instituto histórico e geográfico brasileiro - labimi

Transcrição

instituto histórico e geográfico brasileiro - labimi
Francesas no Rio de Janeiro: modernização e trabalho segundo o Almanak
Laemmert (1844-1861) 1
Lená Medeiros de Menezes
Corria o ano de 1858, quando Catharina Dazon – uma das modistas da rua do
Ouvidor -, proprietária de lojas de modas em Paris, Londres e Lyon, publlicou o
seguinte anúncio na Revista das Notabilidades, parte constituinte do
Almanak
Administrativo, Mercantil e Industrial editado por Eduardo e Henrique Laemmert:
CATHARIZA DAZON E FILHO
97 – RUA DO OUVIDOR _ 97
GRANDE SORTIMENTO DE SEDAS, CASSAS, CHITAS,
BAREGES, CAMISINHAS, SAHIDAS DE BAILE, CHALES,
RENDAS, CHAPÉOS DE SEDA, E DE PALHA, ENFEITES DE
CABEÇA
E TUDO O QUE COMPÕE
O TOILETTE DE UMA SENHORA
VESTIMENTAS PARA CRIANÇAS, BONÉS DE VELLUDO, DE
PANNO E DE PALHA PARA AS MESMAS. MEIAS DE SEDA,
DE LINHO, DE ALGODÃO FRANCEZAS E INGLEZAS
LUVAS DE TODAS AS QUALIDADES
FAZENDAS PARA LUTO
DEPOSITO DE LUVAS DE JOUVIN
O Rio de Janeiro dos anos cinqüenta já conhecia considerável desenvolvimento
urbano, graças aos lucros do café e ao fim do tráfico de escravos. O dinheiro que
circulava na cidade oferecia as condições necessárias ao desenvolvimento de comércio e
pressionava no sentido da importação dos produtos europeus.
Vestir-se na última moda de Londres ou Paris tornou-se um imprativo dos novos
tempos e aquele(a)s que produziam moda, os ícones de uma nova era, de sofisticação e
luxo.
1
Artigo publicado originalmente na Revista do IHGB, nº 423, abr/jun. 2004, pp.111-31, resultado de
pesquisa desenvolvida com o apoio do CNPq (Bolsa de Produtividade em Pesquisa) e da UERJ
(Prociência).
Quando os Dazon publicaram o anúncio faziam oito anos que o tráfico cessara,
36 que a Independência fora proclamada, 50 desde que a família real chegara ao Brasil e
43 do Congresso de Viena, que redesenhara o mapa da Europa, abafando, pelo menos
momentaneamente, o incêndio da revolução. Momento no qual a França, graças ao
gênio diplomático de Talleyrand, aproximava-se dos antigos inimigos, abrindo, assim,
caminho para a exportação de seus produtos para os outros continentes. Um desses
antigos inimigos era Portugal.
Já em julho de 1814, antes mesmo da queda definitiva de Napoleão, um acordo
provisional assinado entre os dois países garantiu a aproximação, passo importante para
que, findo o Congresso de Viena, a influência francesa colaborasse, em muito, para
moldar uma nova paisagem urbana no Rio de Janeiro do oitocentos.
Por portaria de Lisboa, datada de 19 de outubro de 1816, foram colocadas em
execução disposições constantes de documento firmado em 16 de setembro de 1815,
validando o acordo provisional de 1814. 2 Por ela, três artigos principais ficavam
consagrados:
Primeiro: os dois soberanos concederão, cada um nos seus
estados, aos embaixadores e agentes diplomáticos do outro
junto dele acrediados, as mesmas franquezas, e isenções de
direitos sobre o pé da mais perfeita reciprocidade. Segundo:
em conseqüência dos vínculos de amizade que unem as duas
nações; as relações de comércio são restabelecidas na mais
perfeita reciprocidade enquanto, por uma convenção, não
forem reguladas as condições particulares; os direitos de
porto, que houverem de pagar os navios mercantes, serão
recebidos em um e outro país no pé de uma perfeita
reciprocidade. Terceiro: os cônsules e vice-cônsules de cada
um dos dois soberanos gozarão nos estados do outro de todos
os privilégios, prerrogativas e jurisdição de que estavam na
posse em primeiro de janeiro de mil setecentos e noventa e e
dois. 3
2
O acordo de 1814 foi assinado pelo Conde de Palmela e pelo Príncipe Talleyrand, “Secretário de Estado
de Sua Majestade Cristianíssima el Rei Luiz XVIII”.
3
Publicado na Gazeta do Rio de Janeiro, nº 5, de 17 de janeiro de 1817. A grafia e a pontuação dos textos
de época foram atualizados para facilitar a leitura, sem que seu teor tenha sido prejudicado.
2
Com relação aos súditos de cada um dos dois Estados em questão, ficavam
também garantidas “vantagens e isenções sobre o pé da mais perfeita reciprocidade”,
permitindo, já em 1816, que a Gazeta do Rio de Janeiro trouxesse avisos de serviços
oferecidos por franceses e francesas na cidade, colocando ao alcance da mão das elites,
antigas e novas, produtos e serviços que faziam sucesso nas capitais européias:
Girard, cabelereiro de Sua Alteza e Senhora D. Carlota,
princesa do Brasil, de Sua Alteza Real, a princesa de Gales, e
de Sua Alteza Real, a duquesa de Angouleme, penteia as
senhoras na última moda de Paris e de Londres; corta o
cabelo aos homens e as senhoras; faz cabeleiras de homens e
senhoras, e tudo o que consiste na sua arte; tinge com os pós
de George com a última perfeição o cabelo, as sobrancelhas e
as suiças, sem causar dano algum à pele nem à roupa; e tem
uma pomada que faz crescer e aumentar o cabelo; água
maravilhosa de Mme Martin de Paris, para fazer a pele da cara
branca. Assiste à rua do Rosário, nº 11, ao lado esquerdo da
casa de pasto. 4
A linguagem da moda e da sofisticação chegava, assim, a uma cidade
provinciana e escravista que, repentinamente, em 1808, abrigara a Corte e, a partir de
sua presença, conhecera novos hábitos, recriando necessidades. As mudanças ocorridas
exigiram não só profissionais e produtos novos para atendimento às demandas criadas,
quanto possibilitaram o surgimento, ainda que incipiente, de uma economia de mercado,
ao mesmo tempo em que incentivaram a imigração. No caso francês, ainda que a França
nunca tenha se caracterizado como um país de emigração, este processo apresentou-se
como uma saída para homens e mulheres às voltas com crises recorrentes e sérias
questões sociais, 5 tão bem romanceadas por Hugo 6 e Sue. 7
4
Gazeta do Rio de Janeiro, nº 18, 2 de março de 1816. Avisos particulares.
Sucessivas crises econômicas sucederam-se na França do século XIX: 1816-1819, 1829-1833, 1847-48,
1855-56, 1861-62, 1867-68. O país conheceu greves violentas em 1840 e desemprego de massa em 1848,
quando mais da metade dos operários parisienses ficaram desempregados.
6
Principalmente em Les Misérables, obra baseada nos Annales d’Higiène de 1829.
7
Na obra Les Mystères de Paris, baseada em Mémoire sur les débardeurs de la ville de Paris, escrita por
Parent-Duchalet em 1830.
5
3
Estas crises pressionaram não só as migrações internas, na direção de Paris,
como impulsionaram a busca por melhores condições de vida em outros espaços.
Segundo Chevalier, não só a história da formação da população francesa durante a
primeira metade do século XIX foi, de fato, a história da imigração para Paris, como a
emigração jogou um papel que não pode ser negligenciado, permitindo um alívio da
pressão social. Por um lado, operários faziam seu “tour de France”, como artesãos, da
mesma forma que comerciantes tentavam fazer fortuna na França ou no estrangeiro.
Por volta de 1817, para o mesmo autor, teria aparecido aquilo que seria
continuamente reforçado ao longo do século: a atração dos mais jovens pelas profissões
mais rentáveis, mais bem pagas, menos penosas. Ou seja, aquelas que demandavam
menor esforço físico e retornos mais fáceis.
Em Paris do Segundo Império, o desenvolvimento econômico e as novas
disposições do mercado com relação ao comércio do luxo, aos negócios e à indústria
dos prazeres relegaram ao segundo plano o que o autor chama de “arrière-boutique”.
