e nada mais. Havia sido
162 I A H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 7
comprovado a ele, tanto por amigos como por inimigos, que os cristãos não
eram culpados de mal algum, quer moral, social ou político. Plínio perguntava
três vezes: “ Vocês são cristãosr>”, e se afirmassem sem hesitação que sim, ele os
condenava à morte. O único pretexto que deu para encobrir a injustiça de sua
conduta como governador era o fato dos cristãos serem obstinados confessores
de uma religião não estabelecida pelas leis do império.
Nessa época, muitos que jamais foram cristãos estavam sendo anoni­
mamente acusados de o serem. Isso acontecia por vários motivos, desde pura
maldade até outras razões. Estes eram colocados à prova ao serem obrigados
a negar a fé, oferecer incenso aos deuses, adorarem à imagem do imperador e
insultarem a Cristo. Todos os que obedeciam a estas condições eram liberados.
“O u v ío próprio Plínio testemunhou, “que um verdadeiro cristão jamais seria
compelido afazer nenhuma de tais coisas’. Depois recorreu ao costume brutal de
interrogar pessoas inocentes usando torturas. Assim foram interrogadas duas
mulheres, conhecidas servas da igreja. Mas, em vez das esperadas revelações
quanto ao caráter sedicioso e licencioso das reuniões, nada desfavorável à
comunidade cristã poderia ser extraído sob tortura delas. O governador não
pôde descobrir nada através dos meios que tentou, exceto o que ele chamou de
“uma superstição ruim e excessiva”.
Também devemos ter em mente, tanto para crédito quanto para maior
reprovação de Plínio, que ele não agiu contra os cristãos por mero preconceito
popular - diferente de seu amigo Tácito. Este se permitiu ser levado por rumores
e, sem investigação adicional, escreveu contra o cristianismo da maneira mais
irracional e infame. Mas Plínio considerou sua obrigação fazer uma investiga­
ção cuidadosa do assunto antes de dar seu veredicto. Como podemos então
explicar que tal homem, aparentemente desejoso de agir imparcialmente, tenha
perseguido pessoas inocentes até a morte? Para responder essa pergunta, temos
que investigar as causas externas ou ostensivas da perseguição.
As
C a u s a s O s te n s iv a s d a P e r s e g u iç ã o
Os romanos professaram tolerar todas as religiões, das quais a comunidade
não tinha nada a temer. Essa era a ostentada liberalidade deles. Até mesmo aos
judeus se permitiu viver de acordo com as leis judaicas. Podemos perguntar o que
então poderia ter causado toda essa severidade contra os cristãos? A comunidade
romana tinha algo a temer da parte deles? Havia algo a temer daqueles cujas
vidas eram irrepreensíveis, cuja doutrina era a pura verdade do céu, e cuja religião
conduzia ao bem-estar público e privado das pessoas?
R oma
e seu s
G overnantes
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Olhando para ambos os lados da questão, a seguinte linha de pensamento
pode ser considerada para explicar algumas das causas inevitáveis da
perseguição:
1. O cristianismo, distintamente de todas as outras religiões que o
precederam, era agressivo em seu caráter, no que diz respeito à pregação.
O judaísmo era exclusivo: a religião de uma só nação; o cristianismo
era proclamado como a religião da humanidade ou do mundo inteiro.
Essa era uma coisa completamente nova na terra. “Ide por todo o
mundo, pregai o evangelho a toda criatura” foi a ordem do Senhor aos
discípulos (Marcos 16:15). Eles foram adiante e combateram o erro, em
todas as suas manifestações e mecanismos. A conquista a ser feita era o
coração para Cristo. “Porque as armas da nossa milícia não são carnais,
mas sim poderosas em Deus para destruição das fortalezas; destruindo
os conselhos, e toda a altivez que se levanta contra o conhecimento de
Deus, e levando cativo todo o entendimento à obediência de Cristo” (2
Coríntios 10:4-5). Nessa violenta guerra com as instituições existentes e
com os corruptos hábitos dos ímpios, os discípulos de Jesus não tinham
mais nada a esperar senão resistência, perseguição e sofrimento.
2. A religião paga, a qual rapidamente o cristianismo estava arruinando
e subvertendo, era uma instituição do Estado. Estava de tal forma
entrelaçada com os sistemas civil e social que atacar a religião era o
mesmo que entrar em conflito com o próprio império. E foi exatamente
isso o que aconteceu. Se a igreja primitiva tivesse se conformado ao
mundo como a cristandade de hoje, muita perseguição poderia ter
sido evitada. Mas não era tempo para tal acomodação negligente. O
evangelho que então os cristãos pregavam e a pureza da doutrina e da
vida que mantinham abalaram os fundamentos da velha e profunda­
mente arraigada religião do Estado.
3. Os cristãos naturalmente se separavam dos pagãos. Eles se tornaram
um povo separado e distinto. Só podiam condenar e abominar o
politeísmo, como algo totalmente oposto ao vivo e verdadeiro Deus e ao
evangelho de Seu Filho, Jesus Cristo. Isso fez os romanos pensarem que
os cristãos eram hostis à raça humana, vendo que condenavam todas as
religiões. Conseqüentemente foram chamados de “ateus”, porque não
acreditaram nas deidades pagãs, e zombavam da adoração pagã.
4. Simplicidade e humildade caracterizavam a adoração dos cristãos.
Eles se reuniam pacificamente antes do amanhecer ou depois do
pôr-do-sol, para evitarem dar mau testemunho. Cantavam hinos a
Cristo, partiam o pão em memória de Seu amor ao morrer por eles,
164 | A H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 7
edificavam um ao outro e se comprometiam à uma vida de santidade.
Mas não tinham nenhum templo vistoso, nenhuma estátua, nenhuma
classe de sacerdotes, e nenhuma vítima para oferecer em sacrifício. O
contraste entre a adoração deles e a de todos os outros no império se
tornou manifesto. Os pagãos, em sua ignorância, concluíram que os
cristãos não tinham nenhuma religião, e que as reuniões secretas deles
eram para o pior dos propósitos. O mundo de agora, como o de então,
diria que esses que adoram a Deus em espírito e em verdade “não têm
religião nenhuma”. A adoração cristã, em sua verdadeira simplicidade,
sem a ajuda de templos e sacerdotes, ritos e cerimônias, ainda não é
muito bem entendida pela cristandade professa de hoje, assim como
não era entendida pela Roma pagã da época. Porém, tais palavras
permanecem verdadeiras: “Deus é Espírito, e importa que os que o
adoram o adorem em espírito e em verdade” (João 4:24).
5. Pelo progresso do cristianismo os interesses temporais de um grande
número de pessoas foram seriamente afetados. Essa era uma fonte
abundante e amarga de perseguição. Uma incontável multidão de
sacerdotes, fabricantes de imagens, negociantes, prognosticadores,
adivinhos e artesãos angariavam bons lucros com tudo o que se
relacionava à adoração de tantas deidades.
6. Todos esses, vendo sua profissão em perigo, se levantaram unânimes
contra os cristãos, e buscaram por todos os meios interromper o
progresso do cristianismo. Inventaram e disseminaram as calúnias
mais vis contra tudo o que se referia à fé cristã. Os sagazes sacerdotes
e os astutos adivinhadores facilmente persuadiram o povo e a opinião
pública em geral de que todas as calamidades, guerras, tempestades
e doenças que afligiram a humanidade foram enviadas pelos deuses
irados, porque os cristãos que menosprezaram a autoridade deles eram
tolerados em todos os lugares.31
Muitas outras coisas poderiam ser mencionadas, mas em todas as partes
tais eram as causas diárias dos sofrimentos dos cristãos, tanto pública quanto
privadamente. Um momento de reflexão convencerá os leitores da verdade.
Mas a fé poderia ver a mão de Deus e ouvir a Sua voz em tudo isso: ““Eis que
vos envio como ovelhas ao meio de lobos; portanto, sede prudentes como as
serpentes e inofensivos como as pombas. Acautelai-vos, porém, dos homens;
porque eles vos entregarão aos sinédrios, e vos açoitarão nas suas sinagogas; E
31 Ver História Eclesiástica, de Mosheim, volume 1; e os primeiros capítulos de Cristianismo
Primitivo, de Cave.
Roma
e seu s
G overnantes
(64 d.C. - 177 d.C.) j 1 6 5
sereis até conduzidos à presença dos governadores, e dos reis, por causa de mim,
para lhes servir de testemunho a eles, e aos gentios... Não cuideis que vim trazer
a paz à terra; não vim trazer paz, mas espada” (Mateus 10:16-19, 34).
Sobre a grande oposição que a igreja primitiva teve que enfrentar muito
tem sido dito, e será necessário olhar um momento para a verdadeira causa do
rápido progresso do cristianismo.
O R á p id o P r o g r e s s o
do
C r is t ia n is m o
Sem dúvida, as causas e os meios eram divinos. Comprovadamente
divinos. O Espírito Santo, o qual desceu em poder no dia de Pentecostes, e fez
Sua habitação na igreja e nos cristãos como indivíduos, é a verdadeira fonte de
todo sucesso na pregação do evangelho, na conversão de almas, e no testemunho
cristão contra o mal. “Não por força nem por violência, mas sim pelo meu
Espírito, diz o SENHOR dos Exércitos.” Além disso, o Senhor prometeu estar com
o Seu povo em todo o tempo. “Eis que eu estou convosco todos os dias, até a
consumação dos séculos” (Zacarias 4:6-7; Mateus 28:18-20). Mas nosso olhar
neste momento é histórico, e não meramente de acordo com a promessa da fé.
1. Um grande motivo da rápida expansão do cristianismo era sua perfeita
adaptação à sociedade de cada época, de cada país, em cada condição.
Ele classifica a todos como perdidos e necessitados. Portanto, se adapta
ao judeu e ao gentio, ao rei e ao servo, ao sacerdote e ao povo, ao
rico e ao pobre, ao velho e ao jovem, ao erudito e ao analfabeto, ao
virtuoso e ao libertino. E a religião de Deus dirigida ao coração, local
no qual Sua soberania, e somente a Sua, é reconhecida. O evangelho se
declara como “o poder de Deus para salvação de todo aquele que crê”
(Romanos 1:16). Sua intenção é arrancar os seres humanos das profun­
didades da degradação e colocá-los nas mais sublimes alturas da glória
eterna. Quem poderia imaginar, a despeito dos preconceitos, o resultado
da proclamação de tal evangelho aos miseráveis e ignorantes gentios?
Milhares, milhões de pessoas cansadas da religião inútil e desgastada
responderam à voz celestial reunindo-se em torno do nome de Jesus,
aceitando com alegria o espólio de seus bens, e se dispondo a sofrer por
amor a Ele. O amor dominava a nova religião; o ódio, a antiga.
2. A confirmação e a manutenção de todos os relacionamentos
terrenos, desde que estivessem de acordo com Deus, foi outra razão
para a aceitação do evangelho entre os gentios. Cada indivíduo era
exortado a permanecer nesses relacionamentos, procurando glorificar
I A H is t ó r i a
da
I g r e ja - capítulo 7
a Deus neles. As bênçãos do cristianismo para as esposas, os filhos
e os servos são indescritíveis. O amor, a felicidade e o consolo deles
causavam espanto entre os gentios, pois era algo nova. Entretanto,
tudo isso era natural e comum. Certo cristão, que viveu na primeira
metade do segundo século, descreve da seguinte maneira seus contem­
porâneos: “Os cristãos não estao separados dos outros homens pelo
lugar onde moram, pela linguagem que falam ou pelos costumes que
têm. Não habitam em lugares exclusivos para cristãos, não usam uma
linguagem diferente, nem assumem um estilo de vida extravagante.
Eles residem nas cidades dos gregos ou dos bárbaros (...); e embora
se adaptem aos costumes da terra, no que diz respeito ao modo de
vestir, de comer e em outros aspectos pertinentes à vida cotidiana,
os cristãos demonstram uma maravilhosa e notável peculiaridade na
conduta. Obedecem às leis existentes, e superam as leis pela forma
com que vivem”32.
3. A vida irrepreensível dos cristãos, a pureza divina de sua doutrina, a
paciência deles, a resignação com que enfrentavam sofrimentos piores
que a morte, bem como a própria morte, o desapego pelos objetos da
cobiça das demais pessoas, a ousadia da fé que colocava em risco a vida
deles, a credibilidade e caráter foram os principais recursos na rápida
expansão do cristianismo. Disse Tertuliano: “Pois quem, ao observar
tais coisas, não é compelido a inquirir sobre a causa? E quem, quando
investiga, não se rende ao cristianismo, e ao fazê-lo, não se dispõe a
sofrer por ele?”
Tais particularidades permitirão ao leitor formar um juízo mais completo
no que se refere às razões que, de um lado, tendiam a impedir, e, de outro, a
estimular o progresso do evangelho de Cristo. Nada pode ser mais interessante à
mente cristã que o estudo dessa grande e gloriosa obra. Os obreiros do Senhor, em
sua maioria, eram homens simples e iletrados, pobres, desamparados socialmente,
destituídos de qualquer ajuda humana e, contudo, em pouco tempo persuadiram
grande parte da humanidade a abandonar as religiões dos ancestrais, e abraçar
uma nova religião oposta às inclinações da natureza humana, aos prazeres do
mundo e às arraigadas tradições. Quem pode questionar o poder intrínseco do cris­
tianismo com tais manifestações exteriores diante de si? Certamente foi o Espírito de
Deus quem revestiu de poder as palavras desses primeiros pregadores! Certamente
o impacto na mente dos ouvintes veio de Deus. Resultou disso uma completa
mudança: eles nasceram de novo - se tornaram novas criaturas em Cristo Jesus.
32 História da Igreja, de Neander, volume 1, pg. 95.
R oma
e seu s
G overnantes
(64 d.C. - 177 d.C.) | 16 7
Em menos de cem anos desde o dia de Pentecostes o evangelho
penetrou na maioria das províncias do império romano, sendo amplamente
divulgado em muitas delas. Em nosso breve resumo da vida do apóstolo
Paulo e na cronologia das missões vimos o primeiro plantio de muitas igrejas,
e a propagação da verdade em diversas regiões. Em grandes cidades, como
Antioquia na Síria, Efeso na Ásia, e Corinto na Grécia, vemos o cristianismo
bem estabelecido, difundindo suas ricas bênçãos entre as cidades e vilarejos
circunvizinhos.
Também sabemos a partir da história eclesiástica que Cartago era para a
África o que aquelas cidades eram para Síria, Ásia e Grécia. Quando Escápula,
procônsul de Cartago, ameaçou os cristãos com cruel e severo tratamento,
Tertuliano, em um de seus veementes apelos, tentou fazê-lo refletir. “O que
farás,” disse ele, “com tantos milhares de homens e mulheres de todas as idades
e dignidade, por mais que livremente se ofereçam a si mesmos? De que tendes
necessidade? De fogueiras, de espadas?! O que Cartago é capaz de sofrer se for
dizimada por ti? Quando todo mundo encontrar ali o seu parente mais próximo
e vizinhos, verá matronas e possivelmente homens de sua própria classe social e
condição, e as pessoas mais importantes, também parentes ou amigos daqueles
que são seus amigos mais próximos. Poupe-os então, por isso, para o seu próprio
bem, se não para o nosso.33
Agora prosseguiremos com a narrativa dos eventos, e o próximo a ser
relatado é
O M a r t ír io
de
I n á c io
Na história da igreja primitiva não existe fato mais inviolável que o
martírio de Inácio, bispo de Antioquia; nem narrativa mais celebrada que sua
jornada, acorrentado, de Antioquia a Roma.
De acordo com a opinião geral dos historiadores, o imperador Trajano
visitou Antioquia quando se dirigia à guerra da Pártia, no ano 107 d.C.. É
difícil dizer a causa, mas ao que parece, os cristãos estavam sendo ameaçados
com perseguição. Inácio, portanto, preocupado com a igreja em Antioquia,
desejou comparecer diante de Trajano. Seu objetivo maior era evitar, se possível,
a perseguição iminente. Com essa finalidade, Inácio demonstrou ao imperador
o verdadeiro caráter e condição dos cristãos, e se ofereceu para sofrer no lugar
deles.
33 Cristianismo Primitivo, de Cave, p. 20.
1 6 8 | A H is t ó r i a
da
I g r e ja - capítulo 7
Os detalhes desse encontro memorável estão registrados em muitos livros
sobre a história da igreja, porém, existe tal ar de suspeição sobre esses relatos
que desistimos de inseri-los aqui. A audiência com Trajano terminou com a
condenação de Inácio. Ele foi sentenciado a ser lançado às feras para servir de
entretenimento ao povo em Roma. O bispo recebeu a terrível sentença sem
restrições, e com alegria se submeteu às correntes, crendo que isso era por sua fé
em Cristo e um sacrifício pelos santos.
Inácio foi entregue à custódia de dez soldados, que não demonstraram
respeito pela idade dele e o trataram com bastante rispidez. Por quase quarenta
anos ele havia sido bispo de Antioquia, e devia ser um ancião. Mas os soldados
o fizeram viajar apressadamente uma longa distância, tanto por terra quanto por
mar, a fim de alcançar Roma antes do término dos jogos. Ele chegou no último
dia do festival, e foi levado imediatamente ao anfiteatro, onde sofreu à vista do
público ali presente. E assim o exausto peregrino descansou da fadiga da longa
jornada no abençoado repouso do paraíso de Deus.
E qual o motivo de Inácio ter sido levado de Antioquia a Roma para
ser martirizado? As respostas não passam de conjeturas. Talvez a intenção fosse
instilar medo nos cristãos ao expor alguém tão conhecido e importante, trazido
em correntes, a uma morte pavorosa e degradante. Porém, se essa era a expectativa
do imperador, ele ficou completamente frustrado. A morte do bispo surtiu o efeito
contrário. A notícia de sua sentença e de sua viagem se espalhou, e representantes
de diversas igrejas foram enviados para encontrá-lo em paradas estratégicas. Dessa
maneira, ele foi saudado e encorajado com as mais ternas palavras de estímulo dos
irmãos; e estes, por sua vez, se regozijaram ao ver o respeitável bispo e receber dele
sua bênção final. Muitos santos seriam encorajados a enfrentar, e até a desejar, a
morte e a coroa reservada aos mártires. Entre os que se encontraram com Inácio
estava Policarpo, bispo de Esmirna, que, como aquele, havia sido discípulo do
apóstolo João, e também estava destinado a ser martirizado pelo evangelho. E
além dos encontros pessoais, Inácio teria escrito sete cartas durante o trajeto, as
quais foram preservadas pela providência de Deus e chegaram até nós. Sempre
houve, e ainda há, um grande interesse no que se refere a essas cartas.
Os
E s c r i t o s d o s P ais
e a s S a g ra d a s E sc r itu r a s
Porém, por mais honra que Inácio possa merecer como um santo homem
de Deus e nobre mártir de Cristo, temos de lembrar que suas cartas não são a
palavra de Deus. Elas podem nos interessar e nos instruir, mas nunca dirigir nossa
R oma
e se u s
G overnantes
(64 d.C. - 177 d.C.) | 169
fé, a qual tem de estar apoiada no sólido terreno da Palavra de Deus, e jamais
no instável campo da tradição. Alguém afirmou que “as Escrituras permanecem
únicas, em majestoso isolamento, preeminentes na instrução, e separadas de tudo
o que foi escrito pelos pais apostólicos por uma inalcançável excelência; portanto,
os apóstolos nos deixaram escritos que servem mais para nossa advertência que
para nossa edificação”. Ao mesmo tempo, esses primeiros escritores têm direito ao
respeito e à veneração com os quais a antiguidade os investiu. Eram contemporâ­
neos dos apóstolos, desfrutaram do privilégio de ouvir os ensinos deles, dividiram
com eles as labutas do evangelho, e com eles conversavam diariamente. Paulo
menciona Clemente - um pai apostólico - como sendo um dos “cooperadores,
cujos nomes estão no livro da vida”; e o que fala sobre Timóteo pode ser, em
parte, verdadeiro para muitos outros: “Tu, porém, tens seguido a minha doutrina,
modo de viver, intenção, fé, longanimidade, amor, paciência, perseguições e
aflições” (Filipenses 4:3; 2 Timóteo 3:10-11).
Partindo dos que assim foram tão privilegiados, naturalmente esperamos
uma sã doutrina apostólica - uma fiel repetição das verdades e instruções trans­
mitidas a eles pelos apóstolos inspirados. Mas, infelizmente este não é o caso!
Inácio foi um dos primeiros pais apostólicos. Ele se tornou bispo de Antioquia,
a metrópole da Ásia, por volta do ano 70. Morreu cerca de sete anos depois
da morte do apóstolo João, do qual era discípulo. A expectativa era que de tal
pessoa tivéssemos ensinos perfeitamente semelhantes ao do apóstolo, mas isso não
aconteceu. As declarações definitivas e absolutas das Sagradas Escrituras, vindas
diretamente de Deus para a alma, são inteiramente diferentes dos textos de Inácio
e de todos os outros Pais. Nosso único guia fiel e seguro é a Palavra de Deus.
Quão adequada é a seguinte verdade: “Portanto, o que desde o princípio ouvistes
permaneça em vós. Se em vós permanecer o que desde o princípio ouvistes, também
permanecereis no Filho e no Pai” (1 João 2:24). Evidentemente tal passagem se
refere em especial à Pessoa de Cristo e, por consequência, às escrituras do Novo
Testamento, nas quais temos a revelação do Pai no Filho, nos dada pelo Espírito
Santo. Nas epístolas de Paulo temos com mais clareza a exposição dos conselhos de
Deus referentes à igreja, a Israel e aos gentios. Por isso, é necessário voltar para antes
dos “Pais da igreja’’ com o objetivo de encontrarmos um terreno sólido para nossa
fé; é necessário voltarmos para o que existia desde o “Princípio”. Para o crente
nada mais tem autoridade divina do que o que era desde o “princípio”. Somente
isso assegura nossa permanência “no Filho e no Pai”.
As epístolas de Inácio são consideradas pelos anglicanos como a
suprema autoridade do sistema da igreja inglesa; e essa é a razão pela qual tanto
mencionamos este “pai”. Quase todos os argumentos que embasam o anglicanismo estão contidos nessas cartas. Ele enfatiza de maneira tão forte a submissão
170 I A H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 7
à autoridade episcopal, e a louva tanto que algumas pessoas até questionam
a autenticidade delas, enquanto outros supõem que os textos possam ter sido
bastante alterados para servirem aos interesses dos sacerdotes. No entanto, tais
controvérsias não se encaixam nos propósitos deste livro34.
Continuaremos nossa história a partir da morte de Trajano, no ano de
117 d.C., observando rapidamente a condição da igreja durante
Os
R e in a d o s d e A d r i a n o
E DOS ANTONINOS
(do ano 117 ao 180 d.C.)
Embora seja injusto listar Adriano e o primeiro Antonino (o Pio) no rol
dos perseguidores sistemáticos da Igreja, a verdade é que durante o reinado de
ambos, os cristãos foram expostos com frequência aos mais violentos sofrimentos
e à morte. Ainda vigorava o cruel hábito de atribuir todas as calamidades públicas
aos cristãos, e de exigir o sangue deles para aplacar a ira dos deuses ofendidos,
geralmente com a chancela dos governantes locais, e com a liberdade conferida
pela indiferença imperial. Porém, sob o domínio do segundo Antonino, Marco
Aurélio, o espírito maligno da perseguição ganhou força. Não mais se restringia
aos arroubos de fúria popular, mas passou a ser encorajada pelas autoridades
superiores. A tímida proteção que os ambíguos éditos de Trajano, Adriano e dos
Antoninos dava aos cristãos foi retirada, e as inflamadas paixões dos idólatras
pagãos não foram refreadas pelo governo. Para o estudante da história bíblica é
interessante ver como isso pôde acontecer no reinado de um líder famoso pela
erudição, filosofia e pelo caráter em geral brando.
Os sessenta anos anteriores de relativa paz proporcionaram um cenário
adequado para a propagação do evangelho. Durante tal período, o cristianismo
fez rápidos avanços em muitos aspectos. As congregações cristãs aumentaram
em número, influência e riqueza em todas as regiões dos domínios romanos.
Muitas pessoas ricas, cheias do amor divino, distribuíram seus bens aos pobres,
viajaram para lugares onde o evangelho ainda não havia sido pregado, e, tendo
plantado o cristianismo, passavam a outros rincões. No entanto, o Espírito Santo
não podia agir sem que a inveja e a inimizade dos defensores da religião nacional
fossem despertadas. Aurélio via com maus olhos o poder superior do cristianis­
mo sobre a mente dos homens quando comparado com sua própria filosofia
pagã. Então se tornou um perseguidor intolerante, e estimulou os líderes pro­
34 Veja As Genuínas Epístolas de Clemente, Policarpo, Inácio e Barnabás, de Ab. Wake.
R o m a e s e u s G o v e r n a n t e s (64 d.C . - 177 d .C .)
| 171
vincianos a reprimir o que ele considerava um obstinado espírito de resistência
à sua autoridade. Contudo, o evangelho da graça de Deus estava muito além do
alcance de Aurélio, e nem as espadas ou os leões do imperador puderam impedir
sua triunfante carreira. Apesar das sangrentas perseguições que ele excitava ou
aprovava, o cristianismo foi difundido por todo o mundo conhecido da época.
Neste ponto temos de parar um pouco, e olhar ao nosso redor. Existe
algo mais profundo na mudança do governo em relação à igreja do que a visão
meramente histórica pode discernir. Cremos que agora chegamos ao
F in a l d o P r im e ir o P e r ío d o
e C o m eço d o Seg u n d o
Sob a perspectiva de Apocalipse 2 e 3, podemos dizer que a condição
da Igreja Cristã representada pela igreja em Efeso (Apocalipse 2:1-7) terminou
com a morte de Antonino Pio, no ano 161 d.C., e que aquela referente à igreja
em Esmirna (Apocalipse 2:8-11 começou no reinado de Marco Aurélio. A
perseguição na Ásia irrompeu com grande violência no ano 167 d.C., debaixo
dos novos éditos desse imperador. Esmirna, em especial, sofreu muitíssimo:
Policarpo, o estimado bispo de Esmirna, foi martirizado nesse período. Para
demonstrar a percepção que temos será necessário examinar rapidamente as
cartas dirigidas para tais igrejas.
C a r t a à I g r e ja d e É feso
(Apocalipse 2:1-7)
O grande objetivo da igreja neste mundo era ser “a coluna e firmeza da
verdade” (1 Timóteo 3:15). Foi estabelecida para ser a portadora da luz de Deus.
Por isto é simbolizada como um castiçal de ouro —um suporte da luz. Ela tinha
obrigação de ser uma testemunha fiel do que Deus havia manifestado em Cristo
Jesus na terra, e do que Ele é agora nos céus onde se encontra. Além disso,
aprendemos nessa carta que a igreja, como a portadora do testemunho neste
mundo, é ameaçada de ser deixada de lado a menos que se mantenha em seu
primeiro estado. Mas, infelizmente, ela falhou, como as criaturas sempre fazem.
Os anjos, Adão, Israel, a igreja não mantiveram seu primeiro estado. “Tenho,
porém, contra ti”, diz o Senhor, “que deixaste o teu primeiro amor. Lembra-te,
pois, de onde caíste, e arrepende-te, e pratica as primeiras obras; quando não,
brevemente a ti virei, e tirarei do seu lugar o teu castiçal, se não te arrependeres”.
172 | A H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 7
Porém, ainda havia o que Ele poderia elogiar, e Ele elogiou tudo o
que pôde. Como assembléia, eles manifestaram paciência, trabalharam bem
e não desfaleceram, não suportaram os “maus” nem os que procuravam as
posições mais altas na igreja. Contudo, Ele sentiu o afastamento. “Deixaste
o teu primeiro amor.” O Senhor fala como quem está desapontado. Eles
pararam de se deleitar no amor do Senhor por eles e, como consequência,
o próprio amor que sentiam pelo Senhor diminuiu. O “primeiro amor” é
o maravilhoso fruto de nossa admiração pelo amor do Senhor por nós. “O
testemunho exterior pode continuar, mas não é isso o que o Senhor mais
valoriza, embora lhe dê importância, contanto que seja simples, genuíno e
fiel. Entretanto, o que mais aprecia são corações devotados a Ele mesmo,
frutos de Seu amor perfeito, altruísta e voluntário. O Senhor tem uma noiva
na terra, cujo coração deseja ver inteiramente rendido a Ele, mantido puro do
mundo e de seus caminhos. Deus nos chamou não apenas para a salvação, e
para sermos Suas testemunhas, embora isso seja verdade e algo importante,
mas acima de tudo nos chamou para Cristo - para sermos a Noiva de Seu
Filho! Esse deveria ser nosso primeiro e último pensamento, o constante
e mais ardente anseio, pois estamos compromissados com Cristo, e Ele já
provou cabalmente a plenitude e a fidelidade de Seu amor por nós! Mas e o
nosso por Ele?”35
Essa situação em Éfeso, e na igreja como um todo, exigia a intervenção
do Senhor e de Sua fiel disciplina. A igreja, plantada por Paulo, havia caído de
seu primeiro estado. O apóstolo disse: “Porque todos buscam o que é seu, e
não o que é de Cristo Jesus” (Filipenses 2:21); e “Os que estão na Ásia todos se
apartaram de mim” (2 Timóteo 1:15). Esse é o motivo da tribulação mencionada
na carta à igreja de Esmirna. Embora o Senhor seja cheio de graça e amor em
todos os Seus caminhos para com a igreja caída e fraca, Ele é igualmente justo
e tem de julgar o mal. Nessas cartas o Senhor não Se apresenta como a Cabeça
celestial do corpo que está na terra, nem como o Noivo da Igreja, mas em Seu
caráter judicial, andando em meio aos candelabros, tendo os atributos de um
juiz. Ver Apocalipse 1.
Observe que existe uma distância e uma reserva calculadas no estilo com
o qual Ele se dirige à igreja de Éfeso. Isso está em concordância com o lugar no
qual Se coloca em meio aos candelabros de ouro. Ele escreve ao anjo da igreja,
e não aos “santos que estão em Éfeso, e fiéis em Cristo Jesus”, como na epístola
aos Efésios.
^ Sermões em Apocalipse, por W.K.
R om a e seu s G o v e r n a n te s
(64 d.C. - 177 d.C.) | 1 7 3
Tem havido muitas discussões acerca de quem seria o anjo. Cremos
que era uma pessoa tão identificada moralmente com a assembléia
que podia representá-la
e caracterizá-la. O Senhor fala com o anjo, e
não com a igreja imediatamente. “O anjo”, portanto, passa a idéia de
representação. Por exemplo, no Antigo Testamento temos o anjo do
S e n h o r, o anjo da aliança; no Novo Testamento temos os anjos das
crianças, e em Atos 12 é dito sobre Pedro: “E o seu anjo”.
C a r t a à I g r e ja d e E s m ir n a
(Apocalipse 2 :8- 11)
Nosso interesse na história da igreja aumenta bastante quando vemos
que o Senhor marcou distintamente suas sucessivas fases. A condição visível
da igreja, em declínio desde a morte do primeiro Antonino - até onde se pode
apurar a partir das histórias mais autênticas - corresponde de forma admirável
ao que aprendemos com as Escrituras, e em especial com a carta à igreja de
Efeso. Havia um zelo e consistência exteriores; eles eram incansáveis. Fica
evidente também que havia caridade, pureza, devoção, encorajamento, e até
grande disposição em sofrer por amor ao Senhor. Ao mesmo tempo torna-se
claro, tanto pelas Escrituras quanto pela história, que falsas doutrinas estavam
progredindo, e que muitos manifestavam o ignóbil desejo de conquistar pree­
minência na igreja. O altruísmo e o cuidado por Cristo, por Sua glória e pelas
primícias de Sua graça, desapareceram. Historicamente chegamos ao período
de Esmirna. Para a conveniência do leitor, iremos registrar abaixo o texto dessa
carta na íntegra.
“E ao anjo da igreja que está em Esmirna, escreve: Isto diz o primeiro
e o último, que foi morto, e reviveu: conheço as tuas obras, e tribulação, e
pobreza (mas tu és rico), e a blasfêmia dos que se dizem judeus, e não o são,
mas são a sinagoga de Satanás. Nada temas das coisas que hás de padecer.
Eis que o diabo lançará alguns de vós na prisão, para que sejais tentados; e
tereis uma tribulação de dez dias. Sê fiel até à morte, e dar-te-ei a coroa da
vida. Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas: O que vencer
não receberá o dano da segunda morte” (Apocalipse 2:8-11). Aqui o Senhor
enfrenta o estado de decadência com uma severa tribulação. Recursos mais
amenos não atingiriam o objetivo. Isso não é incomum, embora eles pudessem
pensar que algo estranho lhes acontecia. Porém, todas as aflições deles eram
174 [ A
H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 7
conhecidas pelo Senhor, calculadas por Ele, e estavam sob Seu controle. “Tereis
uma tribulação de dez dias!' O período de sofrimento é especificado de forma
clara. E o Senhor lhes fala como alguém que experimentou pessoalmente as
profundezas da tribulação. “Isto diz o primeiro e o último, que foi morto,
e reviveu.” Ele passou pela dor mais profunda e pela própria morte - Jesus
morreu por eles, mas estava vivo novamente. Eles tinham o bendito Senhor
para se refugiarem nas provações. E quando contempla e anda no meio dos
Seus servos que sofrem, Ele diz: “Sê fiel até à morte, e dar-te-ei a coroa da
vida”. O Senhor tem a coroa de mártir em Suas mãos e está pronto a colocá-la
na cabeça do vencedor fiel.
Voltemos à nossa história e vejamos sua analogia com a epístola acima.
O S e g u n d o P e r ío d o
d a H is t ó r ia d a I g r e ja
(por volta do ano 167 d.C.)
O reinado de Aurélio foi marcado, sob a providência de Deus, por muitas
e grandes calamidades. Em Seu fiel amor, vemos a mão do Senhor castigando
o Seu povo amado e redimido, mas Sua ira estava acesa contra os inimigos. O
exército oriental, sob o comando de Lúcio Vero, retornando da guerra contra
os partos, trouxe consigo a Roma pestes que afligiam a Ásia, as quais logo
espalharam a destruição por quase todo o império romano. Houve também uma
grande inundação do rio Tibre, que deixou uma boa parte da cidade sob a água
e varreu uma imensa quantidade de grãos dos campos e armazéns públicos. Tais
desastres foram naturalmente seguidos pela fome, causa da morte de milhares
de pessoas.
Esses eventos fizeram aumentar a hostilidade dos pagãos para com os
cristãos. Eles atribuíam todos os problemas à ira dos deuses, que a nova religião
supostamente provocava. Desta vez a perseguição dos cristãos no império
romano começou com o populacho. O clamor contra eles subia do povo para
as autoridades. “Joguem os cristãos aos leões!” era o brado geral; e os nomes
mais proeminentes na comunidade eram exigidos com a mesma hostilidade
incontrolável. Um magistrado fraco ou supersticioso tremeria diante da voz do
povo, e se colocaria como instrumento da vontade deles.
Debaixo da orientação das várias histórias que estão diante de nós,
olharemos mais detidamente para essas perseguições e para o comportamento
dos cristãos durante as mesmas.
R o m a f. s e u s G o v e r n a n t e s (64
d.C. - 177 d.C.) | 1 7 5
A P e r s e g u iç ã o n a Á sia
(ano 167 d.C.)
Na Ásia Menor a perseguição irrompeu com uma violência jamais vista. O
cristianismo passou a ser tratado como crime contra o Estado. Isso mudou tudo.
Contrariamente ao documento oficial de Trajano e à conduta dos imperadores
Adriano e Antonino, os cristãos passaram a ser procurados como criminosos
comuns. Eram arrancados de suas casas pela violência do povo e submetidos
às mais severas torturas. Caso se recusassem obstinadamente a sacrificarem
aos deuses, os cristãos eram condenados. Animais selvagens, a cruz, as estacas
e os machados eram formas cruéis de morte que os fiéis servos do Senhor
enfrentavam em todo lugar.
O prudente e honrado Melito, bispo de Sardes, ficou tão comovido
com tal barbaridade inaudita que foi à presença do imperador na condição de
advogado dos cristãos. Seus discursos lançam luz tanto no que se refere à lei
quanto à conduta das autoridades públicas. “A estirpe dos adoradores de Deus
nesta região é perseguida como jamais antes por novos éditos; pois bajuladores
desavergonhados, cobiçosos dos bens alheios - uma vez que tais éditos lhes
deram a oportunidade de fazê-lo -, saqueiam suas vítimas inocentes dia e noite.
E que assim seja certo se for feito mediante o seu comando, uma vez que um
imperador justo nunca deliberará sob nenhuma medida de injustiça, e nós
alegremente ostentaremos honrado quinhão de tais mortes.
No entanto, lhe submetemos esta simples petição, que o senhor se informe
sobre as pessoas que excitaram a contenda, e imparcialmente decida se eles
merecem castigo e morte, ou liberação e paz. Mas se tal determinação, e se
esse novo édito - um édito que não teria de ser emitido nem contra os hostis
bárbaros - vierem do senhor, lhe suplicamos que não nos deixe mais expostos
a tal rapina pública.”36
Não há nenhum espaço para crermos que esse nobre apelo tenha
produzido algum alívio imediato para os cristãos. O caráter e a conduta de
Aurélio têm surpreendido os historiadores. Ele era um filósofo da seita dos
estoicos, humano, benevolente, gentio e piedoso por natureza, alguns dizem
que até infantil em sua disposição por causa da influência da educação
materna; contudo, foi um implacável perseguidor dos cristãos por quase
vinte anos. E a perplexidade aumenta quando olhamos para a Ásia, pois o
procônsul designado para a região não era pessoalmente contrário aos cristãos.
36 História Eclesiástica, de Neander, volume 1.
176 I A H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 7
Ainda assim se rendeu à fúria popular e às demandas da lei. Mas a fé enxerga
além dos imperadores, governadores, e do povo; ela vê o príncipe das trevas
manipulando os ímpios, e o Senhor Jesus dominando sobre tudo. “Conheço
as tuas obras, e tribulação... Nada temas das coisas que hás de padecer... Sê
fiel até à morte, e dar-te-ei a coroa da vida... O que vencer não receberá o
dano da segunda morte”.
Aurélio, com toda a sua filosofia, era um completo estranho à doçura e
poder desse Nome, o único capaz de satisfazer os anseios do coração humano.
Todas as especulações e vanglorias da filosofia jamais puderam fazer isso.
Daí vem a inimizade do coração humano contra o evangelho. A autossuficiência, que conduz ao orgulho e à presunção, é a principal parte da religião
estóica. Em tal conceito não poderia haver a noção de humildade, nem de
pecado e muito menos a idéia de um Salvador. E quanto mais o imperador
se envolvia em sua religião, mais amargo e implacável se tornaria contra o
cristianismo.
Em uma carta circular escrita pela igreja de Esmirna às outras igrejas
cristãs, temos um relato detalhado sobre os sofrimentos e morte dos fiéis.
“Eles tornaram evidentes a todos”, disse a igreja, “que em meio aos sofrimentos
eles estiveram ausentes do corpo, ou melhor, que o Senhor esteve com eles, e
andou no meio deles, e estando os tais na graça de Cristo, eles desafiaram os
tormentos do mundo”. Alguns, com estranho entusiasmo momentâneo, cheios
de confiança em si mesmos, iam voluntariamente ao tribunal, se declaravam
cristãos; porém quando os magistrados os pressionavam, manipulando seus
medos, lhes mostrando os animais selvagens, eles cediam e ofereciam incenso
aos deuses. Portanto, nós”, acrescenta a igreja, “não oramos por aqueles que
voluntariamente se rendem, pois o evangelho não nos ensina isso.” Nada
menos que a presença do Senhor Jesus poderia fortalecer a alma para enfrentar
com tranquilidade e calma os mais agonizantes tormentos, e as mais terríveis
formas de morte. No entanto, milhares suportaram com submissão, brandura
e até alegria, o máximo que o poder das trevas e da quarta besta de Daniel
poderiam fazer. Os pagãos que assistiam geralmente se condoiam pelos
sofrimentos dos cristãos, mas nunca puderam entender a presença de espírito,
o amor que manifestavam para com seus inimigos, e a disposição que tinham
para morrer.
Concluiremos esse rápido relato da perseguição na Ásia observando em
particular os dois homens mais eminentes que sofreram martírio nessa época:
Justino e Policarpo.
R om a e seu s G o v e r n a n te s
O M a r t ír io
cham ado
(64 d.C. - 177 d.C.) [ 1 7 7
J u s t in o ,
o M á r t ir
de
Justino nasceu em Neápolis, Samaria, de pais gentios. Em sua juventude
estudou cuidadosamente diferentes seitas filosóficas, mas não encontrou a
satisfação pela qual seu coração ansiava. Por fim foi levado a ouvir o evangelho.
Nele achou, através da bênção de Deus, a perfeita paz para sua alma, e cada
desejo do coração dele foi cumprido. Ele se tornou um verdadeiro cristão e um
famoso escritor que defendia o cristianismo.
Bem no início do reinado de Aurélio, Justino era um homem marcado.
Crescente - um filósofo da seita dos cínicos - fazia graves acusações contra ele.
Juntamente com mais seis companheiros, foi preso e levado diante do magistrado
da cidade. Todos foram intimados a sacrificar aos deuses. “Nenhum homem”,
replicou Justino, “cujo juízo é sadio, irá desertar da verdadeira religião em prol do
erro e da impiedade”. O magistrado rebateu: “A menos que se sujeite, você será
atormentado sem misericórdia”. Ele respondeu: “Sinceramente não há nada que
desejemos mais que sermos torturados por causa de nosso Senhor Jesus Cristo”.
Os outros concordaram e disseram: “Somos cristãos e não podemos sacrificar
aos ídolos”. Então o chefe da cidade pronunciou a sentença: “Para os que se
recusam a sacrificar aos ídolos, e a obedecer aos éditos imperiais, primeiro serão
açoitados, e depois decapitados de acordo com as leis”. Os mártires se alegraram,
louvaram a Deus, e sendo levados de volta à prisão, foram chicoteados e, por
fim, tiveram suas cabeças cortadas. Isso aconteceu em Roma por volta do ano
165. Assim Justino, um dos primeiros Pais, dormiu em Jesus e conquistou o
glorioso título de “Mártir”, que usualmente acompanha seu nome. Seus escritos
têm sido examinados com cuidado por muitos estudiosos e são considerados de
grande importância.
V er so s so b r e o M a r t ír io
d e u m C e n t u r iã o R o m a n o
“Dê o cristão ao leão”
Grita descontroladamente a multidão romana.
“Sim, ao leão castanhoamarelado da Africa!”
Bradam os audazes e fortes guerreiros!
“Que o leão faminto o estraçalhe!”
Ecoa o riso contente da multidão;
“Arremessem-no - arremessem-no ao leão!"
178 | A
H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 7
Berrou a nobre matrona aos quatro cantos.
“Dê o cristão ao leão!"
Falaram em tom ameaçador e devagar,
D as suas cadeiras de altos dignatários,
Senadores em vistosas fileiras.
Então de vôo em vôo, ecoa
O grito, e aplausos, e rajadas de risos
Até que o gigante Coliseu
Debaixo do tumulto parecia oscilar;
E os clamores do povo
Rolavam através do Arco de Tito,
Todos para baixo do fórum romano,
Ao violento Capitólio,
Então uma pausa - mas silêncio, e ouça
Esse berro feroz e selvagem;
E o leão do Saara,
Enfurecido em sua jaula!
A fera com fome e em grilhão,
Sacode ele a sua juba castanho amarelado!
Pela sua presa viva impaciente,
Luta contra a sua grade e cadeia.
M a s uma voz está roubando tenuemente
D a jaula ao lado, fria e escura;
Este é o canto do cristão destinado de morte
Suave e baixo o seu hino de morte;
Com mãos levantadas ele ora
Pelos homens que requerem o seu sangue!
Com uma fé sagrada ele roga
Por aquela multidão que grita.
Eles estão esperando! Com a grade levantada,
Vem ele adiante, sereno para morrer:
Com uma radiância em volta da sua testa,
E um brilho em seus olhos.
Nunca! quando legiões de romanos no meio,
Com o elmo na sua testa
Pressiona-o para a frente da batalha
Com um passo mais firme do que antes.
Levante a grade! Ele está esperando.
Deixe o leão selvagem vir!
Ele só pode romper uma passagem
Para a alma alcançar o seu lar!
R om a e seu s G o v e r n a n te s
O M a r t ír io
de
(64 d.C. - 177 d.C.) I 179
P o l ic a r p o
O comportamento desse honrado bispo de Esmirna, diante do martírio
iminente, foi significativamente nobre e cristão. Ele estava sempre disponível
para os seus perseguidores, sem ser impulsivo ou imprudente, como às vezes, por
causa da excitação, se pode ser. Ao ouvir os gritos do povo exigindo sua morte,
era sua intenção permanecer na cidade e aguardar a decisão que Deus tomaria
em relação a si. Porém, devido às súplicas da igreja, ele se deixou persuadir e
se refugiou no vilarejo vizinho. Ali, juntamente com alguns amigos, passou o
tempo ocupado dia e noite em oração pelas igrejas ao redor do mundo. Mas
os perseguidores logo descobriram seu paradeiro. Quando soube que os oficiais
estavam à porta, ele os convidou para entrar, pediu que lhes servissem comida e
bebida, e os solicitou que lhe concedessem uma hora para orar. Mas a plenitude
de seu coração o conduziu a duas horas de oração. Sua devoção, idade e aparência
afetaram grandemente os pagãos. Talvez na oportunidade o bispo tivesse mais
de noventa anos de idade.
Chegou o momento de levá-lo à cidade. O procônsul não parecia ser
pessoalmente hostil aos cristãos. Evidentemente ele se comoveu pelo idoso
Policarpo, e fez o que pôde para salvá-lo. Instou com o ancião para que jurasse
pelo gênio ou espírito do imperador, e desse prova de seu arrependimento.
Mas Policarpo, estava calmo e seguro, com os olhos fitos no céu. O procônsul
novamente insistiu: “Renegue Cristo, e você será libertado”. O velho bispo
respondeu: “Oitenta e seis anos eu O tenho servido, e Ele jamais me fez nada
senão o bem; e como eu poderia renegá-Lo, o meu Senhor e Salvador?” O
magistrado percebendo que tanto as promessas quanto as ameaças seriam inúteis
fez com que o arauto proclamasse no anfiteatro: “Policarpo se declarou cristão”.
A plebe pagã, com gritos enfurecidos, dizia: “Esse é o que ensina o ateísmo, o
pai dos cristãos, o inimigo de nossos deuses; por causa dele muitos têm deixado
de oferecer sacrifícios”. O governador se rendeu às demandas do povo que exigia
que Policarpo morresse na fogueira; judeus e pagãos se apressaram a trazer
madeira com tal propósito. Quando estavam prestes a pregá-lo com cravos na
estaca da fogueira, ele falou: “Deixem-me assim. Aquele que me fortaleceu para
ir ao encontro das chamas também irá me capacitar a ficar firme na estaca”.
Antes da fogueira ser acesa, Policarpo orou: “Senhor, Deus Todo-poderoso, Pai
de Teu amado Filho, Jesus Cristo, pelo qual recebemos de Ti mesmo o Teu
conhecimento; Deus dos anjos e de toda a criação, de toda a raça humana e
do justo que vive em Tua presença, eu Te louvo porque me consideraste digno
deste dia e desta hora, de participar do rol de Tuas testemunhas no cálice de
j
i A H
is t ó r ia d a
I g r e ja - capítulo 7
O fogo começou a arder, mas as chamas se movimentavam ao redor do
corpo formando a figura de uma vela de navio soprada pelo vento. Os supers­
ticiosos romanos, temendo que o fogo não o consumisse, o feriram com uma
lança e, assim, Policarpo foi coroado com a vitória.
Esses são pequenos extratos de histórias que nos chegaram acerca do
martírio desse honrado e admirável bispo. As histórias dos mártires estão cheias
de pormenores. Porém, o Senhor Jesus abençoou grandemente a maneira cristã
pela qual Policarpo sofreu pelo bem da igreja. A ira do povo foi aplacada, pois
se satisfizeram com a vingança, e por um tempo a sede de sangue dos pagãos
pareceu acabar. O procônsul, bastante esgotado com tal matança, se recusou
terminantemente a ter mais cristãos sendo trazidos diante de seu tribunal. Quão
manifesta está a mão do Senhor nessa maravilhosa e repentina mudança! Ele
havia limitado os dias da tribulação deles antes de serem jogados na fornalha,
e agora o tempo se cumprira: nenhum poder na terra ou no inferno poderia
prolongá-la uma hora sequer. Os Seus haviam sido fiéis até à morte e receberam
a coroa da vida.
&
As
"k
á-
P e r s e g u iç õ e s n a F r a n ç a
(ano 177 d.C.)
Voltaremos ao cenário da segunda perseguição ainda no reinado desse
imperador. Ela aconteceu na França, exatamente dez anos após a perseguição
na Ásia. Talvez outras perseguições possam ter acontecido durante essa
década, mas até onde sabemos, não se tem registros confiáveis disso antes do
ano 177 d.C.. A origem de nosso conhecimento acerca dos detalhes da última
perseguição foi extraída de uma carta circular provinda das igrejas de Lion e
Vienne às igrejas da Ásia. Não podemos afirmar se existe alguma alusão a esses
dez anos históricos nas palavras do Senhor à igreja de Esmirna. A Escritura
também não o diz. Comparando a história com a epístola, a sugestão é plausível.
“Tereis uma tribulação de dez dias.” Em outras partes desse livro com significado
sobrenatural, um dia pode ser contado como mil anos, então isso também pode
se aplicar à epístola de Esmirna. Em relação ao tempo, a história nos dá o início e
o fim; e em relação à abrangência da cena, o ocidente e o oriente. Agora veremos
alguns detalhes, nos quais a semelhança se torna mais evidente.
Prisão foi uma das principais características do sofrimento deles. Muitos
morreram devido ao sufocante ar das masmorras fétidas. Nesse particular é
diferente da perseguição na Ásia. A excitação popular se elevou ainda mais do que
R om a e seu s G o v e r n a n te s
(64 d.C. - 177 d.C.) | 1
em Esmirna. Os cristãos eram insultados e abusados onde quer que estivessem,
e até mesmo saqueados em suas próprias casas. Quando a fúria popular eclodia
durante a ausência do governador, autoridades inferiores lançavam muitos na
prisão, aguardando o retorno dele. Mas o espírito de perseguição nesse momento,
embora tenha se espalhado pela ralé, não se restringiu a ela. Ao retornar à cidade,
o governador pareceu contaminado pelo fanatismo das classes mais baixas.
Para sua própria desonra como líder, ele começou a usar de tortura no interro­
gatório dos prisioneiros. E o testemunho dos escravos, violando uma antiga lei
em Roma, agora não apenas era válido contra seus donos, como era arrancado
deles através dos mais severos sofrimentos. Por conseguinte, os escravos estavam
prontos a dizer qualquer coisa que lhes era exigida para escaparem do chicote e
da roda37. Tendo provado, como afirmavam, que os cristãos praticavam os piores
e mais hediondos crimes em suas reuniões, seus acusadores acreditavam que
estavam livres para cometer qualquer crueldade. Nada era poupado ou levado
em consideração: nem parentesco, nem condição, nem idade, nem sexo.
Vétio, um jovem de nobre nascimento, de grande generosidade e zelo,
ao ouvir tais acusações contra seus irmãos na fé se sentiu constrangido a se
apresentar voluntariamente diante do governador como testemunha da inocência
deles. Solicitou uma audiência, mas o governador se recusou a ouvi-lo e lhe
perguntou se também era cristão. Quando respondeu com firmeza que sim, o
magistrado ordenou que fosse jogado na prisão com o restante. Posteriormente
recebeu a coroa do martírio.
O idoso bispo Potino, com noventa anos de idade, talvez um dos que
trouxeram da Ásia o evangelho a Lion, obviamente era uma excelente presa para
o leão do inferno. Ele sofria de asma e mal podia respirar, mas apesar disso, foi
agarrado e arrastado até o tribunal. “Quem é o Deus dos cristãos?”, perguntou
o governador. O ancião calmamente lhe explicou que somente com uma correta
atitude de coração é que ele poderia ter o conhecimento do verdadeiro Deus. Os
que cercavam o tribunal se esforçaram para conter a explosão de raiva contra o
admirável bispo. Ele foi condenado à prisão, e após ter recebido muitos golpes
no caminho para lá, foi jogado no cárcere com os demais prisioneiros. Em dois
dias dormiu em Jesus, nos braços de seu rebanho sofredor.
Que tremendo conforto e encorajamento devem ter sido as palavras do
Senhor para esses santos sofredores! “Nada temas das coisas que hás de padecer”
foi dito à igreja de Esmirna, e talvez levadas às igrejas francesas em Lion e Vienne
por Potino. Elas experimentavam o cumprimento literal dessa solene e profética
advertência: “Eis que o diabo lançará alguns de vós na prisão, para que sejais
37 Nota do trad. - Roda: antigo instrumento de tortura.
182 I A H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 7
tentados”. Embora imperadores, governantes e as turbas fossem instrumentos,
eles sabiam quem era o grande inimigo - o grande perseguidor. Mas o Senhor
estava com os Seus amados que sofriam. Ele não apenas os ajudava e consolava,
mas demonstrava, de maravilhosas formas, o poder de Sua própria presença nos
mais fracos seres humanos. Ousamos dizer que isso era uma coisa nova na terra.
A superioridade dos cristãos diante de todas as torturas e dos terrores da morte
surpreendia totalmente as multidões, atingia em cheio seus atormentadores, e
feria o orgulho estóico do imperador. O que se poderia fazer com pessoas que
oravam por seus perseguidores, e manifestavam a compostura e tranquilidade
do céu em meio ao fogo e aos animais selvagens no anfiteatro? Vejamos um
exemplo do que afirmamos —exemplo digno de elogio em todo tempo e por
toda a eternidade —do poder divino manifesto na fraqueza humana.
Blandina, uma escrava, se distinguiu do resto dos mártires por causa
da variedade de torturas que sofreu. Sua dona, que também sofreu martírio,
temia que a fé de sua serva pudesse ruir sob tais provações. Porém, louvado seja
o Senhor, isso não aconteceu! Firme como uma rocha, com tranquilidade e
singeleza, ela enfrentou os mais excruciantes sofrimentos. Seus carrascos lhe pres­
sionavam a negar a Cristo e a confessar que as reuniões cristãs serviam apenas
para práticas criminosas, e assim as torturas acabariam. Mas a única resposta
dela era: “Eu sou cristã, e não há perversidade entre nós”. Os açoites, a roda, a
cadeira de ferro quente e os animais selvagens haviam perdido todo o terror para
ela. Seu coração estava firmado em Cristo e Ele mantinha o espírito dela junto
de Si. O caráter de Blandina foi completamente formado, não por sua condição
social (a pior daquela época), mas pela fé no Senhor Jesus Cristo, por meio do
poder do Espírito Santo.
Dia após dia, ela servia de espetáculo público de sofrimento. Sendo mulher e
escrava, os ímpios pretendiam forçá-la a negar a Cristo, e a confessar que os cristãos
eram culpados dos crimes atribuídos a eles. Mas tudo em vão. “Eu sou cristã, e
não há perversidade entre nós” era sua calma e constante resposta. Sua fidelidade
esgotou a criatividade cruel dos carrascos. Eles ficaram surpresos com a capacidade
dela sobreviver à terrível sucessão de torturas. Porém, em suas angústias mais
profundas, Blandina encontrou forças e alívio ao olhar para Jesus e testemunhar
de Seu Nome. “Blandina foi revestida com tamanha resistência”, registra a carta
da igreja de Lion, escrita há 1700 anos, “que os homens que a torturavam sucessi­
vamente da manhã até à noite ficaram extenuados pela fadiga, esgotaram todo o
aparato de técnicas de torturas, reconheceram-se vencidos, e se maravilharam de
que ainda respirasse, embora seu corpo estivesse dilacerado e exposto”38.
38 Para mais detalhes, veja A História da Igreja, de Miller. Volume 1
R om a e seu s G o v e r n a n te s
(64 dG. - 177 d.C.) | 183
Antes de narrarmos a cena final de seus sofrimentos, examinemos o que
nos parece ser o segredo da grande força e constância dela. Sem dúvida o Senhor
a sustentava de maneira notável como Sua testemunha, e como testemunha
para todos os séculos do poder do cristianismo sobre o ser humano, comparado
a todas as demais religiões já existentes. Todavia, devemos enfatizar, que sua
humildade e santo temor eram as claras indicações do poder dela contra o inimigo
e de sua inabalável fidelidade a Cristo. Portanto, estava desenvolvendo sua
própria salvação - libertação das dificuldades do caminho - por um profundo
senso de sua fraqueza interior, indicada pelo “temor e tremor”.
No caminho do anfiteatro para a prisão, na companhia de seus irmãos
sofredores, sempre que possível eram cercados por seus entristecidos amigos, os
quais lhes chamavam de “mártires de Cristo”. Mas eles os corrigiam imediata­
mente, dizendo: “Não somos dignos de tal honra. A luta ainda não acabou; e o
honrado nome de Mártir pertence a Ele, o único que é a testemunha verdadeira
e fiel, o primogênito dente os mortos, o Príncipe da vida, ou, no mínimo, àqueles
cujo testemunho Cristo selou por causa da persistência deles até o final. Somos
apenas pobres servos”. Com lágrimas imploraram aos irmãos que orassem para
que eles pudessem permanecer firmes e fiéis até o fim. Assim a fraqueza deles
era a força que possuíam, pois isso os levava a depender do Todo-poderoso. E
sempre é, e tem sido, assim quer nas pequenas ou grandes tribulações. Mas
uma nova aflição os aguardava no retorno à prisão. Ali encontraram alguns que
deram vazão aos medos naturais, e negaram que fossem cristãos. Todavia, nada
ganharam por causa disso, pois Satanás jamais os iria libertar. Sob acusações
de outros crimes, eles foram mantidos na prisão. Blandina e os outros oraram
com muitas lágrimas por esses fracos, a fim de que pudessem ser restaurados e
fortalecidos. O Senhor lhes respondeu as orações; quando foram submetidos a
novo interrogatório, eles com firmeza confessaram sua fé em Cristo, e assim esta­
beleceram para si próprios a sentença de morte, recebendo a coroa do martírio.
Segundo os homens, nomes mais nobres que o de Blandina desapare­
ceram na cena ensangüentada; e também os honrados nomes de pessoas que
testemunharam com grande coragem como Vétio, Potino, Santus, Naturus e
Atálius. Mas finalmente chegou o último dia de suas provações, da última dor
que sentiria, e da última lágrima que derramaria. Ela foi levada ao interrogatório
final juntamente com um jovem de quinze anos, chamado Pôntico. Exigiram
que prestassem juramento aos deuses; mas ambos recusaram, de modo calmo e
inabalável. A multidão ficou exasperada pela magnânima paciência deles. Todo
o repertório de barbaridades lhes foi aplicado. Pôntico, apesar de animado e
fortalecido pelas orações de sua irmã em Cristo, logo sucumbiu sob as torturas,
e dormiu em Jesus.
184 [ A H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 7
E agora era a vez da nobre e abençoada Blandina, como a igreja a
intitulara. Como uma mãe que precisava confortar e encorajar seus filhos, ela foi
guardada para o último dia dos jogos. Seus filhos haviam partido antes dela, e
agora desejava segui-los. Eles se juntaram ao nobre exército celestial de mártires
e descansavam com Jesus, como os guerreiros descansam, no pacífico paraíso de
Deus. Após enfrentar açoites, ela foi sentada na cadeira de ferro quente, depois
envolvida em uma rede e jogada a um touro. O animal a arremessou de um
lado para o outro por algum tempo, antes de um soldado enfiar a lança em suas
costelas. Sem dúvida, Blandina já estava morta bem antes da lança atingi-la, mas
nisso ela foi honrada ao ser como o seu Senhor e Mestre. Entre as incontáveis
coroas no céu, a coroa da constante, humilde, paciente e perseverante Blandina
certamente será muito brilhante.
No entanto, a fúria selvagem e violenta dos ímpios, instigados por Satanás,
ainda não havia atingido o máximo. Eles começaram uma nova guerra contra
os corpos mortos dos santos. O sangue deles não os havia saciado. Queriam
até as cinzas dos cristãos. Os corpos mutilados dos mártires eram recolhidos,
queimados, e as cinzas jogadas no rio Ródano, junto com o fogo que as
consumia. Nenhuma partícula dos santos deveria ser deixada para contaminar
a terra. Mas a fúria, independente de quão impetuosa seja, por fim se acaba; e a
selvageria se enfada da carnificina. E assim muitos cristãos sobreviveram a essa
terrível perseguição.
Falamos com uma riqueza de detalhes maior que o normal das perseguições
sob o domínio do imperador Marco Aurélio. Cremos que são o cumprimento
das advertências proféticas à igreja de Esmirna; e de maneira notável, da graça
prometida pelo Senhor. Os mártires foram cheios do Seu próprio Espírito.
Diz Neander: “Até seus perseguidores jamais foram mencionados por eles
com amargura; ao contrário, oravam para que Deus perdoasse aqueles que os
sujeitaram a tão cruéis sofrimentos. Eles deixaram um legado a seus irmãos, não
de disputa ou guerra, mas de paz e de alegria, unidade e amor”.
Estás em casa finalmente, cada poste do caminho passado,
Tendes apressado alcançar ao alvo antes de mim;
E ó, as minhas lágrimas caem grossas e rápido
Como as esperanças que tinham florescido sobre ti.
Os meus lábios recusam dizer, Adeus,
Porque nada pode separar nossa vidainterligada,;
Bem cedo tendes ido com Cristo habitar,
Onde ambos para sempre estaremos.
Roma
O Po d er
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da
G
o vernantes
(64 d.C. - 177 d.C.) | 1 8 5
i
O ração
Ao traçarmos a linha prateada da graça de Deus em Seu amado povo,
temos de observar um relato que se espalhou bastante entre os cristãos após o
início do terceiro século. O fato ocorreu quase no final do reinado de Aurélio
e, conforme se diz, o levou a mudar o curso de sua política relativa aos cristãos.
Em uma de suas campanhas contra os germânicos e sármatas, ele se encontrou
em uma situação de extremo perigo. O sol escaldante cegava os soldados, que
estavam fatigados, feridos e absolutamente sedentos. Além disso, o inimigo os
cercava e se preparava para atacá-los. Nessa situaçãolimíte, a 12a legião, composta
por cristãos, deu um passo à frente e todos se ajoelharam e oraram. De repente,
o céu ficou coberto de nuvens, e a chuva começou a cair pesadamente. Os
soldados romanos tiraram seus capacetes para recolher as refrescantes gotas; mas
a chuva rapidamente se tornou uma tempestade de granizo, acompanhada de
relâmpagos e trovões, a qual assustou os bárbaros a tal ponto que os romanos
puderam obter uma vitoria fácil.
O imperador, perplexo com a miraculosa resposta de oração, reconheceu a
intervenção do Deus dos cristãos, conferiu honras à legião, e publicou um édito a
favor da religião deles. Após isso, se não antes, eles foram chamados de “a legião
do trovão”. Historiadores, a partir de Eusébio, registraram esse notável fato.
Mas, como uma lenda frequentemente contada, muitas coisas foram acres­
centadas. Contudo, há uma boa razão para crer que uma providencial resposta
de oração foi dada em favor dos romanos. Isso parece bastante evidente. Para a
fé não há nada de incrível em tal evento, no entanto, algumas das circunstân­
cias relatadas são questionáveis. Por exemplo, naquela época uma legião romana
provavelmente era composta de cinco mil homens; e embora houvesse muitos
cristãos na 12a, uma legião que se distinguia das demais, é difícil de acreditar
que todos os legionários fossem cristãos.
Ao retornarem, sem dúvida, contaram aos seus irmãos na fé a misericor­
diosa intervenção divina como resposta à oração, relato que a igreja registraria
e divulgaria entre os cristãos para o louvor e a glória de Deus. Mas os fatos
foram confirmados ainda mais plenamente pelos romanos. Eles também criam
que a libertação veio dos céus, porém como resposta das orações do imperador
aos deuses. Portanto, o ocorrido foi comemorado da maneira usual deles, ou
seja, com colunas, medalhas e pinturas. Nelas o imperador é representado com
as mãos para o alto em atitude de súplica; o exército aparando a chuva com os
capacetes; e Júpiter disparando raios sobre os bárbaros, que caíam fulminados
no chão.
1
186 ] A H
is t ó r ia d a
I g r e ja - capítulo 7
Poucos anos depois desse milagre, Marco Aurélio, o filósofo e perseguidor,
morreu. Grandes mudanças aconteceram rapidamente. A glória do império e a
tentativa de manter a dignidade da velha religião romana expiraram com ele,
mas o cristianismo avançou de maneira colossal. Homens hábeis e eruditos
surgiram nessa época e, ousada e poderosamente, usaram suas penas como
instrumento para advogar a favor do cristianismo. Eles foram chamados de
Apologistas. Tertuliano, um africano - ao que consta nascido no ano 160 d.C. pode ser considerado o mais talentoso e mais perfeito exemplo desse grupo.
Os mais esclarecidos entre os pagãos começaram a sentir que, para
a religião deles resistir diante da força poderosa do evangelho, teria de ser
defendida e reformada. Então a controvérsia se iniciou. Celso, filósofo epicureu
que teria nascido no mesmo ano que Tertuliano, se destacou como líder do lado
controverso do paganismo. A partir desse período - ou seja, o final do segundo
século - os relatos da igreja se tornam mais interessantes por serem mais exatos
e confiáveis. Mas antes de prosseguir com a história geral, será melhor recapi­
tularmos e revermos rapidamente a história interna da igreja desde o começo.
Veremos, assim, como foram introduzidas pela primeira vez algumas coisas que
nos são familiares e são observadas até hoje.
A H
A
is t ó r ia
In tern a
da
I g r e ja
qui, mais uma vez pisamos sobre terreno estável. Temos o privilégio
e a satisfação de apelar às Sagradas Escrituras. Antes do cânon das
Escrituras ser fechado, foi permitido que surgissem muitos erros, dou­
trinários e práticos, que causaram dificuldades e até dilaceraram a igreja professa.
Na sabedoria e graça de Deus, tais erros foram detectados e trazidos à luz pelos
apóstolos inspirados. Se mantivermos isso em mente, não nos surpreenderemos
ao encontrarmos tantas coisas totalmente contrárias às Escrituras na história
interna da igreja. Também não teremos qualquer dificuldade para combatêlas, pois os apóstolos já nos forneceram as armas. O amor por cargos e pela
preeminência na igreja se manifestou muito cedo, e foram acrescentadas várias
observâncias que não passavam de invenção dos líderes. O “grão de mostarda” se
tornou uma grande árvore - símbolo do poder político na terra. Esse era e ainda
é o aspecto exterior da cristandade, porém, internamente o fermento executa o
seu trabalho maligno, “até que tudo esteja levedado” (Mateus 13:33).
Os que estudam com cuidado o capítulo 13 de Mateus, juntamente com
outras passagens de Atos e das Epístolas relativas à proclamação do nome de
Cristo, deveriam ter uma ideia bastante clara tanto do início quanto do final
da história da igreja. Isso abrange o período inteiro, do plantio da semente pelo
Filho do homem até a colheita; tudo sob a semelhança do reino de Deus. Isso é
um grande alívio para a mente, e nos prepara para a infeliz e escura cena, perver­
samente arquitetada debaixo do nome e do disfarce de cristianismo. Retornemos
agora às passagens citadas.
188 ( A
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I g r e ja - capítulo 8
1. Na parábola do trigo e do joio, nosso amado Senhor prediz o que
aconteceria. “O reino dos céus é semelhante ao homem que semeia
a boa semente no seu campo; mas, dormindo os homens, veio o seu
inimigo, e semeou joio no meio do trigo, e retirou-se.” No decorrer do
tempo, a planta cresceu e deu fruto. Isso se refere à rápida expansão do
cristianismo no mundo. Porém, lemos que “apareceu também o joio”.
Esses eram os falsos confessores do nome de Cristo. O Senhor Jesus
semeou a boa semente. Satanás, aproveitando-se da negligência e da
fraqueza dos homens, semeou o joio. Mas o que fazer com eles? Devem
ser arrancados do reino pelas raízes? O Senhor diz: “Não; para que, ao
colher o joio, não arranqueis também o trigo com ele. Deixai crescer
ambos juntos até à ceifa”, ou seja, até o final da era ou da dispensação,
quando o Senhor Jesus virá para julgar.
Mas alguns podem perguntar: será que o Senhor quis dizer que o trigo
e o joio deveriam crescer juntos na igreja? Certamente não. Não deveriam ser
arrancados do campo, mas retirados da igreja quando a iniqüidade deles se
manifestar. A igreja e o reino são distintos, apesar de misturados. O campo é o
mundo, não a igreja. Os limites do reino se estendem muito além dos limites
da verdadeira igreja de Deus. Cristo edifica a igreja; os homens distorcem e
expandem o tamanho da cristandade. Se a expressão “reino dos céus” significa
a mesma coisa que “igreja de Deus”, então não tinha de existir disciplina de
nenhum tipo. Quanto a isso, ao escrever aos coríntios, o apóstolo expressamen­
te declara: “Tirai, pois, dentre vós a esse iníquo” (1 Coríntios 5:13). Ele não
deveria ser tirado do reino, pois isso apenas poderia ser feito se lhe fosse tirada
a vida. O trigo e o joio tinham de crescer juntos no campo até a ceifa, onde o
próprio Senhor, em Sua providência, irá lidar com o joio. Ele será atado em
feixes e lançado no fogo. Nada pode ser mais claro que o ensino do Senhor
nesta parábola. O joio tem de ser colocado para fora da mesa do Senhor, mas
não arrancado do campo. A igreja não tem de usar punições mundanas ao lidar
com ofensores eclesiásticos. Mas, infelizmente, tudo o que aqui o Senhor está
advertindo a Seus discípulos aconteceu, e a longa lista de mártires comprova isso
de maneira dolorosa. Dores e penalidades eram infligidas como disciplina, e os
refratários eram entregues às autoridades civis para serem punidos com fogo e
espada.
2. Em Atos 20 lemos acerca dos “lobos cruéis” que surgiriam na igreja
após a partida do apóstolo. Na Epístola de Paulo aos Tessalonicenses
- supostamente a primeira de suas epístolas -, ele lhes diz que o
mistério da iniqüidade já estava operando, e que outras coisas malignas
aconteceriam. Chorando, Paulo escreve aos fílipenses que muitos “são
A H i s t ó r i a I n t e r n a d a I g r e ja (107 d.C. - 245 d.C.) | 189
inimigos da cruz de Cristo, cujo fim é a perdição; cujo Deus é o
ventre, e cuja glória é para confusão deles, que só pensam nas coisas
terrenas” (3:18-19). Dentre estes, muitos se denominam cristãos,
mas têm a mente carnal. Essa situação não poderia escapar ao olhar
espiritual daquele cujo foco era Cristo na glória e a conformidade na
prática aos Seus caminhos neste mundo. Em sua Segunda Epístola
a Timóteo —provavelmente a última que escreveu —, ele compara a
cristandade a uma grande casa onde existem “vasos de ouro e de prata,
mas também de pau e de barro; uns para honra, outros, porém, para
desonra” (2 Timóteo 2:20). Essa é uma figura da aparência da igreja
no planeta. Contudo, o cristão não pode abandoná-la, e a responsabili­
dade individual jamais cessa, pois cada um tem de se purificar do que
é contrário ao nome do Senhor. As orientações são simples e preciosas
para os espirituais de todas as épocas. O cristão não tem de se associar
a nada falso. E isso o que significa purificar-se dos vasos de desonra:
livrar-se de tudo o que não traz honra ao Senhor. João e os demais
apóstolos falaram das mesmas coisas, e deram as mesmas orientações
divinas, mas não precisamos segui-los além deste ponto. O que já foi
colocado basta para que o leitor se prepare para encontrar com os que
se denominavam cristãos apenas.
Os
S e g u id o r e s I m e d ia t o s
dos
A p ó st o lo s
Surge aqui uma importante questão: quando e por que meios o clericalismo
- o sistema integral do clero - conquistou um espaço tão sólido na igreja professa?
Para responder tal questão plenamente seria necessário detalhar a história interna
da igreja. Sua constituição e caráter foram totalmente mudados pela introdução
do sistema clerical. Mas o seu crescimento e organização foram graduais.
Argumentos retirados do Antigo Testamento fizeram com que, em um curto
período de tempo, o cristianismo fosse reformado para se parecer cada vez mais e
mais com o judaísmo. A distinção entre bispos e presbíteros, entre a ministração
clerical e o sacerdócio comum de todos os crentes, e a multiplicação de templos
vieram como conseqüências e se proliferaram com rapidez. Contudo, por mais
que seja difícil traçar a invasão do clericalismo, o seu modelo era a sinagoga.
Lendo todo o Novo Testamento aprendemos que o judaísmo foi o inimigo
mais incansável e inflexível do cristianismo sob todos os pontos de vista. Por um
lado, ele trabalhou incessantemente para introduzir seus ritos e cerimônias; por
outro, perseguiu até a morte os fiéis a Cristo e aos verdadeiros princípios da igreja
IA H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 8
de Deus. Vemos isso em especial nos livros de Atos e nas epístolas. Podemos
imaginar como o judaísmo prevaleceu depois que cessaram os extraordinários
dons na igreja, e após a morte dos nobres defensores da fé, os inspirados apóstolos.
Além disso, as primeiras igrejas eram compostas principalmente por convertidos
das sinagogas judias, os quais mantiveram seus preconceitos judeus.
Portanto, acreditamos firmemente que o clericalismo se originou do
judaísmo. Desde a época dos apóstolos até hoje a raiz de toda a estrutura e do
domínio do clericalismo está presente. Sem dúvida, a filosofia e a heterodoxia
fizeram muito para corromper a igreja, levando-a a se associar com o mundo;
mas o sistema clerical e tudo o que lhe pertence está fundamentado na religião
dos judeus. E mais que provável, contudo, que muitos estejam persuadidos, assim
como muitos também o foram, de que o cristianismo é uma continuação do
judaísmo. Os mestres judaizantes afirmavam ousadamente que o cristianismo
era apenas um enxerto no judaísmo. No entanto, por meio de todas as epístolas
aprendemos que um é terreno e o outro é celestial; um pertence à antiga e o
outro à nova criação; a lei veio por Moisés, mas a graça e a verdade vieram por
Jesus Cristo.
Retornemos agora aos imediatos seguidores dos apóstolos.
:k
Os
&
*k
P ais A p o s t ó l i c o s
Os Pais Apostólicos, assim chamados, como Clemente, Policarpo,
Inácio e Barnabás, foram os imediatos seguidores dos apóstolos inspirados.
Estes ouviram as instruções deles, trabalharam com eles no evangelho, e talvez
fossem intimamente ligados a eles. Mas, não obstante os altos privilégios que
desfrutaram como discípulos dos apóstolos, logo se afastaram das doutrinas que
lhes haviam sido confiadas, em especial quanto ao governo da igreja. Julgando
pelas epístolas que trazem o nome deles, parece que tinham esquecido por
completo a grande verdade neo testamentária acerca da presença do Espírito
Santo na assembléia cristã. Certamente tanto João quanto Paulo lhes falaram da
presença, da habitação, do governo soberano e da autoridade do Espírito Santo
na igreja. Em João 13-16, Atos 2:1, 1 Coríntios 12:14 e Efésios 1-4 nos dão
instruções e direções bastante claras sobre essa verdade fundamental da igreja de
Deus. Se tal verdade tivesse sido mantida de acordo com e exortação do apóstolo:
“Procurando guardar” —e não criar —“a unidade do Espírito” (Efésios 4:3), o
clericalismo jamais teria encontrado lugar na cristandade.
A H i s t ó r i a I n t e r n a d a I g r e ja (107 d.C. - 245 d.C.) | 1
Parece que os novos mestres da igreja também esqueceram da bela sim­
plicidade da ordem divina na igreja. Havia somente duas classes de obreiros os anciãos e os diáconos. Uma classe era para atender às necessidades temporais
da assembléia dos santos, enquanto a outra atenderia às espirituais. Ancião, ou
bispo, significa simplesmente supervisor, alguém encarregado da supervisão
espiritual. Tal pessoa pode ou não ser “apta a ensinar”, pois não é um mestre
ordenado, mas sim supervisor ordenado. E quanto aos sacramentos estabeleci­
dos por mandato divino, no Novo Testamento encontramos apenas o batismo
e a ceia do Senhor. Em relação às direções dadas para a fé e a prática cristãs,
nada pode ser mais simples, mais claro ou de mais fácil entendimento. Não
há qualquer espaço para a exaltação e a glória humanas na igreja de Deus. O
Espírito Santo desceu para tomar a liderança na assembléia, de acordo com
a palavra do Senhor e a promessa do Pai, e nenhum cristão, por mais cheio
de dons que seja, crendo nisso poderia se colocar no lugar de líder e, dessa
forma, substituir o Espírito de Deus. Mas do momento em que se perdeu essa
verdade de vista, os homens começaram a contender por posições e poder,
e obviamente o Espírito Santo não ocupou mais o Seu lugar de direito na
assembléia.
A medida que a voz da inspiração se torna cada vez mais silenciosa na
igreja, ouvimos a voz dos novos mestres gritando e exigindo que as maiores
honras e o supremo lugar sejam concedidos aos bispos. Nenhuma palavra sobre
o lugar do Espírito como o Soberano na igreja de Deus. Isso fica evidente nas
epístolas de Inácio, escritas por volta do ano 107 d.C.. Muitos grandes nomes
questionaram a autenticidade delas; outros muitos grandes nomes argumen­
taram que há provas satisfatórias de sua autoria. As provas de ambos os lados
estão fora de nossos limites. A Igreja da Inglaterra há muito já as aceitou como
genuínas, e as considera a base, bem como a defesa triunfante, da antiguidade
do episcopado. O que segue abaixo são pequenos trechos das advertências de
Inácio às igrejas.
Inácio, durante sua jornada de Antioquia a Roma39 escreveu sete cartas.
Pelo fato de estar às vésperas do martírio, de ter sido discípulo e amigo do
apóstolo João, e de ser naquela época bispo de Antioquia, provavelmente o mais
renomado na cristandade, suas epístolas, veementes e sérias, devem ter produzido
uma profunda impressão nas igrejas; além disso, o poder, os títulos, e a autoridade
sempre exercem um grande fascínio sobre a fútil natureza humana.
Ao escrever à igreja dos efésios, ele diz: “Tomemos cuidado, irmãos,
para não nos colocarmos contra o bispo, a fim de que estejamos sujeitos a
39 Veja Jornada e Martírio de Inácio.
I A H is t ó r i a
da
I g r e ja - capítulo 8
Deus..., pois é evidente que temos de respeitar o bispo da mesma maneira
como respeitamos o próprio Senhor”. Já na epístola aos magnésios, afirma:
“Eu exorto vocês a examinarem cuidadosamente para fazer todas as coisas
em divina harmonia: seus bispos presidindo como se estivessem no lugar de
Deus; seus presbíteros como se estivessem no lugar do conselho de apóstolos;
e seus diáconos, a posição mais estimada para mim, estando encarregados do
ministério de Jesus Cristo”. Encontramos o mesmo tom em sua carta aos trálios:
“Enquanto estiverem sujeitos ao bispo de vocês da mesma forma que ao Senhor,
me parece que estarão vivendo, não à maneira dos homens, mas de acordo
com Jesus Cristo, que morreu por vocês... Guardem-se de tais pessoas; e isso
vocês farão se não estiverem ensoberbecidos, mas continuem inseparáveis de
Jesus Cristo nosso Deus, do bispo de vocês, e dos mandamentos dos apóstolos”.
