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NUNO HIPÓLITO
Fernando Pessoa
Uma biografia do íntimo
© 2012/2013 Nuno Hipólito
He jests at scars that never felt a wound
William Shakespeare
Dedico este livro a todos os que sofrem em silêncio.
Para eles, e só para eles, este livro é escrito.
Nota prévia
A primeira biografia de Fernando Pessoa foi escrita em 19501, 15 anos depois da morte do poeta
e pensador, por João Gaspar Simões, crítico literário e fundador do movimento da Presença a que
correspondia uma revista com o mesmo nome. A monumental biografia, intitulada Vida e Obra de
Fernando Pessoa - História duma Geração, constituída por dois grossos volumes, foi recebida com
imenso escândalo pela família do poeta, dando lugar a imediata reacção por escrito, pelo primo
de Pessoa, Eduardo Freitas da Costa2. A visão projectada na biografia de Gaspar Simões persistiu
de certo modo até aos dias de hoje, nomeadamente em dois pontos: o alcoolismo de Pessoa e as
suas grandes dificuldades no relacionamento com as mulheres. Considerada actualmente uma
biografia demasiado freudiana e fantasiosa em alguns pontos cruciais, é no entanto ainda uma
biografia indiscutivelmente valiosa, sobretudo por ter sido escrita tão perto da morte de Pessoa.
Não obstante terem existido outros esforços biográficos posteriores, nenhum deles se revelou
como suficientemente impactante para fazer frente à biografia de Gaspar Simões. Regista-se, em
1988, uma biografia de Ángel Crespo, o grande tradutor de Pessoa para Castelhano, intitulada La
vida plural de Fernando Pessoa3; passados já então 53 anos da morte do poeta. Em 1996, Robert
Bréchon, o maior divulgador de Pessoa em França, publica Étrange Étranger4. À data que
escrevemos, a última grande biografia de Pessoa tinha acabado de ser anunciada na sua tradução
em Português de Portugal – intitula-se Fernando Pessoa – uma quase autobiografia5, da autoria de
José Cavalcanti Filho, Brasileiro. Estes volumes – e são apenas quatro as principais biografias
escritas em mais de oitenta anos6 – aparecem como testemunhos esquisitos (e multilíngues) a um
homem que parece ser demasiado escorregadio para que se lhe faça facilmente uma biografia.
Mas porquê? Afinal há figuras de quem se conhece muito menos, mas que mesmo assim não
impedem uma produção sucessiva e contínua de estudos deste género. Lembre-se por exemplo
do arqui-inimigo de Pessoa, William Shakespear, de quem nem sequer se sabe realmente onde
nasceu ou até se realmente chegou a existir…
(á muito a dizer sobre a arte de biografar alguém. Acho curioso que possamos começar com
precisamente indicações sobre a melhor forma de o fazer, lembrando algumas citações famosas a
este respeito. Oscar Wilde, que Pessoa tanto admirava e detestava ao mesmo tempo, disse:
Biography lends to death a new terror. A biografia traz um novo terror à morte , referindo-se
ao medo acrescido que alguém poderia ter da morte sabendo o que seria escrito sobre ele depois
daquele acontecimento final. Isto porque – e falando desde logo no exemplo da biografia de
Gaspar Simões – há a inevitável tentação ou de endeusar ou de demonizar o biografado. No
entanto há até quem defenda que a biografia de alguém devesse ser escrita pelo seu maior
inimigo7. Seria certamente uma maneira de assegurar a imparcialidade total das opiniões
expressas sobre o visado. No caso de Pessoa, e considerando algumas opiniões recentes, tal
poderá já ter acontecido.
Uma biografia parece ser então um acto de risco sem hipótese de fuga, tanto para o autor como
para o biografado. O autor não pode ser imparcial e certamente nunca conhece o suficiente do
biografado para escrever sobre a totalidade da sua vida. Ou seja, qualquer biografia é um acto
falhado, desde o seu início.
Para piorar ainda mais esta visão, podemos acrescentar que, na verdade, uma biografia que fosse
próxima de ser fidedigna, apenas falaria ainda sobre o exterior do biografado – sobre os factos
visíveis e documentáveis da sua vida exterior – ignorando necessariamente o que ele viveu sem
Vida e Obra de Fernando Pessoa - História duma Geração, 2 Volumes, Bertand, 1950. Em Junho de 1929, Gaspar Simões já
tinha dedicado 20 páginas à poesia de Pessoa, no seu livro Temas, tornando-se assim o primeiro crítico a dedicar-lhe a
devida atenção, ainda em vida.
2 Fernando Pessoa - Notas a uma biografia romanceada, Guimarães, 1951.
3 La vida plural de Fernando Pessoa, Seix Barral, 1988
4 Étrange Étranger, une biographie de Fernando Pessoa, Christian Bourgois Editeur, 1996
5 Fernando Pessoa – uma quase autobiografia, Porto Editora, 2012
6 Não as consideramos biografias de grande fôlego, mas estas três edições biográficas não devem, no entanto, ser
esquecidas: Maria José Lencastre, Fernando Pessoa – Uma Fotobiografia, INCM, 1981; Manuela Nogueira, Fernando Pessoa,
Imagens de uma vida, Assírio & Alvim, 2005; Richard Zenith, Fotobiografia de Fernando Pessoa, Círculo de Leitores, 2008.
7 "Biography should be written by an acute enemy"
Uma biografia deveria ser escrita por um acérrimo inimigo . Arthur
Balfour, Primeiro-Ministro do Reino Unido entre 1902 e 1905.
1
exterioridade, as suas emoções, medos, desejos e ideias. Aliás, na sua autobiografia de 1924, Mark
Twain escreveu sobre isto mesmo, quando diz: Biographies are but the clothes and buttons of
the man. The biography of the man himself cannot be written.
Biografias são somente as
roupas e os botões do homem. A biografia verdadeira do homem não pode ser escrita .
Fernando Pessoa teve, para o bem e para o mal, uma vida relativamente pobre de factos, mas,
ainda assim, uma vida amplamente documentada (muitas das vezes por ele próprio, devido ao
seu hábito obsessivo de guardar papéis). Sabemos quando e onde nasceu, quem eram os seus
pais e avós, onde viveu, por onde viajou e o que fez profissionalmente. Sabemos até com quem se
dava, as poucas paixões que teve, quando escreveu os principais poemas e prosas, quando
finalmente morreu e onde foi enterrado. Fazendo a súmula das impossibilidades biográficas, a
biografia de Fernando Pessoa não deveria ser aparentemente tão difícil de enfrentar. Apesar de
existirem algumas lacunas e da passagem inexorável do tempo, como se explica então que
existam apenas quatro grandes biografias de Fernando Pessoa no ano de 2013?
Este facto poderia explicar-se de maneira simples. A biografia de Fernando Pessoa nunca foi
tomada de ânimo leve pelos estudiosos do poeta. O acto da biografia nos estudos Pessoanos
tornou-se um acto sacramental, a ser experimentado apenas por quem tivesse acedido ao último
grau do conhecimento da sua obra e tivesse mesmo tido a oportunidade de sentir em relação a
ele a sensação plena da sua fraternidade post mortem. É fácil de ver, com a dimensão gigantesca e
complexa dessa mesma obra, o difícil caminho que se tem de atravessar para chegar a esse
estado hipotético. Tanto Ángel Crespo como Robert Bréchon apenas tentam a biografia depois de
décadas de sucessivos estudos publicados. Já Gaspar Simões e Cavalcanti seguem uma rota
diferente. Era impossível a Gaspar Simões, na década de 50, ter a noção completa da dimensão da
obra de Pessoa e por isso mesmo, não lhe era requerido o iniciático ritual de ser um decano desse
estudo (isto embora tivesse sido seu editor). A sua biografia, embora psicológica, tem muito de
intuitivo e de não pleneado, apoiando-se na frescura dos dados biográficos. É essa frescura que,
quanto a nós, lhe continua a dar a imponência que permanece. Já a biografia de Cavalcanti, para
se impor, teve de se esforçar por investigar mais fundo no mundo dos factos e – sendo que o
autor não é também ele decano dos estudos Pessoanos – surge igualmente impulsiva e
peremptória. Não é de estranhar que ambas tenham sido amplamente criticadas. Quem,
entretanto, criticou as biografias de Crespo e Bréchon, senão em pormenores?
Gaspar Simões teve a vantagem do tempo, mas a desvantagem da falta de perspectiva. Cavalcanti
a vantagem da perspectiva e a desvantagem de quase tudo estar já dito quanto a factos. Ambas as
biografias sofrem com as suas desvantagens, mas, mesmo assim, são as duas que se destacam
enquanto biografias exteriores, porque são as que mais se esforçam na recolecção exaustiva
desses mesmos factos, por muito que possam errar.
Há um outro limite à biografia Pessoana – a complexidade. Apenas podemos especular que este
terá sido o limite que se opôs de forma mais forte a quem pensou escrever a próxima grande
biografia de Pessoa, mas que nunca o conseguiu fazer. Uma biografia composta apenas de factos
exteriores parece impossível no caso de Pessoa, precisamente devido à vastidão do que ele
escreveu. Quem não entrar na sua complexidade, ficará apenas na superfície de quem ele era. E
para entrar nessa complexidade é necessária uma verdadeira dedicação, que vai deitando por
terra todos os esforços que sejam também eles apenas superficiais.
É inegável que uma excelente compreensão do biografado se torna indispensável para o acto de
escrever a sua biografia. O contrário seria um contra-senso. No caso de Pessoa quem ousará, no
entanto, dizer que o compreende de maneira completa? Penso que ninguém. Aliás, o acto de
processar a sua complexidade, tornando simples o que é complexo, é precisamente o desafio que
mais afastará quem se aproxima a ele para o resumir. Sim, porque uma biografia, ao fim ao cabo,
nada mais é que um resumo de uma vida.
Mas foi Fernando Pessoa realmente complexo? Quer dizer, foi a sua vida verdadeiramente
complexa, no sentido de ser quase impossível enfrentá-la resumidamente? Pensamos que não.
Aproveitamos este momento para colocar em perspectiva o nosso próprio esforço biográfico,
enquanto pretensa quinta grande biografia . O número cinco representa simbolicamente a
passagem do físico para o consciente, da matéria para o espírito e é precisamente isso que
pretendemos com a nossa biografia – passar dos factos exteriores para os factos interiores.
Como? Devo dizer que este projecto sempre foi para mim um projecto intensamente pessoal.
Para além da inquestionável admiração que tenho pela escrita de Fernando Pessoa, pelas suas
ideias e pelo seu génio, senti por ele, desde sempre, uma enorme fraternidade 8. Essa mesma
fraternidade de que falava antes e que, de costume, apenas se atinge depois de uma vida de
convivência com o que ele escreveu. A sua complexidade nunca me pareceu ser uma verdadeira
complexidade. Aliás, desde que o comecei a ler até hoje, quando já li tanto dele, a sensação que
tenho continua a ser a mesma – de que tudo nele é simples. A aparente complexidade em Pessoa
vem apenas das formas que ele experimentou para fugir à dor que sentia dentro de si. Há um
enorme drama nele, mas não é o drama heteronímico, antes o drama humano que precede todas
as invenções e que, depois delas, continuou a existir em carne viva até à sua morte. Foi com este
drama, com este sofrimento, que eu me identifiquei, por sentir dentro de mim algo de
semelhante. Estranhamente, sempre me senti próximo de Pessoa pela dor e é pela dor que irei
construir esta biografia. Uma biografia que será de Pessoa, mas que será mais do que apenas de
uma vida, porque a vida de Pessoa é um exemplo para todos aqueles que possam sofrer em
silêncio.
Bem vêem que esta biografia não será uma biografia imparcial. Pelo contrário. Eu sou
extremamente parcial ao sofrimento de Fernando Pessoa e farei o possível por expressar isso
mesmo neste meu estudo. Esta biografia é um desafio pessoal porque ao escrever sobre ele,
estarei a escrever sobre mim próprio. Aquém da quase autobiografia de Cavalcanti, o meu
esforço será uma biografia autobiografada . Só assim prevejo que seja possível fazer o
impossível e desfazer o oráculo de Twain que preconiza a impossibilidade de escrever alguma
vez sobre o verdadeiro homem e não apenas sobre a sua roupa e os seus botões.
Uma biografia do íntimo: é aquilo a que me proponho.
Não ignorarei os factos exteriores da vida do biografado, mas insistirei na importância desses
factos no seu interior. Aliás, quaisquer factos exteriores que sejam irrelevantes interiormente,
serão, naturalmente ignorados. Não me interessa, no meu esforço, construir a imagem completa
da vida exterior de Fernando Pessoa, ao mais infímo detalhe (seja ele sórdido ou menos sórdido).
Quero, por outro lado, construir o melhor possível a imagem da sua vida interior. Penso
conseguir fazê-lo por amor a ele e por amor ao que ele passou.
O objectivo final, no entanto, é mais vasto ainda do que a impossibilidade aparente a que me
proponho – a construção e revelação da vida interior de um homem. Esta biografia de Fernando
Pessoa não será apenas a biografia de um homem, mas a biografia de um projecto de vida
falhado. Uma vida que deve ter um significado maior do que os anos de que foi composta. Um
significado em forma de aviso a todos os que me lêem, porque muitos entre vós se vão identificar,
inesperadamente, com alguns ou muitos pontos da mesma.
A conclusão da biografia, no último capítulo deste volume, será também ela arriscada. Proponho
que se escreva um capítulo mais da vida de Fernando Pessoa. O capítulo que ele não foi capaz de
escrever e que seria o capítulo da sua redenção, o episódio final em que ele recuperava a
felicidade e conseguia vencer o sofrimento. Parte apócrifa certamente, mas tão desejada e
evidente que é impossível não a escrever mesmo que pela minha própria mão à maneira de
acrescento forjado ao resto que já aconteceu há tanto tempo.
A nota predominante da sua vida é o sofrimento, a dor. Mas não é a nota final. É necessário que se
escreva a nota final de forma diferente. De maneira a se tornar compreensível que o que ele
viveu, de que a forma como ele viveu não era a única forma possível de se viver com a dor. Para
que a sua própria memória seja arrancada da escuridão para a luz.
Para que a sua memória passe da temporalidade passageira da carne para o símbolo absoluto do
espírito.
Não recordo com precisão o primeiro poema de Fernando Pessoa que li, mas lembro-me perfeitamente do tema: não
pensar em nada. Era um poema que falava sobre estar sentado sem pensar. Depois de tantos anos de o ter lido, e mesmo
sem me recordar de que poema foi, tenho em mim a sensação plena que senti ao lê-lo, pois descrevia na perfeição o
desejo que eu mesmo sentia, de fuga do mundo e sobretudo de fuga do sofrimento do mundo.
8
I Parte
A BIOGRAFIA REAL
As seguintes páginas descrevem a biografia real de Fernando Pessoa, no período compreendido
entre 1888 a 1935. Todos os factos relatados são reais e/ou conjecturados com base na realidade.
1888-1905
LOUCURA
A loucura caracteriza-se, essencialmente, pela perda da
adaptação mental ao que chamamos a realidade, ou seja
pela incapacidade de distinguir entre os fenómenos
subjectivos. A loucura é sonhar acordado sem dar por isso.
Fernando Pessoa, «A Carta Mágica», sem data
Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um
mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que
nunca existiram.
Carta a Adolfo Casais Monteiro, datada de 13/01/1935,
conhecida como a carta da génese dos heterónimos
I
Sol em Gémeos, Ascendente em Escorpião
Fernando António Nogueira Pessoa nasceu a 13 de Junho de 1888 em Lisboa, por volta das
15h139. Era portanto do signo Gémeos, com ascendente em Escorpião. Começaremos por analisar
a sua predisposição astrológica. Para este efeito elaborámos um perfil astrológico automático (e
por isso mesmo imparcial) com os seguintes resultados (que comentaremos individualmente) 10:
Sol em Gémeos, Lua em Leão
Você nasceu com o Sol em Gémeos e a Lua em Leão. Bem no fundo, você é um intelectual. Sua mente é
muito maleável, adaptável, alerta e ambiciosa. Ela é positiva e forte. Por dentro, você está sob a influência do
Sol em Gémeos, o que o torna uma pessoa volúvel.
O risco é você às vezes se perder em meio a conceitos e teorias, tornando-se cada vez menos activo.
Com um pouco mais de determinação, seu carácter melhoraria muito.
Para as pessoas, sua personalidade transmite força. Parece que o destino sempre o coloca em situações que
exigem de você autoridade e plena responsabilidade.
As pessoas que têm a Lua em Leão podem ter sorte com dinheiro. Aberto às críticas, você poderá atingir
reconhecimento e fama na vida. Você se expressa bem e não pestaneja quando se trata de lidar com o
público. Qualquer traço negativo que você possa ter pode ser compensado por sua generosidade e por sua
atitude directa e despretensiosa.
Embora seja muito susceptível no amor e no sexo, você tem sorte nos relacionamentos e se mostra um
amante sincero.
O segredo para uma melhor integração está em harmonizar sua natureza intelectual, mais verdadeira, com
sua personalidade aparentemente passional.
Com uma personalidade tipicamente geminiana, Pessoa, embora intelectual e maleável,
encontrava-se sempre demasiado preso em novos projectos, nunca conseguindo terminar o que
iniciava. Havia nele a luta eterna entre razão e paixão. Tinha desde o início uma forte
predisposição para se tornar eventualmente famoso em vida, com um interessante pormenor: se
estivesse aberto às críticas. Embora se encontre uma predisposição para ter sorte nos
relacionamentos , sabemos que a vida de Pessoa acabou por não lhe revelar tanta sorte assim.
Ascendente em Escorpião, Marte na Casa 12
No momento de seu nascimento, o signo zodiacal de Escorpião estava ascendendo no horizonte. Seu regente,
Marte, está situado na Casa 12.
Sua vida terá a marca de seu temperamento astuto, segredista, obstinado, inteligente e reservado.
Você é um enigma: com esses traços, os acontecimentos de sua vida tanto podem ser muito trágicos
como muito felizes. A que tipo de Escorpião você pertence? Existem dois tipos: o extremamente emocional,
atraído pelos aspectos patológicos da relação biológica, e o extremamente místico, preocupado com a
espiritualidade.
Você é uma pessoa de extremos, muito sensível e afectuosa. Há uma certa tendência ao ocultismo e à
mediunidade. Você é activo no sentido de viver constantemente uma luta psicológica entre um pólo positivo
e um pólo negativo: o que afirma e satisfaz e o que rejeita e reprime. Seus sentimentos são muito intensos:
você se aferra com paixão ao ser amado, da mesma forma que, quando não gosta de alguém, se fixa nisso.
Entretanto, ainda há lugar para o optimismo: independente de qual o seu tipo de Escorpião, bem no fundo
você deseja a regeneração psíquica.
Em algum momento da vida, após a ocorrência de um fato muito importante e drástico que o afecte
profundamente, a meta e toda a expressão de seu ego poderá mudar inteiramente. Porém a
intensidade e a profundidade de sua paixão sempre permanecerão constantes. Você tende a recolher- se e
planejar em segredo seu curso de acção, relutando em revelar aos outros a exacta natureza de sua disposição
e seus sentimentos. No sexo, você é muito passional e se apega com muita força.
9 O próprio Fernando Pessoa não sabia exactamente quando tinha ocorrido o seu nascimento. Na sua certidão de
nascimento consta 15h20m. No entanto, e por investigações posteriores, presume-se que ele tenha ocorrido ligeiramente
antes, por volta das 15h13m. Foi esta a hora que usámos para elaborar o seu perfil astrológico. Ver a este respeito: Paulo
Cardoso, Fernando Pessoa – Cartas Astrológicas, pág. 34 e segs.. Bertrand, 2011. Uma nota adicional relativa ao António no
seu nome, normalmente explicado por 13 de Junho ser dia de S. António em Lisboa e a família reclamar ligação ao santo.
10 Usamos para este efeito o website www.astro.com.
Procure controlar mais as paixões e não fique tão ressentido com as pessoas. Empregue sua força de
vontade e de carácter em objectivos benéficos.
Você tem muita vocação para a medicina, inclusive para a cirurgia. Você tem interesse por pesquisas e
pela investigação em geral.
Você é uma pessoa que nasceu com uma forte inclinação por todo tipo de aventura estranha e
desfavorável que pode acarretar-lhe graves riscos. Se analisar bem esse fato, poderá chegar à
compreensão de que muitos de seus problemas decorrem basicamente de você seguir os impulsos em vez da
razão.
Este posicionamento lhe infunde um grande interesse pelo ocultismo. Porém, para seu próprio bem,
procure controlar sua possível participação em actividades e organizações esotéricas. Você está
sujeito a sofrer detenções por engano e a ser ludibriado por alguém a quem ama. Só uma afeição pura
poderá sanar todos esses problemas.
A segunda parte do perfil astrológico é extremamente curiosa. Mostra-nos um Pessoa obstinado e
sensível, alguém de extremos que encontra dificuldades em reconciliar-se consigo próprio.
Existiria um episódio marcante na sua vida que mudaria os seus objectivos – podemos apenas
especular qual foi. Seja como for ele era alguém interessado em investigação e com inclinação
para sofrer graves riscos devido à sua natureza impetuosa (o que contrasta com o facto de ele ser
também muito influenciado pela razão, mas compreende-se a ambivalência entre razão e paixão
– no fim das contas era a paixão que o movia realmente, apesar da sua tendência racional). Esta
posição de risco na vida leva-o a ter grande curiosidade relativamente ao ocultismo – uma
atracção para a morte. Realça para a frase final: Só uma afeição pura poderá sanar todos esses
problemas . Ou seja, no fim, apenas o amor o poderia salvar.
Sol na Casa 8
O Sol estava na sua Casa 8 no momento de seu nascimento. Isso faz com que a sua individualidade se
direccione, de uma maneira ou de outra, aos aspectos mais profundos da vida. Seus impulsos sexuais são
intensos, duradouros e vitais. Seu eu mais íntimo sente atracção por temas pouco comuns, em geral
relacionados à vida, à morte e a seus mistérios.
A astrologia tradicional indica que haverá uma crise quando você estiver perto da meia-idade. Se essa
fase for superada, você poderá esperar uma vida longa, com gradual aumento da vitalidade.
Financeiramente, há muita chance de receber uma herança em dinheiro através da parceira ou de um
parente.
Fernando Pessoa é caracterizado como possuindo impulsos sexuais intensos e duradouros, uma
imagem bem diferente daquela que estamos acostumados a ouvir, mas que se aproxima da nossa
própria intuição. Falamos de impulsos e não propriamente de expressões concretas desses
impulsos, mas é essencial demarcarmo-nos desde já da imagem de Pessoa enquanto ser
assexuado. Ele teria interesse por temas misteriosos. Haveria uma grande crise na meia-idade,
que, se fosse superada, levaria a uma longa vida. Sabemos que ele não a superou.
Financeiramente – hipóteses de uma herança de um parente (provavelmente a herança da avó
Dionísia que lhe permitiu montar a tipografia Íbis).
Vénus na Casa 8
Vénus estava na sua Casa 8 no momento de seu nascimento. Este é um posicionamento favorável à
possibilidade de ganho financeiro em empresas de propriedade da parceira ou de associados.
Do ponto de vista psicológico, você encontrará muita harmonia nos relacionamentos sexuais.
Se seu crescimento interior permitir que suas energias vitais se voltem mais para o prazer espiritual que
para o material, você se gratificará muito perscrutando os mistérios da vida e da morte.
Há probabilidade de excelentes oportunidades de progresso na situação financeira e social na meiaidade ou quando você finalmente se estabilizar na vida com um casamento ou outro relacionamento
íntimo.
Financeiramente o perfil de Pessoa mostrava tendência para ganhos financeiros em empresas em
que entrasse como parceiro. Conhecemos os diversos projectos de Pessoa, quase sempre em
parceria com alguém. Temos de lembrar, no entanto, que a natureza passional e pouco racional
nas decisões exteriores levaria a que estes projectos não chegassem a ser bem-sucedidos. No
entanto ele teria gratificação na investigação dos mistérios da vida e da morte – enquanto
projecto espiritual. Havia ainda a hipótese de sucesso na meia-idade, mas apenas se a vida se
estabilizasse com um casamento ou outro relacionamento intimo. Novamente o amor surge como
solução, que infelizmente não se concretizou.
Saturno na Casa 9
Saturno estava na Casa 9 no momento de seu nascimento. Isso indica que sua preocupação com a
fugacidade das coisas o levará a tolher a própria personalidade, adoptando uma postura de cautela e
previsão diante de todas as questões importantes.
Do ponto de vista prático, sua atitude diante de todas as principais funções intelectuais é atenta, séria e
meditativa. Entretanto, você deve ter cuidado com a possível presença de elementos desfavoráveis em sua
constituição intelectual, como depressão, medo e rigidez.
Preocupado com a natureza fugaz das coisas, seria sempre perseguido por um instinto de autoanulação da sua própria personalidade. Isso, entre outros factores, levaria a estados de depressão
e medo. Bem sabemos como ele foi perturbado por estas condições ao longo de toda uma vida.
Lua na Casa 10
A Lua estava na Casa 10 no momento de seu nascimento. Entre outras coisas, isso indica que você sabe
adaptar-se a circunstâncias variáveis. Independente das qualidades de seu temperamento, o destino o
colocará em situações em que você terá de lidar com o público.
É possível, inclusive, que venha a ocupar um cargo público. Entretanto, procure lembrar-se que os êxitos
da Lua são bastante efémeros, não se mantendo por muito tempo.
Entre seus atributos estão a imaginação, a tenacidade e a capacidade de relação com o público. Para os
que estão de fora, você aparenta reagir às emoções, e não à razão. Contudo, você tenta racionalizar
logicamente suas reacções impulsivas. Você conseguirá desenvolver melhor seu potencial na profissão
se puder expressar razoavelmente suas inclinações naturais.
A última entrada no perfil astrológico é porventura a mais difícil de justificar. Fala de uma
predisposição a falar com o público e inclusive a ocupar um cargo público. Sabemos que Pessoa
era avesso, pela timidez, a liderar as conversas; mas também sabemos que as acabava por liderar,
por inteligência e perspicácia. Há que entender estes impulsos enquanto impulsos interiores, que
muitas das vezes não são explorados e postos em prática. É perfeitamente aceitável que Pessoa
tivesse uma inclinação natural que não era uma inclinação tímida e tivesse caído na timidez
apenas por força das circunstâncias e da sua própria educação formal.
Figura 1.
Carta astral de Fernando Pessoa, feita pelo próprio
O perfil astral de Fernando Pessoa pode ser resumido do
seguinte modo (muito simplificado):
Intelectual, mas pouco determinado.
Com opiniões diversas e sempre em mudança.
Reservado mas também de extremos, sensível.
Investigador atraído pelo oculto.
Propenso a depressões.
Sempre preocupado com a fugacidade das coisas, ao ponto
de não conseguir usufruir delas.
A astrologia é verificável, se alguém se der ao trabalho de a
verificar. A razão porque os astros nos influenciam é uma
questão a que é difícil dar resposta, mas não é uma questão
científica. A questão científica é: influenciam ou não
influenciam? A «razão por que» é uma questão metafísica e
não tem que perturbar o facto, a partir do momento em que
descobrimos que é um facto.
Fernando Pessoa, Erostratus
II
Paraíso Perdido?
Tirando o óbvio significado astrológico – destacamos a duplicidade e dispersão (Gémeos)
combinada com a inteligência e o secretismo (Escorpião) - não houve nada de extraordinário no
dia do nascimento de Fernando Pessoa. Foi o primeiro filho e por isso mesmo naturalmente
desejado, de um casal da classe média alta Lisboeta. O pai – Joaquim Pessoa – funcionário público
da Secretaria dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça e crítico musical no Diário de Notícias, 38
anos, a mãe Maria Magdalena Nogueira, 26 anos, culta e poetisa por direito próprio. O parto
ocorreu em casa, no quarto andar esquerdo do n.º 4 do Largo de São Carlos em Lisboa. Esse largo
que vai ter sobre ele uma influência enorme, nomeadamente pela proximidade ao teatro lírico de
São Carlos (cuja traseira dá para a frente do prédio onde ele nasceu) e da Igreja dos Mártires no
Chiado (mesmo ao lado do prédio) – a influência, bem se vê, será sonora (da música e dos sinos),
embora seja evidente que Fernando chegou também a brincar várias vezes no largo,
provavelmente sozinho.
Na casa do Largo de São Carlos vive, nos primeiros anos, com os pais, a sua avó Paterna Dionísia
Pessoa e duas criadas. Criança claramente dotada, aprende a ler a escrever aos 4 anos (em 1892).
A primeira data de nota na vida do pequeno Fernando ocorre em Janeiro de 1893. Neste mês
nasce o seu irmão Jorge e ele deixa de ser filho único, com 4 anos. Depois da boa notícia, o pai de
Pessoa, desde há muito de saúde debilitada11, fica mais doente e afasta-se da família para
tratamentos de águas , de 19 de Maio a 12 de Julho. Fernando, de 19 a 26 de Maio de 1893
estará com o pai no Hotel Progresso, em Caneças, subúrbio de Lisboa, para o acompanhar nos
tratamentos para a tuberculose12. O período que Fernando passa com o pai em Caneças, embora
curto, não pode ser ignorado. Como nos é revelado pelas cartas que o pai enviava para casa, o
pequeno Fernando interagia frequentemente com o pai e com a avó materna13 (que também os
acompanhava) e tinha comportamentos típicos de uma criança pequena, como birras e até
mostrava já sinais da sua própria frágil saúde. Eis alguns exemplos retirados das cartas de
Joaquim à sua mulher:
O Fernando está bem e tem brincado com o António. Às vezes parece estar um pouco mole, ou estranho, mas
depois anima-se. Esta noite dormiu menos. Tem estado mal disposto e magoado bastante a avó. Coitado!
Carta de 25/05/1893
O Fernando hoje também está mais bem-disposto. Ontem moeu a avó coitada e sobressaltou-me a mim
julgando que estivesse doente. Era uma birra.
Carta de 22/05/1893
Fiquei com cuidado no Fernando porque ía rouco. Nós jogámos o voltarete14 e às 11 horas vim para cima,
para o meu quarto.
Carta de 29/05/1893
Fernando mostrava ser apenas uma criança normal. Mas pouco depois de fazer 5 anos, a última
festa de aniversário que contará com a presença de Joaquim regressado temporariamente de
Caneças, ele vai passar a ser órfão de pai. Joaquim morre em casa às 5 horas da manhã do dia 13
de Julho de 1893.
Já em
, tem Joaquim apenas
anos, e já se lhe refere um conhecido como uma criatura magra, chupada, com
aspecto de tuberculoso in Manuel Matos, Joaquim Seabra Pessoa ou o engenho sensível, pág. 20, Fundação Eng. António de
Almeida, 1988.
12 Os tratamentos para a tuberculose no fim do Século XIX consistiam primariamente em mudanças de ares para os
arredores e outros tratamentos pouco adequados, embora potencialmente tóxicos, devido à inexistência de uma
propedêutica medicamentosa verdadeira eficaz. Lembre-se que a penicilina seria descoberta por Alexander Fleming em
1928, sendo aplicada como medicamento apenas desde 1941. Na ausência de antibióticos era costume usar-se o arsénico
(estimulante) e o quinino (antipirético e analgésico).
13 Nas cartas que deixou, Joaquim Pessoa tratava a sogra por Mamã e Dionísia sua mãe por Mãe .
14 Jogo de cartas, jogado a 3, com 9 cartas dadas a cada jogador.
11
Há quem aponte o período de 1888-1893 como um período de ouro da infância de Fernando
Pessoa. Gaspar Simões chamou-lhe o Paraíso Perdido . Mas será que foi assim realmente? Já
antes da doença do pai se agravar, Fernando teve de conviver com outro problema – a demência
da sua avó paterna, Dionísia Seabra. Joaquim Seabra escreve também sobre isso:
Estimo que a minha mãe estivesse mais sossegada. Deus queira que não haja maior trabalho.
Carta de 20/05/1893
Recebi o teu bilhete e vejo que a minha Mãe continua na mesma. Coitadinha, assim demente, que tristeza! Ao
menos que não tenha exaltações que mais a fazem sofrer. Ela tem comido? Dá-lhe sempre o extracto na sopa.
Carta de 25/05/1893
Recebi há pouco o teu bilhete e fiquei em muito cuidado por causa da minha Mãe. Afinal, apesar de dizeres
que ela está parvinha e demente, não deixa de ter essas grandes agitações, que é o que eu mais temo e que
prostram. Se ao menos estivesse sossegada, ainda havia essa triste consolação, mas afinal são ambos os
males.
Carta de 26/05/1893
Hoje são anos da minha Mãe. Que tristeza! Se ela se lembrará do dia!
Carta de 17/06/1893
Dionísia sofria de demência desde a sua meia-idade15. Quando Fernando nasce, ela tem 64 anos. É
por isso evidente que ele conviveu com essa demência desde que nasceu.
Tratava-se de uma demência violenta mesmo que intercalada com períodos de acalmia, a que
Fernando Pessoa não poderia ter ficado indiferente, embora a sua tenra idade não lhe permitisse
porventura a total compreensão do estado mental da sua avó. Talvez essa incompreensão tivesse
mesmo piorado o que ele sentia relativamente a esse mesmo estado e sobretudo à atitude dela
perante ele. Tem-se tornado comum dizer que Dionísia Seabra não gostava de crianças, mas é
sobretudo de realçar que alguém demente terá dificuldade em ter uma atitude dita normal
perante seja quem for, crianças ou adultos. Certo é que Fernando ficou tremendamente assustado
com a condição da avó, ao ponto de isso o perseguir sempre ao longo da vida, conjuntamente com
o medo da tuberculose (que vitimará, para além do pai, o seu irmão Jorge).
A morte do irmão Jorge, em Janeiro de 1894 surge depois de mais um acontecimento traumático
– a mudança da família para uma casa mais modesta, no terceiro andar do n.º 104 da Rua de São
Marçal, em Lisboa, depois de leilão de grande parte da mobília.
Qualquer semelhança de idílio – que a nosso ver nunca aconteceu realmente – acabou em
definitivo com esta mudança. A doença da avó - que vai entrando e saindo de manicómios tornada quiçá mais suportável numa casa ampla, vai ficar mais aflitiva para todos os que têm de
conviver agora com ela.
Figura 2.
Largo de São Carlos e Igreja dos Mártires
É visível nesta fotografia contemporânea, a proximidade
entre o 4.º andar (o último) do n.º 4 do Largo de São
Carlos (o prédio amarelo à esquerda) com a Igreja dos
Mártires, no Chiado. Os sinos da Igreja estão a pouco mais
de uma dezena de metros de onde Fernando Pessoa
nasceu e viveu até aos 5 anos de idade. O Largo de São
Carlos, em 1913 passou a chamar-se Largo do Directório,
por ficar instalado no prédio onde nasceu Pessoa a sede do
Partido Republicano. Voltou ao nome antigo em 1956.
Fotografia © Luísa Correia, 2008
15
Cf. Manuela Nogueira, Fernando Pessoa - Imagens de uma vida, pág. 18, Assírio & Alvim, 2005
III
Menino de sua mãe
Quem é esta criança, aos 5 anos de idade, depois da morte do pai, do irmão mais novo e da
convivência desde o nascimento com uma avó demente com acessos violentos e imprevisíveis?
Comecemos pelo pai. Que memórias guardará de um pai ausente tão cedo da sua vida?
A presença do pai na sua obra futura é escassa e indirecta. Sobre o pai ele escreverá:
Meu pai, que vivia longe, matou-se quando eu tinha três anos e nunca o conheci. Não sei ainda por que é que
vivia longe. Nunca me importei de o saber. Lembro-me da notícia da sua morte como de uma grande
seriedade às primeiras refeições depois de se saber. Olhavam, lembro-me, de vez em quando para mim. E eu
olhava de troco, entendendo estupidamente. Depois comia com mais regra, pois talvez, sem eu ver,
continuassem a olhar-me.16
Lendo o que escrevemos antes sobre a estadia de Joaquim em Caneças não é difícil de fazer a
ligação entre essa história real e esta história (meio) imaginada. Joaquim Pessoa é uma presença
que vive longe na memória de Fernando, alguém que ele nunca chegou verdadeiramente a
conhecer e cuja morte lhe chegou como uma notícia séria que mudou a sua rotina habitual de
criança, sem ele perceber bem porquê.
A perda do pai e do irmão leva-o, já traumatizado, a ligar-se progressivamente mais à sua mãe.
Será, naturalmente, o seu maior e único apoio real numa idade tão precoce.
Mas quem era realmente a sua mãe?
Não existem grandes dados relativos à afectividade dela em relação a Fernando Pessoa. Sabemola, mais tarde, preocupada com o seu futuro e sempre em dúvida relativamente às decisões que
ele toma na idade adulta, o que forma, aos nossos olhos, uma imagem de uma mulher algo fria e
distante ou pelo menos muito menos sensível do que seria de esperar (contrariando a sua
formação). É sensato pensar que existisse algum distanciamento entre ambos, sobretudo depois
da morte do marido e do segundo filho. A decisão que Magdalena toma, de casar novamente
pouco passava um ano da morte de Joaquim Pessoa (conhece o novo pretendente em Outubro de
1894) e quase depois da morte do filho Jorge revela um pouco a sua necessidade de evitar a
solidão a todo o custo. Isto embora não duvidemos da pena que sentiu com a morte de Joaquim.
Não é por acaso que Fernando Pessoa cria o seu primeiro heterónimo 17 – Chevalier de Pas18 no fim do ano de 1894, com 6 anos. O nome francês veio obviamente da influência materna, mas a
motivação foi tudo menos elogiosa. A reacção do pequeno Fernando é furiosamente contida.
Chavalier de Pas escreve-lhe cartas e serve de único escape possível (e intelectual) para a sua
frustração e desnorte. Sobredotado ou não, Fernando não deixa de ser uma criança. Com 6 anos
feitos, a sua vida está completamente desfeita e desagregada – sem pai, com um irmão morto,
numa nova casa e com um estranho homem (futuro padrasto) que está a começar a afastar de si a
atenção da sua mãe.
A criação de um amigo imaginário não é incomum na infância. Aliás, diversos estudos recentes
demonstram mesmo que pode ser um sinal de inteligência fora do comum. Mas o que não é
certamente comum é que esse amigo não desapareça na adolescência e idade adulta. Temos de
nos questionar se a criação do Cavaleiro do Nada foi apenas um mecanismo natural da infância
Livro do Desassossego, vol. I, Lisboa, Ática, 1982, Pág. 206.
Em rigor apenas existiram três heterónimos, Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis, pois só estes possuíam
uma biografia própria desenvolvida ao lado de obras próprias e bem definidas. Há que realçar igualmente que o próprio
termo heterónimo é um termo usado tardiamente pelo próprio Pessoa, apenas em 1928, não sendo provável que ele
pensasse numa estrutura heteronímica da sua obra – pelo menos conscientemente – a não ser já na sua idade adulta.
18 A ortografia original é ligeiramente diferente: Le Chavalier de pà ou Cavalier de pà . Cf. Manuela Nogueira, Op. Cit.,
pág. 29.
16
17
de Fernando ou um já um sinal de aviso de que algo não estava a correr bem psicologicamente na
sua vida. Pessoalmente tendemos para a segunda hipótese, sobretudo tendo em conta a altura em
que a personagem é criada – precisamente no desembocar de diversos episódios traumáticos,
como as mortes do pai e irmão, a mudança de casa, a presença da loucura da avó e a aproximação
da mãe a outro homem.
Numa altura formadora da sua personalidade, a criação de uma personalidade fora de si próprio,
forma uma espécie de escudo protector para o seu interior. Em certa medida, esta construção
imaginária, que serve de escape ao mundo real, significa o primeiro e decisivo passo numa
espécie de morte espiritual de Fernando Pessoa. Ele, ao longo da sua vida, vai sentir sempre a
necessidade de se proteger do mundo exterior através da construção de personalidades.
Existirão, da sua parte, suficientes justificações racionais, mas nenhuma colhe realmente. A
verdadeira razão para o aparecimento destas personalidades exteriores a ele é apenas uma: a
necessidade de proteger a sua própria personalidade interior que surgirá como o resto .
Quem será que escreve aquele que é considerado o seu primeiro poema? Será já Chevalier de Pas
que escreve À minha querida mamã , em
, quando Fernando tem anos de idade?
Ó terras de Portugal
Ó terras onde eu nasci
Por muito que goste delas
Inda gosto mais de ti.
26/7/1895
Dada a fraca constituição física de Fernando, a mãe pensa seriamente em deixá-lo com parentes
em Lisboa ou nos Açores. A viagem para a África do Sul – o padrasto de Fernando, João Miguel
Rosa, viria a ser cônsul em Durban – seria difícil para uma criança como ele. Mas, já obstinado
com tão tenra idade (claramente do seu lado Escorpião), ele, aparentemente, decide por ela. O
poema, escrito a limpo com a letra cuidada da mãe, é o testemunho mais antigo do seu talento
poético e – a ser verdadeiro – mostra a clara angústia que ele enfrentava, entre a decisão de
partir e deixar partir a sua mãe, que era agora o seu único vínculo familiar directo.
Será que Fernando se culpa por tudo o que lhe aconteceu desde os 5 anos? É impossível dizermos
se ele tem plena consciência disso e o mais provável é que não tenha. Mas o que é provável é que
essa culpa exista, em maior ou menor grau e tenha sido canalizada criativamente para a criação
das tais personagens fictícias que cada vez mais vão povoar o seu mundo fechado. Ao lado de
Chavalier de Pas, Fernando Pessoa menciona também outra figura curiosa – o capitão Thibeaut.
Será apenas um acaso que ambos nos lembrem figuras militares? Talvez a sua presença possa ter
alguma coisa a ver com a introdução na família do Comandante João Miguel Rosa.