Em outras palavras, depreciaram o “labor artesanal” e o processo de produção dos
artigos que faziam a glória das boutiques de luxo instaladas na capital francesa, 8
depreciando, consequentemente, os ganhos de artesãos e artesãs. De atelier em atelier,
mulheres migraram em busca de melhores condições de trabalho e vida. Esgotadas as
possibilidades em terras francesas, elas deslocaram-se para outros países e continentes,
muitas delas já habituadas a complementarem a renda com o exercício da atividade
prostitucional.
Apesar da idéia de civilização no século XIX ter por referência a França, não
pode mos esquecer que o novecentos francês foi repleto de turbulências, tanto políticas
como econômicas, em um país que, segundo Pierre Miquel, tornara-se mais rural do que
8
e
Louis Chevalier. Classes laborieuses et classes dangereuses à Paris, pendant la première moitié du XIX
siècle. Paris: Hachette, 1984, p. 381.
4
nunca após as Guerras napoleônicas, com 75% dos franceses vivendo no campo, com
uma sobrevida das formas de produção tradicionais e com o enfrentamento de enormes
dificuldades cotidianas. 9 Nas cidades, principalmente em Paris, os flagelos da
prostituição e da indigência estavam por toda parte.
Apesar de tudo isto, a idéia da França como modelo de civilização firmou-se ao
longo do século e todos os ‘impulsos civilizatórios’ conhecidos pelo Rio de Janeiro
oitocentista foram pensados e escritos em francês.
O vestir-se à francesa” e o
“comportar-se à francesa”, como também o “amar à francesa” - e as francesas -,
passaram a ser ações identificadas com o refinamento dos costumes e com a adoção de
um ‘viver civilizado’.
Tudo isto colaborou para que a cidade do Rio de Janeiro, sede do poder
português a partir de 1808 e capital do Brasil desde 1822, pudesse se tornar uma
possibilidade de fuga às adversidades encontradas em França e uma esperança da tão
desejada promoção social. Os anúncios que se seguem, publicados na Gazeta do Rio de
Janeiro entre os anos de 1816 e 1819, permitem que se visualize o processo de invenção
da moda no Rio de Janeiro, alimentado por uma propaganda contínua das “maravilhas”
produzidas em França:
Carlos Durand, negociante francês, estabelecido nesta Corte,
rua do Ouvidor, nº 28, acaba de receber, pelos últimos navios
chegados da França um grande sortimento de objetos de
enfeites para senhoras ... 10
Em casa de Bellard, rua do Ouvidor, nº8, canto da rua
Direita, se acha um novo sortimento de falsa e verdadeira
bijouteria, chapéus para senhoras, livros franceses, vestidos e
enfeites da senhora modernos, cheiros em todos os gêneros,
pêndulos, espingardas, leques e, finalmente, um sortimento
de toda a qualidade de fazendas francesas. 11
9
70% dos recursos familiares eram gastos com a alimentação. Cf. Pierre Miquel. Histoire de la France de
Vercingétorix à Charles de Gaulle. Paris: Librairie Arthème Fayard, 1976, p. 319
10
Idem, nº 63, 7 de agosto de 1816. Avisos particulares.
11
Idem, nº 91, 13 de novembro de 1816. Avisos particulares.
5
Gudin, alfaiate de Paris, morador da rua do Rosário, nº 34,
tem uma porção de vestidos de corte de veludo de diversas
cores, e também de pano azul bordados de ouro, que lhe
chegaram na última embarcação vinda da França. 12
No armazém da modista francesa, na rua dos Ourives entre a
do Rosario e do Ouvidor nº 66, se acha um sortimento de
flores, plumas, fitas, bordados, chapéus para senhoras & c, o
mais rico, mais lindo, e mais moderno que se pode desejar.
Como esta casa recebe diretamente estes gêneros das
melhores fábricas de Paris, aí podem concorrer os
compradores na certeza de que lhes ficarão por muito mais
cômodo preço, do que em qualquer outra parte. 13
Consagrada a moda como o sinal dos novos tempos, negociantes de fazendas,
perfumes e “quinquilharias”, cabelereiros, alfaites e modistas de várias especialidades
passaram a chegar à cidade. Para Manuel de Macedo, desde 1822, nenhuma senhora
fluminense se prestou mais “a ir a saraus, a casamentos, a batizados, a festas e reuniões
sem levar vestido cortado e feito por modista francesa da rua do Ouvidor”. Daí, as
“senhoras elegantes logo se darem interesse e gosto ao estudo da língua francesa” 14 e,
com esta, parafraseando Leclerc em Cartas do Brasil, criava hábitos franceses, que
provocavam a aquisição dos produtos franceses, pois “quem fala[va] francês torna[va]se cliente da França”.
Para cidades como o Rio de Janeiro, o processo de modernização ocorrido ao
longo dos oitocentos, representou a inserção no “mundo civilizado”,
a partir da
reprodução dos padrões europeus, tanto no cotidiano do ser como nas possibilidades do
estar. Tempos de mudança que se inseriram no contexto do avanço do capitalismo e na
apologia de uma nova vida, que no Brasil foram marcados pelo processo de superação
do escravismo, embora não possamos esquecer que mitos franceses estabelecidos na
cidade conviveram, perfeitamente, com o trabalho escravo, tendo, eles mesmos, seus
12
Idem, nº 28, 5 de abril de 1817. Avisos particulares.
Idem, nº 19, 6 de março de 1819. Avisos particulares.
14
Joaquim Manuel de Macedo. Memórias da rua do Ouvidor. Brasília: Ed. UNB, 1988, p. 76
13
6
próprios cativos, como Ambrosio Bourdon, que, em 1816, manda publicar aviso
oferecendo gratificação pela captura de um escravo de nome José:
Quem souber de um moleque novo, por nome José, nação
congo, que desapareceu da casa de Ambrosio Bourdon, boa
estatura e bem feito, com sinal de quatro dedos no pé
esquerdo, e o quizer restituir, receberá alviçaras. 15
Conforme o século avança, de forma paulatina ou, em alguns casos, de forma
mais ou menos abrupta, alguns ofícios urbanos passam das mãos escravas para as mãos
dos imigrantes. No caso das francesas, o processo não seria muito diferente. Os ofícios
por elas exercidos tinham, ao mesmo tempo, uma faceta de modernidade, mas
representavam, de alguma forma, substituição de tarefas anteriormente executadas por
escravas, mantendo-se, no contexto da modernidade, como funções tradicionalmente
femininas, caso não só dos trabalhos de corte e costura (ainda que em novas dimensões
e patamares), como com relação às lavadeiras e engomadeiras (ainda que, neste caso, de
roupa fina) e às parteiras.
O Almanak Laemmert, que passou a circular a partir de 1844, permite-nos travar
contato com este processo de mudança e desenvolvimento urbanos, bem como constatar
a reinvenção de novas formas de viver, com a moda desempenhando papel de destaque
em hábitos reinventados. Permite também perceber como a consagração de novas
necessidades de consumo aprofundou a inserção do Rio de Janeiro em um mercado que
se integrava mundialmente, graças ao desenvolvimento dos transportes e da indústria.
Com base nas relações nominais publicadas pelo Almanak, nos campos do
comércio, da indústria e das atividades profissionais, é possível acompanhar processos
verdadeiramente fascinantes. Dentre eles, a redescoberta das ruas a partir da chegada da
Corte e, principalmente, sua reinvenção a partir do fim do tráfico (1850 e 1854) e da
15
Gazeta do Rio de Janeiro, nº 92, 16 de novembro de 1816. Avisos particulares .
7
expansão
da
lavoura
cafeeira
em
terras
fluminenses, 16
quando
aumentou
significativamente o número de lojas comerciais, cafés, confeitarias, casas de pasto e
hotéis.
Mesmo se considerarmos os limites das relações publicadas no Laemmert, que
não nos informam sobre idade, estado civil, ano de chegada ao país ou nacionalidade, os
quantitativos que podem ser extraídos dos dados apresentados são consideráveis. Em
termos de crescimento comercial, por exemplo, nos permite verificar que, em 1844,
estão registradas 86 lojas de fazendas secas, 15 de modas francesas, 15 de calçados, 14
de louças e vidros, 14 as de chá e 35 de víveres de secos e molhados. Em 1861, estes
números atingiriam 193 lojas de fazendas secas, 54 de modas francesas, 55 de calçado,
59 de louças e vidros, 45 de chá, e 190 de víveres de secos e molhados.
