A cidAde “corpopoéticA”
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A cidAde “corpopoéticA”
A cidade “corpopoética” Paul Ardenne [Professor de história da arte da Universidade de Amiens, França; crítico e curador de arte contemporânea] Em janeiro passado, em cerca de sessenta cidades do mundo, aconteceu simultaneamente a operação No pants subway ride, lançada em Nova Iorque onze anos atrás. Gente de todas as idades, cores e religiões descem nos subterrâneos do metrô vestindo apenas a roupa de baixo. Não para se exibir durante alguns minutos e voltar para casa. Não. Fazem ali os gestos corriqueiros do seu dia a dia no metrô, um dia a dia regido pela necessidade, material, psicológica, com um detalhe: executam-nos vestindo apenas a roupa de baixo, seja simplesmente para ir de uma estação para outra e pegar uma conexão, seja para esperar numa plataforma ou ainda ler o jornal ou viajar até o seu destino. Ressensibilizar o urbano Esse tipo de operação vem se multiplicando, ao longo dos últimos 30 anos, a ponto de se banalizar. Dessa forma, foram instituídos, em vários lugares, um Dia dos Vizinhos, que geralmente termina com um jantar comunitário no play do prédio; um Dia da Cor, que consiste em se vestir com peças de uma única cor, uma forma de colorir o espaço urbano; um Dia da Fantasia, quando é de bom tom sair de casa vestido de Batman, Princesa Starla ou Mickey. Tais fórmulas de “o dia de alguma coisa”, às vezes, se perenizam, vão se consolidando através da repetição sistemática do evento, resultando na especialização de determinados lugares, em função das especificidades do evento. Da mesma forma que se vai ao Hyde Park Corner, em Londres, para falar livremente, vai-se à avenida Guinza, em Tóquio, fantasiado, em determinados momentos da semana, por se tratar de um epicentro de renome mundial do cosplay. Ou ainda, as pessoas se reúnem a cada noite de sexta-feira, na Bastilha, em Paris, montadas nos seus rollers, antes de sair, às centenas, para dar a volta pela capital francesa, durante horas. 129 SOBRE DESEJOS E CIDADES Essa carga de eventos fora do padrão, somada aos eventos normais dos quais a cidade é o palco corriqueiro, é um sinal: a cidade convencional, aquela que vivenciamos no dia a dia, não é suficientemente “sensível”, nem “sensitiva” ou pródiga em sensorialidades, não apenas fortes, como também de acordo com as nossas expectativas por manifestações mais próximas do nosso desejo, completamente personalizadas até – manifestações urbanas que sejam nossas manifestações, relacionadas com a nossa própria expressão e não mais apenas com a convenção. A recente expansão, impulsionada pelas redes sociais (MSN, Facebook, Twitter, LinkedIn …), dos flash mobs, flash streets e outros “aperitivos” mais improvisados do que combinados previamente é a confirmação dessa demanda personalizada, idiossincrática, de manifestações em que se pode esperar encarnar um desejo, transformá-lo em realidade passando do imaginário ou da fantasia para a sua concretização fatual: algumas pessoas decidem dançar salsa na saída do metrô, tomar um porre sobre uma ou outra ponte ou, ainda, brincar de homem de gelo na estação de Grand Central, em Nova Iorque, durante alguns minutos. TAZ Esse fenômeno, objeto de vários estudos sociológicos, foi identificado nos anos 80, 90. É frequentemente chamado com o cômodo nome de “TAZ” ou temporary autonomy zone [zona de autonomia temporária]: o termo se deve a Hakim Bay, guru nova-iorquino do “anarquismo poético”, e ele foi inspirado, entre outros, pela cultura dos travellers (viajantes) que acompanha o movimento techno desde os anos 1990, levando milhares de jovens a correr as estradas do mundo inteiro buscando a paz, no meio do nada, por um determinado tempo, sem qualquer tipo de controle da polícia ou administrativo, para dançar, brilhar e viver na plenitude libertária. 