Deixando de lado algumas de suas cartas a outras igrejas, daremos mais um
exemplo do que se encontra na epístola dele à igreja de Filadélfia: “Eu clamei
enquanto estava no meio de vocês, falei em alta voz: ‘Obedeçam ao bispo, ao
presbitério e aos diáconos’. Agora alguns supõem que disse isso prevendo a
divisão que aconteceria. Mas Ele é minha testemunha, por amor do qual estou
em correntes, que eu nada sabia vindo da parte dos homens, mas o Espírito
falou...: ‘Nada façam sem o bispo; mantenham seus corpos como templos de
Deus, amem a unidade, fujam das divisões, sejam seguidores de Cristo, como
Ele é do Pai’”40.
Na última citação fica evidente que o respeitável pai desejava acrescentar
às suas teorias o peso da inspiração. No entanto, por mais extravagante e
inexplicável que seja tal idéia, devemos lhe dar o crédito por acreditar no que
dizia. Que ele era um cristão piedoso e cheio de zelo religioso, ninguém pode
duvidar, mas que estava grandemente enganado nesta e em outras questões
também não resta dúvida. A idéia principal em todas as cartas dele era a total
submissão do povo aos seus líderes, em outras palavras, submissão dos leigos
ao clero. Indubitavelmente, Inácio ansiava pelo bem-estar da igreja, e temendo
os efeitos das “divisões” às quais se refere, é provável que tenha pensado que
um governo forte, nas mãos de líderes, seria o melhor meio de preservá-la
da invasão dos erros. “Sejam diligentes”, disse, “em estabelecer a doutrina
de nosso Senhor e dos apóstolos, junto com o mais digno bispo entre vocês,
os mais espirituais presbíteros e os mais piedosos diáconos. Sejam sujeitos ao
bispo e uns aos outros, como Jesus Cristo era ao Pai, quando na carne; e como
os apóstolos a Cristo, e ao Pai e ao Espírito; e assim poderá haver união entre
m O s extratos acima foram retirados da Tradução de Wctke. Veja também “Um a Completa e Fiel
Análise dos Escritos de Inácio, Clemente, Policarpo e Hermas”. O Pesquisador, volume 2.
A H i s t ó r i a I n t e r n a d a I g r e j a (10/ d.C. - 245 d.C.) | 193
vocês, tanto no corpo quanto no espírito.” Portanto, a mitra foi colocada sobre
a cabeça do mais alto dignitário, e desde então tem sido objeto da ambição
eclesiástica, e da mais indecorosa disputa, com todas as suas desmoralizantes
consequências.
e
C l e r ic a l ism o , M in is t é r io
R esp o n sa b ilid a d e I n d iv id u a l
Admite-se que essas epístolas tenham sido escritas poucos anos depois
da morte do apóstolo João, e que o autor tenha conhecido profundamente sua
maneira de pensar, e estivesse apenas defendendo sua opinião. Consequentemente,
fica implícito que o episcopado é contemporâneo do cristianismo. Mas quem as
escreveu, ou o tempo em que foram escritas, tem pouca importância, pois não
fazem parte das Escrituras, e o leitor deve julgar o caráter delas pela Palavra de
Deus, e a influência que tiveram pela história da igreja. A mente do Senhor no
que se refere à Sua igreja e à responsabilidade de Seu povo tem de ser conhecida
através de Sua própria Palavra, e não pelos escritos dos pais apostólicos, por mais
estimados ou pioneiros que sejam. E aqui, antes de deixarmos esse tópico, será
melhor colocar diante de nossos leitores algumas porções da Palavra, os quais
farão bem se as compararem com os extratos acima. Elas se referem ao ministério
cristão e à responsabilidade individual. Assim, aprenderemos a imensa diferença
entre o ministério e o título; ou seja, entre ser estimado por causa do trabalho
realizado, e não por causa da posição em si.
Em Mateus 24:45 a 25:31 há três parábolas nas quais o Senhor mostra
como os discípulos devem se conduzir durante Sua ausência.
1. O tema da primeira parábola é a responsabilidade do ministério dentro
da casa - na igreja. “A qual casa somos nós” (Hebreus 3:6). “Quem é,
pois, o servo fiel e prudente, que o seu senhor constituiu sobre a sua
casa, para dar o sustento a seu tempo? Bem-aventurado aquele servo
que o seu senhor, quando vier, achar servindo assim. Em verdade vos
digo que o porá sobre todos os seus bens.” O verdadeiro ministério é
do Senhor e somente dEle. E isso que temos de observar ao vermos o
que aconteceu nos primórdios do cristianismo. E Ele Se importa com a
fidelidade ou infidelidade em Sua casa. Ele ama os Seus. Os que foram
fiéis e humildes durante Sua ausência serão colocados como admi­
nistradores sobre todos os Seus bens quando retornar. O verdadeiro
ministro de Cristo lida diretamente com Ele mesmo, pois não é
mercenário de algum homem, ou de algum grupo. “Bem-aventurado
A H is t ó r i a
da
I g r e ja - capítulo 8
aquele servo que o seu senhor, quando vier, achar servindo assim.” O
fracasso no ministério será exposto e castigado pelo próprio Senhor.
“Mas se aquele mau servo disser no seu coração: O meu senhor tarde
virá; e começar a espancar os seus conservos, e a comer e a beber
com os ébrios...” Esse é o outro triste lado da figura. O caráter do
ministério é profundamente afetado se a verdade do retorno do Senhor
é defendida ou rejeitada. Em vez de um serviço fiel para com os
domésticos da fé, com vistas à aprovação do Mestre em Seu retorno,
existe orgulho, tirania e carnalidade. Quando o Senhor vier, a ruína
de tais pessoas será pior do que a do mundo. O Senhor “destinará a
sua parte com os hipócritas” - o lugar de Judas - ; “ali haverá pranto e
ranger de dentes”. São as consequências terríveis de se ignorar o retorno
do Senhor. Porém, isso é mais que um simples erro doutrinário, ou
uma mera opinião divergente sobre a vinda do Senhor. Isso estava “em
seu coração”, a vontade do servo estava envolvida. O servo desejava em
seu coração que o Senhor estivesse longe, pois Sua vinda estragaria
todos os planos que tinha feito, e traria um fim à sua grandeza terrena.
Será que isso não é uma figura exata do que tem acontecido? E que
lição solene para os que tomam para si um lugar no serviço da igreja!
A simples nomeação, ou a escolha de um grupo, não será suficiente
naquele dia, a menos que tal pessoa também seja o escolhido do Senhor
e fiel em Sua casa.
2. Na segunda parábola, durante a ausência do Senhor, cristãos professos
são representados como virgens que iam ao encontro do Noivo para
iluminar o caminho dele até Sua casa. Essa era a atitude dos primeiros
cristãos. Saíram do mundo, e do judaísmo, para irem e encontrarem o
Noivo. Mas sabemos o que aconteceu. Ele demorou: todos adormeceram
e dormiram. “Mas à meia-noite ouviu-se um clamor: Aí vem o esposo,
saí-lhe ao encontro.” Desde o primeiro século até o início deste, muito
pouco acerca da vinda do Senhor foi dito. De vez em quando, aqui e
ali, uma tênue voz pôde ser ouvida sobre o assunto; mas a partir do
início deste século o clamor da meia-noite está ecoando. Agora temos
muitos livros e artigos sobre o tema, e muitos estão pregando sobre
isso em quase todas as nações debaixo do céu. A meia-noite já passou,
o amanhã está chegando.
O restabelecimento da verdade da vinda do Senhor marca uma época
distinta na história da igreja. E, como todos os outros reavivamentos,
foi obra do Espírito Santo, por meio dos instrumentos de Sua própria
escolha, e dos meios que Ele achou mais adequados. E por causa da
A H i s t ó r i a I n t e r n a d a I g r e j a (107 d.C. - 245 d.C.) [ 1 9 5
longanimidade do Senhor, neste grande movimento deverá haver
um espaço de tempo entre o clamor e a chegada efetiva do Noivo
para provar a condição de cada indivíduo. Cinco das dez virgens não
tinham óleo em suas lâmpadas - nem Cristo, nem o Espírito Santo
habitavam nelas. Elas tinham somente a aparência exterior de cristãs.
Olhando o estado da cristandade sob esse ponto de vista, quão solene
é esse pensamento! Cinco das dez eram artificiais, e a porta lhes foi
fechada para sempre. Como esse pensamento deveria nos mover ao
ardor e ao entusiasmo na evangelização! Que possamos tirar sábio
proveito do tempo que nos é concedido, graciosamente, entre o clamor
da meia-noite e à chegada do Noivo.
3. A primeira parábola trata do ministério dentro da casa; na terceira, do
ministério fora da casa - a evangelização. Na segunda parábola o tema
é a expectativa pessoal da vinda do Senhor, e a posse dos requisitos
necessários para estar com Ele nas bodas do Filho do Rei.
“Porque isto [o Reino de Deus] é também como um homem que,
partindo para fora da terra, chamou os seus servos, e entregou-lhes
os seus bens. E a um deu cinco talentos, e a outro dois, e a outro
um, a cada um segundo a sua capacidade, e ausentou-se logo para
longe.” Aqui o Senhor é representado deixando este mundo e voltando
para o céu, e enquanto está ali, Seus servos têm de negociar com os
talentos que lhes foram dados. “E, tendo ele partido, o que recebera
cinco talentos negociou com eles, e granjeou outros cinco talentos. Da
mesma sorte, o que recebera dois, granjeou também outros dois.” Aqui
temos o real princípio e o real caráter do ministério cristão. O próprio
Senhor chamou os servos e lhes deu os talentos; o servo é responsável
perante o Senhor pelo cumprimento integral de seu chamado. Embora
sujeita às direções da Palavra e sempre tendo de ser exercitada em amor,
com vistas à edificação, a prática do dom, quer dentro ou fora da casa,
não depende da vontade do soberano, do sacerdote ou do povo, mas
somente de Cristo, o verdadeiro Cabeça da igreja. E algo grave e sério
alguém interferir nos direitos de Cristo sobre o serviço de Seus servos.
Tocar nisso é colocar de lado a responsabilidade atribuída por Cristo,
e subverter o princípio fundamental do ministério cristão.
O sacerdócio era a característica distintiva da dispensação judaica; o
ministério é a característica do período cristão. Daí a razão do total fracasso
da igreja professa ao procurar imitar o judaísmo de várias maneiras, tanto no
sacerdócio quanto no ritualismo. Se uma classe sacerdotal, juntamente com ritos
e cerimônias, ainda fosse necessária, a eficácia da obra de Cristo estaria em xeque.
196 I A
H is t ó r i a
da
I g r e ja - capítulo 8
Mesmo que palavras não sejam utilizadas nesse sentido, tal atitude é uma tentativa
de destruir o cristianismo pela sua raiz. Mas todas essas coisas são elucidadas na
Palavra de Deus. “Mas este, havendo oferecido para sempre um único sacrifício
pelos pecados, está assentado à destra de Deus, daqui em diante esperando até
que os seus inimigos sejam postos por escabelo de seus pés. Porque com uma só
oblação aperfeiçoou para sempre os que são santificados... Ora, onde há remissão
destes, não há mais oblação pelo pecado.” (Hebreus 10:1-25).
Portanto, o ministério é um assunto da maior dignidade e interesse. Ele
testifica da obra, da vitória e da glória de Jesus, para que o perdido possa ser salvo.
É a atividade do amor de Deus para com um mundo hostil e arruinado, suplicando
ardentemente que as almas se reconciliem com Ele. “Deus estava em Cristo recon­
ciliando consigo o mundo, não lhes imputando os seus pecados; e pôs em nós a
palavra da reconciliação” (2 Coríntios 5:19-21). O sacerdócio judaico mantinha as
pessoas em seu relacionamento com Deus; o ministério cristão é Deus em graça
por meio de Seus servos libertando almas do pecado e da ruína, trazendo-as para
perto de Si, transformando pecadores em adoradores no santo lugar.
Retornando à nossa parábola, há algo em especial a ser notado aqui: a
soberania e sabedoria do Senhor relacionada ao ministério. Ele deu diferentes
medidas a cada um, segundo a habilidade deles. Cada servo tinha uma
capacidade natural adequada ao serviço que desempenhava, e os dons foram
conferidos de acordo com a medida do dom de Cristo para o cumprimento do
ministério. “E ele mesmo deu uns para apóstolos, e outros para profetas, e outros
para evangelistas, e outros para pastores e doutores” (Efésios 4:11). O servo deve
ter certas qualificações naturais para a obra que faz, além do poder do Espírito
de Deus. Se o Senhor chama um homem para pregar o evangelho, haverá uma
habilidade natural para isso. O Senhor pode fazer surgir, pelo Seu Espírito, no
coração de tal pessoa um genuíno amor pelas almas, o qual é o melhor dom para
um evangelista. Então o servo tem de despertar e exercitar seu dom conforme
com suas habilidades, para a bênção das almas e a glória de Deus. Devemos
lembrar que somos responsáveis por essas duas coisas - o dom graciosamente
concedido a nós, e a habilidade com a qual o dom deve ser exercitado. Quando
o Senhor vier para acertar contas com Seus servos, não bastará dizer: “Não fui
educado, ou não fui nomeado, para o ministério”. A pergunta será: “Eu esperei
no Senhor para ser usado por Ele de acordo com o que Ele mesmo designou para
mim?” ou “Será que escondi meu talento na terra?” A única coisa que estará em
jogo será a fidelidade ou a infidelidade a Ele.
O que distinguiu o servo fiel do infiel foi a confiança no mestre. O infiel
não conhecia realmente o Senhor; ele agia por medo, não por amor, e assim
escondeu seu talento na terra. O servo fiel conhecia o Senhor de fato, confiava
A H i s t ó r i a I n t e r n a d a I g r e ja (10/ d.C. - 245 d.C.) | 1 9 7
nEle, O servia com amor, e assim foi recompensado. Amor é a única fonte do
serviço prestado para Cristo, quer na igreja quer fora dela. Que jamais sejamos
encontrados arquitetando desculpas, como o “mau e negligente servo”, mas que
sempre contemos com o amor, a graça, a verdade e o poder de nosso maravilhoso
Senhor e Salvador.
O E fe it o
da
N ova O r d e m C ler ic a l
Seria apenas justo supor que esses bons homens, pelos quais uma nova
ordem de coisas foi trazida para dentro da igreja, e o livre ministério do Espírito
Santo nos membros excluídos do corpo, tivessem o bem-estar da igreja em
mente. E evidente que Inácio, através de seu arranjo, pretendia evitar “divisões”.
No entanto, por mais nobres que sejam nossos motivos, a estupidez humana —
quando não estraga - interfere ou procura mudar a ordem de Deus. Esse foi
o erro de Eva, e todos sabemos muito bem das consequências dele. Esse foi
também o pecado original da igreja, cujo efeito ela sofre até hoje.
O Espírito Santo enviado do céu é o único poder do ministério, mas o
Senhor tem de ter liberdade de escolher e usar Seus servos. Arranjos e nomeações
humanos necessariamente interferem na liberdade do Espírito ao suprimi-Lo,
pois somente Ele sabe onde está a habilidade, e onde, quando e como distribuir
os dons. Foi dito o seguinte da igreja nos dias dos apóstolos: “Mas um só e o
mesmo Espírito opera todas estas coisas, repartindo particularmente a cada um
como quer”. E lemos também: “E há diversidade de ministérios, mas o Senhor é o
mesmo. E há diversidade de operações, mas é o mesmo Deus que opera tudo em
todos. Mas a manifestação do Espírito é dada a cada um, para o que for útil” (1
Coríntios 12:5-11). Aqui tudo está nas mãos de Deus. O Espírito Santo distribui
o dom, o qual tem de ser exercido debaixo do reconhecimento do senhorio de
Cristo; e assim Deus confere eficácia ao ministério. Quão maravilhoso é ter o
Espírito, o Senhor e Deus como a fonte, poder e caráter do ministério! E como
é profundamente triste a mudança deles para o rei, o sacerdote ou o povo! Isso
não é apostasia? Mas enquanto objetamos à mera nomeação humana ao ofício,
qualificado ou não, contenderíamos mais seriamente pelo ministério da palavra
tanto para santos como para pecadores.
A igreja, infelizmente, logo descobriu que, o impedimento do ministério,
como apresentado a nós na Palavra de Deus, e a introdução de uma nova ordem
de coisas, não impediu o aparecimento de divisões, heresias e o surgimento de
falsos mestres. De fato, a carne, até no mais genuíno e dotado cristão, pode se
manifestar; porém, quando o Espírito de Deus está agindo em poder, e quando
a autoridade da Palavra é reconhecida, o remédio também está ao alcance: o mal
198 I A
H i s t ó r i a d a I g r e j a - capítulo 8
será julgado em humildade e fidelidade a Cristo. Desde essa época - começo do
segundo século, e até antes —, a igreja foi bastante transtornada por heresias; e
conforme o tempo passava, as coisas não melhoraram, ao contrário, se tornavam
cada vez piores.
Irineu, um cristão de grande fama, sucessor de Potino como bispo em
Lion no ano 177 d.C., nos deixou muitas informações sobre as primeiras
heresias. SupÕe-se que tenha escrito por volta do ano 183 d.C.. Diz-se que seu
grande livro “Contra as Heresias ’ é uma defesa da santa fé católica, e uma análise
e refutação das falsas doutrinas advogadas pelos principais heréticos.41
A O r ig e m d a D is t in ç ã o
e n t r e C lero e L eig o s
No início do cristianismo não havia uma classe sacerdotal separada. Os
primeiros convertidos foram por toda a parte pregando o Senhor Jesus. Eles
foram os primeiros a espalhar pelo mundo inteiro as boas novas da salvação,
antes mesmo dos próprios apóstolos deixarem Jerusalém (Atos 8:4). A medida
que em algum lugar o número de convertidos era suficiente para formar uma
assembléia, eles se reuniam no primeiro dia da semana em o nome do Senhor
para partir o pão, e edificar uns ao outros em amor (Atos 20:7). Quando havia
a oportunidade de um apóstolo visitar tais reuniões, ele escolhia os anciãos para
supervisionar o pequeno rebanho, e a assembléia escolhia os diáconos. Essa era
a constituição das primeiras igrejas. Se o Senhor levantava um evangelista, as
almas eram convertidas e as pessoas eram batizadas em nome do Pai, do Filho
e do Espírito Santo. Isso, obviamente, ocorria fora da assembléia, não era um
ato da igreja. Após cuidadosa verificação pelos espirituais quanto à autenticidade
da obra do evangelista, e a assembléia estando satisfeita, eles eram recebidos na
comunhão.
Desse breve resumo da ordem divina nas igrejas, fica claro que não existia
distinção entre o “clero” e os “leigos”. Todos estavam no mesmo nível quanto
ao sacerdócio, à adoração e à proximidade de Deus. Como os apóstolos Pedro e
João disseram: “Vós também, como pedras vivas, sois edificados casa espiritual e
sacerdócio santo, para oferecer sacrifícios espirituais agradáveis a Deus por Jesus
Cristo” (1 Pedro 2:5). E assim a assembléia inteira pode cantar: “Aquele que nos
amou, e em seu sangue nos lavou dos nossos pecados, e nos fez reis e sacerdotes
41 Irineu contra Heresias, Clarke, Edimburgo.
A H i s t ó r i a I n t e r n a d a I g r e j a (107 d.C. - 245 d.C.)
para Deus e seu Pai; a ele glória e poder para todo o sempre. Amém” (Apocalipse
1:5-6). Portanto, o único sacerdócio na igreja de Deus é o sacerdócio comum de
todos os crentes. O criado mais humilde no palácio do arcebispo, se for lavado
no sangue de Cristo, estará mais alvo que a neve, e digno para entrar no santo
lugar, e adorar dentro do véu.
Não há mais adoração no pátio exterior. A separação de uma classe privi­
legiada - a ordem sacerdotal - é desconhecida no Novo Testamento. A distinção
entre clérigos e leigos foi sugerida pelo judaísmo e a inventividade humana logo
a engrandeceu; mas foi a ordenação episcopal que estabeleceu a distinção e
aumentou a separação. O bispo gradualmente assumiu o título de Pontífice. Os
presbíteros, e por fim os diáconos, se tornaram uma classe sagrada, assim como
os bispos. O lugar de mediação e de maior proximidade de Deus foi usurpado
pela casta sacerdotal, juntamente com a posição de autoridade sobre a classe
leiga. Ao invés de Deus falar diretamente ao coração e à consciência por Sua
própria Palavra, e de ambos serem trazidos diretamente à presença de Deus,
agora havia o sacerdócio entre eles. Consequentemente, a Palavra de Deus perdeu
o significado e a fé passou a se basear nas opiniões humanas. O maravilhoso
Senhor Jesus, como Grande Sumo Sacerdote de Seu povo, e único Mediador
entre Deus e os homens, foi praticamente substituído e desprezado.42
Infelizmente, vemos na igreja o mesmo padrão de declínio que se aplica
aos homens desde Adão. Tudo o que foi confiado à humanidade fracassou.
Desde o momento em que a responsabilidade de manter a igreja como coluna
e baluarte da verdade caiu nas mãos dos homens, só houve fracassos. A Palavra
de Deus, contudo, permanece a mesma, e sua autoridade jamais declina. Um
dos principais objetivos destas “Notas” é chamar a atenção do leitor para os
princípios e padrões da igreja ensinados no Novo Testamento. “Deus é Espírito,
e importa que os que o adoram o adorem em espírito e em verdade” (João 4:24).
Ou seja, temos de servi-lO e adorá-lO de acordo com a verdade, e sob o comando
e unção do Espírito Santo, se quisermos glorificar Seu nome, adorando-O e
servindo-O de maneira aceitável.
Praticamente todos os escritores eclesiásticos afirmam que nem o próprio
Senhor nem os apóstolos deram qualquer preceito claro quanto à ordem e ao governo
42 Um a das mais altas autoridades no que se refere à ordem episcopal é da opinião que a distinção
entre o clero e leigos é derivada do Antigo Testamento: que assim como o sumo sacerdote
tinha seu oficio atribuído a ele, os sacerdotes também possuíam seu lugar característico, e os
levitas, seu serviço peculiar; da mesma maneira os leigos estavam sob as obrigações devidas aos
leigos. Ele também afirmou que o sacerdócio comum de todos os crentes é ensinado no Novo
Testamento, mas que os Pais nos primórdios da igreja a formaram segundo o sistema judaico.
Gingham on the Antiquity ofthe Christian Church, volume 1.
199
2 0 0 I A H i s t ó r i a d a I g r e j a - capítulo 8
da igreja —tais coisasforam deixadas a cargo da sabedoria eprudência de seus líderes,
e ao sabor das épocas. Aceitando-se isso como verdadeiro, um enorme âmbito foi
dado à vontade humana. Sabemos das consequências. O homem procura sua
própria glória. A simplicidade do Novo Testamento, o caminho humilde trilhado
pelo Senhor e pelos apóstolos, o zelo e a abnegação de Paulo foram completa­
mente negligenciados, e a grandeza mundana tornou-se no objeto e no alvo da
ambição do clero. Uma breve descrição do cargo de bispo irá lançar luz sobre tais
coisas, e, sem dúvida, despertará o interesse de nossos leitores.
O Q u e E r a um B isp o
nos
P r im e ir o s T e m p o s ?
O mais humilde camponês está familiarizado com o esplendor e a
grandeza terrena de um bispo, mas talvez não saiba como um ministro de
Cristo e sucessor de pescadores pobres da Galiléia, chegou a tal nobreza. Nos
dias dos apóstolos e por cerca de um século depois, o ofício de um bispo era
uma trabalhosa, porém “boa obra”. Ele estava a cargo de uma única igreja, que
geralmente poderia caber na casa de uma família. Portanto, ele não era senhor
“sobre a herança de Deus” (1 Pedro 5:3); na verdade, era ministro e servo,
instruindo os fiéis e visitando pessoalmente os pobres e doentes. Os presbíteros
e os diáconos, sem dúvida, ajudavam na administração das questões gerais da
igreja; mas ao bispo cabia a parte principal do serviço. Contudo, não tinha
autoridade para decretar ou sancionar nada sem o consentimento do presbitério
ou do povo. Não existia o conceito de “clero inferior” abaixo dele. E naquele
tempo, as igrejas não tinham renda, exceto pelas contribuições voluntárias
dadas por pessoas que não eram ricas. Além disso, depois das necessidades dos
pobres e doentes terem sido atendidas, certamente sobrava bem pouco para o
salário do bispo.
Nesses primeiros tempos, é altamente provável que os oficiais da igreja
continuassem com suas profissões e ocupações, sustentando suas famílias da
mesma maneira que antes. “O bispo”, diz Paulo, deve ser “dado à hospitalidade”
(Tito 1:8). E isso ele não poderia ser se sua renda dependesse das ofertas dos
pobres. Somente por volta do ano 245 d.C., é que os clérigos passaram a receber
salário, e foram proibidos de continuar com seus empregos seculares. Próximo
ao final do século II d.C., várias circunstâncias surgiram na história da igreja
que afetaram grandemente a humildade e a simplicidade original de seus super­
visores, os quais também incentivaram a corrupção da classe sacerdotal. “Essa
mudança começou”, diz Waddington, “quase no final do segundo século; e é
A H i s t ó r i a I n t e r n a d a I g r e ja (107 d.C. - 245 d.C.) I 201
certo que nesse período encontramos as primeiras reclamações sobre a incipiente
corrupção do clero”. A partir do momento em que os interesses dos ministros se
tornaram completamente distintos daqueles do cristianismo, muitas e profundas
mudanças para pior tiveram início. Iremos observar algumas dessas circunstân­
cias, começando pela origem das dioceses.
*
Á O r ig e m
*
*
d as
D io ceses
Novas igrejas começaram a surgir nos arredores das cidades, quer
pelo trabalho dos bispos que viviam nelas ou pelo trabalho de outros
presbíteros, diáconos ou mesmo do povo. Essas jovens assembléias, naturalmen­
te, continuaram sob o cuidado das igrejas maiores por meios das quais receberam
o evangelho, e se transformaram em igrejas. Assim os arcebispados foram gradu­
almente se formando, o que depois em grego se denominou dioceses. Os bispos
das cidades reivindicaram o direito de designar líderes para essas igrejas rurais;
e as pessoas incumbidas de cuidar delas foram chamadas de bispos distritais.
Estes deram origem a uma nova classe intermediária entre bispos e presbíteros,
inferiores aos primeiros e superiores aos segundos. Dessa maneira criou-se mais
distinções e divisões, e se multiplicaram os cargos.
A O r ig e m d o B isp o M
e t r o p o l it a n o
As igrejas assim constituídas e regulamentadas proliferaram por todo
o império. Cada igreja era essencialmente distinta uma da outra no tocante à
administração das questões internas, embora tivessem comunhão espiritual com
todas as demais, e se considerassem parte da única igreja de Deus. Mas, com o
aumento do número de crentes e de igrejas, variações na doutrina e na disciplina
se espalharam, as quais nem sempre puderam ser corrigidas nas assembléias
locais. Isso deu origem aos concílios, ou sínodos. Eles eram compostos principal­
mente daqueles que faziam parte do ministério. Mas quando os representantes
das igrejas estavam reunidos, logo descobriram que era necessária a liderança, o
controle de um presidente. A menos que a soberana ação do Espírito Santo na
igreja fosse reconhecida e acolhida, aconteceria o caos sem um líder supremo.
O bispo da capital da província em geral era designado para presidir, sob o
imponente título de bispo metropolitano. Em seu retorno para sua cidade era
difícil deixar de lado tais honras ocasionais, então logo ele reivindicava pessoal
e permanentemente a alta posição de Metropolitano.
202 ] A H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 8
Os bispos e presbíteros, até aquele tempo, eram vistos como iguais; em
outras palavras, ambos os termos eram usados quase como sinônimos. Porém, os
bispos passaram a se considerar investidos com um supremo poder na liderança
da igreja, e estavam determinados a se manter nessa autoridade. Os presbíteros
se recusaram a lhes conceder tal nova e auto proclamada posição, e trataram de
manter a própria independência. Daí surgiu uma grande controvérsia entre os
sistemas episcopal e presbiteriano, que continua até os dias de hoje. Falaremos
sobre isso mais adiante. Por agora basta para mostrar ao leitor o começo de
muitas coisas que ainda estão operantes na igreja professa. Na sagrada classe dos
clérigos encontramos o embrião do qual frutificou todo o sacerdócio medieval,
o pecado da simonia43, as leis do celibato, e a terrível corrupção da idade das
trevas44 .
Tendo visto o que ocorria dentro da igreja desde o início, em especial
entre seus líderes, agora vamos continuar com a história geral a partir da morte
de Marco Aurélio.
43 Simonia é a vencia de “favores divinos”.
44 Para mais detalhes, veja Neander, vol. 1; Mosheim, vol. 1; Bingham, vol. 1.
9
D
à
e
A sc e n s ã o
C ômodo
d e C o n s t a n t in o
(anos 180-313 d.C.)
O
cristianismo desfrutou de um período de relativa paz e tranquilidade
durante os reinados dos sucessores de Marco Aurélio. A depravação de
Cômodo foi útil no tocante aos interesses dos cristãos após os grandes
sofrimentos pelos quais passaram sob o domínio de seu pai. Além disso, os breves
reinados dos muitos imperadores que subiram ao poder não lhes permitiram ter
tempo para combater o crescimento do cristianismo. “Por um pouco mais de
cem anos”, diz Milman, “da ascensão de Cômodo até a de Diocleciano, cerca
de vinte imperadores passaram como sombras no trágico cenário do palácio
imperial. O império do mundo se tornou o prêmio de façanhas mirabolantes,
ou o precário troféu da soldadesca sem lei. Uma longa linhagem de aventureiros
militares, frequentemente estranhos ao nome, à raça e à linguagem de Roma
—africanos, árabes, godos - se apoderaram do inconstante cetro do mundo. A
mudança de governo quase sempre significava uma mudança de dinastia, ou,
por alguma estranha fatalidade, cada tentativa de restabelecer uma sucessão
hereditária era frustrada pelos vícios ou pela imbecilidade da segunda geração”.
Desse modo, os cristãos tiveram cem anos de certa quietude. Sem dúvida,
houve muitos casos de perseguição e martírio durante esse período, resultado de
204
| A H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 9
hostilidades pessoais e não de uma política sistemática engendrada pelo governo
contra os cristãos. O primeiro e principal objetivo de cada novo imperador era
assegurar seu duvidoso trono. Não tinham tempo para se devotar à supressão
do cristianismo, nem às mudanças sociais e religiosas dentro do império. Assim,
o grande Cabeça da igreja fez uso da fraqueza e da insegurança do trono como
um meio indireto para fortalecer e prosperar a igreja.
Mas, apesar do reinado de Cômodo ter sido, em geral, favorável ao
progresso do cristianismo, houve um importante momento de perseguição que
temos que registrar.
Apolônio, um senador romano, famoso pela erudição e filosofia, era um
cristão genuíno. Muitos nobres de Roma, com todas suas famílias, abraçaram o
cristianismo nesse período. O senso de dignidade dos senadores romanos ficou
abalado por tais inovações. Supõe-se que isso levou à acusação de Apolônio
diante do tribunal . Seu acusador foi sentenciado à morte por causa de uma
antiga e não revogada lei de Antonino Pio, a qual previa graves punições aos que
acusavam outros de serem cristãos. O magistrado pediu que o acusado, ou seja,
Apolônio, desse um relato de sua fé perante o senado e a corte. Ele concordou,
e ousadamente confessou sua fé em Cristo. Em consequência, Apolônio foi
decapitado por decreto do senado. Alguns dizem que este foi o único julgamento
registrado na História onde tanto o acusador quanto o acusado sofreram judi­
cialmente. Mas a mão do Senhor estava nisso, e muito acima do acusador e de
Perenius, o magistrado que os condenou. Em Roma nessa época, muitas famílias
distintas e opulentas professavam o cristianismo, e por vezes encontramos
cristãos na própria família imperial.
Após um reinado de aproximadamente doze anos, o ignóbil filho de Marco
Aurélio morreu em decorrência dos efeitos de uma taça de vinho envenenado.
Pertinax, na manhã seguinte à morte de Cômodo, foi eleito pelo senado
para o trono; mas depois de um breve reinado de 86 dias, foi morto por
insurgentes. Seguiu-se uma guerra civil, e por fim Septímio Severo obteve o
poder em Roma.
O C r is t ia n is m o n o R e in a d o
(anos 194 a 210 d.C.)
de
S ev ero
Na primeira parte de seu reinado, Severo foi favorável aos cristãos. Um
escravo cristão chamado Próculo foi o instrumento para lhe restaurar a saúde,
pela unção com óleo. Essa cura notável - sem dúvida uma resposta de oração —
concedeu aos cristãos graça diante de Severo. Próculo recebeu uma posição de
R om a e seu s G o v e r n a n te s
(180 d.C. - 313 d.C.) i 2 0 5
honra na família imperial. Além disso, uma criada e um tutor cristãos foram
designados para formarem o caráter do jovem príncipe. Ele também protegeu
da indignação popular vários homens e mulheres da alta classe de Roma senadores, suas esposas e famílias - que abraçaram o cristianismo. Porém, infe­
lizmente, tais atos de generosidade para com os cristãos foram apenas resultado
de circunstâncias passageiras. As leis permaneceram as mesmas, e violentas
perseguições irromperam em determinadas províncias.
P e r se g u iç ã o so b S ev ero
(ano 202 d.C.)
A partir do décimo ano de seu reinado, a ferocidade natural da mente
obscura e implacável de Severo se voltou contra os cristãos. No ano 202 d.C.,
após seu retorno do oriente, onde obteve grandes vitórias e se exaltou com
orgulho, o imperador estendeu sua mão e impiedosamente tentou barrar o
progresso do cristianismo — a carruagem do evangelho. Promulgou uma lei
que proibia, sob graves penalidades, todos os seus súditos de se converterem ao
judaísmo ou ao cristianismo. Tal lei, como era de se esperar, incitou uma terrível
perseguição contra novos convertidos e cristãos em geral. Ela estimulou os
inimigos de Cristo a praticarem todas as formas de violência. Enormes quantias
de dinheiro foram extorquidas de cristãos tímidos por autoridades corruptas a
título de “preço pela paz”. Embora alguns tenham se submetido à extorsão para
pouparem a própria vida e liberdade, essa prática foi veementemente denunciada
por outros. Era considerada pelos mais zelosos como um aviltamento do cris­
tianismo e uma vergonhosa barganha das esperanças e glórias do martírio. No
entanto, a perseguição não parece ter sido generalizada. Ela deixou suas marcas
mais profundas no Egito e na África.
Em Alexandria, Leônidas, pai do famoso Orígenes, foi martirizado.
Jovens que recebiam educação cristã nas escolas foram submetidos a torturas e
alguns professores foram presos e queimados. O jovem Orígenes se distinguiu
nessa época devido aos seus diligentes e ousados esforços nas, agora, quase
desertas escolas. Ele ansiava seguir os passos de seu pai, e mais buscou que
evitou a coroa do martírio. E foi justamente na África - lugar no qual sempre
pensamos como sendo um deserto sombrio, miserável e pouco povoado - que a
linha prateada da maravilhosa graça de Deus se mostrou claramente na paciência
e na coragem celestiais dos santos sofredores. Iremos brindar nossos leitores com
mais alguns detalhes.
206
A H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 9
ií
*
*
A P e r se g u iç ã o
na
Á f r ic a
Os historiadores afirmam que em nenhuma parte do império romano o
cristianismo fincou raízes mais profundas e permanentes que na província da
África. Naquela época, a África estava repleta de cidades ricas e populosas. O
cristianismo africano era inteiramente diferente do que se conhecia como cris­
tianismo egípcio. O primeiro era intenso e apaixonado; o último, sonhador e
especulativo, por causa da influência maligna do platonismo. Tertuliano viveu
nesse período, e é um símbolo das diferenças as quais nos referimos. Iremos
conhecer mais sobre os mártires africanos.
P er pétu a
e
S eus C o m p a n h e ir o s
Entre várias pessoas presas e martirizadas na África durante essa
perseguição, Perpétua e seus companheiros têm um lugar diferenciado em
todos os registros. A história do martírio deles não apenas caracterizou essa
verdade circunstancial, mas abundou com os mais extraordinários toques
de afeição e amor natural. Aqui vemos a bela combinação dos mais afáveis
sentimentos com as mais fortes emoções, em que se reconhece o cristianismo
com todos os direitos, e é ainda mais profunda e afável porque foi a causa do
sacrifício deles sobre o altar da completa devoção ao Senhor, o qual morreu em
completa devoção por nós. A fé declara com propriedade: “Cristo... me amou,
e se entregou a si mesmo por mim” (Gálatas 2:20).
No ano 202 d.C., em Cartago, três jovens homens, Revocato; Saturnino
e Secundulo, e duas jovens mulheres, Perpétua e Felicidade, foram presos.
Todos eram catecúmenos, ou seja, se preparavam para o batismo e a comunhão.
Perpétua era de família nobre e rica, de educação liberal, e casada com um
homem também de origem nobre. Tinha cerca de 22 anos de idade, e era mãe
de um bebê que ainda mamava ao seio. Parece que toda a sua família era cristã,
à exceção de seu idoso pai. Nada é dito sobre seu marido. Seu pai a amava
apaixonadamente, e tinha pavor das desgraças que o sofrimento de sua filha por
Cristo traria sobre a família. Portanto, Perpétua não apenas teria de enfrentar
uma das formas mais terríveis de morte, mas teria também de lidar com os laços
naturais mais sagrados.
Quando foi trazida pela primeira vez diante de seus perseguidores, seu
idoso pai veio e lhe suplicou que se retratasse e dissesse não ser cristã. “Pai”,
respondeu calmamente, apontando para um vaso que estava no chão, “será que
R om a e seu s G o v e r n a n te s
(180 d.C. - 313 d.C.) ] 2 0 7
eu posso dizer que esse vaso é qualquer outra coisa a não ser vaso?” Seu pai
respondeu que não. “Nem eu posso lhe dizer que sou outra coisa a não ser que
sou cristã.” Poucos dias depois, os jovens foram batizados. Apesar de estarem
sob custódia, ainda não estavam confinados na prisão, o que ocorreu logo após,
quando foram jogados nos calabouços. “Então”, ela escreveu, “fui colocada à
prova, e fiquei aterrorizada, pois jamais tinha estado em tamanha escuridão.
Oh que dia horrível! O calor excessivo devido ao grande número de pessoas, o
áspero tratamento recebido dos soldados, e, por fim, a angústia por causa de meu
filho me devastaram”. Os diáconos, contudo, conseguiram comprar o direito
dos prisioneiros cristãos ficarem em um lugar melhor, separados dos criminosos
comuns. Tais vantagens podiam ser habitualmente compradas dos corruptos
supervisores das prisões. Perpétua agora estava jubilosa por ter seu filho consigo.
Ela o colocou no seio para mamar e exclamou: “Agora esta prisão se tornou um
palácio para mim!”
Após alguns dias houve um rumor de que os prisioneiros iriam ser inter­
rogados. O pai, em grande aflição, se apressou a falar com a filha. “Minha
filha, tenha misericórdia de meus cabelos brancos, tenha misericórdia de seu
pai, se ainda sou digno de ser chamado de seu pai. Se eu a eduquei até a flor
de sua juventude, se eu preferi você a todos os seus irmãos, não me exponha a
tal vergonha diante dos homens. Pense em seu bebê - se você morrer, seu filho
não vai conseguir sobreviver. Dê espaço à grandeza de seu espírito, para que
você não nos afunde a todos na ruína. Pois se você morrer assim, nenhum de
nós jamais terá coragem de falar a palavra livre novamente. Enquanto falava, ele
beijava as mãos dela, depois se jogou aos pés de sua filha, suplicando-lhe com
palavras de carinho, e chorou muito. Mas, embora profundamente comovida e
aflita com a atitude de seu pai, prova da forte e amorosa afeição por ela, Perpétua
se manteve calma e firme, e preocupava-se acima de tudo com o bem da alma
dele. “Os cabelos brancos de meu pai me fazem sofrer, quando penso que ele é o
único de minha família que não se alegraria com meu martírio”. A resposta para
seu pai foi: “O que acontecerá quando eu estiver no tribunal vai depender da
vontade de Deus; pois estaremos ali não pela nossa própria força, mas somente
pelo poder de Deus”.
Na hora decisiva - o último dia da provação deles - uma enorme
multidão estava reunida. O idoso pai novamente apareceu para tentar pela
derradeira vez fazer o melhor possível para subjugar a determinação de sua filha.
Nessa ocasião ele trouxe o neto nos braços, e se colocou diante dela. Que cena!
Que espetáculo! Seu pai, já de idade avançada, e seu filho ainda bebê - não há
nada mais a dizer sobre tal inconveniência - que apelo para uma filha e para o
coração de uma jovem mãe! O governador falou: “Tenha piedade das cãs de seu
A H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 9
pai, tenha piedade de seu desamparado filho; ofereça sacrifício em prol da pros­
peridade do imperador”. Ela ficou de pé diante do tribunal, diante da multidão
reunida, diante das admiráveis miríades do céu, diante das tenebrosas hostes do
inferno. Calma e firme. A semelhança de Abraão, pai dos que crêem, seu olhar
não se fixava em seu bebê, mas no Deus da ressurreição. Tendo confiado seu
filho aos cuidados de sua mãe e irmão, Perpétua respondeu ao governador: “Isso
eu não posso fazer”. Ele perguntou se ela era cristã. “Sim, eu sou cristã.” Seu
destino agora estava selado. Todos eles foram condenados a servirem de cruel
entretenimento para o povo e os soldados, tendo de enfrentar animais selvagens,
no dia do aniversário do filho mais novo do imperador, Geta. Eles voltaram
ao calabouço, regozijando por terem sido capazes de testemunhar e sofrer por
amor a Cristo. O carcereiro, Pudas, se converteu por causa do comportamento
tranquilo de seus prisioneiros.
Quando conduzidos ao anfiteatro, os espectadores notaram que os mártires
tinham uma aparência alegre e serena. De acordo com um costume prevalecente
em Cartago, os homens deveriam ser vestidos de escarlate como os sacerdotes
de Saturno, e as mulheres, de amarelo como as sacerdotisas de Ceres. Mas
os prisioneiros protestaram contra tal hábito. “Viemos aqui por nossa própria
vontade, e não deixaremos que nossa liberdade seja tirada de nós. Já abrimos
mão de nossas vidas para que não sejamos forçados a cometer tais abominações.”
Os pagãos reconheceram a justiça da reivindicação deles e assentiram. Após
despedirem-se com um beijo mútuo do amor cristão, na esperança de que em
breve se reencontrariam, entraram no palco da morte com seus trajes simples.
O som de louvor a Deus foi ouvido pelos presentes. Perpétua estava cantando
um salmo. Os homens foram expostos a leões, ursos e leopardos; as mulheres, a
uma vaca furiosa. Todos foram rapidamente libertados de seus sofrimentos pela
espada do gladiador, e entraram na alegria do SENHOR deles.
Essa interessante narrativa, resumida aqui, a qual se atribui à própria
Perpétua, contém tamanha verdade e realismo que conquistou o respeito e a
confiança de todas as eras. Porém, nosso maior objetivo ao registrá-la para nossos
leitores é apresentar um quadro vivo, no qual muitas das mais belas caracterís­
ticas da fé cristã estão extraordinariamente misturadas aos mais fervorosos e
ternos sentimentos cristãos. Além disso, que possamos aprender a não sermos
murmuradores, mas enfrentar todas as coisas por amor a Cristo, para que Sua
graça possa brilhar, nossa fé triunfe, e Deus seja glorificado.
Alguns anos após esse evento, Severo voltou sua atenção para a Britânia,
onde os romanos estavam perdendo terreno. O imperador, à frente de um exército
bastante poderoso, rechaçou os nativos da Caledónia, e reconquistou a porção
sul da muralha de Antonino, mas sofreu tantas baixas em sucessivas batalhas
R om a e seu s G o v e r n a n te s
(180 AC. - 313 d.C.) 1 2 0 9
que foi obrigado a fugir, pois não julgou apropriado forçar suas conquistas além
desse limite. Por fim, sentindo que o final de sua vida se aproximava, ele se
retirou para York, onde expirou no décimo oitavo ano de seu reinado, ou seja,
no ano 211 d.C..
•U
.»J.
A M u d a n ç a n a A bo rdagem
a o C r is t ia n is m o
Após a morte de Septímio Severo - exceto durante o curto governo de
Máximo -, a igreja desfrutou de um tempo de relativa paz até o reinado de Décio,
no ano 249 d.C.. Mas no decurso do favorável reinado de Alexandre Severo,
uma considerável mudança aconteceu no que se tange à relação do cristianismo
com a sociedade. Por toda a vida, Alexandre esteve sob a influência de sua mãe,
Julia Mamea, descrita por Eusébio como “uma mulher notável por sua piedade
e religião”. Ela chamou Orígenes, sobre cuja fama já ouvira falar, e aprendeu
com ele algumas doutrinas do evangelho. Mais tarde, ela se tornou favorável aos
cristãos, mas não há evidências de que tenha se tornado um deles.
Alexandre possuía uma inclinação religiosa. Estava cercado por muitos
cristãos em sua casa; e bispos eram admitidos até na corte, em cargos oficiais.
Usava com freqüência as palavras de nosso Salvador: “E como vós quereis que os
homens vos façam, da mesma maneira lhes fazei vós, também” (Lucas 6:31). Ele
mandou escrevê-las nas paredes de seu palácio e em outros prédios públicos. Para
Alexandre, no entanto, todas as religiões eram praticamente semelhantes; baseado
nesse princípio, ele deu ao cristianismo um lugar em seu sistema eclético.
As
P r im e ir a s C o n s t r u ç õ e s P ú b lic a s
pa r a A ssem bléia s C r i s t ã s
Um importante ponto na história da igreja, e um dos que comprova a
mudança na posição do cristianismo dentro do império romano agora está
diante de nós pela primeira vez. Foi no transcurso do reinado desse excelente
príncipe que edifícios públicos foram erigidos pela primeira vez para abrigar as
assembléias dos cristãos. Um pequeno detalhe relacionado a um pedaço de terra
em Roma mostra o espírito religioso do imperador e o poder e a influência
crescente dos cristãos. Um terreno, considerado de uso geral, foi selecionado por
uma congregação como lugar para templo; mas a Companhia dos Abastecedores
210
| A H
is t ó r ia d a
I g r e ja - capítulo 9
afirmou que tinha o direito de prioridade. O caso foi julgado pelo imperador.
Ele concedeu o terreno aos cristãos, sob a alegação que era melhor que servisse
para a adoração a Deus do que ser utilizado para um fim profano e indigno.
Templos públicos - as chamadas igrejas cristãs - agora começavam a
surgir em diferentes partes do império, e a possuir propriedades na terra. Os
pagãos jamais puderam entender porque os cristãos não tinham templos nem
altares. As reuniões religiosas deles, até esse ponto, aconteciam de modo privado.
Mesmo os judeus tinham sua sinagoga pública, mas não havia nenhum prédio
separado ou distinto onde os cristãos congregavam. Casas de família, catacumbas,
cemitérios recebiam suas pacíficas congregações. A privacidade deles, que nos
tempos confusos sempre significou sua segurança, agora estava deixando de
existir. Por outro lado, temos de observar que o sigilo era usado contra eles
mesmos. Vimos desde o início que os pagãos não conseguiam entender uma
religião sem templo, sendo facilmente persuadidos que tais reuniões privadas e
misteriosas, as quais ocorriam antes do nascer do sol, tinham os piores propósitos
imagináveis.
A situação exterior do cristianismo estava se modificando, e isso, de
forma radical, mas infelizmente, não rumo ao crescimento e saúde espirituais,
como logo constataremos. Havia então prédios conhecidos nos quais os cristãos
se reuniam, cujas portas poderiam ser escancaradas para toda a humanidade.
Portanto, a partir desse momento, o cristianismo passou a ser reconhecido como
uma das várias formas de adoração que o governo não proibia. Mas a tolerância
aos cristãos se apoiava somente na disposição favorável de Alexandre. Nenhuma
mudança se fez nas leis do império que beneficiassem os cristãos, e assim o
tempo de paz chegou ao fim com a morte do imperador. Uma conspiração
contra ele foi orquestrada pela vil soldadesca, que não suportou a disciplina que
ele procurou restaurar; e o vigoroso imperador foi assassinado em sua tenda, aos
29 anos de idade, no décimo terceiro ano de seu reinado.
O T ratam ento
do
C lero
pelo
Se n h o r
Mal as novas igrejas foram construídas, e mal os bispos receberam cargos
no governo, a mão do Senhor se voltou contra eles. Aconteceu da seguinte
maneira.
Maximino, um rude camponês da Trácia, se elevou ao trono imperial.
Ele havia sido o principal instigador, se não o próprio assassino do virtuoso
Alexandre. Começou seu reinado prendendo e matando todos os amigos do
último imperador. Todos os que haviam sido amigos de Alexandre foram
R om a e seu s G o v e r n a n te s
(180 d.C. - 313 d.C.) j 211
declarados inimigos de Maximino. Ordenou que os bispos, em especial os mais
íntimos daquele, fossem sentenciados à morte. Sua vingança recaiu com maior
ou menor intensidade sobre todas as classes de cristãos, mas principalmente sobre
o clero. Porém, não foi por causa do cristianismo que eles sofreram nessa ocasião,
pois Maximino era completamente indiferente a todas as religiões. Os bispos
sofreram devido à posição que haviam alcançado neste mundo. Oque pode ser
mais triste que essa constatação!
Mais ou menos nesse mesmo período, terremotos destruidores em algumas
províncias reacenderam a ira popular contra os cristãos em geral. Sob o domínio
de tal imperador, a fúria do povo foi desenfreada e, encorajado por governadores
hostis, eles queimaram as igrejas recém-construídas e perseguiram os cristãos.
Felizmente, o reinado do bárbaro teve curta duração. Ele se tornou intolerável
à humanidade. O exército se amotinou e o assassinou no terceiro ano de seu
governo. Mais uma temporada de paz para os cristãos se iniciava.
Gordiano I (ano 238 d.C.), e Filipe (anos 244 a 249 d.C.), foram
imperadores amigáveis para com a igreja. Mas descobrimos que repetidamente
um governo favorável aos cristãos era de imediato seguido por outro que os
oprimia. Isso se deu em particular nesse período. Sob os sorrisos e a condescen­
dência de Filipe, o Árabe, a igreja desfrutou de grande prosperidade exterior, no
entanto, estava às vésperas de uma perseguição mais terrível e abrangente como
nunca experimentara.
Uma das causas que contribuíram para isso foi a ausência dos cristãos nas
cerimônias nacionais em comemoração ao milésimo ano de Roma, em 247 d.C..
Os jogos seculares foram celebrados com inigualável magnificência por Filipe, e
como este era propício aos cristãos, eles escaparam da ira dos sacerdotes pagãos e
do populacho. Os seguidores de Cristo agora formavam um corpo reconhecido
pelo Estado, e, por mais cuidado que tivessem de evitar se misturar às facções
políticas ou às festividades populares, eram considerados inimigos da prosperi­
dade do mesmo e considerados como a causa de todas as calamidades naturais.
Chegamos ao ponto de uma completa mudança de governo - um governo que
atormentaria toda a igreja de Deus.
A P e r s e g u iç ã o G e r a l
so b o R e in a d o d e D é c io
Décio, no ano 249 d.C., subjugou Filipe e ocupou o trono. Seu reinado foi
marcado na história da igreja pela primeira perseguição geral. O novo imperador
era contrário ao cristianismo e devotamente zeloso pela religião pagã. Ele decidiu
jA
H i s t ó r i a d a I g r e j a - capítulo 9
tentar exterminar por completo o primeiro, e restaurar o segundo à antiga glória.
Uma de suas primeiras medidas como imperador foi publicar éditos aos gover­
nadores obrigando-os a executar as antigas leis contra os cristãos. Eles foram
ordenados, sob pena de perder a própria vida, a aniquilar todos os cristãos ou a
fazê-los retornar à religião de seus pais, por meio de torturas e sofrimentos.
Desde a época de Trajano havia uma lei imperial no sentido de que os
cristãos não deveriam ser procurados. Havia também uma lei que impedia que
acusações anônimas fossem feitas contra eles, em especial pelos seus escravos,
como vimos no caso de Apolônio, e tais leis eram observadas pelos inimigos da
igreja. Porém, nesse momento foram inteiramente negligenciadas. As autoridades
foram atrás dos cristãos, os acusadores já não corriam riscos, e o clamor popular
foi aceito ao invés das evidências formais. Nos dois anos seguintes, uma grande
multidão de cristãos em todas as províncias romanas foi banida, aprisionada,
ou torturada até a morte por diversos tipos de punições e sofrimentos. Essa
perseguição foi mais cruel e terrível que qualquer outra precedente. No entanto, a
mais dolorosa parte desse cenário era o estado enfraquecido dos próprios cristãos,
triste resultado do conforto e prosperidade mundanos.
Os
E f e it o s d o M u n d a n is m o
D e n t r o d a I g r e ja
Os estudantes da história da igreja agora se deparam com o resultado
manifesto e espantoso do mundo na igreja. E uma visão lamentável, porém, tem
de ser uma lição proveitosa para o leitor cristão. Assim era, é, e sempre será. O
Espírito Santo, que habita em nós, não é menos sensível hoje ao hálito poluído
e destruidor do mundo do que era então.
O que o inimigo não pôde fazer por meios de éditos sanguinários e
tiranos cruéis, ele realizou através da amizade com o mundo. Esse é um velho
estratagema de Satanás. A astuta serpente se mostrou mais perigosa que o
leão rugidor. Utilizando-se dos favores de grandes homens, em especial dos
imperadores, ele despiu o clero da proteção deles, os levou a se associarem com
o mundo, enganando-os com suas bajulações. Os cristãos poderiam erguer
templos, assim como os pagãos, e seus bispos foram recebidos na corte imperial
em igualdade de termos com os sacerdotes idólatras. Essa relação profana com o
mundo solapou as fundações do cristianismo deles. Isso se tornou dolorosamente
evidente quando a violenta tempestade da perseguição sucedeu a longa calmaria
da prosperidade mundana.
R om a e seu s G o v e r n a n te s
(180 d.C. - 313 d.C.) | 21
Em muitas partes do império, os cristãos haviam desfrutado de uma paz
inalterável por um período de trinta anos, o que não foi bom para a igreja como
um todo. Muitos não possuíam a fé vinda de uma ardente convicção, tal como
ocorria no primeiro e segundo séculos. Agora a fé vinha da verdade instilada na
mente pela educação crista - o que prevalece hoje em escala alarmante. Uma
perseguição surgindo com impetuosidade, depois de tantos anos de tranquili­
dade, se mostrou um processo refinador para as igrejas. A atmosfera do cristia­
nismo tornou-se corrupta. Cipriano, no oriente, e Orígenes, no ocidente, falam
sobre o espírito secular - de luxúria, de orgulho, de cobiça - que rastejou para
dentro da vida ímpia e indiferente do povo e do clero.
“Se”, diz Cipriano, bispo de Cartago, “a causa da enfermidade for compre­
endida, já está descoberta a cura da parte afetada. O Senhor provaria Seu povo;
e devido ao regime de vida divinamente prescrito ter sido perturbado por uma
longa temporada de paz, um julgamento divino foi enviado para nos restaurar
de nossa queda, e, posso dizer, da fé inativa. Nossos pecados mereciam mais,
porém, nosso gracioso Senhor dispôs as coisas de tal maneira que tudo o que
tem acontecido parece mais um julgamento que uma perseguição. Esquecendose do que os crentes fizeram nos tempos dos apóstolos, e do que eles mesmos
sempre deveriam estar fazendo, os cristãos trabalhavam com insaciável desejo
de aumentar seus bens materiais. Muitos bispos que, por preceito e exemplo,
deveriam guiar outros, negligenciaram sua chamada divina para se envolverem
na administração de interesses mundanos.” Esse era o estado de coisas na maioria
das igrejas, portanto, o que ocorreu não é de causar espanto.
O imperador ordenou uma rigorosa busca por qualquer pessoa suspeita
de se recusar a se submeter à adoração nacional. Os cristãos eram obrigados a se
sujeitarem às cerimônias da religião pagã. Em caso de desobediência, ameaças,
e depois torturas, eram empregadas para forçá-los a ceder. Se permanecessem
firmes em sua decisão, aplicava-se a pena capital, em especial para os bispos, a
quem Décio odiava de maneira implacável. Onde o terrível édito era executado,
havia um costume de se determinar um dia em que todos os cristãos do lugar
se apresentavam diante do magistrado, renunciavam sua religião, e ofereciam
incenso em altares idólatras. Muitos, antes do temível dia chegar, fugiam,
exilando-se voluntariamente. Os bens destas pessoas eram confiscados e lhes
era proibido retornar, sob pena de morte. Os que permaneceram firmes, após
repetidas torturas, foram lançados na prisão, onde sofrimentos adicionais,
como privação de água e comida, eram usados para fazê-los capitular. Os mais
fracos e menos fiéis eram libertados sem sacrificar, comprando eles mesmos, ou
permitindo que os amigos comprassem, um certificado do magistrado. Mas tal
prática indigna foi condenada pela igreja como uma renúncia tácita.
2141 A
H
is t ó r ia d a
I g r e ja - capítulo 9
Dionísio, bispo de Alexandria, descrevendo os efeitos desse terrível édito,
diz “que muitos cidadãos de renome se sujeitaram a ele. Alguns foram impelidos
pelos seus medos, e outros, forçados por seus amigos. Muitos empalideceram e
tremeram, por não estarem dispostos a se submeterem às cerimônias idólatras
e nem preparados para resistir até a morte. Outros enfrentavam as torturas até
certo ponto, mas, por fim, cediam”. Essas foram as consequências dolorosas e
vexatórias da negligência geral por causa da mescla indevida com este mundo
mal. Porém, é desconfortável para nós que vivemos em uma época de grande
liberdade civil e religiosa falar coisas duras sobre as fraquezas daqueles que
viveram em tempos tão sanguinários. Melhor é sentir a dor deles como se fosse
a nossa, e orar para que sejamos protegidos de nos rendermos às atrações deste
mundo de todas as maneiras que elas se apresentarem. Mas, glória a Deus, nem
tudo foi fracasso. Vejamos a parte brilhante.
O Po d e r
da
Fé
e da
D ev o ç ã o C r ist ã s
O mesmo Dionísio nos diz que muitos se tornaram pilares do Senhor,
os quais por meio dEle se fortaleceram, tornando-se maravilhosas testemunhas
de Sua graça. Entre estes, ele menciona o nome de um garoto de quinze anos,
Dióscuro, o qual respondia de maneira sábia a todas as questões, e mostrava
tamanha constância mesmo sob torturas que conquistou a admiração do próprio
governador, que o libertou na esperança que a maturidade o fizesse entender seu
erro. Um homem trouxe a própria mulher ao altar. Alguém segurou suas mãos,
e assim ela foi forçada a oferecer incenso. Ela exclamou: “Eu não fiz isso; foi
você!”; e por causa disso foi condenada ao exílio. Nas masmorras de Cartago,
os cristãos ficavam expostos ao calor, à fome, à sede, com o objetivo de fazê-los
obedecerem ao édito. No entanto, embora vissem a morte por inanição encaran­
do-os fixamente, continuavam imutáveis em sua confissão do nome de Cristo.
E da prisão em Roma, onde certos cristãos ficaram confinados por um ano,
foi enviada por Cipriano a nobre mensagem a seguir: “Pela graça de Deus,que
destino mais glorioso e abençoado pode ter alguém a não ser, enfrentando
torturas e o medo da própria morte, confessar Deus, o Senhor; ainda que com
o corpo dilacerado e o espírito prestes a partir, mas livre, confessar a Cristo, o
Filho de Deus; se tornar participante de sofrimentos pelo nome de Cristo? Se
ainda não derramamos nosso próprio sangue, estamos dispostos a derramá-lo.
Portanto, ore, amado Cipriano, para que o Senhor confirme e fortaleça
diariamente cada um de nós, mais e mais, com o Seu poder; e que Ele, como o
melhor dos líderes, finalmente conduza Seus soldados, a quem tem disciplinado
e provado no perigoso campo de batalha que está diante de nós, munidos com
as armas divinas que jamais podem ser superadas”.
R om a e seu s G o v e r n a n te s
(180 d.C. - 313 d.C.) | 2 1 5
Entre as vítimas dessa implacável perseguição estavam Fabiano, bispo de
Roma; Babilas, de Antioquia; e Alexandre, de Jerusalém. Orígenes, Cipriano,
Gregório, Dionísio, e outros homens eminentes sofreram cruéis torturas e foram
exilados, mas escaparam com vida. O ódio do imperador era direcionado
especialmente contra os bispos. Pela misericórdia de Deus, o reinado de Décio
durou pouco. Ele foi morto em uma batalha contra os godos, por volta do ano
251 d.C..45
O M a r t ír io de C ip r ia n o
so b o D o m ín io d e V a l e r i a n o
Como o nome de Cipriano deve ser familiar aos nossos leitores, e como é o
mais famoso relacionado ao governo e disciplina da igreja, será útil observarmos
detidamente a plácida coragem deste pai apostólico face ao martírio.
Ele nasceu em Cartago, por volta do ano 200 d.C.; mas não se converteu
até cerca de 246 d.C.. Apesar de estar na maturidade, possuía o vigor e ardor de
um jovem. Havia se distinguido como professor de retórica, e agora despontava
como um cristão zeloso e devotado. Foi logo promovido para desempenhar o
ofício de diácono e presbítero; e em 248 d.C. foi eleito bispo pelo desejo do
povo. Seus esforços foram interrompidos pela perseguição do imperador Décio;
mas sua vida foi preservada até o ano 258 d.C.. Na manhã de 13 de setembro,
um oficial e seus soldados foram enviados pelo procônsul com a ordem de trazer
Cipriano à sua presença. O ancião sabia que seu fim se aproximava. Com a
mente preparada e uma aparência alegre, ele se foi sem demora. O julgamento
foi adiado para o dia seguinte. A notícia de sua prisão agitou a cidade inteira.
Seus conhecidos ficaram a noite toda em frente ao lugar onde ele se encontrava
preso.
Pela manhã foi conduzido ao palácio do procônsul cercado por uma
enorme multidão e uma forte escolta. Após um breve atraso, o procônsul
apareceu. “Você éTácio Cipriano, o bispo de tantos homens ímpios?”, perguntou.
“Sou eu.” “O sacratíssimo imperador ordena que você lhe ofereça sacrifício.” “Eu
não oferecerei sacrifício.” “Pense bem”, respondeu o procônsul. Ao que replicou
Cipriano: “Execute suas ordens; o caso não admite qualquer reconsideração”.
O magistrado deliberou com seus conselheiros, e então proferiu a
sentença. “Tácio Cipriano, tu viveste longo tempo em tua impiedade, e reuniste
ao teu redor muitos homens envolvidos na mesma conspiração perversa. Tu te
47 Veja Neander, vol. 1; Mosheim, vol. 1; Milner, vol. 1.
216
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is t ó r ia d a
I g r e ja - capítulo 9
mostraste um inimigo tanto dos deuses quanto das leis do império; os piedosos
e sagrados imperadores têm em vão tentado chamá-los à adoração dos ancestrais.
Uma vez que tu tens sido o autor e líder dessas práticas criminosas, tu deves
ser um exemplo para os que tens enganado em tuas reuniões ilegais. Tens de
expiar teu crime com teu sangue.” Cipriano exclamou: “Deus seja louvado!”, e a
multidão de seus irmãos falou: “Deixem-nos ser martirizados com ele também”.
O bispo foi conduzido ao campo vizinho e decapitado. Alguns dias depois o
procônsul morreu. E o imperador Valeriano, no ano seguinte, foi vencido e
aprisionado pelos persas, que o trataram com grande e desprezível crueldade uma calamidade e desgraça ímpares nos anais de Roma.
A morte miserável de vários perseguidores causou uma forte impressão
na opinião pública, e convenceu muitos de que os inimigos do cristianismo
eram inimigos do céu. Por cerca de quarenta anos após essa indignidade, a paz
e prosperidade da igreja não foi interrompida de maneira alarmante; portanto,
deixaremos esses anos de lado e chegaremos até o embate final entre o paganismo
e o cristianismo.
* * i:
O E st a d o G er a l
do
C r is t ia n is m o
Antes de empreendermos um breve relato da perseguição sob Diocleciano,
será útil revisarmos a história e a condição da igreja no momento em que a
batalha final se aproximava. Mas para formarmos um juízo correto acerca do
progresso e do estado do cristianismo no final de trezentos anos, temos de
considerar o poder dos inimigos com os quais ele tinha de lutar.
1. Judaísmo. Temos visto com algumas minúcias, e em especial na vida
do apóstolo Paulo, que o judaísmo foi o primeiro grande inimigo do
cristianismo. Desde o começo o cristianismo teve de combater os fortes
preconceitos dos judeus crentes, e a amarga malignidade dos judeus
incrédulos. Em seu berço, e para onde fosse, era perseguido por esse
implacável adversário. E depois da morte dos apóstolos, a igreja sofreu
muito ao ceder à pressão dos judeus, até que, por fim, o cristianismo
foi remodelado para se encaixar no sistema do judaísmo. O vinho novo
foi colocado em odres velhos.
2. Orientalismo. No final do primeiro século e começo do segundo,
o cristianismo teve de abrir caminho entre os muitos e conflitantes
elementos da filosofia oriental. Seu primeiro conflito foi com Simão, o
mágico, como relata o capítulo 8 do livro de Atos. Apesar de samaritano
R om a e seu s G o v e r n a n te s
(180 d.C . - 313 d .C .) | 2 1 7
por nascimento, é provável que ele tenha estudado as várias religiões
do oriente em Alexandria. No retorno à sua terra natal, alardeava um
conhecimento e poder superiores; ele fascinou o povo de Samaria,
anunciando que ele próprio era alguém grande, a quem todos, desde o
menor até o maior, davam ouvidos, dizendo: “Este é a grande virtude
de Deus”. A partir dessa observação acerca de Simão, podemos deduzir
que influência tal homem tinha sobre a mente das pessoas ignorantes
e supersticiosas, e também que terrível poder satânico na vida desses
obreiros malignos a igreja primitiva teve de combater. Ele assumiu não
só o imponente título de “grande virtude de Deus”, mas se vangloriava
de ter em si mesmo outras perfeições da Divindade. Os escritores em
geral o classificam como o cabeça e líder de toda hoste de impostores
e heréticos.
Após ter sido tão pública e vergonhosamente derrotado por Pedro, diz-se que
ele deixou Samaria, e viajou por vários países, escolhendo em especial aqueles nos
quais o evangelho ainda não havia chegado. Nessa época ele introduziu o nome
de Cristo no sistema dele, e se esforçava para confundir o evangelho mesclando-o
a suas próprias blasfêmias, confundindo também a mente do povo. Como os
milagres e a mágica que realizava funcionavam, suas incríveis teorias sobre ele
mesmo ter descido do céu, sem mencionar outras revelações, se mostraram um
poderoso obstáculo ao progresso do evangelho, em especial no oriente.
Os sucessores de Simão, como Cerinto e Valentino, sistematizaram de
tal maneira as doutrinas dele que se tornaram fundadores de uma forma de
gnosticismo com a qual a igreja teve de lutar no segundo século. O nome
envolve a idéia de ambição a um conhecimento superior. Supõe-se que o apóstolo
Paulo estivesse se referindo a esse significado quando advertiu seu filho Timóteo
contra a “falsamente chamada ciência,” (1 Timóteo 6:20).
Embora tentar traçar um esboço do tão difundido orientalismo ou
gnosticismo esteja fora do propósito destas “Notas”, contudo teremos de dar
aos nossos leitores uma idéia do que isso era. Por um tempo ele se constituiu no
mais formidável oponente do cristianismo. Porém, à medida que a realidade e
as doutrinas do evangelho prevaleciam, o gnosticismo definhava.
Sob a alcunha de gnósticos podem ser incluídos todos os que nas primeiras
eras da igreja incorporaram aos seus sistemas filosóficos as mais óbvias e convenien­
tes doutrinas tanto do judaísmo quanto do cristianismo. Portanto, o gnosticismo
se tornou uma mistura de filosofia oriental, judaísmo e cristianismo. Por meio
dessa confusão satânica, a maravilhosa simplicidade do evangelho foi destruída, e
por um longo tempo, em muitos lugares seu verdadeiro caráter ficou obscurecido.
218
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I g r e ja - capítulo 9
Foi um plano articulado em secreto, um tremendo esforço do inimigo não apenas
para corromper, mas para minar e subverter o evangelho inteiro. Tão logo o
cristianismo surgiu, os gnósticos começaram a adotar em seus sistemas algumas
de suas mais sublimes doutrinas. O judaísmo estava profundamente mesclado ao
gnosticismo antes da era cristã, provavelmente desde o cativeiro.
No entanto, temos de lembrar que o gnosticismo não era uma corrupção
do cristianismo, embora os gnósticos sejam também chamados de heréticos pelos
escritores eclesiásticos. Para chegar às suas origens, devemos retornar às muitas
religiões do oriente, tais como a religião caldéia, persa, egípcia e outras. Em
nossos dias, tais filósofos poderiam ser classificados como infiéis e completamen­
te hostis ao evangelho de Cristo; porém, naquela época o título de herético era
dado a todos os que de alguma maneira introduziam o nome de Cristo em suas
crenças filosóficas. Por isso se diz que caso Maomé tivesse vivido no segundo
século, Justino, o Mártir, ou Irineu teriam se referido a ele como herético. Ao
mesmo tempo, temos de reconhecer que os princípios da filosofia grega, em
especial do platonismo, forçaram o caminho em um período bastante inicial da
história da igreja, corrompendo o puro fluxo da verdade, e ameaçando por um
momento a mudança e os efeitos que o evangelho causa na humanidade.
Orígenes, nascido em Alexandria por volta do ano 185 d.C. - berço
do gnosticismo - foi um pai apostólico que deu forma e corpo ao método
alexandrino de interpretação das Escrituras. Ele dividiu seu método em três
sentidos: o literal, o moral e o místico; correspondendo respectivamente ao
corpo, à alma e ao espírito humano. O sentido literal pode ser compreendido
por qualquer leitor atento; o moral requer uma inteligência superior; e o místico
apenas será captado pela graça do Espírito Santo, obtida mediante oração.
O maior objetivo desse eminente professor era harmonizar o cristianismo
com a filosofia. Este era o fermento da escola alexandrina. Ele procurava reunir
os fragmentos da verdade espalhados por todos os outros sistemas, e combiná-los
em um esquema cristão, a fim de apresentar o evangelho de uma maneira que
não suscitasse preconceitos, mas garantisse a conversão de judeus, gnósticos e dos
pagãos cultos. Tais princípios de interpretação e esse arranjo de cristianismo com
filosofia levaram Orígenes e seus seguidores a muitos erros graves e sérios, tanto
na prática quanto na doutrina. Ele mesmo era um cristão devoto, sério e zeloso,
e de fato amava o Senhor Jesus, mas desde aquela época até hoje, a tendência
de seus ensinos é enfraquecer a fé e o caráter da verdade, pervertendo-as intei­
ramente através da espiritualização e formulações alegóricas, que o sistema dele
ensinava e permitia.
A malignidade da matéria era o primeiro princípio de todas as seitas
dos gnósticos, e permeava os sistemas religiosos do oriente. Isso suscitou mira­
R om a e seu s G o v e r n a n te s
(180 d.C. - 313 d.C.) | 219
bolantes teorias acerca da formação e caráter do universo material, e de todas
as substâncias corpóreas. Portanto, tais pessoas acreditavam que seus corpos
eram intrinsecamente maus, recomendando abstinência e severas mortificações
corporais com o objetivo de que a mente ou espírito, os quais eram vistos como
puros e divinos, pudessem desfrutar de maior liberdade, e assim se tornarem
capazes de contemplarem as coisas divinas. Sem nos alongarmos nesse assunto o qual não apreciamos —, o leitor verá que o celibato do clero em anos posteriores,
e todo o sistema do ascetismo e monasticismo teve sua origem na filosofia
oriental, e não nas Escrituras.46
Paganismo. A igreja não apenas teve de enfrentar o judaísmo e orientalismo,
mas também sofreu com a hostilidade do paganismo. Estes eram três formidáveis
poderes de satanás com os quais investiu violentamente contra a igreja durante os
três primeiros séculos da história dela. Na execução da alta comissão do Senhor
—“Fazei discípulos de todas as nações... “Pregai o evangelho a toda criatura” -,
a igreja tinha tais inimigos para combater e subjugar. Porém, isso não deveria ter
sido um obstáculo se a igreja andasse em separação do mundo e permanecesse
fiel e leal ao seu Salvador celestial e exaltado. Mas, que terrível infelicidade, o
que o paganismo, o judaísmo e o orientalismo não puderam fazer, a fascinação
deste mundo realizou. E tal quadro nos leva a um exame da condição da igreja
quando a grande perseguição irrompeu.
*
U m Ex a m e
*
-k
C o n d iç ã o
(ano 303 d.C.)
na
da
I g r e ja
Diocleciano subiu ao trono em 284 d.C.. No ano 286 d.C., ele associou-se
a Maximiano, como Augusto, e em 292 d.C., Galério e Constâncio foram acres­
centados ao rol de príncipes com o título inferior de César. Portanto, no início
do quarto século, o império romano possuía quatro soberanos. Dois levavam
o título de Augusto; dois, o de César. Diocleciano, embora supersticioso, não
nutria nenhum ódio contra os cristãos. Constâncio, pai de Constantino, o
Grande, era amigável para com eles. Inicialmente, tudo parecia toleravelmente
brilhante e feliz, mas os sacerdotes pagãos estavam furiosos, e conspirando contra
os cristãos. Eles anteviam a própria ruína nos triunfos largamente difundidos
do cristianismo. Por cinquenta anos completos, a igreja tinha sido muito pouco
46 Para mais detalhes sobre as diferentes seitas veja Dicionário das Igrejas Cristãs e Seitas, de Marsden.
Robertson, volume 1; Neander, volume 2; Milman, volume 2; Mosheim, volume 1.
220 I A H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 9
perturbada pelos poderes seculares. Durante esse período, os cristãos haviam
alcançado um nível de prosperidade sem paralelo; mas apenas exterior: eles
despencaram da pureza e da simplicidade do evangelho de Cristo.
Ano 303 d.C. Igrejas surgiram na maioria das cidades do império, e
algumas exibiam esplendorosa arquitetura. Vestimentas e utensílios sagrados
de prata e ouro começaram a serem usados. Prosélitos se convertiam de todas
as classes da sociedade; até mesmo a esposa do imperador, e sua filha Valéria,
casada com Galério, ao que parece estavam nesse rol. Cristãos ocupavam altos
cargos no Estado, e no palácio imperial. Eles ocupavam posições importantes, e
até de autoridade suprema, nas províncias e no exército. Infelizmente, esse longo
período de prosperidade exterior produziu as costumeiras consequências. A fé
e o amor esfriaram; o orgulho e a ambição entraram. A dominação sacerdotal
exercia seus poderes usurpados, e os bispos passaram a assumir a linguagem e a
autoridade de representantes de Deus. Invejas e dissensões abalaram as pacíficas
comunidades, e às vezes as disputas se transformavam em violência aberta.
Cinquenta anos de paz corromperam toda a atmosfera cristã: o relâmpago da
ira de Diocleciano foi permitido por Deus para refiná-la e purificá-la.
Essa é a melancólica confissão dos próprios cristãos, os quais, de acordo
com o espírito dos tempos, analisavam os perigos e as aflições aos quais estavam
expostos sob a luz dos julgamentos divinos.47
Os
e
A tos
o F in a l
do
de
D
io c l e c ia n o
P e r í o d o d e E s m ir n a
Nesse ponto a igreja já havia passado por nove perseguições sistemáticas.
A primeira foi no reinado de Nero, depois de Trajano, de Marco Aurélio, de
Severo, de Maximino, de Décio, Valeriano, Aureliano. E agora chegara o terrível
momento quando enfrentaria a décima perseguição, de acordo com a palavra
profética do Senhor: “E tereis uma tribulação de dez dias” (Apocalipse 2:10).
É notável que não apenas tenha havido precisamente dez perseguições governa­
mentais, mas que esta última tenha se estendido por exatos dez anos. E, como
vimos, na primeira parte do período referente à igreja em Esmirna, dez anos
se passaram desde o início da perseguição, sob Aurélio no oriente, até seu fim
no ocidente. Embora nós certamente acreditemos que estão prenunciadas na
Epístola a Esmirna, apenas sugerimos tais semelhanças, ao invés de impô-las. O
estudante cristão pode observar outras por si mesmo.
47 Milman, volume 2.
R om a e seu s G o v e r n a n te s
(180 d.C. - 313 d.C.) j 221
O reinado de Diocleciano é de grande importância histórica. Primeiro
porque se distinguiu pela introdução de um novo sistema de governo imperial.
Ele virtualmente removeu a capital da antiga Roma para a Nicomédia, onde
estabeleceu sua residência. Ali mantinha uma corte de esplendor oriental, para a
qual convidava filósofos e eruditos. Porém, por nutrirem extremo ódio contra o
cristianismo, os filósofos que frequentavam o palácio usavam de sua influência
junto ao imperador para exterminar uma religião tão pura que não se enquadrava
na mente corrompida deles. Isso levou à última e maior perseguição contra os
cristãos. E é esta última que nos interessa. Como todas as histórias desse período
são coletadas principalmente dos escritos de Eusébio e Lactâncio, que testemunhou
muitas execuções, não temos muito mais a fazer senão selecionar e transcrever o
que já está registrado, consultando os vários autores também já mencionados.
Não tendo êxito em seus artifícios com Diocleciano para convencê-lo a
fazer guerra contra os cristãos, os sacerdotes pagãos e os filósofos usaram outro
imperador, Galério, seu genro, para atingirem seu objetivo. Esse homem cruel,
impelido em parte por sua própria inclinação; em parte por sua mãe, uma pagã
bastante supersticiosa; e em parte pelos sacerdotes, não deu trégua ao seu sogro
enquanto não conseguiu o que desejava.
Durante o inverno de 302-303 d.C., Galério visitou Diocleciano na
Nicomédia. Seu principal alvo era incitar o imperador contra os cristãos.
Diocleciano se opôs por um tempo à importunação dele. Ele era avesso, inde­
pendente dos motivos, às medidas sanguinárias propostas por seu parceiro.
Mas a mãe de Galério, o implacável inimigo dos cristãos, usava de toda a sua
influência sobre o filho para estimulá-lo a tomar providências ativas e imediatas.
Por fim, Diocleciano cedeu, e concordou com a perseguição, mas a vida dos
cristãos deveria ser poupada. Antes disso, Galério tomou o cuidado de retirar
do exército todos os que se recusavam a sacrificar aos deuses. Alguns foram
demitidos; outros condenados à morte.
O P r im e ir o É d i t o
Em 24 de fevereiro, o primeiro édito foi publicado. Ele ordenava que
todos os que se recusassem a oferecer sacrifícios deveriam perder seus cargos,
bens, posição social e privilégios civis. Além disso, determinava que escravos
que insistissem em professar o evangelho deveriam ser excluídos de qualquer
esperança de liberdade; cristãos de todos os níveis deveriam ser destruídos,
as reuniões religiosas tinham de ser canceladas, e as Escrituras, queimadas.