O exemplo dos hotéis, indicando a expansão no movimento do porto como
“janela para o mundo”, as migrações internas e a circulação internacional, mostra-se,
ainda, mais significativa. Em finais dos setecentos, Sir G. Staunton, dentre outros,
afirmava que os visitantes que passavam pelo Rio de Janeiro não podiam “contar com
albergues, hotéis ou qualquer outro tipo de alojamento”, não dispondo, tampouco, de
algum tipo de divertimento, a não ser uma espécie de taverna situada no lado direito da
praça principal.” 17 No ano de 1844, primeiro ano em que circulou o Laemmert, os
hotéis relacionados no almanaque já eram nove. 18 Seis anos depois já eram 15. Em
16
O café foi comercializado com êxito em fins do século XVIII na província do Rio de Janeiro. Em 1830
ele já tem alguma visibilidade e, entre 1830 e 1840, a província torna-se o prncipal centro de cultivo no
Brasil e o porto do Rio de Janeiro projeta-se como centro exportador e portão de encontro com o
comércio mundial, com a proliferação de bancos, corretoras, casas comerciais (atacado e varejo). Ver,
dentre outros, Thomas skidmore. Uma história do Brasil. 2ª ed. São Paulo: paz e Terra, 1998.
17
Sir G. Staunton. Apud: Jean Marcel Carvalho França (org.). Visões do Rio de Janeiro Colonial. Rio de
Janeiro, EDUERJ/José Olympio, 1999, p. 199.
18
Almanak Administrativo Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro para o anno bissexto de 1844. Rio de
Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert, 1843.
8
1855, eles eram 16 e finalmente, em 1861, atingiam o total de 58 estabelecimentod do
gênero. 19
Em progressão continuamente ascendente, cresceram, também, os registros
referentes a casas de pasto (8 em 1844 e 102 em 1861), cafés (6 em 1844 e 30 em 1861)
e confeitarias (9 em 1844 e 33 em 1861), desmonstrando a pressão exercida pela
circulação de negociantes, fazendeiros e trabalhadores na cidade. Em termos de vida
cultural, entretanto, pelo menos até meados do século, o crescimento mostrou-se muito
mais tímido. Os registros de livrarias cresceram apenas de 10 a 17 no mesmo período e
o número de teatros existentes, alcançou apenas o total de quatro casas em 1861.
Quanto às diversões de gosto mais popular, deve ser ressaltado que, no ano
de1959, foi aberto o Alcazar Lirique, 20 cinco anos depois do início da iluminação a gás
e quatro anos após o surgimento do primeiro estabelecimento do gênero em Paris.
Segundo Barreto Filho e Hermeto Lima, a inauguração do Alcazar representou
um marco na história do Rio de Janeiro, influindo “profundamente na transformação
dos hábitos pacatos da cidade, instituindo o que até então era desconhecido dos cariocas
– a vida noturna ou, no dizer de Macedo, “venenosa planta francesa que veio medrar e
propagar-se tanto na cidade do Rio de Janeiro.” 21
Iniciaram-se, assim, tempos nos quais os prazeres da noite eclodiram na cidade,
não só com a introdução do gênero alegre de “sabor francês”, como também com a
inauguração dos conventilhos, das pensões alegres e a inserção do Rio no tráfico
19
Almanak Administrativo Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro (anos de 1850,
1855 e 1860). Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert.
20
O Alcazar Lirique trouxe para o Rio de Janeiro um novo tipo de espetáculo: o de variedades, batizado
pelos cariocas de “café-cantante”. Esse gênero de espetáculo surgiu em Paris em 1855, com a inauguração
do teatro “des Bouffes-parisiens”, ligado à figura de Offenbach.
21
Mello Barreto Filho e Hermeto Lima. História da polícia do Rio de Janeiro. Aspectos da cidade e da
ida carioca 1870-89. Rio de Janeiro: A Noite, 1942, p. 218.
9
internacional de brancas, com as européias substituindo as escravas como instrumentos
do prazer masculino. 22
Não só no espaço da marginalidade, porém, isto ocorreu, também no espaço da
formalidade, a medida que o século avançou, imigrantes substituíram os escravos e seus
pregões no comércio a varejo da cidade. 23 A partir das listagens de negociantes,
produtores e profissionais diversos publicadas no Laemmert, torna-se visível a
concomitância entre a inserção dos estrangeiros e das estrangeiras nos (a)fazeres
urbanos e o processo gradativo da abolição, com a participação impactante das
francesas francesas na vida da cidade.
A consulta ao almanaque demonstra, por exemplo, como elas dominaram
determinados ramos do produção e do comércio urbanos, formando verdadeiros nichos
de mercado, monopolizando, nesse processo, todo o comércio da moda e de seu
entorno. Tornadas ícones do “processo civilizatório” vivido pela cidade, as tarefas que
elas desenvolviam, embora fossem absoluta novidade, em sua essência, representavam,
sob novos parâmetos, a reprodução de fazeres e afazeres tradicionalmente femininos,
revestidos de uma modernidade que incluía processos de reinvenção no vestir-se e no
enfeitar-se. Sua presença nas ruas, lojas e oficinas, entretanto, tinham um quê de desafio
e ousadia que, a um só tempo, assustava e fascinava os contemporâneos, em uma cidade
na qual as mulheres livres até muito recentemente pouco circulavam nas ruas, exceto
nas ocasiões de festas, procissões e récitas.
Travar contato com as listagens apresentadas no Almanalk representa muitas
possibilidades de encontros com o passado. Dentre eles, com a rua do Ouvidor e com as
22
Sobre o assunto, ver, entre outros: Lená Medeiros de Menezes. O Rio de Janeiro e o comércio
internacional do prazer. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992. (Prêmio Arquivo Nacional de Pesquisa,
2); Lená Medeiros de Menezes. Os Indesejáveis. Protesto, Crime e Expulsão na Capital Federal (18901930). Rio de Janeiro: EDUERJ, 1997. , 2); Margareth Rago. Os prazeres da noite. Prostituição e códigos
de sexualidade feminina em São Paulo (1890-1930). São Paulo: Paz e Terra, 1991.
23
A lei Eusébio de Queirós de 1850, pondo fim ao tráfico e impondo o afastamento do escravo da cidade
para o campo e do litoral para o interior, intensificou esse processo de substituição de mãos-de-obra.
10
modistas francesas que a imortalizaram, a ponto de Koseritz afirmar que “o Rio de
Janeiro [era] o Brasil e a rua do Ouvidor [era] o Rio de Janeiro”. 24 Ainda que nem todas
as que se intitulavam madames fossem necessariamente francesas, o número destas
últimas dava o tom da chegada de novos tempos à cidade, ainda que o “vestir-se à
francesa” já fosse realidade para as elites portuguesas e brasileiras desde os setecentos,
conforme demonstra manuscrito da Biblioteca da Ajuda, datado de 1751:
Quase todo o comércio do Brasil depende dos produtos
vindos da Europa. O comércio de produtos de luxo é
infinitamente mais significativo. Importa-se de tudo: estofos
bordados a ouro e prata, galões, peças de seda, belos tecidos,
telas finas e uma série de outras mercadorias da moda,
produzidas, na sua maoria, pelas manufaturas francesas. Uma
vez por ano, entre os meses de setembro e outubro, Lisboa
envia para a sua colônia sob escolta de três navios de guerra,
uma frota carregada com os produtos referidos. 25
De qualquer forma, no Rio de Janeiro dos oitocentos, pelo menos no tocante “às
exterioridades”, modas e costumes começaram a se rcopiados como forma de eliminar
os distanciamentos com o mundo civilizado. A tendência manifesta da preferência pelos
produtos franceses, neste contexto, projeta-se como uma das explicações do porquê de
em 1814, pouquíssimos anos após a França ter sido considerada nação inimiga de
Portugal, os dois países reabriram as negociações para que esta condição passasse a ser
coisa do passado.
A reabertura das relações comerciais entre os dois países possibilitou que não
somente chegassem os produtos de luxo da indústria francesa, mas também homens e
mulheres dispostos a buscar novas oportunidades de trabalho e vida, fugindo ao
conturbado século XIX francês, marcado por reviravoltas políticas, crises recorrentes,
concorrência no mercado de trabalho das grandes cidades e aos baixos salários,
principalmente os pagos às mulheres.
24
Carl von Koseritz. Imagens do Brasil, p. 31.