130 A cidade “corpopoética” O advento recente e intensificado das “TAZ”, esses espaços-tempos de autonomia temporária, nos informa sobre dois dados em crescimento e que serão os eixos vertebrais desta palestra sobre a cidade como vetor de desejos: de um lado, uma poderosa reivindicação individualista; do outro e consequentemente, uma vontade pessoal sempre maior de “criar” sua própria cidade sensível ou, na sua falta, de aproveitar a cidade ou de nela mergulhar de modo a multiplicar as sensações. Qualificarei essa atitude com um neologismo, “corpopoética”, por esse motivo: na cidade, pretendemos muito menos suportar o meio, o ambiente, do que criá-lo (poiésis, a “criação”, em grego). Aspiramos àquele estatuto de ator que autoriza o nosso corpo a ser autenticamente dinâmico, a se engajar em um movimento que não seja o movimento rotineiro, obrigatório, dirigido, desabusado e padrão, mas sim um movimento voluntarioso, um movimento que é eu mesmo me movimentando na medida de mim mesmo, da minha vontade, do meu prazer e, para parafrasear Nietzsche, da minha vontade de prazer. A cidade é, por conta da sua agitação, um território intenso, pródigo em muitas sensações. Pode se tornar ainda mais território de intensidade, desde que se resolva viver nele de maneira “corpopoética”, com o objetivo de enraizar uma relação com o ambiente que não seja passiva ou de espectador, mas ativa, criativa, com a ambição de gerar representações excitantes de nós ou dos outros. Nessa pers pectiva, a grande indagação formula-se assim: como abordar a cidade para dela fazer um teatro de encarnação sensível, um palco onde seríamos instrumentalizados o mínimo possível, um palco para a existência que vale a pena, palco aonde o corpo, nada menos, vem representar a realização do desejo? Corpopoetizar a cidade A cidade “corpopoética”, portanto. Entender: a única que seja minha, meu próprio bem, capaz de possibilitar que aquela rua, aquela fachada 131 SOBRE DESEJOS E CIDADES que vejo brilhar ali, sob o sol, que esse batalhão de automóveis subindo o bulevar, acolá, sejam meus. “Abro em mim um teatro”, escreveu o pensador francês Georges Bataille, à guisa de incipit à caótica obra-prima que é A suma ateológica, um monstro literário e filosófico, publicado nos anos 1950. O que Bataille quis dizer? Apenas que não há corpo possível sem representação. E que somos, definitivamente, seres de representação. Vamos admitir que o instinto exista. Fora os atos instintivos, regrados pela preocupação com a preservação da espécie, todo o restante do que fazemos é representação, até mesmo o mais banal dos nossos gestos: este é uma figuração de nós mesmos no mundo. Basta olhar para nós mesmos para que se torne um sinal construído, uma performance estética. Impossível escapar disso. Mas, primeiro, a “corpopoética”, em poucas palavras. “Corpo poética”: esse neologismo une dois termos, “corpo” e “poética”. A “cor popoética” tem a seguinte vocação: pensar a ação conjunta desses dois comportamentos invariantes da vida humana, de um lado, a repre sentação obstinada, pelo homem, do próprio corpo ou do corpo de outrem; do outro lado, a atribuição de um significado superior a esse ato de representação do corpo bem como à figura a ele vinculada. A “corpopoética” trata do corpo humano visto como realidade (o corpo em si), figura (o corpo e a sua imagem), como elaboração (o corpo em si e em imagem como representação encarnada e vivenciada). No caso, o termo “poética” – o substantivo – deve mesmo ser entendido pelo seu significado original, helênico, de “criação”, como explicitamos acima. Se o corpo existe, existe por ser permanentemente formulado, criado e recriado, ao ritmo dos gestos, dos atos, pensamentos e representações que qualificam qualquer forma de vida