A tentativa de exterminar as Escrituras foi um aspecto novo nessa perseguição
222
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is t ó r ia d a
I g r e ja - capítulo 9
e, sem dúvida, sugerido pelos filósofos que frequentavam a corte. Estavam
conscientes que seus próprios escritos não teriam repercussão na opinião pública
se as Escrituras e outros livros sagrados estivessem em circulação. Tão logo o
édito foi publicado, a igreja de Nicomédia foi atacada. Os livros sagrados foram
queimados, e os prédios demolidos em questão de horas. Por todo o império, as
igrejas cristãs deveriam ser derrubadas até ao pó, e os livros sagrados entregues
aos oficiais do governo. Muitos cristãos que se recusaram a entregar as Escrituras
foram sentenciados à morte; os que as deram para serem queimadas foram con­
siderados pela igreja traidores de Cristo, e mais tarde houve grande problemas
no exercício da disciplina para com tais pessoas.48
Assim que o cruel édito foi afixado no local costumeiro, um cristão de
nobre posição o rasgou. Sua indignação com tamanha injustiça o instigou a
um ato de zelo impensado - a uma violação da regra do evangelho que ensina
o respeito às autoridades. Essa foi a ocasião adequada para sentenciar cristãos
de alta posição à morte. Ele foi queimado vivo em fogo baixo, e suportou os
sofrimentos com tanta dignidade que surpreendeu e humilhou seus carrascos.
A perseguição começava novamente. O primeiro passo contra os cristãos fora
dado, e o segundo não demoraria.
Pouco depois da publicação do édito ocorreu um incêndio no palácio da
Nicomédia, que quase chegou à câmara do imperador. Não se sabia a causa do
fogo, mas, é obvio, a culpa recaiu sobre os cristãos. Diocleciano acreditou nisso.
Ele ficou alarmado e instigado. Multidões foram jogadas na prisão, sem qualquer
discriminação dos que eram ou não responsáveis pelas acusações; as mais terríveis
torturas foram empregadas com o propósito de extrair uma confissão; tudo em
vão. Muitos morreram decapitados, afogados ou queimados. Cerca de catorze dias
depois, houve um segundo incêndio no palácio. Agora se tornava patente que isso
era obra de um incendiário. Os pagãos de novo acusaram os cristãos, e clamaram
por vingança, mas como não foi encontrada nenhuma prova de que os cristãos
tivessem qualquer coisa relacionada a esses incêndios fatais, uma forte e, cremos,
real suspeita recaiu sobre o próprio imperador Galério. Sua maior prioridade desde
o início era incriminar os cristãos, e causar inquietação em Diocleciano usando
medidas mais violentas. Estando plenamente consciente da consequência de tais
fatos na obscura, tímida e supersticiosa mente do velho imperador, imediatamente
deixou a Nicomédia, alegando que não se considerava seguro na cidade.
48 Pode ser de interesse do leitor saber que nenhum dos manuscritos do Novo Testamento
existentes datam de antes da metade do quarto século. Um fato que conta muito para isso
foi a destruição dos escritos cristãos, e em particular as Escrituras, no início do reinado de
Diocleciano. Quando Constantino assumiu o trono, é sabido que esforços especiais foram em­
preendidos no sentido de se fazerem cópias fidedignas, das quais o famoso crítico Tischendorf
acredita que os manuscritos do Sinai sejam uma.
R om a e seu s G o v e r n a n te s
(180 d.C. - 313 d.C.) | 223
O objetivo foi atingido de tal maneira que nem Galério nem sua mãe pagã
poderiam imaginar. Diocleciano, agora totalmente incitado, avançou ferozmente
contra toda a classe de homens e mulheres que levava o nome de cristãos. Ele
obrigou sua esposa Prisca e sua filha Valéria a oferecerem sacrifícios. Oficiais
de sua corte, da mais alta posição e nobreza, e todos os ocupantes do palácio,
foram expostos a brutais torturas pelas ordens, e às vezes até na presença, do
próprio Diocleciano. Os nomes de alguns de seus ministros de estado, os quais
preferiram as riquezas de Cristo à grandeza de seu palácio, foram divulgados.
Um de seus camareiros foi trazido diante dele para ser torturado com severidade
por se recusar a oferecer sacrifício. A fim de torná-lo um exemplo para outros,
uma mistura de sal e vinagre foi despejada sobre suas feridas abertas. Mas tudo
em vão. Ele confessou sua fé em Cristo como único Salvador, e não reconhecia
nenhum outro Deus. Então foi queimado até a morte. Doroteus, Gorgônio e
Andrea, eunucos que serviam no palácio, receberam a sentença capital. Antimo,
bispo de Nicomédia, morreu decapitado. Muitos foram executados; muitos foram
queimados vivos, mas se tornou tedioso queimar indivíduos, por isso, grandes
fogueiras eram acesas para matar grupos de cristãos; outros eram levados para o
meio de um lago, e então jogados na água com pedras amarradas no pescoço.
Da Nicomédia, centro da perseguição, saíram ordens imperiais, exigindo
a cooperação dos outros imperadores na restauração da dignidade da antiga
religião, e na supressão total do cristianismo. A perseguição se espalhou pelo
mundo romano, exceto na Gália. Ali reinava o moderado Constâncio e, apesar
de ter feito demonstrações de colaboração com seus parceiros, demolindo
templos, ele se absteve de toda a violência contra a pessoa dos cristãos. Embora
não fosse um cristão resoluto, tinha uma natureza humanitária, e evidente­
mente era um simpatizante do cristianismo e dos que professavam aquela fé.
Ele presidia a Gália, a Britânia e a Espanha. Porém o selvagem temperamento
de Maximiano, e a brutal crueldade de Galério somente aguardavam um sinal
para executar as ordens vindas da Nicomédia. E agora três monstros rugiam, na
plena força do poder civil contra os indefesos e inofensivos seguidores do manso
e humilde Jesus, o Príncipe da Paz.
O S e g u n d o É d it o
Pouco tempo após o primeiro édito ter sido colocado em prática em
todo império, chegaram aos ouvidos do imperador rumores de insurreições na
Armênia e Síria, regiões densamente povoadas por cristãos. Essas agitações foram
falsamente atribuídas aos cristãos, e serviram de pretexto para um segundo édito.
Foi notificado que os clérigos, como líderes dos cristãos, eram particularmente
224 I A H
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suspeitos e este édito ordenou que todos os que ocupavam posições eclesiásticas
deveriam ser capturados e lançados na prisão. Portanto, em um breve espaço de
tempo, as prisões ficaram cheias com bispos, presbíteros e diáconos.
O T e r c e ir o É d it o
Um terceiro édito foi imediatamente publicado proibindo a libertação
de qualquer clérigo, a menos que tal pessoa consentisse em oferecer sacrifício.
Eles foram rotulados de inimigos do Estado; e onde houvesse uma autoridade
hostil que decidisse exercer seu poder, os líderes eram amontoados em prisões
feitas para os mais desprezíveis criminosos. O édito estabelecia que os prisio­
neiros dispostos a oferecer sacrifícios aos deuses deveriam ser libertados, e o
resto tinha de ser forçado a tal por meio de torturas e punições. Multidões de
cristãos piedosos, devotos e respeitáveis morreram ou foram enviados às minas.
O imperador em vão pensou que se os bispos e mestres fossem derrotados, as
igrejas logo seguiriam o exemplo deles. Porém, ao descobrir que suas medidas
resultaram no mais humilhante fracasso, tangido pela influência conjunta de
Galério, dos filósofos e dos sacerdotes pagãos, Diocleciano publicou outro édito
ainda mais rigoroso.
O Q u a r t o É d it o
Por meio do quarto édito, as ordens antes aplicadas unicamente ao clero
se estenderam a todos os cristãos. Os magistrados foram instruídos a fazer livre
uso da tortura para forçar todos os cristãos - homens, mulheres e crianças —à
adoração aos deuses. Diocleciano e seus comparsas estavam engajados em uma
disputa desesperada e desigual. Os poderes das trevas - o império romano
inteiro - posicionado, armado, determinado, comprometido a defender o
antigo politeísmo e a exterminar por completo o cristianismo. Retroceder
seria reconhecimento de fraqueza; para ser bem-sucedido, o adversário teria
de ser aniquilado; mas não podia haver vitória, pois os cristãos não ofereciam
resistência. Historicamente, foi o último e terrível embate entre paganismo e
cristianismo. Agora a batalha chegava ao ápice, e delineava-se uma crise.
Uma proclamação foi feita nas ruas da cidade para que homens, mulheres
e crianças fossem consertar os templos dos deuses. Todos tinham de se submeter
à ardente provação: sacrificar ou morrer. Cada indivíduo era convocado pelo
nome através de listas previamente elaboradas. Todos eram meticulosamente
revistados nos portões da cidade, e os que fossem encontrados, como cristãos
eram presos de imediato.
R om a e seu s G o v e r n a n te s
(180 d.C. - 313 d.C.) j 22
Os detalhes dos sofrimentos e dos martírios encheriam vários volumes.
Como um édito seguiu-se ao outro, em rápida sucessão e furiosa severidade,
o espírito do martírio reviveu, e se fortaleceu mais e mais, até que homens e
mulheres, ao invés de serem presos e arrastados às piras, lançavam-se nas chamas
ardentes, como se subissem ao céu em uma carruagem de fogo. Famílias inteiras
eram submetidas a vários tipos de morte: uns pelo fogo, outros pela água, após
enfrentarem cruéis torturas; havia os que morriam de fome; alguns, crucificados;
outros eram pendurados de cabeça para baixo e ficavam aguardando uma morte
demorada. Em certos lugares, dez, vinte, sessenta e até cem homens e mulheres,
com seus pequeninos, eram atormentados e martirizados em um único dia49.
Em quase todas as partes do mundo romano, tais cenas de impiedosa
barbaridade continuaram com maior ou menor severidade durante um período
de dez anos. De todos os imperadores, apenas Constâncio planejou meios de
proteger os cristãos no ocidente, especialmente na Gália, onde residia. Porém,
em todas as outras partes eram expostos a diversos tipos de crueldade e injúrias
sem a liberdade para apelar às autoridades, e sem a menor proteção do Estado.
Permissão absoluta foi dada ao populacho para praticarem quaisquer excessos
contra os cristãos. Sob tais circunstâncias, o leitor pode imaginar ao que eles
estavam constantemente expostos, o que incluía suas vidas e seus bens. Os ímpios
se sentiam seguros de jamais serem chamados para prestar contas sobre qualquer
violência que praticassem contra os cristãos. Mas os sofrimentos dos homens,
embora grandes, pareciam pequenos quando comparados aos das mulheres. O
medo da exposição e da violência era mais apavorante que a própria morte.
Vejamos um exemplo. “Certa mulher santa e piedosa”, diz Eusébio,
“admirável por sua virtude, e ilustre em toda a Antioquia por sua riqueza,
família e pela reputação de ter educado suas duas filhas - na flor da idade e
notáveis pela beleza - nos princípios da piedade. O esconderijo onde estavam
foi descoberto, e elas caíram na armadilha dos soldados. A mãe, sabendo que
não tinham escapatória e conhecendo o que as aguardava, sugeriu que seria
melhor morrerem, entregando-se nas mãos de Cristo, que caírem nas garras dos
soldados brutais. Após isso, as três unânimes no mesmo objetivo, e tendo pedido
um pouco de tempo aos soldados, se lançaram nas águas caudalosas de um rio
para escaparem de malignidade maior.” Embora tal ato não possa ser totalmente
justificado, deve ser julgado com bastante consideração. Elas estavam em total
desespero. E temos a certeza de que o Senhor sabe como perdoar tudo o que
está de errado em nossas ações, e nos dar crédito por tudo o que está correto
em nossa motivação.
49 Para nomes e particularidades de muitos desses sofredores, consulte Milner, volume 1.
226 I A H
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I g r e ja - capítulo 9
Por um momento, os perseguidores imaginaram que triunfariam sobre a
derrocada do cristianismo. Pilares foram erigidos, e medalhas foram cunhadas,
em honra a Diocleciano e Galério, por terem eliminado a superstição cristã,
e por restaurarem a adoração aos deuses. Mas Aquele que se assenta nos céus
estava governando sobre a própria ira desses homens para a completa libertação e
triunfo de Seu povo, e a derrota notória de seus inimigos. Eles podiam martirizar
os cristãos, demolir igrejas, queimar livros; mas as fontes vivas do cristianismo
estavam além do alcance de qualquer mortal.
A M ão J u l g a d o r a d o S e n h o r
Profundas e importantes mudanças começaram a acontecer na soberania
do império. Mas o Cabeça da igreja estava a par de tudo. Ele havia limitado e
definido o período de sofrimento do Seu povo, e nem as hostes do inferno nem
as legiões de Roma poderiam estendê-lo por uma hora sequer. Os inimigos dos
cristãos foram golpeados com terríveis calamidades. Parecia que Deus estava
requerendo o sangue derramado. Galério, o verdadeiro autor da perseguição,
no 18? ano de seu reinado e no 8? ano da perseguição, caiu vítima de uma
enfermidade repugnante. Como Herodes Agripa e Filipe II da Espanha, ele foi
“comido de bichos” (Atos 12:23). Médicos foram consultados, oráculos foram
consultados, mas em vão. Os remédios aplicados apenas agravavam a força da
doença. O palácio inteiro ficou tão contagiado com a natureza de sua aflição que
todos os seus amigos o abandonaram. Os tormentos pelos quais Galério passou
o forçaram a clamar por misericórdia, e a pedir aos cristãos que intercedessem
ao Deus deles em favor do imperador agonizante.
De seu leito de morte, ele publicou um édito no qual condescendia em
se desculpar pelas severidades contra os cristãos, sob o pretexto ilusório do
bem-estar público e da unidade do Estado. Além disso, admitiu, por completo,
o fracasso de tais violentas medidas na supressão do cristianismo; e determinou
o livre e público exercício da religião cristã. Pouco dias após a promulgação do
édito, Galério morreu. Por cerca de seis meses, as misericordiosas determina­
ções do édito surtiram efeito, e multidões foram libertadas das prisões e minas;
mas, infelizmente, traziam no corpo as marcas de torturas e restava-lhes apenas
a morte. Essa breve interrupção mostrou o assombroso caráter e a alarmante
abrangência da perseguição.
Maximino, sucessor de Galério no governo da Ásia, tentou alçar a
religião pagã ao seu esplendor original, e suprimir o cristianismo com renovada
e implacável crueldade. Ele ordenou que todos os oficiais do império, tanto
R o m a e seu s G o v e r n a n te s
(180 d.C. - 313 d.C.)
militares quanto civis, da posição mais alta à mais baixa, todos os homens e
mulheres livres, todos os escravos e até mesmo as crianças sacrificassem e parti­
cipassem do que seria oferecido nos altares pagãos. Todos os vegetais e alimentos
vendidos nos mercados tinham de ser borrifados com água ou vinho usados nos
sacrifícios. Isso objetivava forçar os cristãos a entrar em contato com as oferendas
idólatras.
Novas torturas foram inventadas, e mais uma vez rios de sangue cristão
fluíram nas províncias do império romano, com exceção da Gália. Mas a
mão do Senhor iria novamente pesar tanto sobre o império quanto sobre o
imperador. Prevaleceu todo tipo de calamidade. Opressão, guerra, pestilência,
fome devastaram as províncias asiáticas. Do começo ao fim dos domínios de
Maximino, a fome devastou o Oriente, muitas famílias ricas foram reduzidas
à mendicância, e outros venderam os próprios filhos como escravos. A fome
introduziu sua companheira de sempre: a pestilência. Pústulas surgiam no corpo
inteiro dos que contraíam certa enfermidade, especialmente ao redor dos olhos.
Multidões tornaram-se irremediavelmente cegas. O povo ficou desanimado, e os
que tinham condições fugiam das casas infectadas. Incontáveis doentes foram
deixados para morrer no mais completo abandono. Os cristãos, movidos pelo
amor de Deus em seus corações, se apresentaram para prestar serviços humani­
tários e de misericórdia. Os ímpios concluíram que as calamidades decorriam
de vingança celestial pela perseguição ao povo de Deus.
Maximino ficou alarmado e tentou, ainda que tardiamente, retroceder
em suas decisões. Publicou um édito, reconhecendo os princípios da tolerância,
e ordenando a suspensão de todas as medidas violentas contra os cristãos; reco­
mendando apenas que se utilizassem recursos brandos e persuasivos para trazer
de volta esses apóstatas à religião de seus antepassados. Tendo sido derrotado na
batalha por Licínio, direcionou sua ira contra os sacerdotes pagãos. Ele os acusou
de o terem enganado com falsas esperanças de vitória sobre Licínio e a conquista
do império universal do oriente, e agora Maximino descontava sua frustração
por meio de um massacre indistinto de todos os sacerdotes pagãos sob seu
domínio. Seu último ato imperial foi a promulgação de outro édito ainda mais
favorável aos cristãos, no qual declarava a irrestrita liberdade de consciência, e
devolvia os bens confiscados às igrejas. Mas a morte chegou e pôs fim à tenebrosa
lista de seus crimes, e ao rol dos imperadores opressores, os quais morreram de
tormentos excruciantes, debaixo da visível mão do julgamento divino. Muitos
nomes de grande celebridade tanto pela posição quanto pelo caráter estão entre
os mártires desse período, além dos milhares desconhecidos e não apreciados
neste mundo, mas cuja história está registrada no céu, e cujos nomes estão no
Livro da vida do Cordeiro.
227
228 I A H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 9
Assim se encerrou o mais memorável de todos os ataques dos poderes das
trevas sobre a igreja crista; e assim pereceu a última esperança do paganismo de
manter-se pela autoridade dos governantes. O relato da mais violenta, variada,
prolongada e sistemática tentativa de exterminar o evangelho jamais vista
mereceu o espaço que lhe concedemos, portanto, nao iremos nos desculpar pela
extensão dele. Vimos o braço do Senhor estendido de maneira graciosa, porém
solene para castigar e purificar Sua igreja, para demonstrar a inextinguível
verdade do cristianismo, e para cobrir de vergonha e confusão duradouras seus
arrogantes e impotentes inimigos. Como Moisés, podemos exclamar: “Olhou, e
eis que a sarça ardia no fogo, e a sarça não se consumia. E Moisés disse: Agora
me virarei para lá, e verei esta grande visão, porque a sarça não se queima. E
vendo o SENHOR que se virava para ver, bradou Deus a ele do meio da sarça”
(Êxodo 3:3-4). Vemos a razão da sarça não ser consumida, à semelhança de
Israel no Egito, ou a igreja neste mundo não ser exterminada: Deus estava no
meio da sarça e Ele está em Sua igreja - habitação de Deus por meio do Espírito.
Também Cristo disse expressamente, referindo-Se a Si mesmo em poder e glória:
“Sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevale­
cerão contra ela” (Mateus 16:18).
C o n s t a n t in o
O
reinado de Constantino I, o Grande, marca o mais importante período
da história da igreja. Tanto seu pai, Constâncio, como sua mãe,
Helena, tinham uma inclinação religiosa, sempre favorável aos
cristãos. Alguns anos da juventude de Constantino foram passados na corte
de Diocleciano e Galério na condição de refém. Ele testemunhou a publicação
do édito perseguidor em Nicomédia, no ano 303 d.C., e os horrores que se
seguiram. Tendo conseguido permissão para partir, juntou-se ao seu pai na
Britânia. No ano 306 d.C., Constâncio morreu em York. Ele havia nomeado
seu filho Constantino como sucessor, que, consequentemente, foi saudado como
Augusto pelo exército. Constantino seguiu e estendeu a tolerância que o pai
havia conferido aos cristãos.
Havia agora seis aspirantes à soberania do império - Galério, Licínio,
Maximiano, Maxêncio, Maximino e Constantino. Configurou-se um cenário
de disputas sem paralelo nos anais de Roma. Entre seus rivais, Constantino
possuía evidente superioridade no tocante à prudência e às habilidades, tanto
militares quanto políticas. No ano 312 d.C., Constantino entrou em Roma
vitorioso. Em 313 d.C., um novo édito foi publicado, anulando os éditos san­
guinários de Diocleciano. Os cristãos foram encorajados; seus líderes, honrados,
e os mestres do cristianismo galgaram posições de confiança e influência no
governo. Essa grande mudança na história da igreja nos introduz a outro
período.
230 I A H i s t ó r i a
d a I g r e ja -
capítulo 10
O P e r ío d o d e P é r g a m o
(anos 313-606 d.C.)
Cremos que a epístola à igreja em Pérgamo descreve com exatidão o estado
das coisas no tempo de Constantino. Para a conveniência de nossos leitores,
citaremos a passagem inteira e depois faremos uma comparação. “E ao anjo
da igreja que está em Pérgamo escreve: Isto diz aquele que tem a espada aguda
de dois fios: Conheço as tuas obras, e onde habitas, que é onde está o trono
de Satanás; e reténs o meu nome, e não negaste a minha fé, ainda nos dias de
Antipas, minha fiel testemunha, o qual foi morto entre vós, onde Satanás habita.
Mas algumas poucas coisas tenho contra ti, porque tens lá os que seguem a
doutrina de Balaão, o qual ensinava Balaque a lançar tropeços diante dos filhos
de Israel, para que comessem dos sacrifícios da idolatria, e se prostituíssem.
Assim tens também os que seguem a doutrina dos nicolaítas, o que eu odeio.
Arrepende-te, pois, quando não em breve virei a ti, e contra eles batalharei com a
espada da minha boca. Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas:
Ao que vencer darei a comer do maná escondido, e dar-lhe-ei uma pedra branca,
e na pedra um novo nome escrito, o qual ninguém conhece senão aquele que o
recebe” (Apocalipse 2:12-17).
Em Efeso vemos o primeiro passo dessa apostasia, quando deixaram
o “primeiro amor” —o coração se desviou de Cristo, e da alegria que há em
Seu amor. Em Esmirna, o Senhor permitiu que os santos fossem lançados na
fornalha, e o progresso do declínio estacionasse. Eles sofreram perseguição por
parte dos ímpios, e por meio dessas provações o cristianismo reviveu, o ouro foi
purificado, e os santos defenderam com firmeza o nome de Cristo e a fé Nele.
Assim Satanás foi derrotado; e o Senhor mostrou tamanho domínio que os
imperadores, um após o outro, nas mais humilhantes e aflitivas circunstâncias,
confessaram publicamente os próprios fracassos. Mas em Pérgamo o inimigo
mudou suas táticas. Em vez de perseguição exterior, havia uma sedução vinda
de dentro. No reinado de Diocleciano, o diabo assumiu a forma de leão que
ruge; já no de Constantino, a da serpente enganadora. Pérgamo é o cenário
do poder adulador de Satanás; e ele estava dentro da igreja. O nicolaísmo é a
corrupção da graça, ou seja, a carne atuando na igreja de Deus. Em Esmirna,
ele estava do lado de fora como adversário; em Pérgamo, está dentro como um
sedutor. E foi exatamente o que aconteceu sob Constantino.
Historicamente, isso ocorreu quando a violência da perseguição se
exauriu; quando os homens se cansaram da própria fúria; quando perceberam
que seus esforços não surtiam efeito, pois os sofredores não pareciam ligar
O P e r ío d o
de
P é r g a m o (313 d.C . - 6 0 6 d .C .) j
para as coisas deste mundo, e se tornavam mais devotados ao cristianismo.
Enquanto o número de cristãos parecia aumentar; Satanás tentou outro antigo
artifício, que certa vez funcionou perfeitamente contra Israel (Números 25).
Quando não obteve permissão do Senhor para amaldiçoar o povo de Israel,
para a própria ruína deles, o diabo os seduziu a fazer alianças proibidas com as
filhas de Moabe. Como um falso profeta ele estava agora na igreja em Pérgamo,
seduzindo os santos a fazerem uma aliança ilícita com o mundo - lugar do trono
e da autoridade satânicos. O mundo parou de persegui-los; grandes vantagens
foram concedidas aos cristãos por meio do estabelecimento civil do cristianismo;
Constantino declarou ser um convertido, e atribuiu seus triunfos às virtudes da
cruz. Infelizmente, a serpente foi bem-sucedida; a igreja ficou fascinada com
o patrocínio que ela oferecia, apertou as mãos do mundo e caiu “onde está
o trono de Satanás” (Apocalipse 2:13). Agora tudo estava perdido no que se
referia ao testemunho da igreja, e o caminho para o papado se escancarava.
Sem dúvida, todas as vantagens mundanas foram conquistadas, infelizmente ao
custo da honra e glória do Senhor e Salvador da igreja.
Temos de nos lembrar que a igreja é um grupo chamado para fora - pessoas
chamadas dos gentios e dos judeus para testemunharem de que não pertencem
mais a este mundo, mas ao céu (Atos 15:14) —e unido ao Cristo glorificado, o
qual não é deste mundo, assim como os Seus também não são deste mundo.
O próprio Cristo afirmou: “Não são do mundo, como eu do mundo não sou.
Santifica-os na tua verdade; a tua palavra é a verdade. Assim como tu me
enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo” (João 17:16-18).
A missão cristã baseia-se no mesmo princípio e caráter de Cristo. “Assim
como o Pai me enviou, também eu vos envio a vós” (João 20:21). Eles foram
enviados do céu para este mundo pelo maravilhoso Senhor para fazer Sua
vontade, testemunhar de Sua glória e voltar para casa quando o trabalho estiver
terminado. Portanto, o cristão deveria ser uma testemunha celestial da verdade
de Deus, em especial daquelas que se referem à total ruína do homem e do
amor de Deus em Cristo por um mundo decadente; retirando assim as almas
do mundo, para que elas sejam salvas da ira que virá. Mas quando perdemos de
vista nosso alto chamado e nos associamos ao mundo como se fôssemos parte
dele, nos tornamos falsas testemunhas; causamos um grande dano ao mundo, e
uma grande desonra a Cristo. Mais tarde veremos que foi isso o que a Igreja fez
quanto à sua posição e atitude corporativas. Sem dúvida, houve muitos exemplos
de fidelidade em. meio ao declínio geral. O próprio Senhor mencionou Seu fiel
servo Antipas, que foi martirizado. O céu observa atentamente a fidelidade
individual, e chama os fiéis pelo nome.
231
A H is t ó r i a
da
I g r e ja
- capítulo 10
Mas os olhos e o coração do Senhor têm acompanhado Sua pobre Igreja
infiel até o lugar onde ela caiu. “Conheço as tuas obras, e onde habitas, que é
onde está o trono de Satanás” (Apocalipse 2:13). Que palavras solenes essas,
ainda mais pronunciadas pelos próprios lábios de um Senhor desonrado pela
Igreja! Nada está escondido de Seus olhos. “Eu conheço”, Ele afirmou, “e vejo
o que tem acontecido”. Por que a Igreja, como conjunto, aceitou os termos
do imperador, unindo-se ao Estado, passando assim a fixar sua habitação no
mundo? Espiritualmente isso era Babilônia, ou seja, a fornicação com os reis
desta terra. Mas Aquele que anda no meio dos castiçais de ouro julga as ações
e a condição dela. “E ao anjo da Igreja que está em Pérgamo escreve: Isto diz
aquele que tem a espada aguda de dois gumes.” Ele assume a posição de quem
está armado com a espada divina - o penetrante e incisivo poder da palavra de
Deus. A espada é o símbolo do poder pelo qual as questões são estabelecidas:
seja a espada carnal das nações, ou a “espada do Espírito, que é a palavra de
Deus” (Efésios 6:17).
Percebe-se que sempre existe uma marcante e instrutiva conexão entre a
maneira com a qual o próprio Cristo Se apresenta e o estado da igreja a quem
Ele se dirige. Isso é particularmente verdadeiro neste caso. A palavra de Deus
claramente havia perdido seu lugar na assembléia de Seus santos; ela já não era
a autoridade suprema nas coisas divinas. Mas o Senhor Jesus fez questão de
mostrar que ela não perdera seu poder, nem o lugar nem a autoridade em Suas
mãos. “Arrepende-te, pois, quando não em breve virei a ti, e contra eles batalharei
com a espada da minha boca.” Note que Ele não diz “Contra ti batalharei”, mas
“Contra eles batalharei”. Ao exercer a disciplina na igreja, o Senhor age com
diferenciação e misericórdia. A posição pública da igreja agora era uma falsa
posição. Havia uma associação notória com o príncipe deste mundo, ao invés
da fidelidade a Cristo, o Príncipe dos céus. Mas quem tinha ouvidos para ouvir
o que o Espírito dizia à Igreja tinha comunhão secreta com Aquele que sustém
a alma fiel com o maná escondido. “Ao que vencer darei a comer do maná
escondido, e dar-lhe-ei uma pedra branca, e na pedra um novo nome escrito, o
qual ninguém conhece senão aquele que o recebe.” Sem dúvida a apostasia geral
iria isolar os poucos fiéis, o remanescente, a quem esta promessa é dada.
Como aprendemos em João 6, o maná representava o próprio Cristo, que
desceu do céu para dar vida à nossa alma. “Eu sou o pão vivo que desceu do céu;
se alguém comer deste pão, viverá para sempre” (João 6:51). Como o Humilde
que foi humilhado no mundo, Ele é a nossa provisão para o andar diário através
deste deserto. O maná tinha de ser recolhido todos os dias, de manhã bem cedo.
O “maná escondido” se refere ao pote de ouro cheio de maná que foi colocado na
O P e r í o d o d e P é r g a m o (313 d.C . - 606 d .C .) |
arca como memorial diante do Senhor. E uma maravilhosa lembrança de Cristo,
o qual neste mundo foi o Homem humilhado e sofredor, mas no céu é o eterno
prazer de Deus e dos fiéis. O santo de coração puro não apenas tem comunhão
com o Cristo exaltado nos céus, mas também com o Cristo que aqui embaixo
uma vez foi o humilhado Jesus. Porém, isso não pode acontecer se cedermos às
bajulações e aceitarmos os favores deste mundo. Nossa única resistência contra
o espírito deste mundo é andar com o Cristo rejeitado, e nos alimentarmos dEle
como nossa porção todos os momentos. Nosso supremo privilégio é comer, não
do maná apenas, mas do “maná escondido ’. Mas quem pode falar sobre a pro­
fundidade da bem-aventurança de tal comunhão? Ou sobre a profundidade da
perda daqueles que se afastam de Cristo e caem no mundanismo?
A “pedra branca” é um sinal secreto de um favor especial do Senhor.
Como a promessa é feita à igreja de Pérgamo, isso pode significar a expressão da
aprovação de Cristo à maneira como os “vencedores” testemunharam e sofreram
por Ele quando tantos foram desviados do caminho da verdade pelas seduções
de Satanás. Isso passa a ideia geral de um penhor secreto de total aprovação.
Mas é difícil de explicar. Podemos penetrar em tal benção e ainda assim nos
sentirmos incapazes de descrevê-la. Felizes são os que tiveram tal experiência.
Existem alegrias que são comuns a todos, mas existe um tipo especial de
alegria individual, que será nossa peculiar alegria em Cristo, que durará para
sempre. Isso será verdade para todos. “E na pedra um novo nome escrito, o
qual ninguém, conhece senão aquele que o recebe.” Que fonte indescritível de
sossego, doce paz, genuíno contentamento e força divina encontramos na “pedra
branca” e no “novo nome” escrito por Sua própria mão! Os outros podem nos
interpretar mal, alguns até mesmo podem pensar que estamos errados, mas Ele
conhece todos, e o coração pode se permitir estar quieto, não importa o que
esteja acontecendo ao redor. Ao mesmo tempo temos de julgar todas as coisas,
até nós próprios, através da Palavra de Deus - a afiada espada de dois gumes.
“Lá para sempre alimentado
De Cristo, aqui humilhado, o pão ocultado
Entesourado no depósito divino
Seu amor, com alegria, se cantará em novo hino
Chamado por aquele nome secreto
Deleite ainda não manifesto
Bendita resposta ao opróbrio e vergonha Gravados na pedra branca."
(tradução livre da poesia constante da edição original em inglês)
233
234 I A
H i s t ó r i a d a I g r e j a - capítulo 10
Tendo, portanto, analisado rapidamente a carta à Pérgamo, seremos
capazes de entender melhor a mente do Senhor quanto à conduta dos cristãos
sob o reinado de Constantino. A igreja professa e o mundo deram as mãos, e
agora desfrutavam do companheirismo mútuo. Como o mundo não podia se
elevar ao alto nível da igreja, ela teve de cair ao baixíssimo nível do mundo. Foi
exatamente isso o que aconteceu. Apesar disso, a forma exterior de cristianismo
foi mantida, mas, sem dúvida, muitos guardavam a fé e o nome de Jesus. Agora
voltemos à conversão e à história de Constantino, o Grande.
A C o n v e r sã o d e C o n s t a n t in o
(ano 312 d.C.)
O ponto alto da história religiosa de Constantino ocorreu no ano
312 d.C.. Ele partiu da França rumo à Itália para combater Maxêncio. O
confronto iminente era de extrema importância, pois significaria sua ruína ou
sua elevação ao pináculo do poder. Constantino estava em profunda concentra­
ção. Sabia-se que Maxêncio havia tomado grandes providências para a batalha,
aumentando seu exército, e se submetendo, de modo escrupuloso a todas as
cerimônias do paganismo. Ele consultou com diligência os oráculos pagãos, e
confiou o sucesso da empreitada à ação de poderes sobrenaturais.
Constantino, embora fosse um sábio e virtuoso pagão, ainda assim era
um pagão. Ele sabia o que iria combater; e enquanto pensava a que deus deveria
se dirigir para pedir proteção e sucesso, ele pensou em seu pai, o Imperador
do Ocidente. Lembrou que seu pai orava ao Deus dos cristãos e sempre fora
próspero, enquanto os imperadores que perseguiam os cristãos haviam sido
visitados com a justiça divina. Portanto, Constantino resolveu abandonar o culto
aos ídolos, e pedir ajuda ao único Deus verdadeiro no céu. Ele orou para que
Deus Se apresentasse a ele, e o fizesse triunfar sobre Maxêncio, não obstante
todas as artes mágicas e ritos supersticiosos de seu oponente.
Envolvido em tais pensamentos, Constantino imaginou ter visto, logo
após o meio-dia, alguma extraordinária aparição nos céus: o sinal de uma cruz
brilhante e sobre ela a inscrição: “Sob este símbolo vencerás!” O imperador e o
exército inteiro, testemunhas do maravilhoso sinal, ficaram tomados pelo pavor.
Enquanto o imperador meditava seriamente sobre o significado da visão, a noite
caiu e ele adormeceu. Sonhou que o Salvador lhe apareceu, carregando em Sua
mão o mesmo símbolo que vira no céu, e o instruiu a fazer um,com o mesmo
padrão, e a usá-lo como estandarte na guerra, assegurando-lhe que enquanto
agisse assim iria ser vitorioso. Ao despertar, Constantino descreveu o sonho, e
resolveu adotar o sinal da cruz como seu lábaro imperial.
O P e r ío d o
O Esta n d a r te
de
da
Pérga m o
(313 d.C. - 606 d.C.)
C ruz
De acordo com Eusébio, artífices em ouro e pedras preciosas foram
chamados imediatamente, e receberam ordens do próprio imperador. Eusébio
viu o símbolo e o descreve longamente. Como houve enorme interesse por
parte de todos os escritores eclesiásticos envolvendo tal relíquia da antiguidade,
daremos aos nossos leitores um breve, mas preciso esboço dela.
A haste, ou o suporte perpendicular, era longa e coberta de ouro. Em
seu topo havia uma coroa, feita de ouro e pedras preciosas, com a gravação do
símbolo sagrado da cruz e as duas primeiras letras gregas do nome do Salvador,
ou seja, um X sobreposto à letra P (XPISTOS em grego). Sob esta coroa estava a
figura do imperador em ouro, e pouco abaixo outra haste de madeira na vertical,
formando uma cruz, da qual pendia uma bandeira quadrada de tecido púrpura,
bordada e coberta com pedras preciosas. Isso foi chamado de Lábaro. Este
magnífico estandarte era carregado à frente dos exércitos imperiais, e guardado
por cinquenta homens escolhidos, supostamente invulneráveis devido ao caráter
virtuoso deles.
Constantino também mandou chamar mestres cristãos, dos quais inquiriu
sobre o Deus que lhe aparecera, e sobre a significação do símbolo da cruz. Isso
lhes deu a oportunidade de direcionar a mente do imperador para a Palavra de
Deus, e de instruí-lo no conhecimento de Jesus e de Sua morte na cruz. A partir
de então o imperador declarou ter se convertido ao cristianismo. A confiança
e as expectativas supersticiosas de Constantino e de todo o exército haviam
atingido o clímax. A batalha decisiva foi travada na Ponte Mílvia. Constantino
conquistou uma vitória notável sobre seu inimigo, embora suas tropas nem
chegassem a um quarto do número das tropas de Maxêncio.
O É d it o d e C o n s t a n t i n o e L ic ín io
(ano 313 d.C.)
O vitorioso imperador fez uma rápida visita a Roma. Entre outras coisas
que fez, ele mandou erigir uma estátua de si mesmo, segurando na mão direita
um estandarte em formato de cruz, com a seguinte inscrição; “Por este salutar
signo, o verdadeiro símbolo da coragem, eu liberto sua cidade do jugo do tirano”.
Maxêncio foi encontrado morto no rio Tibre na manhã seguinte ao confronto.
Evidentemente o imperador sentiu-se em dívida com o Deus dos cristãos e com
o símbolo sagrado da cruz por causa de suas vitórias. E isso, ousamos afirmar,
foi o ponto máximo a que chegou o cristianismo de Constantino. Como homem
235
236 I A
H i s t ó r i a d a I g r e j a - capítulo 10
ele não sentia a necessidade de um Salvador, se é que algum dia sentiu. Mas
como guerreiro, ele abraçou a religião cristã com seriedade. Posteriormente,
como estadista, reconheceu e valorizou o cristianismo; no entanto, Deus
reconhece apenas o pecador perdido que se rende ao Senhor Jesus. Essa é a maior
dificuldade para que os príncipes se tornem cristãos genuínos.
Constantino agora prossegue em direção ao Ilírico para se encontrar com
Licínio, com quem formara uma aliança secreta antes de combater Maxêncio.
Os dois imperadores se encontram em Milão, onde a aliança foi ratificada pelo
casamento de Licínio com a filha de Constantino. Foi neste momento de paz
que Constantino persuadiu Licínio a concordar com a revogação os éditos perse­
guidores de Diocleciano, e a publicar um novo édito de completa tolerância. Isso
acordado, em Milão, no ano 313 d.C., um édito público favorecendo os cristãos
foi emitido no nome de ambos, e pode ser considerado como a maior garantia
oficial da liberdade dos cristãos. Plena e ilimitada tolerância lhes foi concedida;
as igrejas e as propriedades deles lhes foram devolvidas; e, exteriormente, o cris­
tianismo florescia.
Porém, a paz entre os dois imperadores, a qual parecia estar edificada
sobre uma base firme, logo acabou. Inveja, amor ao poder, e ambição pela
soberania absoluta sobre o império romano não iriam permitir que essa aliança
vigorasse por muito tempo. Uma guerra irrompeu no ano seguinte, em 314 d.C.,
na qual Licínio sofreu severas perdas, tanto em homens quanto em territórios.
Um novo tratado de paz foi feito, e a trégua durou cerca de nove anos. Depois
disso, â guerra se tornou inevitável, e mais uma vez assumiu a forma de embate
religioso entre os imperadores rivais. Licínio cooptou os sacerdotes pagãos para
a sua causa, e perseguiu os cristãos. Ele mandou matar muitos bispos, mesmo
sabendo que eram figuras importantes na corte de Constantino. Ambas as partes
estavam se preparando para um confronto que deveria resolver definitivamente a
questão. Licínio, antes de sair para a peleja, sacrificou aos deuses e os louvou em
discurso público. Por outro lado, Constantino se apoiou no Deus cujo símbolo
acompanhava seu exército.
Os dois lados rivais se encontraram. A batalha foi acirrada, obstinada, e
sangrenta. Licínio não era um adversário desprezível, mas o caráter dominante,
a força e a coragem de Constantino prevaleceram. A vitória foi completa. Licínio
sobreviveu à derrota por cerca de um ano. Ele morreu, ou melhor, foi assassinado
no ano 326 d.C.. Constantino agora atingia o ápice de sua ambição. Ele se tornara
o único e absoluto soberano de todo o império romano, e continuou sendo até
sua morte em 337 d.C.. Para uma descrição da política e do militarismo deste
grande príncipe, devemos dirigir o leitor para os livros de História civil. Por ora,
iremos analisar sua trajetória religiosa.
O P e r í o d o d e P é r g a m o (313 d.C. - 606 d.C.)
À H is t ó r ia R elig io sa
de C o n s ta n tin o
Tudo o que sabemos sobre a religião de Constantino até o momento de
sua pretensa conversão implica que aparentemente ele era um pagão, e até certo
ponto zeloso. O próprio Eusébio admitiu que até ali Constantino estava em
dúvida sobre qual religião abraçaria. Política, superstição, hipocrisia, inspiração
sobrenatural exerceram influências, em maior ou menor grau, decisivas na futura
história religiosa deste homem. Porém com certeza seria injusto supor que sua
profissão de fé no cristianismo, e as declarações públicas a favor dele, signifi­
caram nada mais que deliberada e intencional hipocrisia. Tanto sua trajetória
religiosa quanto eclesiástica admitem uma explicação acima e além da natural.
Mas também não podemos acreditar que houve algum fato que tenha chegado
próximo à inspiração divina, nem mesmo sua visão ao meio-dia nem o sonho
à noite. Pode ter ocorrido uma aparição incomum no sol ou nas nuvens, que a
imaginação converteu em um miraculoso sinal da cruz; e o sonho pode ter sido
decorrência de seu estado de alta ansiedade. Hoje toda essa história é considerada
uma fábula, muito agradável e cheia de bajulações ao imperador, engendrada
por seu grande admirador e panegirista Eusébio. Não há como colocá-la entre
os registros autênticos da História.
Não temos dúvidas de que a política e a superstição desempenharam um
papel importante na mudança construída na mente de Constantino. Desde a
juventude ele testemunhou a perseguição dos cristãos e deve ter observado a
vitalidade da religião deles que se elevou acima do poder dos perseguidores,
sobrevivendo à queda de todos os outros sistemas. Deve ter visto um imperador
após o outro, inimigos declarados do Cristianismo, morrendo de forma terrível.
Dentre todos os soberanos, apenas seu pai, protetor dos cristãos durante a longa
perseguição, desceu à cova de maneira honrada e serena. Fatos tão marcantes
não poderiam deixar de influenciar a mente supersticiosa de Constantino.
Além disso, devido à sua sagacidade política ele apreciava a moralidade do
cristianismo, com sua tendência a reforçar a obediência ao governo civil, e a
imensa força que essa doutrina exercia sobre a mente de quase metade de seu
império.
Os motivos do imperador, contudo, não fazem parte de nosso escopo,
e não precisam nos ocupar mais. Porém, para termos um quadro mais nítido
deste importante período de mudança na história da igreja, será útil observar o
estado em que Constantino encontrou a igreja em 313 d.C., e como ele a deixou
em 337 d.C..
237
A H i s t ó r i a d a I g r e j a - capítulo 10
*
A
5i
C o n d iç ã o n a q u a l C o n s ta n tin o
ENCONTROU A IGREJA
Até essa data (313 d.C.) a igreja havia sido perfeitamente livre e independen­
te do Estado. Tinha uma constituição divina proveniente diretamente do céu —e
fora do mundo. Ela abrira caminho enfrentando toda a resistência, não devido ao
patrocínio estatal, mas pelo poder de Deus. Ao invés de receber apoio do governo
civil, este a perseguiu como se ela fosse um inimigo estrangeiro, uma espécie de
obstinada e pestilenta superstição. Por dez vezes foi permitido ao diabo levantar
todo o mundo romano contra ela, o qual por dez vezes teve de confessar sua
fraqueza e derrota. Se ela tivesse em mente o dia de suas bodas e seu amor por Ele,
que declarou: “Porque nunca ninguém odiou a sua própria carne; antes a alimenta
e sustenta, como também o Senhor à igreja” (Efésios 5:29), a igreja jamais aceitaria
a proteção de Constantino, cujo preço foi sua fidelidade a Cristo. Mas a igreja como
conjunto agora estava bastante mesclada ao mundo e longe de seu primeiro amor.
Vimos que, desde os dias dos apóstolos, houve um crescente amor pelo mundo
e por sua pompa exterior, pois tal tendência é tão natural em nós. E o Senhor em
amor permitiu que Satanás perseguisse os Seus. Porém, ao invés da igreja aceitar
a provação como um castigo da mão do Senhor e reconhecer a própria condição
mundana que havia adotado, ela se cansou do lugar e do caminho da rejeição,
e passou a andar na luz do mundo, pensando ainda estar agradando e servindo
ao Senhor. Esta ilusão satânica foi consumada por Constantino, embora ele não
tivesse a menor ideia do que estava fazendo. “Não importa o que tenha motivado
sua conversão”, diz Milman, “sem dúvida, Constantino adotou uma política sabia
e criteriosa, ao guardar o pacto em vez de continuar a luta com um adversário que
dividia a riqueza, a cultura, o território e a população do império.”
A
U n i ã o I g r e ja - E s t a d o
Em março de 313 d.C., os proclamas da aliança profana entre Igreja e
Estado foram publicados em Milão. O celebrado édito conferiu aos cristãos
plena tolerância, e conduziu ao caminho do estabelecimento legal do cristianis­
mo, e à ascendência deste sobre todas as outras religiões. Isso foi publicamente
demonstrado no novo estandarte imperial - o Lábaro. Além das iniciais de
Cristo50, e do símbolo de Sua cruz, havia também a imagem do imperador em
50 As letras geralmente usadas para representar o nome do Salvador em Latim são JH S, que
significam Jesu Hominum Salvator - Jesus, o Salvador dos homens.
O P e r í o d o d e P é r g a m o (313 d.C . - 6 0 6 d .C .) |
ouro. Estes signos, ou divisas, foram planejados para serem objetos de adoração
tanto para pagãos quanto para os soldados cristãos e também para levá-los ao
entusiasmo no dia da batalha. Portanto, aquele que é chamado de o grande
imperador cristão uniu publicamente cristianismo e idolatria.
Mas se temos analisado corretamente o pensamento de Constantino, não
devemos hesitar em dizer que, naquele momento, era um pagão no coração, e um
cristão apenas por motivos militares. Foi somente como um soldado supersticio­
so que ele abraçou o cristianismo. Em tal situação, ele estava disposto a receber
de qualquer divindade a assistência em suas aspirações ao império universal. Não
vemos nenhum vestígio de cristianismo, menos ainda o zelo característico de um
novo convertido; ao contrário, podemos facilmente perceber a velha superstição
do paganismo em uma nova roupagem de cristianismo. Não fosse por estas con­
siderações, o Lábaro seria a manifestação da mais ousada desonra ao maravilhoso
Senhor. Mas ele foi confeccionado na ignorância. Constantino também estava
ansioso por acalmar os ânimos de seus soldados e súditos pagãos, e por dissipar
o medo deles em relação à segurança de sua religião tradicional.
Os primeiros éditos de Constantino, embora favoráveis ao cristianismo em
seus efeitos, foram redigidos com termos muito cautelosos para não interferirem
nos direitos e liberdades do paganismo. Mas os cristãos gradualmente cresceram
no favor de Constantino, e seus atos de bondade e liberalidade falaram mais alto
que os éditos. Ele não apenas lhes restaurou os direitos civis e religiosos dos quais
haviam sido privados, e as igrejas e propriedades confiscadas na perseguição de
Diocleciano; mas, com muitos presentes magníficos, possibilitou com que eles
construíssem novos lugares para suas reuniões. Ele demonstrou grande favor aos
bispos e os tinha constantemente à sua volta no palácio, em suas viagens, e em suas
guerras. Também mostrou grande respeito pelos cristãos ao entregar a educação
de seu filho Crispo nas mãos do celebrado Lactâncio, um cristão. E com todo o
patrocínio real, ele assumiu a supremacia sobre as questões da igreja. Ele apareceu
nos sínodos (assembléias) dos bispos sem seus guardas, se misturou em seus debates,
e controlou as decisões religiosas. Desse momento em diante o termo “católico”
era invariavelmente aplicado à igreja, em todos os documentos oficiais.
C o n s t a n t in o c o m o C h efe d a I g r e ja
e S u m o Sa c e r d o t e d o s Pa g ã o s
Após a já referida derrota de Licínio, o império romano inteiro foi reunido
sob o cetro de Constantino. Em sua proclamação dirigida a seus novos súditos
no Oriente, ele se declara como instrumento de Deus para difundir a verdadeira
239
240 I A
H i s t o r i a d a I g r e j a - capítulo 10
fé, e que Deus lhe tinha dado a vitória sobre todos os poderes das trevas, para
que a adoração a Deus pudesse, através de Constantino, ser universalmente esta­
belecida. “Liberdade”, ele declarou em uma carta a Eusébio, “sendo mais uma
vez restaurada, e, pela providência do grande Deus e por meu próprio ministério,
tendo sido expulso o dragão a serviço do estado, creio que o poder divino se
tornará manifesto a todos, e que eles, os quais, devido ao medo ou incredulidade
caíram em muitos crimes, chegarão ao conhecimento do verdadeiro Deus, e à
correta ordem e justiça em suas vidas.”
Constantino agora ocupava seu lugar como líder da igreja e o demonstrava
de maneira mais clara ao mundo. Porém, ao mesmo tempo, manteve o título de
Pontifex Maximus51 - o sumo sacerdote dos pagãos; disso Constantino jamais
abriu mão: ele morreu como líder da igreja e sumo sacerdote do paganismo.
Essa aliança profana, ou a mescla iníqua da qual temos falado e mencionada
com pesar na carta a Pérgamo, se encontra em todos os passos da história deste
importante soberano. Demos algumas explicações sobre a epístola, e devemos
deixar que o próprio leitor compare a verdade e a história sob o ponto de vista
divino. Que misericórdia ter um guia como este ao estudarmos esse notável
período da história da igreja!
Entre os primeiros atos do agora supremo imperador do mundo estava
a anulação de todos os éditos de Lícinio contra os cristãos. Ele libertou
todos os prisioneiros das masmorras e das minas, e dos trabalhos humilhantes
e forçados a que, por desprezo, haviam sido condenados. Houve reintegra­
ção para os que foram destituídos de seus postos no exército ou no serviço
civil, e restituição aos que foram despojados de seus bens. Ele promulgou
um édito direcionado a todos os seus súditos, aconselhando-os a abraçar o
evangelho, mas sem qualquer pressão; ele desejava que isso fosse uma questão
de consciência. No entanto, Constantino se esforçou para tornar atrativa tal
decisão, concedendo cargos e honras aos prosélitos das classes altas e doações
aos das classes baixas. Como o próprio Eusébio reconheceu, isso gerou
uma enorme hipocrisia e falsas conversões. Ele ordenou que igrejas fossem
construídas em cada parte do império, em tamanho suficiente para acomodar
a população local. Proibiu que estátuas dos deuses fossem erigidas, e não
permitiu que sua própria estátua fosse colocada nos templos. Aboliu todos os
sacrifícios oficiais, e de muitas maneiras se esforçou para a ascensão do cris­
tianismo e a supressão do paganismo.
51 O termo latino Pontifex M axim us (literamente “Máximo Construtor de Pontes” ou “Supremo
Construtor de Pontes”) designava o sacerdote Supremo do colégio dos Sacerdotes, a mais alta
dignidade na religião romana. Fonte: Wikipédia.
O P e r í o d o d e P é r g a m o (313 d.C. - 606 d.C.)
O s E feit o s
do
Fa v o r R eal
Consideraremos agora a questão que tem sido o grande problema histórico
para homens de todas as crenças, nações e paixões: a saber, quem causou maior
dano à igreja e ao povo de Deus na terra: o Estado que procurou promover o
avanço do cristianismo por meios mundanos, ou o poder terreno que se opôs
a ela usando a violência? Admitimos que muito pode ser dito acerca da benção
da tolerância imparcial, e das enormes vantagens para a sociedade provenientes
da supressão legal de todos as práticas perversas. Porém, o favor do governo
sempre provou ser a ruína da verdadeira prosperidade da igreja de Deus. E uma
grande misericórdia não ser molestado, porém é uma misericórdia ainda maior
não estar sob as asas dos príncipes. O caráter genuíno dos cristãos é o de serem
estrangeiros e peregrinos neste mundo. Possuir Cristo, e o Cristo que está nos
céus muda por completo a visão da vida aqui para os cristãos. Eles pertencem
ao céu, e são meros estrangeiros no mundo. São servos de Cristo no mundo,
embora não sejam do mundo. O céu é o lar deles; não têm aqui um lugar
permanente. O que a igreja espera de um mundo que crucificou seu Senhor?
Ou ainda, o que a igreja poderia aceitar do mundo? A porção da igreja aqui é
o sofrimento e a rejeição, como diz o apóstolo: “Por amor de ti somos entregues
à morte todo o dia; Somos reputados como ovelhas para o matadouro”. O
Senhor pode poupar Seu povo, mas se a provação vier, não pensemos que algo
estranho está acontecendo entre nós. “No mundo tereis aflições” (Romanos
8:36; João 16:33).
O T estem u n h o d a H i s t ó r i a
Cremos que mesmo através da História podemos provar que é melhor
para o cristianismo quando os cristãos estão sofrendo por amor a Cristo do que
quando estão se banqueteando nos palácios dos reis, protegidos pelos favores
reais. Como ilustração disso, mostraremos aos nossos leitores um momento
da história da grande perseguição sob Diocleciano, e outro dos dias dourados
de Constantino. Citaremos ambos dos escritos de Milman, que não pode ser
acusado de parcialidade a favor do clero. Falaremos somente dos fiéis. É de
conhecimento geral que nas últimas perseguições, quando o número de cristãos
aumentou de forma considerável, houve aqueles que se mostraram infiéis no dia
da provação, embora fossem comparativamente poucos e, mesmo alguns desses,
mais tarde, se arrependeram.
241
242
1A
H i s t ó r i a d a I g r e j a - capítulo 10
“A perseguição durou seis ou sete anos (309 d.C.), mas em nenhuma parte
do mundo o cristianismo revelou qualquer traço de decadência. Ele estava pro­
fundamente arraigado na mente dos homens, extensivamente difundido para ser
incapaz de resistir a esse violento, mas inútil choque. Se a adoração pública fosse
suspensa, os crentes se encontravam em secreto, ou cultivavam na privacidade
inexpugnável do coração, os inalienáveis direitos da consciência. E claro que a
perseguição recaiu com maior força sobre os mais eminentes do corpo. Os que
resistiam à morte eram animados pela presença das multidões que, embora não
ousassem aplaudi-los, mal podiam esconder a admiração. As mulheres enchiam
de beijos as bordas das vestes dos mártires, e suas cinzas espalhadas, ou seus ossos
insepultos, eram furtados devido ao zelo devoto do rebanho deles.”
Sob o édito promulgado no leito de morte por Galério, a perseguição
cessou e aos cristãos foi permitido o público exercício de sua religião. Esse tempo
de alívio durou poucos meses. E que formidável foi a visão que se seguiu, e que
testemunho do poder e da verdade do cristianismo! Milman continua:
“O término da perseguição demonstrou seu alcance. As portas das prisões
foram escancaradas, as minas entregaram seus condenados, em toda parte longas
fileiras de cristãos eram vistas se apressando em direção às ruínas de suas igrejas,
e visitando os lugares santificados por suas devoções anteriores. As estradas,
ruas e mercados das cidades ficaram apinhados com multidões que cantavam
salmos de agradecimento pela libertação. Os que mantiveram a fé sob tais severas
aflições recebiam os cumprimentos afetuosos dos irmãos; os que falharam na
hora do teste correram para confessar o erro e buscar a readmissão à agora
jubilosa congregação dos fiéis.”
Vejamos então o estado de coisas sob o reinado de Constantino, cerca
de vinte anos após a morte de Galério. Note a poderosa mudança na posição
do clero.
“Os bispos apareciam como frequentadores regulares da corte e as
dissensões internas do cristianismo se tornaram questões de Estado. O prelado
governava, não mais por sua reconhecida superioridade nas virtudes cristãs,
mas pela inalienável autoridade da posição que ocupava. Ele abria ou fechava a
porta de sua igreja, o que significava o mesmo que a nomeação ou a exclusão da
felicidade eterna. Ele pronunciava as sentenças de excomunhão, que lançavam o
trêmulo delinquente no meio dos perdidos e moribundos pagãos. Ele tinha seu
trono na parte mais destacada do templo cristão, e embora agisse na presença e
em nome do colegiado de presbíteros, era reconhecido como líder de uma grande
comunidade, sobre cujo destino eterno ele detinha um vago, mas nem por isso
menos impositivo e terrível domínio.”52
>2 História do Cristianismo, volume 2. Neander, volume 3. Vida de Constantino, por Eusébio.
O
P
e r ío d o
d e
Pérgam
o
(313 d.C. - 606 d.C.)
|
Questões intelectuais e filosóficas tomaram o lugar da verdade do
evangelho, e uma mera aparência religiosa, o da fé, do amor e de uma mente
voltada para as coisas celestiais. Um Salvador crucificado, uma genuína conversão,
justificação somente pela fé, separação do mundo eram assuntos totalmente des­
conhecidos por Constantino, e provavelmente jamais levados à sua presença. “A
conexão entre o mundo físico e moral haviam se tornado tópicos gerais e, pela
primeira vez, haviam se tornado as verdades primárias de uma religião popular, e
como consequencia, não podiam se afastar da mescla com as paixões populares.
A humanidade, mesmo dentro da esfera do cristianismo, retornou para uma
condição judia mais inflexível; e em seu espírito, bem como na linguagem, o
Antigo Testamento passou a predominar sobre o evangelho de Cristo.”
O V e r d a d e ir o C a r á t e r d a I g r e ja
D esaparece
Não importa o quão agradável tenha sido o favor imperial, ele destruiu a
genuína essência do cristão como indivíduo e da igreja como conjunto. Calou-se o
testemunho do Cristo rejeitado na terra, mas exaltado no céu. Em lugar dos crentes
serem batizados como mortos e ressurretos com Cristo, ou seja, tendo morrido
em Sua morte e ressuscitados em Sua ressurreição, o mundo é que foi batizado. A
Palavra de Deus é clara: “Sepultados com ele no batismo, nele também ressuscitas­
tes pela fé no poder de Deus, que o ressuscitou dente os mortos” (Colossenses 2:12).
O batismo aqui é usado como um símbolo tanto da morte quanto da ressurreição.
Mas agora a quem essa solene e sagrada ordenança era administrada? Repetimos
mais uma vez: ao mundo romano. A fé em Cristo, o perdão dos pecados, o senhorio
do Amado não eram, obviamente, observados pelo subserviente clero.
A confissão do cristianismo passou a se tornar um caminho seguro para
a riqueza e as honras, e todas as classes se dispunham ao batismo. Na festa da
Páscoa e de Pentecostes, milhares de pessoas em vestes brancas de neófito se
apinhavam ao redor das igrejas, esperando ser batizadas. O número de pessoas
era tão grande, e a cena tão impressionante que muitos pensavam que tais novos
convertidos eram a incontável multidão mencionada no Apocalipse, que estaria
diante do Cordeiro, trajada com vestes brancas (7:9). De acordo com alguns
escritores, cerca de doze mil homens, além de mulheres e crianças foram batizadas
em um único ano em Roma. O imperador prometeu uma veste branca, e vinte
peças de ouro, para cada recém-convertido das classes mais baixas. Sob tais cir­
cunstâncias, e com recursos mercenários, se concretizou a queda do paganismo,
e o cristianismo se assentou no trono do mundo romano.
243
A
H
is t ó r ia d a
Ig
r e ja
- capítulo 10
* * *
O Ba t ism o
e a
M orte
de
C o n s t a n t in o
O batismo de Constantino deu margem a muita especulação, tanto
quanto sua conversão. Não obstante o grande zelo que demonstrou em favor
do cristianismo, ele adiou o próprio batismo, e consequentemente sua recepção
na igreja, até a aproximação de sua morte. Muitos motivos, pessoais e profissio­
nais, foram apontados por diversos autores como as razões do adiamento; mas
receamos que a real causa foi pessoal. Naquela época a superstição ensinou que
havia uma ligação entre o perdão dos pecados com o rito do batismo. Debaixo de
tamanho engano, Constantino parece ter retardado seu batismo até o momento
em que não podia mais desfrutar das honras imperiais, e ceder às suas paixões
e aos prazeres do mundo. E impossível imaginar uma indulgência papal mais
destrutiva para a alma, mais desonrosa ao cristianismo, ou mais perigosa para a
virtude moral. Isso foi uma licença para Constantino perseguir os alvos de sua
ambição por meio dos tenebrosos caminhos da crueldade e do derramamento
de sangue, além de lhe conceder um perdão sem esforço, quando lhe fosse
mais conveniente. De outro lado, cremos que foi a misericórdia do Senhor que
não permitiu que Constantino, cuja vida privada, doméstica e política estavam
tão banhadas em sangue, fizesse uma pública confissão de fé no cristianis­
mo recebendo o batismo e participando da ceia do Senhor. Esperamos que o
imperador tenha realmente se arrependido em seu leito de morte.
Os bispos, a quem chamara ao palácio de Nicomédia em seus últimos
instantes, ouviram sua confissão, ficaram satisfeitos e lhe abençoaram. Eusébio,
bispo de Nicomédia, o batizou! Agora pela primeira vez declarou que, se Deus
poupasse a sua vida, ele iria se juntar à assembléia de Seu povo, usaria as vestes
brancas de neófito, e jamais colocaria novamente a púrpura de imperador. Mas
essas resoluções chegaram tarde: Constantino morreu pouco depois de seu
batismo, no ano 337 d.C..53
Helena, mãe do imperador, merece uma breve menção. Ela abraçou a
religião professada por seu filho. Sua devoção, piedade e generosidade eram
notórias. Ela viajou para a Palestina, visitando os lugares sagrados onde
aconteceram os principais eventos da históriabíblica; ordenou que o templo de
Vênus, o qual Adriano construíra no local do santo sepulcro, fosse demolido,
e deu instruções para que fosse edificada ali uma igreja que superasse todas as
outras em esplendor. Ela morreu no ano 328 d.C..
,3 Vida de Constantino, por Eusébio.
O
P
e r ío d o
d e
P
érgam o
(313 d.C. - 606 d.C.)
|
Vemos, muito claramente, a dolorosa comprovação da verdade das
palavras do Senhor, quando disse que a igreja habitava onde estava o trono
de Satanás. Constantino a deixou lá. Ele a encontrou aprisionada nas minas,
calabouços, catacumbas, afastada da luz do sol; e a deixou no trono do mundo.
Mas o quadro ainda não está completo; precisamos analisar outras características
na história, para assim percebermos a semelhança com a epístola.
O reinado de Constantino foi marcado não apenas pela saída da igreja da
posição designada pelo Senhor a ela, por causa dos ardis de Satanás, mas pelos
amargos frutos dessa degradante mudança. As sementes do erro, corrupção e
dissensão brotaram rapidamente, aparecendo diante dos tribunais do mundo, e
em alguns casos diante do mundo pagão.
As
C o n t r o v é r s i a s d o A r ia n is m o
E DO DONATISMO
As duas maiores controvérsias - o donatismo e o arianismo - começaram
nesse reinado: a primeira, surgida no ocidente a partir de uma disputada
nomeação para o bispado de Cartago; a última, no Oriente, envolvendo as
próprias fundações do cristianismo. De um lado, uma questão de doutrina, de
outro, uma questão de prática. Ambas estavam corrompidas na própria essência
e natureza, e poderiam representar, na epístola, o falso profeta e os nicolaítas.
Iremos fazer um breve relato dos dois cismas, pois lançam luz na natureza e no
resultado da união Igreja-Estado.O imperador tomou parte nos concílios dos
bispos como líder da igreja.
Com a morte de Mensúrio, bispo de Cartago, um concílio dos bispos da
região foi convocado para apontar seu sucessor. O concílio era pequeno, e embora
sob a direção de Botrus e Celésio, dois presbíteros que aspiravam ao cargo, o
eleito como bispo foi Ceciliano, um diácono muito amado pela congregação.
Mensúrio morreu longe de Cartago, pois estava em uma viagem; porém, antes
de sair, confiou alguns bens da igreja a certos anciões da congregação, e deixou
um inventário nas mãos de uma mulher piedosa. Tudo isso foi entregue a
Ceciliano, que obviamente quis recebê-los. O problema foi que os anciãos não
quiseram entregar, pois pensavam que ninguém jamais os reclamaria, uma vez
que o antigo bispo morrera. Estes se juntaram a Botrus e Celésio, em oposição ao
novo bispo. O cisma também foi apoiado pela influência de Lucila, uma senhora
rica a quem Ceciliano havia ofendido por causa de uma repreensão piedosa.
Agora toda a província se achava no direito de interferir no assunto.
245
246 I A H
is t ó r ia
da
Ig
r e ja
-
capítulo 10
Donato, bispo de Casa Nigra, se colocou como líder da facção cartaginesa.
Segundo, primaz da Numídia, diante da convocação de Donato, apareceu
em Cartago liderando setenta bispos. Esse auto-instituído concílio intimou
Ceciliano a comparecer em juízo diante deles, alegando que ele não poderia ter
sido consagrado, exceto na presença deles e pelo primaz da Numídia. Além disso,
Ceciliano não podia ser bispo, pois era considerado um traditor54. Portanto,
o concílio declarou anulada a eleição. Ceciliano se recusou a reconhecer a
autoridade daquele concílio, que agiu elegendo Majorino para o cargo de bispo,
declarado vago pela excomunhão de Ceciliano. Infelizmente, para a reputação
dos bispos, Majorino pertencia à família de Lucila, a qual deu grandes somas
de dinheiro para garantir a eleição, dinheiro dividido entre todos eles. Um
cisma estava armado, e muitas pessoas que anteriormente estavam indiferentes à
Ceciliano, depois disso, voltaram a ter comunhão com ele.
Relatos dessas discórdias alcançaram os ouvidos de Constantino. Ele havia
acabado de se tornar senhor do Ocidente; e enviara uma enorme quantia de
dinheiro para aliviar as igrejas da África. Elas sofreram terrivelmente nas últimas
perseguições. Mas como os donatistas eram tidos como sectários, ou dissidentes,
pela verdadeira igreja católica, Constantino ordenou que os presentes e privilégios
conferidos aos cristãos por seus éditos ficassem restritos aos partidários de
Ceciliano. Isso fez com que os donatistas redigissem uma petição ao imperador,
requerendo que a causa deles fosse examinada pelos bispos da Gália, dos quais se
esperava imparcialidade. Aqui, pela primeira vez, temos uma aplicação do poder
civil para designar uma Comissão de Juizes Eclesiásticos.
Constantino concordou: um concílio foi marcado em Roma no ano
313 d.C., do qual participaram cerca de vinte bispos. A decisão foi favorável a
Ceciliano, que imediatamente propôs termos de reconciliação e reunião; mas
os donatistas desprezaram qualquer acordo. Eles suplicaram ao imperador por
outra audiência argumentando que um sínodo de vinte bispos era insuficiente
para anular uma sentença dada por setenta bispos condenando Ceciliano. Por
causa dessa representação Constantino convocou outro concílio. Desta vez era
bastante significativo o número de bispos vindos da África, da Itália, da Sicília,
da Sardenha, e em especial da Gália. Foi a maior assembléia eclesiástica vista
até então. Eles se reuniram em Aries, no ano 314 d.C.. Mais uma vez Ceciliano
foi inocentado, e vários decretos canônicos foram estabelecidos com vistas ao
término das dissensões africanas.
Nesse meiotempo Majorino morreu, e um segundo Donato foi apontado
como seu sucessor. Este era cognominado de “o Grande” por seus seguidores, com
54 Um nome infame ciados aos que, para salvar sua vida durante a perseguição de Diocleciano
haviam entregue as escrituras ou bens da igreja aos perseguidores. Milner, volume 1.
O
P e r ío d o d e P é rg a m o
(313 d.C. - 606 d.C.) j 2 4 7
o objetivo de diferenciá-lo do primeiro Donato. E descrito como erudito, eloquente,
de grande habilidade, com a energia e zelo veemente, típicos do temperamento
africano. Os sectários, como eram chamados, agora assumiam a alcunha de os
donatistas, apoderando-se tanto do caráter bem como do nome do líder deles.
C o n s t a n t in o c o m o Á r b it r o
d e D ife r e n ç a s E c l e siá st ic a s
Novamente os donatistas suplicaram ao imperador que tomasse a causa
deles em suas mãos e, embora ofendido por tamanha obstinação, Constantino
concordou. Ele os ouviu em Milão, no ano 316 d.C.; e ratificou a sentença
dos concílios de Roma e Aries. Também publicou éditos contra os donatistas,
que mais tarde ele mesmo anulou, prevendo as perigosas consequências de
medidas mais violentas. Mas logo o donatismo se tornou uma facção impetuosa,
difundida e intolerante da igreja. Eles aumentaram tanto em número que já
no ano 330 d.C., houve um sínodo com 270 bispos donatistas; e em alguns
períodos da história chegaram a cerca de 400 bispos. Eles se mostraram uma
grande aflição para as províncias da África por mais ou menos 300 anos —até
a época da invasão maometana.
R eflex õ es
so b r e
o P r im e ir o G r a n d e C is m a
da
I g r e ja
Como este foi o primeiro cisma que dividiu a igreja, achamos por bem dar
mais detalhes sobre ele. O leitor pode extrair lições necessárias dessa memorável
divisão. Este cisma teve início com um incidente tão insignificante em si mesmo
que nem merecia qualquer menção na História. Não foi uma questão de doutrina
errônea ou imoralidade, mas apenas de uma disputada eleição para a diocese de
Cartago. Um pouco de correção, um pouco de abnegação, um desejo genuíno
pela paz, unidade e harmonia da igreja, e, sobretudo, um cuidado devido pela
glória do Senhor poderiam ter evitado centenas de anos de dor interna e desgraça
externa da igreja de Deus. Mas se permitiu que o orgulho, a avareza e a ambição
- tristes frutos da carne - fizessem uma obra devastadora. O leitor também
perceberá que, devido ao lugar que o imperador tinha nos concílios da igreja, a
posição e o caráter dela logo foram distorcidos completamente. Como deve ter
sido estranho para Constantino o fato de, imediatamente após a adoção da cruz
como seu estandarte, receber uma petição feita por bispos para resolver questões
eclesiásticas no tribunal imperial! Isso comprovou a situação do clero. Observe
248 | A H
i s t ó r ia d a I g r e ja -
capítulo 10
as consequências que envolviam tal petição: se a parte contra quem a sentença
do poder civil foi dada se recusasse a acatá-la, eles se tornariam transgressores
da lei. E foi exatamente isso que aconteceu.
Os donatistas passaram a ser tratados como ofensores de todas as leis
imperiais; foram desapossados de suas igrejas, muitos deles sofreram banimento
e confisco. Até a pena de morte foi decretada contra eles, embora isto não pareça
ter sido aplicado durante o reinado de Constantino. Apesar do Estado se utilizar
de medidas vigorosas para obrigar os donatistas a se reintegrarem aos católicos,
como é comum nestes casos, e conforme a experiência ensina, a força usada para
constrangê-los somente serviu para desenvolver o espírito selvagem da facção.
Incitados pela perseguição, estimulados pelos discursos de seus bispos, em especial
por Donato, eles se precipitaram em toda espécie de fanatismo e violência.
Constantino, respaldado pela experiência, por fim descobriu que embora
pudesse dar proteção à igreja, não podia lhe dar paz; e publicou um édito concedendo
plena liberdade aos donatistas para agirem de acordo com suas convicções, declarando
que isso era uma questão que pertencia ao julgamento de Deus.55
A C o n t r o v é r s ia A r ia n a
Mal a paz externa da igreja havia sido assegurada pelo édito de Milão,
dissensões internas causaram novas perturbações. Logo após a eclosão do cisma
na província da África, a controvérsia ariana,originada no ocidente, se estendeu
a todas as partes do mundo. Já falamos que tais contendas furiosas são amargos
frutos da união não-bíblica da Igreja com o Estado. Elas não nasceram, neces­
sariamente, desse vínculo, mas sim do fato de Constantino ter se tornado o
líder declarado e ostensivo da igreja, e presidir suas assembléias solenes. Como
resultado, questões de doutrina e prática produziam uma agitação em toda
a igreja, e não apenas nela, mas tais coisas também exerciam uma poderosa
influência política nos assuntos do mundo. Isso era inevitável devido à nova
posição que a igreja assumiu. Sendo o império agora cristão, pelo menos em
tese, essas questões eram de interesse e importância mundiais. Por esta razão, a
controvérsia ariana foi a primeira que rachou o conjunto inteiro dos cristãos, e
em quase todos os cantos do império colocou em ordem de batalha grupos que
se opunham implacavelmente.
Heresias, semelhantes a de Ário, surgiram na igreja antes de sua conexão
com o Estado, mas raramente se estendiam além da região e do período de seu
nascimento. Após alguns debates barulhentos e palavras furiosas, a heresia caía
55 Neander, volume 3; Robertson, volume 1; Milman, volume 2.
O
Per
ío d o
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P érgam
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em desonra e no esquecimento. Mas as coisas foram bem diferentes com a con­
trovérsia ariana. Constantino, sentado no trono do mundo e tendo assumido a
liderança da igreja, impôs sua autoridade para prescrever e definir os dogmas
corretos da religião que estabelecera. A Palavra de Deus, a vontade de Cristo,
a direção do Espírito Santo, o relacionamento celestial da igreja foram intei­
ramente deixados de lado pelo imperador, se é que alguma vez foram sequer
considerados. E provável que ele tenha ouvido algo sobre as numerosas opiniões
que dividiam os cristãos; mas ao mesmo tempo ele via que eles formavam uma
comunidade em constante crescimento em vigor e magnitude; realmente unida
em meio às heresias, e forte até sob a mão de ferro da opressão. Mas não podia
ver e nem entender que, apesar do fracasso, a igreja olhava para o Senhor e no
mundo só podia contar com a ajuda dEle. Os demais, controlados pela astúcia
e poder do inimigo, todos estavam contra ela. Porém, declaradamente, ela estava
peregrinando no deserto, confiando somente em seu Amado, e nenhuma arma
forjada contra ela poderia prosperar (Isaías 54:17).
Ignorando por completo a relação celestial da igreja, o imperador pode ter
pensado que lhe daria total proteção contra a opressão externa, e que por sua
presença e poder lhe garantiria a paz e o descanso das dissensões internas. Mal
sabia que isso estava muito longe de seu alcance, e que a grande segurança, as
facilidades mundanas e as indulgências reais que, tão liberalmente, concedia ao
clero eram exatamente a causa das discórdias e das inflamadas paixões dos que
disputavam entre si. E isso se confirmou, pois continuamente Constantino era
assaltado pelas reclamações e acusações de seus novos amigos.
O C o m e ç o d o A r ia n is m o
O arianismo foi o desenvolvimento natural das opiniões gnósticas; e
Alexandria, berço de questões metafísicas e distinções sutis, foi o lugar de seu
surgimento. No terceiro século, Paulo de Samósata e Sabélio da Líbia ensinaram
falsas doutrinas similares a de Ário, no quarto século. As seitas gnósticas em
suas diferentes variedades e o maniqueísmo - religião persa que se misturava
com o cristianismo, poderiamm ser consideradas religiões rivais, e não facções
cristãs, mas independente disso, causaram prejuízos entre os cristãos, em especial
quanto à doutrina da Trindade. Quase todas essas heresias, como são geralmente
chamadas, caíram no desagrado imperial, ficando seus seguidores sujeitos a
penalidades. Os montanistas, novacianos, marcionistas e valentinianos figuravam
entre as seitas proscritas e perseguidas. Mas havia uma prestes a irromper, mais
profunda, tenebrosa e influente que qualquer outra heresia anterior, nascida no
próprio seio da ‘santa’ igreja católica. Aconteceu da seguinte maneira.
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capítulo 10
Alexandre, bispo de Alexandria, em uma reunião com seus presbíteros,
parece ter se expressado livremente sobre o tema que trata da Trindade. Ario, um
dos presbíteros, questionou a verdade das posições de Alexandre, uma vez que
estavam ligadas aos erros sabelianos, condenados pela igreja. Essa discussão levou
Ario a declarar suas próprias opiniões relativas à Trindade, que substancialmente
negavam a divindade do Salvador - o qual não passaria da primeira e mais nobre
das criaturas, formada a partir do nada por Deus Pai. E embora fosse, de modo
imensurável, superior em poder e glória a qualquer outro ser criado, é inferior em
ambos a Deus Pai. Apesar de ser inferior ao Pai quanto à natureza e dignidade, Ele
é a imagem do Pai, e o representante do poder divino, pelo qual Ele fez os mundos.
A visão de Ario sobre o Espírito Santo não está tão claramente exposta.56
O arianismo não apenas é fundamentalmente inconsistente com o lugar
dado ao Filho de Deus do começo ao fim das Escrituras, mas também com a
infinita obra da reconciliação e da nova criação, além de ser refutado de antemão
por numerosas passagens da Palavra de Deus. Será útil citarmos algumas aqui.
O Espírito Santo declara que Ele, Jesus, era o Verbo e que no início estava com
Deus e era Deus (João 1: 1-3). “Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele
nada do que foi feito se fez.” E inconcebível haver outro testemunho mais forte
que este acerca de Sua existência não-criada, e de Sua natureza divina. Aqui Ele
é intitulado como a Palavra, cujo correlato não é o Pai, mas Deus (deixando
lugar, portanto, para o Espírito Santo). No entanto, para que Sua própria consubstancialidade fosse enfatizada, Ele é de forma cuidadosa e definitivamente
declarado Deus57. Voltando no tempo, antes que houvesse o próprio tempo e a
criação, tão longe quanto você possa imaginar, “no princípio era o Verbo”. Em
linguagem é totalmente precisa: Ele estava com Deus (não no sentido de vir a
ser ou chegar a ser), mas de que “Ele estava” em Seu absoluto ser. Todas as coisas
“vieram à existência” por meio dEle. Ele era o Criador de maneira tão completa
56 A doutrina blasfema deÁrio foi um ramo do gnosticismo, talvez o menos ofensivo na aparência,
mas direta e inevitavelmente o mais destrutivo para a glória do Filho como Deus, resultando
na ruína das bases da redenção. O unitarismo moderno nega que o Senhor Jesus seja mais que
um homem, negando também seu nascimento sobrenatural. N o entanto, Socino asseverou
a singular modificação de tal estado após Sua ressurreição, constituindo-O como objeto
apropriado da adoração divina. Por um lado, Ario pareceu se aproximar da verdade de Sua pre­
existência antes de vir ao mundo, reconhecendo que Ele, o Filho de Deus, fez o universo, mas
manifestou que Ele próprio era um ser criado, a primeira e mais excelente das criaturas. Isso não
era a mesma coisa que a negação sabeliana das distintas personalidades, mas o despojamento do
Filho, e obviamente do Espírito, de Sua verdadeira, distintiva, essencial e eterna divindade.
57 Aqui a ausência do artigo é necessá devido ao fato de que, no grego, meos é o predicado de
o Aoyos, em nenhum sentido inferior a Sua Divindade, o que seria contradizer o próprio
contexto. De fato, se o artigo fosse inserido, isso se tornaria a mais grosseira heterodoxia, pois
a consequencia seria a negação que o Pai e o Espírito são Deus, excluindo-os da Divindade.
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que João acrescenta, “e sem ele nada do que foi feito se fez”. Mais tarde, que
esteve entre os homens, Ele é descrito como o “Filho unigénito que está’ (não
apenas que estava ou esteve) no seio do Pai” (1:18) —declaração incompreensí­
vel e sujeita a erro, a menos que seja para demonstrar que Sua humanidade de
maneira alguma diminuiu Sua divindade, e que a infinita proximidade do Filho
com o Pai sempre existiu.