11
Nem todas as francesas que chegaram ao Rio de Janeiro eram modistas, mas a
maioria dos ofícios por elas abraçados, de uma forma ou de outra, estava ligado ao
universo da moda e ao trabalho artístico com tesoura, agulha e linha. 26 Por outro lado,
nem todas as modistas esgotavam seu trabalho na confeção de vestidos, tendo em vista
que a indústria da moda incluía especialidades voltadas para a produção de roupas
brancas, coletes, lingerie e uma gama considerável de acessórios. Desta forma, a
consulta às listas publicadas pelo Laemmert permitem o contato com costureirasmodistas, mas também com fabricantes de coletes, de camisas, de chapéus e de flores,
proprietárias de lojas (de bordados e rendas, de brinquedos, de meias, de sapatos para
mulheres e crianças), e, para além do mundo da moda, com professoras, parteiras,
enfermeiras, proprietárias de colégios de meninas, donas de cafés e de hotéis.
Entre 1844 e 1861, uma amostra de 289 mulheres francesas relacionadas no
Laemmert, 27 nos itens referentes ao comércio e à indústria e/ou nas relações
profissionais nos dá a dimensão daquilo que estas mulheres significaram na vida da
cidade. Indubitavelmente, a maioria esmagadora era formada por profissionais ligadas à
produção da moda. Ou seja, eram “parisienses sem Paris”, no dizer de Joaquim de
Macedo. 28 Estas mulheres atingem o percentual de 61,59% da amostra,
Estas produtoras de moda encontram-se presentes em duas listagens principais: a
das proprietárias de lojas de modas e fazendas francesas e a das costureiras-modistas
25
Anônimo. “Relâche du vaisseau L’Arc-en-ciel à Rio de Janeiro”. Lisboa: manuscrito da Biblioteca da
Ajuda, 54 – XIII – 4, nº 19. Apud: Jean Marcel Carvalho França. Op. cit., p. 84.
26
A primeira oficina a utilizar a máquina de costura apareceu no ano de 1855 e pertencia a Mlle Besse &
C., localizando-se à rua do Cano, nº 64. Cf. Almanak Laemmert para o ano de 1855, relação das
costureiras-modistas.
27
Foram computadas aquelas que tinham nomes indubitavelmente franceses, tendo em vista que o
registro de madame antes do nome não era garantia de nacionalidade, registro que ele se tornou de
sucesso, em uma cidade que tinha na França o referencial principal de civilização. Esta opção,
certamente, implica em uma margem de erro para menos, tendo em vista, em acréscimo, que a tendência à
tradução dos prenomes prejudica a caracterização da nacionalidade sempre que o sobrenome está omitido,
o que também ocorre com aquelas que, casadas, assumem o sobrenome de um marido não francês. Isto,
entretanto, não compromete o trabalho e as conclusões enunciadas, visto a amostra trabalhada ser
significativa e indicar algumas tendências muito claras.
28
Manuel J. M. de. Op. cit., p. 72
12
que, por razões óbvias - tendo em vista a reprodução, no Rio de Janeiro, do modelo da
oficina, não eram excludentes. 29 Outras listagens nas quais as francesas podem ser
encontradas são as referentes a determinados ramos comerciais (bordados e rendas,
meias, sapatos para senhoras e crianças, brinquedos, hotéis, confeitarias e cafés); às
fábricas de coletes, camisas e flores, aos colégios de meninas, ou a determinadas
profissões, como parteiras, enfermeiras, cabelereiras e entrançadoras de cabelos.
No caso das modistas proprietárias de lojas de modas, foi comum a criação de
firmas que empregavam outras mulheres (modelo típico do atelier de costura ajustado às
novas disposições organizativas), isentando a proprietária das tarefas mais trabalhosas.
Algumas lojas de modas transformaram-se em verdadeiros entrepostos de produtos
variados, manifestando uma vocação comercial ampliada.
Não foram poucas as mulheres que conseguiram sucesso, fixando-se, de forma
mais definitiva na cidade, nela terminando seus dias ou retornando à França após muitos
anos, de posse dos lucros obtidos, como mademoiselle, depois madame Joséphine, das
memórias de Joaquim de Macedo:
Mlle Joséphine foi a modista da primeira imperatriz do Brasil,
de todas as senhoras da corte” e, portanto, de quantas outras
senhoras tinham pais e maridos dispostos a pagar
frequentemente a habilidade e a fama da modista, cuja
tesoura de imperial predileção cortava cara e dasapiadamente.
Casou-se algum tempo depois. Rica e saudosa da França,
depois de longos anos de trabalho e economia deixou o Rio
de Janeiro. Na pátria, tomou o nome do marido, ficando
eclipsada e perdendo autonomia. 30
Várias outras tiveram passagens mais breves pela capital brasileira, optando por
buscar outros locais para a realização de seus objetivos ou voltando à terra natal.
Algumas, para encontrarem o caminho do sucesso associaram-se a colegas de profissão
29
Inicialmente, apenas lojas de modas francesas, classificação que incluía, quase sem exceção, madames
francesas e estabelecimentos situados na rua do Ouvidor. Posteriormente, em 1847, são incluídas na
mesma relação as lojas de modas e as lojas de fazendas francesas acarretando o crescimento no número
de comerciantes homens a uma participação menor de mulheres.
13
ou a familiares. Algumas trajetórias de insucesso, por outro lado, marcaram também a
época e não foram raras as que buscaram na prostituição o complemento de numerário,
razão da má fama das modistas da rua do Ouvidor. Estas histórias de insucesso, ainda
que não registradas no Almanak, podem ser rastreadas a partir de dados indiretos, como
mudanças de atividade, cutas passagens pela cidade, migrações de endereços e, nesse
caso, a rua do Louvidor era um parâmetro.
No conjunto daquelas que se tornaram afamadas e renomadas modistas da rua do
Ouvidor, várias trajetórias podem ser destacadas, dentre elas as de Mme Joséphine
Meunier, já citada, Mme Hortense Lacarrière e Mme S. Gudin.
Mme Joséphine Meunier exerceu suas atividades no Rio de
Janeiro durante 33 anos, entre os anos de 1820 e 1853, com
loja de modas estabelecida à rua do Ouvidor nº 97. De acordo
com aviso publicado na Gazeta do Rio de Janeiro, 31 sempre
recebia “novos sortimentos da França”, com os quais
fabricava moda para suas clientes. 32
Hortense Lacarrière já estava no Rio de Janeiro no ano de 1844, permanecendo
presente nas listagens do almanaque por 20 anos, de 1844 a 1864, em loja comercial
situada à rua do Ouvidor, 64 B e, posteriormente, no nº 68, chegando a ter “casa em
Paris”.
Mme Gudin também já estava estabelecida à rua do Ouvidor, nº 51 no ano de
1844, mudando, posteriormente, para o número 82, onde, em 1862 parece ter encerrado
suas atividades, a frente de da firma Mme Gudin e C. A chave de seu sucesso repousava
no fato de ser modista de suas altezas, as princesas imperiais. Seu estabelecimento
ultrapassou em muito o estágio de simples oficina de costuras para tornar-se local onde
podiam ser encontrados não apenas luxuosas fazendas, mas também os indispensáveis
acessórios e produtos de toucador. Tudo na “última moda de Paris”.
30
31
Manuel Joaquim de Macedo. Op. Cit., p. 104/105.
Gazeta do Rio de Janeiro, nº 32, 29 de abril de 1820. Avisos particulares.
14
Mulheres de sucesso também podem ser encontradas nas relações de fabricantes
de coletes, camisas e flores. No primeiro caso, exemplos significativos são os de Mme
Creten e Mme Eugénie Dol. No segundo caso, os de Mme Haugonte e Mme Fournel. No
terceiro caso, o de Mme Labbé.
Mme Creten e irmã eram camiseiras de S. M. O Imperador, conforme consta de
anúncio publicado na Revista das Notabilidades de 1860. Tendo iniciado seus negócios
em 1850, à rua dos Latoeiros, nº 81, permaneceram na atividade para além do ano de
1861, oferecendo em sua “Imperial fábrica de camisas para homens e enxovais para
noivas e crianças”:
Sortimento completo de camisas para homens, ceroulas,
camisolas de lã, peitos de camisas de todos os feitios, punhos
e babados postiços, gravatas brancas e de cor; [encarregandose] também de todas as costuras que pertencem à roupa
branca.
