O legado deixado por Néstor Kirchner 28/10/2010

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O legado deixado por Néstor Kirchner 28/10/2010
O legado deixado por Néstor Kirchner
28/10/2010 - 15:24 | Luis Fernando Ayerbe | São Paulo
Diferentemente dos seus principais aliados regionais Hugo Chávez, Luiz Inácio Lula da
Silva e Evo Morales, que chegam à presidência como autêntica expressão da nova
geração de partidos políticos e movimentos sociais legitimados na oposição ao
“Consenso de Washington”, a ascensão de Néstor Kirchner, de extensa trajetória no
peronismo, buscou recompor a credibilidade do sistema político e econômico, afetado
pelo quadro de crise de amplas proporções gerado pelo colapso financeiro que levou ao
fim do governo de Fernando De la Rua em 2001.
Eleito presidente em 2003, desde o início, seu governo operou um processo de
recuperação econômica, favorecido pela suspensão dos pagamentos da dívida,
ampliação do consumo de uma população desconfiada com o sistema bancário que
confiscou parte da sua poupança, e a desvalorização cambial, que impulsionou as
exportações e a recuperação da indústria voltada para o mercado interno. Após a queda
do PIB de 10,8% em 2002, inicia-se um período de expansão, com crescimento de 8,8%
em 2003, 9,0% em 2004, 9,2% em 2005, 8,5% em 2006 e 8,7% em 2007, último ano do
seu mandato. Em maio de 2005, foi concluída a oferta de bônus da dívida em default,
obtendo-se a adesão de 76,15% dos credores, que implicou num desconto nominal de
65,6% sobre um total de dívida reestruturada de 102 bilhões de dólares.
Com a situação favorável no âmbito da economia, o grande desafio é desarmar o
radicalismo que a conflitividade social tinha atingido, abalando a confiança da
sociedade na classe política, incorporada em bloco na palavra de ordem “que se vayan
todos”, que unificou os protestos que derrubaram De la Rua. Parte fundamental dessas
manifestações teve como protagonista o movimento piquetero, que irrompe no país na
década de 1990, formado por grupos de desempregados que protestam cortando
estradas. A resposta dos sucessivos governos orientou-se pelo estabelecimento de
assistência na forma de transferência de renda através dos chamados Planes Trabajar
(PT), criados por Carlos Menem, que mudam de nome para Planes de Jefes y Jefas de
Familia (PJJF) em 2002. De 200.000 PT em 1997, passa-se a 1.300.000 PJJF em
outubro de 2002, estabilizando-se em 2.100.000 a partir da ascensão de Néstor
Kirchner.
Outra área de atuação que o aproxima das reivindicações dos movimentos sociais é a
política de direitos humanos, em que reabre as discussões sobre a ação das forças
armadas durante o regime militar de 1976-83. Em março de 2006, quando se cumprem
30 anos do golpe, Kirchner coloca publicamente em discussão a anulação dos indultos
concedidos por Menem em 1990 aos principais dirigentes da ditadura. No mês de abril
de 2007, o Tribunal Penal Federal considera inconstitucionais os decretos de anistia
com base na tese da não prescrição dos crimes contra a humanidade. Essa postura lhe
granjeia o apoio de organizações de defesa dos direitos humanos, como as Mães e Avós
da Praça de Maio.
A trajetória do presidente revela um forte pragmatismo, mostrando capacidade de
adaptação às mudanças político-ideológicas que afetaram o país e o seu partido nas
décadas recentes. Vinculado à Tendência Revolucionária, próxima ao Movimento
Peronista Montonero, nos anos de estudante de direito na Universidade de La Plata,
adquiriu projeção como político na sua província natal, Santa Cruz, elegendo-se prefeito
da capital e depois governador por três mandatos, após aprovar reforma constitucional
garantindo a reeleição indefinida. Durante a presidência de Menem, foi um dos seus
principais aliados, destacando-se entre os governadores que apoiaram a privatização da
empresa YPF (Yacimientos Petrolíferos Fiscales).
Rompe com Menem no momento em que este busca alterar a legislação para tentar uma
segunda reeleição, alinhando-se com Duhalde, candidato presidencial do Partido
Justicialista (PJ) derrotado por De la Rua. Eleito presidente, vai se afastando de Duhalde
até o rompimento, nas eleições legislativas de 2005, em que lança a Frente Para a
Vitória (FPV). Embora aliada do PJ, a FPV terá algumas candidaturas próprias, como a
da Primeira Dama, Cristina Fernandez. Militante peronista desde a juventude e com
uma trajetória parlamentar iniciada em 1985, no processo de redemocratização,
concorre ao senado pela Província de Buenos Aires, derrotando Hilda Duhalde, esposa
do ex-padrinho político.
Os resultados favoráveis nas eleições, em que seus aliados resultam vencedores em 14
das 24 províncias, fortalecem a liderança de Kirchner. Como passo seguinte, busca
afiançar o poder, estabelecendo acordos que lhe garantem maioria no parlamento, apoio
da maior parte dos governadores e prefeitos do país, convivência pacífica com as
centrais sindicais e os setores mais moderados dos piqueteros. Por outro lado, a
experiência da FPV dá fôlego ao projeto de construir uma nova força política de centro
esquerda, para a qual busca atrair setores de trajetória diversa, dentro e fora do
peronismo.
A iniciativa mais importante nesse sentido é o lançamento de Cristina Fernandez à sua
sucessão, numa fórmula em que o candidato à vice-presidente Julio Cobos, governador
da província de Mendoza, pertence à União Cívica Radical, que vence as eleições no
primeiro turno, em 28 de outubro de 2007. Néstor Kirchner termina seu mandato com
índice de imagem positiva próximo aos 60%.
Num quadro de crise e mobilização que parecia antever o inicio de uma situação prérevolucionária, a ordem retorna na Argentina das mãos do peronismo, colocando em
operação, embora com matizes novos, seu tradicional poder de atração de lideranças
políticas, sociais e sindicais para a esfera do Estado. Nesse processo, Néstor Kirchner
constrói uma liderança cuja influência transcende o exercício do seu mandato, tornandose o principal operador político da presidência de Cristina, tanto na dimensão da gestão
do poder executivo, como da articulação das suas bases de sustentação no âmbito dos
demais poderes do Estado, as organizações partidárias, os sindicatos e movimentos
sociais.
A morte inesperada, aos 60 anos de idade, quando se cogitava seu nome como candidato
às eleições de 2011, traz grandes desafios para o governo de Cristina. Além da dolorosa
perda pessoal, deverá enfrentar o vácuo deixado pela sua liderança, componente
fundamental do projeto de poder que construíram juntos, e que se tornou referência
obrigatória do debate nacional sobre os rumos futuros da Argentina.
*Luis Fernando Ayerbe é coordenador do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais da UNESP
http://operamundi.uol.com.br/opiniao_ver.php?idConteudo=1278

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