não vegetativa. Se vivemos dentro e por nossos corpos, isso não é jamais sem nos “vermos”, sem convocar uma imagem corpórea, uma figuração, para fins táticos: porque não podemos nos abstrair dessa representação, porque não existiríamos se não fôssemos, de concreto, imagens 132 A cidade “corpopoética” de nós mesmos ou de outrem. Desviemos do célebre, porém restritivo, Esse est percipi de Berkeley. Ser não é tanto ser percebido do que perceber-se através de si ou de outrem, quer esse “si” assuma uma figura realista ou imaginária, quer a sua percepção gere, em nós que as estamos percebendo, uma reação afetiva, fetichista, idealista, indi cativa, iconoclasta, de rejeição ou indiferença. O corpo humano é, solidariamente, uma realidade biológica e a soma das suas representações, um conjunto formado pelas suas células e pelas figuras que ele dá de si mesmo e para si mesmo. Não há corpo carnal, material, que se possa imaginar e entender sem representação. Essa disposição necessária para a ação que é a repre sentação não é de ordem meramente simbólica, no sentido em que a humanidade comunica pela linguagem, mas também através de sinais que formam uma linguagem. A representação de si, pelo ser humano, é uma exigência de ordem natural, está nos genes tanto quanto é produção de sinais: não podemos deixar de nos ver. As imagens, mentais como plásticas, que o ser humano forma dele próprio e dos seus semelhantes obedecem ao imperativo de se representar ou de representar um repertório de formas peculiares sob pena de não existir em conformidade com a natureza humana: enxergar-se é preciso. O cachorro, o gato, o hipopótamo, os paramécios não se “dese nham”, não se “retratam”, não se “representam”. A diferença entre animalidade e humanidade, se ela existe, tem a ver com o uso das imagens. A percepção basta para o animal. Mas o ser humano percebe para representar. Toda a compreensão do mundo, por ele, se codifica num aparato de figuras meditadas cuja razão de aparecer reside no seu poder de reativação: a figura sempre é início de algo, uma incitação. Nesse teatro de jogos cruzados que dão ao olhar (sobre si, sobre outrem) uma relevância motora e dinâmica, portanto crucial, a “corpopoética” gera o equivalente a uma ontologia: qualifica o ser como ser, bem sabendo que é ser de representar o ser e de ser representado como tal. 133 SOBRE DESEJOS E CIDADES Contra o proibido Voltemos à cidade e ao que seria uma relação “corpopoética” com a mesma, isto é, uma relação na qual o nosso desejo, longe de ser proibido ou tolhido, seria, ao contrário, concretizado, satisfeito, sublimado? Como já dissemos acima – depois de muitos outros, e lembro aqui os estudos de Georg Simmel desenvolvidos há um século –, a cidade foi, por excelência, um espaço privilegiado de sensações. É inegável, nem que seja apenas em termos de espetáculo, de barulho ou de cheiro. Mas há um problema: a sensorialidade que a cidade exala e nos retorna com autoridade pode não agradar, e gerar desprazer, em vez de excitar o nosso prazer. Se tal for o caso, não desejamos mais a cidade, mas, pelo contrário, aspiramos a fugir dela, a nos ocultar dela, fazendo triunfar a prática chamada de esca pismo,1 de “fuga sensível”: esmeramo-nos para nos refugiarmos em casa, aspiramos ao sossego dos parques que nos cura do excesso de barulho urbano, pegamos o nosso carro e vamos para o interior onde, às vezes, podemos resolver morar definitivamente. Porque a cidade, nesse caso, não sacia mais os nossos desejos, mas os inibe. Desses desejos, ela veta a eclosão ou o livre desenvolvimento. Uma cidade, como se sabe, não é em nada um espaço de liberdade. É, em tudo, um espaço administrado, proprietarizado, parcialmente público, em que a maior parte dos elementos constitutivos é o bem de pessoas ou instituições que não são “eu”. O espaço público propriamente dito, via de regra, de público só tem o nome e, para o restante, se tornou uma ficção ou uma fantasia de cientista político. Tal praça é invadida pelos terraços dos bares, que a desfiguram. Faixas e placas de propaganda vêm corromper a minha visão do espaço urbano e perverter sua leitura ao sujeitá-lo ao império do comércio e do consumo. Tal proibição da circulação me impede de continuar o 1. Em inglês no texto. 