Reforçando isso, Romanos 9:5 é uma expressão rica e exata da divindade
suprema e original de Cristo, tal qual como a do Pai e do Espírito. Cristo veio,
“o qual é sobre todos, Deus bendito eternamente. Amém”. As tentativas dos
críticos heterodoxos testemunham a incomparável importância da verdade, que
em vão tentam abalar usando esforços artificiais, que somente transparecem
a insatisfação de seus autores. Não há mais enfática afirmação da suprema
divindade em toda a Bíblia; porque a humilhação do Filho na encarnação e na
morte de cruz a torna a mais cabal prova da divina supremacia que pode ser
usada a favor dEle.
O apóstolo diz acerca de Cristo: “[Ele] é imagem do Deus invisível, o
primogênito de toda a criação; porque nele foram criadas todas as coisas que há
nos céus e na terra, visíveis e invisíveis, sejam tronos, sejam dominações, sejam
principados, sejam potestades. Tudo foi criado por ele e para ele. E ele é antes
de todas as coisas, e todas as coisas subsistem por ele” (Colossenses 1:15-17).
Os devaneios dos gnósticos aqui são antecipadamente eliminados, pois Cristo
é mostrado como aquele que possui o governo sobre toda a criação, porque Ele
criou tudo o que existe. Dos mais poderosos seres invisíveis aos menores seres
visíveis; tudo foi criado por Ele e para Ele; e como Ele é antes de tudo, tudo
subsiste pela virtude dEle.
Outra passagem que preciso mencionar é Hebreus 1, onde o apóstolo
ilustra a plenitude da pessoa de Cristo entre diversas escrituras do Antigo
Testamento e os salmos 45 e 102. No primeiro Ele é intitulado como Deus
e homem ungido; no segundo, é reconhecido como o próprio o ETERNO, o
Criador, após ter exposto Sua aflição como Messias rejeitado.
E impossível aceitar a Bíblia sem rejeitar o arianismo como um libelo
hediondo contra Cristo e a verdade; pois é tão certo que Ele se tornou homem
quanto que Ele era Deus antes da criação, o próprio Criador, o Filho e o Eu
Sou.
Alexandre, indignado com as objeções de Ario, e por causa das opiniões
dele, o acusou de blasfêmia. “O ímpio Ario”, exclamou, “o precursor do
anticristo, ousou proferir suas blasfêmias contra o divino Redentor. Ele foi
julgado por dois concílios em Alexandria, e excomungado da igreja. Ele se
retirou para a Palestina, nem um pouco abatido pela desgraça. Muitos se
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simpatizaram com ele, entre os quais dois prelados chamados Eusébio; um de
Cesaréia, o historiador eclesiástico; e outro, bispo da Nicomédia, homem de
imensa influência. Ario manteve uma intensa correspondência com seus amigos,
omitindo suas mais ofensivas opiniões. Alexandre, por sua vez, emitiu advertên­
cias escritas contra ele, e rejeitou todas as intercessões de seus amigos para que
fosse reintegrado à igreja. Mas Ario era um antagonista bastante esperto. Ele é
descrito na História como uma pessoa alta e graciosa, calmo, pálido, de aparência
branda; de discurso popular, mas com argumentação afiada; de vida austera e
irrepreensível; agradável no trato com os demais. Porém, debaixo de um exterior
humilde e contido, ele dissimulava fortes sentimentos de vaidade e ambição. O
adversário tinha habilmente escolhido seu instrumento. O fato de aparentemente
possuir tantas virtudes o qualificava para o propósito do inimigo. Ele não teria
tanto poder para enganar se não fosse tal fachada de justiça.
A P r im e ir a I m p r e ssã o d e C o n s t a n t in o
so br e a C o n t r o v é r s ia
A dissensão logo se tornou tão violenta que julgou-se necessário apelar
para o imperador. Primeiro ele considerou a questão absolutamente leviana e
sem importância, e escreveu uma carta para Alexandre e Ario, censurando-os
por contender por assuntos tão vãos e por diferenças imaginárias, e recomen­
dando que suprimissem todos os profanos sentimentos de animosidade, para
viver em paz e unidade.58 E mais que provável que o imperador não fizesse a
menor ideia de como era séria a natureza da disputa, caso contrário, ele jamais
se referiria ao caso como frívolo e sem importância. No entanto, se a carta foi
mesmo redigida por Hosius, bispo de Córdoba, como em geral se acredita, este
não podia alegar ignorância de seu conteúdo; e teve de estruturar o documento
de acordo com os sentimentos expressos de Constantino, e não de acordo com
o próprio julgamento. A carta foi elogiada por muitos como sendo modelo de
sabedoria e moderação, e, se não fosse a questão de maior abrangência que fixar
a data da Páscoa, realmente mereceria tal elogio. Mas o cerne era a divindade e
a glória de Cristo, e, consequentemente, a salvação da alma.
Hosius foi enviado ao Egito como emissário imperial, a cargo da resolução
do problema. Porém o cenário que encontrou devido às discussões sobre o tema
era tão grave, que ambas as partes se recusaram a ouvir as advertências do bispo,
mesmo que acompanhadas da autoridade do soberano do mundo.
58 Veja a carta em Vida de Constantino, de Eusébio, volume 2.
- ' -V .
O C o n c íl io
C
: 11
de
N
ic é ia
onstantino agora se via obrigado a analisar com maior atenção a
natureza da disputa. Ele começou a entender que a questão não era
leviana, mas de essencial e extrema importância. Decidiu convocar uma
assembléia de bispos, para estabelecer a verdadeira doutrina e diminuir para
sempre, como esperava, a propensão à hostilidade. Todo o aparato necessário
para a viagem dos bispos foi custeado às expensas do império, como se fosse
uma questão de Estado.
No mês de junho de 325 d.C., o primeiro concílio geral da igreja se
reuniu em Nicéia, na Bitínia. Cerca de 318 bispos estavam presentes, além de
grande número de sacerdotes e diáconos. “A nata dos ministros de Deus”, como
descreveu Eusébio, “de todas as igrejas que abundavam na Europa, África e
Ásia se encontraram”. O espetáculo era inteiramente novo, e ninguém estava
mais surpreso com tal novidade que os próprios bispos. Poucos anos haviam se
passado desde que eles foram escolhidos como alvo da mais cruel perseguição.
A eminência deles os tornou as principais vítimas da política de extermínio do
governo. Muitos carregavam no próprio corpo as marcas de seu sofrimento por
Cristo. Sabiam o que era sofrer exílio, trabalhar em minas, serem expostos a todo
tipo de humilhação e insulto. Mas agora tudo mudara, e mudara tanto que mal
podiam acreditar que fosse verdade, e que não era apenas um sonho. Os portões
do palácio lhes foram escancarados, e o imperador do mundo iria atuar como
moderador em uma reunião deles.
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I g r e ja - capítulo 11
Nada podia confirmar e manifestar ao mundo com tamanha clareza
a triste queda da igreja e sua sujeição ao Estado, que a posição do imperador
nesses concílios. Ele só chegou a Nicéia em 3 de julho. No dia seguinte, os
bispos se reuniram no hall do palácio, preparado especialmente para o encontro.
Eusébio escreveu que todos se sentaram em profundo silêncio, enquanto os
maiores oficiais do Estado e pessoas de notoriedade adentravam o recinto,
estando os bispos em indescritível expectativa pela aparição do imperador. Por
fim, Constantino entrou esplendidamente vestido: os olhos dos bispos ficaram
fascinados pelo ouro e pedras preciosas de seus trajes. A assembléia inteira
se levantou para honrá-lo. Ele se dirigiu a um trono dourado que lhe fora
preparado, e ali ficou, em respeitosa deferência aos dignitários espirituais, até que
lhe foi solicitado sentar. Após a entoação de um hino de louvor, ele discursou
sobre a importância da paz e da união. O concílio se reuniu por cerca de dois
meses e, ao que parece, Constantino esteve presente à maior parte das sessões,
ouvindo com paciência e conversando com os diferentes prelados.
O C redo N
ic e n o
A celebrada confissão de fé geralmente denominada de “Credo Niceno” (ou
Credo de Nicéia) foi o resultado de longas e solenes deliberações da assembléia.
Eles se posicionaram contra as opiniões de Ario, e firmemente mantiveram as
doutrinas da santa Trindade, da divindade de Cristo e de Sua igualdade com o
Pai em poder e glória. O próprio Ario foi trazido diante do concílio, e questionado
acerca de sua fé e doutrina; e não hesitou em repetir as falsas doutrinas que haviam
destruído a paz da igreja. Os bispos, à medida que Ario expunha suas blasfêmias,
em conjunto taparam os ouvidos e bradaram que tais vilanias fossem declaradas
anátema, juntamente com o autor delas. Atanásio, embora naquela época ainda
fosse apenas um diácono, chamou a atenção de todo o concílio por seu zelo na
defesa da fé verdadeira, e por sua sagacidade na desarticulação dos argumentos
falaciosos dos heréticos. Falaremos mais acerca do nobre Atanásio depois.
Esse famoso credo foi assinado por todos os bispos presentes, com exceção
de uns poucos arianos. A decisão do concílio foi apresentada a Constantino, que
imediatamente reconheceu o unânime consentimento da assembléia como obra
de Deus, e recebeu o documento com reverência, declarando que todos os que
se recusassem a se submeter ao credo deveriam ser banidos. Ao ouvirem isso, por
causa do medo, os arianos também assinaram a declaração de fé aprovada pelo
concílio. Com isso, se abriram à acusação de serem homens desonestos. Apenas
dois bispos, Segundo e Teonas, ambos egípcios, continuaram fiéis a Ario; e foram
R oma
e seus
G o vernantes
(313 d.C. - 397 d.C.) 1 2 5 5
banidos junto com ele para Ilíria. Eusébio de Nicomédia e Teognis de Nicéia foram
condenados três meses depois, e sentenciados pelo imperador ao desterro. Severas
penalidades foram impostas aos seguidores de Ario: todos os livros dele foram
queimados, e esconder qualquer um de seus escritos se tomou uma ofensa capital.
Tendo encerrado sua missão, os bispos voltaram às respectivas províncias. Além da
solene declaração sobre a doutrina em pauta, eles finalmente resolveram a questão
da celebração da Páscoa59, e outras que foram trazidas diante da assembléia.
C o n s t a n t in o M u d a
de
O p in iã o
Como o imperador não tinha conceitos independentes sobre assuntos ecle­
siásticos, e nenhum discernimento espiritual sobre as controvérsias doutrinárias,
a continuidade do favor imperial não era algo definitivo. Em pouco mais de dois
anos, a opinião de Constantino foi totalmente mudada. Esses dois anos foram
cheios de acontecimentos na história doméstica de Constantino, e causaram
consequências muito mais sérias que uma mudança de mente para o arianismo.
No mesmo ano que o Concílio de Nicéia foi convocado, ele deu ordens privadas
para a execução de Crispo, seu filho mais velho, e para o estrangulamento de
sua própria esposa, Fausta, em um banho quente. Constantino e Fausta haviam
sido casados por cerca de vinte anos. A História não encontra razão para tais
atos tenebrosos a não ser pura e mesquinha inveja. Diz-se que a sabedoria e
bravura de Crispo, na derrota final de Licínio, incitaram os ciúmes de seu pai,
provavelmente fomentados por Fausta, madrasta de Crispo. Amargurado pela
crueldade que fizera com seu próprio filho, ele ordenou a morte de Fausta por
remorso e tormento. Como já expressamos um julgamento bastante categórico
contra a natureza ímpia da ligação Estado-Igreja, falaremos sobre a vida privada
do imperador para que o leitor possa concluir a idoneidade, ou a falta dela, de
alguém tão cheio de sangue nas mãos para presidir uma reunião cristã. Desde
então a igreja estatal tem sido exposta à mesma profanação.
59 Desde o princípio, as igrejas orientais celebravam o festival da Páscoa em comemoração à cru­
cificação de Cristo, o que correspondia à Páscoa dos judeus, no 14? dia do mês. Isso pode ter
surgido do fato de no Oriente haver muitos judeus convertidos ao cristianismo, já as igrejas
ocidentais celebravam a Páscoa em comemoração à ressurreição. Tal diferença deu lugar a uma
longa e impetuosa controvérsia. Após muita contenda entre as igrejas orientais e ocidentais,
ficou acertado pelo Concílio de Nicéia que a Páscoa seria celebrada em comemoração à ressur­
reição. Portanto, o dia certo da Páscoa é o domingo seguinte ao 14? dia da lua pascal, mais ou
menos por volta do dia 21 de março. Ou seja, se o 14? dia for um domingo, a Páscoa será no
domingo posterior. Pode, enfim, ser comemorada nos cinco domingos compreendidos entre
22 de março e 25 de abril.
256 I A H
is t ó r ia d a
I g r e ja - capítulo 11
Constância, viúva de Licínio e irmã de Constantino, exercia enorme
poder sobre o irmão. Ela simpatizava com os arianos, e estava sob a influência
deles. Em seu leito de morte, no ano 337 d.C., ela conseguiu convencer seu
irmão que uma injustiça havia sido cometida, e o persuadiu a convidar Ario para
a corte. Assim Constantino fez, e Ario parece ter apresentado ao imperador uma
confissão de sua fé. Ario colocou em termos bem gerais sua crença na doutrina
do Pai, do Filho e Espírito Santo, e implorou que o imperador pusesse um fim
às especulações tolas, terminando de vez com o cisma e, dessa forma, unidos
como um só, todos orassem por paz para o reinado e para toda a família de
Constantino. Através de uma confissão plausível e de seus discursos agradáveis,
ele conseguiu seu objetivo. Constantino se deu por satisfeito, e desta vez Ario
e seus seguidores figuravam no topo do favor imperial. Os banidos foram
chamados de volta. Uma lufada do ar real mudou o aspecto exterior de toda a
igreja. Agora o partido ariano detinha a incomparável influência do imperador,
e eles se apressaram em fazer uso dela.
A t a n á s io , B is p o d e A l e x a n d r ia
Atanásio desempenhou um papel de destaque no Concílio de Nicéia. Seu
zelo e habilidades o qualificaram como líder do partido ortodoxo, e como o mais
poderoso antagonista dos arianos. No ano 326 d.C., com a morte de Alexandre,
ele foi elevado à diocese de Alexandria por aclamação universal de seus irmãos.
Nessa época ele estava com trinta anos de idade e, conhecendo tanto as honras
como os perigos do cargo, preferiu uma posição de menor responsabilidade.
Mas acabou cedendo aos sinceros desejos de sua afetuosa congregação. Ele se
manteve como bispo por quase cinquenta anos. Sua longa vida foi devotada à
obra do Senhor e à verdade. Ele continuou firme na fé e inflexível até o fim em
seu propósito, em concordância à nobre posição que defendeu no Concílio de
Nicéia. Para ele, a divindade de Cristo não era mera opinião especulativa, mas
a fonte do vigor da vida cristã. E tais coisas não são encontradas em nenhum
outro lugar, como o apóstolo nos assegurou: “E o testemunho é este: que Deus
nos deu a vida eterna; e esta vida está em seu Filho. Quem tem o Filho tem a
vida; quem não tem o Filho de Deus não tem a vida” (1 João 5:11-12). Essa
vida habita no unigénito Filho de Deus. Ele próprio é a “vida eterna”. E essa
vida, para o louvor da glória da graça de Deus, é dada a todos os que crêem no
verdadeiro Cristo de Deus. Ao recebermos a Cristo recebemos a vida eterna, e
nos tomamos filhos de Deus - herdeiros de Deus - e co-herdeiros com Cristo.
Essa vida não é propriedade de nenhuma criatura, por mais sublime que seja.
Pelo poder de Deus, os santos anjos têm uma existência abençoada e ininter-
R o m a e se u s G o v e r n a n te s
(313 d.C. - 397 d.C.) | 257
í
rupta; mas, pela graça de Deus, o cristão tem a vida eterna por meio da fé em
Cristo. Nada pode ser mais fatal para o bem-estar da alma que a doutrina de
Ario. Mas retornemos à nossa história.
Enquanto a promoção de Atanásio à diocese de Alexandria dava muita
alegria e esperança aos seus amigos, ela enchia seus inimigos de amargo ressen­
timento. O que agora viam era o grande líder dos católicos60, o bispo da igreja
que expulsara Ario, apoiado pela simpatia do povo e por centenas de bispos
que juraram fidelidade ao renomado bispo de Alexandria. Eles também sabiam
de seu poder e incansável zelo em defesa dos decretos do Concílio de Nicéia, e
devem ter ponderado que se em um âmbito tão restrito como aquela reunião a
influência de Atanásio se mostrou forte, o que poderiam esperar agora que ele
fora colocado em um local de tanta importância? Razão mais suficiente para
deixarem seus planos de lado e se unirem para derrotá-lo.
a
A t a n á sio C o n t e st a
A u t o r id a d e d e C o n s t a n t in o
Eusébio de Nicomédia primeiro recorreu a medidas aparentemente amigáveis
com Atanásio. Seu objetivo era induzi-lo a reintegrar Ário à comunhão da igreja;
mas, ao falhar nisso por completo, influenciou o imperador a obrigar Atanásio a
fazê-lo. Um mandato imperial foi expedido ordenando que Ario e seus seguidores
fossem recebidos novamente na igreja católica. O édito também declarava que se o
bispo não quisesse obedecer, seria deposto de sua localidade e enviado ao exílio. No
entanto, Atanásio não era um homem de se deixar intimidar por éditos imperiais,
e com firmeza respondeu que não reconhecia pessoas que haviam sido condenadas
por um decreto da igreja inteira. “Para sua grande surpresa, Constantino agora
descobria”, diz Milman, “que um édito imperial - o qual deveria ser obedecido com
total submissão de um extremo ao outro do império romano, mesmo se ordenasse
uma completa revolução política ou colocasse em risco os bens e privilégios de
milhares de pessoas - fora recebido com deliberada e resoluta desconsideração por
um simples bispo cristão. Durante dois reinados, Atanásio contestou a autoridade
do imperador”61. Ele enfrentou perseguição, calúnias, exílio; sua vida frequente­
mente esteve em perigo por causa da grande e fundamental verdade: a divindade
do maravilhoso Senhor. Ele enfrentou o martírio, não pela absurda distinção entre
cristianismo e paganismo, mas pela doutrina central da fé cristã.
60 O termo Igreja Católica, no sentido dado por Constantino, significa simplesmente a igreja
estabelecida.
61 História do Cristianismo, volume 2.
258 I A H
is t ó r i a d a
Ig r e ja - capítulo 11
Uma sucessão de denúncias contra Atanásio foi apresentada ao imperador
pelos arianos, ou melhor, pelos partidários de Eusébio. Embora esteja fora
de nosso propósito entrar em muitos detalhes; ainda temos de traçar a linha
prateada um pouco mais sobre essa nobre e fiel testemunha.
A acusação mais pesada era de que Atanásio enviara uma grande soma
de dinheiro para uma pessoa no Egito com o objetivo de ajudá-lo a traçar um
plano de conspiração contra o imperador. Ele foi intimado a comparecer diante
do tribunal e responder à acusação. O prelado obedeceu e se apresentou a
Constantino. Mas a presença de Atanásio, homem de notável poder sobre a mente
dos demais, por um momento pareceu intimidar a alma do imperador. As frívolas
e infundadas denúncias foram triunfantemente refutadas pelo bispo diante do
tribunal de seus inimigos, e o seu caráter imaculado ficou comprovado acima de
qualquer suspeita. O efeito da presença de Atanásio sobre o imperador foi de tal
ordem que este o considerou um homem de Deus, atribuindo aos seus acusadores
a autoria das turbulências e divisões. Porém essa impressão durou pouco, pois
Constantino continuou sofrendo a influência do partido de Eusébio.
* * *
O C o n c íl io
de
T ir o
Em 334 d.C., Atanásio foi convocado a comparecer diante do concílio
em Cesaréia. Ele se recusou alegando que o tribunal era composto por seus
inimigos. No ano seguinte, foi citado diante de outro concílio a ser realizado em
Tiro pela autoridade imperial; e desta vez obedeceu. Mais de cem bispos estavam
presentes; uma comissão do imperador direcionou o processo. Uma multidão
de acusações foi apresentada contra o destemido prelado; e a mais tenebrosa, e
a única a que iremos nos ater, era o duplo crime de magia e assassinato. Foi dito
que ele matou Arsênio, um bispo de Mileto, e cortou uma das mãos dele para
usá-la em rituais de magia. Atanásio estava preparado para isso. O Deus da
verdade estava com ele. Calmamente perguntou se alguém presente ali conhecia
Arsênio, pois este era um homem bastante conhecido. De repente um homem
foi trazido à corte, o qual estava envolvido em uma capa dos pés à cabeça.
Atanásio primeiro descobriu a cabeça do homem. O homem era o supostamente
assassinado Arsênio. Depois ele expôs suas mãos; e um exame comprovou que
era mesmo Arsênio, vivo, inteiro e não mutilado. O partido de Ario fizera o
máximo para esconder Arsênio, mas o Senhor estava com Seu inocente servo, e
os amigos dele conseguiram encontrá-lo. A malícia dos inescrupulosos arianos
ficou patente, e a inocência de Atanásio, demonstrada.
R o m a f. s e u s G o v e r n a n t e s
(313 d.C. - 397 d.C.) j
Porém os implacáveis adversários do bispo eram prolíficos em suas
denúncias contra ele. Mais uma vez ele foi ordenado a se apresentar em
Constantinopla para respondê-las perante o imperador.
As antigas denúncias ficaram para trás, porém, desta vez uma nova acusação
foi escolhida, habilmente tramada com o alvo de despertar a desconfiança do
imperador. Eles afirmavam que Atanásio havia ameaçado interromper o fluxo
de navios carregados de cereais do porto de Alexandria para Constantinopla.
Isso significaria que na nova capital haveria fome. Seja por ter acreditado na
denúncia ou por desejar remover alguém com tanta influência, esse absurdo
atingiu o orgulho do imperador que acabou por bani-lo para Treves, na Gália.
A injustiça da sentença é inquestionável.
Á M orte
de
Á r io
Nem Constantino nem Ário sobreviveram muito tempo após o exílio de
Atanásio. Ário assinou um credo ortodoxo; Constantino aceitou a confissão
dele e ordenou que Alexandre, bispo de Constantinopla, o recebesse de volta à
comunhão da igreja no dia seguinte, um domingo. O bispo, que tinha quase
cem anos, ficou bastante angustiado com as ordens imperiais. Entrou no templo,
e orou fervorosamente para que o Senhor impedisse tal profanação. Na noite
do mesmo dia, Ário estava falando alegremente, em tom de triunfo, sobre a
cerimônia marcada para a manhã seguinte. Mas o Senhor havia decretado o
contrário; Ele ouviu a oração de Seu servo idoso. Naquela noite o grande herege
morreu. Seu fim é relatado em circunstâncias que nos lembram as do traidor
Judas. O impacto que a notícia teve sobre Constantino não nos é informado;
mas ele próprio morreu logo depois, no vigésimo sexto ano de seu reinado.62
R eflexões S o b r e
d o R e in a d o
os
de
G r a n d e s Ev e n t o s
C o n s t a n t in o
Antes de avançarmos com nossa história geral, será útil pararmos por
um momento, e considerarmos o significado das grandes transformações que
ocorreram, tanto na condição da igreja quanto na do mundo durante o reinado
de Constantino, o Grande. Não seria exagero dizer que a igreja enfrentou a
maior crise de sua história; e que a ruína da idolatria pode ser considerada o mais
importante evento da história mundial. Quase imediatamente após o dilúvio,
62 História da Igreja, de Robertson, volume 1.
260
I A H i s t ó r i a d a I g r e j a - capítulo 11
a idolatria prevaleceu entre as nações, e Satanás, por meio de seus artifícios, se
tornou objeto de adoração. Mas, por intermédio de Constantino, no mundo
romanizado, o sistema inteiro da idolatria caiu; e apesar de não derrotado,
certamente recebeu uma ferida mortal.
A igreja, sem dúvida, perdeu muito por causa de sua união com o Estado.
Ela não mais existia como uma comunidade separada, e não era mais governada
exclusivamente pela vontade de Cristo. Ela havia abandonado sua independên­
cia, perdido seu caráter celestial, e se tornado, intrinsecamente identificada, com
as paixões e interesses do poder dominante. Tudo isso é deplorável ao extremo,
e fruto de sua própria incredulidade. Mas, por outro lado, o mundo ganhou —e
muito - com a mudança. Isso não pode ser ignorado em nossa lamentação pela
decadência da igreja. O estandarte da cruz estava erguido por todo o império;
Cristo era publicamente anunciado como único Salvador da humanidade; as
santas escrituras eram reconhecidas como Palavra de Deus, único guia infalível
e seguro para a felicidade eterna. Antes mesmo de estar conectada ao poder
civil, a situação da igreja professa era de absoluto materialismo, e com certeza ela
pensou mais em seu próprio bemestar que em sua missão de abençoar outros.
No entanto, Deus pôde agir por meio dessas novas oportunidades, e apressar o
desaparecimento das terríveis abominações da idolatria no mundo romano.
A legislação geral de Constantino traz evidências de um trabalho silencioso
dos princípios cristãos; e os efeitos dessas leis humanas seriam sentidas muito
além do círculo da comunidade cristã. Ele decretou leis que possibilitavam a
melhor observância do domingo; contra a venda de crianças para a escravidão,
hábito comum entre os pagãos; e também contra o sequestro de crianças com
o propósito de vendê-las, e muitas outras de cunho social e moral, que já foram
mencionadas nos capítulos anteriores. Mas o grande fato que influenciou seu
reinado foi a exterminação dos ídolos, e a elevação de Cristo. Diz-se que até os
etíopes e ibéricos se converteram ao cristianismo nesse período.
Os
F ilh o s d e C o n s t a n t i n o
(de 337 a 361 d.C.)
Constantino, o Grande foi sucedido por seus três filhos: Constantino II,
Constâncio e Constante. Eles haviam sido educados na fé do evangelho, foram
nomeados Césares por seu pai, e após sua morte dividiram o império entre
si. Constantino ficou com a Gália, Hispânia e Britânia; Constâncio, com as
províncias asiáticas e com a capital, Constantinopla; e Constante ficou com
a Itália e a África. O início do novo reinado caracterizou-se - como habitual
R o m a e seu s G o v e r n a n te s
i
(313 AC. - 397 d.C.) | 261
naquela época - pelo assassinato dos parentes que no futuro poderiam cobiçar o
trono. E, somado às antigas e costumeiras intrigas e hostilidades políticas, agora
havia um novo elemento: a controvérsia religiosa.
O primogênito, Constantino II, era favorável aos católicos, e marcou o
início de seu reinado trazendo Atanásio da Gália e o recolocando na diocese de
Alexandria. Mas no ano 340 d.C., Constantino II foi morto em uma invasão
na Itália; e Constante tomou posse dos domínios do irmão, tornando-se,
portanto, soberano sobre dois terços do império. Ele era favorável às decisões
do Concílio de Nicéia, e aderiu firmemente à causa de Atanásio. Já Constâncio,
sua mulher, e toda sua corte eram partidários do arianismo. Assim começou a
guerra religiosa entre os dois irmãos, entre Ocidente e Oriente, prosseguindo
sem justiça ou humanidade, sem nem mencionar o espírito pacífico do cris­
tianismo. Constâncio, como seu pai, interferiu bastante nos assuntos da igreja;
ele se julgava um teólogo, e durante seu reinado o império foi incessantemente
agitado por controvérsias religiosas. Os concílios se tornaram tão frequentes que
estabelecimentos públicos eram bastante usados para abrigar os bispos em suas
constantes locomoções, pois novas reuniões eram exigidas de ambas as partes
para se opor às reuniões anteriores. Mas como os principais eventos do período,
bem como a linha prateada da graça de Deus, estão conectados a Atanásio,
retornemos à história dele.
A H is t ó r ia
de
A t a n á sio
Após um exílio de dois anos e quatro meses, o jovem Constantino
recolocou Atanásio em sua antiga diocese, onde seu rebanho o acolheu com
uma alegre recepção. Porém, a morte deste príncipe expôs Atanásio a uma
segunda perseguição. Constâncio, descrito como um homem presunçoso, mas
pusilânime, logo se tornou um cúmplice secreto dos eusebianos. No final de
340 d.C., ou no início de 341 d.C., um concílio se reuniu em Antioquia para a
dedicação de uma esplêndida igreja construída por Constantino, o pai. Estima-se
em cerca de 97 o número de bispos presentes, dos quais 40 eram eusebianos.
Entre os cânones aprovados, e com certa aparência de justiça, ficou decidido
que um bispo deposto por um sínodo não poderia retomar suas atividades
episcopais suspensas, até que fosse absolvido pelo julgamento de outro sínodo
igual em autoridade. Essa lei evidentemente foi aprovada como uma referência
especial ao caso de Atanásio; e o concílio pronunciou, ou melhor, confirmou, sua
destituição. Gregório, capadócio de caráter violento, foi apontado para a diocese
de Alexandria, e Filágrio, o prefeito do Egito, recebeu ordens de apoiar o novo
primaz com os poderes civis e militares da província. O povo se recusou a ter um
262 [ A H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 11
novo bispo nomeado pelo imperador, porque Atanásio era o favorito na opinião
popular. Houve cenas de desordem, excesso, e profanação. “Necessariamente, a
violência teve de ser usada para apoiar a iniquidade”, diz Milner, “e um príncipe
arianista foi obrigado a caminhar nos passos de seus predecessores pagãos para
manter o que ele chamava de igreja.”
Atanásio, oprimido pelos prelados asiáticos, se retirou de Alexandria e
passou três anos em Roma. Júlio, pontífice romano, junto com um sínodo de
cinquenta bispos italianos, o declarou inocente, e o confirmou na comunhão da
igreja. Nada menos que cinco credos foram redigidos pelos bispos do Oriente
em assembléias realizadas em Antioquia entre os anos de 341 e 345 d.C., com
o objetivo de dissimular suas verdadeiras opiniões. E nenhum deles está livre
de elementos do arianismo, embora as posições mais ofensivas de Ário fossem
professamente condenadas. Os dois imperadores, Constâncio e Constante, agora
estavam ansiosos por fechar a brecha que existia entre as igrejas do Oriente e
Ocidente, e em concordância, convocaram um concílio em Sárdica, na Ilíria,
em 343 d.C., para resolver os pontos mais polêmicos. 94 bispos do Ocidente
e 21 do Oriente tendo se congregado e analisado o assunto de ambos os lados,
decidiram a favor de Atanásio: o partido ortodoxo restaurou o perseguido primaz
de Alexandria, e declararam inimigos da verdade todos os que se opunham a
ele. Nesse meio-tempo o intruso Gregório morreu, e Atanásio, após um exílio
de oito anos foi recebido com imenso júbilo em seu retorno a Alexandria. “A
entrada do arcebispo em sua capital”, certo autor escreveu, “foi uma triunfante
procissão: a ausência e a perseguição fizeram elevar a estima dos alexandrinos
em relação a Atanásio; e sua fama se espalhou da Etiópia à Britânia, sobre toda
a extensão do mundo cristão.”
Após a morte de Constante, amigo e protetor de Atanásio, em 350 d.C., o
covarde Constâncio sentiu que chegara o tempo de dar livre curso às suas próprias
injúrias contra Atanásio, que não tinha mais Constante para defendê-lo. Mas a
dificuldade residia em como fazer isso. Se ele decretasse a morte do mais eminente
cidadão de Alexandria, sua cruel ordem seria cumprida sem hesitação; mas a
condenação e morte de um bispo tão popular tinham de ser planejada com critério,
com tempo adequado e sob uma aparência de justiça. Os arianos se puseram a
trabalhar; renovaram suas maquinações e mais concílios foram convocados.
Os
C o n c ílio s de A r le s e M ilã o
No ano 353 d.C., houve um sínodo em Arles, e em 355 d.C., outro,
em Milão. Mais de 300 bispos estavam presentes nesse último. As sessões do
concílio aconteceram no palácio, sob o olhar de Constâncio e seus guardas. A
R oma
e seus
G o vernantes
(313 d.C. - 397 d.C.) [ 2 6 3
condenação de Atanásio foi engenhosamente apresentada como a única solução
capaz de restaurar a paz e união da igreja católica. Mas os amigos do primaz se
mostraram fiéis ao seu líder e à causa da verdade. Asseguraram ao imperador, no
mais valoroso e cristão espírito, que nem a esperança de seu favor nem o medo
de seu desagrado prevaleceriam sobre eles, a ponto de ajudarem na condenação
de um inocente e honrado servo de Cristo. O debate foi longo e obstinado;
despertou-se um interesse enorme no caso, e os olhos de todo império se fixaram
em um simples bispo. Mas o imperador ariano estava impaciente, e antes do
concílio de Milão ser dissolvido, o arcebispo de Alexandria foi solenemente
condenado e deposto. Deflagrou-se uma perseguição generalizada contra todos
os que o apoiaram diretamente, e também com o objetivo de impor conformi­
dade à opinião do imperador. A perseguição se mostrou tão cruel que o partido
ortodoxo proclamou que os dias de Nero e Décio haviam retornado. O próprio
Atanásio buscou refúgio nos desertos do Egito.
Á M orte
e os
S u c e sso r e s
de
C o n s t â n c io
No ano 361 d.C., morreu Constâncio, patrono dos arianos. Como seu
pai, ele adiou o batismo até pouco antes de sua morte. Os prósperos dias dos
seguidores de Ario chegavam ao final.
Juliano, comumente chamado de o Apóstata, o sucedeu no trono, e talvez
para demonstrar sua total indiferença quanto à questão teológica em disputa,
ordenou a volta dos bispos que Constâncio havia banido. Após breve reinado de
apenas 22 meses, em uma vã tentativa de reavivar o paganismo, ele morreu de
maneira inesperada: um ferimento causado por uma flecha persa.
Joviano, que imediatamente sucedeu Juliano, professou o cristianismo. Ele
foi o primeiro dos imperadores romanos que mostrou uma evidência clara que
realmente amavam a verdade como ela se apresenta em Jesus. Parece ter sido um
cristão sincero antes de se sentar no trono, pois falou a Juliano, o Apóstata, que
preferia desistir do serviço que prestava ao imperador, do que de sua religião. No
entanto, Juliano o valorizava e o manteve próximo de si até a morte. O exército
se declarou cristão; o Lábaro, que havia sido colocado de lado durante o reinado
de Juliano, estava novamente adiante das tropas. Contudo, Joviano aprendera
com o passado que a religião não podia ser imposta pela força exterior. Por isso
permitiu tolerância irrestrita aos seus súditos pagãos; e no tocante às divisões
entre os cristãos, afirmou que não molestaria ninguém por causa de religião, mas
apreciaria todos os que buscavam a paz e o bem-estar da igreja de Deus. Ao saber
da morte de Juliano, Atanásio retomou a Alexandria para surpresa e alegria de
2 6 4 1A H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 11
seu povo. Joviano lhe escreveu, confirmando-o em seu cargo, e lhe convidando
para a corte. O bispo aquiesceu. O imperador desejava instrução e conselho; e
por meio do intercurso pessoal, ele obteve influência sobre Joviano, a qual seus
inimigos tentaram em vão abalar. Mas o reinado desse príncipe cristão durou
somente oito meses. No dia 17 de fevereiro de 364 d.C., ele foi encontrado morto
em sua cama, supostamente sufocado por carvão vegetal.
Valentiniano e Valente. Joviano foi sucedido por estes dois irmãos; o
primeiro governou o Ocidente, e o segundo, o Oriente. Nas questões da igreja,
diz-se que Valentiniano seguiu os planos de Joviano. Ele se recusou a interferir
em qualquer assunto de doutrinas, mas aderiu firmemente à fé de Nicéia. Como
soldado e estadista, possuía grandes habilidades. Os dois irmãos se expuseram
ao perigo quando professaram o cristianismo no reinado de Juliano; mas depois
Valente se rendeu ao arianismo, por persuasão de sua esposa, que o convenceu
a ser batizado pelo bispo de Constantinopla, um ariano. E dito que o bispo o
obrigou a fazer um juramento de perseguir os católicos. Seja como for, certo
é que logo após seu batismo ele manifestou grande zelo pela causa ariana, e
perseguiu duramente os eclesiásticos por sua adesão à fé nicena.
Sob o édito de Valente, em 367 d.C., Atanásio foi mais uma vez atacado
pelo arianos, inimigos da piedade cristã. Tatiano, governador de Alexandria,
tentou expulsá-lo da cidade, mas o sentimento do povo era tão forte pelo
venerável bispo que por um tempo ninguém ousava cumprir a ordem imperial.
Enquanto isso, Atanásio, sabendo o que se aguardava, silenciosamente se retirou,
permanecendo quatro meses escondido no sepulcro de seu pai. Pela quarta vez
ele fugia de Alexandria. Contudo, Valente, por receio que parecia ter do povo, o
chamou de volta, e lhe permitiu continuar seu trabalho pastoral imediatamente,
até o ano 373 d.C., quando o bispo foi convocado para o descanso celestial.
Valente faleceu em uma batalha contra os godos no ano 378 d.C., após reinar
14 anos.
Q u e S er v iç o A t a n á sio P r e st o u
à
I g r e ja ?
Estamos dispostos a crer que, sob a benção de Deus, ele era um
instrumento para preservar a igreja da heresia de Ário, que ameaçava eliminar do
cristianismo tanto o nome do Senhor Jesus Cristo quanto a fé nEle. O inimigo
almejava um sistema sem Cristo, que em breve resultaria em um completo
abandono do cristianismo. Mas o concílio de Nicéia foi usado por Deus para
destruir os malignos esquemas do diabo. A afirmação da divindade de Cristo
e do Espírito Santo como igual à do Pai foi grandemente abençoada por Deus
R o m a f. s e u s G o v e r n a n t e s
(313 d.C. - 397 d.C.) j 265
naquela ocasião e tem sido até hoje. Embora a igreja tenha sido infiel e tenha
se deixado levar para o mundo, “onde está o trono de Satanás”, o Senhor em
Sua misericórdia levantou uma grande testemunha de Seu santo nome, e da
fé de Seus santos. Historiadores civis e eclesiásticos prestam o mais honrado
testemunho da habilidade, atividade, constância, abnegação e incansável zelo de
Atanásio em defesa da grande doutrina da Trindade santa. “Reténs o meu nome,
e não negaste a minha fé” são palavras que, sem dúvida, se referem à fidelidade
de Atanásio e seus amigos, bem como aos fiéis de tempos passados.
Os vencedores mencionados nessa epístola estavam aqui também, sem
dúvida; mas o Senhor não permitiu que fossem vistos nem registrados pelos
historiadores. Eram os escondidos de Deus, alimentados pelo maná escondido.
Estes tinham um lugar de intimidade com o Senhor na glória. “Ao que vencer
darei a comer do maná escondido e dar-lhe-ei uma pedra branca, e na pedra
um novo nome escrito, o qual ninguém conhece senão aquele que o recebe”
(Apocalipse 2:17).
O C r is t ia n is m o
no
R e in a d o
de
G r a c ia n o
Em 375 d.C., Valentiniano foi sucedido por seu filho Graciano, de
apenas 16 anos de idade. Ele admitiu como companheiro nominal de governo
seu meio-irmão, o jovem Valentiniano; e logo depois escolheu Teodósio como
companheiro ativo, a quem confiou a soberania do Oriente. Graciano foi educado
na fé cristã, e deu evidências de ser um verdadeiro crente. Ele foi o primeiro dos
imperadores romanos que rejeitou o título e as vestes de sumo sacerdote da antiga
religião. Como um cristão poderia, disse ele, ser sumo sacerdote da idolatria? É
uma abominação para o Senhor. Assim vemos na piedade precoce deste jovem
governante os efeitos abençoados do testemunho de alguém fiel. Que nova e
surpreendente coisa: um príncipe piedoso subir ao trono dos degenerados césares
aos 16 anos! Mas Graciano era tão humilde quanto piedoso.
Consciente da própria ignorância nas coisas divinas, ele escreveu a
Ambrósio, bispo de Milão, e o chamou para visitá-lo. “Venha para que me
ensines as doutrinas da salvação aos que são verdadeiros crentes, não para que
possamos estudar com a finalidade de debater, mas para que a revelação de Deus
possa habitar mais intimamente em meu coração.” Ambrósio lhe respondeu com
êxtase de satisfação: “Excelentíssimo príncipe cristão, modestamente, não foi a
falta de afeição que até aqui me impediu de visitá-lo. Se, contudo, não estou
contigo pessoalmente, tenho estado em minhas orações, nas quais encontramos,
ainda mais, as atribuições de um pastor”.
2 6 6 I A H is t ó r i a
da
I g r e ja - capítulo 11
O jovem imperador era popular; mas sua ligação com o clero ortodoxo,
o tempo que passava em sua companhia, a influência que exerciam sobre ele
(em especial Ambrósio) o expuseram ao desprezo de seus súditos mais belicosos.
Nessa época as fronteiras foram pressionadas ao extremo pelos bárbaros, e
Graciano não conseguiu empreender a conduta de guerra contra eles. Máximo,
aproveitando a insatisfação do exército, liderou a revolta. Graciano, percebendo
o rumo que as coisas tomaram, fugiu com cerca de 300 cavaleiros, mas foi
subjugado e assassinado em Lion, no ano 383 d.C.. Máximo, o usurpador e
homicida, sentou-se no trono do Ocidente. Mais tarde foi derrotado e morto por
Teodósio. Valentiniano, o jovem, ocupou o trono de seu pai.
T e o d ó s io , A p e lid a d o
de
O G rande
A medida de nosso interesse na história dos imperadores romanos será
proporcional ao reconhecimento deles da verdade de Deus, e do tratamento
que dispensaram aos cristãos. Não procuraremos discernir a mão de Deus no
governo deles, pois seria cansativo e infrutífero examinar o que restou tanto
tempo depois. Mas para vermos a mão de Deus, ouvirmos Sua voz e seguirmos
a linha prateada de Sua graça através destes tempos difíceis, temos de nos manter
próximos dEle, e assim nossa experiência será enriquecida. Mas quase tudo
depende, seja para a obra do Senhor ou para nossa própria bênção, da motivação
ou do objetivo com o qual estudamos a história da Igreja, e qual será a consequencia disso. De acordo com este princípio da estima, Teodósio merece um
estudo sério e cuidadoso. Além de imperador romano, ele foi um ministro de
Deus usado para subjugar o arianismo no Oriente, e para abolir a adoração dos
ídolos por todo o império. A idolatria é o pecado humano mais impertinente,
e jamais será sobrepujado até que “se manifeste o homem do pecado, o filho
da perdição, o qual se opõe, e se levanta contra tudo o que se chama Deus, ou
se adora; de sorte que se assentará, como Deus no templo de Deus, querendo
parecer Deus” (2 Tessalonicenses 2:3-4). A plena expressão desta blasfêmia ainda
é futura, e será o sinal de imediato julgamento e o alvorecer do milênio.
Mas o zelo de Teodósio não era apenas negativo. De acordo com a
compreensão que tinha, ele apoiou o cristianismo mais vigorosamente que seus
predecessores. Ele completou o que Constantino iniciou, e o sobrepujou em zelo
e dedicação. Logo após seu batismo, convocou um concílio que se reuniu no dia
2 de maio de 381 d.C., em Constantinopla. Os principais assuntos pelos quais o
concílio foi convocado eram os seguintes: ampliar e dar maior exatidão ao credo
niceno; condenar as heresias, tais como as do arianos, eunomianos, eudoxianos,
sabelianos, apolinarianos e outras; e tomar medidas para a união da igreja.
R oma
* *
e seu s
G o vernantes
(313 d.C. - 397 d.C.) | 2 6 7
ÍC
O s I n v a so r es B á r b a r o s
A maioria de nossos leitores, até os mais jovens, já ouviu sobre o livro “O
Declínio e Queda do Império Romano” - o quarto grande império mundial
anunciado pelo profeta Daniel e por João em Apocalipse. Por algum tempo ele
esteve em declínio, e rapidamente se aproximou de sua ruína, quando Teodósio
foi chamado ao trono. As fronteiras estavam ameaçadas de todos os lados pelos
bárbaros, que habitavam nas cercanias do mundo romano. “Nas margens de cada
um dos grandes rios que limitavam o império”, dizia Dean Milman, “surgiam
hostes de invasores. Os persas, armênios, ibéricos, todos preparados para atravessar
o Eufrates ou a fronteira oriental; o Danúbio já tinha permitido a passagem dos
godos; atrás deles estavam os hunos, em enxames ainda mais formidáveis e
incontáveis; os francos e o resto das nações germânicas estavam aglomerados no
Reno.” Essa extraordinária formação militar de bárbaros invasores irá mostrar
ao leitor um relance da condição do quarto império; e como era fácil para Deus
quebrar as partes de ferro, de bronze, de prata ou de ouro.
Dentro dos limites do mundo romano, a adoração idólatra ainda
continuava imperturbável. Seus milhares de templos, toda a ancestral gran­
diosidade deles e suas cerimônias pomposas cobriam a terra. Os cristãos
mal podiam se virar para qualquer lugar sem verem um templo ou inalarem
o incenso oferecido aos ídolos. Mas o cristianismo havia sido erguido à
mesma categoria de tolerância religiosa. O arianismo e o semiarianismo, nas
suas muitas variações, prevaleciam. Em Constantinopla e no Oriente estas
abominações eram supremas. Outras heresias abundavam. Este era o quadro,
tanto dentro como fora do império, no período da ascensão de Teodósio.
Mas se quiser os detalhes da história civil, o leitor pode buscar nos autores já
mencionados. Somente acrescentaremos que ele foi usado por Deus para deter
por algum tempo o progresso da invasão; para demolir as imagens e alguns
templos de adoração pagã; pára abolir a idolatria; para reprimir a superstição;
para estabelecer no império as decisões do Concílio de Nicéia, e para que a
confissão do cristianismo triunfasse e prevalecesse.
A H
is t ó r ia
R e l ig io sa
de
T e o d ó sio
Agora iremos passar os olhos nos principais eventos da história do grande
Teodósio. No pano de fundo desses fatos encontraremos os melhores comentários
sobre a vida do imperador, o poder do clero e o espírito da época.
268
I A H i s t ó r i a d a I g r e j a - capítulo 11
Teodósio era espanhol. Nos primórdios o cristianismo havia se estabele­
cido na península. Ali sua característica era a firme aderência às doutrinas de
Atanásio desde o início da controvérsia trinitariana. Hosius, um bispo espanhol,
foi o dirigente do Concílio de Nicéia. No final do primeiro ano de seu reinado,
por estar acometido de uma séria doença, Teodósio foi alertado a não protelar seu
batismo, como era costume. Ele mandou chamar o bispo de Tessalônica e então
foi batizado. Alguns afirmam que ele foi o primeiro imperador a ser batizado no
nome da santa Trindade. Sua entrada na comunhão da igreja foi imediatamente
seguida de um édito no qual declarava sua própria fé, e preceituava a religião
aos súditos. “E nosso desejo que todas as nações que são governadas por nossa
clemência e moderação possam aderir firmemente à religião ensinada por São
Pedro aos romanos... De acordo com a disciplina dos apóstolos, e a doutrina
do evangelho, cremos na deidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo, sob igual
majestade, e em uma piedosa Trindade... Além da condenação da justiça divina,
eles deverão esperar sofrer as graves penalidades que nossa autoridade, guiada
pela sabedoria divina, julgar apropriado infligir sobre os tais.”
Esta era a rigorosa e inflexível ortodoxia de Teodósio. Firme, embora
enganado, ele acreditava ser sua tarefa governar como imperador cristão, e os
bispos que consultava, ao invés de amenizar, tendiam a aumentar a severidade
de suas decisões. Em certa ocasião, seu senso de justiça o induziu a ordenar que
alguns cristãos reconstruíssem com o próprio dinheiro uma sinagoga judia, que
havia sido demolida em um tumulto. Mas o vigoroso bispo de Milão interferiu
e o convenceu a revogar a sentença, alegando que não era correto cristãos
edificarem uma sinagoga judia. Neste caso o bispo evidentemente falhou no
tocante à justiça comum. Ele foi menos justo que seu imperador.
As
F a l h a s e V ir t u d e s d e T e o d ó s io
O mais notório defeito de caráter de Teodósio era uma propensão à
violenta ira, embora fosse capaz de se acalmar e ser movido à grande misericórdia
após intensa persuasão, se fosse adequadamente abordado. Temos um fantástico
exemplo disso no perdão que concedeu ao povo de Antioquia. Aconteceu da
seguinte maneira:
No ano 387 d.C., os habitantes se irritaram por causa de um imposto
que o imperador cobrou deles, e como foram rispidamente tratados pelas
autoridades, a quem respeitosamente haviam apelado por alívio, um enorme
tumulto se levantou na cidade. O povo derrubou as estátuas da família real e as
trataram com desprezo. Uma companhia de soldados imediatamente apareceu,
e a sedição foi suprimida. O governador da província, por obrigação de seu
R oma
e seu s
G overnantes
(313 d.C. - 397 d.C.)
cargo, relatou fielmente todo o sucedido. Mas como cerca de 1300 quilômetros
separavam Antioquia de Constantinopla, semanas se passaram antes que uma
resposta chegasse. Isso deu ao povo um espaço de tempo para refletir sobre a
natureza e as consequências do crime que cometeram. Supomos que eles foram
tomados e agitados por medos e expectativas. Eles sabiam que tinham feito
algo seriíssimo, mas eles confessaram seu erro a Flaviano, bispo da cidade, e a
outras pessoas influentes, com garantias de genuíno arrependimento. Por fim,
24 dias após a sedição, os comissários imperiais chegaram, trazendo a palavra do
imperador com a sentença para a cidade de Antioquia. Este mandato imperial irá
mostrar ao leitor como tantas coisas dependiam do humor e disposição mental
de uma única pessoa naquela época.
Antioquia, a metrópole do Oriente, foi rebaixada da condição de cidade,
e subjugada, debaixo da humilhante denominação de aldeia, à jurisdição de
Laodicéia. Ela foi despojada de suas terras, seus privilégios, e de seus proventos.
Os banhos públicos, o circo e teatros foram fechados; cada fonte de abundância
e prazer foi interceptada e, por isso, se suspendeu a distribuição de cereais.
Depois os funcionários imperiais começaram a investigar a culpa dos indivíduos
envolvidos. O cidadão mais nobre e rico de Antioquia apareceu diante do
povo acorrentado; a investigação fez uso da tortura, e a sentença dos culpados
foi pronunciada ou suspensa, conforme o julgamento desses extraordinários
magistrados. As casas dos criminosos foram colocadas à venda; suas mulheres
e filhos foram tirados da abundância e luxo e lançados na mais abjeta miséria;
e havia uma expectativa de derramamento de sangue para finalizar os horrores
daquele dia, que o eloquente Crisóstomo descreveu em imagens vívidas como
sendo o julgamento final do mundo. Mas Deus, que tem o coração dos homens
em Suas mãos, considerando o que Antioquia havia sido nos primórdios da
igreja, moveu os representantes de Teodósio a usarem de misericórdia. É dito
que eles foram às lágrimas com a calamidade do povo; escutaram com respeito
as súplicas urgentes dos monges e eremitas, que desceram em enxames das
montanhas. A execução da sentença foi suspensa, e ficou decidido que um dos
comissários permaneceria na cidade, enquanto os outros voltariam com a maior
rapidez possível para Constantinopla.
A terrível ira de Teodósio havia esfriado. Os representantes do aflito povo
agora tinham uma audiência mais favorável. A mão de Deus estava nisso, pois
Ele ouviu o clamor deles. A graça triunfou em Teodósio. Um perdão geral e
abrangente foi concedido à cidade e aos cidadãos de Antioquia; as portas da
prisão se abriram; os senadores, já desesperados por suas vidas, recuperaram suas
casas e bens. E a capital do Oriente foi restaurada à sua dignidade e esplendor.
Teodósio elogiou o bispo de Antioquia e outros que generosamente intercede­
269
270 I A H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 11
ram por seus angustiados irmãos; e confessou que, se o exercício da justiça é a
mais importante tarefa de um soberano, o favor da misericórdia é o seu mais
extraordinário prazer63.
Pecado
e
A r r e p e n d im e n t o
de
T e o d ó sio
Contudo, a história do tumulto e massacre em Tessalônica, no ano
390 d.C., deixa marcas profundas no caráter de Teodósio. Ao estudar este
período da vida dele, lembramos de Davi, rei de Israel. Nesse caso doloroso, o
inimigo conseguiu uma grande vantagem sobre o soberano cristão; mas Deus fez
com que esses fatos se tornassem grandes bênçãos para a alma do imperador.
Botérico, comandante do distrito e de vários de seus principais oficiais
foram mortos pelo populacho em uma corrida de carruagem. O cavaleiro
favorito do povo havia sido lançado na prisão por um crime notório, e, con­
sequentemente, estaria ausente no dia dos jogos. O populacho, injustamente,
pediu a liberdade dele; Botérico recusou o pedido, e assim começou o tumulto,
e suas terríveis consequências. As notícias exasperaram o imperador, que ordenou
a liberação da espada sobre todos. Ambrósio intercedeu, e Teodósio prometeu
perdão aos tessalonicenses. No entanto, habilmente seus conselheiros militares
insistiram sobre a natureza hedionda do crime, e obtiveram uma ordem para
punir os ofensores; ordem mantida em total segredo do bispo. Os soldados
atacaram o povo indiscriminadamente quando este estava reunido no anfiteatro,
e milhares foram massacrados para vingar a morte dos oficiais.
A mente de Ambrósio ficou cheia de horror e angústia ao ouvir sobre o
massacre. Como servo de Deus, ele se separa do mal, até mesmo diante de seu
mestre imperial. Ele foi para o interior do país para curar sua dor, e evitou a
presença de Teodósio. Mas escreveu uma carta, na qual expunha da maneira
mais solene a profunda culpa do imperador; assegurando que não o permitiria
entrar na igreja de Milão até estar convencido da autenticidade de seu arrependi­
mento. O imperador, nesse período, estava grandemente afligido pelas censuras
de sua própria consciência e das de seu pai espiritual. Ele lamentou amargamente
as consequências de sua irrefletida fúria ao substituir a justiça pela barbárie; e
continuou realizando suas devoções na igreja de Milão. Ambrósio o encontrou
no pórtico e quis se afastar dele, pois era um homem manchado de sangue
inocente. O imperador assegurou ao bispo que sua contrição era genuína; e
ouviu de Ambrósio que remorsos secretos eram insuficientes para expiar ofensas
63 História do Cristianismo, de Milman, volume 3; História da Igreja, de Robetson, volume 1;
História da Igreja, de Milner, volume 2.
Roma
e seu s
G o vernantes
(313 d.C. - 397 d.C.) I 2 7 1
públicas. Então Teodósio mencionou Davi, homem segundo o coração de
Deus. “Tu o imitaste no crime dele; imite-o em teu arrependimento”, declarou
o intrépido bispo.
Teodósio se submeteu a Ambrósio. Por oito meses ele permaneceu em
penitente reclusão; não vestiu seus ornamentos imperiais, até que na época do
natal se apresentou diante do arcebispo, e humildemente rogou sua readmissão
na igreja. “Eu lamento que o templo de Deus, e consequentemente o céu, o
qual está aberto para escravos e mendigos, para mim esteja fechado.” Ambrósio
permaneceu firme, e exigiu algum fruto prático desse arrependimento. Ele
requereu que a partir dali a execução da pena capital fosse prorrogada por 30
dias após a sentença, a fim de que os efeitos calamitosos da ira destemperada
pudessem ser evitados. O imperador concordou prontamente, e depois disso
a entrada na igreja lhe foi permitida. A cena que se seguiu foi comovente. O
imperador, tirando suas vestimentas reais, orou prostrado no chão: “A minha
alma está pegada ao pó; vivifica-me segundo a Tua palavra” (Salmo 119:25). O
povo, comovido por sua dor e humilhação, chorou e orou pelo imperador.
No sermão fúnebre de Teodósio, Ambrósio mencionou que desde então
não se passou um dia sem que o imperador se lembrasse do crime pelo qual fora
traído por sua grande falha - uma fraqueza de temperamento.
R eflexões S o b r e a D isc ip l in a de A m b r ó sio
e a P e n it ê n c ia de T e o d ó sio
Há poucos eventos nos anais da igreja tão interessantes quanto a penitência
do grande Teodósio, e as rigorosas condições para a restauração impostas por
Ambrósio. Despojado da superstição e das formalidades, peculiares da época,
temos diante de nós um caso da mais genuína e salutar disciplina. Não devemos
supor nem por um instante que o comportamento de Teodósio foi o resultado de
fraqueza ou pusilanimidade, mas sim de um real temor de Deus; um sentimento
genuíno de sua culpa, uma consciência sensível, um reconhecimento dos direitos
de Deus, a quem toda a grandeza do mundo está sujeita.
Ambrósio não era arrogante nem hipócrita, como os muitos pontífices
que o sucederam. Ele tinha uma grande afeição pelo imperador, e uma sincera
preocupação pela alma dele, mas o bispo agiu com Teodósio com pleno senso de
sua responsabilidade. Sem dúvida, ele tinha a perfeita consciência da dignidade
que seu cargo lhe investia, e sentia-se obrigado a usá-la em favor da justiça e da
humanidade, e a controlar o poder da soberania terrena: uma classe de poder não
concedido por Deus a um ministro cristão, e que sempre se mostrou, em tempos
A H
is t ó r ia da
I g r e ja - capítulo 11
posteriores, o tipo mais perigoso de poder, é aquele onde um sacerdote possui
total influência sobre a consciência do governante e pode inflamar ou moderar
as paixões sanguinárias da autoridade. No caso de Ambrósio, ele praticou a pura
influência crista. Embora um pouco fora de sua atribuição, ele desempenhou
o papel de vingador dos ultrajados, exercendo a autoridade judicial sobre os
humanos mais vis e sobre os mais poderosos. Mas é sempre desastroso interferir
na ordem estabelecida por Deus, mesmo quando nobres objetivos pareçam ter
sido alcançados.
Em 395 d.C., cerca de quatro meses após sua vitória sobre Eugênio, e o
castigo dos assassinos de Valentiniano, Teodósio, o Grande, morreu em Milão,
por volta dos 50 anos de idade. Ele foi o último imperador a manter a dignidade
do nome romano. Ambrósio também não sobreviveu muito tempo depois da
morte de seu amigo, pois morreu em Milão, em 397 d.C.. Ele aprofundou e
fortaleceu os fundamentos do poder eclesiástico, que influenciaria o cristianismo
nas gerações futuras. Basílio, os dois Gregórios, e Crisóstomo floresceram neste
período.
A H
O
is t ó r ia
In tern a
da
I g r e ja
século que findou com a morte do grande Teodósio e de Ambrósio
tem sido objeto de profundo interesse para o leitor cristão. Aconteceram
eventos significativos relacionados à majestade e glória de Deus e ao
bem-estar da humanidade. De 303 a 313 d.C., no reinado de Diocleciano, a
igreja enfrentou sua mais dura provação. Por dez anos ela esteve na fornalha
ardente; mas ao invés de ser consumida, como seus inimigos imaginavam,
parece que cresceu tanto em número quanto em poder e pureza. Foi permitido
a Satanás fazer o que podia contra ela; e ele incitou e agitou a população pagã
a tal ponto que partes do império pegaram em armas; primeiro para defender a
tradição politeísta; segundo, para arrancar o cristianismo pela raiz, perseguindo
os cristãos e destruindo os livros sagrados deles. Portanto, o século começou
com a grande e definitiva luta entre paganismo e cristianismo, e terminou com
a ruína do primeiro e o completo triunfo do último. A batalha acabou de vez
no quarto século, e a vitória tem concedido o descanso ao cristianismo desde
então.
Essa foi a história externa da igreja, e o cumprimento da palavra do Senhor
nas epístolas a Esmirna e a Pérgamo. Mas há outras coisas que demandam maior
atenção antes de entrarmos no quinto século; e nenhuma área do abrangente
campo que está diante de nós parece ter um clamor mais forte que a esfera e a
influência dos grandes prelados do ocidente e do oriente. Nossos leitores já devem
ter percebido, devido às obrigatórias alusões ao batismo, que a observância de
ritos tinha um imenso peso na mente dos primeiros cristãos. Eles criam que as
2 7 4 | A H i s t ó r i a d a I g r e j a - capítulo 12
águas do batismo purificavam a alma completamente. Consideramos, portanto,
que uma combinação dos dois - ou seja, ao analisarmos brevemente a história do
batismo a partir dos escritos dos Pais, teremos, simultaneamente, a oportunidade
de também conhecer os conceitos que eles tinham, não apenas do batismo, mas
das verdades fundamentais do evangelho.
As
V a r i a ç õ e s E c l e s i á s t i c a s d o B a tis m o
No Novo Testamento há uma perfeita uniformidade, tanto em relação ao
preceito quanto ao exemplo, sobre a questão do batismo; mas em nossos dias, e
desde o começo do terceiro século, encontramos nas igrejas professas inúmeras
variações na teoria e na prática desse importante assunto. Aqueles que não estão
familiarizados com a história eclesiástica naturalmente perguntam quando e
como surgiram tais diferenças entre os cristãos.
Como nosso plano neste livro é descobrir as origens das grandes questões
que tem afetado a paz e a prosperidade da igreja, nos esforçaremos para salientar
o início da história dos batismos eclesiásticos. Usamos o termo eclesiástico como
uma distinção do que é bíblico. Nada proveniente da autoridade divina foi
introduzido após os dias dos apóstolos inspirados. Portanto, nada que varia
daquilo que foi instituído por Cristo e praticado por Seus apóstolos pode ser
chamado de batismo cristão. Fazer alterações é mudar a própria coisa, e transformá-la em algo diferente do original, isto é, em outro batismo. Por esta razão
encontramos na história tantos batismos.
Como nosso objetivo é a origem dessas variações, e não a controvérsia
sobre elas evitaremos dar qualquer opinião sobre um tema já tão longamente
debatido. Por mais de 1600 anos essa polêmica tem sido mantida com grande
determinação por homens capacitados de ambos os lados. Nenhuma contro­
vérsia na história da igreja teve tamanha duração, ou foi conduzida com tanta
confiança na vitória pelas partes adversárias. Como não há menção expressa do
batismo infantil nas escrituras, os batistas pensam que a posição deles está acima
de questionamento; e os pedobatistas crêem firmemente que há inferências em
diversas passagens bem conhecidas que os apóstolos batizavam as crianças. Já
na forma do batismo não há tanta divergência. Os gregos, latinos, francos, e
germânicos parecem ter sido batizados por imersão. Lutero diz que “‘batismo’
é uma palavra grega, e em latim pode ser interpretada como mersio, imersão...
e apesar de tal prática ter caído em desuso entre a maioria de nós, contudo, os
que eram batizados tinham de ser inteiramente imersos, e em seguida levantados
da água, e isso a etimologia da palavra indica, também na língua germânica”. O
A H i s t ó r i a I n t e r n a d a I g r e j a (245 d.C. - 451 d.C.) 1 275
testemunho de Neander é o mesmo: “Batismo era originalmente administrado
por imersão; e muitas comparações de Paulo aludem a esta forma de adminis­
tração. A imersão é um símbolo de morte, de ser sepultado com Cristo; e a saída
da água é o símbolo da ressurreição com Cristo; e ambos, juntos, representam o
segundo nascimento, a morte do velho homem, e a ressurreição para uma nova
vida”64. Cave, Tillotson, Waddington e outros são autores que falam do método
do batismo de maneira similar. E como todos esses testemunhos são de pedobatistas, podemos deixar esse assunto de lado e considerá-lo como razoavelmente
demonstrado na história da igreja. Contudo, a fé se apóia na Palavra de Deus.
Não seguimos os Pais eclesiásticos; seguimos a Cristo.
Irineu, bispo de Lion, é o primeiro dos Pais que alude ao batismo infantil.
Ele morreu por volta do ano 200 d.C., e por esta razão seus escritos são classifi­
cados como pertencentes ao final do segundo século. Os Pais apostólicos jamais
mencionaram isso. Nessa época a superstição havia tomado o lugar da fé em
escala alarmante, e, portanto, o leitor deve estar preparado para ouvir algumas
noções extravagantes fomentadas por grandes doutores. Sem dúvida, apesar
disso, muitos deles eram cristãos verdadeiros e sinceros. “Cristo veio para salvar
todas as pessoas para Si mesmo, todas, digo, as que por Ele são regeneradas batizadas - em Deus: infantes e pequeninos, crianças e jovens, e pessoas mais
velhas. Portanto, Ele passou pelas diferentes idades: para os infantes Ele se
fez infante, santificando infantes; para os pequeninos Ele se tornou como um
pequenino, santificando os dessa idade; e também dando exemplo de piedade,
justiça e obediência; e para os jovens Ele era um jovem”, disse Irineu. O batismo
neste contexto era ensinado como sendo uma completa purificação da alma
para todas as faixas etárias e condições da humanidade. Mas a controvérsia
logo se resumiu a um único ponto: crianças ou adultos. Nos escritos dos Pais,
regeneração, novo nascimento, batismo são usados como termos intercambiáveis,
significando a mesma coisa.65
Aqui temos a origem do batismo infantil, tanto quanto a antiguidade
eclesiástica nos informa. A passagem é obscura e extremamente fantasiosa; mas
é o primeiro traço da indefinição da questão, e provavelmente a raiz de todas as
variações eclesiásticas concebidas. O efeito de tal ensino sobre as mentes supers­
ticiosas foi imenso. Pais ansiosos se apressaram a levar seus delicados bebês para
6'' The Inquirer, 1839.
6> Veja História do Batismo Infantil, do Dr. Wall. Fizemos uma citação a partir da tradução dele
dos escritos dos Pais. Tendo recebido os agradecimentos dos clérigos da Câmara dos Comuns,
de Convocação, e um título da Universidade de Oxford por seu grande trabalho em defesa do
batismo infantil, podemos confiar em suas citações como, em geral, as mais corretas, e as mais
favoráveis ao seu tema.
276 | A H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 12
serem batizados antes que morressem sob a maldição original do pecado, e os
governantes do mundo adiavam o batismo até próximo da morte para evitar
alguma mancha subsequente, e assim emergirem das águas de regeneração
para a esfera da pura e genuína bem-aventurança. O exemplo e a reputação de
Constantino levaram muitos a protelar o batismo, embora o clero fosse contra
tal prática.
Tertuliano. O testemunho deste Pai apostólico provaria que as crianças
eram batizadas em sua época - ele morreu no ano 240 d.C, mas Tertuliano
não era favorável à prática. Como ele mesmo afirma: “Mas aqueles cuja tarefa
é administrar o batismo devem saber que ele não tem de ser concedido de
forma imprudente... Portanto, de acordo com a condição e disposição de cada
indivíduo, e também conforme sua idade, o adiamento do batismo é mais
proveitoso, em especial no caso de crianças pequenas. Pois, qual é a necessidade
dos padrinhos serem colocados em perigo? pois podem falhar em suas promessas
por causa da morte, ou podem estar enganados se a criança tiver uma disposição
ímpia de caráter”.
Orígenes, ao discutir sobre o pecado da nossa natureza, alude ao batismo
como o meio designado para a sua remoção. “Crianças são batizadas”, disse ele,
“para o perdão dos pecados. De quais pecados? Ou quando pecaram? Como
pode, nesse caso, o batistério suprir qualquer bem que seja, com base nos aspectos
que acabamos de levantar? O fato é que ninguém está livre da corrupção [do
pecado], mesmo que sua vida tenha a duração de apenas um dia na terra. E é
por essa razão que as crianças são batizadas, porque pelo sacramento do batismo
a corrupção do nosso nascimento é retirada”.
Cipriano, bispo de Cartago, por volta do ano 253 d.C., recebeu uma carta
de Fido, um bispo do interior, perguntando se um bebê, antes dos oito dias de
nascido, poderia ser batizado se preciso fosse. A resposta demonstra que não
somente o batismo infantil era praticado, mas que eles o consideravam uma
necessidade por causa de sua eficácia. Cipriano, juntamente com 66 bispos
reunidos em concílio, afirma: “No caso de bebês, visto que você julga que não
têm de ser batizados em dois ou três dias depois de nascidos, e que a regra da
circuncisão deva ser observada e, portanto, que ninguém deveria ser batizado
e santificado antes dos oito dias após o nascimento: todos em nossa assembléia
somos de opinião contrária, pois nenhum de nós concorda com o teu modo
de pensar acerca do que deve ser feito, mas todos nós, pelo contrário, julgamos
que a graça e a misericórdia de Deus não devam ser negadas a nenhuma pessoa
nascida. Pois já que o nosso Senhor em Seu evangelho diz: ‘Porque o Filho do
homem não veio para destruir as almas dos homens, mas para salvá-las’, então
no que depender de nós, se possível, nenhuma alma deverá ser perdida...”.
A H is t ó r ia I n t e r n a
da
I g r e ja
(245 d.C. - 451 d.C.)
Gregório Nazianzeno, bispo de Constantinopla, era um Pai apostólico de
grande notoriedade por volta do ano 380 d.C.. E foi o instrumento para destruir
o poder do arianismo na capital oriental, onde essa heresia se manteve forte por
cerca de quarenta anos. Ele teve de enfrentar muita oposição e até perseguição no
início; mas pouco a pouco sua eloquência, o tom sério e prático de seus ensinos,
e a influência de sua vida piedosa começaram a falar mais alto e lhe concederam
autoridade, embora jamais concordasse com o estilo imperial da capital.
Dr. Wall menciona muitas citações de Gregório sobre o batismo, e nossos
extratos serão breves. Como os demais Pais apostólicos, ele é enfático sobre o
assunto. “O que você diz para os que ainda são infantes, e não têm capacidade
de serem sensíveis nem à graça nem à falta dela? Iremos batizá-los também? Sim,
de qualquer maneira, se algum perigo tornar isso indispensável. Pois é melhor
que eles sejam santificados sem ter consciência disso que morrerem não selados
e não iniciados. E uma base para isso é a circuncisão, que era feita no oitavo dia
e era um selo característico, praticado sobre os que não faziam uso da razão.”
Contra a prática do adiamento do batismo até o leito de morte, Gregório fala
com força e gravidade, comparando-o ao serviço de lavar um cadáver, ao invés
de ser um genuíno batismo cristão.
Basílio, bispo de Cesaréia, está constantemente associado aos dois
Gregórios. Gregório de Nissa era seu irmão, e o outro, seu melhor amigo. A
Capadócia gerou três Pais apostólicos. Basílio foi fiel ao credo de Atanásio durante
os dias de sua crise e adversidade, mas não viveu para ver seu triunfo definitivo.
Ele morreu no ano 379 d.C.. Foi um nobre admirador e um verdadeiro exemplo
do cristianismo monástico. Ele abraçou a fé ascética, abandonou seus bens e se
submeteu a práticas tão rigorosas a ponto de prejudicar sua saúde. Ele se refugiou
no deserto, mas sua fama fez com que uma cidade fosse construída ao redor dele;
o próprio Basílio fundou um monastério e outros surgiram por toda parte.
Sua visão sobre batismo é similar à de seu amigo Gregório. Ele insiste sobre
tal necessidade por causa do mesmo sentimento supersticioso que todos tinham.
“Se Israel não tivesse passado pelo meio do mar, eles não teriam se livrado de
faraó: e a menos que passes pelas águas do batismo, tu não serás libertado da
cruel tirania do diabo.” Ele aplicava isso a todas as idades, e reforçava com as
palavras do Senhor a Nicodemos: “Na verdade, na verdade te digo que aquele
que não nascer da água e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus”.
Ambrósio, bispo de Milão, como todos os Pais que já encontramos, está
totalmente errado quanto ao significado de João 3:5: “Aquele que não nascer da
água e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus”. Ele declara: “Veja que
Cristo não excluiu ninguém, nem uma criança, nem um indivíduo sequer está
impedido por um acidente inevitável”.
277
2 7 8 I A H istó ria
da
I g r e j a - capítulo 12
João, apelidado Crisóstomo, que significa boca de ouro, obteve este
apelido devido à sua eloquência agradável e fluente. Ele era o favorito do povo,
que costumava dizer: “Preferimos que o sol não brilhe a João não pregar”.
Evidentemente era favorável ao batismo infantil, apesar de não estar claro que
acreditasse no pecado original. “Por este motivo batizamos crianças também,
embora não estejam corrompidas pelo pecado, pois a elas podem ser acrescen­
tadas a santidade, a justiça, a herança da adoção, a comunhão com Cristo e o se
tornar membros Dele” Seria difícil dizer algo mais sobre os alegados benefícios do
batismo que os aqui enumerados. Porém, por mais extravagante que a sentença
possa parecer, ela é o texto dos pedobatistas daquela época até hoje. Muitos
leitores já conhecem estas palavras: “O batismo é onde eu sou feito um membro
de Cristo, um filho de Deus, e um herdeiro do reino dos céus”. Tais palavras
foram tiradas não das Escrituras, mas de Crisóstomo.
Dr. Wall parece ansioso por deixar transparecer que esse grande doutor
não estava alienado quanto ao pecado original. Ele sugere que o significado de
suas palavras podem ser: “Embora não estejam corrompidas pelos seus próprios
pecados”. Mas Crisóstomo não diz ‘pelos seus próprios’, mas que as crianças não
estão maculadas com o pecado. E certamente cada bebê está, como afirma o
salmista: “Eis que em iniquidade fui formado, e em pecado me concebeu minha
mãe” (Salmo 51:5). E inútil procurar por exatidão em muitas das doutrinas
fundamentais do cristianismo entre os Pais apostólicos; isso para não mencionar
o que eles omitiram, tal como a presença do Espírito Santo na assembléia, a
chamada celestial, e as relações celestiais da igreja, a diferença entre a casa de
Deus e o corpo de Cristo, e a maravilhosa esperança e o glorioso aparecimento
do grande Deus e Salvador Jesus Cristo (Tito 2:11-15).
*
*
*
R eflexões so b r e a
H is t ó r ia d o B a t ism o I n f a n t il
Para nosso presente propósito, acreditamos ser suficiente o que já foi dito sobre
batismo infantil. O leitor tem diante de si o relato das mais confiáveis testemunhas
dos dois primeiros séculos da história da igreja. A prática, e sua surpreendente
influência, parece ter surgido de uma interpretação errada de João 3:5: “Aquele que
não nascer da água e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus”. Deduziu-se
dessa passagem que o batismo era necessário para a salvação e obtenção de todas as
bênçãos da graça. A eficácia do sangue de Cristo, o poder purificador da Palavra
de Deus, e as graciosas operações do Espírito Santo eram inteiramente atribuídas
A H is t ó r ia I n t e r n a
da
I g r e ja
(245 d.C. - 451 d.C.) | 2 7 9
à devida observância externa do batismo. E não é de se estranhar o lugar que isso
conquistou na igreja professa até hoje, ou sua poderosa influência sobre todas as
classes e idades, apesar de muitos jamais terem passado pela regeneração batismal.
Os cristãos antigos, afirma o Dr. Wall, sem qualquer exceção, ensinavam
que tais palavras do Salvador se referiam ao batismo. Ele acredita que Calvino
foi o primeiro homem que refutou tal interpretação, e que se recusou a aceitar
o ensino da obrigatoriedade do batismo para a salvação. Supondo que essas
declarações estejam corretas, elas provam que a grande estrutura eclesiástica
surgida do batismo foi edificada sobre uma interpretação errônea. A igreja de
Roma, os luteranos, os gregos e anglicanos continuaram a seguir os Pais nesse
desvio da verdade. “Devemos então,” diz Hooker, referindo-se à nova interpretação
de Calvino sobre João 3:5, “considerar que aquilo que sempre foi interpretado de
uma determinada maneira e não de outra, seja agora aceito sob o disfarçe de uma
capa de novidade?” Deus adotou o batismo, não apenas como um símbolo ou
emblema do que recebemos, mas também como um instrumento ou recurso pelo
qual recebemos a graça”. O bispo Burnet também observa que: “As palavras de
nosso Salvador a Nicodemos foram explicadas para denotar a absoluta necessidade
do batismo para a salvação. Esta expressão do nosso Salvador ‘reino de Deus’, signi­
ficando a eterna glória, foi dita para expressar que nenhum homem pode ser salvo
a menos que seja batizado.. .”66. Calvino ensinava que os benefícios do batismo se
restringiam aos filhos dos eleitos, introduzindo assim o conceito de cristianismo
hereditário. Os presbiterianos o seguiram e, como consequência de seus ensinos, a
circuncisão se tornou tanto a justificativa quanto a regra do batismo infantil. Já que
tantas coisas foram edificadas sobre este versículo, talvez alguns de nossos leitores
estejam desejosos de saber a verdadeira interpretação de João 3:5.
Q ual
io
E n s in o d e J o ã o
3:5?
Cremos que a expressão “nascer da água” de forma alguma significa
o batismo. O novo nascimento é o tema do Salvador: sem isso nenhum ser
humano pode ver nem entrar do reino de Deus. E ainda que o reino não fosse
visível - “não vem com aparência exterior” (Lucas 17:20), estava entre eles,
manifesto como a nova esfera do poder e da bênção de Deus. A carne nem ao
menos consegue perceber este reino. Cristo não veio para ensinar ou melhorar
a carne, como Nicodemos parecia acreditar; mas para que o homem pudesse
ser participante de uma natureza divina a qual é concedida pelo Espírito Santo.
Meros rituais externos não franqueiam a entrada no reino. E obrigatório uma
66 Política Eclesiástica, de Hooker, livro 5. Burnet em Artigos, artigo 27.
280
IA
H i s t ó r i a d a I g r e j a - capítulo 12
nova natureza, uma nova classe de vida adequada à nova ordem de coisas.
“Jesus respondeu: Na verdade, na verdade te digo que aquele que não nascer da
água e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus.” Aqui o Senhor mostra
a Nicodemos a única maneira de entrar do reino de Deus. Agua neste contexto
é usada como símbolo do poder de limpeza e purificação da Palavra de Deus;
como Pedro assevera: “Purificando as vossas almas pelo Espírito na obediência à
verdade”. Aqui a verdade é mostrada como instrumento e o Espírito como agente
do novo nascimento, pois ele prossegue: “Sendo de novo gerados, não de semente
corruptível, mas da incorruptível, pela palavra de Deus” (1 Pedro 1:22-23). Duas
coisas são necessárias: a Palavra e o Espírito.
A passagem obviamente significa a aplicação da Palavra de Deus no poder do
Espírito agindo no coração, consciência, pensamentos e açoes; e assim trazendo a
nova vida de Deus, na qual passamos a ter Sua mente acerca do reino. Os seguintes
versículos deixarão isso mais evidente. “Segundo a sua vontade, ele nos gerou pela
palavra da verdade” (Tiago 1:18). “Para a santificar, purificando-a com a lavagem
da água, pela palavra” (Efésios 5:26). “Vós já estais limpos, pela palavra que vos
tenho falado” (João 15:3). Temos aqui a limpeza moral ou a purificação da alma,
pela aplicação da Palavra através do Espírito que julga todas as coisas, e que nos
concede novos pensamentos e desejos, adequados à presença e à glória de Deus.
Portanto, no quesito interpretação não vemos alusão ao batismo em
João 3:5. O batismo manifesta o que já foi transmitido, porém o batismo em
si mesmo não transmite nada. Por outro lado, de acordo com os inspirados
comentários das epístolas, o batismo é um sinal de morte, não de concessão de
vida, como os Pais afirmam unanimemente. “Ou não sabeis que todos quantos
fomos batizados em Jesus Cristo fomos batizados na sua morte? De sorte que
fomos sepultados com ele pelo batismo na morte” (Romanos 6:3-4; Colossenses
2; 1 Pedro 3). Além disso, está perfeitamente claro que Nicodemos não poderia
saber nada acerca do batismo cristão correto, pois ele foi instituído pelo nosso
Senhor somente após Sua ressurreição (Marcos 16:14-20; Mateus 28:17-20).