Figura 3.
A mãe de Fernando Pessoa, Maria Magdalena Nogueira
A mãe de Fernando Pessoa foi educada seguindo os mais altos padrões
da altura, tendo inclusive tido como preceptor aquele que serviu o futuro
Rei D. Carlos. Na sua família existiam diversas pessoas de influência,
justificando-se assim de certo modo a forma como foi educada, embora
fosse mulher. Aprendeu a falar perfeitamente Francês e Alemão, e
também sabia Inglês. Escrevia poemas. Chegaram-nos poemas que
escreveu logo depois da morte do primeiro marido, bem como poemas
que escreveu ao segundo marido.
É provável que a obsessão de Fernando Pessoa pela sua linhagem tenha
vindo em parte também por influência materna, sendo que da parte do
pai os seus familiares eram sobretudo do ramo militar.
Gaspar Simões, seu primeiro biógrafo, realçou, a nosso ver de forma
exagerada, a influência da mãe de Pessoa na sua vida. Embora sejam
visíveis as marcas da sua mãe em muitos dos seus actos, não é possível
estudar Pessoa de um ponto de vista estritamente Freudiano, enquanto
um menino que tenta a todo o custo agradar à sua mãe sem nunca o
conseguir – aliás, ele diversas vezes procurou o contrário.
IV
As saudades da infância
Quando a família de Fernando parte de Lisboa em direcção à África do Sul no dia 20 de Janeiro de
1896, ele já estava profundamente traumatizado. As fotos da transição entre os 6 e os 10 anos
mostram uma mudança de semblante notável, de uma criança algo despreocupada para alguém
que está notavelmente menos confortável na sua própria pele.
Durante toda a sua vida a palavra viagem terá um significado enorme, e esse significado começa
a ser construído precisamente quando ele parte pela primeira vez de Lisboa em direcção a uma
escala na Madeira para depois seguir para o seu destino final no continente Africano.
Curiosamente, quando ele parte para África, é novamente o filho único que tinha sido na altura
em que o seu pai estava mais presente (antes do nascimento do seu primeiro irmão). É inevitável
que haja uma grande ligação entre ele e a sua mãe nesta altura. Mas essa ligação estaria já
contaminada, devido à existência do padrasto, mas sobretudo devido ao facto da mãe ter
decidido deixar Lisboa e ter pensado em deixá-lo para trás.
Há a quebra inicial da (relativa) harmonia familiar 19, que vimos nem sequer ter sido muito forte
em conjunto com um número de acontecimentos trágicos (a que ele próprio seria propenso na
vida adulta). Será que isto nos permite, neste preciso momento, entender melhor algumas
expressões de Pessoa que – pessoalmente – sempre me intrigaram? Refiro-me particularmente
ao modo como ele encarava a sua infância. Ele diz no Livro do Desassossego (negritos nossos):
Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que me têm feito chorar. Lembrome, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira vez numa selecta o passo
célebre de Vieira sobre o rei Salomão. «Fabricou Salomão um palácio...» E fui lendo, até ao fim, trémulo,
confuso: depois rompi em lágrimas, felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma
tristeza da vida me fará imitar. Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir
das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombro vocálico em que os
sons são cores ideais - tudo isso me toldou de instinto como uma grande emoção política. E, disse, chorei:
hoje, relembrando, ainda choro. Não é - não - a saudade da infância de que não tenho saudades: é a
saudade da emoção daquele momento, a mágoa de não poder já ler pela primeira vez aquela grande certeza
sinfónica.20
Numa carta extraordinária – a que vamos regressar mais vezes – ele escreve (novamente,
negritos nossos):
Nunca senti saudades da infância; nunca senti, em verdade, saudades de nada. Sou, por índole, e no sentido
directo da palavra, futurista. Não sei ter pessimismo, nem olhar para trás. Que eu saiba ou repare, só a falta
de dinheiro (no próprio momento) ou um tempo de trovoada (enquanto dura) são capazes de me deprimir.
Tenho, do passado, somente saudades de pessoas idas, a quem amei; mas não é a saudade do tempo
em que as amei, mas a saudade delas: queria-as vivas hoje, e com a idade que hoje tivessem, se até hoje
tivessem vivido. O mais são atitudes literárias, sentidas intensamente por instinto dramático, quer as
assine Álvaro de Campos quer as assine Fernando Pessoa. São suficientemente representadas, no tom e na
verdade, por aquele meu breve poema que começa: «Ó sino da minha aldeia...». O sino da minha aldeia,
Gaspar Simões, é o da Igreja dos Mártires, ali no Chiado. A aldeia em que nasci foi o Largo de S. Carlos, hoje do
Directório, e a casa em que nasci foi aquela onde mais tarde (no segundo andar; eu nasci no quarto) haveria
de instalar-se o Directório Republicano. (Nota: a casa estava condenada a ser notável, mas oxalá 4.º andar dê
melhor resultado que o 2.º).21
Devo confessar que sempre encarei com algum cepticismo estas afirmações. Pensei, numa
primeira leitura, que ele estivesse apenas a tentar justificar de modo pouco convincente que não
tinha saudades do período da sua vida que, aparentemente, tinha sido o mais feliz. Apenas no
momento em que se tem acesso a uma visão mais pormenorizada da sua vida se pode
19 Há que não esquecer que, para além da presença da mãe e do pai, Fernando tinha por companhia frequente outros
membros da sua família, dos quais se destacavam os seus tios Gualdino Cunha e Maria Xavier Pinheiro. É perceptível nas
cartas do tio que Fernando Pessoa era uma criança animada e alegre e que frequentavam juntos algumas actividades,
nomeadamente touradas. Cf. Manuela Nogueira, Op. Cit., pág. 23.
20 Livro do Desasocego, INCM, pág. 326
21 Carta a João Gaspar Simões, datada de 11 de Dezembro de 1931.
compreender realmente o que ele poderá estar a dizer e, sobretudo, entender a sua sinceridade.
Acredito agora que ele poderia não ter saudades da infância, pela simples razão de que a sua
infância não foi – enquanto período – uma infância feliz. Ou foi apenas feliz na dimensão estética
dessa felicidade, como ele próprio diz são saudades das pessoas que habitavam individualmente
essa infância e que foram morrendo e não propriamente da infância enquanto um todo.
Em certa medida a viagem parece acomodar-se a este modo de vivência da realidade. Fernando
Pessoa é uma criança afastada da realidade, afastado para dentro de si próprio e para uma
vivência que será cada vez mais (necessariamente) interior. Compreende-se que assim seja,
porque o seu interior será a única realidade que ele conseguirá controlar – tudo o resto lhe foge
das mãos (a morte do pai, do irmão, a loucura da avó, a mudança de casa e o segundo casamento
da mãe). Porque é que a viagem parece acomodar-se à sua nova vida ? Simplesmente porque ele
já não tem, em rigor, muito a que se agarrar. Tudo está perdido para ele e o tom dramático não é
exagerado tratando-se de uma criança muito jovem. Onde estão as suas amarras a um presente
estável, num período tão fulcral no seu desenvolvimento? Onde estão as suas referências, a
família completa e presente e a rotina previsível e reconfortante para alguém que só quer
crescer?
Sem nada a que se agarrar é natural que uma viagem sem destino previsível – África para uma
criança bem pode ser o mesmo que o fim do mundo – seja preferível a ficar ainda mais
abandonado. Não poderemos saber o que Fernando pensa sobre isso, mas sabemos certamente
que o acto de viajar já não é um acto decisivo sobre a sua psique. Não é a viagem para África que
o vai moldar a ser uma figura taciturna e fechada. Ele já sai de Lisboa assim e foi em Lisboa que se
começou a formar a sua persona dramática . A forma como ele sai de Lisboa pode ser sintetizada
numa simples frase: Anulado, por pensar que não havia lugar para si .
Deixar de existir poderá igualmente parecer uma posição demasiado drástica para ser assumida
por uma criança que ainda não fez 10 anos, mas cada vez mais nos convencemos que a própria
convicção de Fernando é que não existe mais lugar para ele num mundo em que tudo mudou e
nada permaneceu igual. Ter-se-à culpado a si mesmo pelo que acontecia? Podemos apenas
especular, mas não será descabido dizê-lo. Não será até demasiado descabido dizer que ele se
poderá ter culpado a si próprio pela falta de afeição da mãe, que, embora mostre preocupação em
não o deixar sozinho com familiares em Portugal, considera tal opção de modo tão sério que mais
parece estar já tomada, não sendo a intervenção literal de Fernando a pará-la sem hipótese de
regresso possível.
Estamos então plenamente convencidos que o Fernando que vai em viagem já não vai regressar
igual, mas por culpa da sua infância e não da viagem em si mesma. Ele morreu, para renascer
outro (ou outros).
Figura 4.
Fernando aos 6 anos (à esquerda)
Figura 5.
Fernando aos 10 anos (à direita)
Estas duas fotografias de estúdio, uma
tirada em Lisboa e outra em Durban,
mostram a diferença operada entre
1894 e 1898 no pequeno Fernando.
É em 1894 que Fernando cria o seu
primeiro heterónimo . Em
ele
está em Durban há 2 anos e é nesse
mesmo ano que nasce a sua irmã
Henriqueta Madalena, a sua querida
irmã Teca, com quem tanto privaria e
que, mais tarde guardaria com amor o
seu espólio.
V
Carnaval em África
É comum dizer-se que a vida de Fernando Pessoa em África não se encontra no que escreveu, que
é uma espécie de período esquecido que ele preferiu bloquear quando já era adulto. Nada mais
distante da verdade. Existem amplas pistas da presença de África na obra de Fernando Pessoa,
sobretudo em Álvaro de Campos. Começo por um poema que – penso – ilustra bem as primeiras
impressões do território numa criança de 8/9 anos (negritos nossos) 22:
Uma pândega esta existência toda...
Que embrulhada se mete por mim dentro
E sempre em mim desloca o crente centro
Do meu psiquismo, que anda sempre à roda...
E contudo eu estou como ninguém
De amoroso acordo com isto tudo...
Não encontro em mim, quando me estudo,
Diferença entre mim e isto que tem
Esta balbúrdia de carnaval tolo,
Esta mistura de europeu e zulu
Este batuque tremendo e chulo
E elegantemente em desconsolo...
Embora Campos tenha surgido tardiamente – certamente mais de uma década depois da chegada
à África do Sul – ele será o heterónimo-chave para as lembranças de África, porque é o
heterónimo das viagens. A viagem do Opiário , por exemplo, não é imaginada, mas retirada das
memórias reais das viagens de Pessoa de e para África.
O poema do qual reproduzimos em cima um excerto, chamado Carnaval , traz-nos a impressão
confusa que a nova terra terá tido nele. Uma cidade recente, forjada no meio de conflitos com as
populações locais, uma espécie de cidade-fronteira, quase à maneira do velho Oeste onde os
brancos – vindos sobretudo da Europa (Ingleses e Holandeses), mas também da Ásia – se
misturavam com os negros – muitos deles com origens tribais Zulu.
Como branco influente, Fernando Pessoa traz em si, naturalmente, os preconceitos da sua época,
nomeadamente no que diz respeito ao tratamento dos negros. Vê com alguma naturalidade a
escravatura e a subjugação da raça negra pela raça branca. Uma visão facilmente assumida do
alto da casa de família em Durban, que, vedada, subida mas ainda assim rasa de um só piso,
consegue sobrepor-se também ela, certamente, às casas pobres das famílias negras dos arredores
da cidade. Curiosamente, esta visão algo snob da realidade das coisas vai progressivamente
esbater-se, quando ele próprio se começar a ver como escravo da realidade. Mais tarde ele
escreve no Livro do Desassossego:
A escravatura é a lei da vida, e não há outra lei, porque esta tem de cumprir-se, sem revolta possível nem
refúgio que achar. Uns nascem escravos, outros tornam-se escravos, e a outros a escravidão é dada.23
Começa por estudar numa escola de freiras, em Fevereiro de 1896, onde faz a instrução primária.
Não é muito referida a experiência dele nesta escola, que decerto o marcou pela insistência numa
religiosidade rígida. Ele faz aqui a sua primeira comunhão e, talvez, as memórias necessárias para
(não muito) mais tarde se tornar profundamente anti-religioso24.
Temos obviamente também de considerar que a África com que Fernando Pessoa contactou foi uma África pouco ou
nada profunda, tendo ele passado o seu tempo entre a escola e a sua casa. Embora pouco cosmopolita segundo padrões
Europeus, Durban tinha um crescimento acentuado e possuía assim, mais do que um carácter estranho e Africano (para
um Europeu), talvez um carácter intrinsecamente dinâmico e de expansão contínua.
23 Livro do Desasocego, pág. 309.
24 Apenas 9 anos depois, Alexander Search assinará um famoso pacto com o Diabo .
22
Em 27 de Novembro de 1896 nasce a sua irmã Henriqueta Madalena, conhecida depois
afectuosamente por Teca. Fernando deixa novamente de ser filho único, condição de que gozou
pouco tempo, entre a morte do seu irmão Jorge e a chegada a África. Dois anos depois nasce outra
irmã, Madalena Henriqueta, que sucumbirá a uma meningite em 1901 – a terceira morte na sua
família nuclear em pouco mais de 8 anos.
Em Abril de 1899 inicia os seus estudos no Durban High School, uma escola rigorosa e ao estilo
)nglês , ou seja, com uma marcada tradição clássica e enfâse na actividade física.
Ao longo da sua carreira escolar mostra-se um rapaz dotado mas também isolado. Para isso
muito vai contribuir o facto de saltar alguns anos. Num ambiente Britânico, altamente
competitivo, podemos apenas imaginar a maneira como poderia ter sido visto pelos seus colegas.
Aliás, não é de todo de pôr de parte que ele tenha sofrido de uma espécie de abuso na escola – o
que hoje em dia normalmente se denomina por bullying. Alguns estudiosos de Pessoa indicam
mesmo um texto onde poderão estar algumas pistas relativas a esta suposta violência: Os
Rapazes de Barrowby 25. Nesta pequena prosa é descrito um colégio interno e a recepção dos
caloiros, acabando com uma cena de violência entre os veteranos e os caloiros. Será que o
próprio Fernando assistiu a cenas semelhantes ou esteve mesmo envolvido nelas como caloiro?
Era inevitável que Fernando tivesse sofrido de alguma forma com a sua passagem pelo High
School. Seja pela sua constituição física franzina, seja pela sua apetência por estar sozinho ou
apenas por ser dotado com uma inteligência claramente superior à média. Se foi vítima de praxes
(hazing) ou outro tipo de rituais académicos, nunca o saberemos; mas é muito provável que
tivesse assistido a vários, mesmo não sendo objecto principal deles. Este tipo de práticas era
muito comum em colégios masculinos do estilo Inglês.
A carreira escolar é de certo modo exemplar - com apenas algumas falhas nas disciplinas ligadas
às matemáticas – e vai marcá-lo de forma decisiva, sobretudo devido ao que lê. Há uma figura que
aparece como crucial: W. H. Nicholas, o director do colégio e grande conhecedor da literatura
Inglesa. Alguns reconhecem em Ricardo Reis algo deste director, naturalmente austero mas um
latinista hábil e com uma cultura vasta baseada nos clássicos.
Em Janeiro de 1900 nasce outro irmão – Luís Miguel, conhecido por Lhi. No mesmo ano, mas em
Junho (no dia 14, dia a seguir ao do seu próprio aniversário) nasce Ofélia Queiroz, que será a sua
única paixão declarada em vida, pelo menos de que temos conhecimento directo. A diferença de
idades entre ambos é de 12 anos.
1901 será um ano decisivo na sua vida, por duas razões.
A primeira são as férias familiares. O padrasto tira um ano sabático e decide viajar para Portugal
com a família. Fernando, para se distrair e também para dar azo à sua imaginação, concebe
diversos jornais em que escreve com nomes infantis como A Palavra ou O Palrador 26. O
vapor em que a família viaja passa por locais exóticos como Lourenço Marques, Zanzibar, Dar-esSalam, Port Said e Nápoles. Esta viagem ficará para sempre marcada na memória do pequeno
rapaz e mais tarde será impressa no impressionante Opiário de Álvaro de Campos:
E fui criança como toda a gente.
Nasci numa província portuguesa
E tenho conhecido gente inglesa
Que diz que eu sei inglês perfeitamente.
…
Não chegues a Port-Said, navio de ferro!
Volta à direita, nem eu sei para onde.
Passo os dias no smoking-room com o conde —
Um escroc francês, conde de fim de enterro.
Cf. Aníbal Frias, «Pessoa à Coimbra et Coimbra dans Pessoa» in Biblos, n.º VII, pág. 363 3 segs, 2009
Richard Zenith, em entrevista recente, sugere que os jornais de juventude tenham sido criados por influência do tio-avô
de Pessoa, Gualdino da Cunha, que teria levado Fernando a jornais onde tinha amigos, ainda antes da viagem para África
(Cf, Ípsilon, 18 de Janeiro de 2013, p. 16 e segs). Este tio vai aparecer mais tarde na sua escrita automática.
25
26
A propósito, no navio vai o pequeno corpo da sua irmã, para ser enterrado em terras
Portuguesas. De certeza que o impacto desta outra morte não passará despercebido. É provável
que o enterro tenha acontecido em fim de Outubro, princípio de Setembro. Alguns biógrafos
apontam o poema Quando ela passa como testemunho da impressão causada por esta morte,
quando o poeta escreve em Maio de 1902:
Cristãos! Aqui jaz no pó da sepultura
Uma jovem filha da melancolia
O seu viver foi repleto d'amargura
Seu rir foi pranto, dor sua alegria.
Quando eu me sento à janela
P'los vidros qu'a neve embaça
Julgo ver imagem dela
Que já não passa... não passa.
Há porventura a possibilidade que o corpo tivesse sido transladado de Lisboa (onde chegaram
em Setembro) para os Açores, que visitam em Maio de 1902 (onde ficam de 6 a 17), precisamente
na data em que o poema é escrito (dia 15). A referência à passagem seria uma passagem do carro
funerário que carregava o corpo. Curiosamente é esta viagem atribulada que marca um novo
contacto mais forte com a língua Portuguesa. É provável que em Lisboa Fernando tenha
contactado com o General Henrique Rosa e isso lhe tenha avivado o gosto por voltar a escrever
em Português.
A segunda razão da importância desta viagem a Lisboa é indicada – e quanto a nós bem – por um
biógrafo de Pessoa, Richard Zenith. Ele defende que esta viagem é o que impedirá mais tarde
Pessoa de ser elegível para ir para a Universidade em Inglaterra. Fernando acaba por ser
marcado de maneira irreversível por esta viagem familiar e embora seja o melhor aluno da
Durban High School quando regressa a ela em 1904, depois de passar por uma escola comercial27,
não pode ambicionar viajar para Inglaterra como os seus irmãos irão fazer mais tarde. O seu
futuro estará preso, para o bem e para o mal, a Lisboa. A Portugal.
Figura 6.
Fernando com 12 anos.
Esta fotografia de Fernando Pessoa era desconhecida até há alguns
anos, quando foi publicada na fotobiografia de Manuela Nogueira,
Fernando Pessoa, Imagens de uma vida, em 2008. Ela mostra um
Fernando em traje de cavaleiro, com camisa brasonada, botas e chapéu
de abas. Embora a fotografia nos remeta a um jogo, uma brincadeira, o
semblante de Fernando é sério e compenetrado.
Com 12 anos de idade ele não é particularmente alto ou dotado
fisicamente, em provável amplo contraste com os seus colegas do
Durban Highschool, que eram pelo menos 2 anos mais velhos do que
ele28 – visto que ele saltou anos devido à sua excelente performance
escolar e por decisão do director do High School que parece ter
insistido em o manter debaixo de olho, como mentor. Sabemos que
esse mesmo director – W. H. Nicholas – provavelmente viu o potencial
do estrangeiro , motivando-o a continuar e promovendo assim a sua
cultura Inglesa e latina.
Acabará o High School com 13 anos. Uma idade precoce que não o
impede de começar, lentamente, a tentar progressivamente afirmar-se
no ambiente cultural de Durban. A sua primeira publicação Inglesa
terá lugar em 1904, no jornal Durban Mercury, com 16 anos.
A frequência da escola comercial em Durban é ainda um mistério, pois não se sabe exactamente as razões porque
Fernando foi lá inscrito, suspeitando-se que tenha sido por indicação do padrasto, para que ele tivesse uma saída
profissional mais tarde. É provável que eles soubessem que seria impossível o ingresso directo na universidade em
Inglaterra e tenham por isso acautelado essa mesma possibilidade com uma instrução mais prática e transitória que
servisse a Fernando no regresso a Lisboa – onde no entanto de imediato se inscreveu no Curso Superior de Letras.
28 Cf. Alexandre Severino, Fernando Pessoa na África do Sul, pág. 21, Marília, 1969.
27
VI
Un Soir à Lima
A estadia em África gera pelo menos um heterónimo: C. R. Anon (em 1904, na altura do seu
regresso ao Durban High School). As suas personagens literárias abandonam as denominações
Francesas, amplamente influenciadas pela mãe, para passarem a ser Inglesas, influenciadas pelo
novo território que habita. Aliás, esta é a primeira e mais notória influência Africana na sua obra.
Em 1903 tinha nascido outro irmão – João Maria - e Fernando entretêm-se, sem amigos
próximos, a planear histórias com os irmãos, envolvendo-os plenamente, como irmão mais velho,
no seu próprio mundo interior.
Mas de que forma vai Fernando lembrar-se deste período Africano?
Há uma coisa que ele sempre recordará com prazer: O prémio Rainha Victória de estilo inglês,
atribuído ao melhor ensaio em inglês de entre todos os apresentados pelos candidatos à
universidade. Numa espécie de biobibliografia que publica em 1928, ele escreve logo no início
sobre si mesmo:
Nasceu em Lisboa, em 13 de Junho de 1888. Foi educado no Liceu (HIGH SCHOOL) de Durban, Natal, África
do Sul, e na Universidade (inglesa) do Cabo de Boa Esperança. Nesta ganhou o prémio Rainha Victória de
estilo inglês; foi em 1903 — o primeiro ano em que esse prémio se concedeu.29
Ele recorda-se bem deste prémio porque a sua maior ambição já nessa altura era ser um grande
escritor . Existe um testemunho directo disto mesmo, por parte da filha de um tal Augustine
Ormond, ex-colega da escola comercial que frequentou.
A outra grande recordação é uma recordação de uma família reunida que novamente se vai
quebrar. A imagem da família que ele deixa para trás fica gravada anos mais tarde no poema Un
soir à Lima , em que ele recorda a mãe ao piano:
O véu das lágrimas não cega.
Vejo, a chorar,
O que essa música me entrega —
A mãe que eu tinha, o antigo lar,
A criança que fui,
O horror do tempo, porque flui,
O horror da vida, porque é só matar!
Vejo e adormeço,
Num torpor em que me esqueço
Que existo inda neste mundo que há...
Estou vendo minha mãe tocar.
E essas mãos brancas e pequenas,
Cuja carícia nunca mais me afagará —,
Tocam ao piano, cuidadosas e serenas,
(Meu Deus!)
Un soir à Lima.
Ah, vejo tudo claro!
Estou outra vez ali.
Afasto do luar externo e raro
Os olhos com que o vi.
Mas quê? Divago e a música acabou...
Divago como sempre divaguei
Sem ter na alma certeza de quem sou,
Nem verdadeira fé ou firme lei
Divago, crio eternidades minhas
Num ópio de memória e de abandono.
29
«Tábua Bibliográfica» in Presença, n.º 17, Dezembro de 1928.
Entronizo fantásticas rainhas
Sem para elas ter o trono.
Sonho porque me banho
No rio irreal da música evocada.
Minha alma é uma criança esfarrapada
Que dorme num recanto obscuro.
De meu só tenho,
Na realidade certa e acordada,
Os trapos da minha alma abandonada,
E a cabeça que sonha contra o muro.
Mas, mãe, não haverá
Um Deus que me não torne tudo vão,
(ou) Um outro mundo em que isso agora está?
Divago ainda: tudo é ilusão.
Un soir à Lima
Quebra-te, coração...30
A desagregação familiar é algo que, estranhamente, não é muito referido por muitos dos
biógrafos Pessoanos. O facto é que ele perde a sua família duas vezes. Primeiro com a morte do
pai natural que o força a partir para o estrangeiro, depois com o regresso a Portugal, sozinho,
deixando pais e irmãos para trás – o antigo lar .
É certo que ele tem família que o acolhe. Primos e tios em Lisboa e no Algarve 31. Mas em que
medida ele não se sentirá mais sozinho do que nunca? É esta a nossa intuição. Ele pode bem ter a
certeza do que quer fazer – escrever. Mas essa certeza é enraizada, mais do que no talento, na
necessidade doentia de reflectir a sua dor. A dor de não pertencer. A dor de nunca ter pertencido
a lado nenhum e de nunca ter tido uma verdadeira paz interior.
Fernando sai de África não em busca de um futuro melhor mas sobretudo forçado a procurar
uma fuga para a dor do seu passado (tanto recente como distante).
Figura 7
Pessoa com 15/16 anos
A estadia em África não transformou necessariamente Fernando Pessoa. Pode
observar-se, pela evolução das suas expressões ao longo das fotografias que foi
tirando na sua infância e adolescência, que ele ficou mais sério e compenetrado,
talvez mesmo preocupado. No entanto não nos parece que seja de evidenciar uma
quebra efectiva entre a infância em Lisboa e a pré-adolescência e adolescência em
África. Pelo contrário, é nossa opinião que o Fernando que parte de Lisboa é o
mesmo que chega anos mais tarde, apenas evoluído, mais tardio. Na verdade, tudo
aquilo que ele traz de volta, já tinha levado consigo – a insegurança, a falta de uma
unidade familiar e o sentimento profundo de não pertencer. Já naturalmente dado a
preocupar-se com a volatilidade e permanência das coisas, as mudanças que se
operaram na sua vida apenas exponenciam nele um sentimento de perda absoluta
que sempre o perseguirá e que o levará a auto-anular-se.
Mas, curiosamente, o jovem que regressa a Lisboa é alguém profundamente
ambicioso e determinado. Por duas razões que nos parecem evidentes: 1) Fernando
tem plena consciência das suas capacidades e inteligência; 2) tem também, próprio
da sua juventude e maximizado pela sua natureza fechada e de certo modo
narcisista, um afastamento do mundo que faz de si um sonhador absoluto que não
se deixa limitar necessariamente pela realidade. Podemos dizer que ele, nesta idade
era plenamente ingénuo e simultaneamente acordado já para as suas
possibilidades.
Este poema é muito tardio, datado de 17/9/1935, ou seja, apenas 2 meses antes da sua morte.
Quando chega a Lisboa, vive com a tia Maria Cunha em Pedrouços e depois com a Tia Anica, irmã da sua mãe, em
Lisboa. São as duas figuras familiares mais próximas nessa altura.
30
31
1905-1915
UM ESTRANGEIRO SEM PAÍS
Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho,
porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha
pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que
invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me
incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio
verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve
mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem
escreve em ortografia simplificada, mas a página mal
escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente
em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro
directo que me enoja independentemente de quem o
cuspisse.
Fernando Pessoa, Livro do Desassossego
I
O tio General
Quando Fernando regressa a Lisboa em Agosto de 1905, com 17 anos, ele é essencialmente um
rapaz acabado de sair do que ele considera as suas primeira e segundas adolescências . Ele
divide a sua adolescência em 3 partes e diz-nos que a terceira acontece em Lisboa:
Em minha infância e primeira adolescência houve para mirn, que vivia e era educado em terras inglesas, um
livro supremo e envolvente — os «Pickwick Papers», de Dickens; ainda hoje, e por isso, o leio e releio como
se não fizesse mais que 1embrar
Em minha segunda adolescência dominaram meu espírito Shakespeare e Milton, assim como,
acessoriamente, aqueles poetas românticos ingleses que são sombras irregulares deles; entre estes foi talvez
Shelley aquele com cuja inspiração mais convivi.
No que posso chamar a minha terceira adolescência, passada aqui em Lisboa, vivi na atmosfera dos filósofos
gregos e alemães, assim como na dos decadentes franceses, cuja acção me foi subitamente varrida do espírito
pela ginástica sueca e pela leitura da «Dégénérescence», de Nordau. 32
É curiosíssimo que ele divida a sua adolescência literariamente. Há aqui muito daquele
afastamento de que já falámos amplamente – ele quase que torna a sua vida material num
símbolo, vivida que é pela acção apenas da sua obra e de tudo o que a rodeia. Mas, por entre o
aspecto literário há também a revelação de que a chegada a Lisboa representa uma espécie de
renovação para ele, enquanto uma nova idade de descoberta (antes da idade adulta).
Seja como for, ele chega a Lisboa com algum desconhecimento da literatura Portuguesa
contemporânea. Não é um ponto que queiramos realçar demasiado, senão em conexão com um
episódio marcante – a influência que nele terá o seu tio, o General Henrique Rosa. Foi este tio que
representou o padrasto de Pessoa no casamento por procuração com a sua mãe e, no regresso
dele a Lisboa, será a mesma figura a introduzi-lo no confuso meio literário da época. Em que
medida o seu tio foi instrumental? Basta recordarmos uma pequena passagem de uma carta em
que ele é referido:
Decerto que V. Exa. de mim não se recorda. Duas vezes apenas falamos, no Suíço , e fui apresentado a V. Exa.
pelo general Henrique Rosa. Logo da primeira vez que nos vimos, fez-me V. Exa. a honra, e deu-me o prazer,
de me recitar alguns poemas seus. Guardo dessa hora espiritualizada uma religiosa recordação. Obtive,
depois, pelo Carlos Amaro, cópias de alguns desses poemas. Hoje, sei-os de cor, aqueles cujas cópias tenho, e
eles são para mim fonte contínua de exaltação estética.33
A carta era dirigida, nada mais, nada menos, do que a Camilo Pessanha. Ora, Camilo é – podemos
dizê-lo mesmo contrariamente ao que Pessoa de certo modo afirma 34 – uma influência inicial
decisiva na sua obra em Português. Pessanha não é um poeta dito moderno , mas o seu
simbolismo é já indicativo de uma mudança de paradigma que mais tarde vai ocorrer sobretudo
com Cesário Verde (este já plena e expressamente admirado por Fernando Pessoa).
Manuela Nogueira, sua sobrinha, sugere também que Henrique Rosa tenha levado Fernando a
escrever em jornais cómicos, sob vários pseudónimos, entre os quais um tal de Diabo Azul . 35 O
mais importante não é perceber exaustivamente o que escreveu Pessoa neste período, mas antes
entender a influência decisiva deste tio louco , um verdadeiro dândi desregrado, muitas das
vezes doente e de cama, que influencia de forma marcada um sobrinho recém-chegado de África
– e, nesse altura, uma autêntica folha em branco à espera de ser preenchida por novas
experiências na sua terra natal.
Carta a José Osório de Oliveira, datada de 1932 e publicada pela primeira vez no Diário de Lisboa em Maio de 1936.
Carta datada possivelmente de 1915.
34 Ver a carta a Gaspar Simões datada de 11/12/1931. E há também, anedoticamente, a passagem do Livro do
Desassossego em que ele escreve: Nunca pude admirar um poeta que me foi possível ver .
35 Cf. Manuela Nogueira, «A influência de Henrique Rosa em Fernando Pessoa (o diabo azul?)» in Fernando Pessoa: O
Guardador de Papéis, Texto Editores, 2009.
32
33
Logo no ano seguinte ao da sua chegada, Fernando ainda relata maravilhosas experiências
vividas com este tio. 1906 é um ano particularmente importante porque ele começa a escrever
um diário que manterá durante algum tempo. Uma das entradas refere explicitamente Henrique
Rosa:
16 de Maio de 1906 (Quarta-feira)
Visitei o Henrique Rosa. Ouvi-o ler-me em voz alta uma esplêndida crítica das Palavras Cínicas de Sampaio.
Espírito enorme e maravilhoso; um pessimista filosófico de muito grande categoria. O seu conhecimento
cientifico é imenso. Emprestou-me Palavras Cínicas e o Evangelho Novo de Silva Passos. Li metade do
primeiro, à noite.
Em Outubro de 1905 Fernando começara a frequência do Curso de Letras. Os seus diários
mostram a frenética exploração dos temas que tem de estudar para o Curso, misturada com a
vontade de ler outras coisas, nomeadamente poesia. O encontro com a poesia – como já referimos
anteriormente – não é acidental, mas antes preventivo , de modo a equilibrar o seu consumo já
substancial de livros filosóficos.
Ora, acontece que Henrique Rosa é também poeta e a pessoa indicada para o encaminhar para os
melhores e mais contemporâneos conteúdos poéticos da época – como Pessanha por exemplo
que, em 1905, é ainda um quase total desconhecido do meio literário Lisboeta, tendo os seus
poemas a circular apenas oralmente entre os mais interessados.
De certa forma Henrique Rosa aparece também como uma espécie de corpo estranho na família
de Pessoa. Ele é alguém que pode compreender o seu impulso para a escrita – algo que a sua mãe
nunca será capaz de compreender realmente, o que é plenamente revelado pelo facto de toda a
sua família ignorar a importância do que ele escrevia, senão por indícios menores revelados por
ele próprio. Se não podemos censurar a ignorância familiar, que lhes foi imposta, podemos
certamente censurar o facto de nunca terem verdadeiramente apoiado os seus talentos naturais,
tentanto sempre encaminhá-lo para um rumo de vida mais seguro e tradicional.
O diário de 1906 termina antes da primeira visita da família a Portugal depois da sua chegada a
Lisboa – vai acontecer em Agosto. O ano termina com outra morte – a sua irmã Maria Clara falece
em Dezembro.
Os efeitos da morte não são imediatos, mas os do encontro familiar sim. Num outro diário, agora
de 1907, ele escreve (os negritos são nossos):
Na minha família não há compreensão do meu estado mental - não, nenhuma. Riem-se de mim, escarnecemme, não me acreditam. Dizem que o que eu pretendo é mostrar-me uma pessoa extraordinária. Nada fazem
para analisar o desejo que leva uma pessoa a querer ser extraordinária.
…
Não tenho ninguém em quem confiar. A minha família não entende nada. Não posso incomodar os amigos
com estas coisas. Não tenho realmente verdadeiros amigos íntimos, e mesmo aqueles a quem posso dar esse
nome no sentido em que geralmente se emprega essa palavra, não são íntimos no sentido em que eu entendo
a intimidade. Sou tímido, e tenho repugnância em dar a conhecer as minhas angústias. Um amigo íntimo é
um dos meus ideais, um dos meus sonhos quotidianos, embora esteja certo de que nunca chegarei a
ter um verdadeiro amigo íntimo. Nenhum temperamento se adapta ao meu. Não há um único carácter
neste mundo que porventura dê mostras de se aproximar daquilo que eu suponho que deve ser um
amigo íntimo. Acabemos com isto. Amantes ou namoradas é coisa que não tenho e é outro dos meus
ideais, embora só encontre, por mais que procure, no íntimo desse ideal, vacuidade, e nada mais.
Impossível, como eu o sonho! Ai de mim! Pobre Alastor! Oh Shelley, como eu te compreendo! Poderei eu
confiar em minha mãe? Como eu desejaria tê-la junto de mim! Também não posso confiar nela. Mas a
sua presença teria aliviado as minhas dores. Sinto-me abandonado como um náufrago no meio do mar. E
que sou eu senão um náufrago, afinal? Por isso só em mim próprio posso confiar. Confiar em mim próprio?
Que confiança poderei eu ter nestas linhas? Nenhuma. Quando volto a lê-las, o meu espírito sofre percebendo
quão pretensiosas, quão a armar a um diário literário elas se apresentam! Nalgumas até mesmo cheguei a
fazer estilo. A verdade, porém, é que sofro. Um homem tanto pode sofrer com um fato de seda como
metido num saco ou dentro de uma manta de trapos. Nada mais.
Pouco mais há a acrescentar a esta dolorosíssima passagem diarística.
Fernando é já um adulto, mas claramente a sua família não o compreende e ele sente essa
incompreensão de forma crua e directa – pela sua elevada sensibilidade. De certa forma ele
encara a sua missão de se tornar um grande escritor como algo derivado do seu estado mental e
isso não pode ser ignorado por nós nesta altura. O que quer ele dizer com isso?
Quanto iniciámos o projecto de elaborar esta biografia, fizemo-lo com uma certeza em mente – a
obra de Fernando Pessoa tem um fundo psicológico essencial, mas não particularmente
complexo. Penso que Fernando sabia perfeitamente aquilo que sentia e que o seu sentimento se
tornou, por efeito da progressiva dor acumulada, uma máscara de si mesmo. O seu sofrimento
mascarou-se de estado mental , se o quisermos colocar dessa forma. Ele tinha certamente várias
maneiras de lidar com o facto de estar efectivamente deslocado de tudo o que lhe era familiar (a
mãe, padrasto e irmãos; os poucos conhecidos; a estabilidade de uma casa fixa). Podia assimilar
naturalmente essas mudanças, equilibrando o seu estado mental com a fixação de uma vida
posterior num período adulto. Isso, no entanto, foi-lhe impossível, por falta de bases seguras
desde a sua infância – ele foi sempre o menino perdido e rodeado de morte da sua infância feita
de ouro falso. Podia, por outro lado, lidar com essa instabilidade procurando ajuda. Ele parece ter
feito isso, explicando de forma enviesada o que se passava à sua família, que não o compreendeu
– e não é nada surpreendente que não o tenham compreendido. As últimas duas opções seriam as
mais radicais: refugiar-se definitivamente dentro de si mesmo, vivendo plenamente o tal estado
mental ou então o suicídio.
Muito esquematicamente e simplificando , o estado mental de Fernando Pessoa mais não é do
que um estado de sofrimento que decaiu para uma teoria literária.
Ele sofria tanto que, para lidar com o seu sofrimento, inventou a necessidade de uma missão
literária. A sua escrita foi a sua maneira de ficar são e a única forma útil de lidar com a presença
contínua da dor de estar sozinho e abandonado . Abandonado não é uma expressão vã no
texto que reproduzimos acima. Mas ele sempre se sentiu abandonado – abandonado enquanto
criança e depois enquanto adolescente e adulto. Não é o seu regresso a Lisboa (nem sequer a
partida para África) que lhe incutem este sentimento de abandono, do qual ele se tenta proteger.
Parece mais ou menos claro que a mãe de Fernando permanecerá sempre como uma presença
incómoda na sua vida. Ele pretende agradar-lhe porque ela nunca o aceita enquanto criança. É
distante em relação a ele e o seu desejo de aceitação e de lhe agradar será sempre uma
compensação para o sentimento de distanciamento que ela projectava. Esse sentimento
prolonga-se para a sua idade adulta, quer aquando das visitas, das cartas que lhe envia e recebe
dela e, no final, quando ela vem viver novamente com ele até morrer. O sentimento de aceitação
vai variando nele também em função do que ele recebe da sua mãe – aliás, já vários biógrafos
indicaram como é curiosa a reacção de Pessoa com Ofélia perante a ausência e a presença da sua
mãe; como se as duas se anulassem mutuamente e não tivessem a necessidade de conviver
perante a sua necessidade de ser amado e aceite. Além da mãe, as referências mais importantes
no seu diário são à inexistência de amigos próximos, amantes ou namoradas. Isto embora ele
mostre um desejo por todas estas coisas. Apenas as acha impossíveis de obter – claro está, por
sentir que não o merece, como não merecia a atenção da mãe. No fundo ele sofre apenas por
causa deste sentimento antigo – o sentimento de não conseguir pertencer a nenhum lado.
Figura 9
O General Henrique Rosa
O General passava grande parte do seu tempo em casa,
devido a uma doença virulenta trazida de África (Angola)
e estava de facto reformado, dispondo de todo o tempo
do mundo para introduzir Pessoa – que teve de
conviver com ele também para tratar de assuntos
burocráticos familiares – ao mundo literário nacional.
Henrique Rosa era um assumidamente anti-monárquico e
anti-clerical e um conhecedor do mundo esotérico, todos
assuntos que interessariam e muito Fernando Pessoa.
II
A invenção de uma literatura
A chegada a Lisboa – como os maiores episódios da sua vida – leva Fernando a criar um
heterónimo. Ou pelo menos a dar-lhe uma forma final. Por volta de 1905/6 surge Alexander
Search que se substitui literalmente a C. R. Anon.
Proto-panteísta, Search representa o início do que seria um projecto verdadeiramente literário.
Já não é apenas uma personagem reactiva, criada apenas no âmbito de um instinto de protecção
psicológico; mas sim já enquadrada num possível projecto de vida (por muito diluído e
incipiente). Fernando aproveita o conceito de personagem fictícia e começa a projectar neste um
desejo de obra própria, como bem se observa por um plano relativo ao mesmo:
Alexander Search.
Born June 13th. 1888, at Lisbon.
Task: all not the province ol the others three36.
1. «The Portuguese Regicide and the Political Situation in Portugal».
2. «The Philosophy of Rationalism».
3. «The Mental Disorder(s) of Jesus».
4. «Delirium».
5. «Agony». 37
Não há, bem visto, grande diferença entre Fernando Pessoa e Alexander Search. Ambos têm a
mesma data e local de nascimento, só diferindo talvez na forma agressiva como olham para a
realidade – Search terá a virtude de poder ser completamente sincero e directo.
No que seria outro plano, provavelmente para uma peça, Fernando descreve as personagens do
seguinte modo (negritos nossos):
ULTIMUS JOCULATORUM
Persons:
Caesar Seek (= Alexander Search) whose character is without laughter, moving from deep thought
and torturing to bitterness (bitterly joking sometimes???)