134 A cidade “corpopoética” passeio como gostaria. O ordenamento municipal das ruas de pedestres aspira meus passos e me afasta, de fato, da tentação de ir para outra parte ver a realidade da cidade… Com isso, para realizar o meu desejo, só restam duas soluções: seja me radicar numa cidade que me satisfaça no instante, mas que também vai se mostrar apta também a me satisfazer ao ritmo do devir de minha própria vida – um desafio, no mínimo. Seja tomar ou levar as autoridades a tomarem decisões que vão no sentido do meu desejo, até pela violência se necessário. Há cinco anos os outdoors estão proibidos em São Paulo. Há quinze anos, o coletivo artístico Stalker organiza na cidade verdadeiras expedições, chamadas de franchissements (transposições), cuja prática consiste, na linha situacionista, em se deslocar a pé no território urbano, seguindo uma linha arbitrariamente traçada no mapa, avançando custe o que custar, nem que precise violar propriedades privadas. A atratividade urbana, um complexo Sem chegar àquela última extremidade, vamos assumir que possa existir, de maneira intrínseca, uma “atratividade” urbana e que esta, em si, possa se revelar de natureza a saciar nossos desejos de “cidade”: aqui, lindos parques para descansar, passear e levar o cachorrinho Bouli para brincar; lá, lindos shoppings para se perder nas lojas, na euforia das compras, essa nova religião da era pós-capitalista em que estamos vivendo e, ali ainda, esses lugares secretos, ocultos ao olhar de todos, onde podemos conspirar sem ser vigiados ou fazer amor. Coloquemos a pergunta sem rodeios, e vamos procurar respondê-la também sem rodeios: quando é que uma cidade é realmente magnética? Sob que condições uma cidade atrai a nossa vontade de nela nos pousarmos, de passar um momento que presumimos ser agradável e que venha saciar nossos desejos? Qualificar a atração urbana? Definir em que e por que uma cidade é atraente? Essas perguntas, nesse caso, obrigam a questionar 135 SOBRE DESEJOS E CIDADES o potencial de imantação da cidade, as suas estratégias de sedução. Lembremo-nos do título, compridíssimo, de uma fotomontagem do artista pop britânico David Hamilton, O que torna os nossos interiores tão intrigantes, tão simpáticos? E substituamos o universo interior e doméstico do qual fala Hamilton pela palavra “cidades”: O que torna as nossas cidades tão intrigantes, tão simpáticas? Nesse ponto, um lugar comum bem enraizado reza que a arquitetura desempenha o seu papel, isto é, quando tem qualidade e tem boa manutenção, seja ela patrimonial ou contemporânea: a bela arquitetura seria a própria garantia da influência urbana. Esse ponto de vista, embora amplamente acolhido, deve, no entanto, ser combatido. Pois é o inverso que prevalece a maior parte do tempo. La Havana, por exemplo, fascina: arquitetura de degradação. Tóquio também fascina: a arquitetura, no geral, é sem qualidade. Mas se for para Dubai, cidade limpinha, preenchida por imóveis tão novos quanto rutilantes, cidade programada para ser uma cidade de verdade com tudo o que é preciso para tanto, porém, hélas!, perfeita mente artificial, é exatamente o fenômeno inverso que ocorre: a cidade entedia. Que diagnóstico podemos fazer nesse particular? O que interessa, a maior parte do tempo, da cidade é o que é exter (“externo”, mas também “extremo”, em latim), isto é, o que nela existe