Com o passar dos anos, já estabelecidas à rua do Ouvidor, passaram a fornecer,
também, “todos os artigos necessários aos enxovais de noivas e crianças”, contando
“com hábil cortador de Paris” e recebendo “vestidos a fazer”. 33
Mme Eugénie Dol iniciou suas atividades em 1857, com “grande fábrica” situada
em sobrado da rua do Ouvidor, nº 107, onde permaneceu por 15 anos. Anunciando-se
como fabricante e/ou vendedora de “camisas de todas as qualidades”, prontificava-se a
aprontar “camisas de casamento e de baile em 12 horas”, oferecendo, ainda, aos
clientes:
Morins, linhos, cambraias, irlandas, meias para homens,
senhoras e crianças, ceroulas, lenços de mão, gravatas,
camisolas de peitos de camisa bordados e de fantasia,
lingeries para senhoras, enxovais para crianças, fustão,
musseline, bazin brilhante, nansouck, flanela, tiras bordadas,
entremeios, saias, camisas de senhoras, lisas e bordadas.
32
Madame Josephine Meunier aparece nas listas publicadas pelo Almanak Laemmert relativo aos anos de
1844 a 1853, sendo uma das modistas que durante mais tempo esteve em atividade na cidade.
33
Almanak 1860, Notabilidades, p. 47.
15
Tendo relações diretas com as principais fábricas destes artigos na Europa,
Eugénie Dol, segundo as propagandas que fazia publicar, “acha[va]-se em
circunstâncias de poder satisfazer perfeitamente a toda e qualquer encomenda,
garantindo a maior modicidade possível nos preços e a excelente qualidade dos artigos”
a todos aqueles que procurassem sua casa, denominada “Ao Trovador”. 34
Mais do que a de camisas, a fabricação de coletes apresentava-se como um
negócio altamente especializado e monopolizado, fazendo com que poucas as mulheres
a ele se dedicassem, pelo menos entre 1844 e 1861.
Mme Fournel. “Fornecedora de S. M. a Imperatriz”, foi uma das principais
fornecedoras de coletes na cidade. A partir de 1847, começou a aparecer nas listas do
Laemmert, tendo nelas permanecido ao longo de todo o tempo que se estendeu de 1844
a 1861, tendo deslocado sua loja da rua dos Ourives, para a rua do Ouvidor, nº 61,
embora sua fábrica permanecesse localizada à rua da Ajuda, nº 10.
Mme Haugonte era proprietária do “Ao Collete Preto” e iniciou suas atividades
em 1845, permanecendo na cidade do Rio de Janeiro por 30 anos. Dedicada à fabricação
de coletes, tinha fábrica à rua d’Ajuda, nº 73 e, como tantas outras, fazia-se anunciar
como fornecedora da Casa Imperial.
A fabricação de flores artificiais foi outro ramo, ainda que pequeno, de presença
marcante das francesas, 35 imortalizada nos relatos dos viajantes estrangeiros que
passava pela capital brasileira, que não se cansaram de tecer elogios à criatividade, à
delicadeza e à beleza dos artigos fabricados. Como nos dizem os pastores norteamericanos Kidder e Fletcher:
O Rio de Janeiro é o melhor mercado para esse gênero de
artigos. Nenhum enfeite excede em esplendor as flores feitas
com as penas do colo e do pescoço dos beija-flores (...)
Nessas lojas encontram-se também flores de escamas de
34
35
Idem, p. 46.
Entre 1844 e 1861 foram contabilizadas apenas 11 francesas no ramo.
16
peixe, outras feitas com asas de insetos, e alfinetes de peito
fabricados incrustando em ouro um pequeno besouro muito
brilhante. 36
Mme Finot, que compõe a relação de 1844 do Laemmert, era uma dessas
floristas. Estabelecida há tempos na cidade, permaneceu em atividades até o ano
de1847, com loja situada à rua do Ouvidor nº 103, ponto emblemático da especialidade,
tendo em vista que, posteriormente, ele foi ocupado por outras fabricantes de flores,
como Mme Dubois (1848-1855) e Mme Camille Hervel (a partir de 1856).
Com relação à loja de flores de Mme Finot, Joaquim de Macedo, em suas
memórias da rua do Ouvidor, nos faz saber que ela era finíssima e que, todos os meses
de dezembro “contava com os formandos da Escola de Medicina para vender muitas
dezenas de ramos de 100 a 200 cravos naturais ornados de canotilhos”. 37
Outra das floristas de renome da Ouvidor foi Mme Marianne Veuve Labbé. Ela
também já estava fixada na cidade no ano de 1844, quando, pela primeira vez, seu
estabelecimento foi impresso nas páginas do almanaque. Pelos doze anos que se
estenderam de 1844 a 1855 ela fabricou “todas as qualidades de flores”, limpou e tingiu
penas 38, compartilhando, durante algum tempo, o endereço com Mme Dubois.
Compartilhar endereços foi recurso bastante utilizado pelos franceses e francesas
que se estabeleciam na cidade, nem sempre, porém, com negócios de mesmo tipo. Esta
era uma forma possível e necessária de melhor arcar com os custos exigidos,
principalmente na rua do Ouvidor. Em alguns casos, em uma mesma loja funcionava
uma firma em nome da mulher e outra em nome do marido, dedicados a ramos difrentes
do comércio varejista, caso de Mme Cassemajou - costureira-modista estabelecida na
cidade entre os anos de 1846 a 1863 - e Ms. Cassemajou, que comercializava perfumes,
ambos estabelecidos à rua do Ouvidor, nº 54.
36
37
D. P. Kidder e J. C. Fletcher. O Brasil e os brasileiros. São Paulo, Nacional, 1941, p. 33.
Joaquim Manuel de Macedo. Op. cit., p. 105.
17
Uma poupança forçada, por outro lado, em alguns casos, possibilitou que
mulheres envolvidas com atividades menos prestigiadas pudessem realizar o sonho da
ascensão profissional. Foi o que sucedeu com Mme Petiout. No ano de 1851, ela
começou a ganhar a vida na cidade lavando e engomando roupas finas à rua dos
Latoeiros, atividade que permaneceu desenvolvendo por quatro anos seguidos, findos os
quais ela passou a anunciar-se como costureira-modista fixada à rua do Catete.
Certamente, um sonho transformado em realidade.
Algumas mulheres, como Caroline Destas e Eugénie Didot, começaram sua vida
profissional individualmente, mas terminaram por se associar a outras profissionais do
ramo, constituindo-se enquanto firmas legalizadas, certamente em busca de melhores
condições para a expansão de seus empreendimentos. Outras, como Catharine Dazon,
buscaram a sociedade com filhos ou filhas, como forma de garantir a continuidade dos
negócios e/ou seu crescimento.
Mme Caroline Destas tinha loja à rua do Ouvidor, apresentando-se como
sucessora de Mme Dantigny no ano de 1854, devido ao fato da mesma estar “fazendo
compras em Paris”. Mme Eugénie Didot apareceu nas listagens do Laemmert no mesmo
ano, atendendo clientes na mesma rua do Ouvidor. Em 1858, as duas criaram a firma
“Destas & Didot”, localizada no antigo endereço de Mme Destas: Ouvidor, nº 100. Com
a associação, os negócios cresceram e a firma alcançou o sucesso esperado, existindo
até o ano de 1864 e sendo extinta com o retorno, o afastamento ou a morte de Caroline
Destas, o que levou Eugénie Didot a buscar novos sócios.
Mme Catharine Dazon passou a figurar nas listas do Almanak em 1849,
possivelmente o ano de sua chegada à cidade e do início de seu trabalho como
costureira-modista estabelecida à rua da Quitanda. No ano de 1854, cinco anos depois
38
Almanak Administrativo Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro para o anno de 1844. Op. cit., p. 248.
18
do início de suas atividades, constituiu a firma “Catharine Dazon e filho”, que
permaneceu existindo até 1862, fornecendo:
Grande sortimento de sedas, casas, chitas, bareges,
camisinhas, saídas de baile, chales, rendas, chapus de seda e
de palha e enfeites de cabeça, e tudo o que compõe O
TOILETTE DE UMA SENHORA – Vestimentas para
crianças, bonés de veludo, de pano e de palha para as
mesmas, meias de seda, de linho, de algodão, francesas e
inglesas – luvas de todas as qualidades [e] fazendas para
luto. 39
No ano de 1858, de acordo com as informações contidas em anúncio publicado
na Revista das Notabilidades, a firma passou a contar, também, com casas em Paris (rue
d’Enghien, 46), Londres e Lyon. 40 Considerando-se o início da carreira de Catharine
Dazon e sua trajetória, é possível supor que os lucros obtidos no Rio de Janeiro tenham
possibilitado a expansão dos negócios por cidades localizadas em dois continentes,
permitindo a transformação em realidade do desejo maior de todo(a)s aquele(a)s que
migravam e que entendiam a imigração como processo temporário, findo o qual dar-seia o retorno à terra natal. Caso não tenha morrido, adoecido ou se afastado
espontaneamento dos negócios, é possível que Catharine Dazon tenha voltado à França,
no ano de 1862, para dedicar-se, em plenitude, aos negócios europeus, tendo em vista
que, a partir de então, é o filho, Luís Dazon que, sozinho, assume os negócios no Rio de
Janeiro.