Dr. Nabos: whose ch[aracter] goes from bitterness to open rnirth
Ferdinand Sumwan (= Fernando Pessoa, since Sumwan=Some one=Person=Pessoa) A norrnal, useless, lazy,
careless, weak, individual.
Jacob Satan: (A Spirit of ill, the master and real conqueror there).
Magdalena: (a woman) strain of tenderness, diff[erent] from high philanthropy of (...)
Erasmus? Dare? (Philanthropist) a great friend of Seek's.
É simples de perceber que Alexander Search, cujo carácter não tem riso e se move do
pensamento profundo e tortuoso para a amargura assume tudo o que é triste e sério em Pessoa.
Ou seja, provavelmente assume quase a totalidade do que ele é.
O que deve ser realçado – da nossa perspectiva – não é tanto a importância literária desta nova
personagem, mas antes o facto simples dela ter sido criada quando Fernando regressa a Portugal.
Ou seja, Alexander Search aparecerá numa época da vida do poeta em que a criação de um amigo
imaginário não poderá ter o mesmo significado que tinha quando ele era um rapaz de apenas 6
anos.
Os episódios traumáticos da vida de Fernando Pessoa estarão directamente ligados à criação dos
seus heterónimos ? É o que nos parece do pouco que analisámos ainda da vida dele. Chevalier de
Pas é criado aquando da crise familiar advinda da morte de Joaquim, seu pai, que forçou a família
a mudar de casa. C. R. Anon aparece logo depois do regresso ao High School, depois da passagem
O estilo antiquado da linguagem torna difícil a compreensão da missão de Alexander Search, mas Pessoa parece colocálo em contraste com outras três personagens literárias que já teria criado (pelo menos teoricamente). Provavelmente um
trio escolhido de entre os nomes: Chevalier de Pas, capitão Thibeaut, David Merrick e Charles Robert Anon.
37 Teresa Rita Lopes, Pessoa por Conhecer, Lisboa, Estampa, 1990, pág. 148.
36
pela escola comercial. Alexander Search é criado na altura do regresso a Portugal – certamente
uma outra altura marcante para o jovem poeta.
Alexander Search ganha corpo lentamente, alimentado pelas leituras frenéticas que Fernando
empreende guiado pelo seu tio, certamente em substituição de contactos directos com os seus
colegas de curso. Falta-lhe sempre a iniciativa e a vontade de compartilhar os seus desejos e
anseios com os outros. Essa falta não é propositada mas nascida da sua necessidade de se
proteger. Do Curso aproveita sobretudo a cadeira de filosofia, ao ponto de escrever em Março de
1906:
Tenho de ler mais poesia, de modo a neutralizar um pouco o efeito da filosofia pura.38
Lentamente ele tornaria esse plano uma realidade. Mas nunca esqueceria a filosofia.
Alexander Search seria o início de um grande projecto, de um projecto megalómano em que toda
a realidade seria progressivamente substituída por símbolos correspondentes. Em certa medida
o que Fernando Pessoa procura fazer é construir substitutos para o mundo real e até inventar
as peças em falta nesse mesmo mundo real. Em 1930 ele escreverá o seguinte, que podia muito
bem ter sido escrito bem antes, em 1905:
Com uma tal falta de literatura, como há hoje, que pode um homem de génio fazer senão converter-se, ele só,
em uma literatura? Com uma tal falta de gente coexistível, como há hoje, que pode um homem de
sensibilidade fazer senão inventar os seus amigos, ou, quando menos, os seus companheiros de espírito?39
Na realidade, a construção de substitutos para o mundo real é apenas uma forma simples de
compensar as frustrações sentidas nesse mesmo mundo real. Já em 1905 Fernando se queixará
de não encontrar amigos, sobretudo no Curso, lugar que mais se proporcionaria a ele fazer novas
amizades (negritos nossos):
24 de Março
Curso - História; maçador embora o Ramos tenha graça. Sentei-me entre dois membros da aristocracia;
diagnóstico: degenerescência (inferior). Fui a pé para a Biblioteca com outros tipos convencionais (desta vez
de classe baixa, como se diz); também são convencionais, embora não sejam aristocratas. Biblioteca: Weber,
History of European Philosopphy: Escola Jónica, Tales, Anaximandro e Anaxímenes. Livro muito bem escrito,
tirei apontamentos. A teoria de Tales puramente primitiva; a de Anaximandro muito mais profunda e mais
verdadeira; a de Anaxímenes uma materialização, como seria de esperar de uma mente primitiva, da teoria
do seu mestre. À noite, Coliseu - noite de Antonet e Walter. Esplêndido, ri-me muito. Falei com alguns que
julgava não serem convencionais e achei-os tão profundamente escravizados como qualquer outro escravo.
Já não tenho esperança em qualquer amizade aqui; procurarei ir-me embora o mais depressa
possível.
A criação de uma literatura própria, com poetas e estilos, com discussões internas, polémicas e
fracturas pode ser analisado de infinitas perspectivas. Existem diversas teses credíveis para
fundamentar a necessidade da heteronímia. A que nós propomos é que a criação destas
personagens nada mais é do que um processo de protecção da personagem central – Fernando
Pessoa ele próprio. No centro deste universo ficcional está o seu corpo fraco e silencioso.
Figura 10
Cartão-de-visita de Alexander Search
Fernando Pessoa construía meticulosamente as suas
personagens literárias, forjando para elas assinaturas
próprias (e distintas entre si), bem como cartões-devisita (para alguns deles, pelo menos para os que os
poderiam ter). Este cartão é datado de 1907 pela
morada – nesse ano ele morava na R. da Bela Vista à
Lapa, com a Avó Dionísia e as suas Tias-Maternas.
38
39
Fernando Pessoa, Escritos Autobiográficos, Automáticos e de Reflexão Pessoal, pág. 32, Assírio & Alvim
Livro do Desasocego, pág. 449.
III
És casto
É Fernando Pessoa virgem em meados de Setembro de 1905, data da sua chegada a Lisboa?
Podemos dizer com toda a certeza que sim. Como? Temos uma referência no seu diário de 1906
que não deixa qualquer dúvida (negritos nossos):
28 de Março
Faltei ao Curso; também vou faltar amanhã; há um exercício escrito de Geografia e eu não sei absolutamente
nada da matéria. Odeio todo o trabalho imposto. Biblioteca Nacional; continuei a ler a History de Weber;
ainda estou a estudar a Escola Eleática. Projectei uma viagem à Inglaterra. Não tenho dinheiro; há que
arranjá-lo. Primeiro tenho de ser operado: circuncisão. De nada serve ir a países estrangeiros sem
ter remediado este mal. Continuei «Door». Como hei-de conseguir dactilografar as minhas coisas? Tenho de
pensar nisso.
Só há uma explicação para a ligação entre a operação (circuncisão) e dizer que a viagem a
Inglaterra sem a dita operação de nada serviria. A falta da circuncisão impedia-o de ter uma
relação sexual normal com uma mulher. Porquê? Julgo que a resposta está num problema físico
denominado fimose, uma condição em que, no pénis humano, causa que o prepúcio não possa ser
completamente retraído para expor totalmente a glande, o que torna o acto sexual muito
doloroso.
Na altura em que escrevia o seu diário Fernando não tinha grandes meios financeiros para se
sustentar. Na mesma entrada ele queixa-se da falta de uma máquina de escrever para
dactilografar os seus textos. Por essa razão podemos pressupor que nunca chegou a resolver o
seu problema de saúde nessa época, por falta de meios – e naturalmente também por vergonha
de expor a sua condição aos seus conhecidos e familiares, os únicos que o poderiam financiar.
Já tímido e reservado – não necessariamente por imposição natural mas das circunstâncias da
sua vida, como já vimos – este facto intímo levaria a que provavelmente se sentisse sempre
extremamente desconfortável na presença de mulheres em relação às quais tivesse uma atracção
sexual forte.
Anos mais tarde, por volta de 1916, quando inicia a sua escrita mediúnica ele considera-se casto:
Bem, a verdade é esta. Agora és casto. Deixarás de o ser dentro de um mês ou um mês e 3 dias. E a mulher
que te iniciará no sexo é uma rapariga que ainda não conheces. É uma poetisa amadora e assumida.40
A verdade é que ele parece ter ficado casto toda a vida – casto na acepção de nunca ter tido um
real relacionamento sexual com alguém, homem ou mulher. Há duas dimensões que gostaríamos
de abordar desde já e que têm a ver, respectivamente com as inclinações homossexuais e com o
abandono propositado das suas pulsões sexuais em favor da sua obra.
Quanto às inclinações homossexuais:
Muito se fala de uma tendência homossexual na obra de Fernando Pessoa. Mas o que poucos (ou
mesmo nenhuns) exegetas Pessoanos compreendem é que a exploração de um lado homossexual
terá evidentemente a ver, numa primeira análise, com a frustração sexual que sempre o
perseguiu desde muito jovem. Ele não tem uma efectiva e profunda ligação emocional com outro
ser humano a não ser bastante tarde na sua vida – em 1920, data das suas primeiras cartas,
quando ele tem já 32 anos.
Isso provoca nele uma sede de descoberta sexual antes dessa data, que o leva aos pólos opostos,
masculino e feminino. É de certa forma difícil explicar o que significa no concreto esta sensação,
mas podemos com elevada certeza assegurar que as tendências homossexuais em Pessoa são
sobretudo tendências experimentais nascidas da frustração. Sempre que ele considera realmente
40
Fernando Pessoa, Escritos autobiográficos, automáticos e de reflexão pessoal, Assírio & Alvim, 2003, pág. 213.
estar com alguém com o intuito de realizar um acto sexual, veremos impreterivelmente uma
referência a uma figura feminina. A consideração do mesmo sexo vem apenas como inevitável
efeito da forma como tudo lhe falha com o sexo oposto.
Sabemos estar a entrar num campo minado no que toca aos estudos Pessoanos – tanto que, nos
últimos anos se torna tão de mau gosto dizer que ele não é homossexual como era o contrário nos
anos 50 e 60. O que nos impele não é de todo uma vontade de limpar a sua memória, pelo
contrário. Penso que deve haver alguma imparcialidade na análise deste aspecto essencial na
vida do biografado, e essa imparcialidade nasce – como grande parte do que aqui escrevo sobre
ele – da minha própria experiência de vida. É, bem se vê, uma imparcialidade demasiado parcial.
Mas, como já o expliquei no início do volume, de outra forma não se conseguiria escrever uma
biografia do íntimo…
Quanto ao abandono das pulsões sexuais:
Outra das afirmações absurdas que se lêem em algumas biografias diz respeito à forma como
Fernando Pessoa teria expurgado a sua sexualidade para se passar a focar exclusivamente na
sua obra, operando uma espécie de castração química avant la lettre. O impulso sexual pode ser
reprimido, mas nunca expurgado por completo. A intensa produção literária de Fernando Pessoa
leva-nos a acreditar, sobretudo tendo a oportunidade de sintetizar as temáticas abordadas, que
ele operou um imenso esforço de repressão dos seus instintos sexuais, nomeadamente quando
falava da desnecessidade ou mesmo futilidade do contacto humano. Existem inúmeros exemplos
dessa repressão. No entanto falar de uma operação bem-sucedida da expurgação desses instintos
será uma desonestidade intectual. Ele poderia sempre regressar a esses mesmos instintos.
Abordaremos, porém, este tema mais à frente, aquando da altura em que Fernando escreve os
seus dois grandes poemas eróticos , Epithalamium e Antinous.
Resta-nos, por agora, definir a sexualidade de Fernando, no auge da sua adolescência, como
dormente e reprimida, por falta de ocasião propícia para se expressar devidamente. As pulsões
estão presentes e demonstram uma normalidade absoluta – nos seus diários ele expressamente
fala do desejo de ter amantes e namoradas . No entanto, e logo de seguida, ele vê esse desejo
(perfeitamente normal) como algo inalcançável, não por ser homossexual, mas porque
simplesmente lhe era muito difícil aproximar-se às mulheres devido não só à sua personalidade
como ao problema sexual de que sofria.
A sua inadaptação social, advinda destes factores, levará também a que ele construa uma visão
muito particular do mundo feminino – que muitas vezes se diz estar ausente da sua obra. Bem,
ele estava era ausente do seu mundo real e esse é que era o problema. Parece-nos que aqui está a
raiz do porquê da mulher para ele se tornar um objecto distante – às vezes venerado, outras
vilipendiado e visto como um objecto.
Figura 8
Fernando Pessoa com 20 anos
De regresso a Lisboa, Fernando adopta uma postura
tipicamente Britânica, refugiando-se no seu conhecimento da
língua Inglesa. Continua por isso a escrever em Inglês e
confirma isso mesmo na força que dá a Alexander Search –
autor dominante no período inicial do seu regresso a
Portugal. É um jovem deslocado, mas à procura do seu lugar.
Com uma educação iminentemente prática, inscreve-se no
Curso de Letras – provavelmente por influência familiar, que
o desejava ver numa alta posição na Administração Pública –
mas cedo desiste, porque não tem concentração para uma
rotina de estudos. É novamente o seu lado gémeos a revelarse. A transição dos 17/18 para os 20 anos traz duas das
características principais que completam a sua fisionomia – o
famoso bigode e os óculos de armação redonda.
IV
A mulher loura
Falando em mulheres… a figura da mulher loura vai de certa maneira perseguir Fernando Pessoa
ao longo da sua vida. Não literalmente. Mas figurativamente apresenta-se como um símbolo
perfeito para o que pensamos terem sido os seus enlevos de adolescência em África, de que
pouco se fala. Mas eles existiram…
Não há que negar que Fernando Pessoa enfrentou a puberdade num ambiente particularmente
difícil para um jovem. Longe da sua terra de origem, estrangeiro, dado a isolar-se e – embora
carismático e inteligente – pouco dado a socialização com os colegas de escola que, na sua
maioria, se destacavam precisamente nas actividades que ele mais detestava: as ligadas ao
desporto.
É impossível dizer de que maneira ele abordou o sexo em Durban. A única coisa que sabemos é
que ele se tornou um adolescente em África e, como todos os adolescentes, deve certamente ter
tido desejos sexuais, concretizados ou não. Há quem especule que seria possível que ele tivesse
tido experiências sexuais com o mesmo sexo no High School. Certamente que não era nada de
extraordinário em colégios exclusivamente masculinos da época, ao estilo Inglês. Mas trata-se de
uma pura especulação. Aliás, as poucas evidências dir-nos-iam o contrário – vemos como ele
tende a relatar as experiências de forma distanciada, como se as visse acontecer sempre aos
outros. O exemplo evidente foi o que já citámos, dos rapazes de Barrowby.
Há que destacar no entanto que, entre as impressões de África, lhe ficaram várias pessoas de
ambos os sexos, que mais tarde se verteram para a sua escrita:
Daisy Mason (ou Daisy M.)41
O pobre rapazito 42
Cecily43
Mary e Freddie44
Tirando Cecily, que não parece ser uma paixão de adolescência, todas as outras figuras são
referenciadas em termos mais ou menos carinhosos. A Daisy dedica um soneto. O pobre
rapazito deu-lhe horas felizes que podiam bem nada ter a ver com desejo sexual, claro , Mary
lia com ele e Freddie, bem, Freddie é a quem ele demonstra mais descaradamente o seu desejo
físico, dizendo amá-lo e admirando-lhe o cabelo louro e a pele branca.
Os nomes são todos naturalmente Ingleses, porque Fernando se dava mais com Ingleses do que
com os locais. É provável que não tivesse contacto próximo com os nativos, a não ser através dos
empregados da casa da família e esse contacto não era especialmente íntimo. Todos os nomes
que registámos são nomes que nos ligam à sua vida escolar e são figuras um pouco destacadas da
própria existência – ele nunca os aprofunda, deixando-os a sobrevoar como sombreados de uma
vida que não chegou realmente a existir. Talvez admirasse alguns deles, talvez por outros tivesse
sentido uma paixão passageira de adolescente. Isto é tudo perfeitamente natural e demonstra a
Álvaro de Campos dedica-lhe um soneto do grupo Três Sonetos em
. Aparece ainda num plano editorial de
Campos e num poema sem data, também de Campos, que se inicia com A vida é para os inconscientes Ó Lydia, Celimène,
Daisy . Parece-nos apenas natural que todas as personagens Inglesas da poesia de Pessoa tenham de ser de Durban, visto
que ele nunca foi a Inglaterra e existiam muitos ingleses naquela província.
42 No mesmo soneto que dedica a Daisy M., Campos evoca um pobre rapazito / Que me deu tantas horas tão felizes. / …
A quem eu tanto julguei amar .
43 Novamente, no mesmo soneto dedicado a Daisy M. aparece uma Cecily , que acreditava qe eu seria grande . Seria uma
colega de escola? É possível. Sabemos que Fernando partilhava o seu desejo de ser um grande escritor com alguns
colegas, sobretudo na época em que frequentava a escola comercial. Mas há outra Cecily que aparece numa parte do
poema The Mad Fiddler intitulado Sister Cecily , e ela é uma irmã que reza, portanto Cecily pode ser uma memória da
escola primária de freiras que ele frequentou, a Convent School. Já nessa altura lhe adivinhavam um grande futuro?
44 Aparecem estes dois nomes relacionados, também em Campos, num dos fragmentos de Passagem das (oras :
(Freddie, eu chamava-te Baby, porque tu eras louro, branco e eu amava-te,
Quantas imperatrizes por reinar e princesas destronadas tu foste para mim!
Mary, com quem eu lia Burns em dias tristes como sentir-se viver,
41
presença de sentimentos também eles naturais embora contraditórios (lembre-se a sua natureza
de Gémeos, dada à contradição). Regressando ao seu perfil astrológico recordamos que ele era
propenso a impulsos sexuais fortes. Não é o mesmo que dizer que os concretizava, mas temos a
certeza absoluta que os sentia – deve-se definitivamente descartar a imagem de um Fernando
Pessoa frio e assexuado. Não é a solidão e o afastamento que tornam alguém assexuado.
Estas memórias louras de África vão prolongar-se na vida futura de Fernando Pessoa.
É o Dr. Pancrácio, inventado na viagem de 1901 a Portugal que primeiro fixa a imagem da loura
Inglesa, quando escreve:
GALERIA AFRICANA
1. Mulher Universal
O seu rosto repleto de meiguice
Inda contém os rastos de bexiga,
Quer que eu guarde segredo e que não diga
O que eu a todos digo e sempre disse: É alourada como esbelta «miss»,
Dos franceses costumes é amiga,
E quer que assim como ela tudo siga
Das lindas gaditanas a doidice...
Leitor, aos seus encantos seja cego,
Ante seus olhos seja forte - adeus! Se cede à fala que ela tem di lá.
Que é bonita, leitor, eu não te nego,
Mas quando ri (louvado seja Deus)
Parece estar tocando um fungágá !!…45
Ele vai-se lembrar depois de uma rapariga loura que queria casar com ele:
A rapariga inglesa, uma loura, tão jovem, tão boa
Que queria casar comigo...
Que pena eu não ter casado com ela...46
Terá sido real, ou apenas um amor feito maior pela distância da memória? Não o sabemos.
Sabemos que existiram sempre outras louras na sua vida.
Ele dedica-lhes algumas quadras:
Aquela loura de preto
Com uma flor branca ao peito,
É o retrato completo
De como alguém é perfeito.
Loura dos olhos dormentes,
Que são azuis e amarelos,
Se as minhas mãos fossem pentes,
Penteavam-te os cabelos.
Ó minha menina loura,
Ó minha loura menina,
Dize a quem te vê agora
Que já foste pequenina...
Loura, teus olhos de céu
Têm um azul que é fatal.
Bem sei: foi Deus que tos deu.
Mas então Deus fez o mal?
45
46
Teresa Rita Lopes, Pessoa por Conhecer, Editorial Estampa, pág. 109.
Poema de 29/06/1930
Seria talvez uma das louras a que vivia perto dele. Numa das vezes será Bernardo Soares a vê-la a
uma janela:
Loura a face que espia
Cose, debruçada à janela,
Se eu fosse outro pararia
E falaria com ela.
A mesma loura que parece ter recusado os seus avanços tímidos:
Ó loura dos olhos tristes
Que me não quis escutar...
Quero só saber se existes
Para ver se te hei-de amar.
Outra loura povoa as cartas a Ofélia:
O que vou hoje fazer à Estrela é (não ver a mulher loura de olhos azuis!!!) mas tratar da mudança da mobília
de minha mãe para a casa de lá.47
A fixação com a mulher loura é algo que sempre me fascinou ao ler a obra de Fernando Pessoa.
Agora, anos mais tarde, pode ver-se um fio condutor que vem desde África. Ele terá sucumbido
naturalmente aos encantos das louras Inglesas com que conviveu nas escolas por onde passou. Já
em Lisboa ele vai ter a mesma fixação, derivado obviamente da sua educação Inglesa e do facto
de se ver, pelo menos nos primeiros anos, ainda como um Inglês a viver como um Português.
Em Lisboa não abundariam as raparigas louras e cada encontro com uma seria, de certa forma,
um encontro com a sua própria adolescência em África .
Curiosamente a sua mãe era loura e, para o fim da sua vida, uma das últimas mulheres que o
impressiou – Hanni Jäeger, a mulher escarlate de Aleister Crowley – também.
Figura 9
O Palrador
Os jornais criados por Fernando Pessoa aquando da sua
viagem a Lisboa em 1901 são o testemunho mais antigo que
possuímos do início da sua escrita heteronímica em
Português. Estas produções de infância são muito
rudimentares mas mostram duas tendências marcadas – a
presença do humor há mesmo n’O Palrador uma Secção
(umorística com director próprio e a presença de
personalidades diferenciadas, com trejeitos muito próprios.
Estas personagens – como o Dr. Pancrácio – falam sobretudo
da experiência Africana. É neste âmbito que encontramos
também o texto Os Rapazes de Barrowby , escrito por um tal
de Adolph Moscow.
Curiosamente, ou talvez não, não existem mulheres nos
jornais. Dir-se-ia que este era definitivamente um all-boys
affair, muito na tradição Britânica.
Carta de 26/03/1920. Ophélia Queiroz esclarece a história por detrás da rapariga loura das cartas, na introdução à
primeira edição das mesmas. Ela escreve: Mas ele gostava de me fazer ciúmes a mim, para ver a minha reacção. Um dia,
veio com uma história que se tinha passado com ele no eléctrico. Comentando a influência e a força do olhar de certas
pessoas, contava ele que, ao fixar a cabeça loura de uma senhora que ia sentada à sua frente, ela se virara de repente para
ele e o fixara insistentemente. Percebi logo qual era a intenção da história, e durante muito tempo falei-lhe na senhora loura,
fingindo ter ciúmes. Ele gostava imenso e tinha um trabalhão a tentar convencer-me de que não havia senhora loura
nenhuma .
47
V
Vida de café
É comum dizer-se que Fernando Pessoa foi sempre um solitário, escrevendo muitas das vezes
pela noite dentro nas muitas casas por onde passou. Embora seja verdade que ele passava muito
tempo sozinho, dedicado à sua escrita, ele não foi propriamente um solitário – na medida em que
se deu com imensas pessoas e tinha inúmeros conhecidos e amigos. A isto não obsta que ele
fosse, de facto, progressivamente invadido pela solidão e procurasse, também de maneira
progressiva, afastar-se do contacto humano mais próximo.
Nos primeiros tempos em Lisboa, vindo do estrangeiro, Pessoa convivia sobretudo com os seus
familiares próximos ou então com os seus colegas de Faculdade. Vimos já, no entanto, como ele
os tinha em pouca conta e como rapidamente afastou a possibilidade de achar amigos entre eles.
Sabemos que ele manteve contacto com alguns, mas nenhum se tornou seu amigo próximo.
O único outro ponto de convívio disponível para ele foram os café de Lisboa. Na segunda metade
de 1908, sobretudo a partir de Junho – data em que abandona o Curso de Letras, contra a opinião
da família – ele começa a frequentar os cafés, tendo muito mais tempo disponível que
anteriormente. Aliás, 1908 é um ano fundamental para ele, pois é o ano em que ele parece tomar
a iniciativa de se tornar verdadeiramente independente.
Ao abandonar o curso a convivência com as tias, com quem vivia, torna-se muito complicada. Elas
tentam convencê-lo a tomar uma atitude mais decidida quanto ao seu futuro profissional. Ele
declina. Aliás, o destino favorece-o, pois, com a morte da avó louca Dionísia, em Setembro de
1907 ele procura estabelecer-se por conta própria, com uma tipografia chamada Íbis 48. Entre
1908 e 1909 dá-se esta mudança de Fernando para um ambiente só seu, embora de quarto
alugado e naturalmente ele passa a ter mais liberdade de horários, podendo entrar e sair quando
bem entende, favorecendo o seu convívio nocturno com outros elementos do círculo literário
Lisboeta da época.
Há que lembrar que em 1908 o Rei D. Carlos e o seu filho e herdeiro são assassinados. A mesa de
café é igualmente o centro nevrálgico para todo um ambiente revolucionário que começa a tomar
forma, para finalmente irromper em 1910 com a implantação da República. Fernando está no
meio de toda esta agitação, movido tanto por um crescente patriotismo bem como por um
ardente desejo de se integrar como escritor da nova geração. Não é por acaso que ele fica pelo
Chiado quando toma casa própria. Certamente que deve querer manter a proximidade a uma
área que lhe é cara por razões intimas da sua infância, mas também por perceber que aquele é o
centro verdadeiro da cidade, em termos de actividade social e literária.
A Brasileira do Chiado tornar-se-á o café de Pessoa (apenas rivalizando com o Martinho da
Arcada, no Terreiro do Paço), mas há muitos outros, cafés e restaurantes, onde ele encontrará
uma panóplia imensa de personagens, uns mais extravagantes do que outros, uns mais influentes
do que outros, mas todos de certa forma essenciais à sua formação de escritor e sobretudo à sua
passagem de )nglês para Português . Sim, porque se é certo que ele em
parece
determinado a desistir de Lisboa, no final do mesmo ano e princípio do próximo ele considera
que essa não será a melhor opção e ocorre, consciente ou inconscientemente, a decisão
irrevogável de ficar – por muito que permaneça um desejo secreto (mas ainda assim mais ou
menos público) de ser conhecido em Inglaterra.
Sabemos o que Fernando considerava ser a vivência dos cafés .
Ele escreveu na Ode Triunfal :
48 A Íbis é um nome que ficará para sempre ligado a Pessoa, mas não é claro porque ele o escolheu. Sabemos ser uma ave
mítica do Egipto – aliás, o deus Toth tinha cabeça de Íbis e era o mestre das palavras e inventou a escrita. Não será
portanto ocasional a escolha deste animal como uma espécie de patrono da vida de Pessoa nas letras. Ele aparecerá
também nas cartas de amor a Ofélia e Pessoa às vezes brincava, tornando-se uma Íbis e levantando uma das pernas.
Grandes cidades paradas nos cafés,
Nos cafés — oásis de inutilidades ruidosas
Onde se cristalizam e se precipitam
Os rumores e os gestos do Útil
E depois no Livro do Desassossego:
Comparados com os homens simples e autênticos, que passam pelas ruas da vida, com um destino natural e
calhado, essas figuras dos cafés assumem um aspecto que não sei definir senão comparando-as a certos
duendes de sonhos — figuras que não são de pesadelo nem de mágoa, mas cuja recordação, quando
acordamos, nos deixa, sem que saibamos porquê, um sabor a um nojo passado, um desgosto de qualquer
coisa que está com eles mas que se não pode definir como sendo deles.49
Ou seja, percebemos que, para ele, há uma distinção clara entre o mundo dos cafés e o mundo
exterior , entre as figuras de certa forma falhadas que os frequentam e as figuras normais que
circulam nas ruas em frente deles. Se Fernando pertence a alguma coisa, essa coisa começa por
ser uma identidade contraposta entre dentro e fora e simbolizada pela forma do café, onde se
encontram pessoas que lhe podem ser familiares mesmo que não sejam próximas.
O café revela-lhe também um lado algo sórdido da vida – nomeadamente na forma como aqueles
que ali se reúnem falam dos outros, sobretudo dos ausentes. Os que ele chama de vencedores
dos cafés e das tascas mascaram a sua própria fraqueza no insulto fácil projectado sobre os
outros.
Na mesma medida em que ele encontra nos cafés uma forma de expandir o seu círculo de
amigos na realidade são apenas conhecidos), ele insistirá em que essa expansão não é feita
para pertencer a nenhuma espécie de sociedade ou irmandade:
Não faço visitas, nem ando em sociedade alguma - nem de salas, nem de cafés. Fazê-lo seria sacrificar a minha
unidade interior, entregar-me a conversas inúteis, furtar tempo senão aos meus raciocínios e aos meus
projectos, pelo menos aos meus sonhos, que sempre são mais belos que a conversa alheia.
Devo-me a humanidade futura. Quanto me desperdiçar desperdiço do divino património possível dos
homens de amanhã; diminuo-lhes a felicidade que lhes posso dar e diminuo-me a mim-próprio, não só aos
meus olhos reais, mas aos olhos possíveis de Deus.
Isto pode não ser assim, mas sinto que é meu dever crê-lo.50
É claro que o distanciamento dele em relação aos outros é – paradoxalmente – calculado. Ele quer
aproximar-se da realidade porque quer ser influente, mas, simultaneamente, ele verá que essa
aproximação é apenas ilusória porque o que se aproxima é apenas o Fernando Pessoa escritor .
A sua máscara de jovem intelectual, bem formado e bem vestido, influenciado e formado num
outro mundo e incapaz por agora de fugir desse facto, formata-o para uma existência paralela.
Não será de estranhar que ele não consiga um amigo próximo nesta altura, porque ele está
demasiado focado em afastar todos os que se aproximem dele, a não ser por razões de puro
egoísmo literário. Ele não é senão a máscara do Fernando Pessoa escritor – a máscara que o
salvara já da rotina doentia e enlouquecedora de não ter outras referências a não ser aquelas que
ele próprio imaginava. A sua escrita é a sua salvação mas é igualmente a sua perdição. Na igual
medida em que o protege da loucura, afasta-o da normalidade do dia-a-dia, do convívio fácil com
os outros, com as ditas coisas normais da vida , como sejam a afeição, a rotina ou o amor.
Dois curiosos pormenores devem ser avançados.
Um é o número de pessoas com que Fernando contacta nestes anos de 1908/10. Lendo os seus
diários de 1906 até 1913 encontramos mais de duas dezenas de nomes, muitos deles escritores.
Outro é o número de cafés que ele vai frequentar: pelo menos dez. Portanto podemos concluir
que Fernando não foi apenas um diletante na sua vida pessoal, porque mudava de casa com
grande frequência, ele também mudava de locais de convívio social com a mesma frequência.
Claramente há um padrão que se começou a formar muito cedo e que era um padrão de
instabilidade e de não-fixação. Ao mover-se, ele impedia a formação de laços mais duradouros e
49
50
Livro do Desassossego, vol. I, Lisboa: Ática, 1982, pág. 72.
Teresa Rita Lopes, Pessoa por conhecer, pág. 47.
impedia igualmente que se tornasse possível que o conhecessem realmente, para além da sua
máscara de escritor51.
Concluímos que a vida de café, embora essencial para a sua formação inicial como escritor em
Português, nada mais é que uma continuidade da sua vida normal . Ele, embora em processo de
aproximação aos outros, continua afastado de si mesmo. O Fernando Pessoa isolado e sozinho
não deixa de ser um estereótipo ultrapassado, porque de facto ele contactou com muitas pessoas,
durante muito tempo, mas, ao mesmo tempo é uma verdade inegável, porque esse mesmo
contacto era extemporâneo e derivado de uma utilidade racionalizada. Claro que ele poderia tirar
prazer da companhia dos outros, mas não foi nunca um prazer completo, porque eles o
desconheciam. O número de conhecidos era indiferente, porque nenhum deles lhe era próximo e
ele sentir-se-ia, inevitavelmente sozinho mesmo rodeado pela multidão que se lhe acercava.
Será na vida de café que, talvez inesperadamente, surgirá a sombra de uma verdadeira amizade.
Inevitavelmente com alguém com quem ele partilha muito – quase tudo: Mário de Sá-Carneiro.
Mas tirando Sá-Carneiro (e talvez Carlos Queiroz, sobrinho de Ofélia), a experiência de café é
iminentemente vazia a nível pessoal.
As tertúlias que ele invade e que depois tende a comandar sem o forçar não parecem ser mais do
qeu artifícios para a sua mente artística – discussões métricas que decorrem como pensamentos
fora da sua própria cabeça e nada mais do que isso. Os cafés servem-lhe de casa fora de casa, mas
não o afastam da sensação íntima da solidão, que sempre o vai perseguir e que já o enche por
dentro. É certo que poderão ser um sítio de distracção – tanto é assim que, a partir de certa
altura, ele começa mesmo a receber a sua correspondência neles por nem andar por casa durante
o dia – mas isso não tem um real significado na sua vida interior. São uma função externa – como
os empregos nas casas comerciais.
Os cafés serão mesmo o equivalente funcional dos escritórios, mas só que operativamente, para o
seu networking literário e não só. Como casas espirituais reflectem a sua inquietude e a sua forma
nervosa de viver. Sempre sem certezas, sem estabilidade, sem vontade de parar por medo, medo
de olhar para dentro.
Figura 10
A Brasileira do Chiado em 1911
A Brasileira era assim chamada porque nela se podia
beber o café vindo do Brasil bem como outras
iguarias importadas pelo dono Adriano Telles.
Fundada em 1905, apenas em 1908 se tornou um
café.
Na casa onde nasceu Pessoa, no Largo de S. Carlos é
instalado o Directório Republicano em 1910 e a
partir daí o café ganha um renovado volume de
clientes e muito maior importância. Torna-se
progressivamente o centro de diversas tertúlias
artísticas, entre as quais a que dará origem ao grupo
de Orpheu liderado por Pessoa e Mário de SáCarneiro (embora eles tenham frequentado também
outros locais, nomeadamente a Jensen).
Não será alheia a esta peregrinação entre cafés o facto dele estar em contacto com grupos de diversa índole e até de
contraditórias convicções. No entanto este facto não obsta a constatarmos que Fernando realmente parecia preferir a
dispersão à fixação, por razões de óbvia segurança da sua própria intimidade – de não ser conhecido nem se dar
particularmente a conhecer intimamente.
51
VI
Tudo vive no destino
Por volta de 1908 dá-se um desenvolvimento igualmente importante na vida de Fernando – ele
começa a interessar-se por astrologia. A este desenvolvimento não é certamente alheio o
alvoroço social que se desenrola no mesmo ano, com o assassinato em praça pública do rei e do
príncipe herdeiro. Ele terá sem dúvida pensado na melhor maneira de prever o que iria acontecer
ao país, e a ele pessoalmente; ambos numa espécie de encruzilhada entre o agora e o amanhã.
Se o país se questionava entre monarquia e república, Fernando questionava-se entre Portugal e
Inglaterra. E este questionamento que parece acender nele um verdadeiro patriotismo. Ele
escreve, sob o nome de Alexander Search, em Setembro de 1908:
Deus me dê forças para traçar, para compreender toda a síntese da psicologia e da história psicológica da
nação portuguesa!
Todos os dias os jornais me trazem notícias de factos que são humilhantes para nós, portugueses. Ninguém
pode imaginar como sofro com elas.
…
Tenho de escrever o meu livro. Receio qual possa ser a verdade. Mas mesmo que seja má, tenho de a escrever.
Deus queira que a verdade não seja má!52
E depois em Outubro:
O meu intenso sofrimento patriótico , o meu intenso desejo de melhorar a situação de Portugal suscitam em
mim – como exprimir com que ardor, com que intensidade, com que sinceridade – mil projectos …
…
Além dos meus projectos patrióticos – escrever «Portuguese Regicide» para provocar aqui uma revolução,
escrever panfletos em português, editor obras literárias nacionais mais antigas, fundar um periódico, uma
revista científicas, etc … 53
Há, quanto a nós, uma primeira dimensão do interesse com a astrologia e que tem a ver
precisamente com o avenir, com o futuro de Portugal. Os anos tumultuosos de 1908-10 marcam
provavelmente a época mais conturbada da política nacional, com a transição de regime. Este é o
período decisivo para Fernando Pessoa deixar de duvidar se é realmente Português ou não.
A segunda dimensão é – claramente – mais egoísta e tem a ver com o seu próprio destino. Ele
quer saber qual vai ser o seu futuro e, mais precisamente, se o seu destino poderá estar
equiparado com o de outros famosos escritores. É com este propósito que o seu interesse pelo
esoterismo e particularmente pela astrologia é um interesse egoísta e iminentemente prático.
Será no final do ano de 1908 que Fernando encomenda, com o que se julga terá sido um custo
importante, um elaborado estudo astrológico a um profissional da arte residente na Inglaterra. A
esse se seguirão dois outros em pouco mais de 8 meses, com perguntas sobre a sua vida pessoal e
profissional.
Ele tenta igualmente comparar-se aos escritores que admira, como Milton, Wilde e especialmente
Shakespear.54 Parece claro que todas estas tentativas se enquadram num esforço de autocompreensão e de auto-descoberta.
Ele foi um ser naturalmente curioso – também em virtude da sua predisposição natal – mas a
astrologia servirá mais do que apenas para servir a sua curiosidade. Inicialmente será uma forma
de descoberta e de definição da sua própria personalidade, confirmando ou desmentindo as suas
próprias intuições interiores, nomeadamente no que dizia respeito ao seu talento. Mais
Escritos Autobiográficos…, págs. 84-5.
Escritos Autobiográficos…, págs. 87-9.
54 Cartas Astrológicas…, págs. 39-40.
52
53
tardiamente ele conseguirá enquadrar a astrologia enquanto prática, paralelamente às outras
artes que vai igualmente pesquisar. Isto ao ponto de chegar à seguinte (e pragmática) conclusão,
num texto datado provavelmente de 1918:
A Grécia e os Árabes foram os maiores astrólogos (porque dos Egípcios e dos Caldeus sabemos apenas que o
foram). A ciência culmina na Astrologia. O auge da ciência é o reconhecimento de que nada existe fora da lei:
que tudo vive no Destino. A ciência chegará à sua perfeição quando, conhecendo o determinismo como
verdade, reconhecer a Astrologia como ciência como só não reconhecem, aliás, os que nunca a estudaram
detidamente, nem sabem que, se nela há erros, não são mais que os erros de diagnóstico na medicina, que
ninguém nega que seja uma ciência, ou que tenha uma base científica.55
Devo dizer desde já que é importante notar que Fernando Pessoa nunca parece olhar para a
astrologia – ou para o esoterismo no geral – enquanto apenas uma curiosidade. Ele interessou-se
demoradamente sobre variadíssimas ciências, isto embora tivesse uma formação base com pouco
peso matemático, e a sua conclusão sobre a astrologia é por isso mesmo temperada com o
cepticismo que lhe era natural.
Claro que a viragem do Século foi uma época propensa à propagação deste tipo de pensamento e
Pessoa é alguém naturalmente influenciado pelo seu ambiente, como seria inevitável. Mas a
astrologia vai acompanhá-lo para sempre e ele dedicar-lhe-á incontáveis horas de dedicação em
busca de respostas mais ou menos complexas. Tornar-se-á o seu aliado próximo, o companheiro
e conselheiro que ele nunca conseguiu ter na forma humana e quotidiana. Curiosamente o
interesse intenso pela astrologia desvenda-nos um Fernando Pessoa profundamente interessado
na sua vida exterior, ou melhor, no sucesso da sua vida exterior. Ele queria, desde o início, ser um
interventivo, um participante nas mudanças que via iam ocorrer dentro em breve. Muito longe,
portanto, da imagem de tímido que sempre se insiste em projectar dele.
Não quer isto dizer, no entanto, que Fernando não continuasse a ter uma auto-estima bastante
baixa. Sinal disso mesmo continua a ser a sua manifesta desconfiança relativamente à loucura
familiar e a convicção doentia que a mesma o vai atingir inevitavelmente. A importância da
loucura revela-se na importância que ele dá a uma obra que lê na viragem de 1907 para 1908 –
Degenerescência de Max Nordau. Num período importante para a sua formação enquanto adulto
(tem pouco mais de 20 anos e está por isso mesmo a passar da adolescência para a idade adulta),
Fernando parece recusar a evolução natural para considerar negativamente tudo aquilo que ele
teme o possa prejudicar. Nesse sentido ele envia cartas a ex-colegas e professores, usando um
pseudónimo e fingindo ser o seu próprio psiquiatra – recebe depois respostas que o podem ter
feito sentido bastante mal, que o caracterizam enquanto personalidade peculiar de físico
bastante limitado, incapaz de gerar admiração no sexo oposto.
Figura 11
Fernando Pessoa por volta de 1908/9
Fernando Pessoa, embora com notáveis problemas de ajustamento,
procura mesmo assim definir-se enquanto jovem adulto no seu regresso a
Lisboa. O fim da sua adolescência é marcado sobretudo pela desistência
do curso de letras, com o regresso à língua Portuguesa e à descoberta do
seu lado esotérico. No entanto é de realçar que esta procura do lado
esotérico terá sempre um lado iminentemente negro – de atracção para a
morte – e não será necessariamente compensador.
Mas se a astrologia desperta sinais de negatividade, também lhe vai servir
optimamente para desenhar o seu futuro, nomeadamente no que diz
respeito à sua obra literária. Não deveremos esquecer a importância que a
astrologia terá, não muitos anos mais tarde, na definição do nascimento e
personalidades dos seus principais heterónimos.
Vemos sinais claros de uma personalidade que continua retraída e que se
refugia em artifícios cada vez mais complexos e afastados do quotidiano. A
incursão pelo esoterismo serve também para o isolar ainda mais, embora
o aproxime de algumas experiências únicas mais tarde na sua vida.