de fora do padrão, ao menos tanto quanto o que está integrado. Rua Sainte-Catherine Ouest em Montreal: a própria banalidade, uma sequência de fachadas do século XIX, de tijolos e prédios modernistas ou neomodernistas, além de uma enfadonha atmosfera de compras. De repente irrompe nessa perspectiva banal, aberrante, um fragmento de terreno baldio, ao longo da calçada avenida. Por que esse vazio, e aqui, bem no meio de um lugar onde triunfa o cheio, onde o setor imobiliário, além de tudo, não deixaria por muito tempo o vazio urbano se desenvolver? A curiosidade é aguçada. 136 A cidade “corpopoética” Daí essa impressão: pode ser que gostemos, a maior parte do tempo, daquilo que atrapalha a representação homogênea da cidade. Que gostemos, contrariando as expectativas ou o projeto dos urbanistas, de tudo o que lembra algum heterogêneo: a lei do outro gene, o gene não urbano instilado no urbano – o desgaste, a sujeira, a entropia, o espetacular, o dúbio, o nojento e o nauseante, o abandonado, até mesmo a obra em andamento. À pergunta: como tornar a cidade atraente? A resposta menos errada talvez seja a seguinte: é preciso, para tanto, enfatizar a parte do heterogêneo. Enfatizá-la se ela ainda não tiver, em vez de reproduzir o homogêneo globalizado, produzido pelo projeto moder nista, que baniu das nossas cidades toda e qualquer excentricidade. Assim, vamos a Calcutá apenas para poder dizer, como Churchill: Calcutá? By Jove, é preciso ter ido lá uma vez e ter visto, para nunca mais voltar. Apenas para poder dizer, finalmente, aliviado, tampando o nariz: “Estive lá, uma façanha, é forte, realmente horrível, sujo a um ponto...” E isso, mesmo quando não veremos graça alguma em Cingapura, cidade impecável, onde, no centro, se pode dormir ou comer no chão, sem se sujar, mas onde fumar é proibido, onde o álcool é uma iguaria raríssima e onde os animais de estimação são convidados a ficar em casa. Uma cidade com a qual ninguém nunca sonhou. Cidade a-fantasística por excelência, a exemplo de Lausanne, Denver ou Vitré. Espetacularizações e sensações O que excita em Tóquio? A Electronic City e seus ares de lugar vitimado que canibaliza a propaganda, lugar submerso sob uma iluminação de ano novo, regrada pela propaganda e mais nada, o sinal da pior trivialidade mercantil, mas pouco importa. Como em Times Square, Nova Iorque. Os prédios? Não se veem mais, acabaram sumindo, debaixo da primeira e única camada visível da tela urbana, 137 SOBRE DESEJOS E CIDADES o estrato publicitário, parasitário como o diabo, e que se exibe por todos os cantos, consumido todo o espaço físico disponível. Power of the advertising – o próprio avesso do homogêneo, aqui também. Por que vamos a Bamako? Porque lá, o próprio conceito de cidade é dissolvido, arruinado pela miséria, a superpopulação, a imperativa necessidade de conseguir moradia. Quando se fala em Bamako, a cidade verdadeira não existe mais apenas no casario, em estado de desestruturação geral, mas também à sua volta: cidade-sarjeta, cidade-cloaca, cidade-ruína. Isso tudo excita a cobiça das pessoas limpinhas que somos, nós, os ocidentais. Bamako, me suje, pedimos para essa cidade, como a amante implora ao amante: “Me suje, me devaste!” Ver esse lindíssimo, tão surpreendente quadro ao ar livre, que forma a sujeira que encobre a miserável fachada da estação de trens de Bamako: mais de um século de fuligem, uma negrura inimaginável, fascinante, que relega as telas negras de Ad Reinhardt ou de Pierre à categoria de pequenas escurezas pretensiosas. A gente pede mais. Na verdade, a principal oferta de homogeneidade urbana que, apesar de tudo, sabe agradar é o espetáculo. Isso explica porque todas as cidades querem o seu museu Guggenheim, no estilo de Gehry, como em Bilbao. Ou a mais alta torre residencial, como Dubai após