M o d e r n o s P ed o b a t ist a s
A igreja de Roma e todos os que seguiram os Pais confessam que a
origem dessa prática é a tradição. Mas existem muitos em nossos dias, como
tem havido desde a Reforma67, que sustentam o batismo infantil a partir dos
67 O s reformadores, e depois os puritanos, fizeram um esforço para encontrar nas Escrituras o
que a igreja de Roma fazia por tradição; os protestantes consultavam a Bíblia em todos os
assuntos, os católicos consultavam os Pais.
A H is t ó r ia I n t e r n a
da
I g r e ja (245
d.C. - 451 d.C.) j
escritos do Novo Testamento. As passagens a seguir são as principais referências
deles: “Deixai vir os meninos a mim, e não os impeçais; porque dos tais é o
reino de Deus”; “De outra sorte os vossos filhos seriam imundos; mas agora são
santos”; “Porque a promessa vos diz respeito a vós, a vossos filhos...”; “Criai-os
na doutrina e admoestação do Senhor”. E muitos ainda extraem seus argumentos
do batismo de famílias, e da aliança abraâmica (Gênesis 17; Marcos 10:14; Atos
2:39; 1 Coríntios 7:15; )■
Os anti-pedobatistas, ou “os Batistas”, como se intitulavam, sim­
plesmente afirmavam que em todas as alusões ao batismo nos textos dos
apóstolos estão intrinsecamente ligadas à fé no evangelho, e que expressões
como “sepultados com ele pelo batismo”, “unidos com ele na semelhança da sua
morte”, etc, significam que a pessoa batizada tem parte com Cristo pela fé.
E, além disso, que como o batismo é uma ordenança de Cristo, é preciso que
seja celebrado exatamente da maneira designada por Ele. Afirmam que nada,
além das Escrituras somente, pode funcionar como base da nossa fé e prática
nas coisas divinas. E sendo o batismo algo cuja ministração é necessária, e
da maneira prescrita, pois se executado de outra forma não passa de conceito
humano, tais coisas são tão importantes quanto o próprio batismo. Para o
verdadeiro batismo cristão decorre que são necessários os verdadeiros objetos
dele - apenas os crentes genuínos; e a verdadeira maneira pelo qual deve ser
realizado - apenas por imersão.68
Á O r ig e m d a C o m u n h ã o I n f a n t i l
Geralmente, quando a superstição toma o lugar da fé, e os conceitos
humanos substituem a Palavra de Deus, não é de se admirar que até mesmo
homens sérios e instruídos sejam levados por esses engodos. Agostinho advogou
com vigor a prática da comunhão infantil. Isso foi uma consequencia obrigatória
do batismo infantil. Os Pais afirmavam que a graça de Deus conferida aos que
passavam pelo batismo era sem medida e sem limitação de idade. Portanto,
inferiram, que era coerente administrar a ceia do Senhor a todos os que se
batizavam, quer adultos ou crianças. O costume prevaleceu por muitos séculos,
sendo ainda observado pela igreja grega; mas não entraremos em detalhes. No
geral, perdeu-se de vista o significado espiritual intrínseco e o desejo pela ceia do
Senhor; e assim ficou demonstrada a mais supersticiosa reverência por símbolos
externos dos rituais.
68 Reflexões sobre a História de Wall, de Gale, volume 3.
282
IA H
ist ó r ia da
A
I g r e ja - capítulo 12
P o siç ã o e o C a r á t e r d o C le r o
Ao estudarmos a história interna da igreja durante o quarto século,
inumeráveis tópicos mereceriam um breve comentário; no entanto, nos
referiremos aos que caracterizaram melhor este período. A alteração na posição
do clero é um importante ponto, e será responsável por muitas mudanças intro­
duzidas por ele. Desde o tempo de Constantino, os membros do ministério
cristão alcançaram uma nova posição social com certas vantagens seculares.
Isso levou milhares de pessoas a se juntar à ordem sagrada pelos mais indignos
motivos. Por esta razão adveio a infeliz influência dessa ímpia mistura sobre a
igreja professa. Constantemente nos confrontamos com o orgulho, a arrogância,
a luxúria, e a dignidade fingida do clero. Conta-se que Martinho de Tours,
quando estava na corte de Máximo, deixou a imperatriz lhe esperando à mesa,
e que quando o próprio imperador quis beber diante dele, esperando receber a
taça após o bispo ter bebido, Martinho passou-a para as mãos de seu capelão,
concedendo a este honra maior que a qualquer soberano terreno. Essa circunstân­
cia nos mostra onde os clérigos se encontravam naquele instante, o que pensavam
de si mesmos e de sua dignidade espiritual em oposição à classe secular. A igreja
havia se tornado uma “grande casa”, onde “não somente há vasos de ouro e de
prata, mas também de pau e de barro; uns para honra, outros, porém, para
desonra”. E assim tem sido desde então; e será até o fim, mas o caminho do fiel
é reto. “De sorte que, se alguém se purificar destas coisas [dos vasos de desonra],
será vaso para honra, santificado e idôneo para uso do Senhor, e preparado para
toda a boa obra” (2 Timóteo 2:20-21).
A
O r ig e m e o C r e s c i m e n t o
d o M o n a s t ic is m o
Antes de analisarmos o período da “Igreja de Tiatira”, será útil olhar mais
detidamente o surgimento e crescimento das primeiras tendências ascéticas. De
fato, a influência do monasticismo era grande na ‘era das trevas’, em todas as
igrejas ocidentais. Vamos rastreá-lo até suas origens. É útil saber o começo das
coisas, em especial das importantes e influentes.
Por volta de 251 d.C., na violência da perseguição do reinado de Décio,
muitos cristãos fugiram em exílio voluntário. Entre estes estava um jovem
chamado Paulo de Alexandria, que fez sua morada no deserto de Tebas, no Alto
Egito. Pouco a pouco ele se tornou amante do modo de vida que adotara por
necessidade; e é conhecido como o primeiro eremita cristão, embora sem fama
ou influência na época. Não tanto quanto seu imediato e grande sucessor.
284
I A H is t ó r i a
da
I g r e ja - capítulo 12
vinham para encontrá-lo, e muitos o imitavam. Os tristes vinham para serem
consolados; os confusos para serem aconselhados; e os inimigos para serem
reconciliados. Milagres são atribuídos a ele, cuja influência era ilimitada.
No ano 352 d.C., aos cem anos de idade, apareceu pela segunda vez em
Alexandria, para contra-atacar o crescimento do arianismo, e usar sua influência
para defender a fé ortodoxa. A cidade ficou alvoroçada com o fato de Antônio
estar ali, e o povo se aglomerou para ver o monge - o homem de Deus, como
era chamado - e ouvir sua pregação. Muitos pagãos se converteram assim ao
cristianismo. Antônio e seus seguidores eram apoiadores firmes e poderosos do
credo niceno. Ele viveu até os 105 anos de idade, e morreu dias antes de Atanásio
se refugiar entre os monges do deserto em 356 d.C..
As V ir t u d e s e F a l h a s de A n t ô n i o
Evidentemente Antônio era sincero e honesto, apesar de viver enganado e
desviado pelos artifícios e poder de Satanás. Em vez agir conforme a comissão
do Senhor aos Seus discípulos: “Ide por todo o mundo, pregai o evangelho
a toda criatura” (Marcos 16:15), ou de seguir Seu exemplo praticando o
bem, ele pensou que atingiria uma espiritualidade superior se afastando da
humanidade, e se devotando à uma vida austera e à comunhão ininterrupta
com o céu. Ele era cristão, mas ignorava por completo a natureza e o propósito
do cristianismo. A santidade na carne era seu principal interesse; embora o
apóstolo tenha afirmado: “Eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não
habita bem algum” (Romanos 7:18). Portanto, tudo foi fracasso, total fracasso,
como tem de ser se pensamos que existe algum bem na natureza humana,
ou se tentamos melhorar a nós mesmos. Ao invés de santificar sua natureza
por meio de jejuns e inatividade, ele descobriu que isso excitava fortemente as
paixões da carne.
“Dessa maneira, em sua solidão”, nos diz Neander, “ele teve que enfrentar
muitos conflitos em suas faculdades mentais, os quais talvez poderiam ter sido
evitados, caso se envolvesse com algum tipo de vocação que exigisse o uso
de todas as suas forças”. As tentações contra as quais lutou eram maiores e
mais numerosas, pois estava entregue à ineficiente ocupação consigo próprio,
e envolvido em vencer as impuras imagens que constantemente surgiam do
abismo da corrupção de seu próprio coração, no lugar de se esvaziar de si mesmo,
dedicando-se a serviços mais dignos, ou olhar para a eterna fonte de pureza e
santidade. Depois de muito tempo, Antônio, com a convicção adquirida pelos
longos anos de experiência, reconheceu isso e disse aos seus monges: “Não
ocupemos nossa imaginação pintando espectros de demônios; não agitemos
A H i s t ó r i a I n t e r n a d a I g r e j a (245 d.C. - 451 d.C.)
Antônio (ou Antão), considerado o pai do monasticismo, nasceu em
Cooma, no baixo Egito, perto de Hierápolis Magna, por volta do ano 251 d.C..
Na infância e juventude, conta-se que ele era contemplativo, sério e com tendência
ao isolamento. Ele manifestava pouco interesse pelo saber mundano, mas desejava
intensamente o conhecimento das coisas divinas. Antes de completar dezenove
anos, perdeu seus pais e recebeu uma considerável propriedade. Certo dia em
uma reunião da igreja foi lida a passagem do evangelho que fala sobre o jovem
rico. Antônio considerou as palavras do Salvador como vindas diretamente do céu
para ele. “Vende tudo quanto tens, reparte-o pelos pobres, e terás um tesouro no
céu; vem e segue-me” (Lucas 18:22). Imediatamente transferiu sua terra para os
habitantes de sua aldeia, vendeu o resto de seu espólio e deu o dinheiro aos pobres,
reservando uma pequena parte para o sustento de sua única irmã. Em outra
ocasião, ele ficou bastante impressionado com as palavras do Senhor: “Não vos
inquieteis, pois, pelo dia de amanhã” (Mateus 6:25-34), e as tomou em sentido
literal, desfazendo-se do restante de sua herança, colocando sua irmã aos cuidados
de uma sociedade de virgens piedosas, para que pudesse se livrar dos todos os
cuidados com as coisas terrenas e abraçar uma vida de rigoroso ascetismo.
Diz-se que Antônio visitou Paulo, o eremita, e todos os mais famosos
ascéticos que tinha conhecimento, esforçando-se para aprender as virtudes
características de cada um, e para combinar todas as graças deles em sua própria
prática. Ele se fechou em uma tumba, onde viveu por dez anos. Por causa de
excessivos jejuns, exaustão, e uma imaginação superexcitada, Antônio pensava
ser atacado por espíritos maus, com os quais teve inúmeros e severos entraves.
Ele se tornou famoso. Muitos visitavam sua habitação fora do comum na
esperança de vê-lo, ou de ouvir suas batalhas com os poderes das trevas. Depois
ele abandonou sua tumba, e foi morar nas ruínas de um castelo próximo ao Mar
Vermelho por mais vinte anos. Ele aumentou suas mortificações com o objetivo
de vencer os maus espíritos, mas as mesmas tentações e conflitos continuavam
perseguindo-o.
Por mais estranho que pareça, este notável e iludido homem tinha um
coração que realmente desejava Cristo, e queria servir ao seu povo. A perseguição
no reinado de Maximiano (311 d.C.) o fez sair de sua reclusão para as ruas de
Alexandria. Sua aparição produziu impacto. Ele se dedicou aos sofredores, exor­
tando-os a não desistir de sua confiança na confissão de Cristo, e manifestando
muito amor aos cristãos nas prisões e minas. Ele se expôs de todas as maneiras
ao perigo, mas ninguém ousou tocá-lo. As pessoas julgavam que uma espécie de
santidade inviolável cercava esse homem misterioso e que via espíritos. Quando a
fúria da perseguição passou, ele escapou para um novo lugar de solidão, ao lado
de uma alta montanha. Ali cultivou um pequeno pedaço de terra; multidões
28 3
A H i s t ó r i a I n t e r n a d a I g r e ja (245 d.C. - 451 d.C.) | 285
nossa mente analisando se estamos ou não perdidos. Ao invés disso estejamos
encorajados e contentes em todo tempo, como aqueles que já foram redimidos;
e estejamos conscientes que o Senhor, que já os subjugou e os reduziu a nada,
está conosco. Lembremos que se o Senhor está conosco, o inimigo não pode
nos causar qualquer dano. Os espíritos do mal nos parecem diferentes, conforme
os diferentes estados de mente nos quais eles nos encontram... mas se nos
encontram alegres no Senhor, ocupados na contemplação das futuras bem-aventuranças e das coisas do Senhor, refletindo que tudo está nas mãos do Senhor, e
que nenhum espírito mau pode ferir o cristão, confusos eles se afastam da alma
que percebem estar preservada pelos bons pensamentos”.69
Está perfeitamente claro a partir desses conselhos dados aos seus monges
que Antônio não era apenas um cristão sincero, mas que possuía um real conhe­
cimento do Senhor e da redenção, embora completamente desviado por causa
de um coração iludido. Jamais estaremos seguros a menos que nos movamos
sobre as linhas retas da verdade de Deus. O sistema que esse homem introduziu
em seus falsos delírios de perfeição na carne, ao longo do tempo se tornou um
canteiro de devassidão e vícios. E isso continuou por mais de mil anos. Somente
no século XVI que a luz divina da abençoada Reforma irrompeu em meio a um
cenário de densas trevas morais, revelando a corrupção profundamente arraigada
e a maldade extrema das diferentes ordens monásticas. Os monges daquela
época, como enxames de gafanhotos, cobriam a Europa. A História nos informa
que eles apregoavam a obediência à santa amada igreja, a reverência aos santos,
em especial à Virgem Maria, a eficácia das relíquias sagradas, os tormentos do
purgatório, e as maravilhosas vantagens das indulgências. Mas como os monges
perderam popularidade e influência com a Reforma, uma nova classe surgiu para
ocupar o lugar e continuar com a má obra deles: os jesuítas, ou seja, a Sociedade
de Jesus fundada por Inácio de Loiola. Mas prossigamos com a história inicial
do monasticismo.
5'í
'} *
A P r im e ir a S o c ie d a d e d o s A s c e t a s
A forma embrionária na qual o espírito ascético se desenvolveu na igreja
cristã não foi com a estruturação de sociedades ou comunidades, como veremos
nos períodos posteriores, mas na reclusão de indivíduos. Embora estivessem
errados, eles acreditavam ter uma chamada especial para viverem uma vida
69 História Geral da Igreja, volume 3. Veja também História da Igreja, de James Craigie Robertson,
volume 1.
286 I
A H i s t ó r i a d a I g r e j a - capítulo 12
cristã mais elevada; e, com o objetivo de atingirem essa ilustre santidade, eles
se impunham severíssimas restrições. Retiravam-se para lugares desertos, onde
podiam se entregar à intensa meditação nas coisas divinas, onde a mente poderia
estar inteiramente separada de todos os assuntos naturais, e do que trazia prazer
aos sentidos. Tanto homens quanto mulheres imaginavam que tinham de
extenuar o corpo com vigílias, jejuns, trabalhos pesados e tortura. Como o corpo
era considerado uma carga opressiva e um obstáculo às aspirações espirituais, eles
disputavam entre si como poderiam executar suas automortificações. Praticavam
os mais insanos e doentios regimes: às vezes se abstinham de sono e alimento até
ficarem quase totalmente exauridos. O contágio dessa nova invenção de Satanás
se espalhou por toda parte. Julgava-se que a misteriosa reclusão era necessaria­
mente investida de uma santidade peculiar. O ermo do eremita era visitado por
nobres, eruditos, religiosos —todos desejosos de homenagear o santo homem de
Deus; e assim o orgulho espiritual era engendrado pela bajulação do mundo.
Desde então a vida monástica recebeu tal apreço que muitos a adotaram como
a mais honrada ocupação, formando, depois de algum tempo, suas próprias
comunidades ou instituições.
Como Antônio, Pacômio também era nativo de Tebas, e se converteu
ao cristianismo na primeira parte do quarto século. Após praticar ascetismos
por certo tempo, em sonhos um anjo lhe disse que já havia feito progressos
suficientes na vida monástica, e que a partir de então tinha de se tornar mestre
de outros. Pacômio então fundou uma sociedade em uma ilha do Nilo. Ali os
ascetas começaram a viver juntos. A instituição logo se desenvolveu, e antes
da morte de seu fundador, já havia oito monastérios com três mil monges; e
no início do século seguinte esse número era superior a 50 mil monges. Eles
viviam em celas com lugar para três pessoas. Comprometiam-se a obedecer em
absoluto os comandos de Aba, ou pai. Usavam uma vestimenta característica,
cuja peça principal era uma pele de cabra, uma referência a Elias que, com João
Batista, eram considerados exemplos da condição monástica. Jamais se despiam;
dormiam com suas vestes em cadeiras construídas para mantê-los em posição
quase vertical. Oravam muitas vezes ao dia, jejuavam no quarto e no sexto dia
da semana, e se comunicavam no sábado e no domingo. As refeições eram feitas
em silêncio, com seus capuzes sobre o rosto para que ninguém visse quem estava
ao lado. Eles se dedicavam à agricultura e a várias formas de atividades, e tinham
tudo em comum, imitando os primeiros cristãos, depois do dia de Pentecostes70.
Pacômio fundou instituições similares para mulheres.
70 Robertson, volume 1; Neander, volume 3; Crenças do M undo, de Gardner, volume 2.
A H is t ó r ia I n t e r n a
da
I g r e ja
(245 d.C. - 451 d.C.) J 2 8 7
O s M o n a st é r io s e
o P o n t íf ic e R o m a n o
Até próximo ao final do quinto século, os monastérios estavam sob a
superintendência de bispos, e os monges eram tidos como simples leigos, e não
tinham direito de serem classificados na ordem sacerdotal. No entanto, com
o passar do tempo, as circunstâncias os levaram a assumir um caráter clerical.
Muitos deles se ocupavam da tarefa de ler e explicar as Escrituras, e supunha-se
que todos estivessem engajados na procura de uma vida espiritual mais elevada;
portanto, contavam com a estima do povo, em especial quando começaram
a exercitar suas funções clericais fora do confinamento de suas celas. Ciúmes
logo surgiram entre os bispos e abades, e o resultado foi que os abades, para se
livrarem da dependência de seus adversários espirituais, fizeram uma petição
solicitando a proteção do Papa. A proposta foi aceita com prazer, e rapidamente
todos os grandes e pequenos monastérios, mosteiros e conventos se sujeitaram à
autoridade da arquidiocese de Roma. Esse foi um enorme passo rumo ao poder
papal de Roma.
O Papa agora poderia estabelecer em quase todos os rincões uma espécie
de polícia espiritual, que agia como uma rede de espiões sobre os bispos e
as autoridades seculares. Esse fato é algo a ser cuidadosamente observado,
se analisarmos a ascensão do poder, e definitiva supremacia, do pontífice
romano.
O sistema monástico logo se espalhou para além das fronteiras do Egito;
e todos os grandes mestres da época, tanto no Oriente quanto no Ocidente,
advogavam a causa do celibato e do monasticismo. Em particular São Jerônimo,
o homem mais erudito de seu tempo, é considerado como uma conexão entre as
duas maiores divisões da igreja - a grega e a romana, ou a oriental e a ocidental.
Ele foi o instrumento para o avanço do celibato e do monasticismo, especialmen­
te entre as mulheres. Sob sua influência, muitas mulheres da alta classe romana
se tornaram freiras. Ambrósio tanto elogiava a virgindade em seus sermões que as
mães de Milão impediam que suas filhas o ouvissem, mas incontáveis virgens de
outras partes do império o procuravam para se consagrarem. Basílio introduziu
a vida monástica no Ponto e na Capadócia; Martinho, na Gália; Agostinho, na
África; e na juventude Crisóstomo foi impedido pela sabedoria de sua mãe de
se retirar para lugares solitários da Síria.
Antes de encerrarmos este assunto, é proveitoso observar o início e o esta­
belecimento dos conventos.
288 [
A H
is t ó r ia
A
da
Ig
r e ja
- capítulo 12
O r ig e m d o s C l a u s t r o s F e m in in o s
Desde o primeiro período da história da igreja lemos sobre virgens devotas
que faziam votos de castidade religiosa, e se dedicavam ao serviço de Cristo.
Suas obrigações e práticas eram auto-impostas, na medida em que pudessem
preservar seus relacionamentos domésticos e entrar sem escândalo na condição
de casadas. Mas a origem das comunidades de mulheres reclusas é atribuída a
Pacômio, o grande fundador do sistema monástico organizado. Antes de sua
morte, em meados do quarto século, somente no Egito mais de 27 mil mulheres
adotaram a vida monástica. As regras que ele estabeleceu para os conventos de
monjas eram similares às dos monges. “Elas eram sustentadas por fundos com­
partilhados, comuns também eram os dormitórios, as refeições e as vestimentas.
As mesmas atividades religiosas eram prescritas, a moderação habitual e jejuns
ocasionais eram observados com a mesma severidade. Trabalhos manuais eram
rigidamente impostos, porém ao invés da labuta agrícola obrigatória aos seus
‘irmãos’, a elas cabia atividades mais leves como costurar ou tecer. Com tarefas
tão numerosas, com ocupações tão variadas, elas superavam o tédio cotidiano,
e a dureza da reclusão monástica.”71
Certo é que muitos desses estabelecimentos foram fundados no quarto
século, e que se propagaram pelo Egito, Síria, Ponto, e Grécia, penetrando
gradualmente em cada província onde o nome de Cristo era conhecido; e até
hoje eles abundam nos países católicos, formando um estranho e incongruente
apêndice da igreja.
A
C e r im ô n ia d o s V o t o s
O cruel e impiedoso espírito do papado é dolorosamente sentido até
entre os próprios membros da igreja, na consagração de uma freira. Isso não
é natural, nem bíblico, antes é um ultraje à nossa humanidade, que arruina a
alma e o corpo, e submeter-se a isso somente é possível pelo poder que Satanás
tem de cegar as pessoas. Que misericórdia é estar bem longe de sua poderosa
manipulação e enganos mortais! Um pouco resumida, a seguinte descrição da
tomada de votos de uma noviça procede de uma testemunha ocular da cena que
aconteceu em Roma.
“Devido a um favor particular, foram-nos dados os melhores assentos, e,
após esperarmos cerca de meia hora, dois lacaios com ricos uniformes abriram
caminho para a jovem condessa que entrou na igreja lotada, vestida com o traje
71 W ad d in gto n , volum e 2.
A H is t ó r ia I n t e r n a
da
I g r e ja
(245 d.C. - 451 d.C.) | 289
de cerimônia, e diamantes brilhando em seus cabelos negros. Apoiada pela mãe,
ela subiu ao altar. O sacerdote oficiante era vicário, o discurso do púlpito foi
proferido por um monge dominicano, que se dirigia a ela como noiva de Cristo
—uma santa na terra, alguém que teria de renunciar as vaidades do mundo para
gozar antecipadamente as alegrias do céu”.
“O sermão acabou, ajoelhada diante do altar e aos pés do cardeal, a doce
vítima solenemente abjurou ao mundo cujos prazeres e paixões ela parecia tão
calculadamente desfrutar, e pronunciou os votos que a separariam dele para
sempre. Enquanto sua voz suavemente cantava essas fatídicas palavras, creio que
não havia um olho naquela imensa igreja que não estivesse marejado de lágrimas.
Os diamantes que brilhavam em seu cabelo foram tirados, e suas longas e belas
madeixas caíram luxuriantemente sobre seus ombros”.
“A grade que a sepultaria foi aberta. A abadessa e sua negra comitiva
de freiras apareceram. Um coral de vozes lhe entoou uma sequência de boasvindas. Foi cantado, ou pareceu ser cantado algo como ‘Saia, espírito irmão’.
Ela renunciou ao seu nome e título, adotando uma nova designação, recebendo
a solene bênção do cardeal, e os últimos abraços de seus chorosos amigos, e
atravessou o ponto de seu destino do qual jamais retornaria. Um painel atrás do
anterior se abriu, e ela apareceu na grade novamente. Ali foi despojada de seus
ornamentos e das esplêndidas vestes, seu belo cabelo foi impiedosamente cortado
pelas tesouras fatais das irmãs, o que fez toda a congregação estremecer. Assim
que foi tosquiada de sua cobertura natural, as irmãs se apressaram a cobri-la com
os solenes hábitos de freira, a touca branca e o véu de noviça”.
“Durante a cerimônia, ela demonstrou grande calma e firmeza, e não
foi até tudo ter terminado que seus olhos se encheram de lágrimas de emoção.
Mais tarde ela ficou no pequeno portão dos fundos do convento para receber
a simpatia e as congratulações de todos os seus amigos e conhecidos, e não
somente estes, mas até os estranhos queriam dar seus cumprimentos para a mais
nova esposa dos céus.” '2
A descrição dada se refere aos votos de uma freira ao tomar o véu branco,
um passo que inicia o noviciado, ou seja, um ano de testes, ainda não irrevogável.
A cerimônia do véu negro no final daquele período é ainda mais solene e terrível,
pois quando tudo se encerrava ela estaria reclusa pela vida inteira, e somente
poderia se livrar de seus votos através da morte. Aos olhos da lei romana, tanto
civil quanto eclesiástica, o passo dado estaria além de qualquer revogação. Prisão,
tortura, morte física e eterna eram as punições pela desobediência. E quem, fora
72 Crenças do Mundo, de Gardner.
290 I A
H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 12
das paredes do convento, pode contar quais refinadas e prolongadas crueldades
eram praticadas lá dentro? O poder é despótico; não há apelação, até que
enganador e enganado, perseguidor e vítima indefesa fiquem lado a lado diante
do tribunal do justo Deus.
R eflexões S o b r e
o s P r in c íp io s d o A sc e t ism o
É realmente lamentável refletir sobre tantos e graves erros, ou melhor,
sobre os erros positivos dos grandes mestres, ou dos Pais primitivos como são
usualmente chamados. Não há nada mais sério e solene que o fato de terem
desviado as pessoas de sua época, e que os escritos deles tenham enganado a
igreja professa desde então. Quem pode avaliar as consequencias terríveis de
tal ensino nos últimos 1500 anos, no mínimo? As interpretações erradas e as
aplicações incorretas da Palavra de Deus evidentemente são a regra desses líderes;
ensinar a sã doutrina, a exceção. E mesmo até hoje são tidos como o orgulho e
a suposta autoridade de boa parte da cristandade.
Ainda sobre o ascetismo, qualquer pessoa com um conhecimento
rudimentar das Escrituras pode ver a ignorância em relação à mente de Deus,
e a deturpação de Sua Palavra. Por exemplo, somos exortados a mortificar “as
obras do corpo”, e jamais mortificar o próprio corpo. O corpo é do Senhor, e
tem de receber os cuidados adequados. “Não sabeis vós”, diz o apóstolo, “que
os vossos corpos são membros de Cristo?” De fato, eles têm de ser subjugados
e trazidos sob sujeição, que é a forma mais sábia de cuidar do corpo (Romanos
8:13; 1 Coríntios 6:15; 9:27). Novamente o apóstolo afirma: “Mortificai, pois,
os vossos membros que estão sobre a terra: a prostituição, a impureza, a afeição
desordenada, a vil concupiscência e a avareza, que é idolatria” (Colossenses 3 :5).
Estas são as obras da carne que temos de mortificar - fazer morrer na prática;
e isso sob o fundamento de que a carne foi colocada para morrer na cruz. “E
os que são de Cristo crucificaram a carne com as suas paixões e concupiscências” (Gálatas 5:24); observe que o versículo não diz deveriam crucificar, nem
tinham de crucificar, mas que. já crucificaram. Na cruz Deus já colocou a carne
fora de Suas vistas, e temos de mantê-la fora das nossas pelo auto-juízo. No
Novo Testamento, pelo contrário, o corpo tem um lugar de importância por
ser o templo do Espírito Santo, mas a tendência do ascetismo é matar o corpo e
alimentar a carne. Tais coisas “têm, na verdade, alguma aparência de sabedoria,
em devoção voluntária, humildade, e em disciplina do corpo, mas não são de
valor algum senão para a satisfação da carne” (Colossenses 2:23).
A H is t ó r ia I n t e r n a
da
I g r e ja
(245 d.C. - 451 d.C.) i 291
Os Pais pareciam ter ignorado que o ascetismo era a fonte da filosofia
pagã, e de forma alguma a fonte divina do cristianismo; eles jamais procuraram
nas Escrituras a mente de Deus acerca desses assuntos. A total ruína do homem
na carne não foi compreendida por eles, que em vão pensaram poder melhorá-la,
e assim foram desviados de inumeráveis maneiras; em especial quanto à obra
de Cristo, ao julgamento de Deus sobre a carne, ao verdadeiro princípio da
adoração, e ao caminho do serviço cristão.
Tendo visto a fundação do grande sistema monástico, que exerceu
poderosa influência no cristianismo, na literatura, e na civilização nas eras das
trevas, agora podemos deixá-lo de lado, e retornar à história geral.
A r c á d io e H o n ó r io
(anos 395 d.C.)
Teodósio, o Grande, quando morreu deixou dois filhos, Arcádio, com
18 anos, e Honório, com apenas 11. O mais velho o sucedeu no governo do
Oriente, e o mais novo no do Ocidente. A condição de Roma neste momento
era impressionante, ou melhor, digna de nossa compaixão: dois imperadores
fracos, incapazes de conduzir a administração dos assuntos públicos, e todo o
império em estado de alerta por causa dos invasores góticos. A mão do Senhor
está manifesta aqui. Onde estava agora o gênio, a glória e o poder de Roma? Eles
expiraram com Teodósio. Em um momento em que o império exigia prudência,
habilidades bélicas, e talentos de um Constantino, ele era governado por dois
príncipes imbecis. Mas, na providência de Deus, seus dias estavam contados e
passando muito rápido.
A tempestade mais avassaladora que jamais recaiu sobre o império estava
prestes a desabar em sua hora de fraqueza. O competente general Flávio Stilicho
(ou Stilico), única esperança de Roma, foi assassinado logo após a morte de
Teodósio, e toda a Itália caiu sob as garras dos bárbaros. Os godos se renderam
à pressão das armas e especialmente à política de Teodósio, mas apenas a notícia
da morte dele os incitou à revolta e à vingança. O famoso Alarico, engenhoso
e hábil líder dos godos, esperava somente por uma oportunidade favorável para
colocar em prática um plano de grande magnitude e ousadia que nunca passara
pela mente dos inimigos de Roma desde o tempo de Aníbal. Sem dúvida, ele era
o ministro dos justos juízos de Deus para um povo profundamente manchado
com o sangue de Seus santos, além de ter crucificado o Senhor da glória, e
martirizado Seus apóstolos. Os detalhes serão deixados com os historiadores
do declínio e queda de Roma; mas resumidamente diremos que Alarico foi
]A H
is t ó r ia d a
I g r e ja - capítulo 12
seguido não apenas pelos godos, mas por povos de quase todo nome e raça.
A fúria do deserto seria derramada sobre a senhora e corruptora do mundo.
Ele conduziu suas tropas até a Grécia sem oposição, devastando suas fecundas
terras, pilhou Atenas, Corinto, Argos e Esparta. Ele sitiou e saqueou a que era
impiamente chamada de “a cidade eterna”, Roma. Por seis dias a cidade foi
entregue à carnificina sem misericórdia e à pilhagem indiscriminada. Assim
caiu a consagrada e culpada Roma pelo julgamento de Deus: nenhuma mão se
ergueu para ajudá-la; ninguém lamentou seu destino. As mais ricas províncias da
Europa - Itália, Gália e Hispânia - foram devastadas pelos seguidores imediatos
de Alarico, em especial Átila, e os bárbaros estabeleceram novos reinos. Portanto,
a história do quarto grande império mundial se encerra por volta do ano 478 d.C.,
1229 anos após a fundação de Roma.
Teodorico, rei dos ostrogodos, príncipe excelente tanto nas artes da guerra
quanto nas da política, restaurou uma era de paz e prosperidade, varrendo todos
os vestígios do governo imperial, e organizou a Itália em um reino.73
*
-k i:
R eflexões
as
so br e
C a l a m id a d e s
de
R oma
O leitor cristão pode achar útil parar por um momento e contemplar a
ruína do império ocidental, e a divisão de seu território entre várias hordas de
bárbaros. E nosso privilégio ver o cumprimento e a harmonia das Escrituras,
a soberana providência de Deus, e a realização de Seus propósitos, e sermos
edificados em tudo isso. Podemos também nos permitir derramar lágrimas de
compaixão sobre a desgraça de nossos enganados semelhantes. Isso seria nada
menos que uma manifestação de Seu terno coração, que lamentou sobre a
cidade de Jerusalém. E nosso dever estudar a História através da luz infalível das
Escrituras; e não - como muitos tentam fazer - estudar as Escrituras pela luz
incerta da História. Neste caso, podemos nos alegrar na presença de Deus com
a página da História aberta diante de nós, e fortalecer nossa fé pelo poderoso
contraste entre o reino de Deus e a glória mundana. “Por isso, tendo recebido
um reino que não pode ser abalado, retenhamos a graça, pela qual sirvamos
a Deus agradavelmente, com reverência e piedade”, diz o apóstolo (Hebreus
12:28). A superioridade do cristianismo sobre a mais poderosa das instituições
73 Enciclopédia Britânica, volume 19, pg 420 (edição da época); Dezoito Séculos Cristãos, de
White.
A H is t ó r ia I n t e r n a
da
I g r e ja
(245 d.C. - 451 d.C.) |
pagãs agora era manifesta a todos. Quando os esmagadores julgamentos de Deus
caíram sobre a Itália, e despedaçaram o cetro de ferro do império, a igreja não
sofreu dano algum. Ela não foi exposta ao perigo, ao contrário, foi protegida,
e serviu de instrumento para proteger outros. Como a arca que flutuou nas
tenebrosas águas do dilúvio, a igreja foi preservada da fúria dos invasores. Não há
exemplos de bárbaros se convertendo à antiga religião da Grécia e de Roma; ou
eles praticavam as superstições de seus ancestrais ou adotavam alguma forma de
cristianismo. Quando o mundo se convulsiona, quando os impérios se erguem e
se elevam, não há caminho seguro para os pecadores, a não ser na Rocha eterna,
o ressurreto e exaltado Cristo de Deus. “Bem-aventurados todos aqueles que nele
confiam” (Salmo 2:12). O Senhor providenciou a segurança para Seu povo por
meio da conversão prévia dos que subverteram o império.
A C o n v ersã o
dos
Bá r b a r o s
E sempre interessante e edificante perceber a mão do Senhor transfor­
mando a ira do homem em instrumento para o Seu louvor, trazendo o bem
para o Seu povo de onde aparentemente só viria a mais violenta calamidade.
No reinado de Licínio Galiano, cerca de 268 d.C., um grande número de pro­
vincianos romanos foram levados em cativeiro por tribos góticas; muitos destes
eram cristãos, e vários pertenciam ao clero. Eles foram espalhados pelas vilas
para trabalhar como escravos pelos seus senhores; mas o Senhor os permitiu estar
ali como missionários. Pregaram o evangelho aos povos bárbaros, e muitos se
converteram. O crescimento desses cristãos bárbaros pode ser inferido pelo fato
de no Concílio de Nicéia estarem representados por um bispo, Teófilo.
Ulfilas, comumente chamado de “apóstolo dos góticos, merece ser lembrado
com gratidão pela posteridade, em especial pelos cristãos. Por volta da metade do
quarto século, ele inventou um alfabeto e traduziu as Escrituras para a linguagem
gótica, com exceção dos livros de Samuel e Reis, por receio de que o conteúdo
belicoso deles pudesse incitar a ferocidade dos bárbaros. Inicialmente pareciam ser
simples e ortodoxos em sua fé, mas depois se tornaram profundamente parecidos
com o arianismo, principalmente depois que os ministros arianos, os quais foram
expulsos de suas igrejas por Teodósio, trabalharam entre eles.
Alarico e seus góticos eram cristãos professos; e dirigiram sua ira contra
os templos pagãos, mas reverenciavam muito as igrejas. Isso era a grande mise­
ricórdia de Deus para com o Seu povo; multidões fugiram para as igrejas, onde
encontraram um santuário. A fé sincera e o incansável zelo de Ulfilas, junto
com sua vida irrepreensível, conquistaram o amor e a confiança do povo. Eles
293
294
IA H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 12
receberam com fé as doutrinas do evangelho que ele pregava e praticava. Assim
os primeiros invasores do império tinham aprendido em sua própria terra a
confessar ou, pelo menos, a respeitar a religião dos conquistados. E aqui vemos
a verdade, ou melhor, o cumprimento da palavra do apóstolo em sua epístola aos
Romanos: “Porque não me envergonho do evangelho de Cristo, pois é o poder
de Deus para salvação de todo aquele que crê; primeiro do judeu, e também do
grego”, e também “Eu sou devedor tanto a gregos como a bárbaros, tanto a sábios
como a ignorantes” (1:16 e 14). Os eruditos cidadãos do império romano, e os
rudes habitantes da Cítia e da Germânia, foram igualmente trazidos ao poder
salvador do evangelho.
A C o n v e r sã o
de
C ló v is
Como afirma-se que a conversão de Clóvis foi a mais importante do quinto
século, daremos detalhes do fato. O mesmo é importante devido às suas consequ­
ências, tanto imediatas quanto remotas na história da Europa e da igreja.
Os francos eram um povo germânico, que se estabeleceu no norte da
França, perto da aldeia Cambrai; a parte mais religiosa do país, tornada famosa
pelo túmulo de São Martinho de Tours, e às virtudes legendárias de outros
santos. Clóvis era pagão, mas sua esposa, Clotilda, abraçou a fé católica. Ela já
havia instado muito para que se tornasse cristão, mas ele era bastante incrédulo.
Por fim, quando se envolveu em uma batalha contra os alamanos, achando-se
em perigo, pensou no Deus de Clotilda, e orou a Ele, reconhecendo que seus
antigos deuses falharam, e fazendo um voto de se tornar cristão, se obtivesse a
vitória. A maré da batalha virou: seus inimigos foram derrotados; e, fiel ao seu
voto, Clóvis foi batizado pelo bispo Remígio, em 496 d.C.. Três mil guerreiros
seguiram seu exemplo, declarando sua prontidão para abraçar a mesma religião
do rei deles.
Aqui temos outro Constantino. Clóvis considerou sua adesão ao cristianis­
mo mais favorável aos seus interesses políticos, e, portanto, nenhuma mudança
foi produzida em sua vida. Seu objetivo havia sido alcançado, sua ambição não
conhecia limites, seus atos eram ousados e cruéis. De um líder franco com
um pequeno território, ele passou a fundador da grande monarquia francesa.
E por sua confissão da fé católica, além da aliança com o pontífice romano,
ele foi reputado como o campeão do catolicismo, e único soberano ortodoxo
do Ocidente: todos os outros eram arianos. Alarico, conquistador de Roma;
Genserico, da África; Teodorico, o Grande, conquistador da Itália; e muitos reis
lombardos eram arianos. Por esta razão, os reis da França herdam de Clóvis o
título de “o Filho mais velho da Igreja”.
A H i s t ó r i a I n t e r n a d a I g r e ja
(245 d.C. -451 d.C.) | 295
Para o estudante da profecia bíblica, é interessante perceber que nesta
época pelo menos cinco ou seis reis bárbaros governavam as províncias romanas,
sobre o que havia sido o império latino. Mas isso passou. Roma morreu como
império, e tem de permanecer no lugar da morte até ressuscitar, como diz a
Palavra de Deus, no último dia (Apocalipse 13, 17).
Antes de concluirmos o período de Pérgamo, achamos necessário atentar,
ainda que brevemente, para estas três coisas: o estado interno da igreja, a con­
trovérsia pelagiana, e a controvérsia nestoriana.
R it o s
e
C e r im ô n ia s
Quanto mais o cristianismo era adotado por todos, como é de se imaginar,
mais decaía o esplendor e a beleza de tudo o que se relacionava à chamada
adoração a Deus. Igrejas eram construídas e adornadas com grande custo; os
sacerdotes oficiantes se vestiam com caros paramentos, a música ficou mais
elaborada, e muitas novas cerimônias foram introduzidas. As justificativas para
tais costumes estavam baseadas nos mesmos argumentos que a alta cúpula da
igreja usa para justificar os extravagantes rituais e cerimônias hoje em dia74. A
intenção era mostrar o evangelho aos pagãos através de cerimônias que ultrapas­
savam os rituais da antiga religião deles. Multidões eram atraídas para a igreja,
como hoje ainda o são, sem qualquer entendimento da nova posição delas, com
a mente repleta de conceitos pagãos, e corrompidos pela moralidade mundana.
Até nos primeiros dias do cristianismo encontramos irregularidades na igreja de
Corinto devido a essas práticas pagãs não abandonadas. A queima de velas à luz
do dia, incensos, imagens, procissões, purificações, e inumeráveis outras coisas
foram introduzidas no quarto e no quinto séculos. E como Mosheim observa:
“Enquanto a benevolência dos imperadores visava o desenvolvimento da religião
cristã, a impudente piedade dos bispos obscurecia sua verdadeira natureza e
sufocava seu vigor, pela multiplicação de ritos e cerimônias”.'5
Á In flu ê n c ia D e g e n e r a d o r a
d o R it u a l is m o
A tendência de todo ritualismo eclesiástico é produzir um espírito de
superstição para subverter a fé; de mero formalismo para substituir a direção
7,1 Veja A Igreja e o Mundo, 1866.
n História Eclesiástica, volume 1, Murdock e Soames. Robertson, volume 1.
296 I A
H i s t ó r i a d a I g r e j a - capítulo 12
do Espírito Santo; e de confiar nas boas obras carnais para suscitar a rejeição
da obra consumada de Cristo. A Palavra de Deus é deixada de lado na vida das
pessoas, o Espírito Santo é entristecido, e o coração é escancarado para a invasão
de Satanás. Quando a fé é exercida vigorosamente, a Palavra de Deus é seguida
à risca, e quando se confia na promessa da orientação do Espírito Santo, a alma
é fortalecida e animada pela vida divina, e as sugestões do inimigo ignoradas.
Satanás é arguto observador dos diferentes estados da alma do crente e da igreja
professa. Ele sabe quando será bem-sucedido em suas investidas contra os crentes,
individual ou coletivamente; ele espreita e aguarda a oportunidade. Quando o
adversário percebe que a mente está indo na direção errada, ele sussura, bajula,
estimula. Isso é muito sério!
A H er e sia P ela g ia n a
A condição da igreja no início do quinto século propiciou ao diabo uma
oportunidade para trazer uma nova heresia, que suscitou uma virulenta contro­
vérsia que continua com certa força até os dias atuais: o pelagianismo. A grande
heresia que agitava a igreja, o arianismo, surgiu no Oriente e se relacionava à
divindade de Cristo. Porém, agora nascia no Ocidente uma heresia que tinha
como tópicos a natureza do homem e seu relacionamento com Deus após a
queda. A primeira deturpava a imagem do pecador perdido, enquanto essa
última distorcia a imagem do Salvador divino.
Conta-se que Pelágio foi um monge do grande monastério de Bangor,
em Gales, provavelmente o primeiro bretão que se distinguiu como teólogo.
Seu nome verdadeiro era Morgan. Supõe-se que seu seguidor, Celéstio, tenha
nascido na Irlanda. Agostinho fala dele como sendo mais jovem que Pelágio
—mais arrojado e menos astucioso. Estes dois companheiros de erro visitaram
Roma, onde se tornaram íntimos de muitos religiosos de reputação ascética
e piedosa, e disseminaram suas opiniões com cautela e em caráter privado;
mas após o cerco do ano 410 d.C., ambos foram para a África, lugar no qual
divulgaram mais abertamente seus conceitos.
Não parece que Pelágio estava motivado por algum desejo de formar um
novo sistema doutrinário, mas sim de se opor ao que considerava indolência moral
e espírito mundano entre seus irmãos. Por esta razão, ele sustentava que o homem
possuía o poder inerente de fazer a vontade de Deus, e de alcançar o mais alto grau
de santidade. Assim seus conceitos teológicos eram em grande escala firmes e estru­
turados, porém totalmente falsos, e consistentes apenas com seu rígido ascetismo, e
os frutos nativos que o mesmo produzia. Como as Escrituras afirmam, sem sombra
A
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In
tern a da
I g r e ja
(245 d.C. - 451 d.C.) ( 297
de dúvida, que não existe qualquer bem no homem que possa merecer a graça
de Deus, ele também, em certo sentido, reconhecia isso; mas suas idéias sobre a
graça divina, de fato, eram nada mais que meios externos para ressaltar os esforços
humanos, pois Pelágio não via necessidade da operação da graça divina no coração
e nem da atuação do Espírito Santo, Isso o levou a ensinar que o pecado de Adão
e Eva atingiu somente a eles mesmos, e que o ser humano nasce tão inocente e
com o mesmo poder moral e pureza que Adão no momento em que foi criado por
Deus. Pelágio e Celéstio disseminaram tais doutrinas, e outras ligadas a elas, prin­
cipalmente a idéia do livre arbítrio do homem - “um poder imparcial de escolha
entre o bem e o mal”, em Roma, Sicilia, África e Palestina; mas, exceto no Oriente,
via de regra a novidade foi condenada. João, bispo de Jerusalém, considerando as
doutrinas de Pelágio semelhantes aos conceitos de Orígenes, ao qual estava ligado,
o favoreceu, permitindo-lhe declarar suas teses livremente, e fazer discípulos.76
A g o s t in h o e a G r a ç a D iv in a
Agostinho, o famoso bispo de Hipona, a grande luz evangélica do
Ocidente, e o mais influente de todos os escritores latinos, por volta desse
tempo, usando sua pena, começou a investir com violência contra as doutrinas
de Pelágio e Celéstio. A ele também é atribuído, de forma principal, ter sido
/6 “O erro fundamental do monge Pelágio foi negar nossa total corrupção causada pelo pecado de
Adão, e expiado unicamente pela morte e ressurreição do segundo Homem, o último Adão. Por
isso ele afirmava que a liberdade agora estava disponível a todos os homens, não apenas no sentido
de estar isento de restrições externas, mas de liberdade intrínseca da natureza em relação ao bem
e ao mal, negando assim a escravidão inata da raça humana ao pecado. Portanto, parece que,
mesmo em sua aplicação cristã, Pelágio compreendia a graça como um pouco mais que o perdão
desta ou daquela ofensa, e não como a concessão de uma nova natureza ao crente, devido a qual
ele não pratica o pecado, pois nasceu de Deus. E não havia espaço no sistema pelagiano para o
homem perdido de um lado, e para o crente salvo de outro. N a verdade, a raça foi concebida para
estar em inocência como o estado primeiro de Adão, e a culpa e suas consequências recairão só
sobre o indivíduo que pecar. Os pelagianos não reconheciam a imputação do pecado de Adão,
tomando-o apenas como um péssimo exemplo que influencia outros. Assim, enquanto a ruína
moral do homem o fazia perder a força, bem como o relacionamento com o Cabeça da igreja,
por um lado, pelo outro lado, sob a graça, estavam contadas todas as naturais e as sobrenaturais
dotações da família humana. Por isso, a lei da consciência e o evangelho eram considerados como
diferentes métodos e diferentes estágios de justiça, sendo os recursos e operações da graça válidos
apenas de acordo com as tendências da vontade. Novamente, a redenção em Cristo se tomou,
se não um mero aperfeiçoamento, com certeza uma exaltação e transfiguração da humanidade.
O próprio Cristo não era nada além do padrão supremo de justiça, Alguém que estimulava uns
a guardarem perfeitamente a lei moral, e, por Sua obra, estimulava outros ao amor e ao exemplo
pelos conselhos da perfeição moral superior à lei” - W. Kelly.
298
IA
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is t ó r ia
da
Ig
r e ja
-
capítulo 12
usado como instrumento de Deus para impedir o crescimento dessa seita naquele
período. Tendo passado por uma conversão dramática, e por um profundo
exercício de alma, Agostinho havia sido treinado pelo Senhor para tal encargo.
Portanto, o Todo-Poderoso Deus já tinha, em secreto, levantado um opositor a
Pelágio, para trazer uma visão escriturística do evangelho da graça que jamais
fora ensinada desde o tempo dos apóstolos, e também uma maior plenitude
sobre a verdade, a santidade e humildade cristãs. E isso aproveitando o ensejo
dado pela própria heresia pelagiana. As igrejas ocidentais, influenciadas por
Agostinho, insistiram em combater as falsas doutrinas com concílios, livros e
epístolas. Os gauleses, bretãos, e até os palestinos, por meio de seus concílios; e
os imperadores, com suas leis e penalidades, esmagaram a controvérsia em seu
nascedouro; mas os princípios fundamentais do pelagianismo permanecem até
hoje de muitas maneiras e em vários níveis. No entanto, ao invés de rastrear a
história dessa heresia, iremos analisar o que as Escrituras ensinam sobre os dois
principais pontos da questão.
a
C o n d iç ã o
R eflexões S o b r e
d o H om em e a G raça
de
D eus
Se somente os argumentos humanos fossem levados em consideração nesta
controvérsia, ela seria interminável; mas se a autoridade da Palavra de Deus
é reconhecida, então tudo logo se resolve. A raiz do pelagianismo e de suas
múltiplas formas é a seguinte: há algo de bom na natureza humana caída, e,
portanto, o homem tem o poder de escolher o que é bom e de rejeitar o mal. A
completa depravação do homem é negada, e todas as idéias sobre a graça divina
que pareçam inconsistentes com o livre-arbítrio do homem estão excluídas do
sistema deles. Mas o que dizem as Escrituras? Uma só linha da Palavra de Deus
satisfaz o homem de fé. E esse tem de ser o único argumento do mestre, do
evangelista e do cristão como indivíduo. Obrigatoriamente, temos sempre que
nos posicionar sobre o fundamento da fé contra nossos adversários.
Em Gênesis 6, Deus nos dá Seu veredito sobre a natureza humana caída:
“E viu o SENHOR que a maldade do homem se multiplicara sobre a terra e que
toda imaginação dos pensamentos de seu coração era só má continuamente”
(v. 5). Deus não encontrou qualquer outra coisa no homem a não ser o mal, e
mal sem interrupção. No mesmo capítulo lemos: “E viu Deus a terra, e eis que
estava corrompida; porque toda carne havia corrompido o seu caminho sobre
a terra” (v. 12). Não apenas a carne, mas, observe, toda a carne se corrompeu
sobre a terra. Aqui está a avaliação de Deus acerca da natureza corrupta; e, ao
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(245 d.C. - 451 d.C.) | 299
mesmo tempo, a revelação de Sua soberana graça para redimir a condição de
uma criatura assim julgada. Deus providenciou uma arca de salvação, e depois
enviou o gracioso convite: “Entra tu e toda a tua casa na arca” (7:1). A cruz é a
testemunha permanente e a grande expressão das profundas verdades tipificadas
na arca. Ali temos de maneira incomparável o julgamento divino da natureza
humana e de todo o mal que existe nela; e, concomitantemente, a revelação de
Seu amor e graça na plenitude do poder salvador delas/7
Todo o restante das Escrituras é consistente com Gênesis 6 e com a cruz
de Cristo. Vejamos, por exemplo, Romanos 5 e Efésios 2. No primeiro está
escrito que somos “fracos”; e no último, que estávamos “mortos”, em ofensas
e pecados. Logo no começo de Romanos, o apóstolo cuidadosamente prova a
ruína do homem e a justiça de Deus; e vemos o Seu amor no magnífico fato da
morte de Cristo por nós. “Porque Cristo, estando nós ainda fracos, morreu a seu
tempo pelos ímpios.” Mas por que “a seu tempo ’? Porque o homem não apenas
tinha provado que era “ímpio”, mas que era “fraco” para fazer qualquer coisa que
agradasse a Deus, para dar um passo sequer em direção a Ele. Sob a lei, Deus
mostrou ao homem o caminho e os meios designados, e lhe provou longamente;
mas o homem estava impotente para sair da terrível condição de pecador. Como
a verdade de Deus nos humilha, mas também como ela nos cura! E proveitoso
termos consciência de nosso estado de perdição. E como isso é diferente da falsa
teologia e da arrogante filosofia dos homens! Louvado seja Deus, que o estado do
homem (tão evidente) se tornou a oportunidade para a manisfestação da graça
salvadora; pela qual Jesus morreu. “Mas Deus prova o seu amor para conosco,
em que Cristo morreu por nós, sendo nós ainda pecadores.” Pela incredulidade o
homem se relaciona com o julgamento de Deus; ou pela fé o homem se relaciona
com Sua salvação. Não há meio-termo nem alternativa. A prova cabal de nossa
condição perdida e do gracioso amor divino é que “Cristo morreu por nós, sendo
nós ainda pecadores” (Romanos 5:6-10).
Efésios 2 não é um capítulo que trata da mera questão da doença moral
do homem, mas de sua morte. “E vos vivificou, estando vós mortos em ofensas
e pecados.” Em Romanos, o homem é visto como impotente, ímpio, pecador
e inimigo; aqui como moralmente morto, a pior forma de morte, da qual se
origina a mais ativa impiedade. “Em que noutro tempo andastes segundo o
curso deste mundo, segundo o príncipe das potestades do ar, do espírito que
agora opera nos filhos da desobediência.” Que golpe no alegado poder do homem
de escolher entre o bem e o mal! Pelo contrário, aqui ele é visto sob o governo
de demônios, como escravo de Satanás. As pessoas estão mais dispostas a se
" Para mais detalhes, consultar Notas sobre o Livro de Gênesis.
A H
ist ó r ia da
I g r e ja - capítulo 12
enxergarem como ímpias que como impotentes. Vangloriam-se de terem suas
próprias opiniões, de sua independência e capacidade de julgar e escolher por si
mesmas no que tange às coisas espirituais.
Um dos dogmas preferidos de Pelágio, ou melhor, a fundação de seu
sistema é: “Assim como o homem tem a habilidade de pecar, assim também ele
não apenas tem a habilidade de discernir o que é bom, mas o poder de querer e
de realizar tal coisa. Isso é a liberdade da vontade, tão essencial ao homem que
ele não pode perdê-la”. Mencionamos essa noção falsa simplesmente porque ela
penetra tanto na mente natural que, mesmo após a conversão, é dificílimo se livrar
dela, o que a torna sempre um grande entrave à obra da graça divina na alma.
Visto que o homem está morto em seus pecados, Deus e Sua obra obrigatoria­
mente teriam de realizar tudo. E óbvio que existe uma grande variedade entre os
homens naturais, no que se refere a fazer “os desejos da carne e dos pensamentos”.
Alguns são caridosos e morais, outros vivem na mais grosseira e aberta impiedade,
enquanto há os que se satisfazem com objetivos nobres. Mas o que motiva a todos?
Fazer a vontade de Deus? Absolutamente não! Deus não está em nenhum dos
seus pensamentos. Eles são energizados pelo espírito de Satanás, e dirigidos por
ele segundo o curso deste mundo. “Nenhum servo pode servir a dois senhores,
porque ou há de aborrecer a um e amar ao outro ou se há de chegar a um e
desprezar ao outro. Não podeis servir a Deus e a Mamom” (Lucas 16:13).
C omo
o
H o m em
é
R espo nsável ?
Talvez alguns perguntem: onde e como fica a responsabilidade do homem?
Certamente o homem é responsável por reconhecer que Deus é verdadeiro, e
admitir que, embora humilhante, é justa Sua sentença sobre a natureza e caráter
humanos. “Se recebemos o testemunho dos homens, o testemunho de Deus é
maior” - 1 João 5:9. Aceite esse quadro sombrio que Deus pinta sobre o homem
e se reconheça nele, dizendo: “Esse sou eu, isso é o que tenho feito, é o que sou”.
A salvação vem pela fé; não por desejar, escolher, fazer, mas por crer. “Porque Deus
amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigénito, para que todo aquele
que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna. Porque Deus enviou o seu Filho
ao mundo, não para que condenasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo
por ele... E a condenação é esta: Que a luz veio ao mundo, e os homens amaram
mais as trevas do que a luz, porque as suas obras eram más” (João 3:16-19).
Quem pode alegar que não enxerga a responsabilidade surgida nessa
exposição da bondade divina em Cristo; responsabilidade de cunho óbvio, solene
e significativo. Tanto que a evidência é conclusiva e definitiva, e aquele que
não crê já está julgado diante de Deus. Observe que não é uma questão de não
A
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tern a
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r e ja
(245 d.C. - 451 d.C.)
encontrarem perdão, mas de preferirem as trevas à luz, para que possam continuar
no pecado. Isso é o que Deus alega contra eles, e haveria algo mais justo ou
razoável para a condenação? Impossível. Nosso maior anseio é que todos os que
lessem estas páginas se curvassem à humilhante sentença das Escrituras acerca da
nossa natureza, e se reconhecessem como pecadores aos olhos de Deus. Então o
misericordioso e gracioso Deus os envolveria com a grandeza de Seu amor, e os
abençoaria com tudo o que é devido a Cristo, como Salvador da humanidade.
Os N e s t o r i â n o s
Como a seita chamada de nestoriana ocupa um lugar importante na
história da igreja, temos de falar brevemente sobre sua origem. As vezes são
chamados de sírios, pois seu fundador era da Síria. Cremos que eram numerosos
na Síria naquele tempo, mas não receberam proteção do governo turco a que
tinham direito, e, portanto, ficaram expostos a frequentes assaltos das tribos
destruidoras. Milhares de nestoriânos nas montanhas do Curdistão, incluindo
homens, mulheres e crianças foram massacrados em 1843 d.C., e suas vilas
arrasadas por tribos curdas. Desde 1834 d.C., uma interessante missão foi
estabelecida entre eles pelo Conselho Americano de Missões Estrangeiras. As
características e o procedimento dessa missão são mencionadas pelo Dr. Grant,
um dos missionários ligados a ela, que residiu entre os nestoriânos por um bom
tempo, tendo estudado seus costumes e hábitos com grande exatidão e cuidado,
publicando um tratado com o objetivo de provar que esse povo era descendente
das dez tribos de Israel. Mas as conclusões do Dr. Grant, como outras sobre o
mesmo assunto, podem ser questionadas.78
Nestório, monge sírio, se tornou um presbítero da igreja em Antioquia. Era
estimado e famoso pela rígida austeridade de sua vida, e o impressionante fervor
de sua pregação. Ele atraía audiências grandes e atentas, e logo se tornou o favorito
do povo. No ano 428 d.C., foi consagrado bispo de Constantinopla. Porém, a
disciplina do claustro não o preparou para tão importante posição na vida pública.
Assim que foi elevado ao cargo, começou a demonstrar um zelo excessivo contra as
várias classes dos heréticos, que mais fazia parte do fanatismo de um monge que do
paciente espírito do genuíno cristianismo. Em seu discurso inaugural, dirigindo-se
ao imperador Teodósio, o jovem, ele se pronunciou com estas violentas expressões:
“Dê-me uma pátria expurgada de todos os heréticos, e, em troca, eu lhe darei o
céu. Ajude-me a subjugar os heréticos, e eu lhe ajudarei a subjugar os persas”. Não
muito tempo depois disso, o próprio Nestório foi acusado de heresia.
/S Crenças do Mundo, de Gardner, volume 2.
301
I
| A H
is t ó r ia d a
I g r e ja - capítulo 12
As declarações de guerra do novo bispo logo seguiram-se atos de violência
e perseguição. Ele incitou tumultos entre o povo: os arianos e outras seitas foram
atacados, e seus locais de reunião, queimados. Contudo, tais procedimentos se
voltaram contra ele mesmo. Uma numerosa hoste, dentre os quais até ortodoxos,
se empenhou por sua queda, e com rapidez a conseguiu. Aconteceu assim.
A n a st á c io
e
M
a r io l a t r ia
Anastácio, presbítero que acompanhou Nestório desde Antioquia e era
seu amigo íntimo, em um discurso público atacou a expressão “Mãe de Deus”,
aplicado à Virgem Maria. Este termo carregava a autoridade do uso consagrado
pela tradição, e o suporte de muitos nomes de peso. Nestório aprovou o discurso,
apoiando seu amigo, e fez algumas preleções explicando e justificando o ataque.
Muitos se contentaram com as preleções, enquanto outros se inflamaram contra
Nestório e seu amigo. A agitação em Constantinopla era imensa; os gritos de
“Heresia, heresia! ” se ergueram, e se acenderam as chamas de uma grande e
dolorosa controvérsia.
A D if e r e n ç a E n t r e
N e st ó r io e S eus O p o n e n t e s
Em nenhuma das outras batalhas doutrinárias os lados opostos se asse­
melhavam tanto. Ambos assinaram o credo niceno, e também apelaram a ele;
ambos criam na absoluta divindade e na perfeita humanidade do Senhor Jesus.
Porém, o que os inimigos de Nestório, em especial Cirilo, deduziram a partir
de sua objeção ao termo “mãe de Deus” é que ele era heterodoxo no que se
referia à encarnação. No sentido utilizado pelos mestres do século anterior, o
significado e importância da expressão em disputa não implicavam somente que
a Virgem comunicara a divina natureza ao Salvador, mas servia para afirmar a
união da divindade e da humanidade em uma Pessoa - que o menino nascido,
e o filho dado (Isaías 9:6) - era Deus encarnado. Divulgou-se que Nestório
sustentava apenas a humanidade do Redentor, e que o Espírito passou a habitar
Nele somente após ter se tornado Homem, como nos profetas. Mas Nestório
enquanto viveu professava-se totalmente contrário a tais pensamentos. De fato,
não parece que tais idéias tenham vindo diretamente dele. Isso foi uma inferência
feita por seus adversários e baseada na rejeição do epíteto “mãe de Deus”, e de
alguns outros termos ambíguos e vagos que ele usava em seus discursos públicos
sobre o tema.
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(245 d.C. - 451 d.C.) | 30 3
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Cirilo, bispo de Alexandria, nesta celeuma, se destacou como o grande
campeão da ortodoxia. No entanto, todos os historiadores concordam em
descrevê-lo como um homem soberbo, de caráter totalmente contrário ao de
um cristão. Ele é acusado de ser motivado pela inveja, devido ao crescimento
do poder e da autoridade do bispo de Constantinopla; e de ser implacável,
arrogante e inescrupuloso em seus caminhos. Também era violento contra os
heréticos, bem como Nestório. Ele perseguiu os novacianos, e expulsou os judeus
de Alexandria. Um zelo sincero e piedoso talvez impulsionasse esses dois grandes
prelados, mas ambos falharam por completo em unir o zelo que possuíam com
a prudência e a moderação cristãs, estando tão prontos a associá-lo às piores
paixões da natureza humana.
Cirilo foi envolvido na controvérsia ao achar cópias dos sermões
de Nestório circulando entre os monges do Egito, e perceber que haviam
abandonado o termo “mãe de Deus”. Considerou culpados tanto os monges
quanto Nestório, e denunciou a novidade como heresia. Todas as partes logo
entraram na celeuma, e duras palavras foram usadas, as quais não cabe repetir
aqui. Basta dizer que, quando Nestório descobriu o que Cirilo estava urdindo
para garantir a influência de Celestino, bispo de Roma; percebendo que estava
em uma situação difícil, ele apelou para um concílio geral. Como alguns de
seus oponentes também já haviam feito uma petição neste sentido, o imperador
Teodósio concordou e publicou um édito para uma reunião em Efeso, no ano
431 d.C., que ficou conhecida como o Terceiro Concílio Geral. A assembléia
aconteceu em junho. Cirilo, em virtude da distinção de sua diocese, a presidiu.
Nestório sofreu uma derrota completa: foi julgado culpado de blasfêmia, privado
da dignidade episcopal, cortado sumariamente do sacerdócio, e enviado ao
exílio, no qual morreu por volta do ano 450 d.C..
Cerca de 200 bispos assinaram a sentença contra Nestório. Mas ainda
permanece entre os historiadores a questão se ele realmente era culpado dos
erros pelos quais foi condenado. No entanto, todos concordam que Nestório
era impulsivo e destemperado em sua linguagem, vaidoso de sua própria
eloquência, desconsiderando os escritos dos primeiros Pais e, prontamente
disposto a ver heresia em tudo o que era diferente da fraseologia dogmática
com a qual estava familiarizado em sua juventude. Porém, é difícil determinar,
com precisão, quem foi o principal originador dessa enorme disputa: Cirilo ou
NestórioP
/l> M anual dos Concílios, de Landon; Neander, volume 4; Mosheim, voume. 1.
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capítulo 12
O En c e r r a m e n t o
do
P e r ío d o
de
P érgam o
O
concílio de Éfeso não conseguiu colocar um ponto final nessas
infames contendas. Ao invés de restaurar a harmonia da igreja, ele aumentou os
problemas. João, bispo de Antioquia, e outros prelados do Oriente, consideraram
que Cirilo e seus partidários agiram com injustiça e precipitação inadequadas
no caso de Nestório. Consequentemente se levantou uma nova controvérsia, e
uma nova heresia surgiu: eutiquianismo, que perturbou as igrejas orientais por
cerca de vinte anos.
Eutiques, abade de um convento em Constantinopla, em sua impetuosa
oposição ao nestorianismo, foi para o extremo oposto. Ele foi acusado de
heterodoxia sobre as doutrinas da encarnação, e denunciado como herético. Isso
levou a outro concílio, marcado em Calcedônia, no ano 451 d.C., e chamado
de o Quarto Concílio Geral. Mas os detalhes dessas contendas locais fogem da
abrangência de nossas “Breves Notas”. Nosso objetivo é dar ao leitor um esboço
claro, no menor espaço possível; e apresentar alguns detalhes em casos onde o
nome da pessoa se tornou sinônimo de seus ensinos, como Ario, Pelágio, etc;
ou quando eventos, como perseguições, causaram impacto sobre a harmonia da
igreja durante as eras.
Para a realização desses propósitos, será necessário voltar nossa atenção
mais especificamente para o crescimento do poder e das grandiosas ambições da
igreja de Roma. Em Leão, o Grande, podemos ver o encerramento do período
de Pérgamo, e a aproximação da monarquia papal. Mas antes de nos aventu­
rarmos nessas águas turbulentas, devemos estudar bem nosso mapa divino —a
história profética da igreja durante aquele escuro e, frequentemente, tempestuoso
período.
A E p ís t o l a
à
I g r e ja
de
T ia t ir a
V | —^ ao anjo da igreja de Tiatira escreve: Isto diz o Filho de Deus,
I jjf " ' que tem seus olhos como chama de fogo, e os pés semelhantes ao latão
-M— reluzente: Eu conheço as tuas obras, e a teu amor, e o teu serviço, e a
tua fé, e a tua paciência, e que as tuas últimas obras são mais do que as primeiras.
Mas tenho contra ti que toleras Jezabel, mulher que se diz profetisa, ensinar
e enganar os meus servos, para que se prostituam e comam dos sacrifícios da
idolatria. E dei-lhe tempo para que se arrependesse da sua prostituição; e não se
arrependeu. Eis que a porei numa cama, e sobre os que adulteram com ela virá
grande tribulação, se não se arrependerem das suas obras. E ferirei de morte a
seus filhos, e todas as igrejas saberão que eu sou aquele que sonda os rins e os
corações. E darei a cada um de vós segundo as vossas obras. Mas eu vos digo a
vós, e aos restantes que estão em Tiatira, a todos quantos não têm esta doutrina,
e não conheceram, como dizem, as profundezas de Satanás, que outra carga vos
não porei. Mas o que tendes, retende-o até que eu venha. E ao que vencer, e
guardar até ao fim as minhas obras, eu lhe darei poder sobre as nações, e com
vara de ferro as regerá; e serão quebradas como vasos de oleiro; como também
recebi de meu Pai. E dar-lhe-ei a estrela da manhã. Quem tem ouvidos, ouça o
que o Espírito diz às igrejas” (Apocalipse 2:18-29).
Enxergar o papado da Idade Média prenunciado nesta epístola requer
um pouco de discernimento espiritual e também um razoável conhecimento da
história eclesiástica. Vemos em Efeso o declínio do primeiro amor; em Esmirna
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capítulo 13
vemos a perseguição do poder de Roma; em Pérgamo, Balaão seduzindo a
igreja e unindo-a ao mundo; mas tudo se torna pior em Tiatira. Aqui temos as
terríveis, mas naturais consequências desta união profana. E como poderia ser
diferente, uma vez que todos os que se submetiam ao rito exterior do batismo
eram considerados nascidos de Deus? A porta foi escancarada para o destruidor
e corruptor entrar no recinto sagrado da igreja de Deus. Findou-se o testemunho
quanto ao caráter celestial da igreja e seu lugar de separação do mundo. A igreja
falsificou a palavra que o Senhor disse acerca de Seus discípulos: “Porque não
são do mundo, assim como eu não sou do mundo” (João 17:14). Aparentemente,
o cristianismo obteve a vitória. A cruz agora estava enfeitada de ouro e pedras
preciosas; mas isso era a glória do mundo, não a glória do Cristo crucificado. De
fato, foi o mundo que venceu, sendo completa a humilhação da igreja.
Somente o Senhor podia avaliar com precisão as tenebrosas consequências
desse estado de coisas. Seus olhos viam a corrupção, a idolatria, as perseguições
da chamada “era das trevas”, da qual a igreja de Tiatira era uma notável prefi­
guração. Veremos resumidamente o conteúdo da epístola.
1. Os títulos do Senhor serão os primeiros a serem analisados. Eles estão
repletos de instrução para os poucos fiéis, em um período no qual o
conjunto geral dos cristãos está identificado com o mundo. Ele Se
apresenta como Filho de Deus, que tem olhos como chama de fogo,
e pés como latão reluzente. Quando Pedro confessou que Jesus era o
Cristo, o Filho do Deus vivo, Ele imediatamente acrescentou: “Sobre
esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não preva­
lecerão contra ela” (Mateus 16:18). E, em antecipação a tudo o que
viria, Ele faz Seu povo lembrar da imutável fundação sobre a qual a
igreja está edificada. E também assume os atributos do julgamento
divino. Fogo é símbolo de penetrante juízo; olhos como chamas de fogo,
de minucioso juízo; e pés como latão reluzente, de iminente juízo.
Portanto, temos nas características com as quais o maravilhoso Senhor
se apresenta a perfeita segurança do remanescente fiel, e a garantia do
infalível julgamento da falsa profetisa e sua corja de filhos malignos
- filhos de sua sedução e corrupção. Jezabel não era apenas uma
profetisa, era também mãe: ela não apenas seduzia o povo de Deus
por intermédio de suas falsas doutrinas, assassinando muitos deles;
mas sua corrupção deu origem a uma incontável classe dos piores seres
humanos. Isso se manifestou dolorosamente durante a era das trevas
—o estado da igreja era o próprio estado de Jezabel. Ela se estabeleceu
dentro da igreja como se fosse sua casa, e divulgou ao mundo que era
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infalível e que deveria ser implicitamente obedecida em tudo o que se
relacionava à fé. Sujeitar-se a tal blasfêmia era ser infiel a Cristo; opor-se
a ela significava sofrimento e morte.
2. A medida que as ambições de Roma cresciam, de forma exagerada,
e as trevas ficavam cada vez mais densas, muitos santos de Deus se
tornaram mais e mais dedicados a Cristo e à Sua Palavra. “O que é
devido a Cristo ’ tem de ser o lema do cristão sempre, e não o que
é devido aos que ocupam altas posições. Parecia haver uma energia
espiritual naquele tempo que se elevou sobre tudo o que se tinha visto
desde os dias dos apóstolos. Essa é a graça - a maravilhosa graça de
Deus para os Seus santos verdadeiros na hora da maior provação. Essa
é a linha prateada de Seu amor, tão precioso aos Seus olhos. Talvez não
sejamos capazes de rastreá-la na história eclesiástica, mas ela está ali,
e ali brilha aos olhos e ao coração de Deus até em meio à abundante
iniquidade. Isso é para ser observado e sempre lembrado como o maior
encorajamento do cristão durante as provas. Ouça o que o próprio
Senhor diz:
“Eu conheço as tuas obras, e a teu amor, e o teu serviço, e a tua fé, e a
tua paciência, e que as tuas últimas obras são mais do que as primeiras.”
Aqui temos o amor, a paciência e a esperança em plena atividade, os
três grandes princípios fundamentais do cristianismo bíblico prático; e
as últimas obras maiores que as primeiras. Ainda não nos deparamos
com esse fiel testemunho, nem como tal medida de consagração, desde
os primeiros dias da igreja em Tessalônica. Contudo, a impiedade
reinante torna a fidelidade do remanescente ainda mais preciosa ao
coração do Senhor, e o leva a elogiá-los mais. Nos dias maus, nenhum
coração que O deseje sinceramente passa despercebido, desconhecido
e sem recompensa.
3. Porém, embora o Senhor goste de elogiar o que pode em Seu povo, e
observe as boas coisas antes de falar das más, Ele também é perspicaz
em detectar as falhas. Eles corriam o risco de adulterarem com a
falsa doutrina e com o falso sistema religioso de Jezabel, por isso Ele
declara:
“Tenho contra ti que toleras Jezabel, mulher que se diz profetisa,
ensinar e enganar os meus servos, para que se prostituam e comam
dos sacrifícios da idolatria” (v. 20). Apesar da fidelidade de muitas
almas sinceras em Tiatira (ou na igreja medieval), havia uma pública
condescendência com o espírito do mal: “Toleras Jezabel, mulher que
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I g r e ja - capítulo 13
se diz profetisa”. Essa é uma sombra escura sobre a linha prateada que,
às vezes, parece completamente encoberta. Mas o Senhor nunca falha
em suscitar testemunhas dignas de Seu Nome, como já demonstrado
no passado. Assim como havia santos na casa dos césares, um Obadias
na casa de Acabe, e em Israel um remanescente leal que não dobrou os
joelhos a Baal, da mesma maneira, o Senhor não deixou a Idade Média
sem um testemunho fiel. Entretanto, no estado geral das coisas havia
uma permissão para o mal agir, o que entristecia o coração do Senhor
e apressava Seus juízos.
É bom notar que “mulher” é usada como um símbolo do estado geral;
“homem” como um símbolo da atividade responsável. Balaão e Jezabel
são nomes simbólicos - um profeta e uma profetisa. O primeiro
atuava como um sedutor entre os santos; a última se estabelecia
dentro da igreja professa, e simulava ter a autoridade absoluta ali. Isso
era muito mais profundo que a impiedade de Balaão. Todos sabemos
o que Jezabel foi quando se sentou no trono de Israel como rainha.
Seu nome chega a nós envolto em crueldades e sangue. Ela odiava e
perseguia as testemunhas de Deus; encorajou e favoreceu os sacerdotes
idólatras e profetas de Baal; acrescentou violência à corrupção, e tudo
se transformou em caos e ruína. E esse foi o nome que o Senhor
escolheu para simbolizar o estado geral da igreja professa durante a
Idade Média. Em Tiatira, Ele, cujos olhos são como chamas de fogo,
podia ver o germe do que iria dar tão maligno fruto no futuro, e
adverte Seu povo a segurar firmemente o que já tinham, inclusive a Ele
mesmo. “Outra carga vos não porei. Mas o que tendes, retende-o até
que eu venha.” Como o estado de Jezabel persiste até o fim e jamais
pode ser corrigido, o Senhor agora direciona a fé do remanescente
para Seu próprio retorno, “até que eu venha”. A refulgente esperança
de Sua vinda é apresentada como um consolo para o coração em meio
à ruína geral; e Seus santos são aliviados pelo próprio Senhor da carga
de tentar corrigir a igreja ou o mundo. Que libertação misericordiosa!
Mas a pobre natureza humana não consegue entender isso, e tenta, e
tenta de novo, consertar as coisas tanto na igreja quanto no mundo.
4. Temos três classes de pessoas em evidência nesta epístola. (1) Os filhos
de Jezabel - os que devem seu nome e seu lugar de cristãos ao sistema
corrupto dela. Um juízo impiedoso alcançará todos estes. Foi lhes dado
tempo para arrependimento, mas nao se arrependeram, portanto, o
pleno julgamento de Deus cairá sobre eles. “E ferirei de morte a seus
filhos.” (2) Os que não são filhos dela, mas não lhe resistiram; são os
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negligentes. Infelizmente, estes constituem a maioria nos dias atuais, e
caracterizam o estado público da cristandade. Sem consciência diante
de Deus, se contentam em flutuar ao sabor da corrente, em comunhão
com qualquer sistema religioso mais agradável à mente deles. Nunca
perguntam se isso está de acordo com a mente de Deus. Porém, ainda
são Seus filhos. O julgamento para tais é “grande tribulação, se não se
arrependerem das suas obras”. (3) O fiel remanescente, os “vencedores”.
Aqui são chamados de “restantes” ou remanescente, eles terão poder
sobre as nações junto com Cristo quando Ele vier para reinar. Nesse
meio-tempo, eles têm essa doce e preciosa promessa: “E dar-lhe-ei a
estrela da manhã”. Isso é consciente associação com Ele mesmo desde
agora. A igreja medieval foi culpada de duas coisas em especial: (1) de
ter arrogante e impiamente procurado usurpar o supremo poder sobre
as nações; (2) e de ter perseguido o fiel remanescente dos santos, tal
como os valdenses e outros. Mas os santos, mesmo tão perseguidos,
possuirão o reino, e reinarão com Cristo mil anos, e todo o sistema
de Jezabel será completa e definitivamente rejeitado: “É forte o Senhor
Deus que a julga” (Apocalipse 18:8).
5. Há algo em especial para notarmos neste esboço do estado público da
cristandade no início do sistema papal. A admoestação para “ouvir” é
colocada após a promessa especial. Isso marca o remanescente como
um conjunto distinto e separado do corpo em geral. Para as primeiras
três igrejas, a frase “Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às
igrejas” vem antes da promessa; mas nas quatro últimas a promessa
vem antes do chamado para ouvir o Espírito Santo. O significado
óbvio dessa mudança é profundo. Nas três primeiras o chamado para
ouvir é dirigido à assembléia inteira; nas quatro outras é somente para o
remanescente. Parece que não se espera que ninguém mais ouça, além
dos vencedores. O corpo professo parece estar cego e surdo devido
ao poder de Satanás e às contaminações de Jezabel. Que condição
lastimável! Temos de ter em mente que os quatro estados representa­
dos pelas quatro últimas igrejas falam do fim ou da vinda do Senhor.
Que o Senhor nos guarde de todos os feitiços de Jezabel, a fim de que
possamos apreciar por completo nossa unidade com Ele mesmo, e Suas
prometidas bênçãos aos “vencedores”.
Tendo visto, de modo rápido, a figura divinamente pintada do estado
de Jezabel no qual a igreja se encontrava durante a era das trevas, voltemos aos
abundantes e sombrios registros de sua história.
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H i s t ó r i a d a I g r e j a - capítulo 13
O C o m eço
do
P e r ío d o Papal
Em geral se admite que esse período começa com o pontificado de
Gregório, o Grande, no ano 590 d.C., e termina com a Reforma na primeira
parte do século XVI. Mas antes de entrarmos na história geral, tentaremos
responder uma pergunta que certamente passa pela cabeça de muitos: quando,
e por quais meios, o poder caiu nas mãos dos pontífices romanos, conduzindo
à supremacia e ao despotismo deles durante a Idade Média? A questão é inte­
ressante, mas uma resposta abrangente irá nos levar para fora de nossos limites.