55
Fernando Pessoa, Ultimatum e Páginas de Sociologia Política, Lisboa: Ática, 1980, 70.
VII
Dispersão
A altura mais profícua da vida literária de Fernando Pessoa será – indiscutivelmente – os anos em
redor de 1914/5. Já vimos como ele começara a estabelecer contactos, iniciando uma vida de
café que lhe dá a conhecer as tendências da literatura do seu tempo.
No entanto todo o processo que culminará em 1915 com a criação da revista Orpheu tem um
desenvolvimento mesmo assim lento e que vale a pena descrever com algum pormenor.
Partindo de 1908, com a morte do rei D. Carlos e do príncipe herdeiro. Vimos como foi este
momento uma das principais motivações para o regresso de Fernando à língua Portuguesa e o
seu crescente amor patriótico, arrancado do mais profundo do seu ser. 1909 é o ano em que ele
começa a trabalhar em casas comerciais como correspondente em língua estrangeira –
proporcionando não só o começo da sua independência financeira bem como o acesso a amplos
recursos para a sua escrita (papel e máquinas de escrever). 1910 traz a implantação da república
e o início de uma restauração democrática muito conturbada a nível político e social, mexendo
definitivamente com o seu lado de sociólogo e antropólogo. 1912 marca a sua estreia literária, na
revista Águia e, com o regresso de Sá-Carneiro a Paris, a intensa correspondência entre os dois.
1913 é porventura o ano de maior actividade social da sua vida, com intensas tertúlias com
jovens poetas e artistas.56 Todo este percurso culmina em 1914 – ano do dia triunfal em que
surgem os heterónimos principais; e 1915, onde os heterónimos são apresentados (embora
parcialmente) em todo o seu fulgor, a um público mais vasto.
O acto da criação dos heterónimos não é um acto espontâneo. Longe disso. Já tínhamos visto
como esse processo se iniciara lentamente na sua juventude e adolescência. Depois desse período
houve um longo tempo de maturação de ideias e de conceitos e também um tempo de exposição a
novas realidades e exigências. O tempo era certo para a mudança e Fernando Pessoa era a
pessoal certa no tempo certo para agir em prol dessa mesma mudança.
Mas até que ponto a criação dos heterónimos na sua forma final não ficou dependente de um
factor externo que até agora não foi mencionado?
De certa forma – e olhando para todo o percurso de forma cronológica – é estranho que em 1914
surjam tantas personalidades de Fernando Pessoa, de forma tão organizada. Ele tinha criado
algumas personagens depois da partida de Lisboa para a África do Sul e, na altura do seu
regresso, há uma personagem mais forte a emergir na figura de Alexander Search. Mas o que
justifica, sem mais, a aparição de três figuras tão fortes como são Caeiro, Campos e Reis
considerando o que lhes serviu de base parecer tão pouco definido? 57
A meu ver houve uma circunstância decisiva que serviu de catalisador ao aparecimento dos
heterónimos: Mário de Sá-Carneiro.
É essencial perceber a sucessão de eventos que leva ao dia triunfal – 8 de Março de 1914 – o dia
em que Fernando diz ter criado os seus três principais heterónimos (mas que na realidade foi
mais um mês triunfal . Como vimos, a dispersão (ou despersonalização) sempre esteve
presente na vida dele, desde criança. A criação de personalidades autónomas e paralelas à sua
própria personalidade servem de escape perfeito de uma realidade demasiado dolorosa,
enquanto simultaneamente servem de protecção eficaz do seu interior. Vimos também – ao longo
de vários capítulos – como essas personalidades tendem a aparecer em datas particularmente
Em 1913 Pessoa retoma o seu diário, profusamente preenchido com encontros com variadíssimas figuras de relevo do
novo panorama literário (e não só). Também se lê no mesmo diário o início das suas aventuras monetárias,
nomeadamente pelos actos sucessivos de empréstimo a uma pessoa para pagar a outra. Apesar da intensa actividade
social e profissional, o diário não reflecte nenhum encontro amoroso ou algo de semelhante, apenas um encontro fortuito
com uma mulher num escritório, que o deixou particularmente desconfortável.
57 Não nos parece que baste defender que Pessoa queria demarcar-se do movimento da Renascença Portuguesa e que
apenas isso esteja na base de um acto criador de tão profunda e marcada importância.
56
importantes, nomeadamente em momentos traumáticos – Chevalier de Pas aparece com a morte
do pai e a saída de Portugal, C. R. Anon na época do regresso ao High School, Alexander Search no
regresso definitivo a Lisboa em 1905, Jean-Seul de Méluret em 1908 quando a mãe regressa a
Lisboa por um período curto de tempo (lembrando-o de influências antigas e notoriamente
Francesas, vindas de Chevalier de Pas e do Capitão Thibeaut).
No entanto não é claro que a heteronímia fosse desempenhar um papel tão importante na obra
de Fernando Pessoa na época do seu regresso a Lisboa. Com a presença de um heterónimo
predominante – como Alexander Search por exemplo – o mais provável seria que, na altura da
publicação, a autoria voltasse a Fernando Pessoa ele-próprio. É a minha opinião, mesmo tendo
em consideração que ele cria várias dezenas de personagens menores, sobretudo colaboradores
dos seus jornais de infância (mas que nunca chegam a transformar-se em figuras significativas
dentro da sua literatura .
Fernando vai desenvolvendo a forma como trabalha a língua Portuguesa a partir de 1905, mas é
só em 1908 que se decide realmente em enveredar por um caminho como autor em Português,
precisamente por causa dos eventos catastróficos desse mesmo ano para a monarquia. Segue-se
uma experiência falhada como editor (na tipografia Íbis que abre com o dinheiro herdado da avó
louca). 1910 e 1911 são anos formadores, de produção multi-lingual. É só em 1912 – apenas 4
anos depois de decidir ser um poeta Português de corpo inteiro que ele se estreia
literariamente (pelo menos à séria , visto que já tinha sido publicado um poema seu de infância
num jornal em 1902 e vários textos seus tinham também saído em jornais académicos na África
do Sul).
A sua estreia literária não é numa publicação qualquer. É numa revista literária chamada
Águia , ligada a um movimento literário denominado Renascença Portuguesa 58 encabeçado
por Teixeira de Pascoaes e Leonardo Coimbra, provavelmente as duas maiores figuras
intelectuais da sua época. E o texto que publica também é particular. Não é um texto de poesia
nem de prosa – é um estudo sociológico com laivos de literatura pelo meio…
É claro que em 1912 Fernando Pessoa queria ser um interventivo e um teórico, mais do que
queria propriamente ser um poeta conhecido pela sua poesia. Na realidade só em Julho de 1913
pouco menos de um ano antes do dia triunfal é que se dá a sua estreia como poeta publicado,
com um fragmento do Livro do Desassossego intitulado Na Floresta do Alheamento .
Entre 1908 e 1914 Fernando entretêm-se com experiências em privado e preocupa-se sobretudo
em construir a teoria do seu sistema filosófico-literário, baseado no aparecimento de um SupraCamões e no regresso da glória de Portugal na forma de uma revolução literária. Em que medida
podemos encontrar aqui um papel para os heterónimos? Não parece de todo óbvio que eles o
tivessem. Menos óbvio era considerar que ele planeasse em segredo um papel para eles – o mais
fácil de estabelecer era que de facto eles, a existirem, eram apenas figuras mal delineadas, como
tantas outras que povoavam a sua escrita.
O que lhes deu então consistência?
Fernando escreveu vários artigos para a Águia , considerando que seria um veículo apropriado
para divulgar a sua revolução . Rapidamente o seu idealismo encontrou a dura realidade de um
movimento que não se coadunava propriamente com o que ele pretendia para Portugal. Ele
pensou que esse movimento quisesse realmente forjar uma nova alma Portuguesa na sua
essência – e ainda por cima com um poeta na sua fundação, Pascoaes - mas tal não se verificou.
Ele, inicialmente entusiasmado, acaba por considerar o movimento provinciano 59 e ataca-o por
ficar curto nos seus objectivos principais60.
A Renascença Portuguesa um movimento de "regeneração nacional" lançado no Porto em 1912. Movimento que tenta
trazer de volta os momentos de grandeza da pátria, um ideal que Pessoa guardará toda a sua vida. De referir que o
símbolo da Renascença Portuguesa era precisamente uma águia em voo.
59 Onde está o erro da Renascença Portuguesa ? O primeiro é em estar no Porto. De resto, não podia ter nascido senão
no Porto, de modo que, como em tudo, se repararmos bem, na própria única coisa possível está o defeito inevitável. Sem
esse defeito, não teria havido a causa, nem o efeito portanto. … Toda a literatura ibérica, e a nossa não
58
Sem a sua base de lançamento – uma revista e um movimento que o suportassem – Fernando vêse com a necessidade urgente de reformular a sua estratégia. E é neste dilema que entra o livro
Dispersão de Mário de Sá-Carneiro. Este livro foi editado por Fernando Pessoa, que recebia os
poemas na correspondência – Sá-Carneiro tinha ido para Paris em 1912.
O poema VII do livro inicia-se assim:
Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto
E hoje, quando me sinto.
É com saudades de mim.
É inegável a força que estas palavras tiveram na génese dos heterónimos Pessoanos, porque elas
foram lidas poucos meses antes do dia triunfal , numa altura em que Pessoa quebra com a
Renascença Portuguesa e procura afirmar o seu próprio estilo. Qual é esse estilo? Olhando para
trás ele terá obviamente pensado que esse estilo teria de ser fundado na criação de personagens
diferentes entre si. Mas como? Numa pista seguinte vemos que é o próprio Pessoa que nos diz
que Caeiro (o primeiro a surgir e que morre com os mesmos anos de Sá-Carneiro quando este se
suicida, 26) nasce precisamente de uma brincadeira com Sá-Carneiro (negrito nosso):
Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns poemas de índole pagã.
Esbocei umas coisas em verso irregular (não no estilo Álvaro de Campos, mas num estilo de meia
irregularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato
da pessoa que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis.)
Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro – de
inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, já me não lembro como, em
qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que
finalmente desistira – foi em 8 de Março de 1914 – acerquei-me de uma cómoda alta, e tomando um papel,
comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa
espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter
outro assim.61
Julgo que esta passagem nunca foi lida como sendo um tributo, um reconhecimento a Sá-Carneiro
pela sua contribuição para a criação dos heterónimos. Mas ela é isso mesmo. Só pode ser.
Entre 1912 e o início de 1914 Sá-Carneiro vai formando em Pessoa a base para a sua
heteronímia, de uma forma mais estruturada e final. Os proto-heterónimos juntam-se para
formar figuras mais acabadas e reais – um pouco à maneira de como as pequenas e múltiplas
pirâmides de degraus dão origem às grandes pirâmides de Gizé no Egipto.
O facto de Caeiro – o líder – ser anti-saudosista e anti-metafísico apenas representa o último
prego no caixão da sua ligação com a Renascença Portuguesa . 62 Nesta altura Fernando está
mais forte porque reuniu à sua volta os princípios do que será o seu próprio movimento. Aliás,
ele confronta mesmo a Renascença Portuguesa a este seu novo movimento bicéfalo :
predominantemente, sofre dum provincianismo radical in Páginas de Estética e de Teoria Literária, Páginas de Estética e
de Teoria Literárias, Ática, 1966. - 355.
60 Acontece que, enquanto estas sinistras coisas se passam nas ruas e nas praças, outras se preparam, lentamente, na
divina sombra das almas. Assim é que, pouco tempo depois de proclamada a República, apareceu no Porto a "Renascença
Portuguesa". Nucleou essa instituição florescente em torno ao alto pensamento português do Poeta Teixeira de Pascoaes.
Desviou-se depois, é certo, do seu nítido primeiro intuito. Abandonou a flagrante intenção portuguesa com que começara.
Mas no fundo essa intenção ainda existe, e enquanto exista a grande Alma lusitana de Pascoaes, tal corrente, creio,
existirá. Sem plena consciência, é certo, mas com um sagrado instinto patriótico, Pascoaes e os que o seguiram
procuraram chegar a um conceito português da Vida. É a primeira tentativa que no género se fez em Portugal. Os poetas
da "Renascença" puseram-se a elaborar — como poetas, por certo, mas pelos poetas é que estas coisas começam — uma
atitude perante o sistema do Universo, que se revelasse portuguesa inteiramente.
Com efeito, não há outro problema hoje de mais importância do que o de criar uma alma portuguesa. A antiga alma
nacional, mesmo que ainda existisse, já não servia. E preciso, para que haja um Portugal Novo, haver uma Nova Alma
Portuguesa. Para que possa haver uma política nacional, uma cultura nacional, qualquer coisa nacional, seja o que for, o
primeiro passo a dar é espiritual, é criar aquela fonte nacional donde essas coisas todas, depois inevitavelmente partirão.
in Da República (1910 – 1935), Lisboa: Ática, 1979. - 85.
61 Carta a Adolfo Casais Monteiro sobre a génese dos heterónimos, datada de 13 de Janeiro de 1935
62 Foi o Prof. António Quadros o primeiro a falar de como Caeiro pode ser considerado a o segundo acto da execução
ritual da ligação à Renascença Portuguesa . Cf. Fernando Pessoa - Vida, Personalidade e Génio, pág. 33. O primeiro acto
tinha sido uma crítica feroz ao livro de Afonso Lopes Vieira (um dos fundadores do movimento).
Em Portugal hoje debatem-se duas correntes, antes não se debatem por enquanto, mas em todo o caso a sua
existência é antagónica.
Uma é a da Renascença Portuguesa, a outra é dupla, é realmente duas correntes. Divide-se no sensacionismo,
de que é chefe o sr. Alberto Caeiro, e no paùlismo, cujo representante principal é o sr. Fernando Pessoa.
Ambas estas correntes são antagónicas àquela que é formada pela Renascença Portuguesa. Ambas são
cosmopolitas, porquanto cada qual parte de uma das duas grandes correntes europeias actuais. O
sensacionismo prende-se à atitude enérgica, vibrante, cheia de admiração pela Vida, pela Matéria e pela
Força, que tem lá fora representantes com Verhaeren, Marinetti, a Condessa de Noailles e Kipling (tantos
géneros diferentes dentro da mesma corrente!); o paùlismo pertence à corrente cuja primeira manifestação
nítida foi o simbolismo. Ambas estas correntes tem entre nós este igual característico em relação ao seu
ponto de partida e que é para nos orgulharmos — de que são avanços enormes nas correntes em que se
integram. O sensacionismo é um grande progresso sobre tudo quanto lá fora na mesma orientação se faz. O
paùlismo é um enorme progresso sobre todo o simbolismo e neo-simbolismo de lá fora.63
Num diário de 1914 ele reforça a importância deste período na sua vida:
Hoje, ao tomar de vez a decisão de ser Eu, de viver à altura do meu mister, e, por isso, de desprezar a ideia do
reclame, e plebeia socialização de mim mesmo, do Interseccionismo, reentrei de vez, de volta da minha
viagem de impressões pelos outros, na posse plena do meu génio e na divina consciência da minha Missão
… Um raio hoje deslumbrou-me de lucidez. Nasci.
As palavras posse plena do meu génio levam-nos a entender que a decisão de ser Eu , de viver
à altura do meu mister se enquadram num plano deliberado de avançar qualitativamente a sua
produção literária para um novo nível de sofisticação. Serão então os três principais heterónimos
iminentemente falsos, construídos deliberadamente?
Parece-me que, tendo em consideração a forma como anteriormente as outras figuras literárias
se formaram, podemos tirar esta conclusão inicial 64. Mas isso não os torna menos sinceros. Eles
apenas não parecem surgir da mesma forma dos outros – são planeados e construídos
racionalmente e não aparecem em virtude de um qualquer acontecimento traumático.
Há que reforçar, no entanto, que a criação do triunvirato heteronímico marca um passo
determinante na fixação da morte psíquica de Fernando Pessoa. É com este passo que ele se
afasta ainda mais de si mesmo, trocando figuras mais ou menos indefinidas e fracas por figuras
fortes e marcantes – figuras que progressivamente se vão substituir a ele próprio. Este é o
verdadeiro significado da palavra dispersão . É a forma como Fernando se dispersa para fora de
si mesmo e se reduz multiplicando-se em vários. Há aqui um projecto literário, claro que sim, mas
de base profundamente psicológica. É um poeta que nasce inteiro, mas um homem que
igualmente morre partindo-se completamente.
Figura 12
Mário de Sá-Carneiro
Com apenas dois anos menos que Pessoa, Mário de SáCarneiro foi aquilo que ele teve de mais próximo a um
amigo intímo. Em 1934 Pessoa escreve um comovido
poema que lhe é dedicado e de onde destacamos as
seguintes passagens:
Hoje, falho de ti, sou dois a sós.
Ah, meu maior amigo, nunca mais
Na paisagem sepulta desta vida
Encontrarei uma alma tão querida
Às coisas que em meu ser são as reais.
in Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, Lisboa: Ática, 1966. - 125.
Tanto que o próprio dia da sua aparição parece ter sido deliberadamente escolhido. O dia triufal é um dia astrológico
porque era a data da reunião do regente do ascendente e do regente do meio céu – Saturno, planeta de Touro.
63
64
VIII
O plano de Orpheu
Provavelmente uma das poucas coisas que a grande maioria dos não-académicos saberão acerca
de Fernando Pessoa será que ele foi um dos fundadores de uma revista modernista chamada
Orpheu e que, através dela, conseguiu gerar um movimento revolucionário para a literatura
nacional. Ao ler a maior parte das biografias de Pessoa chegamos à conclusão que os seus
biógrafos não entendem de maneira muito diferente, e na sua essência, a importância desta
mesma revista.
O que propomos, no entanto, é que olhemos Orpheu de maneira bem distinta, sobretudo de forma
enquadrada no número anterior. Que olhemos Orpheu como algo minuciosamente planeado por
Fernando para sua própria projecção pessoal. Penso que a revista teve a sua importância
sinergética, enquanto movimento, mas que na raiz nada mais era do que o veículo para a
disseminação do produto do dia triunfal – a heteronímia.
Há desde logo um pormenor subtil que parece ter escapado aos biógrafos Pessoanos: Orpheu (ou
Orfeu) representa um regresso simbólico à Grécia e às origens do paganismo, crença que subjaz à
filosofia prática de Pessoa (sobretudo, mas não só, em Caeiro). O propósito civilizacional ,
cosmopolita e Europeu , muitas das vezes arvorado pelos de Orpheu, parece-nos simulado –
sobretudo e essencialmente em Pessoa, centro nervoso e origem verdadeira da revista. O nome
Orpheu foi sugerido por Luís de Montalvor (que teve a ideia inicial para uma revista luso
brasileira), mas ele pensou no nome pelas suas implicações esotéricas 65. Podemos perfeitamente
apostar que Pessoa terá sorrido enquanto pensava para si mesmo no potencial pagão desse
mesmo título, deixando Montalvor na ignorância.
O plano para Orpheu inicia-se, como não podia deixar de ser, nos cafés. Primeira na cervejaria
Jansen no Outono de 1914 (com a reunião do que seria o grupo de Orpheu) e depois no café
Montanha, já em Fevereiro de 1915 (com a chegada de Montalvor do Brasil com a ideia original).
O contacto com os outros membros do grupo de Orpheu será – parece-nos – involuntariamente
necessário. Fernando terá tirado grande prazer na concretização material de um sonho seu, de
participar na fundação de uma revista sem limites criativos, mas a presença dos outros terá sido
vista apenas como uma inevitabilidade, pelo menos por agora, não poder ser publicado sozinho
por não ter ainda uma obra ou sequer um nome estabelecido.
O que não há dúvidas é que ele não pretendia introduzir o modernismo (ou futurismo) em
Portugal. As suas ambições são simultaneamente mais ambiciosas e menos vastas. Não é por
acaso que ele não pertence sequer à direcção da revista66 e, estranhamente, não escreve a
missão da mesma sendo já considerado o seu principal impulsionador (embora em rigor a ideia
inicial da revista fosse de Montalvor e talvez isso pudesse explicar este facto). Claramente ele
quer ser introduzido e não quer conduzir – pelas razões que explicitamos antes, neste mesmo
número.
Outra evidência forte para que o plano de Orpheu fosse um plano pessoal surge num texto que
apenas foi publicado depois da sua morte e em que ele clarifica que Orpheu não era uma revista
futurista (negritos nossos):
O mito conta que Orfeu desceu ao Hades para recuperar a sua mulher morta, Eurídice. Conseguiu a graça dos deuses
para isso com apenas um aviso – devia subir ao mundo dos vivos sem nunca olhar para trás e caminhando em frente da
sua mulher; mas ele, consumido pela ansiedade, virou-se antes de chegar ao topo e Eurídice desapareceu para sempre. A
descida ao submundo marca o carácter esotérico da figura de Orfeu. No entanto o orfismo – religião pagã baseada no mito
de Orfeu – foi uma realidade algo ignorada pelos estudiosos. De facto ela existiu na antiguidade Grega e constitui, a nosso
ver, a base da singularidade de um projecto literário liderado por Pessoa com base nesse nome.
66 Embora não fossem descritos enquanto directores, não existem dúvidas que os directores de facto eram Pessoa e SáCarneiro. Pessoa criativamente, Sá-Carneiro criativa e financeiramente, visto que era o pai deste a financiar directamente
a revista (nos dois primeiros e únicos números).
65
Os Directores do ORPHEU julgam conveniente, para que se evitem erros futuros e más interpretações,
esclarecer, com respeito à arte e formas de arte que nessa revista foram praticadas, o seguinte:
(1) O termo «futurista», que designa uma escola literária e artística possivelmente legítima, mas, em todo o
caso, com normas estreitas e perfeitamente definidas, não é aplicável ao conjunto dos artistas de
ORPHEU, nem, até, a qualquer d'eles individualmente, ressalvado o caso do pintor Guilherme de Santa
Rita, e lamentáveis episódios de José de Almada-Negreiros.
(2) Os termos «sensacionista» e «interseccionista», que, com maior razão, se aplicaram aos artistas de
ORPHEU, também não têm cabimento. Sensacionista é só Álvaro de Campos; interseccionista foi só Fernando
Pessoa, e em uma só colaboração — a «Chuva Oblíqua» em ORPHEU 2.
(3) O termo «modernista», que por vezes também se aplicou aos artistas de ORPHEU, não lhes pode
também ser aplicado, por isso que não tem significação nenhuma, a não ser para designar — porque assim
se designou — a nova escola pragmatista e exegética dos Evangelhos, nascida a dentro da Igreja Católica, e
condenada pelo Papa, por excessivamente tendente a procurar a verdade.
(4) Os artistas de ORPHEU pertencem cada um à escola da sua individualidade própria, não lhes
cabendo portanto, em resumo do que acima se disse, designação alguma colectiva. As designações
colectivas só pertencem aos sindicatos, aos agrupamentos com uma ideia só (que é sempre nenhuma) e a
outras modalidades do instinto gregário, vulgar e natural nos cavalos e nos carneiros.
(5) Os colaboradores de ORPHEU foram os seguintes: Mário de Sá-Carneiro, etc.
NOTA — Como não é possível que dois indivíduos de inteligência e personalidade estejam de acordo, por isso
que cada um d'eles é um, os directores de ORPHEU assinam ambos esta declaração conjunta com a declaração
de «vencidos».
A interpretação do fragmento anterior pode ser algo subjectiva, mas tenderíamos a considerar
que Fernando Pessoa claramente quer destacar mais a individualidade de cada um dos elementos
de Orpheu e não o facto deles pertencerem a um movimento. Porquê? Porque ele próprio não se
quer prender a um movimento que nem sequer é o seu – para isso ele terá o Sensacionismo e o
Interseccionismo. Antes criador que adepto – um lema que ele vai sempre seguir, em menor ou
maior grau, até ao fim dos seus dias.
Um outro pormenor interessante – que Richard Zenith aponta inteligentemente na sua
fotobiografia de Pessoa - advém do poema Ultimatum de Álvaro de Campos. Ele escreve a certo
ponto:
O que é preciso é o artista que sinta por um certo número de Outros, todos diferentes uns dos outros, uns do
passado, outros do presente, outros do futuro. O artista cuja arte seja uma Síntese-Soma, e não uma SínteseSubtracção dos outros de si, como a arte dos actuais.
…
Abolição do preconceito da individualidade.
…
Substituição da expressão de uma época por trinta ou quarenta poetas, pela sua expressão por (por ex.), dois
poetas cada um com quinze ou vinte personalidades, cada uma das quais seja uma Média entre correntes
sociais do momento.
Pessoa participa no número um da revista com dois textos: O Marinheiro , sob o seu próprio
nome e Opiário e Ode Triunfal sob o nome de Álvaro de Campos. O drama estático não é –
nem de perto nem de longe – um texto que possa ser considerado de choque, um texto
modernista ou futurista. É, isso sim, um texto de viragem, imensamente conceptual e afastado do
tipo de prosa poética sua contemporânea.
Poderemos ficar confusos ao tentar perceber exactamente como Fernando se pretendia
apresentar. Talvez nem ele próprio soubesse como o fazer. Sabia, isso sim, que tinha um grande
texto em mãos – grande em dimensão bem como em qualidade, e que queria publicá-lo. Já o tinha
tentado antes sem o ter conseguido e a segunda tentativa mostra quanto ele apostava nele. Mas,
em certa medida, é o demiurgo a mostrar-se timidamente enquanto que o produto da sua
imaginação mais forte avança sem medo – Álvaro de Campos.
Não é por acaso que mais tarde Campos – projectando provavelmente algo de Pessoa – comenta a
participação do seu inventor dizendo de maneira provocatória:
A FERNANDO PESSOA
Depois de ler o seu drama estático «O Marinheiro» em «Orpheu I»
Depois de doze minutos
Do seu drama O Marinheiro,
Em que os mais ágeis e astutos
Se sentem com sono e brutos,
E de sentido nem cheiro,
Diz uma das veladoras
Com langorosa magia:
De eterno e belo há apenas o sono.
Porque estamos nós falando ainda?
Ora isso mesmo é que eu ia
Perguntar a essas senhoras...
Será que isto é uma demonstração palpável da falta de confiança de Pessoa em apresentar um
trabalho em seu próprio nome, ou apenas a redundante inevitabilidade de o comparar, em força e
novidade, à produção do heterónimo Campos?
Apesar da sua intensa beleza e intrincada composição, não é o drama estático que vai capturar de
imediato a atenção dos leitores, mas antes as arrepiantes e sonoras interpelações de Campos,
furioso, polémico e energético. Os modernistas , apelidados pelos jornais dos dias seguintes
como loucos e desviados, são moldados a partir dessa forma rude e poderosa e não da estrutura
fina e pensada do drama estático de Fernando Pessoa-ele próprio…67
Como sentirá Pessoa a reacção pública?
Numa carta datada de 4 de Abril de 1915 ao amigo Côrtes-Rodrigues ele escreve:
Ontem deitei no correio um Orpheu para si. Foi só um porque podemos dispor de muito poucos. Deve
esgotar-se rapidamente a edição. Foi um triunfo absoluto, especialmente com o reclame que A Capital nos fez
com uma tareia na 1.ª página, um artigo de duas colunas. Não lhe mando o jornal porque lhe escrevo à pressa,
da Brasileira do Chiado. Para a mala seguinte contarei tudo detalhadamente. Há imenso que contar. Agora
tenho tido muito que fazer. Da livraria depositária é que seguirão os exemplares para os assinantes e
livrarias daí. Naturalmente não há números para irem para todos os nomes que v. indica. Vão para alguns.
Naturalmente temos que fazer segunda edição. « Somos o assunto do dia em Lisboa »; sem exagero lho digo.
O escândalo é enorme. Somos apontados na rua, e toda a gente — mesmo extra-literária — fala no Orpheu.
Há grandes projectos. Tudo na mala seguinte.
O escândalo maior tem sido causado pelo 16 do Sá-Carneiro e a Ode Triunfal. Até o André Brun nos dedicou
um número das Migalhas.
Fernando percebe o impacto de Campos, tanto que o volta a inserir no número dois. Mas já não
no número três, que não chega a sair. Julgo que esta tensão – entre a obra heteronímica e a sua
própria obra ortónima é algo que se sentirá sempre, como se dentro dele houvesse uma luta
entre o sincero e o insincero, entre o que ele era e o que ele poderia projectar ser. Talvez
houvesse também o medo de ser subjugado pelas suas próprias criações – ou antes um medo de
se anular completamente perante elas. Esse medo é reflectido nos planos tardios em que ele
revela por vezes um desejo de reunir toda a sua obra sob o seu próprio nome, enredando-a em
títulos que sugerem laivos de loucura:
Na Casa de Saúde de Cascais
inclui:— 1) Introdução, entrevista com António Mora
2) Alberto Caeiro
3) Ricardo Reis
4) Prolegómenos de António Mora
5) Fragmentos
Vida e Obra do engenheiro Álvaro de Campos
Livro do Desassossego
escrito por Vicente Guedes
publicado por Fernando Pessoa68
A questão da autoria é uma questão de essencial importância, não apenas literária e filológica,
mas enquanto afirmação de personalidade. Ao longo da sua produção literária, muitas vezes
A insistência em publicar textos em nome próprio nos números seguintes de Orpheu mostra que Fernando Pessoa não
desistira de se mostrar fora da heteronomia, mas isso provavelmente deveu-se sobretudo à sua incapacidade de prever o
impacto da sua obra heterónima. Orpheu acaba por servir de balão de ensaio para isso mesmo.
68 Fragmento sem data, mas presumivelmente tardio, escrito por Bernardo Soares.
67
Fernando hesita em dar a determinados textos este ou aquele autor, como se lhe coubesse a ele e
não propriamente ao texto essa decisão final, acabando por ser editor hesitante de muitos outros
autores dentro de si próprio. Grande parte desta vontade de dispersão explica-se pela sua
própria personalidade (e pela sua carta astrológica), mas, para além dessa pré-disposição existe
uma dúvida primordial em redor da sua própria identidade enquanto autor. Na famosa tábua
biográfica que elabora no fim da vida, em 1935, no campo profissão ele diz:
Profissão : A designação mais própria será «tradutor», a mais exacta a de «correspondente estrangeiro em
casas comerciais». O ser poeta e escritor não constitui profissão mas vocação.
Até que ponto é que ele tinha em si a poesia (e mais genericamente o acto de escrever) como uma
missão que nunca poderia ser incorporada num dever regular e remunerado? Ele poderá alguma
vez ter-se visto como escritor? Já vimos que ele tinha essa ambição vindo de Durban. Ambição
aliás reforçada (as pistas o indicam) pelos seus professores em diversas escolas pelas quais
passou. Mas podemos igualmente ver que ele terá crescentes dúvidas acerca de se apresentar
enquanto escritor, sobretudo devido à dimensão dispersa da sua obra – ele tentará planos que
reúnem a sua obra heterónima e ortónima de forma separada, mas sem grande sucesso. É
notório, sobretudo no fim da vida, que ele sabia que seria provavelmente muito difícil publicar os
heterónimos sem antes se publicar a si mesmo, por questões de princípio porventura ligadas a
razões ainda mais profundas, como o seu medo em não ser levado a sério ou ser considerado um
louco. Na carta da génese dos heterónimos ele diz o seguinte (negritos nossos):
Feita, nas condições que lhe indiquei, a publicação da «Mensagem» , que é uma manifestação unilateral,
tenciono prosseguir da seguinte maneira. Estou agora completando uma versão inteiramente remodelada do
Banqueiro Anarquista, essa deve estar pronta em breve e conto, desde que esteja pronta, publicá-la
imediatamente. Se assim fizer, traduzo imediatamente esse escrito para inglês, e vou ver se o posso publicar
em Inglaterra. Tal qual deve ficar, tem probabilidades europeias. (Não tome esta frase no sentido de Prémio
Nobel imanente). Depois — e agora respondo propriamente à sua pergunta, que se reporta a poesia —
tenciono, durante o verão, reunir o tal grande volume dos poemas pequenos do Fernando Pessoa ele mesmo,
e ver se o consigo publicar em fins do ano em que estamos. Será esse o volume que o Casais Monteiro espera,
e é esse que eu mesmo desejo que se faça. Esse, então, será as facetas todas, excepto a nacionalista, que
«Mensagem» já manifestou.
Referi-me, como viu, ao Fernando Pessoa só. Não penso nada do Caeiro, do Ricardo Reis ou do Álvaro de
Campos. Nada disso poderei fazer, no sentido de publicar, excepto quando (ver mais acima) me for
dado o Prémio Nobel. E contudo — penso-o com tristeza — pus no Caeiro todo o meu poder de
despersonalização dramática, pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental, vestida da música que lhe
é própria, pus em Álvaro de Campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida. Pensar, meu
querido Casais Monteiro, que todos estes têm que ser, na prática da publicação, preteridos pelo
Fernando Pessoa, impuro e simples!
Figura 12
Orpheu, número 1, aberto na página 76 Poema Opiário
Os planos de Pessoa, no que diz respeito ao lançamento de uma revista,
são anteriores a 1915, data de lançamento de Orpheu. Os primeiros
planos datarão de
, para uma revista que se chamaria Lusitânia
(revista que nunca chegou a existir e que seria iminentemente
política). Em 1914 a revista passaria a chamar-se Europa , construída
precisamente para dar vazão à recente corrente interseccionista criada
por Pessoa. Mas, enquanto Pessoa planeava, nada acontecia
verdadeiramente, sendo que apenas a acção de Montalvor deu real
consistência aos seus sonhos.
Entretanto, na África do Sul, a sua família tinha sido avisada por Pessoa
que se aproximava um novo período na sua vida. Ele não explicita o
que seria e é óbvio que ele evita falar nas suas ambições mais latas –
sobretudo perante a preocupação constante da sua mãe com a sua falta
de dinheiro.
1915-1925
EROS
Agora que sinto amor
Tenho interesse no que cheira.
Nunca antes me interessou que uma flor tivesse cheiro.
Agora sinto o perfume das flores como se visse uma coisa nova.
Sei bem que elas cheiravam, como sei que existia.
São coisas que se sabem por fora.
Mas agora sei com a respiração da parte de trás da cabeça.
Hoje as flores sabem-me bem num paladar que se cheira.
Hoje às vezes acordo e cheiro antes de ver.
Alberto Caeiro, O Pastor Amoroso
I
A queda do eléctrico
Um dos episódios menos conhecidos (e mais rocambolescos) em que Fernando Pessoa esteve
envolvido ocorreu precisamente no mesmo ano do lançamento de Orpheu e teve a ver com a sua
activa participação política.
Lembremos por um instante – regressando ao início desta nossa biografia – a tendência de
Fernando para actos temerosos, possuidor de uma personalidade com inclinação para sofrer
graves riscos devido à sua natureza impetuosa .
A 4 de Julho de 1915 Afonso Costa, tão conhecido como sendo uma das figuras centrais da
implantação da República como por ser arruaceiro e corrupto, passeando de eléctrico em Algés
vê um clarão e ouve uma explosão que pensa ser dirigida a si. De imediato salta por uma janela
em andamento e cai ao chão de cabeça, ficando gravemente ferido. Afinal era apenas um curtocircuito… Os seus opositores e críticos – que eram ainda muitos – fizeram desde logo correr uma
adivinha maliciosa a seu respeito: Qual é a coisa, qual é ela, que entra pela porta e sai pela
janela? . Bem se vê qual era a resposta.
Ora, Pessoa não se ficou atrás. Aproveitando a polémica lançada pelo Orpheu, e numa resposta
que dirigiu ao jornal Republicano A Capital acerca desse mesmo assunto, a 6 de Julho, escreve:
A notícia inserta em A Capital de ontem regista uma informação imperfeita com respeito aos intuitos teatrais
que tomaram alguns dos meus colegas de Orpheu, sob minha diligente orientação.
Não se trata nem de futurismo nem de representar um drama dinâmico da categoria litográfica que V. Ex.ia
indica. Para esclarecer bem o assunto – e visto que já se fala nele em público – direi que o drama que
tencionamos apresentar se chama «Os Jornalistas», que é um estudo sintético do jornalismo português, e que,
como (em parte) V. Ex.ia diz, se vêem apenas os doze pés dos três jornalistas que estão em quase-cena.
Passo em branco – porque seria inútil protestar nesse lance – sobre a atribuição de futurismo que nos
pretendem lançar. Seria de mau gosto repudiar ligações com os futuristas numa hora tão deliciosamente
dinâmica em que a própria Providência Divina se serve dos carros eléctricos para os seus altos ensinamentos.
De V. Ex.ia
Respeitador e criado
ÁLVARO DE CAMPOS
engenheiro e poeta sensacionista69
É de notar duas coisas: o último parágrafo, claramente referente ao acidente de Afonso Costa e
o facto de Campos assinar como poeta sensacionista . Já vimos anteriormente como Pessoa se
afastou dos rótulos futuristas e modernistas.
O jornal caracteriza Campos (ou mais genericamente os futuristas como pessoas de maus
sentimentos . Diga-se que o jornal apenas publica, intencionalmente, o final da carta de Campos…
Isto dá azo a que os correligionários de Costa preparem uma vingança . Diga-se desde logo que
ele se rodeava de pessoas da pior espécie, treinados à maneira de um exército pessoal e que
executava ordens violentas sobretudo junto dos seus adversários políticos.
É Almada Negreiros que avisa Pessoa levando-o a evitar o encontro desagradável com o grupo
conhecido como formiga-branca no restaurante Irmãos Unidos (que um dia terá um retrato de
Pessoa pendurado). Ele foge pelas traseiras para o Mercado da Praça da Ribeira e escapa
incólume a uma sova certa. Mas, aparentemente pouco impressionado, Pessoa envia nova carta
ao jornal, ainda mais corrosiva. Carta esta que, felizmente para ele, nunca chega a ser publicada.
O episódio da queda do eléctrico, mais do que pitoresco, revela a personalidade de Pessoa, algo
afastado da realidade do que fazia – sobretudo das consequências directas do que escrevia
69
Por mera curiosidade fica a nota que esta carta foi vendida em leilão em
, por cerca de .
€.
publicamente. Embora a carta seja escrita por Campos e Campos seja um heterónimo, é
impossível negar que ele agia em nome próprio, por muito que o dissimulasse. Essa protecção
literária de pouco lhe serviria se os partidários de Costa o encontrassem. Não poderia certamente
dizer que tinha sido Campos e não ele a escrever ao jornal!
No entanto há que dizer que o posterior afastamento dos seus companheiros de Orpheu, que se
desligam publicamente, e sem pensar duas vezes, da atitude tomada por Álvaro de Campos pode,
essa sim, ser entendida enquanto afastamento de Álvaro de Campos e não de Fernando Pessoa.
Mesmo Sá-Carneiro se demarca, tentando proteger a sua família em Lisboa, mas isso não quer
dizer que ele não continue a sua grande amizade com Fernando Pessoa – trata-se de um
afastamento relativamente ao acto polémico de Campos. Pessoa, sem família próxima que
pudesse ser afectada directamente pelas suas aventuras, e sob a protecção segura de outro nome,
persiste.
Embora intensamente interventivo, Fernando sofre de uma grande dose de coragem dos
ingénuos. Parece-nos que ele, imerso como estava no meio fechado que frequentava, via uma
ponte rápida e fácil entre os seus pensamentos e a realidade exterior. Ponte essa que dificilmente
se estabeleceria de forma tão imediata e rápida. A sua obstinação e compulsividade não o
ajudariam a aceitar de maneira pacífica o que acabamos de descrever, muito pelo contrário. Ao
longo do tempo vai crescendo nele uma desilusão que nasce provavelmente desta mesma falta de
aceitação do que é a transição rude da teoria para a prática, que raras vezes acontece da maneira
como o teórico deseja.
Entretanto o episódio Afonso Costa irá perdurar algum tempo na memória de Álvaro de Campos.
Tanto que em
ele escreve o seguinte manifesto :
MANIFESTO DE ÁLVARO DE CAMPOS
Ora porra!
Nem o rei chegou, nem o Afonso Costa morreu quando caiu do
carro abaixo!
E ficou tudo na mesma, tendo a mais só os alemães a menos...
E para isto se fundou Portugal!70
Figura 13
Afonso Costa
Fernando Pessoa escreveu bastantes textos políticos, muitos deles
ainda inéditos. Nos que estão éditos é notório o seu ódio
relativamente a Afonso Costa, mas mais genericamente a toda uma
classe política que assaltou o poder sem saber o que depois fazer com
ele. A expressão a República chegou demasiado cedo ilustra bem o
que ele sentia ao ver como se compunham os governos da altura e
quais eram as suas políticas.
Quanto a Afonso Costa, a opinião de Pessoa poderá resumir-se
lapidarmente – e para terminar – numa única frase que ele próprio nos
deixou:
Não podendo A[fonso] C[osta] fazer mais nada, é homem para
mandar assassinar. Tudo depende do seu grau de indignação .
70 Álvaro de Campos - Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de
Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993. - 20.
II
Escrita Automática e a busca pelo amor
No fim do ano de 1915, e no meio de toda a confusão e entusiasmo em volta do lançamento de
Orpheu, a mãe de Fernando sofre uma apoplexia que lhe limita severamente os movimentos na
parte esquerda do corpo. Em Setembro Sá-Carneiro diz a Pessoa que Orpheu não vai ter um
número três – o pai de Sá-Carneiro cortara o apoio financeiro que dera até então. Nessa mesma
altura, e certamente não por coincidência, ele constrói mais uma personalidade literária
importante, desta vez dedicada à astrologia e com o nome de Raphael Baldaya.
O esoterismo e o seu futuro parecem preocupá-lo cada vez mais.