Taipei, Taipei após Kuala Lumpur, Kuala Lumpur após Chicago e Chicago após Nova Iorque. Ou ainda, seu bairro da La Défense, a sua própria Manhattan, à imagem de Xangai-Pudong, no início deste início de século XXI, o La Défense elevado à potência dez: um bairro fascinante de se ver desde o Bund, desde os cais e do outro lado do rio, que corta a paisagem, com uma tórrida linha do horizonte; um bairro, ao contrário, insípido, quando visto de dentro, mas isso não tem mesmo qualquer importância. Pudong é feito, antes de tudo, para o espetáculo. Consequentemente, deve ser visto primeiro. E se torna irrelevante ele ser ocupado ou, mais ainda, vivenciado. 138 A cidade “corpopoética” A cidade atraente? Ousemos a seguinte proposição: para pensar (se não, é claro, para promover) a atratividade urbana, melhor partir do contramodelo, o da cidade enfadonha. Muitas cidades modernistas são enfadonhas: Brasília (o plano-piloto), as cidades reconstruídas (na Alemanha, por exemplo, Dortmund, Essen, Frankfurt até, embora cidade laboratório, da arquitetura neomodernista). Ora, quando uma cidade deixa de ser enfadonha? – Quando arrebata a atenção ou a satura: as cidades museus, como Veneza, Paris, Rottenburgo am der Tauber, Pingyao, Carcassonna (a cidade-sinal). – Quando autoriza a intriga: cidades italianas ramificadas onde vaguear, lilongs chineses onde perder-se (a cidade-aventura). – Quando se pode seguir o rastro de fantasmas: em Paris, dormir no hotel onde Oscar Wilde deu o último suspiro, ou ainda fotografar o poste de luz onde presumivelmente Gérard de Nerval teria se enforcado; em Memphis Tennessee, errar em volta de Graceland, sua propriedade, para encontrar o espírito de Elvis Presley. – Quando acanalha: cidade de México e a sua corrupção generalizada, La Havana e suas prostitutas de treze anos, Bangkok e seus locais de prazer (a cidade desviante, desobediente). – Quando desanima: Beijing, definitivamente extensa demais; Tóquio, definitivamente incompreensível; Los Angeles, definitiva mente atomizada (a cidade-excesso); Romorantin ou Montluçon, defi nitivamente sem graça, tão desinteressantes que se pode pensar em explorações ou excursões em torno dos seguintes temas: “Da insipidez urbana”, ou ainda “O qualquer urbano” (veja a excursão a Romorantin, 139 SOBRE DESEJOS E CIDADES sobre esse tema ou quase isso, planejada pelos surrealistas, nos anos 1920) – isso, neste último caso, sob a condição de que a sua existência não tenha sido pura e simplesmente esquecida (a cidade-nada). A cidade atraente, vamos defini-la, consequentemente, como aquele espaço polêmico cuja natureza excede a familiaridade, familiaridade esta, cedo ou tarde, enfadonha; como aquele espaço, para dizer de outro modo, que se constitui conforme um modelo resistente, que obstaculiza. Ou seja, a cidade não tolhida, a cidade indomada, que incomoda, desregrada, fora de gabarito, desesperadora até: o Cairo, impossível de se atravessar; Budapeste, nos tempos do comunismo, tornada irrespirável por conta da poluição dos automóveis; Praga antes da sua atual transformação em confeitaria austro-húngara, de um cinza desalentador, cidade dos sonhos para se dar um tiro na cabeça; Berlim Ocidental, ao longo do Muro, antes de 1989, e Berlim Oriental, na mesma época, cidade de concreto onde o capim crescia nas ruas, logo além da Alexanderplatz. O ponto de vista do grupo e do indivíduo Tornar concretamente as nossas cidades mais atraentes? Aqui, tudo depende de para quem se está falando e, sobretudo, para o prazer de quem – do indivíduo ou do grupo? Considerando as aspirações ao prazer e ao desejo saciado do grupo, do coletivo, em um meio não conservador, vamos sustentar que se alcançará o objetivo, desenvolvendo inflexíveis políticas de decomposição urbana, constituindo em seu proveito uma “barbárie” própria – no