No caso das modistas menos aquinhoadas pela sorte, exemplos significativos
podem ser dados por Mme Tracol e Mme Flexeux. A primeira possuía loja de modas à rua
do Ouvidor, nº 77, que deixou de existir no ano de 1847. A partir de então, Mme Tracol
retornou à condição de costureira-modista, passando a atender clientes à rua dos
Latoeiros, nº 83. Dois anos depois, desapareceu, definitivamente, das listagens do
Laemmert, possivelmente tendo partido em busca de outras oportunidades.
39
Almanak 1858, Notabilidades, p. 33
19
Mme Flexeux figurou no Almanak por seis anos seguidos, entre 1848 e 1854. Até
1851 também tinha loja de modas na Ouvidor, mas, da mesma forma que Mme Tracol,
transferiu-se de endereço, passando a anunciar-se não mais como proprietária de loja de
modas, mas como costureira-modista. Em 1854, como tantas outras, perdeu a
visibilidade, desaparecendo das relações e mergulhando no silêncio do anonimato.
Perifericamente ao mundo da produção de roupas e acessórios, destacou-se o
trabalho de algumas lavadeiras e engomadeiras de roupas finas vindas da França, que se
concentraram em duas principais conjunturas: 1848-1852 e 1854-/55, levando-nos a
comprovar as relações existentes entre a emigração de mulheres pobres e as conjunturas
de crise em França. No total, treze francesas ofereceram seus serviços como lavadeiras
e/ou engomadeiras, de acordo com as relações do Almanak Laemmert. Regra geral, o
tempo de permanência na atividade era curto, compreendendo de um a cinco anos, por
vezes, não passava de um ano, como ocorreu com Mme Lourul e com a viúva
Sedestroem. Apenas em três casos o prazo de permanência foi maior, envolvendo Mme
Carron, Mme Barbet e Mme Petiot. Com relação a esta última, seu tempo de lavadeira foi
muito pequeno, tendo ela ascendido à condição de costureira-modista, conforme já
relatado, tendo sido nesta condição que ela permaneceu na cidade. Em um caso, o de
Mme Marie Lavoque, o empreendimento profissionalizou-se, com a abertura de tinturaria
e oficina de engomar na asa de Correção, em uma conjuntura na qual começava a se
firmas a idéia da recuperação pelo trabalho, possibilitando, em uma lógica cruel, a
exploração barata da mão de obra do(a)s presidiário(a)s.
No conjunto das lojas comerciais nas quais as francesas podiam ser encontradas,
e
considerada a temporalidade analisada, elas tiveram presença quantitativamente
menos significativa nas lojas de chapéus (onde, entre 1857 e 1861, apenas três puderam
ser contabilizadas); nas lojas de sapatos de senhoras e crianças (onde elas totalizavam
40
Idem.
20
cinco, entre os anos de 1849 e 1855, com quatro anos em média de permanência); nas
lojas de meias (ramo de comércio ainda restrito que, segundo os dados do Almanak,
contou apenas com Mme Heusé) e nas lojas de brinquedos para crianças (onde também
apenas Mme Bouchereau aparece relacionada).
Nos estabelecimentos de bordados e rendas, onde o Almanak, a partir de 1854,
registra um total de quatro francesas, a presença mais significativa foi a de Mme Favre,
estabelecida à rua do Ouvidor desde esta data, que na Revista das Notabilidades de 1857
informava que:
... sua casa está sempre bem sortida em tudo o que há de mais
novo em lãs, sedas frouxas, torçais, flocis, missangas, linhas,
algodões, agulhas, colchetes, talagarça, papéis picados,
vidrilhos, desenhos e mais todos os aviamentos que são
precisos para bordar – Tudo o que é necesário para costuras –
Também tem: fitas, rendas, blondas, gregas, franjas, galões,
entremeios de cassa, borlas, botões, barbatanas, luvas de
todas as qualidades, e tudo o que se póde desejar de mais
moderno e de bom gosto. 41
A concentração de francesas no ramo da moda, quer como fabricantes, quer
simplesmente como comerciantes, demonstrava, no feminino, a tendência captada por
Ribeyrolles, que registra:
Os ingleses são os importadores. Os portugueses os
trabalhadores, os franceses cabelereiros e vendedores de
modas, o italiano é o vendedor ambulante, o ilhéo português
é o dono da venda e o brasileiro é o cavalheiro. 42
Como “vendedoras de modas”, as mulheres são as que têm primazia, enquanto
que, com relação aos cabeleireiros, esta tendência não se repete. Desde que o hábito de
“fazer a cabeça”, como parte de um processo continuamente reinventado, estabeleceuse, com cabeleireiros, entrançadores e artistas de cabelos franceses dando o tom de
“modernidade e refinamento”, esta face da moda, ainda que pudesse ser escrita no
feminino, não o foi por mulheres. Pelo menos até 1861, pois as mulheres eram absoluta
41
Almanak 1857, Notabilidades, p. 36.
21
minoria, considerado os dados apresentados no Almanak. Apenas o nome de uma
cabeleireira: Mme Maria e de duas entrançadoras de cabelos aparecem registrados nas
listagens. 43
Para além dos setores ligados diretamente à indústria da moda, onde as
Madames de Paris”, ainda que não o fossem de fato, efetivamente, ditavam as normas,
as francesas tiveram atuação destacada em outras atividades profissionais, com destaque
àquelas ligadas ao ensino e, de alguma forma, à medicina, como era o caso das partieras
e de uma única enfermeira registrada pelo Almanak no período estudado.
Situadas numericamente em segundo lugar na amostra das 289 mulheres
analisadas, as professoras representavam cerca de 19% no conjunto, oferecendo ao
público seus conhecimentos teóricos e práticos, de forma mais profissional e duradoura
ou mais informal e temporária.
As áreas de conhecimentos contempladas estavam voltadas visivelmente para o
universo feminil, incluindo aulas de línguas (com destaque à língua francesa), canto,
dança, ciências diversas (em pouquíssimos casos), história e geografia. Algumas das
professoras tornaram-se proprietárias de colégios de meninas, totalizando, ao longo do
período que se estende de 1844 a 1861, dezenove mulheres. Alguns desses
empreendimentos transformaram-se em colégios de médio ou grande porte, cumprindo
uma longa permanência na cidade.
Uma trajetória exemplar, no sentido da ascensão sócio-profissional possibilitada
pelo magistério foi cumprida por Mme Louise Halbout. Em 1849, ela oferecia seus
serviços como professora, atendendo as alunas à rua do Hospício, nº 98. Em 1851, abriu
42
Charles Ribeyrolles. Brasil pitoresco: história, descrições, viagens, instituições, colonização. Rio de
Janeiro: Typ. Nacional, 1859, t. 3, p. 17-8.
43
É possível que Mme Marie, em realidade, fosse Mme Marie, tendo em vista ter sido comum o
aportuguesamento dos prenomes no Almanak, tendência que, todas as vezes em que não aparecia o
sobrenome, tornava impossível ao pesquisador definir a nacionalidade da pessoa em questão.
22
colégio de meninas, inicialmente situado em outro número da rua em que morava e,
posteriormente, à rua do Conde, nº 59, onde permaneceu existindo até 1859.
O mesmo processo de associação entre estrangeiras, já analisado com relação às
modistas, pode ser observado com relação às professoras. Mme Tanière, por exemplo,
que deu aulas de francês, caligrafia, aritmética, geografia, história e bordado, entre os
anos de 1847 e 1857, associou-se à Mlle Marianne Steinmetz e fundou seu próprio
colégio no ano de 1858, situado na Praça da Glória. A ascensão conseguida dando aulas
permitiu que ela mudasse da rua Matacavalos para a rua do Ouvidor, quatro anos apenas
depois do início de suas atividades na cidade. Processo inverso daquele ocorrido com
Mme Reiners de Lacourt que, entre 1849 e 1852, juntamente com as filhas, aparecia na
listagem das proprietárias de colégio de meninas, o que deixou de acontecer a partir de
1854, quando ela passou a oferecer-se como professora de desenho, pintura e bordado.