Em Março de 1916 diz ter começado a ser médium71 e experimenta um fenómeno muito em voga
na viragem do século: a escrita automática. Embora a adesão a estes epifenómenos possa ser
explicada pela sua popularidade, não é decerto menos verdade que Fernando opta cada vez mais
por lidar com a sua ansiedade em relação ao futuro (e ao presente) de forma indirecta. Embora
seja natural nele a curiosidade em relação ao desconhecido, não é menos natural a vontade de
perceber se as coisas irão mudar – sobretudo se estariam destinadas a mudar, visto que ele
próprio cada vez mais vê que não as consegue mudar sozinho.
Os textos de escrita automática deste período são fascinantes porque nos revelam,
indirectamente, os maiores receios e desejos deste rapaz de 27 anos, ainda pouco consciente do
seu futuro, hesitando entre a certeza absoluta no seu génio e a incerteza absoluta na influência
mundana dele próprio.
Estes textos revelam-nos um tema dominante: perder a virgindade.
Trata-se, além do mais, de uma preocupação heterossexual. Os nomes de mulheres são
abundantes nesta escrita, algumas vezes velados e outras vezes explícitos. Um nome aparece com
grande pormenor: Olga de Medeiros 72. Mas a sua preocupação parece por vezes falsa, apenas um
argumento para definir a sua própria personalidade enquanto autor:
Não deves continuar a manter a castidade. És tão misógino que te encontrarás moralmente impotente, e
dessa forma não produzirás nenhuma obra completa na literatura. Deves abandonar a tua vida monástica e
já. Não és homem para fazer grande coisa no mundo se te mantiveres casto. … Nenhum homem pode
mover-se entre os homens se não for homem como eles.73
Parece bastante óbvio que a preocupação com a sexualidade advém sobretudo de uma pressão
social para ser normal , sobretudo nascida de fontes literárias – será muito provável que
Fernando se compare com outros autores e descubra, dentro de si, uma incapacidade que o
poderá prejudicar na sua produção artística futura.
Sabemos que esta preocupação nunca desaparecerá, mas que se irá converter, de certa forma,
numa preocupação racionalizada – veremos isso sobretudo na sua projectada (e incompleta)
série de grandes poemas eróticos. Este projecto, denominado de "ciclo amoroso", seria
constituído por cinco poemas, cada um deles correspondendo a uma época: 1) Grécia, Antinous;
2) Roma, Epithalamium; 3) Cristão, Prayer to a Woman's Body; 4) Império Moderno, Pan-Eros; 5)
Quinto Império, Anteros. Ele apenas completa os dois primeiros, mas eles servem-nos de
introdução a um tema que nos interessa sobremaneira – de que forma Fernando Pessoa
transformou (ou tentou transformar) a sua preocupação com a sua sexualidade numa busca
desprovida de realidade imanente? Ou seja, de que forma a sua busca pelo amor se tornou
numa busca essencialmente metafísica e distante?
O facto é o seguinte. Aí por fins de Março se não me engano comecei a ser médium. )magine! Eu, que como deve
recordar-se) era um elemento atrasador nas sessões semiespíritas que fazíamos, comecei, de repente, com a escrita
automática in Carta à Tia Anica , datada de / /
.
72 Escritos Automáticos…, págs.
-3, Assírio & Alvim.
73
Escritos Automáticos…, págs.
.
71
Já falámos anteriormente como alguns biógrafos de Pessoa consideraram que estes poemas
serviram ao poeta para se livrar dos seus impulsos sexuais, de forma a se focar inteiramente na
sua obra literária. Claro que esta interpretação é insustentável, senão mesmo ridícula. Ninguém
anula em si mesmo os seus impulsos sexuais, como se ligasse ou desligasse um interruptor, muito
menos por meio de um qualquer processo ritualista ligado à escrita.
A presença esmagadora do tema sexual na escrita automática, que é, lembre-se, posterior aos
únicos dois poemas publicados no ciclo amoroso , Antinous e Epithalamium, prova isso mesmo.
Isto apesar do que o próprio Fernando Pessoa diz:
Uma explicação. Antinous e Epithalamium são os únicos poemas (ou, até, composições) que eu tenho escrito
que são nitidamente o que se pode chamar obscenos. Há em cada um de nós, por pouco que especialize
instintivamente na obscenidade, um certo elemento desta ordem, cuja quantidade, evidentemente, varia de
homem para homem. Como esses elementos, por pequeno que seja o grau em que existem, são um
certo estorvo para alguns processos mentais superiores, decidi, por duas vezes, eliminá‑los pelo
processo simples de os exprimir intensamente. É nisto que se baseia o que será para v. a violência
inteiramente inesperada de obscenidade que naqueles dois poemas – e sobretudo no Epithalamium, que é
directo e bestial – se revela. Não sei porque escrevi qualquer dos poemas em inglês.
Outra explicação, esta desnecessária. Os dois poe-mas citados formam, com mais três, um pequeno livro que
percorre o círculo do fenómeno amoroso. E percor-re-o num ciclo, a que poderei chamar imperial. Assim,
temos: (1) Grécia, Antinous; (2) Roma, Epithalamium; (3) Cristianidade, Prayer to a Woman's Body; (4)
Im-pério Moderno, Pan-Eros; (5) Quinto Império, Anteros. Estes três últimos poemas estão inéditos.
Explicarei isto melhor, omitindo, porém, por não ser ainda a ocasião de a dar, a explicação da sucessão dos
impérios e o seu íntimo sentido. O conteúdo dos poemas não é o que define os «impérios» a que eles se
reportam. Assim, Antinous, que é grego quanto ao sentimento, é romano quanto à colocação histórica.
Epitlha-lamium, que é romano quanto ao sentimento, que é a bestialidade romana, é, quanto ao assunto, um
simples casamento em qualquer país cristão; e o mesmo sucede com os outros três poemas, ou, antes, sucede
indirecta-mente, pois nenhum deles tem colocação precisa no tempo, mas só no sentimento. Quando digo que
os dois primeiros são os únicos poemas nitidamente obscenos que tenho escrito, não digo mal; os outros três
poemas, excepto uma ou outra frase casual no terceiro, nada têm que se possa qualificar de obsceno. 74
A referência anterior era necessária, embora Fernando diga apenas decidi, por duas vezes,
eliminá-los … . Não diz que o conseguiu fazer efectivamente. A carta é de 1930, o sucesso da sua
decisão é óbvio no que ele não escreve. Um caso óbvio de termos de ler nas entrelinhas…
Quanto a mim é bastante claro que não houve qualquer eliminação de elementos sexuais
presentes no poeta através da expressão intensa dos mesmos em poema. A sua preocupação
continua e é concreta, não se dissipando nos anos seguintes. Não será aliás estranho que ele
acabe, pouco depois, por exteriorizar esta necessidade ao encontrar a única namorada que lhe
conhecemos.
Figura 14
Página com escrita automática de Pessoa
É curioso que a escrita automática, embora presente sobretudo
neste período, sempre acompanhará Fernando Pessoa. A principal
indicação vem-nos através de um dos seus poemas mais conhecidos
– Autopsicografia
O poeta é um fingidor… . O título
Autopsicografia quer dizer, quase literalmente, escrita automática
da própria alma , sendo que psicografia é sinónimo de escrita
automática. É muito curioso que Fernando, tentanto desvender o
processo poético dentro dele mesmo, escolha uma expressão com
tão alto significado espírita.
Vem-nos à memória mais dois episódios em que o poeta nos sugere
que o destino se escreve por outras mãos e que deve ser
desvendado desse modo – num diário de juventude ele escreve que
os pensamentos passavam através dele; depois na carta em que
termina a relação com Ofélia e em que diz que o seu destino
pertence a outra Lei .
74
Carta a João Gaspar Simões datada de 18/11/1930
III
Morre jovem o que os Deuses amam
A vida de Mário de Sá-Carneiro é bastante curiosa em vários aspectos, o menor dos quais não
será a semelhança da mesma face à de Fernando Pessoa. Uma semelhança que não é directa mas,
como veremos, pode ser perigosamente equiparada.
Mário nasceu em 1890, apenas 2 anos depois de Fernando e, à semelhança deste, a sua família
pertencia à alta burguesia Lisboeta. Era filho e neto de militares (Pessoa tinha igualmente
militares na família próxima). Ficou órfão de mãe aos 2 anos, sendo que muitos estudiosos
Pessoanos se interrogam se Pessoa se considerou de facto também órfão de mãe a partir do
segundo casamento desta e da partida para África da família…
Desde jovem Mário escreve (é um talento precoce, tal como Pessoa) e está exposto à morte, tal
como Pessoa. Ficará sempre na sua memória sobretudo o suicídio de um colega – Thomaz
Cabreira Júnior – que se mata com um tiro de pistola, no páteo da escola, frente a todos. Mais uma
semelhança – entra num curso superior, Direito, mas desiste; tal como Pessoa (que cursou
Letras). Na idade adulta, novamente como Pessoa, vive sempre com grandes dificuldades
económicas (suportado quase sempre pelo pai, enquanto Pessoa se valia de amigos).
Não é certo como se encontraram, mas sabe-se que foi em 1912 e provavelmente numa tertúlia
de café. O papel de Mário na vida de Fernando é inegável, sobretudo depois do regresso deste de
Paris devido ao início da Primeira Guerra Mundial. Já antes trocavam cartas, mas a presença
corporal de Mário acelera o processo da revista Orpheu e o imparável movimento de renovação
das letras, liderado nas sombras por Fernando Pessoa.
Não será uma coincidência que este homem seja a única verdadeira presença próxima na vida de
Fernando Pessoa. E mesmo assim com uma proximidade cautelosa. É curioso que em muitos
livros escolares da época de Salazar, é dada uma maior relevância a Sá-Carneiro enquanto poeta –
claro, devido à polémica em volta das declarações de Pessoa no fim da sua vida contra o regime,
mas igualmente porque cedo adivinharam a Mário uma espécie de liderança mitigada no tal
movimento. Ele seria, aliás, muito melhor líder do que Pessoa, que desdenhou desde o início ser
modernista; provavelmente por achar demasiado redutor o título. Ele sempre disse que, a existir
um modernista (ou futurista), ele seria Santa-Rita Pintor.
Já referimos o papel essencial de Mário no desenvolvimento dos heterónimos. Falta falar do
efeito da sua morte, ocorrida em 26 de Abril de 1916, em Pessoa.
Em carta a Armando Côrtes-Rodrigues, poucos dias depois do suicídio ele escreve75:
Não lhe tenho escrito. Tenho atravessado uma enorme crise intelectual. E agora estou muito pior, com a
enorme tragédia que nos aconteceu a todos.
O Sá-Carneiro suicidou-se em Paris no dia 26 de Abril.
Não tenho cabeça para lhe escrever, mas não quero deixar de lhe comunicar isto.
Claro está que a causa do suicídio foi o temperamento dele, que fatalmente o levaria àquilo. Houve, é claro,
uma série de perturbações que foram as causas ocasionais da tragédia.
Ele suicidou-se com estricnina. Uma morte horrorosa. Já tencionara suicidar-se três vezes — em 3 de Abril a
primeira.
Uma grande desgraça!
A 4 de Setembro, nova carta para o mesmo destinatário:
Se v. tem estado desterrado, eu sem desterro também o tenho estado. V. não imagina! Tenho passado estes
últimos meses a passar estes últimos meses. Mais nada, e uma muralha de tédio com cacos de raiva em cima.
Agora estou numa fase melhor, com episódicas antemanhãs de seu-eu-verdadeiramente. Uma longa história
de Depressão, com detalhes lentes-de-aumentar vindas do Exterior ... Enfim...
Não me sobra o tempo para lhe relatar por que gradações de mim-e-as-coisas se me infiltrou este mal-deviver. Mas alguns factos marcam estádios na minha depressão: uma grave doença de minha mãe, que a levou
75
A carta é de 4 de Maio, o suicídio ocorrera a 26 de Abril, portanto 8 dias antes.
até à possibilidade da morte, mas de que hoje, felizmente, parece estar de todo salva; o suicídio do SáCarneiro; a loucura do Cunha Dias (um rapaz meu antigo amigo, muito falador e vivo, que v. várias vezes deve
ter visto na Brasileira) — tudo isto e eu... Intercaladamente, várias coisas de menor importância, mas
adquirindo relevo por eu estar com relevo para as sentir; fenómenos nem-bons-nem-maus, mas ao princípio
perturbadores, como o aparecimento em mim de fenómenos de mediumnidade... Isto tudo e a Vida ...
A geração de Pessoa podia ser quase apelidada de geração suicida, tantos foram os casos (outros
até nem tão contemporâneos, mas influenciadores da moda , como foi Antero de Quental em
1891). António Ferro em
tem uma frase curiosa definindo os suicidas: os suicidas são os
turistas da morte . Não é que o tema tenha sido tratado com exagerada leveza, mas parece-nos
que o próprio acto do suicídio se tinha tornado demasiado dramático e teatral, quase como
afirmação final de princípios artísticos desenvolvidos ainda em vida.
Quando pensamos na razão porque Pessoa não se suicida neste período da sua vida, podemos
pensar nos mesmos termos. Se a razão para o suicídio seria uma razão artística, Fernando Pessoa
não a achou suficientemente forte e impactante, pelo menos para os seus objectivos. Aliás, o
suicídio, enquanto expoente máximo da acção exterior, iria contra todos os seus princípios
teóricos. Até o Barão de Teive – o semi-heterónimo suicida – antes de suicidar deixa um tratado,
ou seja, nunca aceita o acto em si próprio sem a racionalização do acto, enquanto preparação e
maneira de evitar, por inércia, a sua concretização.
Em defesa da vida, e algo surpreendentemente, Fernando professa um certo amor à vida no Livro
do Desassossego:
Nunca encarei o suicídio como uma solução, porque eu odeio a vida por amor a ela. Levei tempo a convencerme deste lamentável equívoco em que vivo comigo. Convencido dele, fiquei desgostoso, o que sempre me
acontece quando me convenço de qualquer coisa, porque o convencimento é em mim sempre a perda de uma
ilusão.76
No entanto veremos que, mais tarde, ele pensará de forma muito diferente.
Mas não é ainda tempo de falarmos disso.
Figura 15
Manuscrito autógrafo de )ndícios de Oiro
Mário de Sá-Carneiro confiou a Pessoa muitos dos seus
inéditos para edição. Exemplo paradigmático disso mesmo foi
o manuscrito autógrafo de )ndícios de Oiro que seria
publicado completo apenas em 1937, já depois da morte de
Pessoa.
É claro que a poesia e prosa de Sá-Carneiro teve uma profunda
influência em Fernando Pessoa, tanto mais que sabemos que
este se envolveu profundamente com ela, tornando-se o editor
do seu amigo em Portugal. A morte de Sá-Carneiro traz
também ela um corte com esta influência, deixando finalmente
Pessoa verdadeiramente sozinho com as suas criações
heterónimas. Aquele que tinha sido o principal influenciador
da sua dispersão adulta tinha desaparecido.
O que seria agora esta solidão dispersa?
76
Livro do Desasocego, pág. 101
IV
Finalmente, aquém da literatura
Depois da experiência alucinante de Orpheu (de que Fernando terá sempre dificuldade em se
libertar, mesmo depois de passados muitos anos e do suicídio do seu irmão de arte Mário,
Fernando Pessoa ver-se-á numa espécie de hiato existencial. A sua família está cada vez mais
distante e ele próprio mais separado de uma hipótese de deixar a solidão que sempre o
perturbou. É como se, de repente, lhe fosse mais evidente do que nunca a sua própria condição.
Entre 1915 e 1918 acontece um grande despertar espiritual, certamente devido a toda a
incerteza que o rodeava.77 Incerteza esta que se devia também, em grande parte, à diminuição da
importância exterior da literatura na sua vida – embora Orpheu lhe tivesse trazido alguma fama,
esse parece ter sido um fenómeno temporário, quase que inconsequente a um nível que ele teria
desejado.
Entre Maio e Dezembro de 1916 parece rumar sem destino entre quartos alugados, dado a uma
precariedade que adivinha na sua própria vida. Continua a escrever em Inglês e tenta publicar
um texto em Inglaterra – Mad Fiddler . A recusa do editor surge em Maio do ano seguinte. Mas
isso não o demove de continuar a escrever na língua do bardo – aliás, dois dos seus maiores
textos em Inglês seguem-se em 1918: Antinous e 35 sonnets .
Estando perdido em Portugal, mais valia que se imaginasse outro noutro país. E esse país foi
sempre a Inglaterra, devido às raízes intimas da sua formação colonial. No entanto, por uma
razão ou por outra, ele nunca deixará novamente Portugal. Uma das razões iniciais poderá ter
sido a subida ao poder de Sidónio Pais. Fernando parece ter sempre acreditado no poder
messiânico deste homem que, apesar de ter tido um governo muito curto, apareceu numa
altura propícia ao aparecimento de um salvador da pátria . Sidónio impressiona-o de tal forma
que ele escreve sobre ele em termos Sebastianistas:
Se Deus o havia de levar,
Para que foi que no-lo trouxe Cavaleiro leal, do olhar
Altivo e doce?
Soldado-rei que oculta sorte
Como em braços da Pátria ergueu,
E passou como o vento norte
Sob o ermo céu.
…
Regresse sem que a gente o veja,
Regresse só que a gente o sinta Impulso, luz, visão que reja
E a alma pressinta!
E qualquer gládio adormecido,
Servo do oculto impulso, acorde,
E um novo herói se sinta erguido
Porque o recorde!
Governa o servo e o jogral.
O que íamos a ser morreu.
Não teve aurora matinal
'Strela do céu.
Vivemos só de recordar.
Na nossa alma entristecida
Há um som de reza a invocar
A morta vida;
E um místico vislumbre chama
O que, no plaino trespassado,
77
Este acordar deu origem a um grande plano de traduções relacionado com Teosofia, que já vinha de finais de 1915.
Vive ainda em nós, longínqua chama O DESEJADO.78
Mas a verdade é que, se por um lado ele projectava em políticos e outras figuras exteriores o
regresso de D. Sebastião, intimamente ele considera-se a ele próprio como a provável figura
corpórea desse mesmo regresso. Aliás, a curtíssima presidência de Sidónio Pais, que é
assassinado pouco mais de um ano depois de tomar o poder, convence-o da inevitabilidade de
acreditar apenas na sua própria influência regeneradora. Lembrem-se os seus textos sobre o
Supra-Camões , datados já de
, onde afinal essa potencialidade regeneradora estava ligada
à figura do escritor e mais precisamente do poeta e não propriamente do político.
A República de Pessoa sempre será uma república diluída de significado exterior, uma ideia
dominada pela influência do pensamento sobre a exterioridade e, por isso mesmo, incapaz de se
concretizar verdadeiramente. Só deste forma se podem aceitar as imensas contradições que
encontramos no pensamento político de Pessoa, que, se em certa medida é na base um liberal,
nunca hesita em aceitar dentro de si mesmo atitudes opostas, ligadas a uma tirania ditatorial. A
sua ideia de Estado é profundamente individual, e é uma ideia de como um Estado nunca pode
ser senão imaginado. Isto para além da óbvia tendência para a teorização dupla, própria dos
geminianos.
É verdade que o período 1916-18 nos mostra um Fernando imerso numa espécie de pântano de
esperanças. O número 3 de Orpheu fica preparado mas nunca chega a sair, sobretudo devido à
recusa aparente de Fernando deixar que Santa-Rita Pintor fique com o crédito enquanto
patrocinador da edição. Logo a seguir Santa-Rita Pintor morre, bem como Amadeo de SousaCardoso – provavelmente as duas maiores figuras do futurismo na pintura. Embora Almada
Negreiros continue a advogar o futurismo às massas em 1917 e Fernando participe na revista
Portugal Futurista , o seu ímpeto de mudança parece morto.
É o início de 1919 que nos mostra a viragem verdadeira no espírito do poeta.
Com Sidónio morto no fim de 1918, segue-se outra morte importante – a do seu padrasto em
Pretória. Fernando inicia o ano de 1919 com aparente ânimo de activo, publicando em jornais e
revistas e preparando grandes planos para uma editora/organização que teria como objectivo
principal divulgar Portugal em Inglaterra. Claro que esses planos nunca se concretizariam, ou não
fosse Fernando sobretudo um homem de ideias e não propriamente de acção concreta. O que se
realiza, no entanto é a vontade dos espíritos que o impeliam, desde que tinha começado a escrita
automática, a conhecer uma mulher.
Figura 16
Sidónio Pais
Licenciado em Matemática, Ministro das Finanças e depois
presidente da República, Sidónio foi considerado por muitos como
uma figura de reforço do poder do Estado numa altura de grande
perturbação social. A sua presidência foi marcada por uma alta
concentração de poder no Presidente da República, que tirou
poderes aos ministros e demais altos funcionários do Estado.
Conhecido por Presidente-Rei, Sidónio rapidamente ganhou
anticorpos dentro do governo que originaram duas tentativas de
assassínio, a última das quais com sucesso, em Dezembro de 1918,
no Rossio em Lisboa. A sua presidência ganha estranhos contornos
de semelhança com a de Salazar, apenas 24 anos depois.
78
Fernando Pessoa, À Memória do Presidente-Rei Sidónio Pais
V
Meu bebezinho
O encontro de Ofélia Queiroz com Fernando Pessoa aconteceu por virtude de uma coincidência.
Ofélia foi contratada para trabalhar como secretária num dos escritórios onde Fernando fazia o
seu habitual trabalho de traduções em part-time.
Foi em Novembro de 1919. Ofélia tinha 19 anos, Fernando 31, portanto mais 12.
A relação começou distante, através de bilhetinhos e troca de olhares, mas logo se anunciou
plena, através de uma já famosa declaração do tão aparentemente circunspecto Pessoa,
auxiliando-se de um texto de Shakespear (que terá traduzido livremente):
'Doubt thou the stars are fire;
Doubt that the sun doth move;
Doubt truth to be a liar;
But never doubt I love.
'O dear Ophelia, I am ill at these numbers;
I have not art to reckon my groans: but that
I love thee best, O most best, believe it. Adieu.
'Thine evermore most dear lady, whilst
this machine is to him, HAMLET.'79
Não estaria tão longe da verdade, suspeitando-se que os pais de Ofélia tenham tido a mesma
inspiração quando lhe deram o nome ao nascer.
Depois, segundo testemunho directo da visada, beijou-a apaixonadamente.
É apenas normal que possamos considerar este encontro forçado, sobretudo tendo em conta tudo
o que vimos até agora, nomeadamente a influência no nosso juízo da inevitável presença dos
textos automáticos que aconselhavam Pessoa a acasalar sem perder tempo.
Por muito que Fernando estivesse preso na sua solidão, o ímpeto de ter uma relação de
intimidade com uma mulher foi, por assim dizer, biologicamente (e inconscientemente) mais
forte do que ele mesmo. Penso até que esta relação terá – pelo menos inicialmente – muito de
impulsiva, como bem se vê pela forma como o tímido Pessoa se aproxima da (mais) extrovertida
Ofélia de forma tão temerária.
A questão primordial – de separar a questão da impulsividade da questão de um efectivo
planeamento – deve ser desde já confrontada. Alguns Pessoanos têm indicado que poderia haver,
nesta relação, algo de heteronímico; como se Pessoa conseguisse mesmo a um nível tão básico e
elementar manipular os seus sentimentos na direcção da sua obra. Veremos que não foi assim.
Não foi ele a planear a frio o plano de se envolver numa relação com Ofélia, nem foi ela apenas
uma linha fria e quebrada no todo da sua obra.
Prova disto mesmo é, inicialmente, o interesse que Fernando demonstra em outras mulheres
antes de a conhecer.
Temos apenas peças desgarradas como prova desse interesse, mas podemos referir por exemplo
Fernanda de Castro (mulher de António Quadros) 80 e a sua vizinha na Rua Coelho da Rocha (filha
da tia-avó de Jorge de Sena)81 entre outras que não se podem nomear por aparecem apenas em
referência ainda mais extemporâneas, mas ainda assim concretas, nos seus diários. 82 InteressaHamlet, Acto II, Cena II
Fernanda de Castro, no seu livro Ao fim da memória, II, refuta expressamente que tenha existido algum interesse nela
por parte de Pessoa, mas o rumor persiste entre os estudiosos.
81 Existem algumas referências quebradas sobre um relacionamento entre ambos.
82 Ver, para um resumo: José Cavalcanti Filho, Fernando Pessoa uma quase-autobiografia, pág. 128 e segs, Record, 2011.
Atente-se no entanto no erro de Cavalcanti que fala ainda numa mulher loura , que sabemos ser um jogo entre Ofélia e
Pessoa (era até Ofélia que picava Pessoa com este assunto .
79
80
nos, mais do que apontar interesses amorosos concretos, apontar o interesse amoroso em si
mesmo – ou seja, que Pessoa tinha de facto estas pulsões sexuais e que, melhor ou pior, as
tentaria concretizar. Prova concreta, isso sim, de que as pulsões não tinham sido expulsas nos
seus poemas eróticos escritos em Inglês…
Ora, o facto de estar, consciente ou inconscientemente, à procura de um escape para essas
pulsões, levou Fernando Pessoa a concretizar um encontro com Ofélia. A sua declaração a ela é,
aparentemente, simulada, usando um texto poético como forma de comunicação, mas a sua
intenção é muito mais clara e menos premeditada – conhecer finalmente outra alma, deixar
finalmente de estar sozinho. Ou pelo menos tentar.
A prova mais forte da sinceridade de Fernando é que o encontro com Ofélia tem amplas
consequências na sua obra e consequências que nem sequer são positivas. Ele deixa, em 1920, de
escrever para o Livro do Desassossego, o repositório preferido do seu estado de espírito
deprimido. Entre 1920 e 1928 a sua produção para o Livro decai substancialmente, pelo menos
nos textos datados que nos deixou. Ora, sabemos bem que ele escrevia para o Livro sobretudo
quando estava deprimido e sem vontade de existir.83
Para o bem e para o mal o contacto tinha sido feito e Fernando não tinha maneira de escapar a
ele. Apesar das manobras evasivas dos primeiros dias após o beijo (que deixou Ofélia, que tinha
namorado na altura, sem saber o que pensar), ter-se-ão seguido várias expressões sentidas de
sentimento o que levou a um pedido de esclarecimento por carta por parte da sua nova amada
para uma confirmação por escrito dos seus sentimentos.84 Será uma relação curta – de um ano
separado em duas fases – mas que afectará Pessoa até ao fim da sua vida (ou seja, durante 15
anos), nunca tendo perdido contacto efectivo com a sua namorada, mesmo depois de acabar
abruptamente a relação com ela.
Mas quem era Ofélia?
A imagem que se formou dela ao longo do tempo tendeu a mostrá-la como uma rapariguinha de
poucas ambições e ainda menos educação, simples empregadinha de escritório impressionada
com o mais alto valor intelectual do seu parceiro.
Nada mais longe da verdade. O facto é que Ofélia mostra ser uma rapariga culta e independente,
com conhecimento de línguas e verdadeira desenvoltura intelectual; acompanhando muitas
vezes as brincadeiras tortuosas de um Pessoa demasiado longínquo para ser sincero nas suas
emoções. Em grande parte a figura de Ofélia enquanto alguém limitado e pouco culto tinha sido
formada devido a, durante tanto tempo, apenas ter havido acesso às cartas enviadas por
Fernando Pessoa. A publicação das cartas de Ofélia permite-nos agora compreender muito
melhor quem era esta mulher na relação entre ambos, sobretudo na primeira – e mais sincera fase do namoro (fim de 1919-fim de 1920).
Considerando a idade de Ofélia, não é de estranhar que ela seja muito mais ingénua (ou se
quisermos, abertamente sincera) com os seus sentimentos. Pessoa é fechado e alterna um tom
algo paternalista com um outro oposto, demasiado lamechas . Ofélia escreve muito, sobretudo
na primeira fase e é notório que é desenvolta nas suas ideias, embora apressada em querer
formalizar o compromisso – fala várias vezes de casamento, sem resposta de Fernando…
A ingenuidade de Ofélia é contraposta pelo afastamento de Pessoa, que a passa a tratar por bebé.
Não penso que haja nesse tratamento mais do que o sentimento de que eram de facto distantes,
tanto em termos de idades como de objectivos de vida. Embora haja quem insista que o bebé é
demonstrativo de incapacidade de ligação amorosa, eu prefiro olhar para essa expressão como
maneira correcta de exprimir a realidade de uma relação que dificilmente teria um futuro
Cf. «Introdução» in Nuno Hipólito, Uma Vida Sonhada, 2012; disponível em http://www.umfernandopessoa.com/umavida-sonhada.htm
84 A primeira carta é datada de
/ /
e nela Ofélia diz: … não se esqueça que tem dito muitas vezes que me não
ama, que me adora . Sinal óbvio que houve, depois do tal beijo, mais demonstrações por parte de Fernando Pessoa, entre
Novembro de 1919 e Fevereiro de 1920, como seria de esperar. Cf. Cartas de Amor de Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz,
Assírio & Alvim, 2012.
83
duradouro; entre um homem já afastado para dentro de si mesmo e uma rapariga ainda a
começar a explorar o amor. Para Fernando, Ofélia é mesmo, quase literalmente, um bebé, alguém
manifestamente mais jovem e mais deslumbrada com a realidade do que ele. E Ofélia tem noção
disso mesmo quando, na carta de despedida na primeira fase do namoro lhe escreve o seguinte:
… não deixarei de futuro de aproveitar-me desta lição; fez-me conhecer até que ponto de sinceridade, um
homem descreve a sua simpatia, a sua afeição, o seu amor, todas as suas esperanças futuras para com
raparigas inexperientes ainda. 85
Longe estava portanto de ser aquela figura fraca e pálida que queriam que fosse, mostrando-se –
embora naturalmente zangada – lúcida e forte na sua posição.
Acabamos com uma curiosidade – que não é assim tão insignificante: Ofélia era Gémeos, como
Fernando. Ora dois Gémeos tendem a ter um encontro fulminante em termos de interesse,
porque dificilmente teriam a mesma intensidade durante muito tempo. Seria necessariamente
uma relação marcada pela instabilidade que ambos sentiam dentro de si mesmos, sem lugar a
sentimentos muito concretos e bastante fugazes, a menos que a vida lhes oferecesse suficiente
variedade. Algo que ninguém se questiona é sobre a própria sinceridade da proposta amorosa de
Ofélia que, gostando de Fernando, provavelmente mascara de certo modo os seus sentimentos na
sua impulsividade.
Ambos adoravam comunicar, mas também aí houve um desencontro – Pessoa era muito mais
comunicativo para dentro, Ofélia para fora. Ele escrevia para si mesmo, ela escrevia-lhe a ele.
Em conclusão parece que o encontro de ambos estava, desde início, destinado a ser efémero,
sobretudo dadas as circunstâncias. Fernando, fechado e temeroso, queria apenas um escape
imediato para a sua frustração solitária. Rapidamente achou esse escape nos episódios
rocambolescos com Ofélia, na maneira como se encontravam e desencontravam, nos jogos de
enviar e receber cartas ou telefonemas. Esses encontros que, por vezes tinham um carácter
sexual marcado, mas igualmente um aspecto infantil de exploração 86. Ofélia, pelo seu lado, teria
igualmente a tendência para desviar eventualmente o interesse de Fernando, mais tarde ou mais
cedo – as suas tentativas de o fixar com as propostas de casamento não terão sido inocentes, mas
antes inconscientemente dirigidas a nunca estabelecer esse mesmo compromisso.
Figura 17
Ofélia Queiroz na altura da primeira fase do namoro
A expressão bebezinho, muitas vezes utilizada na correspondência
amorosa entre os dois, revela, mais do que uma infantilização de
Ofélia por Pessoa, uma constatação da realidade dos factos. De facto
Ofélia, com 19 anos, parece, nas fotos da época, muito mais jovem,
talvez apenas com 16 ou 17. A marcada diferença de idades é algo
que também acaba por inteferir na auto-estima de Fernando que
questiona o interesse real de Ofélia por ele, muito mais velho e feio .
Ora o interesse de Ofélia por ele era necessariamente misto – por um
lado a genuína afectividade que parece ter tido por ele, pelo seu
sentido de humor e generosidade; por outro lado a hipótese real de
se libertar da sua família pelo casamento. Familia esta que sabemos
ter passado por muitas dificuldades económicas. É certo que Pessoa
não era rico, mas provavelmente mostrava-se como uma hipótese
real melhor do que a realidade presente que ela conhecia.
Parte da última carta enviada por Ofélia (e não respondida por Fernando), datada de 1/12/1920.
Exploração que não deixa também de ser sexual e de ambas as partes. Por vezes é até Ofélia que se mostra mais
interessada, revelando aqui um dos traços de personalidade típicos dos Geminianos – a necessidade de se sentirem
amados e desejados.
85
86
VI
Olisipo
De entre os vários projectos empresariais em que Fernando Pessoa se envolveu ao longo da sua
vida há um que se destaca: Olisipo.
Geralmente Pessoa não é retratado enquanto homem de negócios, mas já em 1909 ele se tinha
envolvido numa empresa comercial, na altura a Empresa Íbis, adquirida com o dinheiro vindo da
herança da sua avó louca e dedicada à intervenção política e cultural87. A sua ambição não ficou
por aí, tendo-se envolvidos noutros projectos, nomeadamente em casas de representação
comercial.
Mas o seu coração esteve sempre ligado à literatura e a sua maior ambição era publicar – os seus
próprios livros e livros daqueles que mais admirava na altura. O fim do ano de 1919 marca a
concretização desse sonho maior – uma editora. Escolheu um nome ligado à sua cidade de
sempre, Lisboa, mas o objecto social da editora era muito mais vasto (o negrito é nosso):
1. Olisipo, só editoria, e dividida em três secções orgânicas: (a) Direcção, incluindo assuntos gerais e
ocasionais, nos quais não figuram os extra-editoriais e outros assim; (b) Publicidade e propaganda,
relativas, quer às publicações próprias, quer, ocasionalmente, a outras; (c) vendas da editoria.
2. Todos os assuntos relativos a propaganda de produtos portugueses, sua venda, montagem de novas
indústrias (não empresas envolvendo importação ou outro qualquer fenómeno de organização
extraportuguesa, por assim dizer) — Companhia de Produtos Portugueses.
3. Todos os outros assuntos tratados individualmente, sendo (a) os de organização e venda de patentes só
por mim, (b) os de importação especial em ligação com esta ou aquela casa, conforme os assuntos e as casas,
(c) os de negócios ocasionais com este ou aquele indivíduo, conforme convenha ou calhe.
Bem se vê que Olisipo é uma espécie de mashup das diferentes aventuras comerciais anteriores,
congregando em si mesma actividades tão díspares como publicidade, progaganda de produtos
portugueses, patentes, importação e negócios ocasionais . Podíamos dizer que, em rigor, Olisipo
acabou por ser apenas uma editora mas, na verdade, há por detrás dela uma ideia maior que é
essencial destacar: a ideia da propaganda dos valores Portugueses. Eis porque alguns estudiosos,
como Teresa Rita Lopes, enquadram dentro dos princípios de Olisipo obras como Mensagem ou
Lisbon, What a tourist should see.
É com Olisipo que Fernando se vai erguer, pela primeira vez, como influenciador de direito
próprio da sociedade em seu redor. No entanto, será que era mesmo esse o seu objectivo? Penso
que não. Por detrás do chorrilho de ideias – edições de obras suas, edições de obras de amigos,
propaganda, folhetos de intervenção social… - permeia um sentimento de intenso afastamento
em relação à realidade exterior. É certo que este homem foi sempre, principalmente, um
sonhador. No entanto a experiência de Olisipo mostra que ele, mesmo na idade adulta, continua
sem ter uma real noção do que é ou não possível atingir realisticamente com o seu trabalho e
acções. Pode ter a ver com a personalidade superficial e desligada Geminiana, mas igualmente
com a segurança advinda desse próprio distanciamento.
É que, vejamos, como é possível advogar que um homem tão só e tão deslocado abra uma
empresa deste género? Era como se, por momentos, os seus desejos se derramassem para a
realidade, sem grande forma ou sustentação.
Realisticamente as edições começam pelos seus poemas em Inglês – English Poems I-II e English
Poems III. Depois publica um livro a Almada (provavelmente em troca do logotipo da editora) e
outro a António Botto. Mas o plano de edição era vasto e chegou até ao dia de hoje:
A Empresa Íbis, ao contrário do que é dito em alguns estudos, chegou mesmo a funcionar, como o Rui Sena prova no seu
artigo «A Empreza Ibis e O Povo Algarvio», Revista do Instituto de Estudos Sobre o Modernismo, nº 1, 2011. Na tipografia foi
composto e impresso o jornal semanário republicano e anti-clerical O Povo Algarvio, do nº 27 ao 41 (em 1909).
87
[Plano editorial da «Olisipo»]
«Canções» (António Botto), 2.ª edição, aumentada.
«A Tormenta» (Shakespeare), trad. Fernando Pessoa.
«Prometeu Preso» (Ésquilo), trad. Ricardo Reis.
«Hamlet, Príncipe da Dinamarca» (Shakespeare), trad. Fernando Pessoa.
«O Rei Lear» (Shakespeare), trad. Fernando Pessoa. Poemas de Safo e de Alceu.Trad. Ricardo Reis.
«Trovas do Bandarra», com comentário interpretativo de Rafael Baldaia.
Poemas da Antologia Grega. (Sel.). Trad. Ricardo Reis.
Poemas Principais de Edgar Poe. Trad. Fernando Pessoa.
«A Política» (Aristóteles). Trad. Ricardo Reis.
«O Príncipe» (Macchiavelli). Trad.
Haikai e Outros Poemas Japoneses.Trad.
Poemas Persas.Trad.
«Rima do Velho Marinheiro» (Coleridge).Trad. Fernando Pessoa.
«Contos Selectos» (O. Henry).Trad.
«Contos Selectos» (W.W.Jacobs).Trad. Poemas (Luís de Montalvor).
«Protocolos dos Sábios de Sião» (— — —).Trad. A.L.R.
Dois Estudos sobre a Grécia. (A.W.Benn). Trad.
«Laocoonte» (Lessing).Trad.
«Teoria do Sufrágio Político» (Fernando Pessoa).
Livros a traduzir da Home University Library (Williams & Norgate).
«Dicionário Técnico Universal».
«Mar Português» (Fernando Pessoa).
«Cancioneiro, Liv. I e II» (Fernando Pessoa).
«Cancioneiro, Liv. III e IV» (Fernando Pessoa).
«Auto das Bacantes» (Fernando Pessoa).
«Arco de Triunfo» (Álvaro de Campos).
«A Invenção do Dia Claro» (José de Almada-Negreiros).
«Indícios de Ouro» (Mário de Sá-Carneiro). Ed. Fernando Pessoa (ou «Poemas Completos», incluindo aquele
livro inédito, e outros inéditos que haja) (ou «Obras Completas de Mário de Sá-Carneiro», sendo o primeiro
volume o dos «Poemas Completos», ut supra).
«A Ideia do Progresso» (J. B. Bury).Trad.
«História do Cristianismo» (J.M.Robertson).Trad.
«A Renascença» (Walter Pater).Trad.
«História da Liberdade de Pensamento» (J.B.Bury). Trad. (v. «Home University Library», supra).
«A Fábula das Abelhas» (Mandeville). Trad.
«Octávio» (Vitoriano Braga).
«O Milagre» (Vitoriano Braga).
«A Casaca Encarnada» (Vitoriano Braga).
«English Poems, I & II» (Antinous, Inscriptions). Fernando Pessoa.
«English Poems, III & IV» (Epithalamium, Five Songs). Fernando Pessoa.
«English Poems, V» (Elegy). Fernando Pessoa.
«English Sonnets, Book I». Fernando Pessoa.
«English Sonnets, Book II». Fernando Pessoa.
«Teoria of Political Suffrage». Fernando Pessoa.
«Prometheus Revinctus — A Dramatic Poem by Fernando Pessoa».
«How Napoleon Never Existed» (Pérès). Trad.
«The Student of Salamanca» (Espronceda). Trad. Fernando Pessoa.
«Sonnets of Camoens». Trad. Fernando Pessoa.
«Sonnets of Quental».Trad. Fernando Pessoa.
«Complete poems of Alberto Caeiro».Trad. Thomas Crosse.
«Songs» (António Botto).Trad.
«Songs from the Old Portuguese Song-Books». Trad. Fernando Pessoa.
«The Duke of Parma —A Tragedy». Fernando Pessoa.
«All About Portugal».Ed. Fernando Pessoa (special).
«The Southern Review» (quarterly or half-yearly).88
Destaque para as várias obras de Shakespear que Pessoa, por razões de admiração e não só,
pretendia traduzir e publicar. Curiosamente também pretendia traduzir Camões para Inglês, o
que tira força a quem defende que Pessoa desprezava Camões, ao ponto de o retirar da galeria de
figuras notáveis presente em Mensagem.
O sucesso deste plano é evidentemente discutível, tanto mais que Pessoa não tem experiência
como editor e não possui um plano de negócios bem articulado. É um facto que ele escreve sobre
comércio, mas isso não lhe dá especial insight sobre a realidade de gerir um negócio durante um
período alargado de tempo. Para o bem e para o mal ele será sempre um intelectual, com pouca
ou nenhuma noção da forma como os sonhos encontram o mundo exterior e se desfazem. Mas
88 Este era apenas o «Plano Geral», havendo ainda mais um plano dedicado a obras ligadas ao Judaísmo. Cf. Fernando
Pessoa, Páginas de Pensamento Político. Vol II., Europa-América, 1986, pág. 195 e segs.
Fernando parece ter algum gosto nisso e a melhor prova é a polémica causada por livros que
chega a publicar na Olisipo, nomeadamente os de António Botto89 e Raul Leal. Botto é
abertamente homossexual e escreve sobre o corpo masculino, enquanto Leal, na sua Sodoma
Divinizada constrói elogios à pederastia e à luxúria. Parte do apelo dos jovens poetas era este
desejo de escândalo e isso divertia bastante Fernando, que provavelmente se via incapaz de ele
mesmo ser provocador a tal grau. A sua presença enquanto demiurgo, editor nas sombras de
Botto e Leal, acaba por servir os mesmos propósitos agitadores.