Iremos apontar alguns fatos na cadeia de eventos que lançaram a fundação do
grande poder e soberania da Diocese de Roma.
A partir do famoso édito de Milão, em 313 d.C., a história da igreja
mudou de característica. Passou da condição de aflita e perseguida para o
ápice da prosperidade e honra mundanas; e ela se envolveu em outras questões
alheias ao cristianismo. Ao se aliançar com o Estado, o futuro da igreja, neces­
sariamente, seria formado por novos relacionamentos. Agora ela já não mais
podia agir simplesmente no nome do Senhor Jesus, e de acordo com Sua santa
Palavra. Tampouco uma fusão completa poderia ocorrer. A igreja era do céu, e
o Estado, do mundo. Eles são opostos um ao outro por natureza. Ou a igreja
iria ser a esposa do Estado, ou o Estado iria usurpar o sacerdócio da igreja e
desconsiderar seus direitos inatos. E foi exatamente o que aconteceu. Logo após
a morte de Constantino, a batalha pelo governo do mundo começou entre esses
dois grandes poderes, igreja e Estado; e para garantir o sucesso nessa guerra,
os pontífices romanos lançaram mão de recursos e estratégias que não iremos
relatar aqui, pois surgirão diante de nós no devido tempo.
Antes de Constantino transferir a capital do império para Bizâncio e
construir Constantinopla, Roma já era reconhecida como metrópole, e seu bispo,
como primaz. Mas quando Constantinopla se tornou a cidade imperial, seu bispo
foi elevado à condição de patriarca, e logo reivindicou a dignidade dos pontífices
romanos. Isso era o começo da igreja grega como um conjunto separado, e
de uma longa batalha entre o Ocidente e o Oriente. Portanto, haviam quatro
patriarcas, de acordo com o plano do imperador: em Roma, Constantinopla,
Antioquia e Alexandria. A condição de bispo implicava superioridade na cidade
presidida por ele; e como Constantinopla se tornou a capital do mundo, seus
bispos não ficariam abaixo de nenhum outro em honra e magnificência. Os
outros bispos eram invejosos, Roma reclamou, a disputa começou, a brecha se
alargou; mas ela jamais descansou até conquistar a supremacia sobre seus fracos
e menos ambiciosos adversários.
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Á s V a n t a g en s
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R oma
A corte de Constantinopla, embora pudesse encorajar as esperanças e
ambição dos bispos, afetava o governo da igreja com um poder despótico,
e decidia as mais graves controvérsias religiosas. Mas no Ocidente não era
assim. Os pontífices romanos desde esse período manifestavam o indepen­
dente e agressivo espírito do papado, que se elevou às maiores alturas nessa
época. Portanto, os bispos do Oriente estavam em desvantagem por causa da
dependência que tinham da corte e de suas rixas com os imperadores. Além
disso, a presença e majestade do soberano oriental mantinha a dignidade do
bispo em segundo lugar. Em Roma não havia espaço para contestar a posição
ou o estilo do pontífice.
Um fator que contribuiu para o desenvolvimento do poder eclesiástico
em Roma foi que a cidade não era mais a residência oficial dos imperadores.
Ela ainda era venerada como a capital do mundo, mesmo que os soberanos não
estivessem mais ali. Portanto, Roma possuía muitas vantagens como a base do
sumo pontífice. Porém a razão principal que acelerou e consolidou o poder da
diocese romana foi a crença, disseminada por toda a cristandade, que fora São
Pedro que a fundara. Os bispos romanos afirmavam que a superioridade deles se
originava de sua descendência linear de São Pedro, e não da grandeza imperial
da cidade. Este dogma foi aceito por todos no começo do quinto século.
Mediante tais argumentos, a igreja de Roma estabeleceu seu direito de
reger a igreja universal. Ela afirmava que Pedro foi o primaz entre os apóstolos,
e que sua primazia foi herdada pelos bispos de Roma. Mas é bom observar dois
aspectos do romanismo: o eclesiástico e o político. Em ambas as esferas, a igreja
romana reivindicava a supremacia. No âmbito eclesiástico, ela sustentava que (1)
o bispo de Roma é o juiz infalível em todas as questões doutrinárias; (2) ele tinha
o direito inerente e supremo de convocar e presidir concílios gerais; (3) o direito
de ordenações eclesiásticas pertencia a ele; (4) a separação da comunhão da
igreja de Roma implicava culpa de cisma. Politicamente, reivindicava, desejava
e, por fim, conseguiu a preeminência e poder sobre a sociedade e os governos
europeus. Veremos abundantes provas dessas particularidades no decurso da sua
bem definida história, que continuaremos agora.
E somente após o primeiro Concílio de Nicéia que a supremacia dos
bispos romanos foi sendo firmada. Tanto é que os primeiros bispos de Roma
mal são conhecidos na história eclesiástica. Foi a ascensão de Inocêncio I,
no ano 402 d.C., que conferiu força e definição a esse novo princípio da
igreja latina. Até esse momento não havia nenhum reconhecimento legal do
312 I A
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- capítulo 13
predomínio de Roma, embora fosse considerada a principal igreja no Ocidente,
a quem outros grandes bispos recorriam quando necessitavam de um julgamento
espiritual em casos de disputa. Quando a igreja grega caiu no arianismo, a
latina aderiu firmemente ao credo niceno, o que a elevou na opinião de todo o
Ocidente. “Na mente de Inocêncio”, diz Milman, “pela primeira vez parece ter
raiado a vasta concepção da supremacia eclesiástica universal de Roma; enevoada
e indistinta até então, mas plena e abrangente em seu esboço.”
"k
&
*k
L eão I, o G r a n d e
Podemos passar sem interrupção do nome de Inocêncio para o de Leão,
que ascendeu à cadeira de São Pedro em 440 d.C., e a ocupou por 21 anos. Ele
se destacou por suas notáveis habilidades políticas, erudição teológica, e grande
energia eclesiástica. Declarou com a arrogância dos romanos e o zelo de um
clérigo que todas as pretensões e práticas de sua igreja eram questões de contínua
sucessão apostólica. Mas, por outro lado, ele parece ter sido idôneo na fé no
tocante à salvação, e zeloso opositor de todos os heréticos. As igrejas orientais
haviam perdido o respeito da cristandade por suas longas e infames controvér­
sias. Poder, e não sutilezas, era a ambição de Roma. Leão condenou o grupo
inteiro dos heréticos, de Ário a Eutiques; e, em especial, a heresia maniqueísta.
Por seus grandes esforços e habilidades extraordinárias, ele elevou os
direitos do bispo romano, como representante de São Pedro, a um nível jamais
visto antes. “O apóstolo”, ele disse, “foi chamado ' petra, pedra, por cuja
denominação ele se constitui a fundação... Em sua cadeira habita a sempre viva
e superabundante autoridade. Portanto, que os irmãos reconheçam que ele é o
primaz de todos os bispos, e que Cristo, o qual não nega Seus dons a ninguém,
e não os concede a ninguém exceto por meio dele.”80
Levando em consideração as características do período e os conceitos oficiais
e herdados, cremos que Leão era sincero em suas convicções e, provavelmente
um cristão. Ele se importava com o povo de Deus, e mais de uma vez, pelas suas
orações e sagacidade política, salvou Roma da invasão dos bárbaros. Quando Átila,
o mais terrível dos conquistadores estrangeiros, juntamente com suas incontáveis
hostes, estava pairando sobre a Itália, pronto para cair sobre a indefesa capital, Leão
enfrentou o “Destruidor” no nome do Senhor, e como líder espiritual de Roma,
ele orou fervorosamente por seu povo; os sentimentos extremados do Huno foram
80 Cathedra Petri, de Greenwood, volume 1.
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(397 d.C. - 590 d.C.)
atenuados e, para surpresa de todos, ele concordou com os termos propostos, o que
livrou a cidade da destruição e da carnificina. Mas o principal objetivo da vida
de Leão, que foi cumprido plenamente, era lançar a base da grande monarquia
espiritual de Roma. Durante seu pontificado, ele foi o maior nome do império, se
não de toda a cristandade. Leão morreu no ano 461 d.C..
O Im pera d o r Ju stin ia n o
O nome de Justiniano é tão famoso na História e tão conectado à
legislação civil e eclesiástica que seria injusto com nossos leitores continuar sem
fazer uma menção sobre ele, embora não esteja imediatamente ligado à igreja
latina. Ele era do Oriente, e quase obstruiu a ascensão do Ocidente.
No ano 527 d.C., Justiniano subiu ao trono de Constantinopla, e o
ocupou por cerca de quarenta anos. Ele confiava as questões políticas e militares
do império aos seus ministros e generais, e se devotava a coisas que julgava mais
importantes. Gastava muito de seu tempo em estudos teológicos, e na regula­
mentação de assuntos religiosos de seus súditos, por exemplo, ditando no que os
sacerdotes e o povo deveriam crer e o que tinham de praticar. Ele gostava de se
envolver em controvérsias e de agir como legislador em matérias de religião. Sua
própria fé - ou melhor, sua superstição escravizante foi marcada pela mais rígida
ortodoxia, e uma grande parte de seu longo reinado foi investida na extinção das
heresias. Isso resultou em vários casos de perseguição pública e privada.
Nesse meio tempo, Justiniano percebeu um novo campo aberto para
canalizar suas energias, e imediatamente voltou sua atenção para ele. Após a
morte de Teodorico, o Grande, em 526 d.C., a situação da Itália se tornou
bastante confusa, e os tronos dos novos conquistadores eram muito instáveis.
Instigado pela hostilidade nacional contra os bárbaros, o exército imperial estava
unido e determinado. Liderado pelos habilidosos generais Belisário e Narses,
a conquista da Itália e da África foi conseguida em curto espaço de tempo.
Diante da visão das famosas águias, os soldados bárbaros se recusavam a lutar,
e as nações se livraram da supremacia dos ostrogodos. Os generais imperiais
agora davam seguimento a uma guerra exterminadora. Estima-se que durante o
reinado de Justiniano, a África perdeu cinco milhões de habitantes. O arianismo
foi extinto dessa região; e supõe-se que na Itália o número dos que morreram
na guerra, ou de fome, ou de outras causas tenha excedido o de sua população
atual. O sofrimento desses países durante as revoluções do período foi maior do
que já haviam experimentado no passado ou no futuro. Assim, tanto os eventos
seculares do reinado de Justiniano quanto seus esforços legislativos tiveram um
importante, mas infeliz significado na história do cristianismo.
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314 I A
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is t ó r ia
da
Ig
r e ja
- capítulo 13
Após erigir a igreja de Santa Sofia, e 25 outras igrejas em Constantinopla,
e publicar um édito de seu código, ele morreu em 565 d.C..81
Passemos então ao terceiro grande fundador do edifício papal.
G r e g ó r io I, o G r a n d e
(ano 590 d.C.)
Chegamos agora ao final do sexto século de cristianismo. Neste ponto se
encerra a história do período inicial da igreja, e começa a do período medieval.
O pontificado de Gregório pode ser considerado a linha que separa os dois
períodos. Uma enorme mudança aconteceu. As igrejas orientais decaíram e não
merecem muitas observações. Já as do Ocidente, especialmente a de Roma,
ocuparam grandemente a atenção dos historiadores. E, como Gregório pode ser
considerado o representante deste período de transição, nos esforçaremos para
descrevê-lo com exatidão para nossos leitores.
Gregório nasceu em Roma por volta do ano 540 d.C.. Sua família
pertencia à classe senatorial, e ele mesmo era bisneto de um papa chamado Félix,
portanto, em sua linhagem havia a nobreza eclesiástica e a civil. Com a morte de
seu pai, ele herdou uma grande riqueza, a qual ele imediatamente dedicou para
usos religiosos. Ele fundou e manteve sete monastérios: seis na Sicília, e o outro,
dedicado a Santo André, na propriedade de sua família em Roma. Suas caras
vestes, jóias e mobílias foram vendidas e o dinheiro dado aos pobres. Aos 35
anos de idade, desistiu de seus compromissos civis, mudou-se para o monastério
romano e entrou em uma rígida vida ascética. Embora fosse seu próprio convento,
ele começou executando as tarefas monásticas mais humildes. Sua vida inteira foi
gasta em oração, leitura, produção de textos, e exercícios de autonegação. A fama
de sua abnegação e caridade se espalhou por toda parte. Ao longo do tempo, ele
se tornou abade deste monastério; e, com a morte do papa Pelágio, Gregório foi
escolhido pelo senado, pelo clero e pelo povo para preencher a cadeira vaga. Ele
recusou, e tentou por diversos meios escapar das honras e dificuldades do papado;
mas foi ordenado pela força do amor do povo como bispo supremo.
Arrancado da quietude do mosteiro e de suas tranquilas meditações ali,
Gregório agora se via envolvido na administração das mais variadas e perplexas
questões tanto da Igreja quanto do Estado. Porém, evidentemente era capacitado
para o enorme e árduo trabalho que estava diante dele. Em primeiro lugar,
notaremos sua ardente caridade.
81 Milman, volume 1; J.C . Robertson, volume 1; Milner, volume. 2.
R o m a e a E x p a n sã o d e su a In flu ê n c ia
(397 d.C. - 590 d.C.)
À A r d e n t e C a r id a d e
de G r e g ó r io
O caráter de Gregório foi marcado pelo fervor de seus atos de caridade.
Embora elevado ao trono papal, ele manteve um estilo de vida simples
e monástico. Seu palácio era cercado pelos pobres sofredores, como seu
monastério havia sido, e com liberalidade o alívio lhes era concedido. Não
contente em exercer sua caridade sozinho, ele poderosamente exortava seus
irmãos bispos a abundar nas mesmas obras. “Que o bispo não pense que
apenas a leitura e a pregação bastam, ou criteriosamente se manter em retiro,
enquanto a mão que abençoa está fechada. Mas que sua mão seja generosa; que
faça melhorias para os que estão em necessidade; que considere as carências
dos outros como suas próprias, pois sem essas qualidades, o nome de bispo é
título vazio e inútil.”
A riqueza da diocese de Roma lhe permitiu praticar muitíssima caridade.
Como administrador dos fundos papais, Gregório tinha a reputação de ser
justo, humano e bastante diligente. Mas seus biógrafos são tão verborrágicos no
relato das boas obras que praticou que se torna desconcertante tentar resumi-las.
Contudo, como podemos considerá-lo um crente em Cristo, não obstante a falsa
posição que ocupava, e sua consequente cegueira quanto ao verdadeiro caráter da
igreja, nos alegramos em demorar um pouco mais em sua memória, e também
em rastrear a linha prateada da graça de Deus, apesar da ímpia mistura das coisas
sagradas com as seculares.
Na primeira segunda-feira de cada mês, ele distribuía grandes
quantidades de provisões para todas as classes. Os doentes e enfermos eram
ajudados por pessoas designadas para inspecionar todas as ruas. Antes de se
sentar para fazer a própria refeição, Gregório separava uma porção e a enviava
aos famintos que estavam à sua porta. Os nomes, idades, e endereços dos que
recebiam ajuda papal enchiam um grosso volume. A caridade de Gregório era
tão rígida que, ao ouvir sobre um pobre homem que morrera de fome, ele se
condenou a uma severa penitência pela sua negligência como mordomo da
generosidade divina. Sua benevolência marcante não se restringia à cidade
de Roma; atingia quase o mundo inteiro. Ele se envolveu em questões que
afetavam o bem-estar de todas as classes, e prescrevia regulamentações para
todos, a fim de que os pobres não fossem expostos à opressão dos ricos,
ou os fracos ao poder dos fortes. Isso aparecerá com maior clareza quando
observarmos o tópico seguinte.
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is t ó r ia
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r e ja
- capítulo 13
A P o siç ã o E c l e siá st ic a
S e c u l a r d e G r e g ó r io
e
O cuidado pastoral da igreja evidentemente era o principal objetivo e
prazer do coração de Gregório, pois acreditava ser este seu trabalho, e de bom
grado se devotou inteiramente a ele. De acordo com a credulidade supersticio­
sa da época, ele tinha a profunda convicção que o cuidado e governo de toda
igreja pertencia a ele como sucessor de São Pedro; e também que era obrigado
a manter a tradição da dignidade singular da diocese de Roma. Por causa da
confusa situação da Itália, e da segurança de seu povo - seu querido rebanho,
ele se viu compelido a enfrentar muitos assuntos desagradáveis e alheios à sua
chamada espiritual. Os invasores lombardos82 naquele momento eram o terror
dos italianos. Os godos tinham sido bastante civilizados e romanizados; mas
esses novos invasores eram bárbaros impiedosos e desumanos; e embora seja
estranho afirmar, eram os campeões declarados do arianismo. E ao invés de
proteger seus súditos italianos, o poder imperial agiu apenas como obstáculo
para que eles exercessem qualquer movimento em sua própria defesa . Guerra,
fome e pestilência destruíram e reduziram a população do país a tal ponto que
todos os corações desanimaram e eles se voltaram para o bispo como o único
homem capaz de resolver a situação crítica do período, devido à firme opinião
do povo sobre sua integridade e habilidades.
Portanto, vemos que, em primeira instância, o poder secular foi imposto
sobre o papa. Não parece que ele procurasse essa posição - uma posição tão
avidamente buscada por muitos de seus sucessores; mas, ao contrário, ele entrou
com relutância nas atividades pouco semelhantes ao grande objetivo de sua
vida. A contragosto ele se desfez da quietude contemplativa da vida de monge,
e se comprometeu nos assuntos de Estado como um dever para com Deus e
para com seu país. A direção dos interesses políticos de Roma recaiu sobre os
ombros de Gregório. Ele era guardião da cidade, e protetor da população italiana
contra os lombardos. A História dá testemunho de sua grande habilidade,
sua incessante atividade, e a multiplicidade de suas ocupações como o virtual
soberano de Roma.
82 Os lombardos eram uma tribo germânica da região de Brandenburg. Segundo a crença
popular, eles foram convidados a entrar na Itália por Justiniano para lutar contra os godos.
O líder deles, Alboim, estabeleceu um reinado que durou de 568 a 774 d.C.. O último rei
dos lombardos, Desidério, foi destronado por Carlos Magno. Visto que iremos encontrá-los
novamente, devido à conexão que têm com nossa história, decidimos dar esta nota sobre a
origem dessa tribo. Dicionário de Datas, de Haydn.
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In
f l u ê n c ia
(397 d.C. - 590 d.C.)
Mas apesar de Gregório não ter consciência dos efeitos de sua sólida
reputação, todavia foi ela que contribuiu muito para a dominação eclesiásti­
ca e secular de Roma. Embora lamentável para um cristão, no caso dele, sua
preeminência era desinteressada e foi exercida de forma benéfica; o que não se
pode dizer de seus sucessores. A infalibilidade do papa, a tirania espiritual, a
perseguição devido a diferenças de opinião, a doutrina do mérito pelas obras, o
purgatório, as missas pela alma dos mortos, que se tornaram marcas distintivas
do papado, não haviam até o momento se estabelecido firmemente em Roma;
mas, podemos afirmar, estavam todas visíveis.
Não iremos prosseguir com este assunto; iremos nos voltar para um tema
mais interessante e conveniente ao nosso propósito.
*
O Z elo M
*
*
is s io n á r io d e
G r e g ó r io
Apesar do abatimento da igreja, e de todos os extratos sociais, por causa
das invasões bárbaras, o maravilhoso Senhor estava zelando pela difusão do
evangelho em outras nações. E certamente era por Sua grande misericórdia
que as hostes de invasores que choviam sobre as províncias do império logo se
convertiam ao cristianismo. Os bárbaros podiam ter pouco entendimento acerca
de sua nova religião, mas ela serviu para amenizar bastante a ferocidade deles,
e mitigar o sofrimento dos conquistados. Gregório era zeloso em seus esforços
para expandir o conhecimento do evangelho, e trazer as nações bárbaras à fé
católica. Mas seu projeto favorito, o qual já há muito estava em seu coração, era
a evangelização dos anglo-saxões.
A bela história do incidente que primeiro direcionou a mente de Gregório
para a conversão da Britânia é muito interessante para ficar de fora de nossas
“Breves Notas”. Nos primeiros dias de sua vida monástica, antes da elevação ao
papado, certo dia sua atenção foi capturada ao ver alguns meninos de cabelo
louro expostos à venda no mercado. Diz-se que ele entabulou a seguinte conversa.
Gregório perguntou de que lugar eles provinham. “Da ilha da Britânia”, foi a
resposta. “E os habitantes dessa ilha são cristãos ou pagãos?” - “Ainda são
pagãos.” Ele exclamou: “Que infelicidade que o príncipe das trevas possua gente
de tamanha graça! E que a beleza da aparência careça da suprema beleza, a da
alma”. Então ele perguntou por qual nome eram chamados. “Anglos.” Brincando
com as palavras, ele disse: “De fato, eles são Anjos! De que província?” - “De
Deira, na Nortúmbria.” “Certamente eles tem de ser resgatados ‘de ira - a ira de
Deus, e chamados à misericórdia de Cristo. Qual o nome do rei deles?” - “Ella.”
“Sim”, disse Gregório, /l/<?luias serão cantadas nos domínios desse rei”.
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3 1 8 ) A H is t ó r ia
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I g r e ja
- capítulo 13
“Ser o primeiro missionário no meio daquele belo povo”, diz Milman, “e
como um César cristão, conquistar a remota e bárbara ilha para o reino de Cristo
se tornou a santa ambição de Gregório. Ele obteve à força o relutante consen­
timento do papa; e de fato partiu e viajou por três dias, quando foi alcançado
por mensageiros enviados para chamá-lo de volta. Roma inteira se levantou em
um santo motim e obrigou o papa a revogar sua permissão.”83 Contudo, embora
impedido de executar esta missão pessoalmente, ele jamais perdeu de vista seu
nobre objetivo. A partir de então, não lhe foi permitido retornar ao monastério.
Ele foi obrigado a se envolver em negócios de Estado, primeiro como diácono,
e depois como supremo pontífice. Mas tudo isso foi um ofício compulsório para
Gregório. Seu coração estava fixo na salvação dos jovens louros da Inglaterra, e
ele preferiria mil vezes ter empreendido a jornada para aquela ilha, com todos
os sofrimentos e perigos desconhecidos, a ser coroado com as honras do papado.
Tal era o caráter de seu propósito, o qual prosseguiu com incansável atenção e
dedicação os planos de piedade que havia feito. Por isso, após se sentar na cadeira
papal, ele teve condições de suprir e enviar um grupo de quarenta missioná­
rios às costas da Britânia. Porém, antes de falar das características e resultados
desta missão, será útil olharmos brevemente para a história da igreja nas ilhas
britânicas desde o começo.
A P r im e ir a C o l o c a ç ã o d o s A lic er c es
d a C r u z n a B r it â n ia
Acreditamos que há muito tempo, nos primeiros dias da simplicidade
apostólica, a cruz de Cristo foi implantada nessa ilha. Existem fortes evidências
históricas para crermos que “Cláudia”, mencionada por Paulo na Segunda
Epístola a Timóteo, era filha de um rei bretão, e casada com um romano nobre
chamado Pudens. Tal circunstância não parecerá improvável se tivermos em
mente que, durante o período da dominação romana nessa região, houve muitas
oportunidades para a difusão do cristianismo, as quais seriam prontamente
abraçadas por todos os que amavam o Senhor Jesus e as almas dos homens.
Além disso, era o costume da época que os reis e os nobres bretões enviassem
seus filhos para serem educados em Roma; e, diz-se, tal prática se enraizou a
ponto de haver uma propriedade exclusiva para eles, mantida por uma taxa de
um centavo para cada casa da Inglaterra.84
83 Cristianismo Latino, volume 1.
84 Para mais detalhes, veja Vida de Paulo, de Conybeare e Howson; e Monasticismo Inglês, de
Travers Hill.
R o m a e a E x p a n sã o d e su a In flu ê n c ia
(39/ d.C. - 590 d.C.)
|
Outro testemunho que apóia a instalação do cristianismo nesse país
provém dos Pais Apostólicos. Justino Mártir, Irineu e Tertuliano, escritores do
segundo século, afirmaram que em cada país conhecido pelos romanos havia
pessoas que professavam o cristianismo, desde os que andavam de carruagem
aos sem-teto, não havia classe de homens entre os quais não houvesse quem
orasse no nome do crucificado Jesus. Também temos o testemunho dos Pais
posteriores. A cadeia histórica parece ser sustentada pela menção da presença de
bispos bretãos em vários concílios gerais no quarto século; e a ortodoxia deles
que foi atestada pelo importante depoimento de Atanásio e Hilário, durante
toda a controvérsia arianista. E também digno de nota que Constantino - o
qual passou algum tempo com seu pai na Britânia, ao escrever para as igrejas
do império sobre uma disputa concernente ao Oriente, citou a igreja britânica
como exemplo de ortodoxia. A heresia pelagiana foi introduzida por Agrícola em
429 d.C., e encontrou muita receptividade; mas em uma conferência na cidade
de Saint Albans, os mestres heréticos foram derrotados pelo clero ortodoxo.85
Á A n t i g a I g r e ja B r it â n ic a
Embora a igreja britânica tenha conquistado certo crédito por sua
ortodoxia, temos pouca informação confiável sobre seu surgimento e progresso,
ou sobre os meios pelos quais isso foi realizado. Havia muitas tradições, que não
vale a pena mencionar, pois são inadequadas para nossa breve história. Contudo,
existem bastantes evidências que na primeira parte do quarto século, e pelo
menos por duzentos anos antes da chegada dos monges italianos, a igreja bretã
teve uma organização completa, com bispos e prelados metropolitanos.
De acordo com o testemunho dos historiadores antigos e também dos
modernos, as doutrinas e rituais da antiga igreja eram simples se comparados aos
da igreja romana ou grega, embora estivessem longe da simplicidade do Novo
Testamento. Eles ensinavam a unidade da divindade; a Trindade, a natureza
divina e humana de Cristo, a redenção por Sua morte, e a eternidade das
recompensas e castigos futuros. Consideravam a ceia do Senhor um símbolo,
não um milagre; comiam o pão e bebiam o vinho como o Senhor ordenou - em
memória Dele e não recusavam o vinho aos leigos. A hierarquia deles consistia
de bispos, sacerdotes e outros ministros, e uma cerimônia especial era feita para
a ordenação. O casamento era comum entre o clero. Também havia monastérios
com monges sob voto de pobreza, castidade e obediência ao abade. As igrejas
eram construídas em honra aos mártires, e cada uma delas possuía muitos
85 J.C. Robertson, volume 1.
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320 I A
H i s t ó r i a d a I g r e j a - capítulo 13
altares. A cerimônia religiosa era realizada em latim, em tom monocórdico
pelos sacerdotes. As disputas eram resolvidas pelos sínodos provinciais, que
aconteciam duas vezes por ano; acima disso, em questões de disciplina, não havia
apelação. Portanto vemos que as doutrinas da igreja antiga eram caracterizadas
por uma simplicidade apostólica genuína, e ela, como instituição, era livre e não
tolhida.86
É motivo de sincera gratidão que a história inicial da igreja na Inglaterra
tenha deixado um nome tão íntegro comparado às superstições e corrupções
do Oriente e Ocidente. Infelizmente, a existência dela como uma instituição
separada não durou muito, mal alcançou a metade do sétimo século. As
calamidades chegaram em três passos sucessivos e independentes de sua própria
jurisdição: (1) a retirada das tropas romanas da Britânia; (2) a Conquista
Saxônica; (3) a missão augustiniana. Veremos cada passo e seus efeitos.
Já estudamos brevemente algo sobre a decadência e queda do império
romano. Em consequência das graves tragédias que recaíram sobre a cidade
e províncias romanas, as tropas foram gradualmente retiradas da ilha para a
proteção do centro do domínio. E os romanos, concluindo que não poderiam
mais dispensar as forças necessárias para um estabelecimento militar na Britânia,
partiram da ilha em meados do quinto século; cerca de 475 anos após Júlio
César ter aportado em suas costas pela primeira vez. O governo caiu nas mãos
de vários príncipes insignificantes, que, obviamente, se digladiaram. Guerras
civis, fragilidade nacional e desmoralização logo surgiram, juntamente com seus
costumeiros flagelos.
A saída das tropas necessariamente expôs o país à invasão, especialmente
dos pictos87 e dos escotos88. Os líderes bretões, incapazes de resistir a esses
audaciosos ladrões e saqueadores, em desespero apelaram a Roma. Eles disseram:
“Os bárbaros rompem nossas muralhas, como lobos no aprisco, carregam os
despojos e retornam a cada novo ano”. Mas não importava o quanto os romanos
se compadecessem de seus amigos, agora estavam impotentes para socorrê-los.
Frustrados pela falta de ajuda de Roma, e aflitos pela própria incapacidade de
se defenderem contra as tribos destruidoras do norte, os bretões pediram auxílio
aos saxões.89
86 Veja Monasticismo Inglês, de Travers Hill; A História Eclesiástica da Grã-Bretanha, Jeremy
Collier, volume 1.
87 Os pictos eram antigos habitantes da Escócia que estabeleceram seu próprio reino e lutaram
contra os romanos na Britânia.
88 “Escotos” = Tribo gaélica irlandesa que se estabeleceu na Escócia no século VI. Os romanos
chamavam-nos “Scoti” e originariamente proviam da Irlanda.
89 Enciclopédia Britânica, volume 5.
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(397 d.C. - 590 d.C.)
A C h egada d o s Saxõ es à I n g l a t e r r a
Por volta da metade do quinto século, os navios saxões aportaram nas
praias da Britânia, e sob a liderança de Hengist (ou Hengest) e Horsa (ou Hors),
centenas de furiosos e sanguinários guerreiros desembarcaram. Estes famosos
líderes imediatamente se posicionaram à frente de seus homens, e derrotaram
por completo os pictos e os escotos. Mas o remédio foi pior que a doença. Um
grande mal foi evitado, mas outro maior aconteceu. Os saxões, percebendo
que a pátria que foram pagos para defender tinha um clima mais apropriado
que a deles, e ansiosos por trocar as gélidas praias do norte pelos ricos campos
da Britânia, chamaram seus conterrâneos para se juntarem a eles. Assim, de
defensores, os saxões se tornaram conquistadores e mestres dos desafortunados
bretoes. Os anglos e outras tribos afluíram ao país; e apesar dos bretões não se
renderem sem lutarem ferozmente, o poder saxônico prevaleceu e reduziu os
nativos à total submissão, ou os obrigou a buscar refúgio nas montanhas do País
de Gales, na Cornualha e em Cumberland. Muitos emigraram e se estabelece­
ram em Armórica, atual Bretanha, no noroeste da França.
Mas os saxões e os anglos não eram somente guerreiros selvagens, eram
também pagãos impiedosos e brutais. Eles exterminaram o cristianismo por onde
passaram. De acordo com o “Venerável Bede”, os bispos e o povo eram indis­
criminadamente assassinados com fogo e com a espada, e não havia ninguém
para sepultar as vítimas de tamanha crueldade. Prédios públicos e privados eram
igualmente destruídos, sacerdotes eram mortos sobre os altares; os que fugiam
para as montanhas eram capturados e abatidos em grande número; outros,
desgastados pela fome, se rendiam, abraçando a escravidão perpétua para salvar
a pele; ainda havia os que fugiam para as regiões além-mar, e os que viviam uma
vida de pobreza nas montanhas, florestas e rochas escarpadas.
A Britânia, após esse evento, caindo em um estado de barbarismo obscuro,
foi afastada das vistas do mundo civilizado, e mergulhou nas profundezas da
penúria e da crueldade. E foi exatamente este povo que o Senhor colocou no
coração de Gregório para conquistar para Si mesmo por meio do evangelho da
paz. Talvez possamos pensar como poucos monges poderiam, sem frotas ou
exércitos, se aventurar em tais terras, e, mais ainda, terem a esperança de ganhar
o coração e abrandar a alma desse povo selvagem pela fé e prática do evangelho
da paz? E o mesmo evangelho que triunfou sobre o judaísmo, orientalismo e
paganismo, e pelo mesmo poder divino, estava prestes a triunfar sobre o feroz
barbarismo dos anglo-saxões. Quão frágil e tola é a infidelidade que questiona
a origem, o poder e o destino do evangelho! Iremos agora observar o progresso
da missão.
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issã o d e
A g o s t in h o
na
Inglaterra
No ano 596 d.C., cerca de 150 anos após a chegada dos saxões na Britânia,
a famosa missão de Gregório deixou a Itália rumo à ilha dos bretões. Um grupo
de quarenta monges missionários, sob a direção de Agostinho, que tornou-se o
primeiro bispo da Cantuária, foi enviado para pregar o evangelho aos incivilizados
anglo-saxões. Mas ao chegar à França e ouvir sobre o caráter e hábitos brutais do
povo, e não dominando a língua deles, os monges ficaram profundamente desen­
corajados, e com receio de prosseguir. Agostinho foi mandado de volta pelos outros
monges para suplicar a Gregório que os dispensasse da tarefa. Mas ele não era
homem de abandonar uma missão desse tipo, pois não a havia planejado apressa­
damente, sendo fruto de muita oração e deliberação. Ele os exortou e os encorajou
a prosseguirem, confiando no Deus vivo, e na esperança de ver o fruto do trabalho
deles na eternidade. O papa lhes deu cartas de apresentação aos bispos e príncipes,
e lhes garantiu toda a assistência que estava ao seu alcance. Isso os animou a
continuarem em sua jornada, e, viajando pela França, chegaram à Britânia.
Os 41 missionários, tendo aportado na ilha de Thanet, anunciaram a
Etelberto, rei de Kent, que haviam chegado de Roma, incumbidos de trazer
boas novas de grande alegria para ele e seu povo. As circunstâncias favoreceram
grandemente essa notável missão. Bertha, a rainha (neta de Clotário I, rei
dos francos), era cristã. Seu pai estipulou no contrato de casamento dela que
Bertha deveria ter liberdade para professar o cristianismo, religião na qual fora
educada. Um bispo servia a corte, vários de seus familiares eram cristãos, e
havia um rito religioso nos moldes católicos. Neste caso, o Senhor fez uso de
uma mulher, como sempre fez, para a propagação do evangelho entre os pagãos.
Isso contrastou fantasticamente com o tipo de mulher que possui o espírito de
Jezabel, e preservou a linha prateada da graça de Deus naqueles tempos obscuros.
Bertha era da casa de Clóvis e Clotilda.
Etelberto, influenciado por sua rainha, recebeu os missionários com cor­
dialidade. Agostinho e sua comitiva receberam permissão para ir a Cantuária,
residência do rei. Ele concordou em se encontrar com eles, mas em campo
aberto, com receio de que fizessem alguma magia. Os monges se aproximaram
da família real da maneira mais imponente possível. Um deles, carregando uma
grande cruz prateada com a figura do Salvador, liderou a procissão dos mis­
sionários, entoando hinos em latim. Ao chegarem ao local da reunião, lhes foi
concedida a liberdade de pregar o evangelho ao príncipe e aos seus súditos. O rei
havia sido informado que eles vinham com boas notícias, até de vida eterna para
aqueles que os recebessem, além do gozo das bênçãos do céu para sempre. O rei
ficou bem impressionado, e lhes deu uma mansão na cidade real de Cantuária,
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o m a
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e a licença para pregar o evangelho à sua corte e ao seu povo. Então os monges
se dirigiram à cidade, cantando em uníssono a ladainha: “Te suplicamos, ó
Senhor, em toda a Tua misericórdia, que Tua ira e Tua fúria sejam removidas
desta cidade, e de Tua santa casa, porque nós temos pecado. Aleluia”.
Por meio desses passos preparatórios, o caminho dos missionários agora
estava livre e desimpedido. A aprovação do monarca inspirou confiança nos
súditos, e abriu o coração deles aos estrangeiros. Os novos convertidos se multi­
plicaram rapidamente. Dizem que no natal de 597 d.C., não menos de dez mil
pagãos ingressaram no rol da igreja católica pelo batismo. Etelberto também se
submeteu ao batismo, e o cristianismo, na forma romana, se tornou a religião
oficial de seu reino. Essa foi a primeira base de Roma na Inglaterra, que estava
decidida a submeter a igreja bretã ao papado, e a estabelecer sua autoridade nas
terras da Grã-Bretanha, como fizera na França. Para isso, ela agiu da seguinte
maneira.
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ie r a r q u ia
na
C a t ó l ic a E st a belec id a
In g laterra
Gregório, ao ouvir o grande sucesso de Agostinho, lhe enviou mais
missionários, que levavam muitos livros, incluindo os evangelhos, utensílios
cerimoniais, vestimentas, relíquias e o pálio90, pelo qual investia Agostinho como
arcebispo da Cantuária. Ele também o aconselhou a consagrar doze bispos em
sua província; e, se percebesse que seria favorável à propagação da fé, que esta­
belecesse em York, um bispo metropolitano, com autoridade para nomear outros
dozes bispos para os distritos ao norte da ilha. Esses foram os rudimentos da
igreja inglesa, e a ânsia de Gregório pela supremacia eclesiástica era tamanha que
de antemão traçou uma estratégia de administração para os lugares que ainda
nem tinham sido visitados pelo evangelista.
Greenwood afirma: “Na visão eclesiástica do caso, a igreja anglo-saxônica
era uma filha legítima de Roma. Mas, além dos limites desta fundação, nenhum
direito de parentesco pode ser imputado a ela dentro das ilhas britânicas. Já
existia uma grande população cristã nos distritos ao norte e a oeste, cujas
tradições não davam suporte às reivindicações romanas de maternidade. Os
rituais e disciplinas das igrejas britânicas, escocesas e irlandesas diferiam em
muitos pontos das igrejas romanas e latinas em geral. Elas celebravam a páscoa
90 Ornamento concedido pelo Papa aos arcebispos.
A H is t ó r i a
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I g r e ja
- capítulo 13
em conformidade com a prática das igrejas orientais; e seguiam também este
modelo na forma da tonsura91 deles, bem como no rito batismal: diferenças que
em si mesmas parecem suficientes para evitar qualquer probabilidade de um
pedigree puramente latino”.92
Agostinho, feito líder de uma hierarquia de doze bispos, imediatamente
tentou com ousadia trazer a antiga igreja britânica para a jurisdição romana.
Por meio da influência de Etelberto, conseguir marcar uma conferência com
alguns bispos bretãos em um local que, a partir de então, ficou conhecido como
‘Carvalho de Agostinho’, em Severn. O clero romano e bretão se reunia pela
primeira vez; e a primeira e imperiosa demanda de Agostinho foi: “Reconheçam
a autoridade do bispo de Roma”. Eles humildemente replicaram: “Desejamos
amar todos os homens, e tudo o que fizermos por você, também faremos por
este a quem você chama de Papa”. Surpreso e indignado com a recusa deles,
Agostinho os aconselhou a adotarem os costumes romanos quanto à celebração
da páscoa, à tonsura, à administração do batismo, para que uma uniformi­
dade em relação à disciplina e adoração pudesse ser estabelecida na ilha. Isso
eles se recusaram terminantemente a fazer. Originalmente tendo recebido o
cristianismo do Oriente, e não de Roma, e não reconhecendo a igreja romana
como igreja-mãe, eles se consideravam independentes da diocese de Roma. Um
segundo e um terceiro concílio foram convocados, mas sem qualquer resultado
adicional. Agostinho ouviu com todas as letras que a igreja britânica não iria
admitir nenhum homem como líder supremo na vinha do Senhor. O arcebispo
reivindicou, argumentou, censurou, fez milagres; mas tudo em vão - os bretãos
estavam firmes. Por fim lhe disseram abertamente que não podiam se submeter
nem à arrogância de Roma, nem à tirania dos saxões. Provocado à indignação
pela tranquila firmeza deles, o irado sacerdote exclamou: “Se vocês não recebem
os irmãos que vieram lhes trazer a paz, receberão os inimigos que lhes trarão a
guerra. Se não estão unidos conosco para mostrar aos saxões o caminho da vida,
receberão deles o golpe da morte”. O altivo arcebispo se retirou, e supõe-se que
tenha morrido logo depois disso (em 605 d.C.), mas sua malfadada profecia se
cumpriu pouco tempo após seu falecimento.
Edelfrido, um dos reis anglo-saxÕes, ainda pagão, reuniu um numeroso
exército e avançou rumo a Bangor, centro do cristianismo britânico. Os monges
fugiram, bastante alarmados. Cerca de 1250 deles se refugiaram em um local
91 N ota do Trad.: Corte circular, rente, do cabelo, na parte mais alta e posterior da cabeça, que
se faz nos clérigos; cercilho, coroa. Novo Dicionário da Língua Portuguesa, Aurélio Buarque de
Holanda Ferreira.
92 Cathedra Petri, livro 3.
R om a
e
a E x p an são
d e
s u a I n f l u ê n c i a (397
d.C. - 590 d.C.) [ 3 2 5
deserto, onde concordaram em continuar juntos em oração e jejum. Edelfrido
chegou perto dali, e ao ver aquele grupo de homens desarmados, perguntou quem
eram. Ao saber que eram monges de Bangor, que estavam orando pelo sucesso de
seus conterrâneos, exclamou: “Então, embora não tenham armas, estão lutando
contra nós”; e ordenou aos seus soldados que os atacassem. Conta-se que 1200
foram mortos, e apenas 50 escaparam. Assim o domínio de Roma começou na
Inglaterra, o qual persistiu por cerca de mil anos.
E difícil e complicado afirmar que Agostinho de fato não teve nada
relacionado ao assassinato dos monges. Os que possuem uma forte visão
protestante do caso declaram abertamente que seus últimos dias foram ocupados
em fazer arranjos para o cumprimento de suas ameaças. Outros, que tem a
opinião contrária, sustentam que não existe qualquer evidência de que ele
influenciou os pagãos a levar a cabo essa terrível tragédia. Mas, seja como for,
uma escura sombra de suspeita sempre irá pairar sobre a política de Roma. As
próprias palavras vingativas de Agostinho, e toda a história da igreja romana,
confirmam a suspeita. Essa é a natureza intolerante de Jezabel: quando os
argumentos falham, ela apela para a espada. Daqui em diante, o romanismo
se caracterizou pela arrogância e pelo sangue derramado. A antiga igreja da
Britânia, antes limitada pelos distritos montanhosos do País de Gales, gradual­
mente diminuiu e definhou.93
R e fle x õ e s A c e r c a d a M is s ã o d e A g o s t i n h o
e d o C aráter de G r e g ó r io
Agostinho é tido por alguns historiadores como um cristão devoto, e
sua jornada missionária como uma das maiores nos anais da igreja. Porém,
sem querer depreciar em nada a grandeza do homem ou de sua missão, não
esqueçamos que as Escrituras são o único padrão verdadeiro de caráter e obras.
Nelas aprendemos que o fruto do Espírito é “amor, gozo, paz, longanimidade,
benignidade, bondade, fé, mansidão, temperança” (Gálatas 5:22). E certamente
esse grande clérigo não manifestou para com seus irmãos, os cristãos da Britânia,
a graça do amor, da paz ou da conciliação; pelo contrário, ele era orgulhoso,
despótico, arrogante, e presunçoso.
Esses sérios defeitos no caráter dele não eram desconhecidos de Gregório,
como ele mesmo diz em uma carta que escreveu a Agostinho: “Sei que, por teu
intermédio, Deus tem realizado muitos milagres entre o povo, mas lembremos
93 Gardner, volume 1.
326
| A H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 13
que quando os discípulos falaram com alegria ao divino Mestre: ‘Senhor, pelo
teu nome, até os demônios se nos sujeitam’, Ele lhes respondeu: ‘Alegrai-vos antes
por estarem os vossos nomes escritos nos céus’94. Mas, querido irmão, enquanto
Deus assim age por meio de teus labores, lembre de julgar a ti mesmo secreta­
mente, e de saber exatamente o que tu és. Se tens ofendido a Deus em palavra
ou ação, retenhas tais ofensas em teus pensamentos para suprimir a vanglória em
teu coração, e consideres que o dom de milagres não te foi dado para ti mesmo,
mas para aqueles cuja salvação tu estás trabalhando para obter”. Em outra carta,
ele o advertiu sobre a “vaidade e ostentação pessoal”; e o recordou que “o pálio de
teu ofício é para ser usado apenas no serviço da igreja, e não para ser apresentado
na competição com a púrpura real nas ocasiões oficiais”.
Agostinho era totalmente inadequado para uma missão que exigia
paciência, e uma sensível consideração pelos outros. A igreja britânica já existia
por séculos, seus bispos já haviam feito parte dos grandes concílios eclesiásticos e
já tinham assinado os decretos firmados em tais reuniões. Os nomes de Londres,
York e Lincoln são encontrados nos registros do Concílio de Aries (ano 314 d.C.),
portanto temos de respeitar o desejo dos bretÕes de aderir à liturgia transmitida
por seus ancestrais, resistindo à usurpação de supremacia espiritual da estrangeira
Roma. Agostinho fracassou por completo em não colocar na prática as lições de
humildade recebidas de seu grande mestre, e caiu em nossa estima e admiração.
Gregório, o grande prelado, assim como seu destacado missionário, não
sobreviveu muito tempo após a conquista espiritual da Inglaterra. Desgastado
por seus prolongados labores e enfermidades, ele morreu no ano 604 d.C.,
garantindo aos seus amigos que a expectativa da morte era seu único consolo, e
pedindo que orassem por sua libertação dos sofrimentos corpóreos.
A conduta de Gregório durante os treze anos e meio que foi bispo de Roma
manifesta um zelo e uma sinceridade que não foi igualada na igreja romana. Ele
era laborioso e abnegado no que acreditava ser a obra de Deus e sua missão para
com a igreja e a humanidade inteira. A compilação de suas cartas, cerca de 850,
exibe amplo testemunho de suas habilidades e atividades em favor dos homens, e
em cada esfera da vida. “Da discussão com patriarcas, reis ou imperadores acerca
das mais sérias questões de Estado ou da Igreja, ele passava a ensinar sobre admi­
nistração de fazendas, ou ao aconselhamento de um aflito em alguma remota
dependência de sua diocese. Ele aparece como Papa, como soberano, como
bispo, como senhorio. Ele tomou providências para a defesa de sua pátria, para a
conversão dos pagãos, para a repressão e reconciliação dos cismáticos”, etc.95
94 Lucas 10:17-20.
95 J.C . Robertson, volume 2.
R
om a
e a
E
x pa n sã o
d e su a
In
f l u ê n c ia
(397 d.C. - 590 d.C.)
Não obstante as diversas excelências de Gregório, ele estava profundamen­
te contaminado pela mentalidade de sua época. O espírito de Jezabel estava evi­
dentemente em ação, embora em fase inicial. Procuraremos em vão por qualquer
traço de simplicidade cristã na igreja de Deus daquele tempo. Não podemos
duvidar da piedade de Gregório; mas, como clérigo, o que ele era? Envenenado
até o âmago do coração pelo grave engano dos supostos direitos da cadeira de São
Pedro, ele não podia suportar nenhum rival, como vimos em sua determinada
e amarga oposição às pretensões de João, bispo de Constantinopla. E houve
algo pior ainda, no qual vemos o mesmo espírito, em sua exultação quando
o imperador Maurício e sua família foram assassinados pelo cruel e traiçoeiro
Flávio Focas, simplesmente porque Gregório presumiu que o imperador fosse
culpado do que ele considerou heresia. Ao que parece, Maurício apoiou o que
Gregório julgou usurpação da parte de João, ao assumir o título de bispo universal.
Até mesmo autorizar tal reivindicação não era um crime pequeno aos olhos de
um pontífice romano. Esse foi o caso de Gregório. Quando as informações da
tragédia sangrenta chegaram aos seus ouvidos, ele se alegrou, pois lhe pareceu
que isso era a luz do plano providencial para a libertação da igreja dos inimigos
dela. As próprias fontes da caridade parecem secar no coração de todos os que
se assentaram no trono papal, por causa de todos os rivais eclesiásticos. Justiça,
imparcialidade, humanidade, e cada sentimento bom do cristianismo foram
aniquilados pelas exigências dominantes da falsa igreja. Até mesmo Gregório se
ajoelhou diante de ‘Jezabel, mulher que se diz profetisa (Ap 2:20), sendo temi­
velmente corrompido por ela.
A S u p e r st iç ã o
e a
I d o l a t r ia
de
G r e g ó r io
Ambição mesclada à humildade e superstição mesclada à fé caracterizaram
o grande pontífice. Essa estranha mistura e confusão sem dúvida era o resultado
de sua falsa posição. E difícil de entender como um homem com tamanho
bom senso pôde ser tão corrompido a ponto de crer em milagres realizados
por relíquias, e ter recorrido a tais coisas para a confirmação da verdade das
Escrituras. Mas a triste verdade é que, ao invés de estar dedicado aos interesses
de Cristo, ele estava cego pelo principal e absorvente propósito: os interesses
da igreja de Roma. Paulo disse: “Uma coisa faço”; e também “Uma coisa sei”.
Primeiro, temos de saber que somos perdoados e aceitos; para então fazermos
aquilo que agrada a Cristo. E esta a suprema e celestial vocação do cristão. “Para
conhecê-lo, e à virtude da sua ressurreição, e à comunicação de suas aflições,
sendo feito conforme à sua morte... Irmãos, quanto a mim, não julgo que o
haja alcançado; mas uma coisa faço, e é que, esquecendo-me das coisas que atrás
327
328
IA H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 13
ficam, e avançando para as que estão diante de mim, prossigo para o alvo, pelo
prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus” (Filipenses 3:10-14). Esse
é e sempre será o espírito e o anelo do cristianismo. Mas o que encontramos
no fim do sexto século? O que era a ‘uma coisa’ que Gregório tinha em vista?
Claramente não eram os interesses do Cristo celestial, nem a conformidade a Ele
em Sua ressurreição, sofrimentos e morte. Podemos afirmar com segurança que
o grande objetivo de sua vida pública era estabelecer além de qualquer disputa o
bispado universal de Roma. E para alcançar isso, em vez de encaminhar as almas
no caminho de Cristo, e a Ele mesmo, como Paulo sempre fez, Gregório procurou
levar adiante as reivindicações da diocese católica através da idolatria e corrupção.
E o espírito de perseguição também cooperava nesta empreitada.
O monasticismo, sob a proteção de Gregório, em especial o que seguia
as rígidas regras de Benedito, foi bastante reavivado e difundido em toda parte.
A doutrina do purgatório, o respeito pelas relíquias, a adoração de imagens, a
idolatria por santos e mártires, o valor das peregrinações por lugares santos eram
aprovadas ou ensinadas por ele, pois faziam parte de seu sistema eclesiástico. E
temos de reconhecer que tudo isso são características inegáveis da atividade de
Balaão e da corrupção de Jezabel.
Mas agora passemos ao sétimo século. O tempo de trevas está próximo,
e que trevas profundas! O papado começa a assumir uma forma definitiva. E
como em nossa história chegamos ao fim da primeira era do cristianismo e ao
início de outra, será proveitoso pararmos um pouco e fazermos um levantamento
geral do progresso do evangelho em diferentes países.
C - : '/v.:
A E x p a n sã o
na
do
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C r is t ia n is m o
Eu r o p a
O
sistema eclesiástico que os monges italianos introduziram na Inglaterra
rapidamente se expandiu e, por fim, triunfou. Cerca de cem anos
depois da chegada de Agostinho, esta era a fé que os britânicos e
anglo-saxões professavam. A igreja inglesa, fundada sobre o modelo romano,
não podia deixar de ter uma posição particularmente dependente de Roma.
Essa união dos primeiros anos foi promovida e fortalecida pelos monges, freiras,
bispos, nobres e príncipes ingleses que faziam frequentes peregrinações ao
túmulo de Pedro em Roma. Em nenhum país os missionários romanos foram
melhor sucedidos do que entre os anglo-saxões, mesmo sendo considerados
os mais violentos da raça teutônica. O clero britânico, embora insistisse em
seus antigos hábitos e estivesse disposto a resistir à pretensão estrangeira, foi
obrigado a isolar-se nas extremidades do país. O Romanismo agora prevalecia
por toda a Inglaterra.
A Escócia e a Manda se destacam por terem sido abençoadas com o
cristianismo no mesmo tempo que a Grã-Bretanha. Por intermédio de soldados,
marinheiros, missionários e cristãos perseguidos vindos do sul, o evangelho foi
pregado e muitos creram. Porém, visto que a primitiva história religiosa desses
países está tão coberta de lendas, vamos nos referir apenas aos nomes e eventos
que possam ser bem comprovados.
I
330 j A H is t ó r i a
da
Ig r e ja
- capítulo 14
* * *
Os
do
P r im e ir o s P r e g a d o r e s
C r is t ia n is m o n a I r l a n d a
Patrício, o apóstolo da Irlanda, nasceu em 372 d.C., às margens do rio
Clyde. Diz-se que Kilpatrick teria adotado esse nome por causa dele. Seus pais
foram cristãos sinceros. Seu pai era diácono e seu avô foi presbítero. Sua mãe, que
procurou incutir em seu coração as doutrinas do cristianismo, era irmã do ilustre
Martin, arcebispo de Tours. Mas o jovem Succath, seu nome original, não estava
seriamente inclinado para a religião. Algum tempo depois, seus pais deixaram a
Escócia e se estabeleceram na Britânia. Aos dezesseis anos, Succath e suas duas
irmãs brincavam à beira-mar quando alguns piratas irlandeses, comandados por
O’Neal, levaram os três para os seus barcos e os venderam como escravos na
Irlanda. Por seis anos ele trabalhou cuidando de gado.
Durante o período de sua escravidão, ele enfrentou muitas e grandes dificul­
dades. Mas a consciência de seu pecado veio à tona. Ele se tornou sério e intros­
pectivo. Com a idade de quinze anos, ele havia cometido alguns grandes pecados
que agoraatormentavam fortemente sua consciência dia e noite.Eleorava com
frequência, e chorava muito. Na verdade, tanto era o fervor dentro desua alma,
que ele se tornou insensível ao frio, à chuva e a outras intempéries às quais estava
exposto. Agora ele pensava na sua casa, nas ternas palavras de sua mãe, nas orações
fervorosas. E Deus, graciosamente, usou a lembrança do evangelho para abençoar
sua alma. Ele nascia de novo. “Eu tinha dezesseis anos de idade” disse ele, “e não
conhecia o verdadeiro Deus. Mas naquela terra estranha o Senhor abriu meus
olhos descrentes e, embora tarde, eu confessei meus pecados e fui convertido com
todo meu coração ao Senhor meu Deus, que considerou meu triste estado, teve
piedade de minha juventude e ignorância, e consolou-me como um pai consola seu
filho. O amor de Deus aumentou mais e mais em mim, com fé e temor ao Seu
nome. O Espírito levou-me a tal ponto que me derramei em mais de cem orações
em um dia. E durante a noite, enquanto eu cuidava do rebanho nas florestas e
montanhas, debaixo de chuva, neve, geada e outros sofrimentos que eu suportava,
me sentia animado para buscar a Deus. Naquele tempo, eu não sentia a indiferença
que agora sinto. O Espírito fermentava o meu coração”.96
Se essas palavras realmente fluíram dos lábios de Succath, elas apresentam
o mais puro testemunho da verdade do evangelho que jamais encontraremos na
Igreja de Roma. Elas apresentam uma alma exercitada na estreita proximidade
com o próprio Deus. As formas e o sacerdócio romano destruíram esta bela,
96 DAubigne, vol. 5, p. 25.
E u ro p a
(372 d.C. - 814 d.C.) I 331
pessoal e direta comunhão com Deus e com Seu Cristo por intermédio da
graça e poder do Espírito Santo. Sem dúvida, esse foi o cristianismo das Ilhas
Britânicas antes dele ser corrompido pelos emissários do papa.
Com o passar do tempo, Succath ganhou a sua liberdade, e depois de
viajar muito e pregar o evangelho, ele retornou para a sua família. Mas logo
ele sentiu um desejo irresistível de retornar à Irlanda e pregar o evangelho aos
pagãos, entre os quais ele havia encontrado o Salvador. Em vão seus pais e amigos
tentaram dissuadi-lo. Ele rompeu todos os obstáculos, e com um coração cheio
de zelo cristão, partiu para a Irlanda. Ele estava com mais de quarenta anos de
idade, e, de acordo com alguns escritores, tinha sido ordenado presbítero, e então
foi consagrado bispo da Irlanda. Depois disso, ele ficou conhecido como São
Patrício. Ele dedicou o restante de sua vida aos irlandeses, e seu trabalho entre eles
teve grande efeito, embora em meio a muitas dificuldades e perigos. A conversão
da Irlanda é atribuída ao seu trabalho. A data de sua morte é incerta.
O Z elo M
is s io n á r io d a
Irlan d a
Os abençoados frutos do trabalho de Patrício foram abundantemente
manifestados nos anos seguintes. Naquele tempo, a Irlanda era conhecida como
uma espécie de paraíso de paz e piedade. Sua fama pelo ensino puro das Escrituras
cresceu tanto que recebeu a honrosa denominação de “A ilha dos Santos”.
Entretanto, o trabalho do clero irlandês não ficou limitado ao seu próprio país.
Naturalmente apreciadores de viagens e peregrinações, e impactados pelo amor às
almas, muitos irlandeses deixaram a sua terra nativa como missionários, liderados
por um amado e devotado abade. Os mosteiros estavam tão cheios de monges
piedosos que não havia espaço suficiente em seu próprio país para o emprego de
tanto zelo, o que lhes mostrou ser seu dever exercer tal atividade em outras terras.
Assim, vemos uma grande linha de prata da graça de Deus neste povo rude, mais
distintamente marcado do que qualquer outra parte da cristandade. Louvado seja
o nome do Senhor! Vamos ver um exemplo do trabalho deles.
A M
issã o d e
C o lu m b a
Columba, um homem piedoso, de descendência real, e cheio de boas obras,
ficou profundamente impressionado com a importância de levar o evangelho a
outras terras. Ele pensou na Escócia e se determinou a visitar o país do famoso
Succath. Ao comunicar sua intenção a alguns cristãos, eles concordaram e entraram
completamente em seu plano. Por volta do ano de 565 d.C., acompanhado por
doze parceiros, Columba navegou da costa da Irlanda em um barco aberto, de
vime, coberto com peles e, depois de experimentarem muitas intempéries em sua
332 I A H is t ó r i a
da
I g r e ja
- capítulo 14
embarcação rude, o nobre grupo de missionários chegou às ilhas ocidentais. Um
arquipélago chamado Hébridas, ao largo da costa oeste da Escócia. Eles aportaram
próximo às rochas áridas de Mull, ao sul das cavernas basálticas de Staffa e fixaram
residência em uma pequena ilha, mais tarde conhecida como lona ou Icolmkill.
Ali Columba fundou seu mosteiro, mais tarde muito famoso na história da igreja.
A tradição tem preservado um ponto na costa por onde eles teriam desembarca­
do, uma espécie de dique artificial, lembrando vagamente um barco invertido,
formado no padrão dos currach, os típicos barcos irlandeses de madeira, nos quais
os monges piedosos navegavam através do mar.97
Pensa-se que um bom número de cristãos encontrou refúgio nesta rocha
árida. Naquele tempo, ela era quase completamente isolada das residências. As
águas das Hébridas são tão agitadas para navegar com barcos abertos que se
tornam extremamente perigosas. O nome lona significa“A ilha das Ondas”.
Além de suas ondas transversais, suas correntes e seus recifes, a pesada maré do
Atlântico rola sobre as suas praias. A respeito dos monges de lona, falaremos de
cada um; mas ainda não terminamos de falar sobre a Irlanda.
Columbanus, outro monge de grande piedade, deixou sua cela sessenta anos
depois de Columba. Ele nasceu em Leinster, e foi treinado no grande monastério
de Bangor, na costa de Ulster. Sob o governo de seu fundador, Comgal, uma
sociedade de três mil monges foi mantida neste convento. A igreja da Irlanda
continuava livre, ainda não havia sido escravizada pela Igreja de Roma. Eles eram
simples e honestos em seu cristianismo, em comparação com as formas sem vida
e o elemento sacerdotal do papado. Nem mesmo as casas religiosas desse período
lembram os conventos pomposos das épocas posteriores. Ainda assim estavam
muito afastados da simplicidade do cristianismo apostólico.
A Palavra de Deus não era seu único guia. O cristianismo não havia
chegado aos seiscentos anos de vida sem ter adotado muitos desvios no mundo.
Ele passou por vários eventos de grande importância na história da igreja. O
Gnosticismo, o Monasticismo, o Arianismo e o Pelagianismo foram males
gigantes naqueles primeiros dias; mas o Monasticismo foi a instituição popular
do final do sexto século d.C..
As
C a r a c t e r í s t i c a s d e um M o n g e S u p e r io r
Um perito da piedade mística daqueles tempos tinha crédito por realizar
milagres, pronunciar profecias e ter visões divinas. Ele era cercado por uma
espécie de santidade temerosa, e ninguém se atrevia a tocar no homem de
97 Para outros detalhes interessantes, veja: “The Church History o f Scotland from the commence­
ment o f the Christian era to the present tim e' de John Cunningham, ministro de Crieff. A. and
C. Black, Edinburgh, 1859.
E u r o p a (372
d.C. - 814 d.C.) |
Deus. Ele emergia de sua cela miserável como que de outro mundo, ele e seus
vestidos, cobertos de poeira e cinzas; repreendia corajosamente os vícios dos reis,
enfrentava o mais cruel dos tiranos, ameaçava derrubar dinastias e assumia o
tom elevado de superioridade sobre todas as dignidades seculares.
Assim era Columbanus. Com uma colônia de monges, ele saiu da Irlanda
por volta do ano 590 d.C.. Ele pretendia pregar o evangelho além dos domínios
francos, mas aportou na Gália. A fama de sua devoção chegou aos ouvidos
de Guntram, rei da Borgonha, que o convidou a se estabelecer no país. Ele
recusou a oferta do rei, mas pediu permissão para retirar-se para algum deserto
inacessível. Estabeleceu-se então na cadeia de montanhas de Vosges. Por algum
tempo, os missionários tiveram de enfrentar grandes dificuldades. Muitas vezes,
o único alimento diário que possuíam eram ervas selvagens, casca de árvores e,
provavelmente, os peixes do córrego. Mas, aos poucos, eles causaram uma boa
impressão aos povos vizinhos. Todas as classes olhavam para eles com reverência.
Enviavam-lhe provisões, especialmente aqueles que estavam desejosos em lucrar
com as orações daqueles homens santos. Os suprimentos eram descritos como
milagrosos. A piedade e os poderosos prodígios realizados pelo monge faziam
que um número cada vez maior de pessoas se reunisse ao seu redor. Os mosteiros
surgiam em diferentes lugares, e devotos se reuniam para preenchê-los.
Columbanus presidiu como abade sobre todas essas instituições.
Provavelmente seu governo foi sobre Bangor, na Irlanda. Embora seu prazer
fosse vaguear pelas florestas selvagens ou residir por dias em sua caverna sozinho,
ele exercia superintendência rigorosa em todos os mosteiros que havia formado.
Trabalho, dieta, leitura, tempo para oração e estabelecimento das punições eram
administrados por ele mesmo. Com o passar do tempo, ele caiu em disputa
com seus companheiros sobre o tempo de observância da Páscoa. Ele escreveu
a respeito do assunto para o papa Gregório e para Bonifácio, colocando a igreja
de Jerusalém acima da igreja de Roma, como sendo o lugar da ressurreição do
Senhor. Ele também trabalhou em Metz, na Suíça, e na Itália.Depois de fundar
muitos mosteiros, ele morreu em Roma, em 610 d.C..
O seguidor mais célebre do grande abade foi seu compatriota São Gall,
que o havia acompanhado em todo o seu destino, mas ficou doente quando seu
mestre foi para a Itália, e não pôde segui-lo, por isso foi deixado em Helvétia.
Mais tarde, ele pregou ao povo em sua própria língua e fundou o famoso
mosteiro que leva seu nome. E honrado como o apóstolo da Suíça. Morreu por
volta do ano de 627 d.C.. Desde o tempo de Patrício até a metade do século
XII, a igreja da Irlanda continuou a afirmar sua independência de Roma, e
manteve esta posição como um ramo vivo da igreja, não possuindo nenhum
líder terrestre.98 Vamos nos voltar agora para a Escócia.
98 Gardner’s Faitbs ofthe World, vol. 1, p. 150.
334
A H i s t ó r i a d a I g r e j a - capítulo 14
ií
ii
Os
P r im e ir o s P r e g a d o r e s
d o C r is t i a n i s m o n a E s c ó c i a
Cerca de 150 anos antes do famoso Columba desembarcar na ilha de lona,
São Ninian, “o homem mais santo da nação britânica”, como Bede o chamou,
pregou o evangelho nos distritos do sul da Escócia. Esse missionário, como quase
todos os pregadores primitivos conhecidos dessa época, declarava ter sangue real.
Foi educado em Roma e estudou com o famoso Martin de Tours. Ao retornar
para a Escócia, fixou residência em Galloway.
Se pudermos confiar em seus biógrafos, acreditamos que ele foi a todos os
lugares pregando a Palavra e que selvagens que viviam nus o ouviram, creram e
foram convertidos. “Ele tinha pressa quanto ao trabalho que o Espírito o enviara
para fazer, sob as ordens de Cristo. Ao ser recebido em seu país, uma grande
multidão se reuniu, muita alegria em todos, maravilhosa devoção e o louvor a Cristo
ressoava em todos os lugares; alguns o tinham como profeta. O extenuante lavrador
entrou nos campos de seu Senhor, começou a arrancar pela raiz as coisas que foram
mal plantadas, para dispersar essa má colheita e destruir aqueles mal construídos”.
Diz-se que milhares foram batizados e se juntaram ao exército dos fiéis.
Ele começou a construir uma igreja de pedra nas margens do Solway, mas,
antes que fosse concluída, recebeu informações sobre a morte de seu amigo e
patrono São Martin, e, piedosamente, a igreja foi dedicada em sua honra. Diz-se
que esta foi a primeira construção de pedra erigida na Escócia. Por causa de seu
aspecto branco e brilhante em relação às cabanas de barro até então utilizadas,
ela atraiu grande atenção. Em virtude de sua aparência, ela foi chamada, em
saxão, de “giz derretido”, e assim o é até os dias atuais."
Não sabemos nada sobre os sucessores imediatos de Ninian: exceto pela
missão de Columba, a história do cristianismo na Escócia é pouco conhecida.
Mas sem dúvida, o Senhor manteria vivo o fogo que Ele acendeu, preservaria
e difundiria a verdade do evangelho que havia sido recebido por muitos. Entre
os Pictos, ao sul de Grampians, Ninian parece ter trabalho com êxito, mas foi
com o celebrado Columba que começou o período antigo mais interessante dos
anais eclesiásticos da Escócia.
Já vimos a respeito de Columba e sua colônia de monges estabelecida em
lona. Lá ele construiu seu monastério, como a história nos informa. E o colégio
de lona se tornou tão famoso que foi considerado por muitos anos, talvez por
séculos, a luz do mundo ocidental. Homens eminentes por seu conhecimento
99 Cunningham, vol. 1, p. 52.
E u r o p a (372
d.C. - 814 d.C.) | 335
e piedade foram enviados para fundar bispados e universidades em cada canto
da Europa. Por 34 anos Columba viveu e trabalhou nesta rocha solitária. Vez
por outra, ele visitava o continente e fazia o trabalho de um evangelista entre
os bárbaros Escoceses e Pictos, plantando igrejas, e exercendo uma imensa
influência sobre todas as classes. Mas seu grande objetivo era treinar homens
para trabalhar no serviço do evangelho em casa e além-mar. Sem dúvida houve
uma estreita e amigável conexão entre o Norte da Irlanda e o Oeste da Escócia.
Na verdade, neste tempo, elas eram consideradas idênticas e eram conhecidas
pela denominação geral de escoceses.
O s M i s s i o n á r i o s d e Io n a
No fim do século VI, ou no começo do século VII, os missionários
começaram a sair dos seus claustros em Iona para levar a luz do cristianismo não
apenas às diferentes partes da Escócia, mas à Inglaterra e ao continente. Agostinho
e seus monges italianos desembarcaram em Kent, um pouco antes do famoso
Aidan de Iona e seus monges entrarem na Northumbria. Assim, a Inglaterra
Saxônica foi invadida pelos missionários cristãos em suas duas extremidades.
Oswald, o então rei de Northumbria, era cristão. Ele se converteu, foi
batizado e recebido na comunhão da igreja escocesa quando era jovem e exilado
naquele país. Ao recuperar o trono de seus ancestrais, naturalmente ele desejou
que seu povo pudesse ser levado ao conhecimento do Salvador. Atendendo seu
pedido, os presbíteros de Iona enviaram-lhe uma equipe missionária, liderada pelo
piedoso e fiel Aidan. O rei lhes designou a ilha de Lindisfarne para residirem.
Ali Aidan estabeleceu o sistema de Iona e a comunidade viveu de acordo com as
regras monásticas. Muitas pessoas se juntaram ao monastério, vindas da Escócia
e Irlanda. O próprio rei zelosamente assistia à difusão do evangelho: às vezes
pregando, e às vezes atuando como intérprete, pois ele aprendera a língua celta
durante o seu exílio. Bede, apesar de suas fortes afeições por Roma, demonstrou
vibrante testemunho às virtudes do clero do norte. “O zelo deles, sua doçura,
sua humildade e simplicidade, o estudo sério das Escrituras, a liberdade de todo
egoísmo e avareza, a ousadia honesta ao lidar com os grandes, sua ternura e
caridade para com os pobres, sua estrita e abnegada vida.”100
O trabalho de conversão foi próspero tanto nas mãos de Agostinho quanto
nas mãos de Aidan. Os monges italianos estenderam seus ensinos e influência
sobre o sul e sudeste do reino, enquanto os monges escoceses levaram a verdade
de modo mais claro e simples ao norte, Oriente e às províncias do centro do país.
Ao mesmo tempo se vê York, Durham, Lichfield e Londres sendo preenchidas
100J.C . Robertson, vol. 2, p. 62.
336 I A
H i s t ó r i a d a I g r e ja -
capítulo 14
pelos escoceses. Assim, Roma e lona reuniram-se em solo inglês, e a colisão foi
inevitável, quem seria o mestre? Agostinho, que tinha sido consagrado primaz da
Inglaterra pelo papa, exigiu que os monges celtas se conformassem à disciplina
romana. Eles se recusaram a fazê-lo e defenderam com grande firmeza sua
própria disciplina e as regras de lona. Sérias disputas começaram a surgir. Roma
não aceitaria nenhum rival e estava determinada a manter a Inglaterra sob seu
domínio.
Após a morte do piedoso e generoso Oswald, o trono foi ocupado por
seu irmão Oswy, que também se convertera ao cristianismo e fora batizado
na Escócia durante o seu cativeiro. Mas sua princesa aderiu aos costumes de
Roma e a família seguiu a mãe. Assim, uma forte influência foi exercida contra
os monges escoceses. Cansados dos contínuos insultos e da conduta inescrupulosa dos agentes do pontífice, tanto no âmbito sacro quanto no secular,
os presbíteros estavam determinados a deixar a Inglaterra e voltar a lona.
A maior e mais importante parte do país se convertera ao cristianismo por
meio do seu trabalho; mas o triunfo de Roma na conferência de Whitby, em
664 d.C., por intermédio da sutileza do padre Wilfred foi tão desanimadora,
que eles calmamente se retiraram do campo, após uma ocupação de cerca de
trinta anos. “Teu Columba pode ter sido santo”, disse o astuto Wilfred, “e tu
o preferistes para o príncipe dos apóstolos, mas para quem Cristo disse: Tu és
Pedro, e eu te darei as chaves do Reino dos Céus? O rei Oswy estava presente
e declarou obediência a Pedro. “Receio”, ele disse, “que ao aparecer na porta
do céu, não haja ninguém para abri-la para mim”. O povo logo seguiu seu
príncipe e em pouco tempo toda a Inglaterra tornou-se subserviente de Roma.
Mas nenhum argumento, intimidação ou escárnio teve algum efeito sobre
os presbíteros do norte. Recusaram-se a reconhecer que tinham qualquer
aliança com o bispo de Roma. A Escócia continuaria livre. Como escravizá-la
era agora uma grande questão para os romanistas. Como era o costume, os
padres começaram a trabalhar com os príncipes. Este trabalho foi realizado
da seguinte forma:
A T o n s u r a C le r ic a l
Dentre os muitos assuntos de disputa entre os missionários celtas e
italianos, o dia correto para celebrar a Páscoa e a forma correta da tonsura
clerical levantavam as mais fortes controvérsias, inflamam as mais fortes paixões,
e finalmente conduziram a igreja da Escócia à queda e ao triunfo do clero de
Roma. Mas, já falamos da questão da Páscoa ao abordarmos o Concílio de
Nicéia, portanto, agora iremos abordar apenas a disputa sobre a tonsura.
E u ro p a
(372 d.C. - 814 d.C.) I 337
Pode parecer estranho aos nossos jovens leitores protestantes, que nunca
viram um sacerdote católico sem a sua mitra, que o corte circular (tonsura) do
alto de sua cabeça era mais importante em sua ordenação do que seu conheci­
mento ou piedade. E a simples forma pela qual a tonsura era feita foi considerada
de tal importância que precisou passar por um teste de ortodoxia. Os monges
escoceses seguiam as igrejas do Oriente tanto na observância da Páscoa quanto
na forma da tonsura. Eles raspavam a parte de cima da cabeça, de orelha a orelha
em um formato crescente. Os orientais reivindicavam João e Policarpo como
exemplo e autoridade sobre eles. Os italianos declararam ficar extremamente
chocados com tal barbaridade, e chamaram-lhe de a tonsura de Simão Magus.
O clero romano usava a forma circular de tonsura. Era aberta uma pequena
mancha redonda no alto da cabeça, e aumentavam-lhe o tamanho conforme o
eclesiástico avançava nas ordens sagradas. A tonsura era um requisito necessário
na preparação das ordens nos séculos V e VI d.C..
Agostinho e seus sucessores na Sé da Cantuária seguiram os escritos do mais
antigo e venerado pai, que afirmou que a tonsura foi apresentada pela primeira
vez pelo príncipe dos apóstolos, como forma de honrar a coroa de espinhos que
foi colocada na cabeça do Redentor. O instrumento elaborado pela impiedade dos
judeus, para a desonra e tortura de Cristo, poderia ser usado por seus apóstolos
como ornamento e glória. Por mais de um século essa controvérsia se estendeu
com grande ardor. Até este momento, não importava o proceder do individuo,
um homem era ou não um herege dependendo do ato de raspar ou não a parte
dianteira de sua cabeça. Roma estava enraivecida. Os meios humanos pareciam
insuficientes para conquistar uma equipe miserável de presbíteros em um canto
remoto da ilha. Eles se recusavam a submeter-se a ela. O que deveria ser feito?
Como sempre, vendo-se incapaz de cumprir seu objetivo por meio dos padres,
Roma recorreu aos atos favoritos do tribunal dos nobres e príncipes. Fizeram o rei
dos pictos, Naitam, acreditar que, submetendo-se ao papa, ele seria igual a Clóvis e
Clotaire. Lisonjeado por tamanha grandeza de glória futura, ele recomendou todo
o clero de seu reino a receber a tonsura de São Pedro. Então, sem demora, enviou
agentes e cartas para todas as províncias e ordenou que todos os monastérios e
monges recebessem a tonsura circular, de acordo com a moda romana. Alguns
recusaram. Os presbíteros da rocha se mantiveram firmes por algum tempo, mas
por causa da ordem do rei, do exemplo do clero e da fraqueza de alguns dentre eles,
abriram caminho para a queda de lona e de toda a Escócia. No início do século
VIII, a navalha foi introduzida e eles receberam a tonsura latina, tornaram-se
servos de Roma e assim continuaram até o período da Reforma.101
101 D ’Aubigne, vol. 5, p. 77. Cunningham, vol. I, p. 90.
3381 A H i s t ó r i a d a I g r e j a - capítulo 14
Q uem Er a m
os
C u ld ees?
Culdees eram os religiosos reclusos, que viviam em lugares retirados. A
comunidade crista de Iona era chamada de Culdees. Provavelmente esta seja a
razão pela qual Columba escolheu esse local para fixar seu mosteiro. Embora
totalmente livre das corrupções dos grandes mosteiros do continente, a vida e as
instituições de Columba eram estritamente monásticas. A partir de fragmentos
recolhidos, parece que podemos afirmar com certa precisão que “eles se gloriavam
de seus milagres, veneravam as relíquias, cumpriam penitências, jejuavam às
quartas e sextas-feiras, tinham algo muito parecido com a confissão auricular,
absolvição e missas para os mortos. Mas certamente, nunca se submeteram aos
decretos do papado em relação ao celibato”. Muitos dos homens culdees eram
casados. Patrício foi filho de um diácono e neto de um padre.102
Porém, mesmo que esses bons e santos homens tenham sido contamina­
dos pela superstição dos tempos: a situação de afastamento, a simplicidade de
suas maneiras e a pobreza do seu país, acabou por preservá-los da influência
de Roma e dos vícios predominantes de mosteiros mais opulentos. Podemos
pensar em Iona, como um seminário no qual os homens eram treinados
para trabalhar no ministério. Anos mais tarde os monges passaram a ser fre­
quentemente perturbados e, algumas vezes, até assassinados por piratas. No
século XII, Iona passou a ser possessão dos monges romanos. “Sua fé pura e
primitiva”, disse Cunningham, “tinha acabado, sua fama de piedade e apren­
dizagem foi embora, mas a memória deles sobreviveu, e então passaram a ser
considerados, mais do que nunca com maior reverência supersticiosa. Muito
antes de ter sido transformado em túmulo da realeza, inúmeras peregrinações
eram feitas até ele e então os reis e chefes começaram a enriquecê-lo com os
dízimos e doações. As paredes que agora estão em ruínas haviam sido erigidas;
e o viajante contempla essas veneráveis ruínas eclesiásticas de um simples cais
do meio de um vasto oceano, tem sentimentos semelhantes àqueles com os
quais ele considera os templos de Tebas meio enterrados, mas ainda em pé no
meio das areias do deserto”.
Vamos agora sair um pouco das ilhas britânicas. Os primeiros raios da
cruz na Inglaterra, Escócia e Irlanda e o triunfo final de Roma nesses países
são eventos do mais profundo interesse ; e por terem acontecido em nosso país
merecem uma atenção ainda mais especial. A partir de então, poucas mudanças
vindas de fora ocorrem na história da igreja, embora possa ter havido muitas lutas
internas, bem como numerosos abusos das demandas audaciosas de Roma.
102 Cunningham, vol. 1, p. 94.
E u ro p a
(372 d.C. - 814 d.C.) | 339
A E x p a n sã o d o C r is t i a n i s m o
n a A le m a n h a e A rredores
E bem provável que a cruz tenha sido anunciada, em um tempo
primitivo, no coração das florestas alemãs, bem como nas cidades e distritos
que estavam sob a sujeição do Império Romano. Os nomes de vários bispos da
Alemanha são encontrados em listas de concílios de Roma e Aries, realizados
sob a autoridade de Constantino, nos anos de 313 e 314 d.C.. Mas foi apenas
no fim do século VI e início do século VII que o evangelho foi amplamente
difundido e enraizado. Os bretões, escoceses e irlandeses foram honrados por
Deus ao serem o principal instrumento neste grande e abençoado trabalho.
O ardoroso Columbanus, cuja missão já vimos, foi o líder das primeiras
equipes que foram em socorro dos pagãos no continente europeu. Primeiro
ele atravessou a França, depois passou o Reno e trabalhou para a conversão
dos suevos, bavários, francos e outros povos alemães. Kilian, o mais devotado
evangelista escocês, seguiu Colambanus. Ele é considerado o apóstolo da
Francônia e honrado como um mártir por sua fé cristã no ano de 692 d.C..