Uma das mais fortes presenças no conjunto das proprietárias de colégio de
meninas foi a de Mme Geslin que, a partir de 1847 passou a assinar-se “La Baronne de
Geslin”. Envolvida com a educação de meninas desde 1845, ela prolongou esta
atividade, pelo menos, até o fim do período estudado. Moradora, inicialmente, da rua
Matacavalos, na encosta do Morro do Desterro (Santa Tereza), ela mudou para a rua do
Catete, acompanhando a expansão da malha urbana para os lados de Botafogo,
momento no qual tornou-se “La Baronne de Geslin”.
Interessante a observar é a presença significativa de jovens e viúvas que
ofereciam seus serviços como professoras. Em alguns casos, a necessidade da
sobrevivência, após a morte dos maridos, explicava o leque de ofertas de disciplinas
oferecidas ao público. A “viúva do Dr. Solier”, por exemplo, que se fazia anunciar
apenas pelo nome do marido falecido, oferecia-se não só para ensinar língua francesa,
geografia e ciências variadas, quanto também trabalhos de agulha. Espectro semelhante
23
oferecido por Mme Adèle Toussaint que, a partir de 1851, apresentava-se como
professora de língua francesa, geografia, trabalhos de agulha, piano, canto e dança.
Em outros casos, os mais numerosos, a oferta restringia-se a uma só
especialidade, com a projeção numérica daquelas que ensinavam língua francesa - em
uma cidade na qual “falar francês” era registro de cultura e civilização, reproduzindo-se,
no oitocentos um processo que se estendia desde o Iluminismo, quando as elites por
todo o mundo ocidental aprendeu a falar francês.
O ensino de canto e piano também teve considerável projeção. Nesse caso, as
referências a conhecimentos adquiridos em Paris mostravam-se essencilamente
valorosos. Mme Alexandrina Chomet serve de destaque, tendo em vista que se
apresentava como “professora de piano de Paris”, enquanto Mme Parton dizia-se
“discípula de Henrique Herz” e Mme Félice Smith, que oferecia aulas ao público no
Colégio de Mme Lacourt, oferecia música para piano vinda “do Conservatório de Paris”.
Muitas vezes, o aparecimento do nome no almanaque era muito fugaz, não
durando mais de um ano, parecendo ser o magistério, em muitos casos, uma atividade
temporária em uma trajetória de passagem, que servia para garantir a sobrevivência na
cidade. Em raros casos aconteceu de serem oferecidas aulas técnicas referentes a uma
determinada atividade profissional, exemplo dado por Mme Colls, que intitulava-se
“mestre de toda qualidade de bordados e flores de cera”. 44
As parteiras francesas tiveram um significativo espaço de prestígio na sociedade
e, nesta atividade, apresentaram-se não só como exemplo de mais um dos aspectos de
substituição do trabalho escravo no espaço urbano, como também um registro da
modernidade, traduzido como processo civilizatório importado da França.
44
Almanak Administrativo e Mercantil da Corte e Província do Rio de Janeiro para os anos de 1850 e
1851. Op. cit.
24
A propaganda que Mme Victorina Borgé faz publicar na Revista das
Notabilidades publicada pelo Almanak Laemmert no ano de 1860, nos dá uma
dimensão deste processo, pois a mesma, logo abaixo de seu nome, traz a informação de
ser “parteira francesa”, aparecendo, ainda, no corpo do anúncio, a informação de que a
mesma era:
Discípula do célebre Dr. Dubois, aprovada pelas faculdades
de Paris e do Rio de Janeiro, e já vantajosamente conhecida
nesta corte, oferece o seu préstimo às pessoas que a queiram
honrar com a sua confiança. 45
Outro exemplo paradigmático nos é dado por Mme Louise Pourtois, que começou
a ter seu nome publicado no Laemmert em 1847 e se apresentava como professora de
Parto e mais uma das discípulas do Dr. Dubois, acrescentado que era
Aprovada na Maternidade de Paris, pela Junta Médica de
Buenos Aires e pela Faculdade de Medicina [da] Corte,
autorizada pela Câmara Municipal, onde seus diplomas se
acham registrados, faz ciente a todas as pessoas de sua
amizade e às que a quiserem honrar com a sua confiança, que
a acharão pronta a toda hora, tanto de dia como de noite, para
exercer sua profissão. 46
Uma formação tão requintada nos leva a refletir acerca dos motivos que
explicavam a emigração e, sem dúvida alguma, eles tudo tinham a ver com as
conjunturas desfavoráveis vividas em França. Por outro lado, a passagem anterior por
Buenos Aires, reproduzida em outras tantas histórias de vida, indica que nem sempre os
que emigravam tinham idéia muito definida acerca das condições que encontrariam em
outros territórios, agindo por um processo de ensaio e erro. Isto ocorria não só em
termos internacionais, como dentro do próprio território brasileiro, onde era muito
comum a circulação entre a Corte e as províncias e entre a cidade e o campo.
45
In: Almanak Administrativo e Mercantil da Corte e Província do Rio de Janeiro para o ano de 1860.
Op. cit.
46
Idem para o ano de 1847, p. 291.
25
A mesma alta qualificação de Mme Pourtois tinha Stephanie Berthou, formada
pela Faculdade de Paris e aprovada pela do Rio de Janeiro, mestre parteira da Faculdade
de Medicina de Paris e da Santa casa”, que figurou nas listas do Almanak ao longo de
todo o período contemplado pelo artigo.
Outra parteira com longo tempo de permanência na cidade foi Mme Clementina
Somjean, contemporânea de Mme Felice Hosxe, Mme Felice Hautefeuille, Mme Joséphine
Mathildes Durocher e Mme Marie V. Meunier - “parteira de S. M. a imperatriz” -, além
de Mme Pourtois, Mme Berthou e Mme Dault, já citadas; contemporânea ainda, nos anos
de 1852 e 1854, da uma única enfermeira francesa que exerceu atividades na cidade:
Mme Gilbert.
No caso específico das artistas, não computadas no total da amostra das 289
mulheres analisadas, foram poucas as que se fixaram na cidade, como Marie Pétit, que
tinha garantido seu lugar de primeira bailarina do Teatro de São Pedro. As demais, com
raras exceções, cumpriram médias ou curtas temporadas nos poucos estabelecimentos
do gênero na cidade, como aconteceu com as sete atrizes da Companhia Dramática
Francesa que se apresentaram na temporada de 1844; das chanteuses e choristes da
Companhia Lyrica Francesa que se apresentou no Teatro São Januário no ano de 1849,
ou, ainda, das dezoito coristas da temporada de 1855 e 1856 do Teatro Lyrico.
O chamado gênero alegre, “de sabor genuinamente francês”, criação de
Offenbach, ainda não chegara em terras brasileiras, 47 o que aconteceu com a
inauguração do Alcazar Lyrique, à rua da vala, nºs 47 a 51, em 17 de fevereiro de 1859,
inaugurando, segundo Barreto Filho e Lima, 48 a vida noturna no Rio de Janeiro e
transformando, rapidamente, “os hábitos pacatos da cidade”. As melodias cantadas no
47
Destaque-se que a influência francesa era tão grande no Rio de Janeiro que o Alcazar foi inaugurado
quatro anos apenas depois que Jacques Offenbach criou o seu Les Bouffes Parisiens, o que ocorreu em
1855, e que o gênero chegou ao Rio antes mesmo de chegar à Lisboa.
26
palco passaram a inundar as ruas, 49 as piadas nele contadas passaram a ser reproduzidas
de boca em boca, as atrizes-cortesãs que encantavam uma platéia nitidamente formada
por homens tornaram-se os novos anjos e demônios da modernidade, como a famosa
Aimée dos contos de Machado de Assis. 50
Para além dos espetáculos que apresentavam no palco, as mulheres do Alcazar
tornaram-se no Rio de Janeiro, como já o eram na Europa, não apenas aquelas que
seguiam a moda, mas a própria moda, 51 em um mundo no qual ser cortesã significava
conquistar a independência e a liberdade e a tão desejada promoção social, ainda que no
espaço do privado as discriminações permanecessem.