A polémica atingida pelo lançamento de ambos os livros acabou por decretar o fim da Olisipo. Em
Março de 1923 o Governo Civil de Lisboa manda apreender as edições. Inicialmente isso parece
aumentar a procura das mesmas nas livrarias que ainda as ousam vender. Sai então, no dia 6 de
Março um Manifesto dos estudantes das escolas superiores contra o livro de Raul Leal, a que
Pessoa responde com Sobre um manifesto de estudantes, usando o seu próprio nome e em defesa
de Leal. A atitude de Pessoa está longe de ser heteronímica – é a atitude de um editor. No entanto,
à medida que a polémica alastra – visto que sai outro artigo contra Botto – Pessoa serve-se já de
Álvaro de Campos para contrapor com o Aviso por causa da moral. Parece evidente que, a
determinado ponto, Fernando já não se queria ver a si próprio embrulhado nesta confusão,
retirando-se novamente para as sombras.
Não é por isso de estranhar que Olisipo desapareça pouco depois. Economicamente a recolha dos
livros terá tido o seu peso decisivo, mas não é de menos considerar o impacto da polémica no
próprio Pessoa. De novo a realidade invadia os seus sonhos e fazia-o recuar.
Figura 18
Editorial Olisipo sobre o lançamento de Canções de António Botto
Fernando Pessoa sempre mostrou ter uma grande admiração por
António Botto. Botto, apenas 4 anos mais velho que Pessoa, parece
ser admirado sobretudo pela forma como consegue idealizar o amor
numa teoria estética plena, senão vejamos como ele inicia um longo
estudo que lhe dedicou em 1922:
António Botto é o único português, dos que conhecidamente escrevem,
a quem a designação de esteta se pode aplicar sem dissonância. Com
um perfeito instinto ele segue o ideal a que se tem chamado estético, e
que é uma das formas, se bem que a ínfima, do ideal helénico. Segue-o,
porém, a par de com o instinto, com uma perfeita inteligência, porque
os ideais gregos, como são intelectuais, não podem ser seguidos
inconscientemente.
A ideia da idealização/racionalização do amor é muito cara a
Pessoa, que se esforça por realizar essa mesma tarefa no Livro do
Desassossego através da teoria do Amante Visual . É simples de ver
que esta idealização é uma forma de afastamento, como qualquer
racionalização. Mas, curiosamente, este encontro de opiniões levou
a que ambos os autores se tornassem bastante próximos.
A relação de amizade entre Fernando Pessoa e António Botto é muito curiosa e tem levantado alguma celeuma entre os
especialistas Pessoanos. Frequentemente descrito como sendo megalómano, maldizente e narcisista, Botto não tardou em
arranjar um exército de inimigos, apesar do seu reconhecido talento. Foi expulso da função pública em 1942 por se ter
assumido enquanto homossexual e vilipendiado ao ponto de ter de exiliar no Brasil em 1947. Pessoa, pelas suas atitudes,
considerou Botto como uma espécie de protegido (alguém através do qual ele vivia fora dos limites das suas próprias
introversões), saindo sempre em sua defesa. Se houve entre ambos mais do que amizade é duvidoso, embora Jorge de
Sena lance a dúvida em Fernando Pessoa e Cª Heterónima, nota 12, págs. 359-60: Ao que se conta, Botto apenas teria, com
meias palavras, e alguma vez, referido duas coisas acerca do Pessoa sexual: que ele olhava, notem, de certa maneira para os
rapazinhos; e que o seu membro viril, muito pequenino, explicava a abstinência envergonhada dele (como é que ele sabia?)."
89
VII
Vivem em nós inúmeros
Depois do episódio Olisipo – que tanto pode ser caracterizado como um sucesso (pelo impacto
e polémica), como um falhanço (por não ter sido economicamente viável) – a atenção de
Fernando parece virar-se novamente para a sua poesia em Português.
Isto explica-se, principalmente, por dois simples factos: a fraca recepção dos seus livros em Inglês
publicados na Olisipo e a partida da sua família da casa da Rua Coelho da Rocha. Se o início dos
anos 20 tinha sido pródigo em acontecimentos inesperados, sobretudo tendo em consideração o
romance extemporâneo com Ofélia, isso tinha-o impedido, conjuntamente com as aventuras
comerciais, de apostar mais a sério na sua obra em Português. Dia 21 de Julho de 1923 a mãe e a
irmã de Pessoa, Henriqueta, vão viver para a Quinta dos Marechais, Alto da Boa Vista em Benfica,
deixando Pessoa a viver sozinho. Henrique Rosa vai também viver para a Quinta dos Marechais,
por se encontrar doente.
O regresso da mãe (e da família) tinha desempenhado um papel importante na quebra com
Ofélia, mas agora, sem eles, ele teria de se refugiar novamente na sua única segurança – a sua
escrita. A solidão seria mascarada recorrendo a esta velha e sempre presente amiga.
Alguns estudiosos questionam a razão por que Caeiro e Reis se mantêm anónimos durante tanto
tempo (lembrando que Caeiro começa a escrever em 1916). Penso que isso se deve ao facto de
Fernando querer insistir numa carreira em Inglês até ao último momento e que, devido a
diversos factos, ele não querer assumir o seu real potencial em Português. Ele é forçado pelas
circunstâncias, mas o que lhe permite a assunção é uma oportunidade: o lançamento de uma
nova revista de arte chamada Athena.90
Interrogado em entrevista sobre Athena, Fernando, na qualidade de director diz:
- Mas em que é que consiste uma revista "puramente de arte"?
- Há três públicos - um que vê, outro que lê, outro que não há. O primeiro é composto da maioria, o segundo
da minoria, o terceiro de indivíduos. O primeiro quer ver, o segundo quer conhecer, o terceiro quer
compreender. Uma revista "puramente de arte" é feita para o público que "compreende" a arte, e, ao mesmo
tempo, para que os públicos que a não compreendem, compreendam, um que ela tem que compreender, o
outro que ela poderá ser compreendida, visto que há quem a compreenda.
- E isso como se faz?
- Fazendo-se. Exclui-se, primeiro, o critério de homogeneidade (escola ou corrente); assim se acentua e se
ensina que a arte é essencialmente multiforme, o que é uma das primeiras coisas que tem que aprender
muita gente que já o sabe. nas estampas da primeira «Athena» verá reproduções de arte de um clássico, de
um romântico, de um contemporâneo. Na parte literária, igual diversidade se busca, como se vê e verá. 91
É curiosíssimo que ele diga que, em Athena, não haverá a proposição de um sistema homogéneo,
porque a arte se faz de heterogeneidade. Ou seja, ele tem já plena consciência dos diferentes
planos em que escreve e da forma como esses planos se coordenam entre si, pelo menos
teoricamente.
Aliás, é evidente a intenção programática de Fernando em Athena. Ele não quer apenas libertar
Reis e Caeiro, mas apresentar, sequencial e metodicamente, a sua filosofia neopagã. O
neopaganismo é apresentado através dos seus criadores, de forma progressiva, em crescendo,
sendo cada número usado para revelar um pouco mais do que é afinal a teoria subjacente:
… o leitor estaria preparado para apreciar Caeiro, se ele percorresse o rumo planeado por Pessoa.
Resumimos: começar pelas odes latinizantes de Reis e a doutrina estética de Pessoa, passar pelo seu
contrapeso - a doutrina de Campos, e finalmente chegar aos poemas extremamente inovadores de Caeiro,
sendo estes a manifestação suprema das doutrinas de Pessoa e de Campos (ainda que estas doutrinas sejam
aparentemente contrárias). Este rumo, planeado com uma precisão geométrica, tem um valor iniciático, e
ainda vai ser repetido na criação literária de Pessoa.92
A revista é financiada pelo co-director (e pintor) Ruy Vaz, responsável pela direcção de arte.
Diário de Lisboa, 3/11/1924
92 Zhou Miao, Mundividência Esotérica e Poética Iniciática de Fernando Pessoa, pág. 19, 2011, Coimbra
90
91
O tempo tinha chegado para a multidão de eus se libertar, tornando prático um poema de um
deles, Ricardo Reis, intitulado precisamente Vivem em nós inúmeros :
Vivem em nós inúmeros;
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar
Onde se sente ou pensa.
Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
Indiferente a todos.
Faço-os calar: eu falo.
Os impulsos cruzados
Do que sinto ou não sinto
Disputam em quem sou.
Ignoro-os. Nada ditam
A quem me sei: eu 'screvo.93
Podíamos também recorrer à famosa expressão, também de Reis: Para ser grande, sê inteiro .
No entanto, e apesar de todo o seu valor, o impacto de Athena foi quase nulo. Despida de
qualquer manto de polémica a revista, que abraçava um tom mais elegante e clássico, não teve a
reacção fantástica provocada por Orpheu.
Há apenas uma referência, de um jovem José Régio, como nos diz José Blanco:
É no próprio ano da publicação dos poemas de Caeiro na Athena (1925) que o nome de Caeiro é
publicamente citado, pela primeira vez, por outrem que não Pessoa. José Régio, na sua dissertação de
licenciatura na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra As Correntes e as Individualidades na
Moderna Poesia Portuguesa, publicada em Vila do Conde sob o seu verdadeiro nome José Maria dos Reis
Pereira, refere-se a Fernando Pessoa como o mais original, o mais completo e o mais poderoso dos nossos
modernistas, que inventou esses vários pseudónimos com que vai revelando os vários aspectos da sua
sensibilidade e as várias atitudes do seu espírito. Régio sublinha que Pessoa se chama Álvaro de Campos ou
Alberto Caeiro quando assina tentativas em que preferentemente revela o destrambelho da sua
sensibilidade, o cansaço da Metafísica ou da Razão, o seu apelo à )ntuição pura. 94
Mas José Régio, enquanto escritor, já se movimentava nos círculos próximos a Pessoa. A sua
opinião, embora válida, em nada acrescentaria à popularidade do projecto dos heterónimos.
Não se pode deixar de registar a ironia da fraca recepção de Athena, quando Pessoa se mostra
pronto, finalmente, para publicar em nome dos heterónimos; ou seja, mostrando todo o fulgor da
sua arte multiforme . O efeito nele desta falta de reconhecimento será profundo. Não o vai levar
a desistir dos heterónimos, mas desilude-o ao ponto de, na famosa carta dos heterónimos
dirigida ao crítico Casais Monteiro escreva, referindo-se aos seus planos editoriais heterónimos:
Referi-me, como viu, ao Fernando Pessoa só. Não penso nada do Caeiro, do Ricardo Reis ou do Álvaro de
Campos. Nada disso poderei fazer, no sentido de publicar, excepto quando (ver mais acima) me for dado o
Prémio Nobel.95
Para cúmulo, 1925 revela-se um ano negro em termos familiares. Em Fevereiro morre o General
Henrique Rosa. A sua mãe morre logo depois, em 17 de Março de 1925, no mesmo mês em que
sai o número quatro de Athena que revela poemas de Caeiro pela primeira vez. Segue-se apenas
mais um número, em Junho. A revista acaba de seguida, sem grande surpresa, revelando no
último número ainda poemas inconjuntos de Caeiro.
93 Note-se que este poema está datado de 13/11/1935, apenas 17 dias antes da sua morte e é tido como o último poema
datado de Reis. É notório que a multiplicidade dos eus o acompanhou até aos últimos dias.
94 «A fortuna crítica de Alberto Caeiro» in Pessoa’s Alberto Caeiro, Portuguese Literary & Cultural Studies, 1999
95 Op. Cit., 19/01/1935
A morte da mãe – a única presença humana que o ligava de facto à vida real – determina de forma
quase final o seu afastamento do mundo. É no fim de 1925 (ou pouco depois) que ele escreve um
dos seus mais famosos poemas em nome próprio: O Menino da sua Mãe :
No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas traspassado
— Duas, de lado a lado —,
Jaz morto, e arrefece.
Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.
Tão jovem! que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
«O menino da sua mãe».
Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lha a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.
De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço... Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.
Lá longe, em casa, há a prece:
«Que volte cedo, e bem!»
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto, e apodrece,
O menino da sua mãe.96
Ora, o que é este poema senão a descrição simbólica da solidão humana de Pessoa, filho ainda
único nas suas memórias de uma infância remota com a sua mãe?
É certo que Fernando confiou a um amigo (o poeta Carlos Queiroz, sobrinho de Ofélia) que foi
inspirado para escrever O Menino da sua Mãe por uma litografia que viu na parede de uma
pensão, onde jantou com um camarada. Mas o Menino da sua Mãe não é o soldado morto na
guerra e representado nessa ilustração anónima, mas antes Fernando Pessoa ele mesmo 97. Há
uma mágoa que o inundou e que nunca o vai deixar: no plano abandonado, que a brisa morna
aquece , note-se o abandonado : ele vai sempre sentir o abandono daquela em que sempre
confiou o seu íntimo e que depois torna difícil acreditar novamente no amor sincero.
É emocionante ler uma passagem do poema que diz: Filho único, a mãe lhe dera / Um nome e o
mantivera: / «O menino da sua mãe» . Enquanto filho único, Fernando foi feliz, até aos seus 5
anos, ou mesmo 6. Mas a mãe não lhe manteve o nome, caindo numa vil traição, vil porque
nascida da pessoa mais improvável, de quem devia cuidar e não abandonar. Pessoa não mais
esquecerá esta dor, que percorre toda a sua vida, como um arrepio horrível de medo na espinha,
cada vez que se vê só, sem esperança, perdido e nada pode fazer senão mergulhar mais fundo na
sua tragédia, mais alto no seu génio em desespero, até um fim indefinido, até uma morte que no
vazio traz a paz que ele próprio foi incapaz de desenhar com as suas mãos de menino tentando
alcançar a sombra da sua mãe já partida dali, mera lembrança, fantasma de um paraíso
amaldiçoado, sabor antigo de tranquilidade que permanece próximo mas para sempre
inalcançável.
96
97
Poema sem data, mas publicado pela primeira vez na revista Contemporânea, 3.ª série, n.º 1, 1926
cf. João Gaspar Simões, Vida e Obra de Fernando Pessoa, pág. 29 e segs.
Não nos parece que interfira com esta análise a opinião de Eduardo Freitas da Costa (no seu já
referenciado Notas a uma biografia romanceada) que diz que este poema não tem "sequer a mais
ligeira relação com a sua família".
O tal "quadro de guerra" pode ter sido a inspiração "objectiva" para este poema, mas não
explicaria minimamente o seu conteúdo e só ignorando a vida do poeta, sobretudo a relação com
a sua mãe, se poderia ignorar essa perspectiva.
Se Fernando tinha abandonado Ofélia por causa do regresso da mãe a Lisboa, cedo se terá
arrependido. O conforto trazido pela mãe desapareceu e ele ficou mais sozinho do que nunca –
porque é dupla a solidão de quem já conheceu o que não é ser amado. A sua irmã Teca e o marido
regressam à Rua Coelho da Rocha vindo da Quinta dos Marechais, destroçados pela morte, não só
de Henrique Rosa e da sua irmã, mas também da sua própria filha ainda bebé. A morte continua a
rodear a família Pessoa e os mortos deixam Fernando numa situação progressivamente mais
isolada, relegado cada vez mais à sua memória e às dúvidas quanto ao futuro.
A falta de lógica na vida levam-no a procurar novamente respostas ocultas. Já anteriormente
introduzido à astrologia, leva agora a cabo estudos cada vez mais profundos, procurando
soluções imediatas aos seus problemas. Mas nada de imediato poderia ser feito sem que existisse
ele a própria vontade de mudar de caminho. A dolorosa verdade é que, nesta altura da sua vida,
Fernando estava num momento decisivo, um momento que – sem que ele o soubesse
conscientemente – apenas dependia dele e não de alguma remota leitura esotérica.
Figura 19
Volume I, N.º 4 da revista Athena, 1925
Neste número de Athena apareceram os primeiros poemas
de Alberto Caeiro – o Mestre . Curiosamente, Pessoa
preferiu, no plano editorial de Athena, finalizar com Caeiro
uma apresentação do neopaganismo que se inicia com a
introdução de Pessoa-ele-próprio. No n.º 4 aparecem 23
poemas de Guardador de Rebanhos e no n.º 5 saiem 16
poemas inconjuntos .
Ele aponta que, na tradição pagã, os antigos gregos
figuraram em o deus Apolo a liga instintiva da
sensibilidade com o entendimento, em cuja acção a arte tem
origem como beleza , enquanto figuraram em a deusa
Atena a união da arte e da ciência, em cujo efeito a arte
(como também a ciência) tem origem como perfeição 98
98
Zhou Miao, Op. Cit., pág. 17-8.
1925-1935
THANATOS
O meu destino pertence a outra Lei, de cuja existência a
Ophelinha nem sabe, e está subordinado cada vez mais à
obediência a Mestres que não permitem nem perdoam.
Não é necessário que compreenda isto. Basta que me
conserve com carinho na sua lembrança, como eu,
inalteravelmente, a conservarei na minha.
Carta a Ofélia Queiroz datada de 29/11/1920
I
Finalmente, Presença
No início de 1925 Fernando está praticamente convencido que o seu génio literário não será
reconhecido em vida. Em parte isso deve-se à própria natureza desse reconhecimento – ele
próprio reconhecerá que os génios nunca são elevados a esse patamar pela sua própria geração.
No entanto, e de um modo algo inesperado, a fundação de uma nova revista vai trazer-lhe o que
ele tanto ansiava: um reconhecimento, mesmo que parcial, desse mesmo género. Essa revista é
Presença, fundada em 1927 em Coimbra, que contava entre os fundadores com aquele que se
tornaria um dos principais correspondentes (e mais tarde biógrafo de Pessoa), João Gaspar
Simões. Depois de Orpheu, Presença aparece como o estímulo para um segundo modernismo ,
estabelecendo necessariamente os mestres – e elegendo sobretudo Pessoa como o mestre
incontestado do primeiro modernismo .
De 1925 a 1927 Fernando encontra-se numa fase algo indeterminada da sua vida. Traduz alguns
romances do Inglês e escreve para a Revista de Comércio e Contabilidade, mas é com Presença que
ele acha um novo fôlego para uma vida literária que, embora não estagnada, se encontrava
definitivamente num ponto de encruzilhada no que tocava à sua exposição pública. Certamente
que não era objectivo de Pessoa ser conhecido como tradutor ou sequer como especialista em
comércio…
Há que olhar com atenção para o que Fernando publica em Presença. Mas ainda antes disso, em
ele publica O Menino da sua Mãe . Reforça, esta publicação, a interpretação de que o
poema fala realmente da sua mãe e dele próprio enquanto filho da sua mãe . Não será de
estranhar a publicação do mesmo logo a seguir à morte da sua mãe em Março de 1925. Ele sentese definitivamente abandonado num plaino , num planalto frio e morto onde nada resta da sua
vida passada. Há que ver que este homem se segurava a um passado que já nem sequer existia:
era um passado que apenas ficava na sua memória e em mais nenhum local. O facto de se ter
segurado a uma vida que era apenas ilusória levou a que ele, de facto, renunciasse a uma hipótese
de regressar a si próprio e à sua felicidade.
Quando a mãe morre e de seguida a sua irmã se muda para Évora, Fernando fica novamente
completamente sozinho. Antes destes acontecimentos ele tinha decidido deixar Ofélia em favor
da sua obra, com a ilusória promessa do regresso reconfortante da sua família e da hipótese falsa
de ter um ambiente próximo que o ajudasse a esquecer a sua dor interior.
A sua fixação com outros temas, nomeadamente esotéricos, cresce. Em Maio de 1926 é publicada
no Jornal do Comércio e das Colónias, uma resposta de Pessoa a um inquérito de natureza política.
(curiosamente é no mesmo dia - 28 - em que é deposta a primeira República e é instaurada a
ditadura). Ele diz, na entrevista, que Portugal se deve realizar enquanto Império Espiritual e que,
para isso, as colónias não são necessárias. Trata-se de uma visão particularmente revolucionária,
embora Fernando, obviamente, não tirasse a sua conclusão a partir de factores realistas, antes de
premonições idealistas ligadas à sua imaginação.
Mas, voltando a Presença, vejamos qual é o primeiro poema publicado por Pessoa nesta revista. O
poema intitula-se Marinha e é publicado em Junho de 1927:
Ditosos a quem acena
Um lenço de despedida!
São felizes: têm pena...
Eu sofro sem pena a vida.
Dôo-me até onde penso,
E a dor é já de pensar,
Órfão de um sonho suspenso
Pela maré a vazar...
E sobe até mim, já farto
De improfícuas agonias,
No cais de onde nunca parto,
A maresia dos dias.
Trata-se de um poema ortónimo, o que é de salientar, e o tema é bastante explícito. O sujeito
poético transmite uma mensagem clara de abandono e de falta de esperança. O facto de Pessoa
escolher este poema para se estrear na Presença é significativo, visto que ele tinha em carteira
muitos outros que seriam muito mais ilustrativos do seu próprio modernismo . A estreia na
revista é sobretudo emocional, transmitindo muito do que ele sentia no princípio de 1927 – a
falta da sua família, a falta de esperança em ser desejado por alguém; mas sobretudo a falta de
esperança em si próprio, no seu futuro.
Se muitos começam a ver em Fernando Pessoa o mestre da sua geração, ele próprio já parece ter
desistido. Não será bem assim, como veremos, mas o certo é que este homem, já com 39 anos, não
tem quaisquer ilusões acerca do seu futuro. A sua decisão fundamental foi desistir de Ofélia – não
temos, quanto a isso, qualquer dúvida. Seria Ofélia a sua hipótese dourada de refúgio para uma
vida diferente e essa renúncia vai custar-lhe muito caro, vai mergulhá-lo cada vez mais no oposto
da vida – na morte. Por essa mesma razão iniciamos em 1925 um período de análise que
denominamos de Thanatos, ou pulsão de morte e autodestruição.
Porque é que 1925 aparece como tipping point entre Eros e Thanatos?
Primeiro pela forma como a vida de Pessoa se transforma em períodos seccionais. Ele próprio
admite que esses períodos tomavam a forma de intervalos de 10 anos. Seguimos por isso, na
nossa biografia, esses mesmos períodos (com a óbvia excepção do primeiro). 1925, é por isso, o
primeiro período de 10 anos posteriormente ao fim da relação com Ofélia. Por outro lado, 1925 é
também o ano em que morre a sua mãe – o único verdadeiro elo que ele parecia ter com a
realidade exterior. Acho que é importante também realçar a maneira com a sua mãe morre. Terá
Fernando Pessoa conseguido admitir essa morte de forma pacífica, resolvendo dentro de si todos
os problemas e angústias maternais que o sempre o perseguiam? Não nos parece. Pelo contrário,
a morte da mãe parece torná-lo ainda mais consciente desse facto. Ele vai virar-se, não para
escolhas positivas e reais, mas para escolhas negativas e ideais. Vai preferir o esoterismo e a
astrologia à vida de todos os dias, as previsões do futuro à construção manual do futuro. Vai
colocar-se nas mãos de algo que ele não controla, nem quer controlar. Em resumo – vai desistir
de si próprio e da sua vida.
Ainda em Junho de 1927 ele publica na Presença um artigo confuso de Álvaro de Campos
intitulado Ambiente que termina com um fantamasgórico Fingir é conhecer-se . Era o sinal da
partida quase definitiva desta vida para a morte.
Figura 20
João Gaspar Simões, José Régio e Branquinho da
Fonseca, fundadores da revista Presença
Estes três homens vão desempenhar, sem o saberem,
um papel fundamental no ressurgimento de Pessoa
enquanto líder de um movimento ao qual já faltava
fôlego. Gaspar Simões será o primeiro a escrever
sobre a obra de Pessoa em livro, José Régio, por
outro lado, eleva Pessoa ao patamar de inspiração
primordial da nova geração de poetas do segundo
modernismo .
II
A ditadura do espírito
Para além da aparição de Presença o outro factor energizante deste período para Fernando
Pessoa é o golpe militar de Maio de 1926 que estabelece a ditadura em Portugal. Os 16 anos que
tinham decorrido desde a implantação da República tinham sido turbulentos e instáveis, com
sucessivos governos e derrapagens orçamentais. A revolta militar liderada por Gomes da Costa é
recebida de forma positiva por um povo demasiado cansado de instabilidade. Fernando, neste
aspecto, é apenas mais um Português, desejando ardentemente a paz social.
O entusiamo de Fernando é - curiosamente – carregado de ingenuidade. Dizemos curiosamente
porque é um lugar-comum dizer que ele é iminentemente racional. No entanto grande parte das
decisões que ele vai tomando têm muito de impulsivo. É com este espírito de impulsividade e
entusiasmo que ele vai apoiar o governo ditatorial de Abril de 1928, em que António de Oliveira
Salazar assume a pasta das Finanças.
Um dos textos em prosa mais famosos de Fernando Pessoa é escrito neste período: O Interregno:
Defesa e Justificação da Ditadura Militar em Portugal.
A ideia central é que era necessária a implementação de um Estado de transição para assegurar
a ordem pública:
Sendo o Estado de Transição, em matéria nacional, a condição de um país em que estão suspensas, por uma
necessidade ou compulsão temporária, todas as actividades superiores da Nação como conjunto e elemento
histórico, o certo é que não está suspensa a própria Nação, que tem que continuar a viver e, dentro dos
limites que esse estado lhe impõe, a orientar-se o melhor que pode. Os governantes de um país, em um
período destes, têm pois que limitar a sua acção ao mínimo, ao indispensável. Ora o mínimo, o indispensável
social é a ordem pública, sem a qual as mais simples actividades sociais, individuais ou colectivas, nem
sequer podem existir.99
Não é claro quem encomenda o folheto a Pessoa. Certo é que foi encomendado e que lhe foi dada
liberdade para escrever o que quisesse. É ele próprio que o indica no início do texto (negritos
nossos):
O Núcleo da Acção Nacional, que em várias horas necessárias tem intervindo — suavemente, como é seu
modo; obscuramente, como é seu mister — na vida da Nação, pediu-nos, que todavia a ele não
pertencemos, que escrevêssemos, por ser a ocasião de o fazer, um esboço ou breve formulário do que, em
nosso entender, poderia ou deveria ser o Portugal futuro em as várias manifestações da sua vida colectiva. A
esta incumbência agregou o Núcleo a condição, a si mesma imposta, de que aceitaria por bom o que
escrevêssemos, e com tudo o que isso fosse se conformaria, tendo-o por próprio.
Mas o que é afinal o Núcleo da Acção Nacional? Segundo se percebe, era uma organização de que
Pessoa ele próprio fazia parte e que tinha por principal dirigente um tal de Geraldo Coelho de
Jesus, amigo e sócio de Pessoa na firma F. A. Pessoa (1917-18). Augusto Ferreira Gomes, também
amigo de Pessoa terá pertencido ao mesmo Núcleo 100. Este Núcleo tinha fundado um jornal
Sidonista, chamado Acção, em 1919, para o qual Pessoa colaborava como único redactor. Ou seja,
este Núcleo nada mais era que um grupo pequeno de acólitos de Pessoa que, inspirados por ele,
tentavam reavivar os ideias políticas unitários de Sidónio Pais, conhecido pela sua política suprapartidária, de união nacional.
Mais do que defender a ditadura, o Interregno defende então um regresso ao Sidonismo, pelo
menos em espírito. Fernando tem a ideia de um sistema de governo transitório que, através da
força, possa reunir o necessário consenso que depois evoluiria para outra coisa qualquer; talvez
até mesmo o estabelecimento de um governo centralizado numa ideia superior de nacionalidade.
«Segunda justificação da da ditadura militar» in O Interregno. Defesa e Justificação da Ditadura Militar em Portugal,
Núcleo de Acção Nacional, 1928
100 Cf. Núcleo de Acção Nacional in Dicionário de Fernando Pessoa e do modernismo Português, Caminho, pág. 544-5,
2008; João Gaspar Simões, Vida e Obra de Fernando Pessoa, Vol. II, pág. 288 e segs., 1950.
99
Não é de estranhar que ele escreva fervorosamente no projecto Mensagem em 1928, produzindo
11 poemas dos 44 que compõem aquele livro, o único que publicou em Português.
Vemos que a sua defesa da ditadura é, naturalmente, idealista e até optimista. Concebe o período
de ditadura como necessário para efectuar uma espécie de limpeza do sistema político, para que
se comece de novo. O que não perspectivou, enredado que estava na própria realidade que
imaginava, é que nenhuma ditadura quer ser temporária. A ditadura que ele recebe de braços
abertos, nunca o deixará sair e, antes de morrer, ele vai sentir, apertada, a força da sua censura.
Para o fim de 1928 cria o que será o seu último heterónimo: Barão de Teive. O Barão tem ideias
suicidas e acaba por se matar; sobretudo porque não consegue acabar nenhum livro e porque não
se consegue relacionar com mulheres. Não é de admirar que Fernando se identificasse com uma
figura assim, fechado como estava dentro de si mesmo. Não nos parece que o seu problema fosse
particularmente um problema físico, mas antes uma predisposição mental que o levava à inacção
física. Cada vez mais mergulhado no seu próprio projecto além-morte, ele esqueceu-se
simplesmente de viver.
O Barão diz a certo ponto: Tenho todas as condições para ser feliz, salvo a felicidade. As
condições estão desligadas umas das outras 101. A verdade é que isto era a sua realidade
quotidiana. Poder ser feliz e ser feliz eram duas coisas muito diferentes e distantes de si próprias.
O desejo da felicidade tinha por obstáculo o processo de ser feliz. Como se podia ser feliz quando
só se conhecera a infelicidade e se aprendera a admirá-la?
A ditadura assume na vida de Fernando duas duras dimensões: a dimensão externa, que coage a
sua liberdade criativa e limita a evolução socio-política do país; a dimensão interna, que o prende
à única realidade que ele sempre conheceu, uma realidade de solidão e tristeza profundas. Em
rigor ambas se acabam por poder definir enquanto do mesmo tipo, sendo ditaduras do espírito –
limitando o seu exterior e o interior.
Figura 21
Salazar e o General Gomes da Costa, em 1926
A Revolução Nacional de Maio de 1926 iniciou-se em
Braga no congresso Mariano de 28 de Maio (que
concentrava as altas figuras do conservadorismo
nacional) e espalhou-se depois para as outras grandes
cidades de Portugal. 6 de Junho marca a aclamação do
General Gomes da Costa na Avenida da Liberdade, em
Lisboa, à frente de 15 mil militares.
O plano militar não era suficiente para instalar a tão
desejada estabilidade social e económica. É aí que entra
em jogo o jovem professor de Coimbra António de
Oliveira Salazar, a quem é atribuída a pasta das finanças
em 1928.
101
Fernando Pessoa, A Educação do Estóico, Assírio & Alvim, pág. 27.
III
Uma segunda oportunidade
Costuma dizer-se que todos nós temos uma segunda hipótese na vida. A segunda hipótese de
Fernando, como a muitos nós, surgiu por acaso.
Vimos que o fim de 1928 ficou marcado por um regresso ao interior, a uma tristeza profunda.
Existe nele uma pequena esperança numa revolução exterior, mas o seu interior continua deitado
ao mesmo desespero de sempre, aprofundado pelas agruras da idade e pelos poucos cuidados
que ia tendo com a sua saúde sempre frágil 102.
No entanto, as portas abertas pela revista Presença começam finalmente a dar alguns resultados.
É em 1929, mais propriamente em Junho, que é publicado o primeiro estudo crítico sobre a obra
de Fernando Pessoa. São 20 páginas no livro Temas de João Gaspar Simões.
Fernando tem uma reacção quase eufórica. Ele, que demorava sempre a responder às cartas que
recebia, e que muitas outras vezes não as escrevia por falta de vigor, lança esta curta carta a
Gaspar Simões no mesmo mês em que a obra aparece nas livrarias (negritos nossos):
Meu querido Camarada:
Venho agradecer-lhe o seu livro Temas e não saber como agradecer-lhe o estudo, com que nele me honra.
Esta carta, ou arremedo de carta, é o prefácio incaracterístico a outra, que conto não demorar muito em escreverlhe, em a qual tratarei mais extensamente do seu livro, no conjunto crítico que representa.
Escreverei, por ora, só do coração, e para assinalar o quanto me comoveu o estudo em que me analisa. Sou,
como é de ver, incompetente, pelo desconhecimento íntimo que cada um, por lúcido que seja, tem de si mesmo,
para medir, com metro objectivo, qual seja a porção de justeza abstracta com que concluiu a meu respeito. O que
é certo é que me circum-navegou com uma atenção vigilante, e que muitos pormenores do seu estudo, eu mesmo
(sem reserva de equação pessoal) os reconheço por fotográficos. É sobre o honroso conceito de valia que não
poderei falar decentemente.
Comoveu-me, digo, o seu estudo porque me trata como realidade espiritual, e, por assim dizer, reconhece
a minha existência como nação independente.
Até à próxima carta, que farei por escrever com o cérebro! Esta, como lhe disse, deflagra do coração, no abraço
reconhecido que lhe envia o
camarada muito dedicado
Fernando Pessoa.
Há que lembrar as vezes que Pessoa enviou as suas obras para Inglaterra sem obter a resposta
que esperava. Talvez devesse ter concentrado os seus esforços no seu país natal…
Seja como for, é óbvio o seu contentamento com a obra de Gaspar Simões. Não interessa sequer o
que o crítico diz, a felicidade imediata é pelo reconhecimento merecedor de um estudo e o
reconhecimento da existência como nação independente … deflagra do coração .
Apenas 2 meses depois deste acontecimento, no dia 2 de Setembro, Fernando tira e oferece a
famosa fotografia em flagrante delitro a Carlos Queiroz, que, por sua vez, a mostra à sua tia
Ofélia Queiroz. A fotografia é um instantâneo que mostra Fernando Pessoa ao balcão de uma
taberna a beber um cálice de vinho. É Ofélia a pedir-lhe uma cópia, que recebe assinada com a
divertida dedicatória, Fernando Pessoa, em flagrante delitro .103 Agradece de seguida o envio e
Fernando responde-lhe. Assim se inicia a segunda fase do namoro entre os dois. Ele agora com
41, ela com 29.104
102 Fernando, ainda criança, já mostrava uma saúde fragilizada; com certeza por influência genética do pai. Relembre-se as
ocasiões em que ele, estando com o pai quando este tentava recuperar, ficava também doente.
103 Fala-se muito da dedicatória a Ofélia, mas a fotografia original dada a Carlos Queiroz também estava dedicada com um
texto não menos criativo: Carlos: isto sou eu no Abel, isto é próximo já do Paraíso Terrestre, aliás perdido. Fernando .
104 Na primeira fase do namoro, ele tinha 31 e ela 19.
A primeira fase do namoro tinha começado de forma arrebatadora, algo até um pouco out of
character para Fernando. A segunda fase já não terá um início tão arrebatador. Passados 9 anos,
ele está diferente e é Ofélia que nos diz isso mesmo nas suas próprias palavras (negritos nossos):
O Fernando estava diferente. Não só fisicamente, pois tinha engordado bastante, mas, e principalmente,
na sua maneira de ser. Sempre nervoso, vivia obcecado com a sua obra. Muitas vezes me dizia que tinha
medo de não me fazer feliz, devido ao tempo que tinha de dedicar a essa obra. Disse-me um dia: «Durmo
pouco e com um papel e uma caneta à cabeceira. Acordo durante a noite e escrevo, tenho que escrever, e é
uma maçada porque depois o Bebé não pode dormir descansado». Ao mesmo tempo, receava não poder darme o mesmo nível de vida a que eu estava habituada. Ele não queria trabalhar todos os dias, porque
queria dias só para si, para a sua vida, que era a sua obra. Vivia com o essencial. Todo o resto lhe era
indiferente. Não era ambicioso nem vaidoso. Era simples e leal.105
Fernando aparece-lhe transmutado para pior. Na primeira fase ela descreve-o como terno e
atencioso, engraçado e cheio de vontade de viver embora deitado a uma solidão já extrema.
Agora vê-o cansado e velho – muito mais velho do que a sua idade real. Embora pudesse ser de
esperar que a diferença de idades entre ambos estivesse mais esbatida, Fernando sente-a agora
ainda mais, por se sentir ele mesmo mais perto do fim.
Não podemos deixar de lembrar o início do nosso livro, quando falámos do mapa astrológico de
Fernando, especificamente no que dizia respeito à maneira como o amor o podia salvar:
Este posicionamento infunde-lhe um grande interesse pelo ocultismo. Porém, para seu próprio bem, procure
controlar sua possível participação em actividades e organizações esotéricas. Você está sujeito a sofrer
detenções por engano e a ser ludibriado por alguém a quem ama. Só uma afeição pura poderá sanar todos
esses problemas.
Há que compreender que ele estava num caminho sem regresso, um caminho de autodestruição
em que a segurança lhe advinha de um veneno que ele tão bem conhecia. É a solidão e a
racionalização da vida que lhe garantem a sobrevivência, mas esses dois factores exigem-lhe um
preço demasiado pesado: a própria vida é o seu tributo inexorável. Fernando combateu sempre a
sua dor de não pertencer com esta certeza intelectual de que essa dor tinha a ver com um
destino, com uma missão. Claro que isso era uma ilusão. Na verdade ele tinha-se protegido da
própria dor de não pertencer com essa convicção cega no destino. Este caminho foi um caminho
intensamente solitário e foi a solidão que o solidificou. E era na anulação da solidão que residia a
única solução à anulação de si próprio. O amor, a afeição pura , era o único remédio para o
desviar deste caminho em direcção à morte de si mesmo. Essa morte em vida significava também
a morte dos desejos, a morte das sensações – representada magnificamente através do artifício
intelectual da heteronímia.
Figura 22
Fernando Pessoa no Abel, 1929
O Abel Pereira da Fonseca da Rua dos Fanqueiros, onde a fotografia
foi tirada, fazia parte da rotina de Pessoa. Não era estranho ele ir
recarregar a garrafa que depois levava para casa ou então fazer
pausas no trabalho para uma aguardente.
O consumo de álcool tornou-se um hábito regular sobretudo na idade
adulta. Pessoa revela abertamente que se encontra embriagado em
diversas cartas que escreve, a Ofélia e a outros. A família sempre
defendeu que os hábitos de consumo de álcool deveriam ser
analisados tendo em conta o período histórico em que ocorriam. No
entanto, mesmo assim, tratava-se certamente de uma situação grave
de habituação. Alcoolismo portanto. Talvez ele aguentasse mesmo a
bebida, como provam os inúmeros relatos de quem nunca o viu
bêbado. O colega de escritório Moitinho de Almeida foi o que melhor
conseguiu colocar em perspectiva o facto – ele aguentava como uma
esponja . Pessoa retorquiu-lhe: Como uma esponja? Como uma loja
de esponjas, com armazém anexo! .
105
«O Fernando e eu» in Cartas de amor de Fernando Pessoa, Ática, 1978
IV
Exilado
Fernando vive um duplo exílio quando inicia a segunda fase do namoro com Ofélia. Primeiro
encontra-se a morar sozinho, depois da morte da mãe e da partida da irmã Teca para Évora no
fim de 1927 devido à vida militar do marido Francisco Caetano Dias; segundo porque se exilou
ainda mais para dentro de si próprio, como revela a sua segunda carta desta segunda fase do
namoro (negritos nossos):
Gostei do coração da sua carta, e realmente não vejo que a fotografia de qualquer meliante, ainda que esse
meliante seja o irmão gémeo que não tenho, forme motivo para agradecimento. Então uma sombra bêbada
ocupa lugar nas lembranças?
Ao meu exílio, que sou eu mesmo, a sua carta chegou como uma alegria lá de casa, e sou eu que tenho que
agradecer, pequenina.106
Ele fazia questão de visitar a irmã em Évora, e fê-lo por diversas vezes. Mas as visitas não serviam
para anular o sentimento de solidão. Tal como a chegada da mãe tinha servido de certa forma de
desculpa para atenuar a necessidade de Ofélia, a partida da irmã vai ter o efeito contrário. As
fases do namoro regem-se assim também por esta instabilidade emocional que ele vai sentido e
compensando. Não quer dizer que haja então menos sentimento verdadeiro, antes uma
imaturidade emocional inevitável, em alguém que raramente se deu a conhecer a outra pessoa.
As cartas têm um efeito rejuvenescedor em Pessoa, mas não o mudam profundamente. Do outro
lado, Ofélia mostra um entusiasmo ainda maior – como lhe era costume. O volume de cartas que
ela escreve é avassalador, perante o reduzido número de missivas escritas por Fernando. A
diferença estabelece-se nas muitas dezenas e, a partir de Janeiro de 1930, Fernando deixa de lhe
escrever. O que não a impede a ela de continuar, por mais um ano. Entretanto encontram-se e
telefonam-se.
Há quem especule que a relação terá culminado, neste período, com efectiva consumação sexual.
Não há provas disso na correspondência, embora algumas passagens possam ser efectivamente
ambíguas. Mais à frente teremos, infelizmente, a prova final. O que podemos observar no que
restou da correspondência entre ambos é a crescente pressão de Ofélia para forçar Pessoa a
reconhecer a relação de ambos. Em diversas cartas aparece o desejo de casar com ele, de o ver
diariamente, até de o acompanhar para Cascais – ele planeava há já algum tempo a mudança para
fora de Lisboa de modo a preparar a sua obra com mais calma e método. No entanto nada disto
acontece. O que acontece é o afastamento progressivo de Fernando que, deixando de escrever,
cada vez menos a contacta e a certo ponto afasta-a com a possibilidade de ir para Inglaterra. A
reacção dela é, como seria de esperar, irredutível:
O Nininho é mau, pronto! Disse que telefonava e não telefonou, e eu estou muito triste por isso, porque tenho
muitas saudades dele; e ainda o vi ontem que faria se fosse para Inglaterra!! O Nininho foi duma crueldade
muito grande e mo ter dito com tanta antecedência, porque faz-me estar em constante sobressalto até eu ter
a certeza que não vai.