Willibrord, um missionário inglês, com onze de seus conterrâneos, cruzou a
Holanda para trabalharem entre os Frieslanders; mas, como outros anglosaxões daquele período, ele foi calorosamente devotado à Sé romana. Foi
ordenado bispo de Witteburg pelo papa. Seus associados disseminaram o
evangelho pela Vestefália e pelos países vizinhos.
Mas o homem que trouxe as nações da Alemanha como um rebanho de
ovelhas para os cuidados do pastor de Roma foi o famoso Winfrid. Ele nasceu
em Crediton, Devonshire, em uma nobre e rica família por volta do ano de
680 d.C.. Entrou para o mosteiro de Exeter aos sete anos de idade e mais tarde
foi transferido para Nursling, em Hampshire. Ali ele se tornou famoso por
suas habilidades de pregador e expositor das Escrituras. Ele sentiu-se chamado
por Deus desde cedo em sua vida para ser um missionário além-mar entre os
pagãos. Navegou para a Frísia em 716 d.C.. Seus trabalhos foram longos e
abundantes. Visitou Roma três vezes e recebeu grandes honras do papa. Sob
o título de São Bonifácio, e como apóstolo da Alemanha, ele morreu como
mártir aos 65 anos de idade. Porém, ainda que tenha sido um bem sucedido
missionário, um homem de grande força de caráter, de grande erudição e de
vida santa, ele foi empossado como vassalo do papa, e esforçou-se mais pelo
avanço da igreja de Roma do que pela expansão do evangelho de Cristo.103
103 Para outras informações, consulte Hardwicke’s Middle Ages; J.C . Robertson, vol. 2, p. 95.
340 I A H i s t ó r i a
d a I g r e ja
- capítulo 14
O G r a n d e P r o je t o Papal
pa r a o E n g r a n d e c im e n t o
A difusão do cristianismo neste longínquo século excedeu seus limites
anteriores, tanto nos países do Oriente quanto do Ocidente. Vimos algumas
coisas sobre seu triunfo no Ocidente. Diz-se que no Oriente os nestorianos
trabalharam com uma diligência incrível e muita perseverança para propagar a
verdade do evangelho na Pérsia, Síria, índia e entre as nações bárbaras e selvagens
que habitavam os desertos e as costas mais remotas da Ásia. Particularmente, o
vasto império da China foi iluminado pelo seu zelo e diligência com a luz do
cristianismo. Durante vários séculos consecutivos, os patriarcas dos nestorianos
enviaram bispos para presidir as igrejas da China. Este povo interessante rejeitou
a adoração de imagens, a confissão auricular, a doutrina do purgatório e muitas
outras doutrinas corrompidas de Roma e das igrejas gregas.
A igreja oriental, ou grega, parece ter sido prejudicada por dissensões
internas por se importar muito pela expansão do cristianismo entre os pagãos.
No Ocidente, tudo era atividade, mas infelizmente, não tinha nada a ver com a
propagação do Evangelho e a conversão de almas.m
O P e r ío d o
de
T r a n s iç ã o
do
Pa p a d o
Vamos retornar a Roma. Sua importância e influência como o centro
exige nossa máxima atenção por mais um tempo. Os domínios espirituais do
papa estavam agora espalhados por toda parte. De todas as partes do império,
bispos, príncipes e as pessoas olhavam para Roma como o genitor de sua fé e a
maior autoridade da cristandade. Mas, ainda assim, elevado à maior soberania
espiritual, a relação do Sumo Pontífice com o império do Oriente continuava a
ser um assunto delicado. Isso era intolerável para o orgulho e ambição de Roma.
A terrível luta pela vida política e pelo poder já começara. Isso durou todo o
século VII e VIII d.C.. Foi o período de transição de um estado de subordina­
ção ao poder civil para uma política de auto-existência. Como isso poderia ser
feito era o grande problema que o Vaticano tinha para resolver. Mas o domínio
espiritual não poderia ser mantido sem o poder secular.
Os Lombardos - os vizinhos mais próximos e mais temidos dos papas —
e o império grego foram os dois grandes obstáculos no caminho da soberania
secular do papa. A queda do império ocidental, e a falta de qualquer governo
nacional verdadeiro, permitiram que o povo de Roma olhasse para o bispo
10/1 Mosheim, vol. 2, p. 29.
E u r o p a (372
d.C, - 814 d.C.) j 3 4 1
como seu líder natural. Ele estava investido de uma influência política especial,
distinta de seu caráter eclesiástico. As invasões dos lombardos, como já vimos,
e as debilidades dos gregos, contribuíram para o aumento do poder político
nas mãos dos pontífices. Mas isto foi apenas acidental ou pelas necessidades de
emergências não previstas. Os Estados romanos eram governados por um oficial
do império do Oriente e do próprio papa, se ele ofendesse o imperador, estaria
susceptível a ser preso e jogado na prisão, como de fato aconteceu com o papa
São Martinho, em 653 d.C., que morreu no exílio, no ano seguinte.
O Ú n ic o G r a n d e O b je tiv o d o P a p a d o
Cada dia ficava mais claro que não haveria paz sólida para Roma; nenhum
alicerce seguro para a supremacia já alcançado a menos que os poderes dos gregos e
lombardos da Itália fossem completamente derrubados, e a Santa Sé se apropria-se
de seus despojos. Este se tornou então, o grande objetivo dos sucessores de Pedro,
era a batalha que tinham para lutar. Assim como foi com a vinha de Nabote, o
jezreelita, os despojos deveriam ser possuídos, por bem ou por mal. A conspiração
de Jezabel e a morte de Nabote foram efetuadas. A história dos reis lombardos, e
a grande controvérsia iconoclasta durante os séculos VII e VIII d.C., jogam mais
luz nessa situação e nos mostram os vários meios utilizados para obter este fim.
Mas disso tudo podemos dizer apenas uma palavra para passarmos adiante, e ela
deve conduzir nossos leitores para a história geral.10’
“Há bastante fundamento histórico para crermos que este objetivo, nesta
época, formara-se muito claramente na mente do papado”, disse Greenwood.
“O território de seu inimigo religioso, o imperador, deveria ser definitivamente
anexado ao patrimônio de Pedro,juntamente com tantas outras extensas proprie­
dades territoriais, que a oportunidade favorecesse trazer para seu domínio. Mas
restava ainda a difícil e aparentemente impossível tarefa de arrancar estas aquisições
em potencial das mãos do inimigo lombardo. E, de fato, todo o curso da política
papal foi, daí em diante, direcionada para alcançar este objetivo único”.
P e p in o
C arlo s M a g n o
(741-814 d.C.)
e
Os olhos dos papas estavam voltados para a França durante algum tempo,
de onde a libertação estava por vir. A nação franca era católica desde o início do
cristianismo, mas uma relação mais estreita com Roma havia se formado recente­
105 Veja especificamente: Greenwood’s Cathedra Petri.
342 I A H i s t ó r i a
d a I g r e ja -
capítulo 14
mente com o monge inglês Bonifácio. Ele estava cheio de uma reverência por sua
nação, por Pedro e seus sucessores, e exerceu toda sua influência entre os bispos da
França e Alemanha a fim de estender a autoridade da Sé romana. Isto preparou
o caminho para a solução do grande problema que então enfrentavam.
Pepino, que era um alto comissário ou o prefeito do palácio para o rei dos
francos Childeric III, tinha exercido todos os poderes do Estado, com todos os
atributos da soberania, com exceção do título. Ele achou que havia chegado a
hora de colocar um fim ao espetáculo real de seu mestre, e assumir o nome real
e honroso. Ele possuía, em plena medida, todas as qualidades que a nobreza e
o povo estavam acostumados a respeitar no período dos príncipes. Ele era um
nobre guerreiro e um estadista experiente. Uma série de sucessos fez com que
ele obtivesse uma grande extensão dos domínios dos francos. O pobre rei foi
destituído de tais habilidades e afundou na visão popular, sendo apelidado de “O
Estúpido”. Pepino, entretanto, tinha a sabedoria para proceder cautelosamente
neste estágio de seus planos. Bonifácio, que desempenhou papel importante no
assunto, foi despachado secretamente para Roma, a fim de preparar o papa para
a mensagem de Pepino, e com instruções sobre como responder. Enquanto isso,
ele reuniu os estados do reino para deliberar sobre o assunto. Os nobres foram
da opinião que primeiro o pontífice deveria ser consultado para ver se é lícito
fazer o que o prefeito desejava. Assim, dois eclesiásticos de confiança e de forma
sigilosa foram enviados a Roma para propor a seguinte questão ao papa Zacarias:
“A lei divina não permite que um povo valente e guerreiro destrone um monarca
imbecil e indolente, incapaz de cumprir qualquer uma das funções da realeza, e
coloque em seu lugar um substituto mais digno, que já tenha prestado serviços mais
importantes para o Estado ?” A resposta lacônica do papa, já de posse de todos os
segredos, foi pronta e favorável: “Quem legalmente tem o poder real também pode
legitimamente assumir o título real”.
Sem dúvida, o papa respondeu do modo como os seus questionadores
desejavam. Pepino sentiu-se seguro de seu prêmio. Fortalecido pela aprovação
da mais alta autoridade eclesiástica e certo da aquiescência do povo, ele corajosa­
mente assumiu o título real. Foi coroado por Bonifácio na presença da assembléia
dos nobres e dos prelados do reino, em Soissons, no ano de 752 d.C.. Mas o
caráter religioso da coroação marcou o crescente poder do clero. A cerimônia
judaica da unção foi introduzida por Bonifácio para santificar o usurpador. Os
bispos ficavam ao redor do trono, em pé de igualdade com os nobres armados.
De acordo com os costumes dos francos, Pepino foi elevado sobre o escudo, entre
aclamações do povo e proclamado rei dos francos. Childeric, o último dos reis
merovíngios, foi despojado da realeza sem oposição, seu cabelo longo foi cortado,
sua tonsura desfeita e foi trancado em um mosteiro.
E u r o p a (372 d.C . - 814 d .C .)
I 343
A Sa n ç ã o d e Z a c a r ia s e
a C o n s p i r a ç ã o d e P ep in o
A parte que Bonifácio e seu benfeitor, o papa, desempenharam nesta
revolução e a moralidade dos procedimentos, foram assunto de muitas contro­
vérsias. Os escritores do papa não tiveram escrúpulos para justificá-los de seus
atos e os escritores protestantes para incriminá-los. Mas, se compararmos a sua
conduta com os princípios do Novo Testamento, não pode haver controvérsia.
Todo princípio, direito e sentimento humano e divino foram prontamente
sacrificados para garantir a aliança de Pepino contra os gregos e lombardos. A
violação dos direitos sagrados dos reis, a grande lei da sucessão hereditária, a
ambição rebelde de um servo, a degradação de um soberano legítimo, absolvendo
assuntos de sua fidelidade, foram sancionadas pelo papado como certas na visão
de Deus, desde que sejam meios de elevar o papa em sua soberania secular. Essa
foi a ousada maldade e a blasfêmia terrível da Sé romana em meados do século
VIII. Note o estudante de história da igreja, que esta ocorrência é uma caracte­
rística do papado e é um precedente para suas pretensões futuras. Geralmente
isso é relacionado como o primeiro exemplo de interferência do papa nos direitos
dos príncipes e de submissão aos seus assuntos. Mas os sucessores de Zacarias
fizeram amplo uso deste precedente nos anos seguintes. Eles afirmaram que os
reis da França, neste período, mantinham suas coroas apenas pela autoridade do
papa, e que a sanção do papado era seu único título legal. Mal sabiam Pepino
ou Zacarias o imenso efeito que essa negociação traria para a história da igreja
e do mundo. Este foi o primeiro grande passo em direção ao futuro reino do
bispado de Roma, o importante elo na cadeia de eventos.
A S o b e r a n ia S e c u l a r d o Pa p a d o
é E st a belec id a
Por intermédio da mútua troca de funções, em menos de três anos Pepino
cruzou os Alpes com um numeroso exército, derrubou os lombardos e recuperou
o território italiano que eles haviam arrancado do império do Oriente. A justiça
teria certamente exigido que fosse devolvido ao imperador, a quem pertencia;
ou ser mantido para uso do próprio conquistador. Mas ele não fez nem uma
coisa nem outra. Atento à sua obrigação com a santa Sé, ele respondeu que ele
não tinha ido à guerra por amor de nenhum homem, mas por amor a Pedro
apenas, e para obter o perdão de seus pecados. Então ele transferiu a soberania
em questão sobre as províncias entre os bispos de Roma. Este foi o fundamento
para toda a dominação secular dos papas.
344 | A
H is t ó r i a
da
I g r e ja -
capítulo 14
Astolfo, rei dos lombardos, jurou a Pepino que iria restaurar para Pedro as
cidades que havia tomado e as tropas francesas foram retiradas. Mas a magnífica
doação com a qual o papa estava preocupado, estava apenas no papel. Ele ainda
não tinha a posse efetiva dos territórios cedidos, nem tinha meios de tomar posse
do presente real. Mal o rei franco retornou dos Alpes, Astolfo recusou-se a cumprir
seu compromisso. Ele reuniu o exército e retomou seus ataques sobre os territórios
espalhados da igreja. Ele devastou o país até os muros de Roma e montou cerco
à cidade. O papa, irritado com a atitude evasiva de Pepino e com a perfídia dos
lombardos, enviou mensagens para seus protetores francos às pressas por via
marítima, porque todos os caminhos por terra estavam tomados pelo inimigo.
Em sua primeira carta ao rei Pepino, ele o ameaçou com condenação eterna,
caso não completasse a doação que havia prometido a Pedro. A segunda carta foi
patética, mas mais persuasiva. Os francos continuavam atrasados. E finalmente
o papa escreveu a terceira carta, como sendo diretamente de Pedro. A ousadia
e a pretensão desta carta são tão terríveis que nos dão uma amostra dos meios
utilizados pelo papa para aterrorizar os bárbaros a fim de proteger a Santa Sé e
o avanço dos seus domínios. Ele considerava todos os meios justificáveis por causa
de tão altos propósitos. Assim se lê:
“Eu, Pedro, o apóstolo, protesto, admoesto e conjuro-vos, aos mais
cristãos dentre os reis: Pepino, Carlos e Carloman, com toda a hierarquia,
bispos, abades, padres e monges; todos os juizes, duques, condes e todo o povo
franco. A mãe de Deus igualmente vos roga e admoesta, ela, bem como os
tronos e domínios e todo o exército dos céus, para que salvem a amada cidade
de Roma dos detestáveis lombardos. Se ouvires, eu, Pedro, o apóstolo, prometolhes minha proteção nesta vida e na próxima, irei preparar-lhes as mansões mais
gloriosas no céu, e vos darei as alegrias eternas do paraíso. Façam esta causa
comum com meu povo de Roma, e eu irei conceder-vos o que quer que oreis.
Suplico-lhes para que não cedam esta cidade para ser dilacerada e atormentada
pelos lombardos, para que suas próprias almas não sejam dilaceradas e ator­
mentadas no inferno com o diabo e seus anjos pestilentos. De todas as nações
debaixo do céu, os francos são os mais elevados na estima de Pedro, a mim
vocês devem todas as suas vitórias. Obedeçam e obedeçam rapidamente; e, pelo
meu voto, nosso Senhor Jesus Cristo lhes dará nesta vida quantidade de dias,
segurança, vitória, e na vida por vir multiplicará suas bênçãos sobre vocês, entre
seus santos e anjos. ” 106
106 Para uma descrição mais ampla deste importante período, veja: Milman’s Latin Christianity,
vol. 2, p. 243.
} 345
E u r o p a (372 d.C. - 814 d.C.) !
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O P r e n ú n c io
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I n iq u id a d e
Nada poderia nos dar uma idéia mais expressiva da assustadora apostasia
da igreja de Roma do que esta carta. O único direito para a vida eterna era
a obediência ao papa; a tarefa mais sublime do homem era a proteção e a
ampliação da santa Sé. Mas, onde está Cristo? Onde estão seus direitos? Onde
está o cristianismo? Em vez de procurarem converter os bárbaros e ganhar
suas almas para Cristo, o Santíssimo nome do Senhor, os nomes dos apóstolos
eram prostituídos para os mais vis dos propósitos. O soldado que lutasse mais
arduamente para a Sé romana, ainda que desprovido de qualquer qualificação
moral e religiosa, teria a garantia de grandes vantagens temporais na vida
presente e, na vida que está por vir, teria o lugar mais alto no céu. Temos aqui
o mistério da iniquidade e o prenúncio do homem da iniquidade, o filho da
perdição que se oporá e se levantará sobre tudo que é adorado, e se assentará,
como Deus, no templo de Deus para mostrar que ele é Deus - e ele mesmo,
cuja vinda é segundo a eficácia de Satanás, com todo o poder, sinais e prodígios
de mentiras (2Ts 2:3-12)
Logo Pepino colocou seus francos em ordem de marcha. As ameaças
e as promessas da carta de Pedro tiveram o efeito desejado. Novamente eles
invadiram a Itália. Astolfo rendeu-se de uma vez às exigências de Pepino. O
território contestado foi abandonado. Os embaixadores do Oriente estavam
presentes na celebração do tratado e exigiram a restituição de Ravena e seu
território para o seu mestre, o imperador; mas Pepino declarou que seu único
objetivo na guerra era mostrar sua veneração por Pedro, concedendo a seus
sucessores a totalidade daquilo que havia conquistado. Os representantes do
papa passaram pelas terras recebendo homenagem das autoridades e as chaves
das cidades. Mas o território que ele aceitou de um monarca estrangeiro, sob a
forma de doação, pertencia a seu mestre reconhecido, o imperador do Oriente.
Ele contratou por uma grande quantia, que teve o cuidado de fazer pagável no
céu, um estrangeiro poderoso para roubar do seu legítimo senhor algo para sua
própria vantagem, e sem pudor ou hesitação, aceitou a fraude. O rei francês pôde
ser destronado e humilhado por seu servo e o imperador grego pôde ser roubado
e desafiado pelo seu sacerdote, se a igreja assim fosse engrandecida. Essa sempre
foi a política de Roma.
Mas a magnânima doação de Pepino - que morreu em 768 d.C. - teve
de aguardar a confirmação de seu filho, Carlos Magno. No ano de 774 d.C.,
quando os lombardos, mais uma vez, ameaçaram os territórios de Roma, o
auxílio da França foi implorado. Carlos Magno veio em seu socorro. Ele chegou
346 I A H is t ó r ia
da
I g r e ja -
capítulo 14
a Roma na véspera da Páscoa. Os romanos, somos informados, receberam o rei
com demonstrações de alegria sem limites. Trinta mil cidadãos saíram-lhe ao
encontro; todo o clero com cruzes e bandeiras; as crianças das escolas o saudavam
com hinos de boas-vindas levando ramos de palmeiras e oliveiras. Ele desmontou
e prosseguiu andando até a igreja de Pedro onde o papa e o clero o esperavam.
O rei beijou cada degrau da escada devotamente, e, ao chegar ao topo, beijou o
papa e entrou no prédio segurando sua mão direita. Ele terminou a véspera da
Páscoa em exercícios de devoção e oração. Mas quando o coração do rei estava
enternecido, o papa Adriano trouxe à baila uma nova escritura de doação para a
Santa Sé. Por meio dela, Carlos Magno aumentou bastante a doação que Pepino
fizera à igreja, e confirmou esta por meio de um juramento solene depositando o
título sobre o túmulo do apóstolo. Depois do término das solenidades da Páscoa,
ele despediu-se do pontífice e retornou ao seu exército. Ele foi vitorioso por todos
os lugares pelos quais passou; não parou até ter finalmente vencido o império
dos lombardos, e proclamou-se, ele mesmo, rei da Itália.
A D o a ção
t e r r it o r ia l d e
C a rlo s M a g n o
A dimensão real de sua doação é muito difícil de ser estabelecida. Mas,
na opinião geral dos historiadores parece que incluía não apenas o exarcado
de Ravena, mas os ducados de Espoleto e Benevento, Veneza, Istria e outros
territórios no norte da Itália —em suma, quase toda a península com a ilha da
Córsega. Cada Nabote foi roubado de sua vinha e seu sangue derramado, para
a gratificação da ambição de Jezabel, e para o estabelecimento de seu trono de
iniquidade. Mas o marco da consumação e o selo de toda maldade foram o
modo como o papa tentou conciliar o seu personagem, em sua nova posição,
com o caráter vicário de Cristo. Ele argumentou que, como todos os homens
estão sujeitos a Cristo, assim também devem estar sujeitos ao seu vigário e repre­
sentante na terra e a tudo que pertence a seu reino. Mas este reino se entendeu
por todos os lados, portanto, nada que pertença a este mundo ou os seus negócios
pode estar acima ou fora da jurisdição de Pedro. Nosso reino não é deste mundo;
ele é, como o de Cristo, em todos, sobre todos e sobre tudo. De acordo com
esta teoria, nenhum domínio secular deveria ser considerado incompatível com
a declaração do Senhor a respeito da natureza do Seu reino. E neste pressuposto
ímpio que, desde então, os papas têm sempre agido. Daí sua interferência com
o padre e o povo, reis e cidadãos, terra e mar, sobre todo o mundo.
Carlos Magno visitou Roma novamente em 781 d.C., e uma terceira
vez em 787 d.C., e, em cada ocasião, a igreja foi enriquecida com presentes,
agraciada, como professou na linguagem da época: “para o bem da sua alma”.
E u r o p a (372
d.C. - 8 1 4 d.C.) |
I
Inundado de gratidão e plenamente consciente de sua própria necessidade de
um defensor permanente, o papa coroou Carlos Magno na véspera do Natal do
ano 800 d.C., com a coroa do império ocidental e, proclamou-o César Augusto.
Um príncipe dos francos, um teutão, foi declarado sucessor dos Césares, e
exercia todo o poder do imperador do Ocidente. “O Império de Carlos Magno”,
disse Milman, “foi quase proporcional à cristandade latina; a Inglaterra foi o
único grande território que reconheceu a supremacia eclesiástica de Roma, sem
sujeitar-se ao novo Império Ocidental.”107 Esses eventos constituíram a grande
época dos anais da história da cristandade romana.
Agora iremos deixar o Ocidente de lado por um tempo, e voltar nossa
atenção para outra grande revolução religiosa que repentina e inesperadamente
surgiu no Oriente: o maometismo.
I0/ Veja Milman, vol. 2. Greenwood, vol. 2.
34
M
aom é,
o Fa l s o P r o fe t a
da
A r á b ia
I
:
.
com muito interesse que delineamos o constante progresso e o
poder conquistador do cristianismo por toda a Europa nos séculos VII
V /
e VIII, ainda que em roupagem latina ou romana. O nome de Jesus
foi propagado em muitos países estrangeiros e Deus pôde usar o doce perfume
deste nome para abençoar, apesar dos rígidos rituais de Roma que o cercavam.
No entanto, todas essas conquistas do evangelho, através do controle do papa e
da influência de seus missionários, se tornaram conquistas da diocese romana.
Seria impossível imaginar quão abrangente teria sido seu domínio espiritual
e quão grande o seu poder se não tivesse encontrado formidáveis oposições.
Mas Deus permitiu que um inimigo se levantasse para deter o progresso do
romanismo por todos os lados, e, por mais de uma vez, fazer o pontífice temer
por sua segurança, mesmo sentado na cadeira de São Pedro. Esse foi Maomé, o
impostor da Arábia.
O início do século VII - data em que esse notável homem surgiu foi particularmente favorável para o cumprimento de seu grande objetivo.
Praticamente o mundo inteiro estava contaminado por ídolos. A religião pre­
dominante de seu país era grosseiramente idólatra. Havia 360 ídolos no templo
de Meca, exatamente o número de dias no calendário árabe. O paganismo,
com seus inúmeros falsos deuses, continuava a cobrir grande parte do mundo;
350 j A
H
is t ó r i a d a
I g r e ja -
capítulo 15
e, infelizmente, até o cristianismo se tornara profundamente idólatra, tanto na
igreja grega como na romana. E foi precisamente neste momento que Maomé
apareceu diante do mundo como um monoteísta firme e austero. Ele se sentiu
chamado a restaurar a doutrina fundamental da unidade divina à sua devida
proeminência na crença religiosa da humanidade. Mas o conceito da encarnação,
da redenção, de um Redentor, do relacionamento e comunhão com Deus as penetrantes influências de um amor santo - não tinham lugar no sistema
doutrinário do profeta. O gigantesco abismo que separa Deus do pecador ficou
intransponível na religião de Maomé. Mas, antes de falar do seu sistema, vamos
falar rapidamente sobre sua família e juventude.
A Fa m íl ia
e a
Juventude
de
M aomé
De acordo com a tradição arábica, ele foi de uma família nobre de
Coraixe. Essa tribo, os coraixitas, na época do nascimento de Maomé (acreditase ser em torno de 569 d.C.) era uma espécie de hierarquia que exercia a
supremacia religiosa, e eram os reconhecidos guardiões da Caaba, a pedra
santa de Meca, e de seu templo. O pai dele morreu logo após seu nascimento,
e sua mãe, quando ele ainda era uma criança pequena; por isso, ficou órfão e
desamparado. Outros homens de sua família haviam morrido, e o governo de
Meca e as chaves da Caaba passaram para as mãos de outro ramo da família.
Pouco se sabe sobre seus primeiros 25 anos de vida, exceto que ele se envolveu
em transações mercantis e foi muito bem sucedido nos negócios, tanto que
recebeu o título de Amin, ou fiel. Aos 28 anos casou-se com uma parente sua
que ficara viúva, e possuía muitas riquezas. Doze anos após seu casamento,
aos 40 anos de idade, o profeta começou a ouvir os chamados de sua futura
missão. Os infortúnios de sua família e como recuperar a dignidade e poder
de seus ancestrais pode ter passado em sua mente antes de tudo. De acordo
com uma prática comum entre seus conterrâneos, ele se retirava anualmente
para uma caverna na montanha, e passava algum tempo em solidão religiosa.
Foi em uma destas cavernas, de acordo com seu próprio relato, que recebeu
seu primeiro comunicado dos céus, ou melhor, como acreditamos, do abismo
escuro. No entanto, ele foi sendo moldado gradualmente na crença de que foi
especialmente chamado por Deus para ser um instrumento de destruição da
idolatria e propagação da fé verdadeira. Seus oráculos, que ele declarava receber
diretamente do céu através do anjo Gabriel, foram preservados no Alcorão, e
considerados pelos fiéis como a palavra de Deus.
ISLAMISMO- ICONOCLASTÍA (569 d.C. - 741 d.C.) | 351
5-V 'Z'-‘
A R e li g iã o
do
I slã
Assim, a nova religião anunciada era o Islã, palavra que significa submissão
ou resignação para com a vontade de Deus. Sua doutrina foi resumida em seu
próprio aforismo: “Não existe Deus se não o verdadeiro Deus, e Maomé é seu
profeta.” Os seis artigos principais da fé teórica do Islã eram: (1) crer em Deus; (2)
em seus anjos; (3) nas Escrituras; (4) em Seus profetas; (5) na ressurreição e no
dia do julgamento; (6) na predestinação. A parte prática do credo era igualmente
irrepreensível, de acordo com o pensamento predominante da prática religiosa na
época e engloba quatro grandes preceitos: (1) oração e purificação; (2) esmolas; (3)
jejum; (4) a peregrinação à Meca, que era tão essencial que se alguém morresse sem
a realizar, bem poderia ser equivalente a ter morrido como um judeu ou cristão.
O único artigo realmente novo e assustador na religião do Islã foi a missão
divina de Maomé como apóstolo e profeta de Deus. Mas sob tão bela aparência,
a astúcia de Satanás fica mais evidente. Alguns princípios religiosos simples e
elementares não seriam difíceis para ninguém, mas enganariam a muitos. A
História prova claramente que as opiniões dele mudaram com o seu sucesso, e
que sua violência e intolerância aumentaram à medida de seu poder, até que se
tornou a religião da espada, da pilhagem e da sensualidade. “Ele era um pregador
gentil, até desembainhar a espada”, disse Milman. Uma vez desembainhada, a
espada é o argumento impiedoso. Inicialmente, verificávamos o amplo princípio
da tolerância oriental explicitamente declarado: a diversidade de religião é
atribuída à ordenação direta de Deus e todos compartilham de igual favor diante
dEle. Mas o Alcorão gradualmente passou a repudiar todas essas sentenças mais
suaves, assumindo uma linguagem de superioridade insultante ou de aversão
indisfarçável. Embora o Alcorão tenha muitos pontos de semelhança com o
judaísmo e com o cristianismo, acredita-se que Maomé não estava familiarizado
com o Antigo e com o Novo Testamento - tanto que extraiu seu material de
Lendas do Talmude, de evangelhos não genuínos e outros escritos heréticos,
misturados com antigas tradições da Arábia.
Os primeiros convertidos que Maomé conquistou para sua nova religião
foram seus amigos e parentes mais próximos, porém o trabalho de conversão
prosseguiu lentamente. Ao fim de três anos ele possuía apenas quatorze
seguidores. Não contente com o seu progresso, ele resolveu fazer uma declaração
pública de sua religião. Primeiro chamou sua própria família para reconhecê-lo
como profeta de Deus e, tendo sido aceito por estes, sua aspiração passou ser o
profeta de sua tribo. Mas suas exigências foram rejeitadas pelos coraixitas, suas
pretensões não tiveram crédito, e ele e seus seguidores foram perseguidos.
352 j
A H i s t ó r i a d a I g r e j a - capítulo 15
A E n t r a d a T r iu n f a n t e
em M e d in a
de
M aomé
Até então, ele esforçara-se para expandir suas opiniões apenas usando a
persuasão, mas o povo era obstinado e supersticioso, a ponto de ameaçarem
o profeta com o martírio. Ele foi obrigado a fugir de sua cidade natal, Meca,
que era o ponto central do comércio e da religião da Arábia, e onde esperava
que também fosse o centro de seu novo império espiritual. Ele fugiu então para
Medina, lugar no qual foi recebido como um príncipe. Alguns dos cidadãos mais
distintos abraçaram sua causa; e um grupo se formou a seu favor. Sua migração
em 622 d.C. é considerada como o grande período notável na vida do profeta, e
como base da cronologia maometana. Agora que possuía uma força militar, ele foi
encarregado de uma nova revelação para ser usada na propagação da fé. A natureza
das revelações divinas havia mudado, agora elas eram violentas e sanguinárias.
Como os profetas de Acabe, sua boca estava cheia de um espírito enganador.
Em poucos anos, depois de combater cidades rivais e seguidores de outras
religiões, o poderio militar do profeta havia aumentado tanto, que em 630 d.C.,
ele conquistou Meca. Limpou os 360 ídolos da Caaba e erigiu o grande santuário
do Islã. A partir dessa época, Meca se tornou o centro de seu sistema; toda a
população lhe jurou fidelidade; todas as tribos da Arábia estavam agora sob seu
domínio e professavam sua religião.
M
eca, a
C a pita l
do
I slã
Maomé era agora o senhor de Meca. Do mais alto pináculo da mesquita
foram proclamadas a unidade de Deus e a missão profética de Maomé. Os
ídolos foram despedaçados. O velho sistema de idolatria afundou diante do
medo imposto por seus exércitos e da simplicidade exterior da nova crença. O
próximo passo importante na política do profeta foi garantir a absoluta unidade
religiosa de toda a Arábia. Dessa forma, os antigos feudos hereditários das tribos
e raças desapareceram, e todos se tornaram um único exército religioso contra os
infiéis. A guerra estava declarada contra todas as formas de incredulidade, a qual
foi, sobretudo uma declaração de guerra contra a cristandade, e uma expressa
determinação de propagar o maometismo pelo poder de sua espada.
Maomé se tornara então, um soberano independente. A Arábia, livre
dos ídolos, abraçou a religião do Islã. Mas, embora o profeta fosse agora um
príncipe secular e um guerreiro bem sucedido, ele não negligenciou seus deveres
de sacerdote. Frequentemente liderava os devocionais de seus seguidores, fazia
I s la m is m o - I c o n o c l a s t i a
(569 d.C. - 741 d.C.) | 35
orações públicas, e pregava às sextas-feiras nos festivais semanais. De maneira
blasfema ele se apropriou dos títulos de profeta, sacerdote e rei. A inspiração
do inferno é a mistura, a ilusão: é como a obra-prima de Satanás, emanada do
reino das trevas. O fanatismo de seus seguidores foi estimulado pelo incentivo
do saque e pela gratificação de todo tipo de paixão maligna. A posse de todas
as prisioneiras foi reconhecida como uma das leis de guerra, e a recompensa
devida à bravura. A máxima inculcada em todos os fiéis foi algo parecido com:
“Uma gota de sangue derramada pela causa de Deus, ou uma noite passada em
armas, é de melhor proveito do que dois meses passados em jejum e oração. Todo
aquele que cair em batalha, terá seus pecados perdoados; no dia do juízo suas
feridas serão resplandecentes como o escarlate e odoríferas como o almíscar; a
perda de seus membros será recompensada com asas de anjos e querubins”. Seu
grito de guerra era intrépido: “Lutar, lutar e não temer! O paraíso, o paraíso está
debaixo da sombra de suas espadas! O inferno e suas chamas perseguem aquele
que foge da batalha; o paraíso está aberto para quem cair na batalha”. Assim
inspirados, o exército muçulmano estava inflamado de entusiasmo; e, sedentos
pelos espólios da vitória aqui e de um paraíso sensual no porvir, eles se lançavam
destemidamente na batalha.
Os fundamentos do império árabe estavam estabelecidos. Maomé
convocou não apenas os insignificantes soberanos dos reinos vizinhos, mas as
duas grandes potências do mundo mais civilizado - o rei da Pérsia e o imperador
do Oriente - a se submeterem à sua supremacia religiosa. Diz-se que Heráclito
recebeu a comunicação com respeito, mas Cosroes II, o persa, desdenhosa­
mente rasgou a carta em pedaços. Ao ouvir sobre tal ato, o profeta exclamou:
“E assim que Deus irá rasgar o reino e rejeitar as súplicas de Cosroes II”. E
assim aconteceu; o reino da Pérsia foi reduzido em pouco tempo pelo exército
muçulmano a pequenas e dispersas comunidades. Mas embora o círculo do Islã
estivesse aumentando, o centro estava morrendo. Tendo acompanhado seu filho
mais velho para o túmulo com lágrimas e suspiros, o profeta fez sua peregrina­
ção de despedida a Meca e morreu em 632 d.C., aos 64 anos de idade. Ao que
parece, mesmo no leito de morte, o profeta permaneceu intocado pelo remorso,
mas o sangue que ele tinha derramado e as multidões que havia seduzido iriam
segui-lo até o julgamento final.
A missão maligna do profeta fora cumprida. Ele havia organizado a
mais terrível confederação que o mundo jamais vira. No curto espaço de dez
anos ele fundou no Oriente uma religião com raízes tão firmes que em meio a
todas as revoluções e mudanças de doze séculos, ainda exercem uma poderosa
influência sobre o controle das mentes e consciências de mais de cem milhões de
seres humanos.
354 |
A H i s t ó r i a d a I g r e j a - capítulo 15
-k * *
Os
S u ce sso res de M aom é
Depois da morte do profeta, foi declarada guerra contra humanidade por
seus sucessores, os califas. Seus líderes eram Abou Beker, o sábio; Omar, o fiel;
Ali, o bravo e Khaled, a espada de Deus. Estes eram os companheiros e parentes
mais velhos do profeta. Poucos meses após a morte dele, estes generais foram
seguidos por multidões do deserto e invadiram as planícies da Ásia. Embora a
história dessas guerras tenha afetado profundamente o progresso do cristianismo,
ela não se insere no escopo de nossas “Breves Notas”. No entanto, como muitas
nações e multidões do povo do Senhor foram vítimas desse flagelo terrível, isso
requer uma breve consideração. Muitos acreditam que os gafanhotos sarracenos
eram um cumprimento parcial de Apocalipse 9:1-12.
Os pagãos perseguidos, como Cosroes II, o infiel e provocador rei da
Pérsia, e os cristãos meramente nominais, foram igualmente castigados por
Deus através dos sucessores de Maomé; mas os orgulhosos bispos e sacerdotes
eram os objetos especiais da vingança deles. “Não destruam árvores frutíferas e
nem campos férteis pelo caminho”, disseram os califas, “sejam justos e poupem
os sentimentos dos vencidos. Respeitem todos os religiosos que vivem como
ermitões ou em conventos, e poupem seus edifícios. Mas se encontrarem uma
classe de incrédulos de um tipo diferente, que andam com a cabeça raspada em
forma de coroa e pertencem à sinagoga de Satanás; certifiquem-se de racharem
seus crânios, a menos que abracem a fé verdadeira ou rendam tributos.” E assim a
poderosa horda seguiu com um entusiasmo que nada podia deter. “A Síria caiu; a
Pérsia e o Egito caíram; e muitos outros países se renderam ao seu poder”. Outras
grandes cidades como Jerusalém, Bosra, Antioquia, Damasco, Alexandria,
Cirene e Cartago caíram nas mãos deles. Também invadiram a índia, atacaram
a Europa e a Espanha, avançaram até as margens do Loire; ali foram derrotados
e expulsos por Carlos Martel em 732 d.C.. Mas só observaremos o tratamento
que conferiam aos derrotados no caso de Jerusalém.
No ano 637 d.C., Jerusalém caiu nas mãos do califa Omar, que construiu
uma mesquita no lugar do templo. Toda a população daquela cidade culpada foi
reduzida a uma casta desprezível e marcada pelo arrogante conquistador. Em todos
os lugares eles tinham de honrar os muçulmanos e lhes dar a preferência. O cris­
tianismo foi subjugado à ignomínia da tolerância; a cruz não era mais exibida no
exterior das igrejas, os sinos foram silenciados; os cristãos choravam seus mortos
em secreto; a visão dos muçulmanos fiéis não deveria ser ofendida de modo algum
pelos símbolos do cristianismo; o próprio corpo deles era considerado sagrado, de
modo que era um crime para um cristão esbarrar em um muçulmano.
I s la m is m o - I c o n o c l a s t i a (569
d.C. - 741 d.C.) | 355
Essa foi a condição em que os habitantes cristãos de Jerusalém se viram
reduzidos e na qual permaneceram, sem que seus algozes fossem perturbados
por nenhum tipo sério de agressão até o surgimento do tempo das cruzadas.
Acreditamos que o mesmo ocorreu com todos os cristãos da Síria. Foi assim
que Deus, em Sua santa providência, lidou com muitas nações no Oriente e
no Ocidente, densamente povoadas por judeus e cristãos, e condenou milhões
a uma longa noite de servidão debaixo do maometismo, a qual continua até
hoje.’08
R eflexões S o b r e o I sl a m ism o
e o R o m a n ism o
Tendo trazido nossa história, tanto civil quanto eclesiástica, para o final
do século VIII, precisamos parar um instante e refletir sobre o que temos
visto, onde estamos e o que podemos ter pela frente. Vimos o crescimento da
Sé romana no Ocidente e como chegou ao ápice de sua ambição. Também
vimos o surgimento de um grande poder antagônico no Oriente, inferior na
amplitude da sua influência social e religiosa apenas ao próprio cristianismo. O
primeiro se levantou gradualmente bem no centro da iluminada cristandade; o
outro surgiu de repente em uma parte obscura de um deserto selvagem. Mas,
podemos perguntar, qual a lição moral a ser tirada do caráter e dos resultados
desses dois grandes poderes? Ambos foram permitidos por Deus e, se estamos
certos em nosso julgamento, foram permitidos por Ele como um julgamento
divino sobre os cristãos por causa da apostasia, e sobre os pagãos por causa da
idolatria. Por um lado, o grito de guerra foi levantado contra todos os que se
recusaram a se render ou a dar tributos ao credo e aos exércitos dos califas. Por
outro lado, um grito mais impiedoso de guerra foi levantado contra todos os
que se recusavam a acreditar na Virgem e nos santos, nas visões e nos milagres
deles, em suas relíquias e imagens, de acordo com as intolerantes exigências da
idólatra Roma. As igrejas do Oriente foram enfraquecidas e arruinadas desde os
dias de Orígenes pela filosofia platônica sob a forma de uma teologia metafísica,
a qual causou discórdia contínua. No Ocidente, as controvérsias foram bastante
evitadas: o foco ali era o poder. Por séculos Roma havia desejado o domínio
da cristandade - e também do mundo. Ambos foram tratados judicialmente
por Deus no dilúvio ardente da Arábia, mas o islamismo permanece como o
poderoso flagelo de Deus no Oriente; e o romanismo, no Ocidente.
108 Veja Cristianismo Latino, de Milman, volume 2; e Dezoito Séculos Cristãos, de James White.
A H ist ó r ia
da
I g r e ja - capítulo 15
M o n o t e l is t a s ,
ICONOCLASTIA
Enquanto os árabes, sob o comando de Abou Beker e Ornar infestavam
os países gregos e arrasavam província após província do império, o imperador
se contentava em enviar exércitos para repeli-los, permanecendo na capital para
discutir questões teológicas. A partir do bem-sucedido desfecho das guerras contra
a Pérsia, a religião se tornara quase que o objeto exclusivo de sua preocupação.
Duas grandes controvérsias agitaram o mundo cristão nessa época. A primeira
foi a chamada controvérsia monotelista, que pode ser descrita como o renas­
cimento, sob forma um pouco diferente, do velho monofisismo ou heresia de
Eutiques. Sob o nome generalizado de monofisismo estão englobados os quatro
principais ramos dos separatistas da igreja oriental, a saber, os jacobitas da Síria,
os coptas do Egito, os abissinianos e os armênios. O criador dessas numerosas e
poderosas comunidades cristãs foi Eutiques, abade de um convento de monges
em Constantinopla no século V. Os monofisistas negavam a distinção das duas
naturezas em Cristo; os monotelistas, por outro lado, negavam a distinção da
vontade, a divina e a humana, no abençoado Senhor. Uma bem intencionada,
mas frustrada tentativa foi feita pelo imperador Heráclio de conciliar os mono­
fisistas à igreja grega. Porém, como pouco se falou desta controvérsia entre os
sectários orientais depois desse período, e como um relato detalhado de tais
disputas não traria nenhum benefício aos nossos leitores, iremos deixá-las nas
páginas da história eclesiástica.109
A iconoclastia, ou a destruição de ídolos ou imagens, exige uma
análise mais completa. Ela atingiu o coração da cristandade como nenhuma
controvérsia tinha conseguido antes; e isso marcou uma era importante na
história da Sé romana. Jezabel se mostra agora com sua real aparência, e desse
momento em diante, seu caráter maligno fica inegavelmente estampado no
papado. Os papas que passaram a ocupar a cadeira de São Pedro defendiam
e justificavam abertamente a adoração de imagens. Certamente esse foi o
início do papado - a maturidade do sistema de desonra a Deus. Os alicerces
do papado foram expostos, e assim ficou evidente que a perseguição e a
idolatria eram os dois pilares sobre os quais repousava o arrogante domínio
de Jezabel.
109 Para maiores detalhes das diferentes seitas, veja Dicionário das Igrejas Cristãs e Seitas, de
Marsden; e Crenças do Mundo, de Gardner.
Isla m ism o - I c o n o c la s t i a
(569 d.C. - 741 d.C.)
O P r im e ir o O bjet o V isív e l
d e A d o r a ç ã o C r ist ã
Por mais de 300 anos após a primeira proclamação do evangelho, há boas
razões para acreditar que nem imagens, nem quaisquer outros objetos visíveis de
reverência religiosa foram admitidos no culto público das igrejas ou adotados no
exercício da devoção individual. E provável que tal coisa jamais tenha passado
pela mente dos cristãos antes dos dias de Constantino; só podemos considerar
isso como um fruto inicial da união entre Igreja e Estado. Até esse período, o
grande protesto dos cristãos era contra a idolatria dos pagãos, e por isso eles
sofreram até a morte. E não é algo insignificante que a imperatriz Helena,
mãe de Constantino, tenha sido a primeira a incitar a mente dos cristãos a
tão degradante superstição. Em seu zelo por lugares religiosos, ela afirmou ter
descoberto e desenterrado a madeira da “cruz verdadeira”. Foi o suficiente para
os propósitos do inimigo. A predileção da natureza humana por objetos de
adoração se acendeu, a chama se espalhou rapidamente e, por consequência, a
idolatria se instalou.
Semelhantes memoriais do Salvador, da Virgem Maria, dos apóstolos e
dos Pais foram encontrados. As relíquias mais sagradas que estavam escondidas
pelos séculos eram agora descobertas por meio de visões. Tão grande, tão bem
sucedido foi o engano do inimigo, que toda a igreja caiu na armadilha. Do
tempo de Constantino até a época das invasões árabes, a veneração por imagens,
pinturas e relíquias crescia gradualmente. A reverência por relíquias foi mais
característica da igreja do Ocidente, enquanto que a por imagens pintadas, das
igrejas do Oriente; mas na época de Gregório, o Grande, a inclinação Ocidental
se tornou mais favorável às imagens esculpidas ou moldadas. Em consequência
da quase total decadência da literatura, tanto entre o clero quanto entre os
leigos, o uso das imagens foi a maneira encontrada para dar imenso poder aos
sacerdotes. Imagens, estátuas e representações visíveis de objetos sagrados se
transformaram no modo mais fácil de dar instruções, incentivar a devoção e
fortalecer os sentimentos religiosos na mente do povo. Os clérigos mais intelec­
tuais ou iluminados poderiam se esforçar para manter a distinção ente o respeito
pelas imagens como um meio e não como um objeto de adoração. Mas a devoção
indiscriminada da plebe ignora totalmente essas sutilezas. O defensor da fé pode
estabelecer distinções muito sutis entre as imagens como objetos de reverência e
como objetos de adoração, mas não há qualquer dúvida de que, para as mentes
ignorantes e supersticiosas, a reverência e a adoração de imagens, seja em pinturas
ou estátuas, invariavelmente degenera em idolatria.
357
358 I A
H
is t ó r ia
da
Ig
r e ja
-
capítulo 15
Antes do final do século VI, a idolatria estava firmemente estabelecida
na igreja oriental, e durante o século VII fez um progresso gradual e geral no
Ocidente, onde já havia ganhado algum terreno. Tornou-se uma prática comum
se prostrar diante de imagens, fazer preces a elas, beijá-las, enfeitá-las com metais
preciosos, colocar a mão sobre elas em juramento, e até mesmo empregá-las
como madrinhas e padrinhos de batismo.
As
T e n t a t iv a s d e L e ã o
d e A b o l i r a A d o r a ç ã o d e Im a g e n s
(por volta de 726 d.C.)
O imperador Leão III, também conhecido como Isáurico, um príncipe
de grande capacidade, face a tantas dificuldades, teve a ousadia de empreender
a purificação da igreja dos seus detestáveis ídolos. Como os escritos das partes
vencidas foram sendo cuidadosamente suprimidos ou destruídos, a história foi
silenciada quanto aos motivos do imperador. Mas estamos inclinados a acreditar
que um novo credo e o sucesso de Maomé tenham influenciado Leão fortemente.
Além disso, houve um sentimento generalizado entre os cristãos do Oriente de
que o aumento da idolatria na igreja trouxera sobre eles o castigo de Deus sob
a forma das invasões maometanas. Frequentemente os judeus e maometanos se
dirigiam aos cristãos com a odiosa alcunha de idólatras. Evidentemente, a grande
controvérsia surgiu dessas circunstâncias.
Leão subiu ao trono no Oriente em 717 d.C., e, depois de proteger o
império contra inimigos estrangeiros, começou a se preocupar com assuntos de
religião. Em vão pensou que poderia mudar e melhorar a religião de seus súditos
por sua própria autoridade imperial. Por volta do ano 726 d.C., ele publicou um
édito contra o uso supersticioso de imagens - e não contra a destruição delas.
Não podemos supor que o imperador agiu por temor do verdadeiro Deus, mas
sim que seus motivos eram puramente egoístas. Sendo ele o chefe do império e
mantendo-se ostensivamente como cabeça da igreja, sem dúvida achava que por
meio de seus éditos poderia realizar a abolição total e simultânea da idolatria
em todo o império, e estabelecer uma autocracia eclesiástica. Mas Leão havia
superestimado seu poder secular quanto aos assuntos espirituais. O tempo de
mudar a religião do império por decretos imperiais havia passado. Ele ainda
teria de aprender, para sua profunda humilhação, acerca do altivo, insolente,
orgulhoso e arrogante poder dos pontífices, e o apego religioso do povo às suas
imagens.
ISLAMISMO - I c o n o c l a s t i a
(569 d.C. - 741 d.C.) | 3 5 9
O primeiro decreto apenas proibia a adoração de imagens e ordenava que
fossem removidas para uma altura onde não pudessem ser tocadas ou beijadas.
Mas no momento em que a impiedosa mão do imperador tocou os ídolos, a
comoção foi imensa e universal. A interdição afetou todas as classes: letrados e
analfabetos, sacerdotes e pagãos, monges e soldados, clérigos e leigos, homens,
mulheres e até crianças foram envolvidas nessa nova agitação. O efeito do
decreto imediatamente ocasionou uma guerra civil tanto no Oriente quanto no
Ocidente. A influência monástica era especialmente forte. Eles apresentaram um
pretendente ao trono, armaram a multidão, e apareceram com uma frota mal
equipada diante de Constantinopla. Mas o fogo grego desbaratou os desordena­
dos assaltantes; os líderes foram presos e condenados à morte. Leão, provocado
pela resistência que seu decreto havia causado, emitiu o segundo decreto, ainda
mais rigoroso. Agora ele ordenava a destruição de todas as imagens e a caiação
das parecies nas quais tais coisas haviam sido pintadas.
O S e g u n d o D e c r e t o P u b l ic a d o
Relata-se que o segundo decreto era tão abrangente, que os oficiais do
império extrapolaram as ordens que receberam. As imagens mais sagradas e
as pinturas foram impiedosamente quebi-adas, despedaçadas ou publicamente
queimadas, sob os olhos dos fiéis enfurecidos. “Não levando em consideração o
perigo e a morte”, diz Greenword, “homens, mulheres e até crianças correram
para defender os objetos tão caros a eles como a própria vida. Eles atacaram e
mataram os oficiais imperiais envolvidos na ordem de destruição. Estes, apoiados
pelas tropas, revidaram com igual ferocidade. As ruas da cidade exibiram
cenas de ultraje e carnificina que só podem se originar de uma paixão religiosa
envenenada. A maioria dos líderes do tumulto foi sentenciada à morte no próprio
local; as prisões ficaram superlotadas; e multidões, após sofrerem vários castigos
corporais, foram transportadas para lugares de exílio.”110
O povo estava furioso; nem mesmo a presença do Imperador os intimidou.
Um oficial do império recebeu ordens para destruir a estátua do Salvador que
estava sobre o Portão de Bronze do palácio imperial, conhecida pelo nome de
Segurança. Essa imagem era famosa por seus milagres e grandemente venerada
pelo povo. Muitas mulheres reuniram-se em torno do lugar e imploraram ao
soldado que poupasse sua imagem favorita. Mas ele subiu a escada, e com seu
machado bateu no rosto da imagem, o qual tantas vezes haviam contemplado e
que, supunham, também olhava benignamente para eles. O céu não interferiu
110 Cathedra Petri, Greenwood; volume 3.
3 6 0 ) A H is t ó r i a
da
I g r e ja -
capítulo 15
como eles esperavam; então as mulheres agarraram a escada, derrubaram o
impiedoso oficial e o cortaram em pedaços. O imperador enviou uma guarda
armada para reprimir o tumulto; a multidão se juntou às mulheres e um
terrível massacre aconteceu. A “Segurança” foi derrubada, e em seu lugar
ficou uma inscrição em que o Imperador dava vazão à sua inimizade contra as
imagens.111
A execução das ordens imperiais encontrou resistência em todos os lugares,
tanto na capital quanto nas províncias. O entusiasmo popular foi tão grande que
só pôde ser reprimido por grandes esforços do poder civil e militar. As paixões
estavam inflamadas de ambos os lados; e a consequência natural foi a mais
ousada rebelião e a mais violenta perseguição.
O P apa R e je it a o s D e c r e t o s d e L e ã o III
A inteligência do primeiro ataque de Leão contra as imagens em
Constantinopla encheu os italianos de tristeza e indignação. Mas quando ordens
chegaram para colocar os decretos fatais em vigor nas dependências do império
italiano, todos pegaram em armas, desde o maior até o menor. O papa se recusou
a obedecer as ordens e desafiou o imperador; todo o povo jurou viver e morrer
para defender o papa e as santas imagens. Mas complicações políticas daquele
momento tornaram impossível para o imperador impor seus éditos nos domínios
do papa. Gregório respondeu ao imperador de maneira bastante arrogante; o
tom de sua resposta exalava um espírito do mais sedicioso desafio. Os monges,
vendo sua artimanha em perigo - a superstição pela qual obtiveram sua riqueza
e influência - pregaram contra o imperador como sendo um apóstata dissoluto.
Ele foi pintado por esses escravos da idolatria como um homem que combinava
em si mesmo todas as heresias que já haviam manchado a fé cristã e colocado em
perigo a alma dos homens. Mas para mostrar o verdadeiro espírito do papado,
tanto em defesa de sua querida superstição, da idolatria e da sua provocação
ao poder secular, iremos transcrever algumas partes das epístolas originais de
Gregório II e III, deixando que o leitor examine o quadro.
O Papa Gregório II disse ao imperador: “Durante dez puros e afortunados
anos, provamos o consolo anual de tuas cartas reais, escritas em tinta púrpura por
tuas próprias mãos, promessas sagradas de teu compromisso ao credo ortodoxo
de teus pais. Como é deplorável a mudança! Quão tremendo o escândalo! Agora
o imperador acusa os católicos de idolatria e, pela acusação, revela a própria
111 J. C. Robertson, volume 2; Milman, volume 2.
I s l a m is m o - I c o n o c l a s t ia
(569 d.C. - 741 d.C.) 1361
impiedade e ignorância. É por essa ignorância que somos obrigados a adaptar
a descortesia de nosso estilo e argumentos: os primeiros elementos das cartas
sagradas são suficientes para tua perplexidade. Se o imperador entrasse em uma
escola e se declarasse inimigo de nosso culto, as simples e piedosas crianças
jogariam os seus blocos de escrever em tua cabeça”.
Após essa desleal e ofensiva saudação, o papa tentou, de forma usual,
defender o culto às imagens. Esforçou-se para provar a Leão a grande diferença
entre as imagens cristãs e os ídolos da antiguidade. Estes últimos eram a repre­
sentação fantasiosa de demônios; enquanto que os primeiros eram a genuína
semelhança de Cristo, Sua mãe e Seus santos. E usa como justificativa para sua
adoração a decoração do templo dos judeus: o propiciatório, os querubins e os
diversos ornamentos feitos por Bezaleel para a glória de Deus. Afirmou ainda
que apenas os ídolos dos gentios eram proibidos pela lei judaica. E negou que os
católicos adorassem a madeira e a pedra: esses eram apenas memoriais destinados
a despertar sentimentos piedosos.
Falando sobre sua edificação pessoal ao contemplar imagens e pinturas
nas igrejas, temos uma passagem de grande interesse histórico que nos mostra
os temas comuns de tais pinturas. “O miraculoso retrato de Cristo enviado a
Abgaro, rei de Edessa; as pinturas dos milagres do Senhor; a virgem mãe com
o menino Jesus em seu peito, rodeados por coros de anjos; a última ceia; a
ressurreição de Lázaro; o milagre da cura do cego, do paralítico e do leproso; a
multiplicação dos pães para alimentar a multidão no deserto; a transfiguração;
a crucificação, o sepultamento, a ressurreição e a ascensão de Cristo; a descida
do Espírito Santo e o sacrifício de ísaque”.112
Gregório apresenta longamente argumentos gerais a favor das imagens,
e censura o imperador pela violação dos compromissos mais solenes, e então
irrompe em tom de desprezo: “Tu exiges um concílio: revogue teus éditos, pare
de destruir imagens; e um concílio não será necessário. Tu nos atacas, ó tirano,
com um grupo carnal e militar; desarmados e nus, só podemos implorar a
Cristo, o príncipe dos exércitos celestiais, que te envie o diabo para a destruição
do vosso corpo e para a salvação de vossa alma. Tu declaras com tola arrogância:
‘Enviarei ordens a Roma, farei em pedaços a imagem de São Pedro; e Gregório,
como seu antecessor Martinho, será transportado em correntes até os pés do
trono imperial, e depois exilado’. Quisera Deus que me fosse permitido trilhar
os passos do santo Martinho; mas que o destino de Constâncio sirva de alerta
para os perseguidores da igreja. No entanto, é nossa obrigação viver para a
edificação e apoio do povo fiel; e também não iremos arriscar nossa segurança
112 Cristianismo Latino, de Milman, volume 2.
362 I A H is t ó r ia
da
I g r e ja -
capítulo 15
em caso de combate. Como tu és incapaz de defender teus súditos romanos,
e a situação marítima da cidade talvez possa expô-la aos teus saques. Mas nós
temos apenas de nos retirar para a primeira fortaleza dos lombardos, e então você
poderá também perseguir o vento. Ignoras tu que os papas são o elo de união,
os mediadores da paz entre o Oriente e o Ocidente? Os olhos das nações estão
fixos em nossa humildade e, como um Deus sobre a terra, elas reverenciam o
apóstolo São Pedro, cuja imagem tu ameaças destruir”.
Evidentemente, a conclusão da carta do papa se refere aos seus novos
aliados além dos Alpes. Os francos tinham ouvido cuidadosamente as reco­
mendações papais de Bonifácio, o apóstolo da Germânia. Negociações secretas
já haviam começado para garantir o apoio deles. Já tivemos a oportunidade
de examinar a história e os resultados disso acima. Assim, o papa garantiu
ao seu correspondente real que “os reinos mais remotos do Ocidente rendem
homenagens a Cristo e ao Seu representante; e agora nos preparamos para
visitar um de seus mais poderosos monarcas, que deseja receber de nossas mãos
o sacramento do batismo. Os bárbaros se submeteram ao jugo do evangelho,
ao passo que somente tu és surdo à voz do Pastor. Esses piedosos bárbaros
estão enfurecidos, eles estão sedentos para vingar as perseguições no Oriente.
Abandona tua imprudente e fatal iniciativa. Reflita, trema e arrepende-te. Se
persistires, seremos inocentes do sangue que será derramado na disputa; que ele
caia sobre a tua cabeça”.113
U m E sp ír it o d e M e n t ir a
n a B o c a d o Pa p a d o
Após uma leitura cuidadosa dessas antigas epístolas, é impossível acreditar
que Gregório pudesse ser tão ignorante para declarar tantas coisas inegavelmente
falsas a Leão em favor do culto às imagens. Estamos mais inclinados a acreditar
que ele sabia que tudo isso era falso, mas contou com a ignorância do imperador.
Gregório continuou: “Tu disseste que estamos proibidos de venerar coisas
feitas por mãos de homens. Mas tu és um homem inculto, e, portanto, tem de
indagares aos nossos eruditos prelados o verdadeiro significado do mandamento.
Se não fosses tão obstinado e propositalmente ignorante, terias aprendido com
eles que teus atos estão em contradição direta com o testemunho unânime de
todos os pais e doutores da igreja, e em particular repugnante oposição aos seis
concílios gerais”. Tais afirmações são tão evidentemente falsas que não podemos
113 Cathedra Petri, Greenwood, volume 3.
ISLAMISMO- ICONOCLASTIA (569 d.C. - 741 d.C.) I 363
imaginar como alguém poderia ter tido o descaramento de escrevê-las como
sendo verdade, especialmente o mais alto clérigo da cristandade. Mas isso prova
que há um espírito de mentira na boca do papado desde o início, como acontecia
com os profetas de Baal (1 Reis 22:23). Greenwood disse: “Em nenhum dos
concílios gerais foi dito uma palavra sobre imagens ou adoração de imagens. A
afirmação sobre o testemunho unânime dos Pais é igualmente errada. Exceto nos
trabalhos de Gregório, o Grande, não encontrei menção alguma sobre a prática
de adoração de imagens nos Pais dos seis primeiros séculos da era cristã.”114
Mas o espírito da mentira continua a dizer que a aparência visível de Cristo
na carne causou tamanha impressão nas mentes dos discípulos que “tão logo
puseram os olhos nEle, apressaram-se em fazer imagens dEle para carregá-las
consigo e exibindo-as ao mundo todo; para que quando as vissem, os homens
pudessem se converter da adoração de Satanás ao serviço de Cristo.Porém,
eles somente deveriam adorá-las, não com absoluta adoração, mas apenas com
relativa veneração”. Da mesma maneira o papa garantiu a Leão que “imagens e
figuras foram feitas de Tiago, o irmão do Senhor, de Estevão e todos os outros
santos dignos de nota. Feito isso, ele os espalhou sobre todas as partes da terra,
para manifestar o aumento da causa do evangelho”.
Por causa de uma estranha perversão ou por uma confusão dos fatos das
Escrituras, o papa compara o imperador ao “impiedoso Uzias que, de maneira
sacrílega, removeu a serpente de bronze que Moisés havia feito e a fez em
pedaços”. Neste caso, podemos conceder ao papa o benefício da ignorância. É
provável que ele conhecesse menos da Bíblia do que os seis concílios gerais. Ele
parece ter confundido a história de Uzá, a quem o Senhor feriu por ter estendido
a mão para segurar a arca quando os bois tropeçaram, e o ato de Ezequias,
que despedaçou a serpente de bronze, para evitar expressamente que as pessoas
prestassem culto a ela (1 Crônicas 13:- 9 e 2 Reis 18:- 4). O papa disse Uzias,
mas pensava de fato em Ezequias: “Uzias era de fato teu irmão, obstinado e,
como tu, se atreveu a fazer violência aos sacerdotes de Deus”. Podemos perguntar
o que diriam as nossas crianças sobre o papa ter se equivocado e considerado o
bondoso rei Ezequias como um rei perverso, e a destruição da serpente de bronze
como um ato impiedoso? Que podíamos esperar: que elas jogassem seus blocos
de notas na cabeça de Gregório, assim como na de Leão? Mas o suficiente já
foi dito sobre esse assunto para mostrar ao leitor qual era o espírito e a natureza
do papado desde sua fundação. Sempre foi um sistema descarado, mentiroso,
idólatra, embora um incontável número de santos de Deus estivesse nele durante
seu período mais escuro. O salvador nome de Jesus sempre foi proclamado em
114 Greenwood, volume 3.
3 64 1 A H is t ó r i a
da
I g r e ja
- capítulo 15
meio às grosserias mais absurdas e à idolatria, e aquele que crê nesse Nome,
certamente será salvo. O dedo da fé que toca na orla de Suas vestes, mesmo
pressionado por uma multidão de idólatras, abre as fontes de todas as virtudes
curadoras, e toda fonte de doença é imediatamente extinta. E independente de
qualquer pressão ou multidão, Ele olhará em volta para ver quem O tocou pela
fé, e declarar paz à alma que estiver atribulada (Marcos 5:25-34).
C o n c l u sã o
da
I c o n o c l a s t ia
Gregório não sobreviveu muito tempo após escrever suas epístolas. No
ano seguinte ele foi sucedido por um terceiro papa de mesmo nome. Gregório
III também foi zeloso pela causa das imagens, e trabalhou para aumentar a
veneração popular por elas. Ele estabeleceu em Roma o exemplo de culto
às imagens da maneira mais esplêndida. Um solene concílio foi convocado,
conclamando todos os bispos, cerca de 93, dos territórios lombardos e bizantinos
ao norte da Itália. A assembléia foi realizada na presença das sagradas relíquias
do apóstolo Pedro; e foi assistida por todo o clero da cidade, pelos cônsules e
uma grande multidão. Um decreto foi concebido, adotado por unanimidade
e assinado por todos os presentes, cujo resultado foi: “Se, daqui por diante,
qualquer pessoa, desprezando os costumes antigos e fiéis de todos os cristãos, e
da igreja apostólica em particular, colocando-se como destruidor, difamador, ou
blasfemador das imagens sagradas de nosso Deus e Senhor Jesus Cristo, e de Sua
mãe, a sempre imaculada Virgem Maria, dos abençoados apóstolos, e todos os
outros santos, será excluído do corpo e do sangue do Senhor, e da comunhão
da universal igreja”.115
Leão, indignado com a audácia do papa, prendeu os mensageiros de
Gregório, e resolveu equipar uma numerosa esquadra e exército para colocar a
Itália sob sujeição. Mas essa armada grega enfrentou uma terrível tempestade
no mar Adriático. A frota foi desarticulada, e Leão se viu obrigado a adiar
seus projetos de impor a execução de seus éditos contra as imagens nas regiões
italianas do império. No entanto, ele se indenizou ao confiscar as receitas papais
na Sicília, Calábria e outras partes de seus domínios, e transferindo a Grécia e
Ilírico do patriarcado de Roma para o de Constantinopla. Mas aqui, para ambos,
a cena se encerra, mas não a disputa. Gregório e Leão morrem em 741 d.C..
O imperador foi sucedido por seu filho Constantino, cujo reinado se estendeu
por um período incomum de 34 anos. Gregório foi sucedido por Zacarias, um
homem de grande habilidade e profundamente imbuído do espírito do papado.
115 Catbedra Petri, volume 3.
I s la m is m o - I c o n o c l a s t i a (569 d.C . - 741 d .C .)
Até o fim de seu reinado, Constantino foi inflexível em sua inimizade contra os
adoradores de imagens. Ele foi acusado de grandes crueldades contra os monges,
mas sem dúvida foi provocado até o último grau pelo comportamento fanático
e violento deles.
Irene, esposa do filho e herdeiro de Constantino, uma princesa ambiciosa,
intrigante e altiva, se apossou do governo quando seu pusilânime marido morreu,
em nome do filho deles, de apenas dez anos. Por algum tempo, dissimulou seus
projetos para a restauração das imagens. A política e a idolatria eram os conse­
lheiros de seu coração. Ela era ciumenta, astuta e cruel. Sua história registra ódio
e traição internos disfarçados sob uma aparência externa de cortesia. No entanto,
apenas a parte religiosa de seu reinado é de nosso interesse.
* * *
O S e g u n d o C o n c íl io
de
N ic é ia
Foram emitidos decretos para um concílio que se realizaria em Nicéia uma cidade reverenciada por sediar o primeiro grande concílio da cristandade
- para decidir a questão da adoração de imagens. O número de eclesiásticos
presentes foi cerca de 350. Os homens escolhidos por Irene tomaram a liderança,
e tudo transcorreu como havia sido previamente arranjado. Entre os atos preli­
minares do concílio, foi debatido sobre em que categoria de heréticos os icono­
clastas seriam encaixados. Tarásio, presidente da assembléia, afirmou ser esta a
pior das piores heresias, constituindo-se uma absoluta negação de Cristo. Todos
os procedimentos do concílio se caracterizaram pelo mesmo tom condenatório
em relação aos adversários da adoração de imagens. Depois de concordarem com
os decretos dos seis primeiros concílios, e com os anátemas contra os hereges
denunciados neste, sancionaram - sob a orientação do Espírito Santo, conforme
declararam —o seguinte cânone:
“Com a venerável e vivificante cruz serão estabelecidas nas igrejas
consagradas a Deus, as imagens veneráveis e santas, seja em pinturas, em mosaico
ou qualquer outro material, nos utensílios e paramentos sagrados, nas paredes e
tábuas, nas casas e estradas. As imagens, isto é, de nosso Deus e Salvador Jesus
Cristo, da imaculada mãe de Deus, dos honrados anjos, e de todos os santos
homens devem ser tratadas como memoriais santos, adoradas e beijadas, mas sem
a adoração peculiar que é reservada ao Invisível e Incompreensível Deus. Todos
os que violarem a imemorial tradição da igreja, como está declarado, e se tentar,
por força ou por artifícios, remover qualquer imagem, se forem eclesiásticos,
serão depostos e excomungados; se monges ou leigos, serão excomungados.”
365
366
1
I A H istó ria
da
I g r e j a - capítulo 15
Mas o concílio não se contentou com esta solene e formal assinatura.
Em uníssono, irromperam em uma longa aclamação: “Todos cremos, todos
declaramos e todos assinamos. Esta é a fé dos apóstolos, esta é a fé da igreja, esta
é a fé ortodoxa, esta é a fé de todo o mundo. Nós, que adoramos a Trindade,
cultuamos as imagens. A quem isso não agradar, que seja anátema! Anátema
sobre todos que chamam as imagens de ídolos! Anátema sobre todo aquele que se
comunica com quem não adora imagens... Glória eterna aos romanos ortodoxos,
a João de Damasco! A Gregório de Roma, glória eterna! Glória eterna a todos
os pregadores da verdade!”
H elen a
e
Irene
Assim terminou a questão mais crítica que já havia sido levantada desde
que o cristianismo se tornou a religião do mundo romano. Pelo sétimo concílio
geral a idolatria foi formal e veementemente estabelecida como a adoração
do grande sistema papal, e foram proclamados anátemas sobre todos os que
ousassem se rebelar contra isso. A Consequencia foi a perseguição implacável
contra os chamados separatistas. Mas é digno de nota, de acordo com nossa
visão do caráter de Jezabel, que foi uma mulher a proponente da adoração
de imagens, e foi uma mulher a restauradora do culto às imagens quando
estas foram lançadas fora. Helena, mãe de Constantino, o Grande, foi uma
irrepreensível e devotada mulher, mas foi usada pelo inimigo para introduzir
notáveis relíquias e memoriais sagrados que transformaram o cristianismo de
uma adoração puramente espiritual para uma forma de religião paganizada que
cresceu rapidamente nos séculos seguintes. A ardilosa Irene foi usada por Satanás
para restaurar e restabelecer a adoração de imagens. Desde então, as igrejas grega
e latina aderiram a essa forma de culto e mantêm a santidade de suas imagens
e pinturas.
Os resultados políticos da controvérsia iconoclasta foram igualmente
abrangentes e importantes. Roma rompeu os laços com o Oriente, separando-se
para sempre do império bizantino. O cristianismo grego, desde então, tornou-se
uma religião separada, e o império, um Estado separado. Por meio desta
revolução o Ocidente recebeu um grande acréscimo de poder, e por fim criou o
seu próprio império, formando alianças com os reis francos, e colocou a coroa
do império ocidental na cabeça de Carlos Magno, como já vimos.
6
A L in h a P ra tea d a
da G raça So berana
Iff ]
A
monarquia do papado está estabelecida. A corte da França e o papado
estão unidos. Roma está separada do Oriente e torna-se o centro de
^ influência de todo o Ocidente. E tendo já traçado a linha obscura
da apostasia do ciistianismo latino desde o início do quarto século até o início
do nono século, iremos mudar um pouco nosso foco e nos esforçar para traçar
a linha p7-ateada da graça soberana de Deus sobre aqueles que foram separados
da comunhão de Roma durante o mesmo período. Se Satanás estava ativo em
corromper a cristandade, Deus estava ativo em retirar os Seus da massa corrupta,
e fortalecê-los como Suas testemunhas especiais. Desde os dias de Agostinho,
a nobre testemunha da graça divina contra o pelagianismo no cristianismo
ocidental, até a Reforma, podemos rastrear uma linha de fiéis que testemunha­
ram contra a idolatria e a tirania de Roma, e pregaram a salvação pela fé em Jesus
Cristo, sem o mérito das obras.116 Além das multidões que eram alimentadas
com a verdade simples do evangelho, de forma privada nos conventos e nas
famílias, vamos destacar alguns dos mais proeminentes nomes que formam
importantes elos na grande cadeia de testemunhas, em especial relacionados à
história da igreja na Europa.
116 Veja Hora Apocalyptica, de E.B. Elliott, volume 2.
I
368 I A
H i s t ó r i a d a I g r e j a - capítulo 16
O s N e s t o r i a n o s e o s P a u lic ia n o s
Já mencionamos o surgimento dos nestorianos no século V e seu grande
zelo missionário. O líder deles era um bispo conhecido pelo título de Patriarca da
Babilônia. Residia originalmente na Selêucia. Diz-se que, a partir da Pérsia, levou
o evangelho até o norte, leste e sul. No sexto século, eles pregaram o evangelho
com grande sucesso entre os hunos, indianos, medos e os elamitas. Nas costas
do Malabar117 e nas ilhas do oceano um grande número de pessoas se converteu.
Seguindo a rota do comércio, os missionários continuaram seu caminho da índia
à China, e penetraram em seus rincões até a fronteira norte. Em 1625 d.C., os
jesuítas descobriram uma pedra perto de Singapura na qual havia uma longa
inscrição, escrita parte em siríaco, parte em chinês, que registrava o nome dos
missionários que trabalharam na China e a história do cristianismo no país nos
anos 636 a 781 d.C.. Mas, cogita-se que a propagação do cristianismo despertou
o ciúme do Estado e, depois de testemunhar com sucesso sobre o evangelho
e enfrentar perseguição, provavelmente foram exterminados, ou fugiram, no
final do oitavo século. Os nestorianos eram patrocinados pelos reis persas, e
sob o reinado dos califas foram protegidos e prosperaram muito. Assumiram a
designação de cristãos caldeus ou assírios e ainda existem sob este nome.118
As doutrinas, o caráter e a história dos paulicianos têm sido assunto
de grande controvérsia. Mas nao lhes foi permitido falar por si mesmos para
a posteridade. Seus escritos foram cuidadosamente destruídos pelos católicos
e são conhecidos apenas através dos relatos de seus amargos inimigos que os
marcaram como hereges, como os antecessores dos reformadores protestantes.
Por outro lado, alguns escritores protestantes aceitam a ascendência e afirmam
que eles foram os mantenedores do cristianismo puramente escriturístico, o que
pode ter parecido heresia ao papado. Esta última circunstância, como já temos
mostrado, pode ser facilmente comprovada. As mais graves deturpações, tanto
na doutrina quanto na adoração da igreja da católica, não apenas foram aceitas,
mas inculcadas muito antes do surgimento dos paulicianos. Nem o espírito
e nem a simplicidade do evangelho permaneceram; portanto, o cristianismo
bíblico deve ter parecido como heresia aos adoradores de imagens.
Passando por cima de muitos nomes desde o tempo de Santo Agostinho,
os quais foram fiéis testemunhas da verdade, iremos investigar a origem do
paulicianismo.
117 N. do T .: litoral sudoeste da índia.
118 Veja Crenças do Mundo. Volume 2; J.C . Robertson, volume 2.
E uropa
‘
k
"k
(653 d.C. - 855 d.C.)
i?
A O rigem d o P a u lic ia n is m o
(ano 653 d.C.)
Os gnósticos, numerosos e poderosos durante os primeiros dias do cris­
tianismo, eram agora um remanescente obscuro, confinado principalmente às
aldeias ao longo do Eufrates. Eles tinham sido expulsos das capitais do Oriente e
do Ocidente pelos todo-poderosos católicos, e os que restaram de suas diferentes
seitas passaram a ser conhecidos pelo geral e odioso título de maniqueístas.
Nessa região, na aldeia de Mananalis, perto de Samósata, por volta do
ano 653 d.C., viveu Constantino, descrito pelos escritores romanos como um
descendente de uma família maniqueísta. Logo após a conquista da Síria pelos
sarracenos, um diácono armênio, que voltava do cativeiro entre os sarracenos,
se tornou hóspede de Constantino. Em reconhecimento à sua hospitalidade, o
diácono presenteou-o com um manuscrito contendo os quatro evangelhos e as
quatorze epístolas de Paulo. Esse era de fato um raro presente, já que as escrituras
haviam sido ocultadas dos leigos. O estudo desses livros sagrados iniciou uma
completa revolução em seus princípios religiosos, e em todo curso de sua vida.
Alguns dizem que ele fora treinado no gnosticismo, outros que ele foi um
membro da igreja grega estabelecida; mas, embora isso possa ter acontecido, esses
livros se tomaram seus únicos objetos de estudo e regra de fé e prática.
Constantino agora pensava em formar uma nova seita, ou melhor, em
restaurar o cristianismo apostólico. Seus inimigos dizem que ele renunciou e
jogou fora seus livros maniqueístas; renunciando àquela doutrina, e instituiu
uma lei para seus seguidores não lerem quaisquer outros livros, a não ser os
evangelhos e as epístolas do Novo Testamento. Isso pode ter dado um pretexto
aos inimigos para acusá-los de rejeitar o Antigo Testamento e as duas epístolas de
Pedro. Mas é provável que eles não possuíssem tais porções da Palavra de Deus.
No entanto, receamos que o apego peculiar e a devoção aos escritos e caráter de
Paulo os tenham feito negligenciar outros textos sagrados.
E de consenso geral que a palavra paulicianismo é originária do nome do
grande apóstolo dos gentios. Seus companheiros de trabalho, Silvano, Timóteo,
Tito e Tíquico eram representados por Constantino e seus discípulos. Suas con­
gregações, conforme iam surgindo em lugares diferentes, iam sendo chamadas
pelos nomes das igrejas apostólicas. E difícil perceber como nessa denominada
“inocente alegoria”, os católicos poderiam se sentir tão gravemente ofendidos
pelos paulicianos, ou como teriam encontrado uma razão para caçá-los com fogo
369
370 I A H
is t ó r ia d a
I g r e ja -
capítulo 16
e espada. Ainda assim o fizeram, como veremos em breve. O pecado imperdoável
deles foi se separarem da igreja estatal; testemunhar contra a superstição e a
apostasia; e reavivar a memória de um cristianismo puro e primitivo.
SlLVANO EM ClBOSSA
Constantino, que se denominou Silvano, dirigiu seus primeiros apelos aos
habitantes de um lugar chamado Cibossa na Armênia, aos quais ele caracterizou
como macedônios. “Eu sou Silvano”, afirmou Constantino, “vocês são macedônios\
Ali fixou residência e trabalhou com incansável energia por aproximadamente
trinta anos, convertendo a muitos, tanto da igreja católica quanto do zoroastrismo. Por fim, a seita tornou-se suficientemente importante para atrair a atenção,
e o assunto foi relatado ao imperador, e um decreto foi emitido em 684 d.C.,
contra Constantino e as congregações paulicianas. A execução do decreto foi
confiada a um oficial da corte imperial de nome Simeão. Ele tinha ordens para
matar o líder e distribuir seus seguidores entre o clero e em monastérios com o
objetivo de serem regenerados. Sem dúvida o governo agiu conforme a direção
da igreja; como no caso de Acabe: “porque Jezabel sua mulher o instigava”
(1 Reis 21:25). Mas o Senhor está acima de tudo e pode transformar a ira do
homem em um instrumento de Seu louvor.
Simeão colocou Constantino —o principal alvo da vingança dos sacerdotes
- diante de um grande número de seus seguidores, e ordenou que o apedrejas­
sem. Eles se recusaram e, ao invés de obedecer, todos, exceto um jovem, jogaram
as pedras com as quais estavam armados no chão. E assim Constantino foi
morto pela pedra atirada por um jovem insensível: seu próprio filho adotivo
Justus. Este apóstata ingrato foi exaltado pelos inimigos dos paulicianos como
outro Davi que, com uma pedra matou Golias, o gigante da heresia. Mas a partir
do apedrejamento de Constantino, bem como a partir do apedrejamento de
Estevão, um novo líder foi levantado na pessoa de seu assassino imperial. Simeão
ficou tão impressionado com o que viu e ouviu que não conseguia mais se livrar
de tais coisas. Ele começou a conversar com alguns sectários e o resultado foi
sua conversão. Ele retornou à corte imperial, mas depois de ficar três anos em
Constantinopla com o espírito bastante inquieto, fugiu deixando todos os seus
bens para trás. Fixou residência em Cibossa, onde, sob o nome de Tito, tornou-se
o sucessor de Constantino Silvano.