sentido etimológico de “estrangeiro”, nos Gregos, os bárbaros –, isto é a produção de uma estranheza, de bizarrices, de absurdos. Os municípios em busca de atratividade, não resta dúvida, só teriam a ganhar ao acrescentar ao organograma da sua administra ção as BDU’s – Brigadas de Decomposição Urbana. Isso proposto, 140 A cidade “corpopoética” no entanto, colocando a seguinte pergunta, capaz de mergulhar Cândido em um abismo de perplexidade: a decomposição urbana, a “barbárie”, o heterogêneo que tanto nos excitam, por que sempre é melhor nos outros? E por que queremos que a nossa cidade, ao contrário, seja limpa, nem um pouco desestruturada e, sobretudo, sem estar entregue à desordem ou àquele caos que tanto nos eletriza nos outros e nos arrepia? Sim, pergunta Cândido, com toda a legitimidade, por que estamos dispostos a pagar a peso de ouro para nos exibir na faixa de Gaza, ou em Cité Soleil, a grande favela de Port-au-Prince, no Haiti, só para ter o frisson do enfrentamento com a alteridade vivida como violência – isso, quando mesmo nós, franceses e parisienses, por nada no mundo atravessaríamos a via expressa que circunda Paris para mergulhar nas periferias negras de Sarcelles ou no melting pot multiafricano de Bobigny e arredores? Mas se indagarmos agora qual é a melhor maneira de se promover o “prazer” urbano do indivíduo, já somos levados para um desafio bem diferente. Pressente-se: a cidade “corpopoética” de um não será necessariamente a cidade “corpopoética” de outro. Tal pessoa comum, por exemplo, vai desejar que a cidade esteja, o quanto antes, mergulhada numa angustiante escuridão, que te faz temer pela própria vida a todo o momento, muito excitante para os sentidos, enquanto outra pessoa comum, por sua vez, sonhará com rios de luz urbanos, com inundações de fótons, com queimaduras oculares causadas pelo excesso de iluminação, com o Strip de Las Vegas na cabeça. O desejo desse outro, ainda, será de ver surgir, na rua, uma palmeira transportada num carro, e o daquele outro será de surpreender dançarinos pulando de elástico, de cima das pontes. A relatividade, nesse caso, atinge necessariamente o seu auge. Porque cada um de nós tem a própria sensação da cidade, porque cada um de nós espera da cidade algo especial, muito provavelmente dissonante em relação à estética adquirida. 141 SOBRE DESEJOS E CIDADES A cidade corpopoética e o urbanismo Em matéria de concretização dos nossos desejos em termos de vida e espetáculos urbanos, a atitude “corpopoética” só pode ser protei forme: cada um com a sua, em suma. Tal diagnóstico, por mais óbvio que seja, não deixa de ser problemático. Pois a cidade, uma vez encarada em termos de “corpopoética”, tem todas as chances de ser sempre imperfeita, inadequada para a configuração que cada um pode esperar pelo próprio prazer, tem todas as chances de se tornar um fracasso. A aspiração individual, no caso, se torna o pesadelo dos urbanistas. De fato, qualquer coisa que estes tentem, para projetar e realizar uma cidade capaz de saciar todos os desejos de urbanidade de seus moradores, sempre errará o alvo, sempre acertará ao lado do desejo pessoal. Será está uma notícia tão ruim assim? Não tenho certeza. Se tirarem a lição deste ensinamento, restará aos urbanistas apenas projetar minimamente as nossas cidades, atendo-se ao mínimo de obrigações: permitir-nos de morar, circular, cuidar da nossa saúde e educar-nos, trabalhar, consumir. O resto, de certo, não lhes diz respeito. O “resto”? O belo ordenamento, a teatralidade, o simbólico, dos quais cada um fará o que bem entender, na medida do seu imaginário e em função da sua capacidade gestual a influenciar a cidade como ela é. A cidade corpopoética: o túmulo do urbanismo sofisticado, na perspectiva desse advento, uma urbanidade autenticamente democrática. 142