…
Não, o Nininho não vai a Inglaterra porque eu vou pedir muito ao Senhor, e o Nininho vai ver como eu serei
ouvida.107
Noutras cartas (quase todas em 1930 e 1931) Ofélia queixa-se também do consumo de
aguardante de Fernando e recomenda-lhe que evite o Abel. O aviso é sucessivo e numa carta ela
chega mesmo a dizer que ele poderá adoecer gravemente se insistir em não deixar o consumo de
álcool. Ou seja, para quem insiste que Pessoa aguentava a bebida, certamente que alguém se
apercebia do efeito que a mesma tinha sobre a sua saúde, fora do seu círculo familiar – essa
pessoa era quem lhe estava mais próximo, embora simultaneamente cada vez mais distante.
106
107
Carta de 11/9/1929
Carta de 6/3/1930
A força exibida por Ofélia nesta segunda fase não pode ser desprezada e não pode nem deve ser
ignorada. Apesar de já ser óbvia a dificuldade em manter a ligação emocional entre os dois,
sobretudo devido à indisponibilidade de Fernando, ela nunca desiste dele até ao último
momento. É verdade que pode ser defensável uma interpretação moderna , em que
consideramos os esforços de Ofélia exagerados e sinal da sua própria necessidade emocional.
Aliás, a leitura das cartas deixa, ao leitor actual, a sensação perturbadora de uma certa
possessividade e mesmo dependência emocional dela em relação a Fernando; fruto sem dúvida
da sua própria personalidade insegura combinada com o seu mundo familiar. Não é certamente
este um fenómeno moderno, mas antes intemporal – homens e mulheres relacionando-se e
lidando, na construção dessas mesmas relações com as suas limitações e problemas.
Exigiu Ofélia demasiado de Pessoa? Talvez. Exagerou na sua vontade de ter da parte dele uma
resposta efectiva à sua aproximação? Sim. Talvez. Mas, em certa medida, quais eram as suas
opções? As opções de alguém que diz ter realmente amado, sem ser plenamente correspondida.
Numa época em que o amor ainda era definido por regras estritas, de classe e não só; percorrido
também em rituais rígidos e pouco flexíveis, a relação de ambos pode considerar-se à margem da
sociedade e amplamente aberta a todas as possibilidades. Pessoa abominava o casamento
enquanto armadilha para a sua liberdade e deve ter tremido com a hipótese de ter uma mulher
a controlar os seus passos e os seus horários. Por outro lado, o casamento seria a única forma de
ele negar que a liberdade tomasse conta dele sem que a pudesse controlar.
É fácil de dizer que os recuos de Fernando apenas revelam alguém que não estava realmente
interessado; quando na realidade há muito mais por detrás das suas reacções. O esfriamento
gradual do namoro revela-nos um homem que afasta uma mulher, mas que não a afasta apenas
por desinteresse, antes por impossibilidade de sentir da mesma forma. Ele não a amava? Só ele o
poderia saber. A minha intuição diz-me que, provavelmente, ela gostaria mais dele do que ele
dela, mas havia, mesmo assim, entre eles, algo de especial. Algo que ficou incompleto porque
Fernando não conseguiu abrir-se com ela e porque ela não o conseguiu fazer abrir-se. Com 41
anos, Fernando vê-se demasiado preso a um passado que o estrangula. O que ele conhece é esse
passado e é nele que reside o seu mundo, a sua segurança – e, pensa ele, a sua única hipótese de
ser quem é, de sobreviver. É a recusa de largar esse passado que o impede de sair do seu exílio.
Insiste na sua solidão para proteger uma falsa sensação de liberdade e racionaliza os seus
sentimentos para não os confrontar.
O ano de 1930 é feito de questões e, provavelmente, de hesitações. Não há dúvida que ele terá
pensado em e recusado Ofélia, sem pesar bem as consequências de tal acto. Mas temos de aceitar
que esse acto era, de certo modo, inevitável. A ruptura deveu-se também à forma como Ofélia o
podia ameaçar – a proximidade dela tornara-o vulnerável ao ponto de ele a ter de afastar. O
último passo ritual dessa ruptura é feito com a chegada de Aleister Crowley a Lisboa, em 2 de
Setembro de 1930. No fim desse mesmo ano, a sua irmã Teca regressa de Évora. Não existiam
mais razões para ter de acreditar no amor.
Figura 23
Bilhete de Identidade (1928)
A curiosidade do BI de Pessoa de 1928 é mais do que
apenas isso mesmo: consta como profissão empregado
no comércio e a sua fotografia representa bem a
maneira como envelheceu subitamente, perdendo
cabelo e engordando.
As palavras de Ofélia são confirmadas, cruelmente,
pelas provas físicas ao nosso dispor.
As fotografias de Pessoa no período 1930-1935
revelam uma assustadora progressão para a morte. Ele
parece ter desistido, progressivamente, de viver.
V
Aleister
A era Thanatos da vida de Fernando Pessoa inicia-se crucialmente com a visita de Aleister
Crowley a Lisboa, em Setembro de 1930. O envolvimento de Fernando com o esotérico Inglês era
bastante mal visto pela sua família, ao ponto de a sua irmã Henriqueta proibir que as cartas com
Crowley fossem publicadas durante a sua vida. Pudor talvez, mas é certo que ela estava certa em
intuir que a presença daquele farsante Inglês na vida do seu irmão tinha sido tudo menos
positiva.
Chamamos desde logo farsante a Crowley porque nos é óbvio o que ele foi. Fernando interessouse por teorias filosóficas esotéricas como as de Crowley ou de Blavatsky na esperança de
encontrar uma teoria gnosiológica unificadora. Levado pela sua impulsividade (o lado gémeos)
ele lê estas teorias de forma ingénua, infundindo-as com as suas próprias convicções e,
infelizmente, passando ao lado das fraquezas dos respectivos fundadores. O exemplo de Crowley
evidencia bem esta ingenuidade de Fernando que, sem rodeios, contacta o homem mais
perverso do mundo através de uma simples carta, corrigindo-lhe o horóscopo108
O esoterismo tornou-se muito mais importante para Fernando depois da morte da mãe, e
percebe-se bem o porquê. O seu distanciamento da vida real para a vida ideal torna-se inexorável
e isso manifesta-se na aproximação inconsciente a Crowley.
Muito te sem especulado sobre as razões da vinda do mago Inglês a Lisboa. A análise das cartas
trocadas entre ambos parece evidenciar a razão mais simples de todas: negócios e esperança de
lucro. Só outra razão aparente se junta a esta, traduzida na vontade de impressionar a sua mais
recente conquista, uma tal de Hanni Larissa Jäeger, de apenas 19 anos.
O choque da chegada do mago é duplo. Inesperado e sexual. Depois de trocarem apenas algumas
cartas e de Fernando evitar marcar uma data para o encontro (foi Crowley que o mencionou e
Pessoa, atrapalhado, fala até na hipótese de viajar ele a Inglaterra), um telegrama anuncia, curto,
a chegada irreversível:
CROWLEY ARRIVING BY ALCANTARA PLEASE MEET 109
Pessoa não tem remédio senão esperar a chegada do vapor de Southampton. Dia 2 (terça-feira) e
3 o casal Crowley/Jäeger explora a cidade e vai a banhos, aproveitando para desempenhar rituais
que envolvem drogas e sexo110. Fernando serve de cicerone em algumas ocasiões, mas a sua
ajuda é meramente indicativa, quase só como guia turístico. Aparentemente só dia 7 (um
Domingo) é que Fernando consegue almoçar com o casal. Os diários de Crowley sugerem que
entre Terça e Domingo ele e Jäeger terão estado ocupados com os rituais e com a visita a diversos
pontos de interesse – nomeadamente a Boca do Inferno e Cascais, isto depois de explorarem
brevemente uma Lisboa que Crowley parece achar aborrecida e dormente.
O almoço tem um efeito extraordinário em Pessoa que, passados 3 dias, escreve:
Dá a surpresa de ser
É alta, de um louro escuro.
Faz bem só pensar em ver
Seu corpo meio maduro.
Seus seios altos parecem
(Se ela estivesse deitada)
Dois montinhos que amanhecem
Sem ter que haver madrugada.
Cf. Miguel Roza, Encontro Magick, Assírio & Alvim, 2010, Págs. 62-3.
Op. Cit., pág. 317.
110 O diário da visita pode ser consultado aqui.
108
109
E a mão do seu braço branco
Assenta em palmo espalhado
Sobre a saliência do flanco
Do seu relevo tapado.
Apetece como um barco.
Tem qualquer coisa de gomo.
Meu Deus, quando é que eu embarco?
Ó fome, quando é que eu como?
Já falaremos mais à frente sobre Hanni e, sobretudo, sobre a influência que teve sobre Pessoa.
Mas não restam desde já dúvidas que ele ficou impressionado com ela. Por agora será de relevar
precisamente as duas últimas linhas da última estrofe: Meu Deus, quando é que eu embarco? / Ó
fome, quando é que eu como? . )nequivocamente ele parece indicar que, até esta data, não tinha
havido qualquer relação sexual com Ofélia 111, com quem aliás ainda namorava aquando da
chegada de Hanni.
Mas o propósito da visita de Crowley tinha algo de menos misterioso. Não demora que Crowley
revele a sua Mensagem 112: a intenção de abrir em Lisboa uma sucursal da sua editora (e da
própria pseudo-ordem mística OTO). É provável que este tivesse por intenção facilitar a
preparação de livros que seriam ilegais em Inglaterra. A recompensa para o Português seria a de,
eventualmente, ter a sua poesia publicada em Inglês com prefácio de Crowley. Fernando, em
carta de 12 de Setembro revela isso mesmo113, falando também em possíveis traduções. Crowley
aproveita ainda a viagem para simular o seu suicídio na Boca do Inferno em Cascais. Era algo que
estava longe de ser espontâneo. Em 1929, quando estava em Paris, ele tinha já falado do plano ao
escritor Francis Dickie que passava por fingir a morte para fazer lucro com 1000 livros que tinha
em stock e por vender. A hipótese apresentou-se, em formulação conjunta com a amante.
Crowley, longe de um mago, não passava de um entertainer, sempre à procura de exposição nos
media e, claro, de lucro fácil. Talvez tenha sido mesmo a primeira grande celebridade Europeia.
Figura 24
Aleister Crowley circa 1930
Apelidado pela imprensa do tempo como sendo o homem mais
perverso do mundo , Crowley era esotérico, poeta, dramaturgo,
jogador de xadrez e alpinista. Ao longo da sua vida procurou sempre
protagonismo através do choque e do inconvencional, pondo em
causa os princípios morais da sociedade do seu tempo, opondo-lhes
uma filosofia libertina e hedonista do what thou wilt .
Sempre usou a sua fama para fugir ao trabalho (herdou uma herança
paternal que acabou por desperdiçar) e para se rodear de belas
mulheres escarlate , suas parceiras de rituais e peripécias. É hoje
em dia notório que, longe de ser um visionário, Crowley era
sobretudo um showman, um charlatão que misturava a curiosidade
da sociedade do início do Século XX com o esoterismo obtendo um
estilo de vida propício a chocar e a fazê-lo aparecer nas notícias.
Isto não impede que defendamos que existiram aproximações sexuais entre ambos, embora nunca a consumação
completa do acto sexual. Existiram isso sim, e bem documentadas, carícias íntimas (as idas a Pombal e à Índia) e beijos.
Pelos innuendos presentes nas cartas de amor é fácil de perceber que as idas a Pombal se referem às carícias feitas aos
seios de Ofélia. Já as idas à Índia são menos claras, mas podem ter a ver com a semelhança entre a forma triangular do
sub-continente Indiano e a própria forma do sexo feminino. Seja como for, e embora aparentemente ainda virgem, não se
torna defensável que Fernando possa ser mais caracterizado enquanto frio e distante junto de todas as mulheres, tendo
presente os ímpetos e pulsões que seriam normais de encontrar em alguém do seu sexo e idade.
112 O termo não é inocente. Nas cartas de Crowley ele fala de uma misteriosa Mensagem que teria surgido a propósito do
envio dos poemas )ngleses de Pessoa: ) have, indeed, taken the arrival of your poetry as a definite Message, which )
should like to explain in person carta de / /
. Terá esta mensagem de Crowley influenciado o livro com o
mesmo nome de Pessoa que começou por se chamar Portugal ?
113 Op. Cit., pág. 317-19
111
VI
Hanni
Na nossa opinião a figura mais interessante que chegou a Lisboa em Setembro de 1930 não foi
Aleister Crowley, a Besta
, mas a sua mulher escarlate , (anni Larissa Jäeger.
Pouco se sabe das mulheres que entraram na vida de Pessoa, mas sabemos que duas tiveram uma
presença marcante: Ofélia e Hanni. Ofélia, de forma indelével, marcou Fernando na forma como
ele teve um primeiro e fatal encontro com a possibilidade do amor emocional; Hanni, por outro
lado, mostrando-lhe a validade e a vitalidade da possibilidade do amor físico.
Quem era Hanni e que impacto teve em Fernando?
Lembremos primeiro que, em Setembro de 1930, Fernando Pessoa ainda não tinha acabado a
segunda fase da relação com Ofélia Queiroz. Aliás, apenas uma semana depois do almoço fatal
com Crowley e Hanni, Ofélia escreve uma carta a Fernando onde menciona o facto de manter com
ele conversas telefónicas, apesar de Fernando ter deixado quase de lhe escrever. Coincidência ou
não, Hanni escreve-lhe também uma carta datada de 14 de Setembro:
Care Frater,
93
Que lhe aconteceu? Tivemos tanta esperança de o ver na semana passada. Vamos a Lisboa na segunda-feira,
no comboio das 2h7m. Vem encontrar-se connosco na estação às h ., ou na Cook’s pouco depois?114
Fernando tinha aparentemente evitado o casal desde o almoço de dia 7. O que se passou
realmente nesse almoço? Temos apenas a entrada do diário de Crowley que diz:
Sun[day] 7. Pessoa lunched and spent P.M. My little blue flower of the Woode very drooping all P.M. – and too
much energy after dinner. Practically all Portugese have Jewish blood. See history.115
Hanni, apesar de adoentada (por causa do sol), demonstrara energia depois do almoço. Fernando
terá falado da sua ascendência judaica. Habituado às mulheres Portuguesas, mais distantes e
recatadas, é de esperar que Fernando tenha ficado particularmente afectado pela beleza Nórdica
de Hanni (de origem Alemã).
Dia 9 Crowley inicia Raúl Leal, amigo de Pessoa. Alguns biógrafos põem a hipótese de Pessoa ter
participado116. A entrada do diário de Crowley diz o seguinte para esse dia:
Tues[day] 9. .35% 7 P.M.
First cloudy morning; rain-clouds over East.
To Lisbon: lunch with 4000 scudos. Met Leal: don’t like him. There’s something very definitely wrong about
him. At night Initiation.
Como vimos pela carta de Hanni, Pessoa não esteve com o casal entre os dias 7 e 14. É com
alguma certeza que supomos que apenas Raúl Leal foi iniciado por Crowley. Poder-se-ia pensar
que Fernando tivesse visto Hanni nua no ritual de iniciação de Leal – reflectindo essa visão no
seu poema erótico, escrito dia 10; mas tal não se confirma pelos factos disponíveis para nossa
análise. Aliás, uma análise atenta do poema pode revelar que foi escrito face a uma (anni de
cerimónia , certamente a imagem formada aquando do almoço e convívio na tarde de dia .
Os encontros com Pessoa são escassos. Dia 18 Crowley está com Pessoa, mas Hanni não. Depois
disso o seu nome deixa de aparecer no diário, embora as cartas de Crowley para Pessoa
continuem a surgir em datas posteriores.
Op. Cit., pág. 320.
Marco Pasi, «Aleister Crowley’s lost diary of his Portuguese trip» in Pessoa Plural, 1, 2012.
116 Leal testemunhou que Pessoa esteve nesse dia na iniciação, mas o testemunho contradiz os factos.
114
115
No entanto o breve contacto parece ter agradado tanto a Pessoa como a Jäeger. Certamente, na
sua posição de jovem impressionável, Hanni poderá ter funcionado como um reflexo de uma
Ofélia da primeira fase do namoro, mas vinda de um país distante, mais exótica e carnal.
O interesse por Hanni fala mais do desinteresse de Fernando por Ofélia do que propriamente por
Hanni, que ele sabe inalcançável para alguém como ele. A aproximação à Alemã através do desejo
sexual é um duplo afastamento – negação do compromisso mal estruturado com Ofélia e
impossibilidade de conciliar o acto sexual com o acto emocional. A objectificação de Hanni
mostra-nos um homem perfeitamente desconectado da realidade, a todos os níveis. É uma
objectificação racional que não permite qualquer acção posterior, é uma racionalização que
impede e mata qualquer actividade concreta no mundo exterior. Como se vê na conclusão do
poema inspirado em Hanni, a única coisa que resulta da contemplação é o desalento e o
desespero.
Hanni escreve 3 cartas a Pessoa, mas em nenhuma delas se detecta uma verdadeira intimidade,
talvez apenas respeito pelo homem tímido e inteligente que encontrou em Lisboa, nada mais do
que isso. No entanto, e isso é de salientar, escreve-lhe mesmo depois de deixar Portugal. Talvez
tenha ficado, mesmo sem o assumir, impressionada ela própria com a figura de Fernando.
Do que percebemos pela história de Hanni, ela não era tão desenvolta quanto Ofélia aos 19.
Nascida em 1910 e filha de emigrantes Alemães que foram para a América em 1924117, o seu
rasto desaparece até 1927 onde aparece nos registos do Santa Barbara High School, na Califórnia.
Conheceu Crowley em Berlim, em Abril de 1930 ainda sem ter feito 20 anos. Era modelo para
pintores e uma artista aspirante por direito próprio.
Depois do episódio em Portugal Hanni separou-se de Crowley no início de 1930, tendo viajado de
volta para os Estados Unidos da América a 22 de Novembro de 1931 118. Embora se especulasse
sobre a sua morte por suicídio em 1930 na Alemanha, parece mais lógico que ela tenha voltado
para a família nos Estados Unidos, depois do infeliz episódio com Aleister Crowley a ter deixado à
beira de um esgotamento nervoso.
Figura 25
Hanni Jäeger com 17 anos (fotografia inédita do seu Yearbook Americano)
Esta foto mostra Hanni com o uniforme escolar na altura da graduation, ou
seja, quando era dado o diploma pela frequência pré-universitária.
O seu cabelo é mais escuro do que seria de esperar, mas não contraria o
poema de Pessoa que o apelida de "louro escuro". Normalmente os alunos
escolhiam uma frase que os definisse. Ela escolheu: "O que é meu é teu, e o
que é teu é meu". Curiosamente algo semelhante aos princípios da Thelema
de Crowley ("Do what thou wilt shall be the whole of the Law"). Será que
Hanni já conhecia a obra de Crowley nesta altura? É possível, mas apenas
especulativo.
De realçar que Hanni parece ter tido acesso a uma bolsa de estudo
(scholarship) e interessava-se por Francês e literatura (Oratória e
Shakespear). O seu outlook (vocação) é conclusiva: artes. Curiosamente ela
será, mais tarde em Berlim, modelo para pintores.
Pode ver-se o registo em Ellis Island aqui. O registo de emigração mostra que Hanni, com 13 anos de idade, viajava com
a sua mãe (Marta, 41) e duas irmãs (Else, 15 e Kaethe 18), de Hamburgo para Nova Iorque. O pai já estava em Nova Iorque
e chamava-se Hermann Jäeger (morada: Califórnia, Santa Barbara, 1108 Santa Barbara Street).
118 A nossa pesquisa sobre Hanni Jäeger foi complexa e demorada. Não podemos deixar de reconhecer a ajuda das
seguintes pessoas, sem as quais a fotografia de Hanni não teria sido revelada: Marco Pasi (estudioso de Crowley e do
esoterismo), Richard Kaczynski (biógrafo de Crowley), William Breeze (Frater Superior da Ordo Templi Orientis e editor
de Crowley) e Owen Aylesworth (Director of Yearbooks, Santa Barbara High School Alumni Association).
117
VII
O sonhador é que é o homem de acção
Vários biógrafos Pessoanos – entre os quais Zenith119 e Pizarro120 – têm realçado a importância
de compreendermos porque é que o Livro do Desassossego é abandonado entre
e
1928/29.
É fácil de perceber, pelo que escrevemos anteriormente, que Fernando Pessoa passa por um
período essencial da sua vida, na transição do Eros para o Thanatos .
A relação com Ofélia começa em 1920 e ele nunca mais será o mesmo (recordemos que a relação
se mantém, mesmo sem contacto físico, até à sua morte em
. É apenas o regresso da sua
mãe que deita por terra os esforços de Ofélia em aprisionar o seu Nininho ao ritual do casamento,
dando origem à primeira quebra entre ambos. A segunda fase inicia-se pouco depois da sua irmã
ir para Évora – deixando-o novamente sozinho e acaba quando a irmã regressa em definitivo a
Lisboa. Ofélia luta contra demasiadas inseguranças e contra um demasiado apego de Fernando às
mulheres da sua família – ele, que se sente sempre abandonado, desiste assim da única coisa que
o poderia salvar desse sentimento.
Sendo o Livro o local privilegiado da sua escrita depressiva , podemos arriscar dizer que a sua
depressão, embora sempre presente, se terá atenuado na década de 20. O regresso ao Livro, com
um fôlego duplamente renovado, é uma vingança sobre si mesmo – é a direcção de uma energia
para o interior, para a autodestruição definitiva.
O fim da segunda fase do namoro com Ofélia não marca a desistência completa da vida – há ainda
o episódio da candidatura a bibliotecário em Cascais do qual falaremos mais à frente – mas é
claramente decisivo.
Mas paremos por um momento para definir o que é o Livro no todo da obra de Fernando Pessoa.
Sobretudo é necessário pensar quem é Bernardo Soares, o dito segundo autor do Livro e o que
assume a sua escrita em definitivo a partir de 1928. Usaremos as palavras do próprio autor, ao
definir Bernardo Soares (negritos nossos):
O meu semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas coisas se parece com Álvaro de Campos,
aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de
raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a
personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o
raciocínio e a afectividade .121
Tendo lido grande parte do que foi escrito por e sobre Pessoa, não me recordo de nenhum texto
que realce a passagem que marquei em cima. Vários autores referem a mutilação da
personalidade na construção do personagem Bernardo Soares, sem perceberem que é uma automutilação – mais do que isso, uma horrenda aproximação à realidade sentida pelo seu demiurgo,
no dia-a-dia. A escrita da segunda fase do Livro é, sempre, uma escrita de desistência. Uma
desistência para dentro de si mesmo122.
A preponderância dos escritos suicidas do Livro depois de 1928 revela-nos um Fernando
desesperado, que, em último recurso, foge ainda mais para dentro de si mesmo. A fuga não é
inocente, mesmo que seja de certa forma inevitável. Ele planeia – mesmo extirpando o raciocínio
– a sua fuga, detalhando para que serve o Livro. Na realidade a sua obra magna marca a
realização, o cume de todas as suas ideias, na forma de uma máxima terrivelmente eficaz e curta:
O sonhador é que é o homem de acção123.
Cf. Richard Zenith, Fotobiografia de Fernando Pessoa, Círculo de Leitores, 2008, pág 145.
Cf. Jerónimo Pizarro, «Introdução» in Livro do Desasocego, ICM, 2010.
121 Carta a Adolfo Casais Monteiro sobre a génese dos heterónimos, datada de 13 de Janeiro de 1935
122 Cf. Nuno Hipólito, Uma Vida Sonhada, pág. 149
123 Cf. Livro do Desasocego, INCM, Lisboa, 2010, pág. 252.
119
120
Dar importância suprema ao sonho é matar a vida, pois o sonho nunca pode ser real – aliás, o
sonho morre quando se torna real. A idealização da vida é, embora iminentemente racional
(mesmo sem raciocínio), sobretudo emocional.
Há uma grande tristeza neste momento de assunção de derrota.
Curiosamente será Campos quem melhor traduzirá este sentimento (negritos nossos):
Se em certa altura
Tivesse voltado para a esquerda em vez de para a direita;
Se em certo momento
Tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim;
Se em certa conversa
Tivesse tido as frases que só agora, no meio-sono, elaboro —
Se tudo isso tivesse sido assim,
Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro
Seria insensivelmente levado a ser outro também.
Mas não virei para o lado irreparavelmente perdido,
Não virei nem pensei em virar, e só agora o percebo;
Mas não disse não ou não disse sim, e só agora vejo o que não disse;
Mas as frases que faltou dizer nesse momento surgem-me todas,
Claras, inevitáveis, naturais,
A conversa fechada concludentemente,
A matéria toda resolvida...
Mas só agora o que nunca foi, nem será para trás, me dói.
O que falhei deveras não tem esperança nenhuma
Em sistema metafísico nenhum.
Pode ser que para outro mundo eu possa levar o que sonhei.
Mas poderei eu levar para outro mundo o que me esqueci de sonhar?
Esses sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver.
Enterro-o no meu coração para sempre, para todo o tempo, para todos os universos.
Nesta noite em que não durmo, e o sossego me cerca
Como uma verdade de que não partilho,
E lá fora o luar, como a esperança que não tenho, é invisível p’ra mim.124
O poema é de 11 de Maio de 1928.125
Não é nossa intenção colar e cortar para passar uma determinada impressão de um momento. Os
factos corroboram sem sombra de dúvida o que ocorre nesta altura na vida de Fernando Pessoa,
sem necessidade de manipulação.
Ele vê tudo perdido. Todas as oportunidades exauridas. Talvez não fosse verdade, mas era como
ele se sentia. A sua impotência era total, irreversível. E, em verdade, não é de todo improvável
que o fosse. Com quarenta anos e depois de toda uma vida de tortura interior, derrotado e
abandonado, ele não encontrava forças para ser outro . Em retrospectiva parecia-lhe fácil ter
sido outro, mas a facilidade é ilusória quando posta em prática, como bem sabemos. Sobretudo se
considerarmos que ele nunca teve ajuda médica para superar a sua depressão. A isso aliava-se
uma saúde desde sempre frágil.
Mas, para um homem de génio, a derrota não pode ser aceite de forma pacífica.
No caso de Pessoa a derrota fundou um livro e uma escola de pensamento. Todo o conteúdo
tardio do Livro é um manual fragmentário e fantástico de como desistir de viver a vida exterior
em favor de uma outra realidade interior. Poder-se-ia pensar que a desistência seria então
apenas parcial. Mas não foi. Foi total. A ideia de que o sonho poderia, como ferramenta, dar
acesso a um qualquer tipo de felicidade, é falsa. Isso é bem demonstrado pela constante produção
ortónima tardia – que, doentiamente, insiste quase sempre no mesmo tema da derrota e da
memória do passado.
Álvaro de Campos, Livro de Versos, Estampa, 1997, pág. 240-50.
Realçamos este texto pela proximidade da data, mas podíamos referir igualmente o texto mais famoso de Campos –
Tabacaria, cujo título inicial era Marcha da Derrota .
124
125
Reduzido a uma vida pouco mais que fantasiada, Fernando irá progressivamente perder o
contacto com a realidade exterior. Os seus personagens são reais, os acontecimentos também;
mas a sua compreensão deles é romanceada, interior. Isso fará com que, cada vez mais, ele se
afaste daquilo que o poderia salvar. Ele pensa afastar-se da dor, quando na verdade apenas se
aproxima cada vez mais da morte.
A maneira como as formas, as cores, as ruas, os transeuntes anónimos tomam proporções
gigantescas, fora de qualquer importância real, cresce a sua vontade de esquecer tudo pela
imaginação.
Essa imaginação que apenas se subjuga à anulação final de tudo. Ao sono:
Não sei de prazer maior, em toda a minha vida, que poder dormir. O apagamento integral da vida e da alma, o
afastamento completo de tudo quanto é seres e gente, a noite sem memória nem ilusão, o não ter passado
nem futuro … 126
O sono - nada mais do que a morte em vida. A redução de todas as coisas para o vácuo do nada.
Devemos realçar que nada disto é literário. Quer dizer, é literário no sentido de que foi expresso
literariamente, mas essa expressão, apesar de poética, nada tem de fingida. Há uma transmutação
de realidades, que parecem modificar-se, mas elas mantêm-se as mesmas. A realidade do
romance do Livro é a mesma realidade triste e desesperada da vida de todos os dias, com o
acrescento da arte. Neste sentido, tudo o que é dito no Livro terá um fundo de verdade; mais que
não seja apenas uma sensação, uma ideia perturbada.
Muitas vezes os biógrafos de Pessoa tendem – talvez por defeito de profissão – a analisar
demasiado literariamente a sua vida. Ora, por detrás do autor há um homem. Um homem que
sofria e que não sabia como deixar de sofrer. Talvez para todos os outros pareça fácil a solução,
mas – e isso é o mais importante – para ele nunca pareceu. Afinal como aprende sozinho a amar
quem nunca sentiu ter sido amado?
A recusa da vida e a aceitação da derrota – e da morte – foi mais intuitiva e evidente.
Qual a outra opção, quando todas as opções se reduzem a uma?
Figura 26
O Patrão Vasques , Moitinho de Almeida à direita
De todas as personagens que povoam o Livro, destacase uma, o patrão do escritório, sisudo e empedernido,
mas capaz dos maiores milagres aos olhos do seu
ajudante de guarda-livros. O Patrão Vasques foi
identificado como sendo Moitinho de Almeida, sócio
de um dos escritórios onde Pessoa trabalhava.
A figura do Patrão surge, muitas das vezes, como
contraponto à do ajudante, ora submetendo à suja
realidade, ora elevando-o a enormes epifanias
metafísicas. Não é à toa que a certo ponto, e sem
ironia, indicando as suas influências literárias,
Bernardo Soares coloque o Patrão ao lado de Cesário
Verde. A verdade é que a vida de escritório,
manipulada em romance, tornara-se, em verdade, a
sua única realidade imanente.
126
Livro do Desassossego, vol. II, Lisboa, Ática, 1982, Pág. 338.
VIII
A fuga de Lisboa
Fernando Pessoa é, na maior parte das vezes, desenhado enquanto personagem fechada, restrita
em todos os aspectos da sua vida e, por isso mesmo, uma alma solitária que nem saía sequer da
cidade de Lisboa.
Já vimos que – apesar das circunstâncias da sua vida psíquica – ele saiu de Lisboa várias vezes;
indo a Évora ver a irmã, a Sintra a passeio (e sim, num Chevrolet127) ou a Cascais a mando do
Patrão Vasques. Isto sem mencionar as suas viagens de juventude.
No entanto, e na fase mais tardia da sua vida, uma localidade (ou região), toma particupar
importância e torna-se o centro de um plano fundamental. A região é a Costa do Estoril, o plano:
organizar finalmente a sua obra.
A fuga de Lisboa é planeada a sério pelo menos desde 1929 (embora já em 1919, num caderno,
ele fale do assunto apenas de passagem). Numa carta a Ofélia, datada de 29 de Setembro desse
ano – talvez a carta mais sincera de todas as que lhe escreveu – ele diz (negritos nossos):
O que lhe disse de ir para Cascais (Cascais quer dizer um ponto qualquer fora de Lisboa, mas perto, e
pode querer dizer Sintra ou Caxias) é rigorosamente verdade: verdade, pelo menos, quanto à intenção.
Cheguei à idade em que se tem o pleno domínio das próprias qualidades, e a inteligência atingiu a força e a
destreza que pode ter. É pois a ocasião de realizar a minha obra literária, completando umas coisas,
agrupando outras, escrevendo outras que estão por escrever. Para realizar essa obra, preciso de sossego e
um certo isolamento. Não posso, infelizmente, abandonar os escritórios onde trabalho (não posso, é
claro, porque não tenho rendimentos), mas posso, reservando para o serviço desses escritórios dois
dias da semana (quartas e sábados), ter de meus e para mim os cinco dias restantes. Aí tem a célebre
história de Cascais.
Toda a minha vida futura depende de eu poder ou não fazer isto, e em breve. De resto, a minha vida gira em
torno da minha obra literária — boa ou má, que seja, ou possa ser. Tudo o mais na vida tem para mim um
interesse secundário: há coisas, naturalmente, que estimaria ter, outras que tanto faz que venham ou não
venham. É preciso que todos, que lidam comigo, se convençam de que sou assim, e que exigir-me os
sentimentos, aliás muito dignos, de um homem vulgar e banal, é como exigir-me que tenha olhos azuis e
cabelo louro. E estar a tratar-me como se eu fosse outra pessoa não é a melhor maneira de manter a minha
afeição. É preferível tratar assim quem seja assim, e nesse caso é «dirigir-se a outra pessoa» ou qualquer
frase parecida.
Gosto muito — mesmo muito — da Ophelinha. Aprecio muito — muitíssimo — a sua índole e o seu carácter.
Se casar, não casarei senão consigo. Resta saber se o casamento, o lar (ou o que quer que lhe queiram
chamar) são coisas que se coadunem com a minha vida de pensamento. Duvido. Por agora, e em breve,
quero organizar essa vida de pensamento e de trabalho meu. Se a não conseguir organizar, claro está que
nunca sequer pensarei em pensar em casar. Se a organizar em termos de ver que o casamento seria um
estorvo, claro que não casarei. Mas é provável que assim não seja. O futuro — e é um futuro próximo — o
dirá.
Ora aí tem, e, por acaso é a verdade.
Ofélia responde-lhe no dia seguinte, ansiosa e submissa, prometendo não ser estorvo para a tal
vida de pensamento , se ele decidir casar com ela. )nfelizmente tal nunca acontecerá.
A 9 de Outubro, Fernando insiste, agora de forma menos objectiva:
Preciso cada vez mais de ir para Cascais — Boca do Inferno mas com dentes , cabeça para baixo, e fim, e
pronto, e não há mais Ibis nenhum. E assim é que era para esse animal ave esfregar a fisionomia esquisita no
chão.
Como vemos, o plano de Fernando seria ir viver para fora de Lisboa – Cascais ou Estoril pareciam
as opções mais válidas, já veremos porquê – e continuar a trabalhar nos escritórios em Lisboa,
mas apenas dois dias por semana, de modo a manter os seus rendimentos actuais. Os restantes
cinco dias seriam dedicados à (organização da) sua obra.
José Coelho Pacheco, seu amigo, importava automóveis Americanos para Portugal, entre os quais Chevrolets. O poema
de Campos, Ao volante do Chevrolet… ganha assim laivos de realidade imediata.
127
Em 1930, com o nascimento de mais um filho, a sua irmã Teca e o marido decidem construir uma
casa em São João do Estoril, a cerca de 30 km de Lisboa. Segundo testemunho de Manuela
Nogueira, Fernando terá sido presença assídua durante a construção, tendo sido um quarto na
casa destinado apenas para ele. Lá passava fins-de-semana, passeando pelos jardins de mãos nos
bolsos. Influenciou inclusive a decoração moderna do interior. Outros momentos passava-os
junto do paredão da praia de São João do Estoril (a 300 metros da casa), a olhar para o Oceano
Atlântico – isto influenciaria, sem dúvida, muitos poemas de Mensagem. Aliás, não é por acaso
que Campos escreve um poema intitulado Costa do Sol , onde diz (negritos nossos):
II
Deixo, deuses, atrás a dama antiga
(Com uma letra diferente fixo
O absurdo, e rio, porque sofro). Digo:
Deixo atrás quem amei, como um prefixo...
Outrora eu, que era anónimo e prolixo
(Dois adjectivos que de há muito sigo)
Amei por ter um coração amigo.
Amo hoje o que amo só porque o persigo.
Dêem-me vinho que um Horácio cante!
Quero esquecer o que de meu é meu...
Quero, sem que me mexa, ir indo adiante.
Estou no Estoril e olho para o céu...
Ah que ainda é certo aquele azul ovante
Que esplendeu astros sobre o mar egeu.128
Pela imaginação e fora da civilização, Estoril bem podia ser a Grécia antiquíssima.
Nunca chegou a morar na casa do Estoril, mas, curiosamente, hoje a rua em frente à casa chamase Rua Fernando Pessoa129.
Seria prática a ideia de morar no Estoril e ir trabalhar para Lisboa? Talvez a certo ponto essa
ideia tivesse ocorrido a Pessoa, com o enorme inconveniente de não ter uma casa própria e ter de
ficar a morar num quarto ocupado na casa da irmã. Além do mais, as viagens constantes para
Lisboa seriam um verdadeiro pesadelo para quem abominava o movimento e procurava uma
solução tranquila e que lhe trouxesse paz de espírito.
Que mais provas temos do interesse de Pessoa em se mudar para o Estoril? Temos dois textos em
prosa. Um sobre a publicidade à Costa do Sol130 (nome dado ao pedaço de costa marítima entre o
Estoril e Cascais), outro sobre a instalação da Colónia Infantil MacFadden no Estoril 131. É mais do
que evidente que ele passava lá tempo suficiente para se envolver criativamente com a região
deste modo132. Já sobre Cascais quase nada escreve.
Quase nada, dizemos bem, mas o pouco que escreve é suficiente. Intitulava-se Na Casa de Saúde
de Cascais é um dos planeados títulos para os volumes conjuntos das obras dos seus principais
heterónimos:
Álvaro de Campos, Livro de Versos, pág. 310
Cf. Manuela Nogueira, Op. Cit., pág. 67.
130 Cf. Fernando Pessoa, Páginas de pensamento político, 2, Europa-América, pág. 172-3.
131 O edifício, antigos Banhos da Poça , mesmo ao pé da praia de S. João do Estoril é actualmente ocupado por uma
instituição de ensino, a Colónia Infantil de Educação Popular. Fernando Pessoa terá desempenhado um pequeno, mas
importante papel na escolha do local. Cf. Fernando Pessoa, Páginas de pensamento político, 2, Europa-América, pág. 202 e
segs.
132 Algumas estadias foram superiores a apenas um fim-de-semana, como demonstra uma carta dirigida a Gaspar Simões
em 24 de Dezembro de 1934:
128
129
Meu querido Gaspar Simões :
Desculpe não lhe ter escrito há mais tempo, como devia e queria, para lhe agradecer o Amores Infelizes, que
muito e deveras apreciei.
Devo-lhe ainda uma carta «crítica» acerca do Elói. Conto poder escrever-lha durante o mês que vem, que
tenciono passar, na sua maior parte, no Estoril; nela tratarei, então, deste seu novo livro também. …
Na Casa de Saúde de Cascais
inclui:— 1) Introdução, entrevista com António Mora
2) Alberto Caeiro
3) Ricardo Reis
4) «Prolegómenos» de António Mora
5) Fragmentos
Vida e obras do engenheiro Álvaro de Campos.
Livro do Desassossego.
Escrito por Vicente Guedes, publicado por Fernando Pessoa. 133
Porquê Na Casa de Saúde de Cascais ? Sabemos bem a fixação de Pessoa pelo tema da loucura –
relacionando-a demoradamente com o tema do génio. Há outro momento que dá luz ao título,
retirado da «Carta sobre a Génese dos Heterónimos». A certa altura, depois de descrever a génese
dos mesmos e a maneira como escrevia em nome de cada um, Pessoa escreve:
Nesta altura estará o Casais Monteiro pensando que má sorte o fez cair, por leitura, em meio de um
manicómio.
Realmente é ténue a linha entre o génio e o louco e Fernando pensou pisá-la ou mesmo
atravessá-la, quando viu que tinha inventado outros dentro de si e que vivia, sem pensar, essas
vidas como se não fossem realmente ainda a sua. Tanto é ténue a linha que António Mora é, ele
mesmo, um louco internado.
Na Casa de Saúde de Cascais é também um conto inacabado em que Fernando acompanha um
homem a Cascais para conhecer dois loucos. Um deles é Mora. Mora, descrito como paranóico e
histérico; talvez à semelhança do próprio Pessoa. Mas é esta figura estranha que desenha os
fundamentos da nova religião, o neo-paganismo, que vão consubstanciar em teoria e sistema os
escritos de Caeiro e, por consequência, toda a obra Pessoana. Estranho? Não se considerarmos
que Fernando, intimamente, temia que a sua obra fosse, por extenso e toda externa, a loucura que
ele temia não sentir plenamente em si.
Cascais, ironicamente, parecia simbolizar a liberdade plena para a loucura que seria dar luz a
uma compilação e organização final da obra. Mas para isso realmente acontecer seria preciso
arranjar um sustento longe de Lisboa.
Figura 27
Fernando Pessoa na casa do Estoril com familiares circa 1933
Fernando parece distante e frágil em todas as fotografias tiradas
depois de 1930. Normalmente está cabisbaixo e evitando a câmara,
sendo a fotografia que aqui apresentamos a honrosa excepção que
confirma a regra.
Existem várias provas fotográficas das visitas à casa de Sâo João do
Estoril, mas ele nunca está sozinho. Normalmente aparecem os
sobrinhos e o marido, sogra e cunhada da sua irmã Teca. São
portanto fotografias familiares no mais estrito sentido artístico.
Provavelmente momentos em que Fernando se sentia pouco à
vontade, transparecendo a sua atitude complacente e rígida.
Os momentos no Estoril eram momentos de tranquilidade, de
repouso absoluto do rebuliço e solidão de Lisboa. É a custo que ele vê
a irmã ir para o Estoril deixando-o sozinho, mas as visitas que lhe
presta são sinal evidente de que ainda não desistira completamente
de não estar só.
