Entrevista - Euclides da Cunha

Transcrição

Entrevista - Euclides da Cunha
E n t r e v i s ta
Uma vanguarda centenária
Ge o rge Po pes c u
Revista Brasileira
– Como o senhor interpreta o quadro atual
Poeta, escritor,
ensaísta, tradutor
professor da
Faculdade de
Letras da
Universidade
de Craiova.
da literatura romena?
George Popescu – Depois da queda do regime autoritário de
Ceauşescu, a literatura romena expôs, junto a toda a sociedade, um
momento de grande confusão: um forte sentimento de liberdade
que os protagonistas – artistas em geral – haviam sonhado levou,
de um lado, a uma negação acrobática das obras e personalidades
daquela época e, de outro lado, à chegada de jovens artistas, da
década de 1990, em busca de novos estilos literários, em especial na poesia. Criou-se um caso especial em torno da “literatura
de gaveta”: esperava-se, ainda nos debates subversivos dos anos
1970-1980, que existissem manuscritos, obras-primas, escritos
para uma época ulterior, com a (im)provável queda do regime.
Na realidade o fenômeno infelizmente não se confirmou em nível
das expectativas, entre poucos nomes e pouca produção, mas há
o exemplo de dois livros-documento: um, O diário da felicidade, de
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George Popescu
Nicolae Steinhardt, e O diário de um diarista sem diário, do meu mestre e amigo
Ion Sîrbu.
O interessante é que os dois autores foram vítima do regime autoritário
nos anos 1950-1960, e morreram pouco antes do fim da ditadura. Também
foram publicados outros livros, testemunhos do que os autores tiveram que
enfrentar pela sua liberdade de expressão, embora tenha sido pouco, em relação ao que se esperava: algumas coletâneas de poemas de autores já famosos
(como Marin Sorescu, que publicou um livro com o título Poesia escolhida pela
censura), e algumas reedições de romances até então considerados “completos”, mas agora com fragmentos, páginas, capítulos etc. que haviam sido excluídos pela censura.
RB – Uma nova literatura e outros desafios?
GP – Não há dúvida. Mas com diversas passagens, como a do escritor Paul
Goma, que representou um “verdadeiro caso”, tendo ele sido preso político
por quase 20 anos. Depois da tentativa de agregar um movimento de resistência cultural aderindo à Carta de Praga, em 1977, ele se viu obrigado ao exílio
em Paris e teve o seu nome proibido; seus livros, escritos na Romênia e depois
na França, foram publicados no início da década de 1990. O fato de, embora
lido e admirado por alguns, ter sido ignorado pela maior parte da crítica, a
meu ver sugere um pouco daquela ambiguidade que marcou, às vezes de modo
dramático, a difícil passagem da condição (de escritor) na opressão à plena
liberdade. No entanto, o fenômeno mais impactante logo após dezembro de
1989 (o momento da derrota de Ceauşescu) foi um profícuo retorno à literatura do entreguerras, considerada unanimemente como a mais importante de
toda a história cultural do país. Assim se refez não apenas uma conexão tão
necessária e esperada em cinquenta anos de silêncio e de esquecimento, com
gravíssimas consequências para o desenvolvimento normal de uma literatura –
e de uma cultura –, que, com a generalização da década de 1930, passou a ser
conhecida e apreciada na Europa, na França, na Alemanha e também na Itália.
Trata-se da geração de Mircea Eliade, de E. M. Cioran, de Eugène Ionesco,
para lembrar apenas de grandes nomes. Mas deve-se acrescentar, ao lado deles,
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em lugares vários, formados, alguns deles, em Paris ou na Alemanha, como,
por exemplo, nos seminários de Heidegger. De resto, a literatura romena de
hoje, “condenada à liberdade”, para retomar uma fórmula sartriana, usufrui
e sofre do mesmo bem e do mesmo mal que a globalização lhe faz incidir em
seu corpo e por toda parte, seja na Europa, na América Latina ou em qualquer
lugar.
RB – Como a sua obra se insere nesse panorama?
GP – Quanto a mim, também me reconheço como um “caso”: tendo chegado
ainda adolescente às revistas literárias, não fui publicado por uma década, as
minhas propostas de poesia não estavam “alinhadas”, como se dizia; minha
primeira publicação saiu apenas em 1984. Mas eu a reneguei, não porque
não fosse minha, mas por ter feito um pequeno compromisso: rejeitada a
maior parte dos poemas, eu me pus a escrever, em uma só noite, cerca de
cinquenta poemas em “forma fixa” (era a sugestão da editora: o máximo que
ela entendia e aceitava com a sua “cultura” poética). Eu fiz isso um pouco de
gozação, mas, penso hoje, a verdadeira motivação havia chegado do grande
poeta e amigo Marin Sorescu, que me convenceu a fazer isso para que depois
eu tentasse publicar o livro censurado, que foi lançado em 1993, com o título nietzschiano A gaia ciência, e que considero minha verdadeira estreia. Mas
em todos aqueles anos eu me ocupei de crítica literária, sobretudo na revista
Ramuri, em Craiova, com Marin Sorescu como redator-chefe e onde também
fui redator. Deste modo, pouco a pouco, continuei a escrever e publicar poesia
e crítica literária.
RB – Sua nova edição de Blaga teve grande recepção dos leitores. Pode nos
dizer quanto Blaga atinge a sua obra?