Cerca de cinco anos depois do martírio de Constantino, o mesmo
renegado Justus traiu os paulicianos. Como traidor experiente, ele conhecia os
hábitos e movimentos da comunidade, e também onde seria recompensado por
E uropa
(653 d.C. - 855 d.C.) | 371
sua deslealdade. Ele foi até o bispo de Colônia e relatou a renovação e a expansão
da chamada heresia. O bispo comunicou tal notícia ao imperador Justiniano II e,
em consequencia, Simeão e um grande número de seguidores foram condenados
à morte na fogueira em uma grande pira funerária. O cruel Justiniano em
vão pensou ter extinguido o nome e a memória dos paulicianos em um único
incêndio, mas o sangue dos mártires parecia multiplicar e fortalecer o número
de seguidores. Uma sucessão de mestres e congregações surgiram de suas cinzas.
A nova seita se alastrou por todas as regiões adjacentes, Ásia Menor, Ponto, nas
fronteiras da Armênia, e no lado ocidental do Eufrates. Com paciência cristã
suportaram durante vários reinados sucessivos, a ira intolerante dos governantes,
instigados pelos sacerdotes. Mas o prêmio da crueldade, como se observa, sem
dúvida deve ser atribuído à devoção sanguinária de Teodora, que restaurou as
imagens na igreja oriental.
O u t r a J eza bel
no
Po d e r
(ano 842 d.C.)
Após a morte do imperador Teófilo, sua viúva, Teodora, governou como
regente até seu filho ter idade suficiente para assumir. Seu dissimulado apego à
idolatria era bem conhecido pelo clero, e tão logo Teófilo morreu, ela se dedicou
ao total cumprimento de seu grande objetivo. Quando o caminho estava livre,
um festival solene foi realizado para a restauração das imagens. “Todo o clero de
Constantinopla e todos os que puderam vir dos arredores reuniram-se dentro e
em frente do palácio do arcebispo e marcharam em procissão com cruzes, tochas
e incenso rumo à igreja de Santa Sofia. Lá encontraram-se com a imperatriz e
seu infante filho Michael. Com suas tochas acesas, fizeram o circuito da igreja,
prestando homenagem a cada imagem e pintura que foram cuidadosamente
restauradas para não serem mais apagadas até tempos depois pelos mais terríveis
iconoclastas: os turcos otomanos.”119
Depois do restabelecimento triunfante das imagens, o partido vitorioso
não teve dúvidas que era chegado o tempo correto para propor e garantir outro
triunfo: agora instaram com a imperatriz para que ela se dedicasse à total
supressão dos paulicianos. Eles haviam pregado contra as imagens, relíquias e a
madeira podre da cruz. Os paulicianos não eram dignos de viver! Os católicos
alcançaram seu objetivo! Sob a regência de Teodora, um édito foi publicado no
qual se determinava que os paulicianos deveriam ser exterminados pelo fogo
119 Cristianismo Latino, volume 2.
372 I A
H is t ó r i a
da
I g r e ja -
capítulo 16
e espada, ou reintegrados à igreja grega. Porém, rejeitaram todas as tentativas
feitas para ganhá-los, e o demônio ardente da perseguição foi solto entre eles. Os
inquisidores da imperatriz exploraram as cidades e montanhas da Ásia Menor
e executaram seu trabalho da forma mais cruel possível. Os números da seita e
a severidade da perseguição podem ser avaliados pela multidão assassinada pela
espada, por decapitação, afogamento ou consumida pelo fogo. Historiadores,
tanto civis quanto eclesiásticos relatam que no curto reinado de Teodora cerca
de cem mil paulicianos foram condenados à morte. Será que esta não era uma
filha genuína de Jezabel? Ela nem sequer tinha um Acabe para incitá-lo a fazer
o trabalho cruel, mas o fez com suas próprias mãos - infelizmente, mãos de
uma mulher —pois por seu próprio decreto, Teodora matou cem mil dos santos
de Deus120, restabeleceu a adoração de ídolos, e alimentou com o favor real os
idólatras sacerdotes de Roma.
A história da iconoclastia foi marcada pela influência feminina. Helena foi
a primeira a sugerir e encorajar a veneração de relíquias; Irene foi a restauradora
da adoração de imagens quando estas foram ameaçadas de destruição; e agora
Teodora não apenas restabelece a idolatria que seu marido havia tentado suprimir,
mas também persegue os verdadeiros adoradores. Sem dúvida, Jezabel - símbolo
da igreja dominante na Idade das Trevas - tem seu arquétipo nestas três mulheres,
especialmente nas duas últimas. A semelhança é muito impressionante para ser
questionada. Mas todo o sistema do catolicismo exala o terrível espírito de Jezabel,
e é marcado pelos tenebrosos aspectos do caráter dela. A palavra de Deus não
pode ser quebrada. “Porém ninguém fora como Acabe, que se vendera para fazer
o que era mau aos olhos do SENHOR; porque Jezabel, sua mulher, o incitava.” Este
é o tipo. O arquétipo é: “Mas tenho contra ti que toleras Jezabel, mulher que se
diz profetisa, ensinar e enganar os meus servos, para que se prostituam e comam
dos sacrifícios da idolatria. E dei-lhe tempo para que se arrependesse da sua pros­
tituição; e não se arrependeu” (1 Reis 21:25; Apocalipse 2:20-21).
A A d m ir a ç ã o d e R o m a
pela C o n d u t a d e T e o d o r a
Nicolau I, que se tornou papa de Roma em 858 d.C., elogiou muitíssimo,
através de cartas, o comportamento da supersticiosa e cruel Teodora. Em especial,
ele admirava e aprovava a obediência implícita da imperatriz à Sé romana. “Ela
120 Não pretendemos afirmar que todos os que foram mortos por Teodora como paulicianos
eram verdadeiros cristãos. Não podemos julgar o coração, mas eles professavam ser, e de bom
grado morreram como mártires.
E uropa
(653 d.C. - 855 d.C.)
resolveu”, disse ele, “trazer os paulicianos à fé verdadeira ou cortar os ramos e
as raízes deles. De acordo com tal resolução, enviou nobres e magistrados para
diferentes províncias do império; e por meio deles, alguns daqueles infelizes
desgraçados foram crucificados, outros mortos à espada, e alguns jogados ao mar
e afogados.” Ao mesmo tempo, Nicolau observa que os heréticos, experimentan­
do nela a resolução e vigor característicos de um homem, mal podiam acreditar
que ela fosse uma mulher. De fato, o poder ofuscante de uma superstição idólatra
havia realizado algo em Teodora: transformou um coração terno e compassivo,
próprio de uma mulher, em um coração impiedoso e sanguinário, próprio de
um tirano. Nas palavras do próprio papa, ficou perfeitamente evidente que a
Sé romana tinha envolvimento direto com a matança dos paulicianos. Depois
de dizer a ela que os hereges a temiam, e ao mesmo tempo admiravam sua
determinação e firmeza em manter a pureza da fé católica, o papa acrescenta:
“E qual a razão disso, a não ser porque vossa majestade seguiu as instruções da Sé
apostólica?”121
É difícil acreditar que o professo vigário de Cristo e pastor de suas
ovelhas possa sequer ter escrito tais palavras. Mas assim lhe foi permitido, e elas
chegaram até nós como testemunhas fiéis da tirania anticristã estabelecida por
Roma no século IX d.C..
Os
Pa u l ic ia n o s se R ebelam
C ontra o G o v e rn o
Assim como alguns dos albigenses, hussitas da Boêmia e calvinistas da
França, os paulicianos da Armênia e das províncias adjacentes estavam determi­
nados a manter a resistência aos seus perseguidores. Esse foi seu triste erro e o
triste fruto de ouvir as sugestões de Satanás. Por quase duzentos anos eles tinham
sofrido como cristãos, adornando o evangelho com uma vida de fé e paciência.
Na medida em que temos condições de fazermos um juízo, os paulicianos
parecem ter mantido a verdade através de um longo período de sofrimento,
com um nobre e passivo espírito de conformidade a Cristo. Mas, por fim, a
fé e a paciência acabaram, e eles se rebelaram abertamente contra o governo.
Aconteceu da seguinte maneira:
Carbeas, um oficial de alto escalão no serviço imperial, ao ouvir que seu
pai havia sido empalado pelos inquisidores católicos, renunciou sua lealdade ao
império, e com mais cinco mil companheiros, se refugiou entre os sarracenos.
121 M iln er, v o lu m e 2.
373
374 | A H
is t ó r ia d a
I g r e ja - capítulo 16
De bom grado, o califa recebeu os desertores e permitiu com que eles se estabe­
lecessem em seu território. Carbeas construiu e fortificou a cidade de Tephrice,
que se tornou o quartel general dos paulicianos. Naturalmente eles afluíam para
o novo lar, buscando refúgio contra as leis imperiais. Não demorou para que se
tornassem uma comunidade poderosa. Sob o comando de Caberias, a guerra
contra o império foi declarada e mantida com alguns êxitos por mais de trinta
anos; mas como os detalhes seriam mais deprimentes do que interessantes,
vamos deixá-los para trás.
O s P a u lic ia n o s n a E u r o p a
Por volta da metade do século VIII d.C., Constantino, também
conhecido como Coprônimo, seja como um favor ou como um castigo,
transferiu um grande número de paulicianos para um posto avançado do
império na Trácia, onde agiram como uma missão religiosa. Por meio dessa
imigração, as doutrinas deles foram introduzidas e difundidas na Europa.
Aparentemente eles trabalharam com grande sucesso entre os búlgaros. Foi
para proteger a incipiente igreja da Bulgária que Pedro da Sicília, por volta de
870 d.C., escreveu um tratado ao arcebispo dos búlgaros, alertando-o contra a
influência dos paulicianos. Esse documento é a principal fonte de informação
sobre a seita. No décimo século, o imperador João Tzimisces conduziu outra
grande migração para os vales do monte Haemus. Sua história depois desse
período é européia. Foram favorecidos com uma ampla tolerância na terra
de seu exílio, o que amenizou bastante a condição deles, e fortaleceu sua
comunidade. A partir dessas colônias búlgaras, o caminho foi aberto para a
Europa ocidental. Muitos nativos búlgaros se associaram a eles; e, como con­
sequência, o apelativo “búlgaros” passou a ser vinculado de forma pejorativa
aos paulicianos em todas as partes.
Quanto à história religiosa subsequente desse interessante povo, os histo­
riadores estão bastante divididos. Nada se sabe deles a não ser o que foi escrito
por seus inimigos; portanto, por justiça, somos obrigados a duvidar de suas
declarações. No entanto, uma coisa é certa: eles protestaram contra os santos
e o culto às imagens dos católicos, e a legitimidade do sacerdócio pelo qual
a idolatria era mantida. Eles também protestaram contra muitas coisas nas
doutrinas, na disciplina e na pretensa autoridade da igreja de Roma. Os escritores
católicos geralmente se referiam a eles como maniqueístas, os mais odiados de
todos os hereges. Porém, há alguns escritores protestantes que examinaram com
grande cuidado tudo o que podia lançar luz sobre sua história, e chegaram à
E uropa
(653 d.C. - 855 d.C.)
| 375
conclusão de que eram inocentes das heresias a eles imputadas, afirmando que
eram verdadeiras e fiéis testemunhas de Cristo e de Sua verdade durante o
período mais obscuro da Idade Média.122
Agora voltemos à nossa história geral.
*
*
*
À s G u e r r a s R elig io sa s
de C a r l o s M agn o
(de 771 a 814 d.C.)
A História eclesiástica, assim chamada desde o tempo de Pepino, é tão
entrelaçada com a história dos reis francos e com as intrigas vergonhosas dos
papas, que embora sucintamente, temos de traçar o curso dos acontecimentos
que possuem uma relação importante com o caráter do papado e com a história
da igreja.
O aumento do poder de Carlos Magno, o jovem filho de Pepino, foi
assistido pelos ocupantes da cadeira de São Pedro com o maior interesse possível
e habilmente utilizado por eles para a realização de seus projetos ambiciosos.
Os papas Adriano I e Leão III, homens talentosos, ocuparam o trono papal
durante o longo reinado de Carlos Magno; e ambos conseguiram engrandecer
extraordinariamente a Sé romana, por meio do que o imperador chamou de
suas guerras religiosas.
Uma disputa entre Desidério, rei dos lombardos, e o papa Adriano
culminou em uma guerra com a França, que acabou na completa subversão do
reino lombardo na Itália. Isso foi o resultado da grande conspiração do papado,
trazido à luz pela política sem princípios e traiçoeira do pontífice. Carlos era
genro de Desidério, mas depois de um ano de casamento, ele se divorciou de
Hermengarda, a filha do lombardo, e imediatamente se casou com Hildegarda,
uma mulher da nobre casa da Suábia. O insultado pai, ao receber de volta sua
filha repudiada, naturalmente procurou a reparação com o papa, cabeça da
igreja de quem Carlos era filho tão obediente. Mas, embora a igreja afirmasse
com toda a veemência a santidade da união matrimonial, nesse caso, por ser
adequada aos seus propósitos, tal aberta violação foi ignorada, e o papa se
recusou a interferir.
122 Para uma cuidadosa e mais detalhada averiguação, veja Hora Apocalyptica., volume 2.
376
IA
H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 16
Roma estava reconhecendo os bons serviços do grande Carlos e não poderia
correr o risco de desagradá-lo. Nenhuma palavra foi dita contra a conduta do
dissoluto monarca. Por fim, Desidério se ressentiu contra o terrível insulto de
Carlos e com a conivência do perverso Adriano. Ele levou suas tropas para a
Itália papal, sitiou, invadiu e espalhou devastação por toda parte, e ameaçou o
papa em sua capital.
A d r ia n o E n v ia
C a rlo s M a g n o
O papa enviou mensagens com a maior urgência suplicando a ajuda
imediata de Carlos. Ao mesmo tempo, diligentemente supervisionou em pessoa
os preparativos militares para a defesa da cidade e da segurança de seus tesouros.
De acordo com uma antiga estratégia de Roma, Adriano enviou três bispos
para intimidar o rei e ameaçá-lo com a excomunhão caso se atrevesse a violar a
propriedade da igreja. Assim, o papa ganhou tempo, e Carlos, com sua rapidez
habitual, reuniu suas forças, cruzou os Alpes e cercou Pávia. Durante o cerco
que durou vários meses, Carlos fez uma visita ao papa com grande pompa, e
foi recebido com todas as honras. Ele foi saudado pelos nobres, senadores e
cidadãos como patrício de Roma e filho obediente da igreja, por obedecer tão
prontamente às ordens de seu pai espiritual, e ter vindo livrá-los dos odiados
e temidos lombardos. Quando a visita sacra acabou, Carlos e seus oficiais
retornaram para o exército.
Pávia finalmente caiu. Desidério, sucessor do grande e sábio Luitprando foi
destronado e se abrigou em um mosteiro —refúgio habitual dos reis destronados.
Adalgiso, seu valente filho, fugiu para Constantinopla. Assim teve fim o reinado
dos lombardos, inimigos mortais dos italianos, e o grande obstáculo para a agres­
sividade papal. O caminho agora estava livre para o conquistador dar ao papa
um reino, não apenas no papel, como fizera seu pai Pepino, mas em cidades,
províncias e receitas financeiras. E assim o fez, ratificando o generoso presente
de seu pai. Como senhor por conquista, Carlos Magno ofertou aos sucessores
de São Pedro, como uma absoluta e perpétua concessão, o reino da Lombardia,
que, segundo dizem alguns, correspondia a toda Itália. Ao mesmo tempo, Carlos
reivindicou o título real e exerceu uma espécie de soberania sobre toda a Itália, e
até mesmo sobre a própria Roma. Mas o papa, estando agora seguro da possessão
do território, bem poderia se dar ao luxo de permitir que todas as honras reais
fossem dadas ao seu grande benfeitor.
E u r o p a (653 d.C . - 855 d .C .)
A S o b e r a n ia d o s P o n tífic e s R o m a n o s
(ano 775 d.C.)
Agora o papa era um príncipe secular. Finalmente chegou o grande dia tão
esperado e desejado; o sonho de séculos se realizara. Os sucessores de São Pedro
são proclamados soberanos pontífices e senhores das cidades e dos territórios
de Roma. O último elo da sombria vassalagem e subserviência ao império grego
está quebrado para sempre; e Roma, novamente, se tornou a reconhecida capital
do Ocidente.
O grande papa Adriano assume de vez os privilégios do poder e a
linguagem de um soberano secular, a quem é devida fidelidade. Os murmúrios
em Ravena e no Oriente foram rapidamente silenciados, e Roma reinou
suprema. A linguagem do papa, mesmo para com Carlos Magno, era a de iguais:
“Assim como os seus homens não estão autorizados a chegar a Roma sem o seu
consentimento e uma carta especial, também os meus homens não devem ser
autorizados a aparecer na corte da França sem as mesmas credenciais dadas por
mim”. Ele exigiu a mesma obediência dos italianos que os súditos de Carlos
Magno deviam ao rei. “A administração da justiça era em nome do papa; não
apenas os encargos eclesiásticos, e os aluguéis das propriedades formavam parte
do patrimônio de São Pedro, também a receita civil entrava em seu tesouro...
Adriano, com tal poder assume a magnificência de um grande potentado...
Roma, com o aumento das receitas do papado, começou a retomar seu mais
antigo esplendor.”
A G
rande
É poca
nos
A
n a is d o
Pa p a d o
Como o império de Carlos Magno está ligado de uma forma bastante
peculiar à história da igreja, e constitui uma grande época nos anais da Sé
romana, exige uma consideração mais completa. O catolicismo romano
estava tão em dívida para com este grande príncipe como o maometanismo
estava para com o grande profeta árabe e seus sucessores. “As guerras saxãs
de Carlos Magno”, diz Milman, “que acrescentaram quase toda a Germânia
aos seus domínios, foram reconhecidamente guerras religiosas. Se Bonifácio
era o cristão, Carlos Magno foi o maometano, o apóstolo do evangelho.
O objetivo declarado de suas invasões foi a extinção do paganismo, com a
consequente sujeição à fé cristã ou a exterminação. O batismo era o sinal de
sujeição e fidelidade, os saxÕes o aceitaram ou rejeitaram, de acordo com seu
estado de submissão ou de revolta. Essas guerras eram inevitáveis, por serem
a continuação da grande luta travada por séculos entre os bárbaros do norte
377
378 I A
H
is t o r ia d a
I g r e ja - capítulo 16
e Oriente contra o civilizado sul e Ocidente. Só que a população romana e
cristã, agora revigorada pela grande infusão de sangue teutônico, em vez de
esperar a agressão, tornou-se o agressor. A maré de conquista se invertia. Os
súditos dos reinos ocidentais, e do império ocidental, ao invés de esperar suas
casas serem destruídas por hordas de invasores ferozes, agora corajosamente
marchavam até o coração do país de seus inimigos; penetravam as florestas
deles, cruzavam seus pântanos, e plantavam suas cortes feudais de justiça, suas
igrejas e seus mosteiros, nas regiões mais remotas e selvagens, desde o Elba até
o litoral do Báltico.”
Os saxÕes foram divididos em três tribos principais: ostefalianos, vestefalianos e angarianos. Cada clã, de acordo com os costumes teutônicos, era
composto de nobres, homens livres e escravos, mas às vezes a nação inteira se
reunia em uma grande convenção armada. Os saxÕes desprezavam e detestavam
os francos romanizados; os quais, por sua vez, consideravam os saxões bárbaros
e pagãos. Durante 33 anos o poderoso Carlos se empenhou em subjugar
essas hordas de selvagens saxões. “A área do país habitada por essas tribos
compreendia todo o moderno círculo da Vestfália, e a maior parte da Baixa
Saxônia, estendendo-se a partir do rio Lippe até o Weser e o Elba; limitada
ao norte pelas tribos aparentadas, os jutos, anglos e dinamarqueses; e ao leste
pelos de origem eslava, que gradualmente avançaram sobre as raças mais antigas
dos teutônicos da Germânia oriental.” Mas temos de nos limitar aos aspectos
religiosos dessas guerras; no entanto, nesse momento é interessante estudar os
registros antigos, tendo em mente a história e a conclusão da grande guerra
franco prussiana de 1870-71 d.C., entre os descendentes dos francos e dos
germanos da antiguidade.
O B a t ism o o u a E spada
de C a r lo s M a g n o
O objetivo professo de Carlos Magno era estabelecer o cristianismo
nas partes remotas da Germânia, mas lamentamos que ele tenha usado
meios violentos para alcançar seu fim. Milhares de pessoas foram forçadas
a aceitarem as águas do batismo para escapar da morte cruel. Os termos do
conquistador eram o batismo ou a espada. Uma lei sancionada previa a pena
de morte para os que recusavam o batismo. Ele não oferecia nenhum termo de
paz, ou qualquer negociação onde o batismo não fosse a condição principal. A
palavra de ordem dos francos era conversão ou extermínio. Embora a antiga
religião pudesse não estar tão arraigada na consciência do indivíduo saxão, ele
E uropa
(653 d.C. - 855 d.C.) 1379
não via nada melhor na nova religião; pois em sua mente o batismo significava
o mesmo que escravidão, e cristianismo, submissão ao jugo estrangeiro.
Submeter-se ao batismo era renunciar, não apenas sua antiga religião, mas
também sua liberdade pessoal.
E assim, com tais sentimentos anticristãos e desumanos, a guerra
continuou por 33 anos, como já dissemos. No comando dos exércitos, ele
oprimia as tribos selvagens, que eram incapazes de se unir para garantir a
própria segurança. Diz-se que Carlos Magno jamais encontrou um antagonista
igual em número, disciplina e em poderio militar. E depois de uma luta de incal­
culável derramamento de sangue, e de obstinação e duração sem precedentes,
o que prevaleceu foram os números, a disciplina e a bravura dos francos sobre
os indisciplinados e inconstantes esforços dos saxões. Greenwood afirma: “Os
que restaram das trinta campanhas militares de matança inigualável, e dos que
foram indiscriminadamente expatriados, aceitaram o batismo e foram incor­
porados permanentemente ao império dos francos e ao cristianismo. Abades,
mosteiros e edifícios religiosos de todos os tipos surgiam em toda parte do
território conquistado, e as novas igrejas eram supridas com ministros da escola
de Bonifácio - escola que não admitia distinção entre a lei de Cristo e a lei de
Roma”.
O batismo era a única segurança e garantia de paz que os francos
aceitavam para a submissão dos saxões. E assim foi — e como é triste e
humilhante de se relatar! —quando a conquista estava completa, e o massacre
terminado, os sacerdotes entravam em cena. A incumbência deles era batizar os
vencidos. Milhares de bárbaros foram obrigados, na ponta da espada, a entrar
no que os sacerdotes chamavam de águas regeneradoras do batismo. Mas para
os saxões, o batismo não significava nada mais do que renunciar à sua religião
e sua liberdade. Como consequência, assim que o exército de Carlos Magno se
retirou, os incansáveis saxões se levantaram, e romperam os limites do impéiio,
destruindo outros povos da mesma forma que haviam sido destruídos. Em
sua ira ardente e amarga vingança, eles quebraram cruzes, queimaram igrejas,
destruíram mosteiros e matavam seus ocupantes, não respeitavam idade ou sexo,
até que o país inteiro estivesse envolto em chamas e inundado de sangue. Diz-se
que algumas revoltas foram provocadas por linguagem insolente, e principal­
mente pela atitude ofensiva dos monges missionários, e pela extrema avareza com
que exigiam os dízimos. Mas tais revoltas por parte dos saxões eram seguidas por
novas invasões e mais carnificina por parte dos francos, até que tribo após tribo
se rendeu à força conquistadora de Carlos Magno. Em certa ocasião, após uma
severa revolta, Carlos massacrou a sangue frio cerca de 4.500 bravos guerreiros
que haviam se rendido. Este cruel e covarde abuso de poder deixa uma terrível e
A H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 16
indelével mancha em sua história, que nenhum pedido de desculpas jamais pode
remover. Até mesmo o cético historiador menciona este fato de maneira sincera
e comovente. “Em um dia de igual retribuição”, ele diz, “os filhos de seu irmão
Carlomano, príncipe merovíngeo da Aquitânia, e os 4500 saxÕes que foram
decapitados no mesmo local terão algo a dizer contra a justiça e a humanidade
de Carlos Magno. Seu tratamento para com os saxões vencidos foi um abuso
do direito de conquista”.
A I n f l u ê n c ia M a l ig n a
d o s M iss io n á r io s d o Papa
Se é triste refletir sobre o terrível massacre dos saxões, e sobre o batismo
forçado dos indefesos remanescentes, nossa tristeza é infinitamente maior
quando descobrimos que os supostos mensageiros da misericórdia foram os
grandes impulsionadores dessas longas guerras de extermínio. Em vez de serem
misericordiosos missionários do evangelho da paz, na realidade, eles eram cruéis
emissários do papado, do poder das trevas: Carlos Magno foi, sem dúvida, em
grande medida, enganado e incitado pelos sacerdotes.
Com o objetivo declarado de consolidar a união entre Igreja e Estado,
para o benefício material e espiritual da humanidade, e para preservar a força
do governo imperial, os astutos sacerdotes perceberam que o caminho estava
aberto para a própria grandeza secular deles e para a mais absoluta soberania
de Roma. E isso aconteceu, como mostra a História. Logo eles conquistaram
uma posição de grandeza mundana sobre os povos vencidos e suas terras. Nessa
época, acontece uma mudança total na condição externa do clero, e também na
sociedade em geral. Com a morte de Pepino, a história antiga acaba e tem início
a vida medieval. Um novo arranjo de sociedade é inaugurado por seu filho, o
último dos reis bárbaros e o primeiro dos monarcas feudais. Mas é a história
eclesiástica que nos interessa, e aqui, novamente, preferimos transcrever alguns
trechos dos escritos de Dean —a quem tão frequentemente fazemos referência;
e que não pode ser acusado de severidade desnecessária, mas cujo testemunho é
da mais alta integridade.
“A submissão das terras parece ter se completado antes que Carlos
Magno fundasse suas grandes colônias religiosas, as oito dioceses de Minden,
Seligenstadt, Verden, Bremen, Munster, Hildesheim, Osnaburg e Paderborn.
Estas, juntamente com vários monastérios ricos como Hersfuld, se tornaram
centros separados dos quais o cristianismo e a civilização se propagaram em
círculos cada vez maiores. Mas, embora fossem colônias militares e também
E uropa
(653 d.C. - 855 d.C.)
| 381
religiosas, os eclesiásticos eram os únicos estrangeiros ali. Os líderes saxões mais
fiéis e confiáveis, que davam a impressão de uma conversão aparentemente
sincera ao cristianismo, eram contados como de valor: assim, professar o cristia­
nismo era o único teste de fidelidade...”
“Na história cristã, mais importante até que a sujeição da Alemanha ao
evangelho, foi a mudança liderada por Carlos Magno, ou seja, a organização
completa, se não a própria fundação, da alta hierarquia feudal em grande
parte da Europa. Pode-se afirmar que, durante todo o império ocidental foi
constitucionalmente estabelecido uma aristocracia dupla: eclesiástica e civil.
Em toda parte, o alto clero e os nobres, e através das diferentes gradações da
sociedade, ocupavam a mesma posição, e estavam sujeitos a executar muitas
tarefas idênticas, de igual autoridade. Cada distrito tinha seu bispo e seu conde;
as dioceses e condados eram em sua maioria do mesmo tamanho..
“O próprio Carlos Magno não era menos pródigo que o mais fraco dos reis
no tocante às imunidades e concessões de propriedades para igreja e monastérios.
Junto com sua rainha Hildegarda, ele fez doações de terras italianas à igreja de
São Martinho, em Tours. Entre os atos de seu reinado aparecem subvenções
para São Denis, Lorch, Fulda, Prum e mais particularmente para Hersfuld, e
muitos abades italianos.
“Nem todo o patrimônio foi obtido com a ajuda de reis e nobres. Os servos
dos pobres eram, muitas vezes, os saqueadores dos pobres. Mesmo durante o
reinado de Carlos Magno havia queixas de condes e leigos devido à usurpação
de propriedade por parte dos bispos e abades. Eles obrigavam o homem pobre
e livre a vender sua propriedade ou o forçavam a servir o exército, em caráter
permanente; assim suas terras ficavam sem dono e com todas as chances dele não
retornar, ou ficavam sob a custódia de quem permanecia em casa; dessa forma,
os sacerdotes aproveitavam cada oportunidade para tomar posse delas. Nenhuma
vinha de Nabote (1 Reis 21) escapava da terrível avareza do clero!'
“Em seus feudos, o bispo ou abade exercia todos os direitos de senhor
feudal... Portanto, a hierarquia eclesiástica, agora uma instituição feudal,
paralela e coordenada com a aristocracia feudal secular, almejava desfrutar, e já
há muito tempo desfrutava, da dignidade, da riqueza e do poder dos senhores
suseranos. Os bispos e os abades tinham independência e privilégios sobre os
feudos inalienáveis. Ao mesmo tempo, começaram a contestar sombriamente
ou, de maneira arrogante, se recusar a efetuar pagamentos, ou reconhecimento
de vassalagem, que muitas vezes pesavam sobre outras terras. Durante o reinado
de Carlos Magno, essa teoria de imunidade espiritual estava adormecida, ou
melhor, ainda não havia tomado corpo. No entanto, no conflito com seu filho,
382 I A H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 16
Luís, o Piedoso, ela foi corajosamente anunciada e seu crescimento foi rápido.
Nessa ocasião, o clero afirmou que todos os bens dados à igreja, aos pobres, aos
santos, ao próprio Deus - e eis as expressões capciosas - eram dados de forma
absoluta, irrevogável, sem reservas. O rei tinha poder sobre os honorários dos
cavaleiros; mas, sobre os impostos da igreja, ele não tinha qualquer ingerência.
Tais exigências eram impiedosas, sacrílegas, e implicavam na perda da vida
eterna. O clero e seus bens pertenciam a outro reino, outro Estado, total e abso­
lutamente independente do poder civil.”123
* * *
O S ist e m a H
ie r á r q u ic o
F eu d a l
Durante séculos o brado dos papas para cada monarca era: “Dê, dê; doe,
doe; e o abençoado Pedro certamente lhe dará vitória sobre os inimigos, a pros­
peridade neste mundo e um lugar perto dele no céu”. Este brado foi respondido
em grande medida no início do nono século. As citações abaixo darão ao leitor
uma idéia dos despojos que foram para o clero através das vitórias de Carlos
Magno na Germânia. Foi principalmente nestes 33 anos de guerra sangui­
nolenta que o grande sistema hierárquico feudal surgiu. Milhares de pessoas
foram mortas para permitir aos bispos e abades a formação de uma aristocracia
eclesiástica. Principescos palácios dos grandes sacerdotes foram erigidos por toda
a terra conquistada; mas suas fundações foram estabelecidas com crueldade,
injustiça e sangue.
Apesar de mais de mil anos terem se passado desde a morte do grande
patrono da igreja, os palácios ainda existem e são abundantes em toda a Europa.
Mas o coração adoece ao pensar na origem desses declarados palácios da paz;
em especial se tivermos em mente o verdadeiro caráter do evangelho, e que
os ministros de Cristo deveriam sempre procurar o espírito manso e humilde
manifesto por Jesus. As almas, e não as propriedades, dos homens deveriam
ser seu objetivo. O lema dos eclesiásticos deveria ser: “Não busco o que é vosso,
mas sim a vós” (2 Coríntios 12:14); ou seja, avançando sem nada extorquir dos
gentios. Mas o exemplo de Cristo há muito já havia sido esquecido. A igreja
decaiu para o nível do mundo, passando a ser regida pelo espírito dele quando
foi unida ao Estado por Constantino. Esta foi sua grande queda, da qual se
origina sua dolorosa inconsistência. O amor pelo mundo, pelo poder absoluto,
pelo domínio universal tomou conta de todo o seu ser. Enganada por Satanás,
123 Cristianismo Latino, volume 2.
E u ro pa
(653 d.C. - 855 d.C.) | 383
em cujo trono ela se assenta (Apocalipse 2), a descarada iniquidade de seu com­
portamento pode ser atribuída ao poder satânico de causar cegueira espiritual.
Em sua concepção, todos os meios eram justificáveis para alcançar o objetivo
de engrandecer a Sé romana.
R e fle x õ e s S o bre
o C u id a d o d o S e n h o r
P a r a C o m o s Seus
Sem dúvida, o Senhor tinha os Seus escondidos, mesmo nos tempos
mais tenebrosos, como em Tiatira: “Mas eu vos digo a vós, e aos restantes que
estão em Tiatira, a todos quantos não têm esta doutrina, e não conheceram,
como dizem, as profundezas de Satanás, que outra carga vos não porei. Mas o
que tendes, retende-o até que eu venha”. Uma coisa, e apenas uma, ocupa os
fiéis depois da apostasia se estabelecer: o Salvador elevado ao céu, o Homem
na glória. E a doce promessa aos Fiéis é: “E ao que vencer... dar-lhe-ei a estrela
da manha”. Porém, a igreja meramente professa, como aliada do Estado, era
corrupta até as profundezas do coração, estava cega, endurecida, e mergulhada
na impiedade mais terrível. A concentração de todas as formas do mal podia ser
encontrada na cadeira de São Pedro. E no tocante às guerras religiosas, o próprio
Carlos Magno é inocente se comparado ao papa Adriano.
Devemos lembrar que Carlos foi um rei bárbaro, talvez o maior na história
da Europa, com exceção de Alexandre e César; por isso podemos entender seu
objetivo em procurar unir e consolidar um grande império, mas ele era ignorante
e supersticioso quanto às coisas divinas, embora o elemento divino fosse forte
em sua mente. Foi nesse ponto que o papa agiu, e deixando-o acreditar que
uma igreja forte e saudável faria um Estado forte e saudável; e se ele quisesse
agradar o céu e conquistar a vida eterna, a harmoniosa união entre igreja e
Estado deveria ser a base de todos os seus projetos governamentais. Ele amava
Adriano, prontamente obedecia seus chamados, rendia-se aos seus conselhos e
chorou quando ouviu sobre sua morte, em 26 de dezembro de 795 d.C., após
um incomum e longo pontificado de mais de 23 anos. Talvez sob os maiores
artifícios, ele possa ter percebido o real objetivo do papa, mas convicto em sua
auto-suficiência, o imperador permitiu que tais coisas passassem sem sentimentos
de desconfiança e ciúme, que poderiam acometer uma mente mais fraca. Não
dado a mudanças, ele fez um bom amigo.
384 I A H is t ó r i a
da
I g r e ja -
capítulo 16
A Fa l sific a ç ã o Papal
Mas a bondade de Carlos Magno apenas incitava a cobiça e a inveja dos
vorazes sacerdotes. Não satisfeitos com suas terras e dízimos, eles aspiravam uma
posição acima dos senhores leigos e mesmo acima do próprio monarca. Estimulados
pelo sucesso do passado, eles tentaram uma ousada falsificação para alcançar o
alvo de suas ambições seculares. Depois de um período de 450 anos, um título de
propriedade de poder quase imperial é pela primeira vez trazido à luz. Por esse ato
original de doação foi descoberto que tudo o que Pepino e Carlos Magno tinham
conferido à igreja de Roma não passava de uma parte da doação real para a cadeira
de São Pedro feita pelo “piedoso imperador Constantino”.
Como nossa principal meta neste período da história da igreja é apresentar
o verdadeiro caráter do sistema papal, os meios pelos quais chegou à sua
estupenda influência e poder, e os efeitos secularizantes da aliança entre a Igreja
e o Estado, reproduziremos a carta do próprio papa, a qual está nos escritos de
Greenwood. Sem dúvida o leitor irá se surpreender ao descobrir que nenhum
homem, com a menor pretensão de respeitabilidade - muito menos o chefe da
igreja —jamais poderia ter inventado tal documento apenas para ganhar mais
território e poder. Mas devemos lembrar que Tiatira era caracterizada pelas
“profundezas de Satanás”; e assim também é o papado, desde que respirou pela
primeira vez, e assim será até que dê seu último suspiro. Apocalipse 17 e 18
descreve seu caráter e seu fim.
O papa Adriano disse: “Considerando que nos dias do abençoado pontífice
Silvestre, o mais piedoso imperador, por sua doação, exaltou e engrandeceu a
santa, católica e apostólica igreja de Roma, dando4he o poder supremo sobre
toda a região do Ocidente, portanto, agora nós suplicamos que neste dia feliz, a
mesma santa igreja possa se desenvolver rapidamente e exultar, e ser cada vez mais
exaltada, de modo que todos os que ouvirem acerca dela possam exclamar: ‘Deus
salve o rei, e nos ouça no dia em que O invocarmos!’ E eis que naqueles dias
surgiu Constantino, o imperador cristão, por quem Deus dignou dar tudo para
a Sua mais santa igreja, a igreja do abençoado Pedro, o príncipe dos apóstolos.
Tudo isso, e muitos outros territórios, os quais diversos imperadores, patrícios e
pessoas tementes a Deus, deram ao abençoado Pedro e à santa apostólica igreja
de Deus em Roma, para o benefício de suas almas e o perdão de seus pecados,
nas regiões da Toscana, Espoleto, Benevento, Córsega e Savona - territórios que
foram tomados e mantidos pelas nações ímpias dos lombardos, tudo isso pode ser
restaurado para nós em teus dias, de acordo com o teor de tuas diversas escrituras
de doação depositadas em nossos arquivos, em Latrão. Com este fim, temos
ordenado aos nossos enviados para expor a ti tais escrituras, para tua satisfação; e
em virtude delas agora te rogamos que ordenes a total restituição do patrimônio
E uropa
(653 d.C. - 855 d.C.)
de São Pedro que está em tuas mãos. Por tua conformidade com isso, a santa
igreja de Deus pode tomar plena posse e desfrutar de seu completo direito. Assim,
o príncipe dos apóstolos pode interceder diante do trono do Todo-Poderoso por
uma vida longa para ti, e prosperidade em todos os teus empreendimentos”.
A Ig n o r â n c ia
e a
C r e d u l id a d e
dos
T em po s
A ignorância e a credulidade daqueles tempos eram tamanhas que a mais
absurda das fábulas era recebida com grande reverência por todas as classes. Os
ardilosos sacerdotes sabiam revestir suas fraudes religiosas com a mais plausível
piedade para cegar o rei e o povo. De acordo com a lenda, Constantino foi curado
de lepra pelo papa Silvestre; e ficou tão ficou cheio de gratidão que renunciou, em
favor do papa, a soberania livre e perpétua de Roma, da Itália e das províncias do
Ocidente; e resolveu fundar uma nova capital para si mesmo no Oriente.
O objetivo de Adriano em forjar tal documento, e em escrever a carta,
sem dúvida foi influenciar Carlos Magno a imitar a liberalidade de seu grande
predecessor. Se colocasse os papas na posse da referida doação de Constantino,
ele estaria apenas agindo como seu executor; mas se ele quisesse ser um benfeitor
espontâneo da igreja, então deveria ultrapassar os limites da escritura original de
doação. Mas ainda não sondamos as profundezas dessa falsificação. Isso serviu
para provar que: (1) os imperadores gregos, por todos esses séculos, haviam sido
culpados de usurpação e roubo do patrimônio de São Pedro; (2) que os papas
tinham justificativas para se apropriarem de seus territórios, e se rebelarem
contra a autoridade imperial;( 3) que as concessões de Pepino e Carlos Magno
eram nada mais que a restituição de uma pequena porção dos domínios legais e
legítimos originalmente concedidos à cadeira de São Pedro; (4) e que ele, Carlos
Magno, deveria se considerar em dívida com Deus e com Sua igreja, enquanto
um único item dessa herança inalienável permanecesse sem ser restituído.
Esses foram alguns dos convenientes resultados do documento para os
propósitos de Adriano na época; e embora possa ter sido de grande proveito ao
papado tanto na ocasião quanto depois, tal falsificação mentirosa já foi exposta
há muito tempo. Com a restauração das cartas e da liberdade, o documento
fictício foi condenado, juntamente com os Falsos Decretos - a mais audaciosa
e elaborada de todas as fraudes piedosas. Falando sobre os Decretos, Milman
observa: “Todos desistiram deles; não há uma só voz que se levante em seu favor;
o máximo que é feito por aqueles que não podem suprimir todo o desgosto que
a exposição disso causa é aliviar a culpa do falsificador, enfraquecer ou colocar
em cheque a influência que tinham em seus próprios dias e tiveram na história
posterior do cristianismo”.124
m Milman, volume 2; Greenwood, livro 6, capítulo 3.
385
I
386 i A
H i s t ó r i a d a I g r e ja -
Os
capítulo 16
F u n d a m e n t o s e o E d if íc io P a p a l
Infelizmente esses foram os fundamentos do grande edifício papal! E não
estamos errados ao sofrer quando vemos tais fundações sendo estabelecidas.
Iremos dar as características das pedras fundamentais separadamente, e para
isso devemos falar delas como as mais extravagantes ambições, a arrogância
mais ofensiva, as falsificações mais descaradas, o mais abertamente declarado
e manifesto amor à idolatria desafiando até mesmo a própria morte, a mais
inescrupulosa apropriação de territórios roubados, o mais implacável espírito
de perseguição, e o que pode ser considerado a pedra principal (tanto quanto
a própria fundação): o mais desordenado amor pela soberania secular. Mas se
olharmos dentro do edifício, o que acharemos ali? Ele se encontra repleto de
blasfêmias, dos piores tipos de corrupções, e da concentração de toda espécie de
atrações para a carne (Apocalipse 18:12-13). A própria essência do cristianismo
- o sacrifício, o ministério e o sacerdócio - foi corrompida ou rejeitada. A obra
consumada de Cristo foi substituída pela missa; o ministério do Espírito de
Deus, pelo ensino dogmático da igreja; o sacerdócio comum de todos os crentes,
sim, e até o próprio Cristo foram trocados pelo grande sistema eclesiástico de
sacerdócio, ou melhor, pelo poder sacerdotal.
A ceia do Senhor mudou gradualmente da simples lembrança de Seu
amor e anúncio de Sua morte para a idéia de sacrifício. Muitas superstições
eram praticadas com o pão consagrado, ou melhor, com a hóstia. O sacrifício
supostamente deveria valer para mortos e vivos, daí a prática de oferecer
hóstia aos mortos e enterrá-los com ela. A deprimente doutrina do purgatório,
sancionada por Gregório, o Grande, havia se espalhado por toda parte. E ao
que parece se enraizou especialmente na igreja inglesa antes do nono século.
Mas o engano é evidente, porque não há purgatório, mas sim o sangue de
Jesus Cristo, o Filho de Deus; como disse o apóstolo João: “O sangue de Jesus
Cristo, seu Filho, nos purifica de todo o pecado” (1 João 1:7). Graças a Deus
não há limite para o poder purificador do sangue de Jesus, Seu Filho; todos os
que crêem neste sangue ficam mais alvos que a neve - perfeitamente aptos para
estarem na presença de Deus. Mas a doutrina do purgatório atinge em cheio
as bases dessa verdade fundamental, e se tornou um instrumento poderoso
nas mãos dos sacerdotes pra extorquir dinheiro dos moribundos, garantindo
assim grandes heranças para a igreja. Mas quase tudo era feito com base nesses
objetivos. A verdade de Deus, a obra de Cristo, o caráter da igreja, as almas
e os corpos dos homens, tudo era prontamente sacrificado para o engrandeci­
mento da Sé romana, e para o engrandecimento do clero em subordinação ao
sistema papal.
E u r o p a (653 d.C . - 855 d .C .)
A vida ímpia dos responsáveis pelo governo da igreja e pelo cuidado das
almas também é motivo de denúncia de todos os historiadores honestos, tanto
da época quanto da atualidade. Talvez neste ponto seja útil apresentar um relato
confiável - de Mosheim —como testemunho e confirmação do que temos dito
sobre este período.
O R esu m o
de
M o s h e im
“Por todo Oriente predominavam projetos sinistros, rancores, contendas e
lutas. Em Constantinopla, ou a Nova Roma, os que contavam com o favor da
corte eram elevados à cadeira patriarcal; caso este favor fosse perdido, bastava um
decreto do imperador para arrancá-los dessa elevada posição. No Ocidente os
bispos vadiavam nas cortes dos príncipes, entregando-se a todo tipo de licenciosi­
dade: o baixo clero e os monges eram sensuais, e através dos mais grosseiros vícios
corrompiam as pessoas cujas vidas deveriam reformar. A ignorância do clero em
muitos lugares era tão grande, que poucos deles sabiam ler ou escrever. Portanto,
sempre que uma carta precisava ser escrita ou qualquer outra coisa importante
precisava ser firmada por escrito, geralmente a solução era recorrer a um indivíduo
apto para tal, cuja fama popular o investia de certa perícia nesses assuntos...”
“Os bispos e líderes de mosteiros detinham muitas propriedades ou bens
fundiários por posse feudal, portanto, quando a guerra estourava, eles eram pes­
soalmente convocados ao acampamento militar, e contavam com um número de
soldados que eram obrigados a se apresentarem aos soberanos. Reis e príncipes,
embora fossem capazes de recompensar servos e soldados por seus serviços,
frequentemente se apoderavam das propriedades consagradas e davam-nas aos
seus dependentes; em consequência, os sacerdotes e monges, anteriormente
sustentados por elas, obtinham alívio de suas necessidades cometendo todo tipo
de crimes e embustes inimagináveis”.
“São poucos os que se levantaram nesta época nos mais altos postos da
igreja que podem ser elogiados por sua sabedoria, aprendizado, virtude e outros
dons próprios de um bispo. A grande maioria deles por seus numerosos vícios, e
todos eles, por sua arrogância e anseio de poder, ocasionaram desgraças às suas
memórias. Entre Leão IV, que morreu em 855 d.C., e Benedito III, uma mulher,
que escondeu seu sexo e assumiu o nome de João, abriu caminho para o trono
pontifício pela sua erudição e por seu talento, governando a igreja por um tempo.
Geralmente ela é chamada de Papisa Joana. Durante os cinco séculos seguintes,
são incontáveis as testemunhas desse extraordinário evento, mas nenhuma, antes
da Reforma de Lutero, considerou isso como algo inacreditável ou vergonhoso
para a igreja”.
387
388 I A
H
is t ó r i a d a
I g r e ja - capítulo 16
“Todos concordam que nestes tenebrosos dias o estado do cristianismo era
mais que deplorável em todos os lugares. Não apenas pela incrível ignorância,
parente da superstição e da degradação moral, mas também por outras causas...
A ordem sagrada, tanto no Oriente quanto no Ocidente, era composta princi­
palmente por homens iletrados, estúpidos, ignorantes acerca de tudo o que era
pertinente à religião... O simples exemplo de Teofilato mostra o que eram os
pontífices gregos; os quais, como testemunham historiadores sérios, traficavam
tudo o que era sagrado e não se importavam com nada além de seus cachorros e
cavalos. No entanto, apesar dos patriarcas gregos serem homens indignos, ainda
possuíam mais dignidade e virtudes do que os pontífices romanos. Um fato
reconhecido por todos os melhores escritores, sem exceção até mesmo daqueles
que advogam a autoridade papal, é que a história dos bispos romanos no século
IX é uma história não de homens, mas de monstros, uma história dos mais
atrozes crimes e vilanias”.
“Tanto gregos quanto latinos pensavam que a essência da religião consistia
na adoração de imagens, em honrar santos mortos, em buscar e preservar
relíquias e em enriquecer sacerdotes e monges. Dificilmente um indivíduo
ousava se aproximar de Deus antes que seu interesse fosse devidamente dirigido
aos santos e imagens. Em juntar relíquias e buscá-las intensamente, o mundo
inteiro estava ocupado de modo insano.”125
Consideramos que nada mais é necessário ser dito quanto à natureza
- raízes e ramos, do sistema papal. Na boca de pelo menos três testemunhas
competentes, tudo que dissemos sobre Roma, desde o início do período de
Tiatira, tem sido confirmado. E nem a metade foi dito, especialmente no
tocante à imoralidade. Não poderíamos transferir para nossas páginas a aberta
devassidão dos sacerdotes e monges. Alguns pensam que o papado caiu na
degradação mais profunda no nono e décimo séculos. Por muitos anos a mitra
papal foi usada livremente pela infame Teodora e suas duas filhas, Marozia e
Teodora. Tamanha era a força e a influência maligna delas que, por meio de suas
vidas licenciosas, colocavam na cadeira de São Pedro quem queriam - homens
ímpios como elas próprias. Nossas páginas seriam corrompidas pelo relato de
suas desavergonhadas imoralidades. Assim foi a sucessão papal. Certamente
Jezabel foi bem representada por estas mulheres, e pela influência que obtiveram
sobre os papas e a cidade de Roma. Mas, infelizmente, Jezabel, com todas as
suas associações, corrupções, tiranias, idolatrias e uso da espada civil, tem sido
fielmente representada pelo papado desde a sua fundação.
125 História, de Mosheim, volume 3.
,
A
;
: :
\ 7
P ro pa g a çã o d o C r is t ia n is m o
( s é c u l o IX)
...“"H um verdadeiro e imenso alívio para a mente, tanto do escritor quanto
do leitor, nos afastarmos das escuras e corrompidas regiões de Roma,
j f J e rastrear um pouco a linha prateada da graça salvadora de Deus na
propagação do evangelho e no zelo de muitos de Seus servos. Ao mesmo tempo,
não devemos esperar encontrar muito sobre Cristo ou sobre o que é chamado
de evangelho livre no testemunho dos missionários desse período. Temos de
levar em conta o estado da Europa no século IX, comparado à atualidade, se
quisermos que nosso coração se eleve a Deus em gratidão pelo dia das pequenas
coisas.
I
A tônica do período era a preferência dada aos escritos humanos e
não às Escrituras, pelo menos onde a influência de Roma prevalecia. Os
paulicianos, e talvez outros que se mantinham afastados da comunhão de Roma,
sustentavam a autoridade da Palavra de Deus; porém, os missionários romanos
eram instruídos e obrigados a serem fiéis às decisões dos Pais apostólicos. Os
cânones dos concílios, e os escritos dos grandes doutores eram constantemente
consultados, e por isso o sagrado livro foi completamente negligenciado. Muito
tempo antes desse período, a Palavra de Deus já estava sendo tratada como
obscura, intrincada, e inadequada para a leitura geral. E assim as Escrituras têm
sido consideradas pelos católicos até hoje. No entanto, Deus estava e está acima
3 9 0 I A H ist ó r ia
da
I g r e ja - capítulo 17
disso tudo, e governa tudo para a Sua própria glória, para a difusão do evangelho
e salvação dos pecadores. “Todo o que o Pai me dá virá a mim; e o que vem a
mim de maneira nenhuma o lançarei fora” (João 6:37).
O D esper ta r
da
Educação
Embora a ambição sanguinária e a vida dissoluta de Carlos Magno nos
impeçam de pensar que ele possuía qualquer princípio cristão verdadeiro, no
entanto, é justo reconhecermos que ele foi usado por Deus para o avanço da
educação em casa, e para a difusão do cristianismo em toda parte. Escolas
foram construídas; universidades, fundadas; eruditos foram trazidos da Itália,
Inglaterra e Irlanda com o objetivo de levar seus súditos a um nível moral,
religioso e intelectual mais alto. No final de seu longo reinado, em sua residência
real em Aix La-Chapelle, ele estava cercado de eruditos de todas as nações.
Os sábios, gramáticos e filósofos da época eram bem vindos à grande Sala de
Audiência. Mas o principal entre todos era seu conterrâneo, o monge anglo saxão
Alcuíno, nativo da Northúmbria, e tutor da família real.
Alcuíno foi mais destacado, tanto por seu ensino quanto pela abrangência
de seus esforços como professor entre os francos. Porém, o mais importante é
que parece ter tido conceitos corretos sobre o cristianismo. Ele sempre protestava
com o imperador contra a violência com que os dízimos eram tirados dos saxões
novos convertidos, e contra a compulsória e indiscriminada administração
do batismo. Alcuíno afirmou: “Primeiro devem ser dadas instruções sobre os
grandes pontos da doutrina e prática cristãs, e depois vem o sacramento. O
batismo pode ser forçado sobre os homens, mas não a fé. O batismo recebido
sem a fé ou entendimento por uma pessoa capaz de raciocinar é uma inútil
lavagem do corpo”.126
Como é animador para o espírito verificarmos tal tratamento sincero e
honesto para com o grande imperador. E como ficamos verdadeiramente gratos!
Isso nos mostra que o Senhor tem Suas testemunhas em todos os tempos, e
em todos os lugares. Esperamos que Alcuíno possa ter sido usado pelo Senhor
para a expansão da verdade e para a benção das almas naqueles círculos mais
elevados.
O fim do grande Carlos se aproximava. Embora cercado de literatura,
música e tudo o mais que o agradasse e satisfizesse seus gostos e paixões;
embora, como é dito, suas antecâmaras estivessem cheias de ex monarcas
126 R ob ertso n , volu m e 2.
E uropa
(814 d.C. - 1.000 d.C.) 1391
capturados dos territórios conquistados, esperando para suplicar seu favor, ou
buscar a restauração de seus legítimos domínios; Carlos Magno teve de se render
ao ataque do qual ninguém pode se livrar: morreu no dia 28 de janeiro de
814 d.C., com a avançada idade de 72 anos, após um longo reinado de 43 anos.
E designou seu filho Luís como sucessor.
L uís, o P ie d o so
Não há dúvida de que Luís, apelidado de Piedoso, era um cristão sincero
e humilde. Em uma situação tão cheia de falsidade, jamais houve um homem
manso e nobre como Luís, quando o império caiu em suas mãos. Ele viveu até
o ano 840 d.C.. Sua vida é uma das mais comoventes, trágicas e lamentáveis
nos anais dos reis. Houve algo parecido com uma rebelião universal no princípio
de seu governo. Ele era muito humano e escrupuloso para com seus soldados;
muito piedoso para com o clero. Os bispos eram prevenidos a não usarem
espada ou armas, e nem esporas brilhantes nos calcanhares. Os monges e freiras
acharam nele um segundo São Benedito. A licenciosidade da corte de seu pai
rapidamente desapareceu dos arredores sagrados de seu palácio; por outro
lado, ele era também bastante indolente na disciplina de seus filhos. Tamanha
piedade, como já podemos imaginar, foi considerada ridícula, e não podia ser
suportada por muito tempo. Luís foi abandonado por seus soldados, cuja riqueza
se deveu à pilhagem de seus inimigos; seus filhos, Pepino, Luís II e Lotário, mais
de uma vez pegaram em armas contra ele. O clero, que deveria ter cercado com
compaixão o monarca arruinado no dia de sua adversidade, apenas aproveitou a
ocasião para mostrar seu poder ao aviltá-lo, colocando-o nas profundezas de um
claustro, e dando um verniz de justiça à injustiça deles. Luís foi forçado pelos
sacerdotes a confessar pecados dos quais era inteiramente inocente. Tomando
partido do seu filho rebelde, Lotário, um homem cruel, mas que temia autorizar
a morte de seu pai, ambos —filho e clero, decretaram a incapacidade do rei para
o exercício de sua autoridade real através da degradação civil e eclesiástica. Ele foi
obrigado a fazer uma penitência pública por seus supostos crimes; a depositar sua
armadura e vestes reais no altar de São Sebastião, e a usar um traje de luto.127
Porém, o orgulho de seus nobres foi insultado por tal demonstração
de arrogância eclesiástica, e a nação chorou o destino de seu bom e humano
imperador. A reação foi inevitável. Indignado com o tratamento dispensado ao
rei, o povo exigiu sua reintegração. Luís foi tirado do monastério, vestido com
l2/ Para mais detalhes, ver Cristianismo Latino, volume 2, de Milman.
392 ] A
H i s t ó r i a d a I g r e j a - capítulo 17
seus trajes reais e restaurado à sua posição anterior, porém, somente para experi­
mentar uma humilhação ainda maior. Por fim, pela mão da misericórdia divina,
ele foi resgatado do comportamento abominável de seus filhos, e da perseguição
impiedosa do clero, que se importava apenas com a exibição e o estabelecimento
de seu próprio poder. Com um crucifixo pressionado sobre o peito, os olhos fixos
no céu, e um suspiro de perdão a seu filho Luís, que novamente estava lutando
contra o pai, o monarca partiu desta vida para estar com Cristo, o que é muito
melhor (Filipenses 1:23).
A C o n v e r sã o
d as
N a ç õ es
do
N o r te
A expansão do evangelho rumo às extremidades do norte da Europa
durante os séculos IX e X foi tão bem detalhada nas histórias gerais que iremos
apenas mencionar os principais lugares e agentes conectados a esta boa obra. Mas
nos alegramos em seguir as pegadas desses abnegados missionários no próprio
coração do império de Satanás, onde por séculos ele reinou incólume. E já vimos
que a espada de Carlos Magno abriu caminho para os frísios, saxões, hunos e
outras tribos.
Na primeira parte do reinado de seu filho Luís II, o evangelho foi
introduzido entre os dinamarqueses e suecos. Disputas relativas ao trono da
Dinamarca, entre Godofredo e Haroldo, levaram esse a procurar a proteção de
Luís. O piedoso imperador achou que seria uma excelente oportunidade para
a introdução do cristianismo entre os dinamarqueses. Portanto, Luís prometeu
ajudar Haroldo com a condição de que ele próprio abraçasse o cristianismo e
permitisse pregadores do evangelho em sua pátria. Haroldo aceitou os termos,
e foi batizado em Mentz, no ano 826 d.C., juntamente com sua rainha e um
numeroso séquito. Luís apadrinhou Haroldo, a imperatriz amadrinhou a rainha,
e Lotário, o filho deles; e padrinhos de alta estirpe foram designados para os
membros da comitiva dinamarquesa. Assim, cristianizado, como se pensava
naquela época, ele voltou para casa, levando dois mestres cristãos consigo. E
embora Haroldo não tenha conseguido retomar o trono, Luis lhe designou um
território na Frísia.
Ansgarius e Aubert, os dois monges franceses que o acompanharam,
trabalharam com grande zelo e obtiveram sucesso; mas Aubert, monge de nobre
nascimento, morreu dois anos depois, no meio das labutas missionárias.
O incansável Ansgarius, devido à morte de seu colaborador, partiu para a
Suécia. Ele foi igualmente feliz e bem sucedido em seu trabalho ali. Em 831 d.C.,
Luís recompensou seus notáveis esforços, fazendo-o arcebispo de Hamburgo, e
E uropa
(814 d.C. - 1.000 d.C.)
de todo o norte. Ele sempre tinha de enfrentar muita oposição, mas em geral
desarmava seus oponentes pela sinceridade de suas intenções e a retidão de sua
conduta. Ansgarius viveu até 865 d.C., tendo trabalhado em especial com os
dinamarqueses, suecos e cimbrianos.
* Ã *
Os
E s la v ô n io s R ecebem o E v a n g e lh o
Nesse mesmo período, alguns esforços foram realizados para a conversão
dos russos, húngaros e outros, mas o trabalho do evangelho parece ter progredido
pouco nesses lugares até a conquista da Boêmia por Oto, no ano 950 d.C.. Ou
melhor, até o casamento de Vladimir, príncipe dos russos, com Ana, irmã de
Basílio, o imperador grego. Ele viveu até idade bastante avançada, abraçou a fé
de sua rainha, no que foi seguido por seus súditos. A conversão do duque da
Polônia também é atribuída à influência de uma rainha cristã. Na época a crença
do príncipe se tornava a regra para seu povo, tanto na prática quanto na fé, e,
geralmente, a crença da rainha se tornava a regra para o rei. E, consequentemente,
a esposa influenciava o reino para o bem ou para o mal. Isso podemos notar, em
especial a partir dos dias de Clotilda e Clóvis. “Há uma estranha uniformidade”,
diz Milman, “nos instrumentos usados na conversão dos súditos bárbaros. Uma
mulher de posição e influência, um monge zeloso, algumas terríveis calamidades
nacionais, e assim que estes três fatores convergiam, as portas das terras pagãs se
abriam para o cristianismo”.
Bulgária. A introdução do cristianismo entre os búlgaros foi mencionada
em nossa citação dos paulicianos. Eles eram um povo bárbaro e selvagem. Depois
dos hunos, os búlgaros eram o povo mais odiado e temido pelos europeus con­
quistados. A irmã de Bóris, o rei deles, foi capturada pelos gregos na infância,
sendo educada em Constantinopla na fé cristã. Após sua redenção e volta para
casa, ela foi profundamente afetada pelos hábitos idólatras de seu irmão e povo.
Parece ter sido uma cristã sincera, mas todos os seus apelos a favor do cristianis­
mo não deram resultado até que a fome e a praga devastaram a Bulgária. Por
fim, o rei foi persuadido a orar ao Deus dos cristãos. O Senhor, em Sua grande
misericórdia, fez cessar a praga. Bóris reconheceu a grandeza e o poder do Deus
cristão, e concordou que missionários pregassem o evangelho ao seu povo.
Metódio e Cirilo, dois monges gregos que se destacaram por seu zelo e
erudição, instruíram os búlgaros nas verdades e bênçãos do evangelho de Cristo.
O rei foi batizado, e o povo gradualmente seguiu seu exemplo. Conta-se que o rei
enviou 106 perguntas ao papa Nicolau I, abrangendo cada aspecto da disciplina
393
394 I A H i s t ó r i a
da
I g r e ja - capítulo 17
eclesiástica, da observância cerimonial e sobre costumes. As respostas foram
sábias e discretas, e projetadas para mitigar a ferocidade dessa rude nação.
Da Bulgária, os ardorosos missionários visitaram muitas tribos eslavônias,
e penetraram em regiões de genuíno barbarismo. O dialeto delas nem sequer
era escrito. Porém, esses dedicados homens dominaram a língua da nação e
pregaram o evangelho no idioma nativo. Isso era uma novidade naqueles dias,
mas o cristianismo celestial traz em seu bojo muitos dons preciosos. A prática
comum da época era pregar e ensinar nas línguas eclesiásticas, grego e latim,
Na verdade, o papa recebeu reclamações sobre a inovação do louvor em língua
bárbara, mas os escrúpulos do pontífice foram vencidos pelos argumentos dos
missionários, embora a controvérsia tenha sido reavivada em tempos futuros,
devido à crença estúpida de que celebrar os ritos religiosos em língua bárbara
era profanação. Diz-se que Cirilo inventou um alfabeto, ensinou ao rude povo
o uso das letras, traduziu a liturgia e alguns livros da Bíblia para o dialeto dos
morávios. Quem pode avaliar corretamente o efeito do trabalho de Cirilo até
os dias de hoje? O rei da Morávia foi batizado, e, como de praxe, os súditos
seguiram seu exemplo. A província da Dalmácia, e muitas outras, então em
densas trevas, receberam o evangelho durante os séculos IX e X!
O F lu x o
do
R io
da
V id a
Que bondade do Senhor, o supremo Cabeça da Igreja, enviar para
muitas e distantes terras as águas vivas do santuário, quando Roma, o centro
da cristandade, se encontrava estagnada e corrompida. Neste tempo, Barônio,
famoso cronista da igreja romana, cuja parcialidade à diocese de Roma era
notória, exclama: “Quão deformada e espantosa era a face da igreja de Roma!
A santa Sé caiu sob a tirania de duas desordenadas e desregradas mulheres,
que nomeavam e destituíam bispos conforme o humor delas, e (como tremo
ao pensar e a falar sobre isso) colocavam seus galanteadores na cadeira de São
Pedro”. Referindo-se ao mesmo período, Arnoldo, bispo de Orleans, afirma: “O
miserável Roma! Tu que anteriormente ostentastes tantos grandes e gloriosos
luminares para nossos ancestrais, em que extraordinárias trevas estás agora caída,
as quais te renderão a infâmia por todas as eras seguintes”.128
Enquanto esse era o estado de Roma, a capital da corrupta Jezabel, a
corrente da vida eterna do exaltado Salvador fluía sem impedimento nas extre­
midades do império. Muitas nações, tribos e línguas receberam o evangelho
128 Du Pin, volume 2.
E u ro pa
(814 d.C. - 1.000 d.C.)
[ 395
com as abundantes bênçãos que ele carrega consigo. Sem dúvida, aqueles povos
estavam comprometidos com muitas superstições; mas a Palavra de Deus e o
nome de Jesus foram introduzidos entre eles; e assim o Espírito Santo pode
operar maravilhas com o nome acima de todos os nomes e com a preciosa
Palavra. O Salvador foi pregado; o amor de Deus e a obra de Cristo parecem
ter sido ensinados sob a unção divina que trouxe convicção aos rudes bárbaros.
Isso tudo era a obra do próprio Deus, e a realização dos Seus próprios propósitos.
Foi por isso que Paulo afirmou: “Mas que importa? Contanto que Cristo seja
anunciado de toda a maneira, ou com fingimento ou em verdade, nisto me
regozijo, e me regozijarei ainda” (Filipenses 1:18).
* *- *
I n g l a t e r r a , E s c ó c ia
e
I rlan d a
Antes de encerrarmos nossas breves observações sobre o agir do Senhor
nesse momento, veremos alguns nomes que indicam o estado de coisas nas ilhas
britânicas.
Não é preciso falar muito sobre a glória do reinado de Alfredo, o Grande.
Segundo alguns historiadores, ele aparece como a concepção do soberano
perfeito. De qualquer forma, podemos dizer que Alfredo foi um legítimo rei
cristão, que serviu de bênção tanto para a igreja quanto para o mundo. Sua
bem sucedida guerra contra os dinamarqueses; o fato de ter impedido que a
Inglaterra retornasse ao barbarismo; seu estímulo à educação e aos eruditos;
seus abundantes esforços; sua fé e dedicação cristãs são bem conhecidas de todos
os que estão familiarizados com a história inglesa. Alfredo sucedeu seu pai em
871 d.C., aos 22 anos de idade, e reinou três décadas. Portanto, o século IX, que
iniciou com os grandes dias de Carlos Magno, se encerrou com os anos dourados
de Alfredo, provavelmente o nome mais honrado na história medieval.
Clemente, piedoso eclesiástico da igreja escocesa, surgiu no centro da
Europa por volta da metade do oitavo século como um pregador das doutrinas
evangélicas. A História fala dele como um ousado e destemido defensor da
autoridade da Palavra de Deus, em oposição a Bonifácio, paladino da tradição e
decisões dos concílios. Algo que pode lançar luz sobre a condição da cristandade
e sobre a história da igreja é ver esses dois missionários como representantes de
dois sistemas: ou seja, a grande organização humana de Roma, e o cristianismo
bíblico remanescente da Escócia.
Alarmado pela audácia de Clemente, Bonifácio, então arcebispo das
igrejas germânicas, resolveu se opor a ele. Ele confrontou o escocês com as leis
396 I A
H
is t ó r ia d a
I g r e ja - capítulo 17
da igreja romana, as decisões de vários concílios, e os escritos dos mais ilustres
pais da igreja latina. Clemente replicou que nenhuma lei da igreja, nenhuma
decisão de concílio ou escritos dos Pais que sejam contrários às Santas Escrituras
têm qualquer autoridade sobre os cristãos. Bonifácio então apelou à invencível
unidade da igreja católica com seu papa, bispos, sacerdotes, etc., porém seu
oponente sustentou que a noiva de Jesus Cristo somente pode ser encontrada
onde o Espírito Santo habita.
Bonifácio ficou perplexo. Recursos legítimos haviam falhado; a estupidez
seria usada. Clemente foi condenado como herético por um concílio reunido em
Soissons, em março de 744 d.C.. Mais tarde foi enviado a Roma sob escolta.
Depois disso sua história é incerta, mas é fácil conjeturar qual foi seu destino.
Alguns dizem que Clemente defendia estranhas noções relativas à
descida do Senhor ao Hades, à questão do casamento, à predestinação, mas
pouca confiança pode ser colocada nas declarações de seus inimigos. Bonifácio
apareceu na corte como seu adversário, acusador e juiz. Melhor é esperarmos
que ele tenha sido um verdadeiro representante da antiga fé de sua pátria. Mas
não imaginemos que Clemente era o único que se manifestou nos embates
contra os missionários romanos deste período de nossa história. De tempos em
tempos encontramos tais baluartes da verdade testificando abertamente contra
as pretensões de Roma. Certos escoceses, que se proclamavam bispos, foram
condenados em um concílio em Chalons, no ano 813 d.C.. As formas clericais
tomaram o lugar da Palavra de Deus, e os iluminados e fiéis eram condenados
como hereges.
João Escoto Erígena, um nativo da Irlanda, que passou a maior parte de
sua vida na França, na corte de Carlos, o Calvo, é considerado por Hallam o mais
notável homem da era medieval, no sentido literário e filosófico. Ele era mais um
filósofo que propriamente um teólogo, embora tenha escrito basicamente sobre
assuntos religiosos, e ao que parece, tenha feito parte de alguma ordem do clero.
Ele estudou os primeiros Pais e a filosofia platônica, sendo bastante inclinado
à racionalidade humana, mesmo no acolhimento da verdade divina. Mas, de
acordo com DAubigne, talvez houvesse uma piedade real em seu coração. João
suplicou: “O, Senhor Jesus, não peço outra bênção de Ti, além de entender, sem
mistura com as teorias enganosas, a Palavra que Tu inspiraste pelo teu Santo
Espírito! Mostra-Te para os que buscam por Ti somente”. SupÕe-se que tenha
morrido em 852 d.C..
Os clérigos irlandeses no oitavo século possuíam uma erudição tão elevada
que os literatos convidados por Carlos Magno para integrar sua corte provinham,
em sua maioria, da Irlanda. Até o tempo de Henrique II, rei da Inglaterra, a
igreja da Irlanda continuava a declarar sua independência de Roma, e a manter
E u ro p a
(814 d.C. - 1.000 d.C.)
| 397
sua posição como um ramo ativo, vivo da igreja de Cristo, e a não reconhecer
nenhuma cabeça humana. A partir de então, a igreja irlandesa original, bem
como sua alta reputação, desapareceu por completo.
Os
N ó r d ic o s
Se não acreditássemos que esses poderosos inimigos do cristianismo - os
nórdicos ou piratas da região norte - foram instrumentos nas mãos de Deus
para a punição da apóstata igreja de Roma, não estaria em nossos planos apre­
sentá-los. Mas eles surgem quase como o julgamento de Deus sobre o crescente
mundanismo da cada ordem do sacerdócio católico, e por isso lhes faremos uma
breve menção.
Originalmente, eles provinham das costas do mar Báltico, da Dinamarca,
Noruega e Suécia. E provável que fossem uma mescla de godos, suecos, dina­
marqueses, noruegueses e frísios. Porém, apesar de compostos por tantas tribos
diferentes, eram unânimes quanto ao principal objetivo: saquear e matar. Seus
mesquinhos reis e os chefes das tribos eram piratas experientes, os mais ousados
que já infestaram os mares e costas da cristandade ocidental. Eles avançavam
com seus barcos leves rio acima até onde conseguiam, queimando, assassinando
e pilhando por onde passavam.
Milman diz: “Das costas do Báltico, das ilhas escandinavas, dos golfos e
lagos, as frotas deles partiam para onde a maré ou as tempestades os levassem.
Em suas embarcações rudimentares, eles pareciam desafiar os piores climas,
eram capazes de desembarcar nas mais inacessíveis praias, sempre encontrar
um caminho nas mais estreitas enseadas e nos rios mais rasos; nada, nem o
interior das nações, estava a salvo do aparecimento repentino desses impiedosos
selvagens”. Eles foram chamados de “os árabes do mar”, mas não empreende­
ram nenhuma guerra religiosa, como os maometanos. Eram pagãos ferozes, e
tais como eles mesmos, seus deuses eram guerreiros e piratas. Pilhagem, e não a
propagação da fé, era a meta desses povos. Não havia diferença entre o castelo e
o monastério, o senhor, o nobre, o bispo, o monge; todos representavam somente
uma bela recompensa a ser obtida. Os territórios religiosos, especialmente na
França, eram os que mais sofriam. A riqueza e a condição desprotegida dos
monastérios os tornavam os alvos preferidos de seus ataques.
O dia da retribuição chegara. A mão de Deus pesava sobre aqueles que se
intitulavam povo de Deus. Sua ira parecia arder. A igreja agora tinha de pagar
caro por sua grandeza e glórias mundanas. Tais coisas haviam sido o objetivo
dela por séculos, e Carlos Magno elevou o clero aos píncaros da riqueza e honra
do mundo. No entanto, mal o clero havia se sentado em seus palácios, a maré da
398 I A
H i s t ó r i a d a I g r e j a - capítulo 17
invasão bárbara começou para devastar o império, e assolar os edifícios religiosos.
Quanto mais rico o abade, mais tentadora a presa; e mais impiedosa a espada do
bárbaro. Ignorantes às diversas hierarquias do clero, os nórdicos massacravam
indiscriminadamente. Fogo e espada eram suas armas permanentes. “A França
ficou coberta de monges e bispos fugindo de seus claustros arruinados, de
seus monastérios queimados, de suas igrejas desoladas, e carregando consigo as
preciosas relíquias de seus santos, aprofundando o pânico universal, e pregando
o desespero por onde passavam.”
A fim de obter a paz com os normandos, que abriram caminho pelo Sena
e por dois anos sitiaram a cidade de Paris, o rei da França Carlos, o Simples,
cedeu o ducado da Normandia a Rolo, o líder deles, em 905 d.C.. Assim, o
pirata do Báltico assumiu a religião cristã, se tornou o primeiro Duque da
Normandia, e um dos doze nobres associados da França. William, conquistador
da Inglaterra em 1066 d.C., foi o 70? duque da Normandia.
A Inglaterra, como a França, foi grandemente atormentada e devastada
pelos nórdicos. O primeiro ataque, bastante severo, aconteceu por volta do ano
830 d.C.. E a partir de então, as invasões eram constantes. E ali, também como
na França, eles encontraram os melhores tesouros nos desprotegidos monastérios.
Os santuários foram arruinados pelo fogo e pela espada. Por fim, após a vitória
conquistada por Alfredo sobre Guthrum em 878 d.C., um grande território
foi cedido aos dinamarqueses no leste da Inglaterra, com a condição de se
converterem ao cristianismo, e viverem sob as mesmas leis dos habitantes nativos.
Mas esta paz, obtida dessa maneira, durou pouco tempo.129
O S u p o s t o F im
do
M undo
Nenhum período da história da igreja, ou talvez nenhuma história de
nenhuma nação, apresentou um quadro mais escuro que a Europa cristã do
final do século X. A degradação do papado, o estado de corrupção interna da
igreja, o número e o poder dos inimigos externos ameaçavam derrotá-la comple­
tamente. Além dos incrédulos maometanos no Oriente, e dos pagãos nórdicos
no Ocidente, um novo inimigo - os húngaros - irrompeu de surpresa sobre a
cristandade. Na forte linguagem da História, eles são descritos como hordas de
selvagens, ou bestas-feras, pairando sobre a humanidade. A origem deles é desco­
nhecida, mas sua quantidade parecia inesgotável. O massacre indiscriminado era
sua única lei bélica: a civilização e o cristianismo murchavam diante da marcha
desoladora deste povo, e toda a humanidade estava em pânico.
129 R ob ertso n , v o lu m e 2.
E u ro p a
(814 d.C. - 1.000 d.C.) I 399
Além dessas espantosas calamidades, a fome prevalecia, trazendo em seu
rastro ; • praga e a pestilência. Supostamente, os mais alarmantes sinais eram
vistos n o sol e na lua. A predição do Senhor parecia se cumprir: “Haverá sinais
no sol e na lua e nas estrelas; e na terra angústia das nações, em perplexidade pelo
bramido do mar e das ondas. Homens desmaiando de terror, na expectação das
coisas que sobrevirão ao mundo; porquanto as virtudes do céu serão abaladas.
E então verão vir o Filho do homem numa nuvem, com poder e grande glória”
(Lucas 21:25-27).
Aquele foi um período em que os homens certamente podiam ser
perdoados por acreditar que o fim do mundo havia chegado. O clero pregava
isso; as pessoas criam nisso, e tal conceito rapidamente se espalhou pela Europa.
Foi abertamente declarado que o mundo chegaria ao fim quando os mil anos
do nascimento do Senhor expirassem. A partir de 960 d.C., o pânico começou
a aumentar, mas considerava-se que o ano de 999 d.C., seria o último ano que a
humanidade veria. Esse engano generalizado, sob o poder de Satanás, baseava-se
em uma interpretação falsa e em um entendimento incorreto da profecia
concernente ao reinado dos santos com Cristo por mil anos. “Bem aventurado e
santo aquele que tem parte na primeira ressurreição; sobre estes não tem poder
a segunda morte; mas serão sacerdotes de Deus e de Cristo, e reinarão com ele
mil anos” (Apocalipse 20:1-7).
O A no
do
T erro r
Os cuidados e ocupações normais desta vida foram abandonados. A terra
não foi cultivada, pois para que lavrar e semear, se ninguém seria deixado para
colher? As casas não foram mantidas, pois para que construir, ou consertar, para
que se preocupar com questões de propriedade, quando em poucos meses todas
as coisas terrenas estariam acabadas? A História foi negligenciada, pois para que
registrar os eventos quando não haveria nenhuma posteridade para lê-los? O
rico, o nobre, os príncipes, os bispos abandonaram seus amigos e familiares, e
correram para a Palestina, na convicção de que o monte Sião seria o trono de
Cristo quando Ele descesse para julgar o mundo. Grandes quantias de dinheiro
foram dadas às igrejas e monastérios, na esperança de assegurar aos doadores
uma sentença mais favorável do supremo Juiz. Reis e imperadores imploravam
às portas dos monastérios para serem admitidos como irmãos da santa ordem;
multidões de pessoas comuns dormiam nos pórticos, ou pelo menos nos
arredores, dos edifícios sagrados.
400 I A
H i s t ó r i a d a I g r e j a - capítulo 17
Porém, nesse meio-tempo, as multidões tinham de ser alimentadas. O
último dia dos mil anos ainda não havia chegado. Não havia comida, os grãos
e o gado foram consumidos totalmente, e nenhuma provisão se fizera para o
futuro. Os atos mais terríveis e extremos foram cometidos, revoltantes demais
para serem repetidos aqui. E o dia do juízo final se aproximava cada vez mais.
Por fim, o último anoitecer dos mil anos chegou: uma noite de insônia para
toda a Europa! A imaginação pode completar o lúgubre cenário. Mas em lugar
de uma extraordinária convulsão geral, que todos temiam, a noite passou assim
como outras passaram, e na manhã seguinte o sol emitiu seus raios tão tran­
quilamente como sempre. As multidões, surpresas e aliviadas, começaram a
retornar para seus lares, a consertar suas casas, a lavrar, semear, e a retomar suas
ocupações anteriores.
Assim se encerraram os primeiros mil anos da história da igreja; o dia mais
tenebroso no reinado de Jezabel, e nos anais da cristandade.
A
H
istória
Este não é um mero um livro sobre a história do cristianismo. O autor
vai além do fato histórico para destilar lições morais e espirituais relevantes
dos personagens, lugares e eventos. O leitor é conectado com a pessoa de
Cristo e com a Palavra de Deus. O texto é enriquecido com a verdade bíblica
de m odo a proporcionar bênçãos para a alma.
Em todo lugar, e em todas as épocas, o Deus soberano sempre dispensou
tem os cuidados aos seus entes queridos. A luz do testemunho divino por
vezes parecia apagar, quando um novo vento de sua misericórdia insuflava
novamente a fé, a coragem e a obediência. O transcorrer da história repetidas
vezes confirmou que “o sangue dos mártires é a semente da Igreja” .
Caso você nunca se interessou pelo assunto, deixe-se encorajar pelo
maravilhoso testemunho da graça divina dispensada a vasos de barro
semelhantes a nós!
w w w .b o asem ente .co m .b r

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