Apesar do Almanak Laemmert não ter noticiado a inauguração do Alcazar
Lirique, as mudanças que então se processavam podem ser observadas por via indireta,
com o registro da presença de mulheres francesas em determinados ramos comerciais,
até então por pouco explorados, caso dos hotéis, cuja proliferação, a partir de então,
tudo teve a ver com a expansão da vida noturna e da prostituição na cidade. Só no ano
de 1861, três hotéis foram abertos tendo mulheres francesas à frente do
empreendimento: o Hotel da Europa, de propriedade de Mme Louise Aimée Paris,
situado na Ponte Nova da Lagoa; o Hotel Dois Mundos, de Mlle Gabrielle Valette,
localizado no Jardim Botânico; o Hotel de Dom Pedro, de Mme Fraix, situado na rua da
Lampadosa, nº 28. A localização dos dois primeiros fora do centro urbano, em locais
pouco povoados e de difícil acesso, e a localização do segundo, em rua menos nobre do
centro urbano, indica claramente que outros eram seus objetivos e suas finalidades.
48
Mello Barreto Filho e Hermeto Lima. “Onde o mundo se diverte”. In: História da polícia do Rio de
Janeiro. Aspectos da cidade e da vida carioca, 1870-1889. Rio de Janeiro: a Noite, 1942, p. 218.
49
Diniz relata que “as melodias dos vaudevilles do Alcazar ganharam os pianos e os assobios,
consagrados veículos de comunicação”. Cf. Edinha Diniz . Chiquinha Gonzaga. Uma história de vida. 2ª
ed., Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1984, p. 29
50
Sobre Aimée, inclusive sobre a descrição dela feita por Machado de Assis, que a caracterizava como
“demoninho louro, figura leve, esbelta e graciosa”, ver Gastão Cruls. Aparência do Rio de Janeiro.
Notícia histórica e descritiva da cidade. Rio de Janeiro: José Olympio, 1965,p. 554. (Edição do IV
Centenário).
27
Até então, os registros eram esporádicos e a duração do empreendimento fugaz,
caso do hotel de Mme Prangey e Mme Berthe, localizado na rua do Ouvidor, que não
ultrapassou o ano de 1858; do Hotel Parisiense, Mme Mayer, também localizado na
Ouvidor, que somente existiu em 1850; do Hotel L’ Étoile du Sud, de Mlle Gabrielle
Valette, situado à rua do Rosário no ano de 1857; do Hotel do Engenho Velho, de Mlle
Azélie, cuja existência limitou-se ao ano de 1858. A única exceção foi o hotel de
França, Mme Chabrie, localizado à rua do Paço, que, aberto em 1852, continuava
existindo em 1861.
O mesmo processo de participação atingiu o ramo dos cafés da cidade, ramo que
cresceu sem parar, com a intensificação do processo a partir de 1851. Em 1855, Mme
Victorine foi pioneira no processo, quando abriu o Café francez à rua do Rosário, que
permanecia existindo em 1861. Cinco anos depois, uma segunda mulher, Mme
Bithencourt comprou o Café Paris, situado à rua dos Ourives, das mãos dos antigos
proprietários, Zeller & Widner. Desta forma, as mudanças em curso nos anos 60
possibilitaram que as mulheres diversificassem ainda mais suas atividades, em
atendimento às demandas novas que se anunciavam.
Aquilo que parecia uma ousadia sem limites assustou as mentes conservadoras e,
a partir das décadas de 50 e 60, não mais se podia dizer que as francesas voltavam-se
apenas para o comércio da moda na cidade, reproduzindo papéis tradicionalmente
femininos. Continuamente elas recriaram papéis e, se Expilly já duvidava da
honestidade das francesas da rua do Ouvidor, muito mais mal afamadas na cidade elas
ficariam com a chegada das atrizes-cortesãs do Alcazar e com a expansão da
51
Esta caracterização foi tomada a Katie Hickman. Courtesans. London: Harper Perennial, 2004. p. 7.
28
prostituição na capital brasleira, 52 cristalizando-se representações e estereótipos que
tenderiam a durar.
Privilegiar o estudo da imigração francesa e a presença das mulheres francesas
no Brasil, desta forma, implica colocar em relevo as dimensões cultural e social da
e/imigração e da urbanização, as condições materiais de vida nos países de saída e de
chegada, a mudança de usos e costumes a ela relacionada, a articulação entre trabalho e
não-trabalho e, finalmente, as representações forjadas em terras brasileiras sobre
estrangeiras cuja forma de ser e estar mostrava-se cravada de contradições, com a
difusão de representações que, certamente, não passavam pelo crivo da análise das reais
condições que, em França, explicavam a emigração, em um continente no qual, durante
muitos séculos, o trabalho era uma necessidade para a maioria das mulheres, trabalho
onde a super-exploração era a tônica.
Deve ser registrado, por outro lado, que estas representações não só
obstacularizaram a discussão sobre os problemas econômicos enfrentados pela França
oitocentistas não só no Brasil, mas na própria França, com o tema tornado-se um
verdadeiro tabu da historiografia francesa, voltada para a análise do político e cultural
sendo muito poucos os livros que abordam a questão, praticamente restrita aos relatórios
de Parent-Duchatêlet e às obras de romancistas como Hugo, Sue e Zola. 53
País que conhecia enormes dificuldades e contradições econômicas, a França
permaneceu enfrentando crises políticas e graves problemas sociais, pelo menos até que
o progresso do II Império se tornasse mais nítido, o que não ocorreu antes dos anos
60/70. Por volta de 1847, o homem trabalhador ganhava dois francos por dia e as
52
Expilly narra um diálogo por ele travado com uma mulher da rua do Ouvidor, no qual ela atestava só
existirem na referida rua duas “mulheres honestas: ela e uma de suas amigas”. Charles Expilly. “Artistas
francesas em decadência obtêm sucesso no Rio”. Apud: Miriam L. Moreira Leite. “A dupla
documentação sobre mulheres no livro dos viajantes, 1800/1850. In: Vivência, história, sexualidade e
imagens femininas. São Paulo: Brasiliense/Fundação Carkos Chagas, 1980, p. 195-226.
29
mulheres menos ainda, salários que podiam baixar mais em épocas de crise,
possibilitando a um indivíduo, da noite para o dia tornar-se indigente, 54 com a esperança
de vida para um operário não ultrapassando os trinta anos. 55
A força da tradição, por outro lado, suplantava – e por vezes emperrava - os
impulsos da mudança econômica na direção da industrialização, com as atividades
artesanais confrontando-se com a grande indústria, reproduzindo, por toda parte, apesar
de sua recriação como símbolo de modernidade, o velho modelo do atelier, só
suplantado, em França, com a criação dos grandes magazines, 56 e onde a manufatura de
bens de consumo continuou a repousar no pequeno empreendimento familiar
tradicional, como bem foi analisado por Mayer. 57
Era verdade, também, que a prostituição grassava por toda parte, desafiando as
explicações científicas, e tornando-se um grande escândalo, a partir da criação das
maisons de tolérance aos tempos da Restauração, explicando porque esta era uma
alternativa, de tempo integral ou parcial, para muitas das mulheres que haviam migrado.
Como em outros modelos que a França exportou para o
mundo, o bordel
regulamentado – as maisons de tolérance – foram responsáveis pela alimentação de um
lucrativo tráfico internacional, que se fez presente nos bastidores dos processos
migratórios, e que atingiu o Rio de Janeiro, com visibiliade, a partir dos anos sessenta.
53
Na pesquisa que vem sendo efetuada, muito temos buscado obras sobre emigração em França e, até o
momento, não encontramos nenhuma. Por outro lado, referências no tom dado por Louis Chevalier, são
também, raríssimas. Ver Louis Chevalier. Op. cit, p. 381
54
Há cálculos que estimam em 86.401 o número de indigentes na Paris de 1843. Cf. Alain Dewerpe. Le
monde du travail en France, 1800-1950. 2ª ed. Paris: Armand Colin, 1998.
55
Dados retirados do livro de Pierre Miquel. Op.cit. p. 343.
56
Os grandes empreendimentos, como Le Printemps, Le Louvre, La Samaritane, Le Bom-Marché, La
Belle- Jardinière são criações do II Império.
57
Arno J. Mayer. A força da tradição. A persistência do Antigo Regime. São Paulo: Companhia das
Letras, 1987.
30