GP – Lucian Blaga é uma das mais discutidas, controversas e espetaculares
personalidades da cultura romena do século XX. Poeta e pensador, igual e
principalmente estudioso, na década de 1910 em Viena, profundo kantiano
e, depois, antikantiano, nietzschiano, entre os primeiros leitores atentos e ao
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mesmo tempo, distante da exuberância do autor de Aurora, leitor atento de
Husserl, Bergson, Dilthey, grande fruidor dos filósofos da arte da Alemanha,
envolveu-se desde jovem com um projeto de dimensões e grandeza provocativas, a sistematização de um sistema filosófico (quando não se falava em
sistemas), radicado no magma da tradição romena, bastante antiga, aquela de
molde etnológico e sempre em confronto com as linhas mestras do pensamento europeu de seu tempo. No meu livro Lucian Blaga no paradigma da cultura
europeia busquei confrontar suas ideias com aquelas de Heidegger, em primeiro
lugar (cujo pensamento Blaga conhecia indubitavelmente, mesmo que tenha
deixado poucas referências), além de outras direções do pensamento posteriores, como Ricoeur, Derrida e Lévy-Strauss. E acima de tudo o pensamento
indiano e chinês, nos quais encontrava certa proximidade com a espiritualidade romena.
RB – Em que medida a vanguarda romena se faz presente, como chamada a
uma constante saúde criativa? Suas relações com a vanguarda, até que ponto
chegam e como se constroem?
GP – Ainda não conhecida em sua substância, a vanguarda histórica romena
esconde surpresas, fontes de riqueza com a qual a literatura universal teria
o que aprender. E não me refiro tanto aos nomes famosos (Tzara, Fondane,
Celan, sem jamais esquecer Brâncuşi, não apenas o artista genial, mas também
um exemplo de vida frugal, com um modo de pensar e de representar o mundo e a vida como um camponês romeno, do seu lugar de origem, próximo da
minha cidade), mas a tantos outros que permaneceram aqui, na Romênia, e
fizeram de seu gesto literário um verdadeiro desafio às convenções da moda.
Um caso seria aquele de Urmuz, funcionário legista, de origem humilde e
com uma vida anônima, que escreveu, nos primeiros anos do século XX,
poucas, mas densas páginas de prosa de um absurdo totalmente ionesquiano e
beckettiano. Gosto do forte retorno dos jovens literários, muitos de Craiova,
às experiências da vanguarda romena. Descobrem, com espanto, e só agora,
que a revolução aconteceu um século atrás. E espero – com certeza – que, com
este retorno, se retome nova e merecida chance para a literatura futura do meu
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que muito se fala e pouco se sabe.
RB – O senhor escreveu muitas vezes sobre a autenticidade como valor,
gesto ou categoria literária. Gostaria de ouvi-lo sobre isso...
GP – Exatamente diante da crise (de valores, temas, estilos, conteúdo etc.)
considero que o contexto de autenticidade poderia trazer sugestões para um
renascimento da escrita, religando-nos à tradição. Não se pode suprimir a
literatura universal como patrimônio íntimo da nossa humanidade; para mim,
a autenticidade não significa nem a descrição tal e qual da realidade cotidiana,
nem tampouco um jogo derrisório, do vazio existencial, como todo o tédio
que se encarna em uma sintaxe verbal. Na tradição romena, a geração de Eliade e Cioran preferiu elaborar uma estética que se reconhecia sob o nome de
“trairismo”, do verbo a trai, que significa viver. Para mim, a autenticidade deve
ser acrescentada à dimensão da escrita: o reconhecimento do autor no puro
ato de escrever, como actante, protagonista, deus-criador que quanto mais
se lança na matéria viva, mais se apercebe da instauração do ato de escrever,
tomado em si mesmo, como sua forma de estar no mundo.
RB – Com as nossas latinidades tão próximas e distantes, que perspectivas
podemos elaborar para uma agenda substancial voltada para o diálogo?
GP – Sempre retomo uma fórmula de Eliade, aquela gravada na fórmula da
“centralidade da margem”, neste caso, das margens. Eliade usava esta fórmula
para sublinhar que, nas várias religiões, aquilo que se apresenta em certo momento como margem (e marginal) busca tornar-se – e se torna também com o
tempo – centro. Depois, Claudio Magris explica, ele também, em seu famoso
ensaio sobre o império habsbúrgico, que, enquanto em Viena a libertinagem
estava a ponto de arruinar toda a glória do império, nas margens, na Romênia,
na Bucovina de Celan, e não apenas lá, como também na Trieste de Svevo,
aquilo que podia seguir como verdadeira e válida substância da tradição habsbúrgica continuava bem guardada. Eis por quê, diante de nossas culturas,
brasileira e romena, como extremos/margens da latinidade, a essência desta
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última conserva a melhor chance de ilustrar e restituir o que foi a substância
da grande e indispensável tradição da cultura clássica virgiliana e horaciana.
É verdade que a distância geográfica não nos ajuda, mas somos chamados a
empreendimentos mais corajosos, para um esforço de interconexão, ao menos
em nível cultural, que nos leve a um diálogo mais vivo, mais atento, aberto
às nossas aventuras culturais e espirituais que não são menos promissoras ou
menos importantes do que as outras.
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