Cf. Obras de António Mora, INCM, 2002, pág. 155. Embora seja indicado que os três projectos parecem estar separados
por linhas no manuscrito original, tenderemos a colocá-los em posição similar dentro do título supra-citado. Tirando a
obra ortónima, toda a restante obra pode ser considerada obra da loucura , dentro da análise que vimos fazendo.
133
IX
Conservador-bibliotecário na aldeia de Cascais
Álvaro de Campos escreveu famosamente que desdenhava a vida comum dos outros. Escreveu-o
também – e não é de desprezar o facto - furiosamente:
Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?134
Ora, Fernando tinha
anos quando escreveu Lisbon Revisited , poema do qual retirámos o
excerto anterior. Nove anos mais tarde, em 1932, com 44 anos de idade ele pensaria de modo
bastante diferente, pelo menos a parte de ser ou não tributável .
Dia 16 de Setembro de 1932 ele concorre, de modo inesperado apenas para quem não
conhecesse os seus planos de fuga, à posição de conservador-bibliotecário do Museu-Biblioteca
Condes de Castro Guimarães em Cascais (curiosamente, ou talvez não, a apenas poucas centenas
de metros da Boca do Inferno, no início da estrada que liga hoje Cascais ao Guincho).
O Museu – um edifício monumental em estilo romântico com um amplo jardim exterior - tinha
sido inaugurado apenas um ano antes, em Julho de 1931 e estava a ser dirigido por um
triunvirato de figuras públicas da região de Cascais. Recatado e peculiar, o edifício com vista para
o mar terá inspirado grandes ideias a Fernando Pessoa, tendo ele imaginado sem dúvida o que
poderia ser trabalhar ali, no meio de livros e com vista tão desimpedida e clara de mar. Terá até
porventura contemplado a ironia dele se candidatar finalmente a uma posição próxima da do seu
semi-heterónimo Bernardo Soares (menos comercial, mas ainda assim burocrática).
O anúncio de emprego surge pela primeira vez no Jornal O Século de 1 de Setembro de 1932.
É este o texto completo:
A comissão administrativa do Museu-Biblioteca «Conde de Castro Guimarães» torna público que se encontra
aberto, pelo espaço de quinze dias, concurso documental para provimento do lugar de conservadorbibliotecário do Museu-Biblioteca, criado em virtude do legado daquele titular, nos termos do artigo 6º e
parágrafos do regulamento respectivo.
«Artigo 6º - Para ser admitido ao concurso de conservador-bibliotecário é necessário ser pessoa de
reconhecida competência e idoneidade, constituindo motivos de preferência para a escolha:
1º - Possuir o candidato um curso superior e, em especial, licenciatura nas Faculdades de Letras ou diploma
do curso das Escolas de Belas Artes;
2º - Ter exercido cargos superiores, com boa informação, em Museus ou Bibliotecas;
3º - Apresentar trabalhos literários ou de crítica de arte de reconhecido mérito;
4º - Conhecer bem o francês e escrever e falar o inglês;
§ único – O conservador-bibliotecário deve permanecer no museu todos os dias em que este se conservar
aberto, das 12 às 16 horas, indo ainda ali sempre que isso seja necessário à boa fiscalização do serviço,
conformemente às instruções da comissão directora».
O vencimento é de mil e duzentos escudos mensais e o requerimento e respectivos documentos serão
entregues em Cascais, na sede do Museu-Biblioteca (Torre de S. Sebastião), todos os dias úteis, das 10 às 17
horas.
Fernando demora duas semanas a responder, provavelmente ponderando com muito cuidado a
sua decisão. Quando finalmente responde, usa - talvez inconscientemente – um tom informal e
até por vezes paternalista:
Museu-Biblioteca Castro de Guimarães em Cascais
Exma. Comissão Administrativa do Museu-Biblioteca Conde de Castro Guimarães
134
Álvaro de Campos, Livro de Versos, pág. 210.
Fernando Nogueira Pessoa, solteiro, maior, escritor, residente em Lisboa, na Rua Coelho da Rocha, número
dezasseis, primeiro andar, e provisòriamente em Cascais, na Rua Oriental do Passeio, porta dois, vem
concorrer perante V.Exa ao lugar de conservador do Museu-Biblioteca Conde de Castro Guimarães, com os
fundamentos seguintes, expostos no termo do artigo 6º e seus §§, do Regulamento do Museu-Biblioteca,
conforme estão transcritos no anúncio inserto em O Século, de Lisboa, do dia 1 do mês corrente.
O requerente tem 44 anos de idade, é natural de Lisboa, freguesia dos Mártires, e filho legítimo de Joaquim
Seabra Pessoa e de D. Maria Madalena Nogueira Pessoa, ambos já falecidos. Não junta certidão de idade, nem,
aliás, certidão de registo criminal, por o citado artigo 6º e seus §§ não exigirem, nem explicita nem
implìcitamente, outros documentos que não sejam os rigorosamente precisos para apreciar a afirmação das
habilitações neles indicadas, como motivos de preferência.
São as seguintes as habilitações do requerente, expostas nos termos do citado artigo e seus §§, pela ordem
dos mesmos §§, e com o apoio documental que irá sendo indicado no decurso da presente exposição:
§ 1 - O requerente tem o Curso ou Exame Intermédio da Universidade (inglesa) do Cabo da Boa Esperança,
como prova com a respectiva carta. À parte isto, foi concedido ao requerente, na mesma Universidade, o
Prémio Rainha Vitória, de estilo inglês, como prova com a carta oficial assinada pelo secretário arquivista da
Universidade, em que se comunica ao requerente a concessão do prémio. Juntam-se os 2 citados documentos.
§ 3 - O requerente tem uma já extensa colaboração dispersa por várias revistas portuguesas, de onde se lhe
advém o ser hoje conhecido no País, sobretudo entre as novas gerações, a um ponto quase injustificável para
quem se tem abstido de reunir em livros essa colaboração. Importa talvez citar as revistas em que essa
colaboração foi ou mais assídua ou mais marcante. A Águia (nos anos 1912 a 1914), Orpheu, Centauro,
Contemporânea, Presença, Athena e Descobrimento. Foi o requerente um dos directores do Orpheu, e dirigiu,
conjuntamente com o pintor Ruy Vaz, a revista de arte Athena. - À abstenção do requerente de publicar livros
fazem excepção os quatro folhetos em verso inglês que, destinados à Biblioteca do Museu- Biblioteca,
acompanham o presente requerimento.
Quanto o serem ou não estes escritos "de reconhecido mérito", melhor o poderão V.Exas averiguar com
perguntas casuais nos meios literários e artísticos portugueses do que o poderá demonstar, de modo
realmente probante, qualquer documentação. O requerente chama, porém, a atenção de V.Exas para os dois
estudos que lhe foram dedicados pelo jovem - e não fica mal dizer notável - crítico coimbrão João Gaspar
Simões, a págs, 171 a 191 do livro Temas (Edições Presença, Coimbra, 1929) e a págs, 164 a 193 do livro O
Mistério da Poesia (Coimbra, Imprensa da Universidade, 1931), assim como para o que do requerente diz
Pierre Hourcade no artigo Panorama du Modernisme Littéraire ao Portugal inserto no número de JaneiroMaio (nº1.2) do Bulletin des Études Portugaises, publicados pela Imprensa da Universidade de Coimbra e
pelo Institut Français au Portugal. Quanto a opiniões, presumivelmente autorizadas, sobre os versos ingleses
do requerente juntam-se as críticas que aos dois primeiros folhetos (os dois segundos não foram enviados a
jornais) foram feitas pelo Suplemento Literário do Times e pelo Glasgow Herald, apresentado assim, em certo
modo, opiniões representativas da crítica inglesa e escocesa.
§ 4 - Os documentos citados em referência ao § 1 e a este juntos demonstram mais do que o necessário
quanto ao conhecimento que o requerente tem da língua inglesa. Quanto ao seu conhecimento da língua
francesa, crê o requerente que na ausência de prova documental realmente válida (como a que tem para o
inglês), o melhor que pode fazer é juntar uma folha de impressão da Contemporânea, número 7, onde, a págs.
20 e 21, vêm três canções (Trois Chansons Mortes) que escreveu em francês. - No texto do artigo 6º
pròpriamente dito, do Regulamento, diz-se que é necessário que o conservador-bibliotecário seja pessoa de
"reconhecida competência e idoneidade". Salvo o que de competência e idoneidade está implícito nas
habilitações indicadas como motivos de preferência nos §§ di artigo e portanto se prova documentalmente
pelos documentos referentes às indicações de cada §, a competência e a idoneidade não são susceptíveis de
prova documental. Incluem, até, elementos, como o aspecto físico e a educação, que são indocumentáveis por
natureza.
Cascais, 16 de Setembro de 1932
Fernando Nogueira Pessoa.
Alguns pormenores interessantes saltam à vista no requerimento enviado:
1) Diz que é escritor. Em contraposição basta lembrar a famosa nota biográfica de Março de
1935, onde não é tão afirmativo, talvez por desilusão:
Profissão : A designação mais própria será «tradutor», a mais exacta a de «correspondente estrangeiro em
casas comerciais». O ser poeta e escritor não constitui profissão mas vocação.
É óbvio que correspondente estrangeiro em casas comerciais não teria a mesma força junto do
júri…
2) Pessoa indica uma morada provisória de Cascais – Rua Oriental do Passeio, porta 2, em
Cascais. Ora, esta morada não aparece em nenhum dos estudos feitos sobre Pessoa e não parece
poder ser a morada de São João do Estoril. Teria Pessoa alugado uma casa especificamente para
poder ser elegível para o cargo de Bibliotecário-Conservador? Ou estaria realmente a algum
tempo a viver em Cascais sem que ninguém o soubesse?
Estudos recentes não foram capazes de achar o nº 2 dessa rua 135, o que indica provavelmente que
o número não existia e foi fornecido apenas como forma de preencher um requisito –
nomeadamente o ter de estar sempre perto do Museu, a qualquer hora.
3) Fernando, no requerimento diz ainda ter o Curso ou Exame Intermédio da Universidade
(inglesa) do Cabo da Boa Esperança, como prova com a respectiva carta .
Ora, na impossibilidade de apresentar uma licenciatura, que não tinha, ele terá tentando usar o
documento da Universidade do Cabo da Boa Esperança, que, como se sabe, não existia realmente
senão no papel, tratando-se apenas de um passo burocrático no acesso ao ensino superior
Britânico, esse sim real. Curso ou Exame Intermédio não é bem a mesma coisa, porque ele, na
realidade, não tinha nenhum curso; apenas tinha feito um exame que lhe dera momentaneamente
acesso a uma Universidade Britânica! Uma mentira branca , mas grave. Explica-se assim
também porque não é feita nenhuma referência à Faculdade de Letras, onde andou parte de um
ano...
Por último realçamos a forma como acaba o mesmo requerimento (negritos nossos):
No texto do artigo 6º pròpriamente dito, do Regulamento, diz-se que é necessário que o conservadorbibliotecário seja pessoa de "reconhecida competência e idoneidade". Salvo o que de competência e
idoneidade está implícito nas habilitações indicadas como motivos de preferência nos §§ do artigo e portanto
se prova documentalmente pelos documentos referentes às indicações de cada §, a competência e a
idoneidade não são susceptíveis de prova documental. Incluem, até, elementos, como o aspecto físico
e a educação, que são indocumentáveis por natureza.
Na falta de melhor expressão, é o pêlo na venta que derruba uma candidatura já à partida frágil
com pelo menos três inverdades ! . Habituado às convenções, mas não a ser convencional,
Fernando boicota-se a si mesmo; mas nada garantia que mesmo que não o fizesse ele fosse o
elegido. Porquê? Simplesmente pela falta de qualificações literárias suficientes, morada
temporária em Cascais e forma pouco ortodoxa de apresentação dos seus créditos.
A candidatura terá sido recusada por qualificações insuficientes , embora na acta onde consta a
decisão tal não seja dito136. Não é chocante a decisão, pelo que dissemos antes.
O escolhido, Carlos Bonvalot, tinha curso em pintura pelas Belas Artes de Lisboa (requisito de
preferência), experiência no estrangeiro (preenchendo outro requisito, o das línguas) e vivia em
Cascais desde 1923 desempenhando antes funções de restaurador na igreja matriz da vila (neste
cargo, teve contacto com o Museu de Arte Antiga, preenchendo indirectamente novo requisito).
Não seria de estranhar que Bonvalot, já quase filho da terra mesmo que nascido em Paço de
Arcos, fosse o escolhido perante o poeta desconhecido (e muito particular) vindo de Lisboa…
E assim a oportunidade de Pessoa esfumou-se tão depressa como se tinha formado.
A fuga de Lisboa tornou-se impossível, senão apenas por fins-de-semana e pouco mais. Já não
para Cascais, como sonhado, mas sempre para a casa da irmã no Estoril.
O sonho de organizar a obra, atrasado, potencialmente para sempre. Talvez tudo tivesse sido
diferente se a candidatura tivesse sido aceite. Estaria ele num caminho sem regresso já antes
disso? É impossível de dizer com certeza, mas podemos acreditar que sim; que o emprego fixo lhe
aliviaria algum do stress que o levava a beber e a fumar compulsivamente, que esse mesmo
Referimo-nos aos resultados apresentados na exposição «Gabinete Fernando Pessoa», com coordenação científica de
Claudia J. Fischer e Patricio Ferrari que teve lugar entre 13 de Junho e 29 de Novembro de 2013 no Museu-Biblioteca
Condes de Castro Guimarães em Cascais.
136 Aliás, a acta, datada de 17 de Outubro de 1932, é bastante curiosa pois indica que os membros da direcção votaram
cada um num candidato diferente e que depois aceitaram nomear interinamente Carlos Bonvalot… Não se percebe se
Bonvalot foi uma solução de recurso (em quem ninguém tinha votado), ou imposição de um dos vogais da direcção.
135
emprego lhe aliviasse também o medo da solidão em favor de finalmente se juntar a Ofélia. Mas…
não nos antecipemos por agora ao que poderia ter sido.
Por agora compreendamos que o impacto desta conclusão em Fernando Pessoa terá sido
catastrófico. Esvaía-se a sua última oportunidade de recuperação. Qual o futuro para alguém que
não podia ter um emprego fixo mas agradável, que o deixasse conciliar a obra com o ganha-pão
necessário? Desistir da obra estava fora de questão, simplesmente porque a sua obra era tudo o
que o mantinha vivo – era a sua única segurança.
E é esta não-desistência que, no fim, o condena.
Figura 28
Museu-Biblioteca Condes de Castro Guimarães (Torre de S. Sebastião)
No dia 30 de Novembro de 2000, numa estranha comemoração
póstuma, a Câmara Municipal de Cascais decidiu nomear Fernando
Pessoa para o cargo de conservador-bibliotecário do Museu-Biblioteca
Condes de Castro Guimarães. O verdadeiro nomeado, Carlos Bonvalot,
apenas esteve dois anos no cargo. Ao fim de dois anos foi convidado
para dirigir a oficina de restauro do Museu Nacional de Arte Antiga mas
morreu no próprio dia em que era suposto tomar posse, acometido de
doença súbita.
A ideia de que a recusa de Pessoa foi um erro crasso não colhe, como já
vimos. Bonvalot, com qualificações e magnífico pintor, conhecia muito
melhor a região e tinha competências extraordinárias na área da
conservação e restauro, tendo sido inclusive o pioneiro no uso de
técnicas científicas nesta área em Portugal.
Fotografia © João Correia, 2010
X
Uma Mensagem inesperada
1933, o ano seguinte ao da recusa no concurso de Cascais, Fernando é acometido de uma grande
crise psíquica , que lhe aumenta substancialmente o fôlego criativo – mas que, igualmente, lhe
tira, decisivamente, anos de vida.
Nesse ano dedica-se a editar um livro de Caeiro intitulado Indícios de Ouro. O trabalho não foi
concluído em vida de Pessoa, o que se pode ou não estranhar. Por um lado o livro era pequeno,
por outro, Fernando não tinha qualquer motivação especial para a tarefa137 – na realidade, o livro
de Sá-Carneiro poderá mesmo ter resumido qualquer intenção que ele próprio tivesse na sua
própria vida. Basta ler um dos poemas, no qual ele certamente se terá fixado:
RESGATE
A última ilusão foi partir os espelhos E nas salas ducais, os frisos de esculturas
Desfizeram-se em pó...Todas as bordaduras
Caíram de repente aos reposteiros velhos.
Atônito, parei na grande escadaria
Olhando as destroçadas, imperiais riquezas...
Dos lustres de cristal - as velas d'ouro, acesas,
Quebravam-se também sobre a tapeçaria...
Rasgavam-se cetins, abatiam-se escudos,
Estalavam de cor os grifos dos ornatos.
Pelas molduras d'honra, os lendários retratos
Sumiam-se de medo, a roçagar veludos...
Doido! Trazer ali os meus desdéns crispados!
Tectos e frescos, pouco a pouco, enegreciam;
Panos de Arrás do que não-Fui emurcheciam Velavam-se os brasões, subitamente errados...
Então, eu mesmo fui trancar todas as portas;
Fechei-me a Bronze eterno em meus salões ruídos...
- Se arranho o meu despeito entre vidros partidos,
Estilizei em Mim as douraduras mortas!
Este poema, escrito em Outubro de
e com o pormenor de ter depois da data Camarate,
Quinta da Vitória (o local de nascimento de Mário e onde ele viveu feliz na juventude), resume
na perfeição qual seria o sentimento de Fernando Pessoa em
. A sua última ilusão tinha
sido a hipótese de refúgio em Cascais. Depois disso foi apenas um sucessivo partir de espelhos ,
revelando a ruína, deixando-o prisioneiro de uma vida colapsada sobre si mesma. Fechado nela,
voluntariamente, não lhe restava fuga ou solução. Tinha somente de encarar o inevitável.
Mas a vida, mesmo lenta e mórbida, decorria.
Continua a publicar, aqui e ali, pequenos poemas e críticas. Nada de monta. Todos os planos
continuavam em pausa, sem o necessário repouso e tempo para a sua preparação dedicada. Há
que lembrar que nenhum dos seus projectos é fácil de concluir – nem sequer o Guardador, que
talvez seja aquele que mais perto se encontre da forma final nesta altura (e como lançar o
Guardador sem o resto dos heterónimos serem conhecidos?).
Em Outubro de 1933 António Ferro, antigo amigo dos tempos de Orpheu, é nomeado para um
alto cargo na administração de Salazar - director do Secretariado de Propaganda Nacional (criado
Numa carta datada de 11/4/1933 e dirigida a Gaspar Simões, Pessoa diz que o livro está acabado e promete enviá-lo
para publicação pela Presença, assim como promete enviar o Guardador de Rebanhos. Mas nenhum dos dois chega a
Gaspar Simões.
137
apenas um mês antes). Ferro será, de facto, o primeiro Ministro da Cultura de Portugal, tendo a
incumbência de controlar a cultura nacional 138.
Ferro ganhou – bem se compreende porquê – um poder inusitado junto das elites culturais da
época, podendo ditar quem era ou não alinhado com o regime e, sendo alinhado, de que forma
podia ser beneficiado (beneficiando de igual modo a divulgação da respectiva obra). A sua
ideologia cultural, corporizada no conceito da política do espírito , pretendia estabelecer uma
alma Portuguesa, com valores orgulhosamente fixos, mesmo que contrários a uma realidade
escondida pejada de pobreza.
É nesta confusão entre modernismo e saudosismo que Fernando Pessoa é introduzido, sem saber
bem como, quando lhe é comissionada uma obra de exaltação nacional em poema. Dizemos
comissionada porque todas as investigações mais recentes apontam para que o prémio do SPN
que galardoou Mensagem tenha sido desenhado propositadamente para esse final, desde o seu
regulamento, passando pela campanha de propaganda em diversos jornais, até influência directa
do presidente do júri na votação final139.
Mas recuemos um pouco.
O SPN, para ganhar credibilidade e incentivar a literatura institui um prémio que premeia
escritores em diversas categorias. Fernando, que tinha em 1933 apenas alguns dos poemas de
Mensagem preparados, é incentivado por Ferro a acabar o livro à pressa para o apresentar a
concurso. Provavelmente sem forças para dizer que não – e atraído pela possibilidade de ter
algum dinheiro para colmatar dívidas acumuladas – Fernando conclui a tarefa, construindo um
dos mais belos textos da literatura Portuguesa de todos os tempos.
Em resposta a Casais Monteiro que lhe pergunta porque se estreou com Mensagem ele diz
(negritos nossos):
Concordo absolutamente consigo em que não foi feliz a estreia, que de mim mesmo fiz com um livro da
natureza de «Mensagem». Sou, de facto, um nacionalista místico, um sebastianista racional. Mas sou, à parte
isso, e até em contradição com isso, muitas outras coisas. E essas coisas, pela mesma natureza do livro, a
«Mensagem» não as inclui.
Comecei por esse livro as minhas publicações pela simples razão de que foi o primeiro livro que
consegui, não sei porquê, ter organizado e pronto. Como estava pronto, incitaram-me a que o
publicasse: acedi. Nem o fiz, devo dizer, com os olhos postos no prémio possível do Secretariado, embora
nisso não houvesse pecado intelectual de maior. O meu livro estava pronto em Setembro, e eu julgava, até,
que não poderia concorrer ao prémio, pois ignorava que o prazo para entrega dos livros, que
primitivamente fora até fim de Julho, fora alargado até ao fim de Outubro. Como, porém, em fim de
Outubro já havia exemplares prontos da «Mensagem», fiz entrega dos que o Secretariado exigia. O livro
estava exactamente nas condições (nacionalismo) de concorrer. Concorri.
Quando às vezes pensava na ordem de uma futura publicação de obras minhas, nunca um livro do género
de «Mensagem» figurava em número um. Hesitava entre se deveria começar por um livro de versos
grande — um livro de umas 350 páginas — , englobando as várias subpersonalidades de Fernando Pessoa ele
mesmo, ou se deveria abrir com uma novela policiária, que ainda não consegui completar.
Concordo consigo, disse, em que não foi feliz a estreia, que de mim mesmo fiz, com a publicação de
«Mensagem». Mas concordo com os factos que foi a melhor estreia que eu poderia fazer. Precisamente
porque essa faceta — em certo modo secundária — da minha personalidade não tinha nunca sido
suficientemente manifestada nas minhas colaborações em revistas (excepto no caso do Mar Português parte
deste mesmo livro) — precisamente por isso convinha que ela aparecesse, e que aparecesse agora. Coincidiu,
sem que eu o planeasse ou o premeditasse (sou incapaz de premeditação prática), com um dos momentos
críticos (no sentido original da palavra) da remodelação do subconsciente nacional. O que fiz por acaso e se
completou por conversa, fora exactamente talhado, com Esquadria e Compasso, pelo Grande Arquitecto.140
Há muito de pantomina nesta resposta.
De início o SPN teve uma actividade positiva ao levar ao grande público uma renovação da arte, introduzindo por
exemplo o modernismo (Ferro sempre se considerou ele próprio um modernista). No entanto, e com o passar dos anos, o
SPN foi-se tornando apenas mais uma forma do regime controlar a liberdade de expressão, regulando-se por trâmites
ditados pelos funcionários da censura.
139 Para mais pormenores sobre o rocambolesco processo de atribuição do prémio v. José Blanco, A Verdade sobre a
Mensagem , Portal Pessoa, 2009 e Nuno Hipólito, As Mensagens da Mensagem, Editora Parceria A. M. Pereira, 2007.
140 Trata-se da Carta da génese dos heterónimos , já mencionada anteriormente.
138
Ele começa por reconhecer que a estreia não foi feliz, simplesmente porque o reduziu a um
nacionalista místico , quando ele era muito mais do que apenas isso. E isso é a pura verdade. Já
não é verdade que ele não soubesse como o organizou e acabou. Aliás ele, que nunca acabava
nada, acabou o livro porque foi impelido a isso (não diremos forçado por ser um termo
demasiado pesado). O SPN até alargou o prazo de entrega para o beneficiar!
Seja como for, a estreia nunca tinha sido planeada seriamente com um livro deste género.
Percebe-se bem (e vê-se pelos inúmero planos no espólio), que ele queria publicar muitas outras
coisas antes. A estreia foi a possível porque ele nunca teve tempo (e paz de espírito) para
organizar essas outras coisas (como já vimos aquando da sua ida falhada para Cascais). A prova
final desta desconexão entre autor e obra é dada pela reacção de Pessoa ao prémio quando
interpelado pelo cunhado, Da Cunha Dias:
Ah é verdade. Deram-me o prémio
141.
Serviu-lhe o prémio – 5 mil escudos – para pagar dívidas que tinha e pouco lhe restou.
Ora, se Fernando pouco se importou em ganhar o prémio, tendo mesmo pensado depois que
podia ter tido uma estreia diferente, tal veio a marcá-lo de forma indelével até aos dias de hoje142.
Durante muitos anos depois da sua morte, sobretudo logo a seguir à Revolução de 1974, Pessoa
foi sendo considerado e logo por uma esquerda muito reaccionária como sendo um poeta do
regime . )sto aconteceu por causa da publicação do folheto O )nterregno em
, mas também
por causa de Mensagem. Mas basta consultar os livros escolares posteriores à morte de Pessoa
para compreender que ele foi tudo menos poeta do regime. Aliás, muito pelo contrário, ele foi
quase apagado da história por Salazar e pela censura. O poeta do modernismo para o regime de
Salazar – e por extensão para os estudantes da época – foi sempre Mário de Sá-Carneiro.
Ferro queria realmente que ele fosse o poeta do regime, mas Fernando – embora distante da
realidade, nunca estava distante da consciência da realidade – afastou-se dessa conotação não
indo sequer à entrega dos prémios do SPN. Cortará em definitivo com o regime com um artigo
sobre sociedade secretas que publica em Fevereiro de 1935, tendo gozado até então alguma
liberdade concedida precisamente por Ferro (e pelo prémio obtido).
Figura 29
Rosto do dactiloscrito original de Mensagem
Mensagem é, embora genial, um livro essencialmente pouco pensado
e contra o espírito do poeta. Prova disso mesmo é a forma como ele
lhe muda o título à última da hora, de Portugal para Mensagem.
Pessoa explica que foi por influência do cunhado que lhe disse que o
nome de Portugal já estava popularizado em tudo, até em lojas. Mas
não estará por detrás dessa indecisão também o apressado
planeamento e necessidade de execução súbita?
Não quer isto dizer que o livro não estivesse em planeamento. É
verdade que estava, pelo menos desde 1932. Mas, como todos os
planos de Pessoa, este livro nunca veria a luz do dia se não fosse a
intervenção poderosa de António Ferro e o atractivo dos 5 mil
escudos de prémio – uma espécie de compensação do destino para a
perda enorme ocorrida no ano anterior.
Seja como for, e sem atenção às suas origens, Mensagem ficou como
testemunho de um Fernando Pessoa capaz de finalizar um projecto
literário monumental, apesar da sua natural inércia para as
conclusões.
Citado em António Quadros, Fernando Pessoa, Vida, Personalidade e Génio, D. Quixote, pág. 53.
A indiferença foi, talvez momentânea, pois é certo que ele depois distribui com prazer exemplares entre os amigos,
incluindo um para Ofélia (entregue na sua casa quando ela não estava, o que ela sempre lamentou).
141
142
XI
Se te queres matar, porque não te queres matar?
No fim de 1934 e início de 1935 Fernando recebe as críticas a Mensagem com a complacência
habitual. De todas as críticas, porém, salientamos uma, do antigo amigo do Chevrolet, recebida a
20/2/1935:
Exmo. Sr.
FERNANDO PESSOA
c/o Café da Arcada
Praça do Comercio
LISBOA
Meu caro Fernando Pessoa Por ignorância da sua morada tenho adiado de dia para dia uma obrigação de
amizade.
Devia há muito já ter lhe agradecido o seu livro, mas não me ocorria meio de lhe fazer chegar a carta às mãos,
até que hoje me ocorreu confiá-la ao pessoal do café da Arcada.
Tarde lhe respondo mas Você desculpa. Gostei mais de receber o seu livro do que se a minha fábrica me
mandasse um automóvel ainda que fosse com dedicatória. Exagero muito pouco.
Eu compreendi e gostei sempre dos seus versos.
Desde o tempo de Orpheu e da «Renascença» (talvez desta Você já se nem lembre apesar de para ali ter
colaborado) sei de cor versos seus daquele tempo; recorda-se:
Adagas, cujas jóias, velhas galas
Opalesci amar me entre mãos raras
........................
e aquelas quadras:
Ó sinos da minha aldeia
Dolentes na tarde calma…
....................
Desde que há tempos, parece-me que no Diário de Lisboa, antes de conhecer o seu livro, encontrei o
«Mostrengo», decorei-o também e tenho o recitado a inúmeras pessoas. Alguns cretinos aos primeiros versos
sorriem e mofam, mas por mais cretinos que sejam no fim ficam calados com cara de parvos, nem eles sabem
porquê, mas eu sei e por isso o admiro a Você.
A propósito: não correu uma primeira versão em que em lugar de Mostrengo Você escrevera Morcego? Mas
gosto mais do livro exactamente porque não precisa a forma e dá nos melhor a ideia do grandioso e do
grotesco, roçando-se.
Se tiver um minuto para me escrever duas linhas ou se quiser telefonar me gostava tanto de saber se Você
tem mais alguma coisa publicada em periódicos, para melhor conhecer sobre si o que, afora a «Mensagem»
tenha produzido em verso.
Um grado abraço do velho amigo
J. Coelho Pacheco
Realçamos esta porque Coelho Pacheco – letrado, mas não propriamente intelectual de formação
– nos dá uma definição simples de Mensagem, enquanto livro que não precisa a forma e dá-nos
melhor a ideia do grandioso e do grotesco, roçando-se . Partido embora não necessariamente
desigual), o livro que consagra Pessoa enquanto poeta foi progressivamente lido como feito de
poemas individuais e não propriamente dentro de uma qualquer unidade inicial. Não é por acaso.
Esquecendo o lado prático – e humano – da vaidade de distribuir o seu livro, Fernando atravessa
um período muito difícil entre 1934 e 1935. É pelas cartas que envia que melhor se percebe o seu
estado de espírito:
O facto é que, desde o ano passado, tenho estado sob o influxo de estados nervosos de diversas formas e
feitios, que por um longo período me arrancaram da vontade até o desejo de não fazer nada. Tenho-me
sentido uma espécie de filme psíquico de um manual de psiquiatria secção psiconevroses. Só agora começo a
emergir lentamente para qualquer coisa vagamente parecida com actividade. Tanto assim que finalmente lhe
estou escrevendo.143
À crise psíquica, que lhe era natural e que se foi agravando com os obstáculos de uma vida
sempre parada no sonho, acresceram os problemas advindos da Censura, como ficou claro na
última carta que dirige a Gaspar Simões (negritos nossos):
143
Carta datada de 10/10/1935, dirigida a Tomás Colaço.
Caixa Postal 147
Lisboa, 30 de Outubro de 1935
Meu caro Casais Monteiro:
Muito obrigado pelo seu postal de 25, relembrando o interesse que vocês têm pela minha colaboração na
Presença. Já tinha prometido, pessoalmente, aqui há dias, ao Gaspar Simões, dar essa colaboração, de sorte
que, não indo já a tempo para o número que está a sair, pudesse todavia aparecer no que deve sair pelo Natal.
Sucede, porém, uma coisa — sucedeu há cinco minutos —que me confirma em uma decisão que
estava incerta, e que me inibe de dar colaboração para a Presença, ou para qualquer outra publicação
aqui do país, ou de publicar qualquer livro.
Desde o discurso que o Salazar fez em 21 de Fevereiro deste ano, na distribuição de prémios no Secretariado
da Propaganda Nacional, ficámos sabendo, todos nós que escrevemos, que estava substituída a regra
restritiva da Censura, não se pode dizer isto ou aquilo , pela regra soviética do Poder, "tem que se dizer
aquilo ou isto . Em palavras mais claras, tudo quanto escrevermos, não só não tem que contrariar os
princípios (cuja natureza ignoro) do Estado Novo (cuja definição desconheço), mas tem que ser subordinado
às directrizes traçadas pelos orientadores do citado Estado Novo. Isto quer dizer, suponho, que não poderá
haver legitimamente manifestação literária em Portugal que não inclua qualquer referência ao equilíbrio
orçamental, à composição corporativa (também não sei o que seja) da sociedade portuguesa e as outras
engrenagens da mesma espécie.
Embora se continuasse a relacionar com António Ferro, toda a boa vontade do regime se tinha
evaporado. A um mês da sua morte ele tem plena consciência de que nunca mais poderia publicar
em Português, e tal como um cantor que perde a voz, Fernando perde a razão de viver.
Já muitas vezes falámos, no nosso livro, da saúde frágil de Fernando Pessoa. Nesta altura é
conveniente perceber a que grau realmente ela era frágil.
Quando era criança Fernando tinha episódios que revelavam a sua fraqueza. Recordemos os
episódios documentados pelas cartas de seu pai, quando este se encontrava longe da família. A
convivência com a avó louca foi a primeira forma de preocupação e fonte de problemas – certa
dose de paranóia - que nunca seriam completamente sanados.
Muito mais tarde, por volta de 1907 (tinha 19 anos e estava há pouco mais de ano e meio em
Lisboa), sabemos que Pessoa recorreu à ajuda do Prof. Egas Moniz, que lhe indicou a ginástica
sueca como forma de recuperação física – deduzimos que a passagem por África não lhe
fortaleceu o corpo, muito pelo contrário. Ele próprio o disse:
De
Quando, em 1907, o Prof. Egas Moniz me passou, para fins ginásticos, para as mãos de Luís Furtado Coelho,
para ser cadáver só me faltava morrer. Em menos de três meses e a três lições por semana, pôs-me Furtado
Coelho em tal estado de transformação que, diga-se com modéstia, ainda hoje existo … 144
temos passagens do diário, mencionando várias recaídas :
De noite em casa: no chá, de repente, senti-me esvair, quase desmaiando.
Dia 23/3
Sinto-me muito anémico e esvaído, ainda que fortemente excitado.
Dia 24/3
Do período do namoro com Ofélia, várias notas referentes à saúde:
Não te escrevi ontem, afinal, porque estive muito mal disposto em casa.
Carta enviada a Ofélia em 8/4/1920
… não estrague a sua saúde, por amor de Deus, eu quero tê-lo por muitos anos.
Carta de Ofélia, datada de 7/11/1929
O Nininho há-de também prometer-me – mas prometer e cumprir – não tomar mais aguardente, porque lhe
faz muitíssimo mal, é um veneno que toma. … Faz-lhe mal ao fígado, ao estômago, aos intestinos …
Carta de Ofélia, datad de 7/1/1930
144
in «O que um milionário Americano fez em Portugal», Texto datado de 10/3/1933
Nem teremos de ser exaustivos para ilustrar a forma como Fernando estaria debilitado, física e
psicologicamente, no início de 1935. Se antes, na juventude, tinha conseguido superar,
estoicamente, os seus problemas de saúde com a esperança num futuro diferentes, lentamente
essa esperança tinha-se desvanecido, com sucessivas derrotas de monta (a morte de Sá-Carneiro,
a falta de edição dos seus livros, a morte da mãe, o fim da relação com Ofélia, a mudança da irmã
para o Estoril, o fracasso da candidatura em Cascais, a opressão da censura… .
Por quanto tempo se consegue fingir a normalidade?
O tempo esgotou-se em fins de 1935.
Apenas uma última questão impede a conclusão desta biografia. Foi Fernando Pessoa a terminar
com a sua vida ou foi ela que se lhe acabou naturalmente?
O suicídio de Fernando não é uma ideia original. No entanto não penso que tenha sido
consubstanciada com factos de forma a tornar-se uma hipótese. É o que pretendemos fazer de
seguida. A importância de tal, nada tem de sensacionalista. É apenas de forma a esclarecer de
facto como uma vida de solidão e abandono é impossível de suportar até ao fim, estoicamente.
Nada se suporta eternamente, de forma estóica e todo o fingimento tem de cessar. Pretendemos
por isso apenas avisar contra a solidão e prevenir contra a aceitação do abandono.
Pelas palavras do Barão de Teive, o seu último personagem, criado em 1928, entenderemos como
o suicídio pode ter aparecido a Fernando145:
Atingi à saciedade do nada, à plenitude de coisa nenhuma. O que me levará ao suicídio é um impulso como o
que leva a deitar cedo. Tenho um sono íntimo de todas as intenções.
Nada pode já transformar a minha vida. Se... se... Sim, mas se é sempre uma coisa que não aconteceu; e, se não
aconteceu, para quê supor o que seria se ela fosse?146
Não esqueçamos que a sua renúncia da realidade pelo sonho foi já um grande suicídio – ele
efectivamente matou em si a vida, dedicando a viver uma realidade sonhada que não existia,
negando a possibilidade de regressar à realidade imanente. Essa vida nada mais era do que a tal
plenitude de coisas nenhuma …
É dessa anulação de si próprio que vem a intuição do suicídio. Dando a voz novamente ao Barão:
Lembro-me ainda, com uma precisão em que intercala o perfume vago do ar da Primavera, da tarde em que,
meditando todas estas coisas, decidi abdicar do amor como de um problema insolúvel. Era em Maio — num
Maio de verão suave, florido pelas pequenas extensões da quinta em várias cores esbatidas pela queda lenta
da tarde começada. Eu passeava remorsos de mim entre os meus poucos arvoredos. Havia jantado cedo, e
seguia, sozinho como um símbolo, sob as sombras inúteis e o sussurro lento das ramagens vagas. Tomou-me
de repente um desejo de abdicação intensa, de claustro firme e último, uma repugnância de ter tido tantos
desejos, tantas esperanças, com tanta facilidade externa de os realizar, e tanta impossibilidade íntima de o
poder querer. Data dessa hora suave e triste o princípio do meu suicídio.147
A oposição entre os desejos e a facilidade aparente de os realizar e a impossibilidade íntima de o
poder querer – eis o que dá origem à nadificação , à anulação de todas as coisas.
A incapacidade de realizar os sonhos notou-se também na forma como ele próprio se impediu de
sofrer – há um sofrimento intenso na sua vida, mas um sofrimento sem objectivo; não existe uma
depressão propriamente dita, que lhe permitisse bater no fundo para depois recuperar. Todo o
seu sofrimento é em suspenso, irregular e mortiço, sem se resolver e é isso que o torna
imensamente mais perturbante. Não é só literário, mas, fingido em literário, é fingido e por isso
nunca inteiro.
Durante o ano de 1935 Fernando Pessoa executa diversos rituais que, só agora, se tornam claros:
Não é só o Barão que pensa em suicidar-se. Outra personagem é explícita a referi-lo. Um tal de Marcos Alves, que, por
nota do autor, sabemos ter tentado matar-se duas vezes, sem sucesso.
146 Teresa Rita Lopes, Pessoa por Conhecer, Estampa, 1990, pág. 201
147 Fernando Pessoa, Ficção e Teatro…, Europa-América, 1986, pág. 47
145
Em Janeiro escreve a carta da génese dos heterónimos a Gaspar Simões.
Fernando pretende assegurar para a posteridade a sua visão relativamente aos heterónimos e,
por extensão, ao todo da sua obra. Isso é plenamente conseguido, porque a carta torna-se o
template usado universalmente para interpretação do cerne da obra Pessoana pelos
investigadores. A carta é fenomenalmente bem planeada para dar a impressão de ser,
simultaneamente, um desabafo literário e uma cartilha de ordens póstumas.
Ele era extremamente preocupado com a sua memória póstuma, como o provam inúmeros
escritos; porque intuía que não seria compreendido durante a sua vida. A carta é o seu
testamento literário e o acto de a escrever, uma assunção final da sua própria mortalidade.
Em Fevereiro escreve um artigo em defesa das sociedades secretas.
A defesa da liberdade de expressão é a verdadeira motivação deste artigo, escrito numa altura em
que Fernando ainda goza de alguma liberdade advinda do prémio recebido no final do ano
anterior. Ele não pertencia a nenhuma sociedade secreta, mas a sua atitude é uma atitude própria
de alguém profundamente liberal e habituado a expressar a sua opinião. Pode considerar-se uma
bofetada de luva branca no regime que o premiou - e a única hipótese que tinha para o fazer sem
ser censurado era nesta altura. Aliás, ele estava bem ciente do que seria o futuro depois de ler o
discurso proferido na cerimónia de entrega dos prémios, da qual esteve ausente.
A Primavera é passada com o irmão, que vem de Inglaterra, pela primeira vez em 15 anos.
Pode presumir-se que Pessoa nada teve a ver com a visita. Não temos indicação em contrário, a
não ser o que sabemos dele querer ir a Inglaterra em 1930/31 e não ter conseguido. Será
provável que o irmão, em virtude de não contar com a presença dele perto de si tenha
aproveitado a ocasião (visita de núpcias) para realizar o encontro. No entanto podemos ver a
viagem e o encontro dos irmãos (não só Fernando, mas Teca) como uma espécie de despedida
não intencionalmente planeada.
Em Outubro Álvaro de Campos escreve o poema Todas as cartas de amor são ridículas .
As interpretações podem ser múltiplas. Há quem diga que Pessoa queria simplesmente negar a
sinceridade das cartas (ou melhor, o acto de as poder ter escrito), enquadrando-as como ficção
junto do resto da obra. Outros poderão dizer que o poema confirma essa mesma sinceridade,
porque afinal em continuidade ele diz que só as criaturas que nunca escreveram / Cartas de
amor / É que são / Ridículas .
Só quem não ler o poema é que poderá tender para a segunda interpretação. De facto todo o
poem é uma celebração do ridículo mas sobretudo do amor pode detrás do ridículo – e cai o pano
sobre o fingimento de Fernando, que diz no mesmo poema que preferia estar a viver ainda esse
amor do que estar agora sem ele. É a falta desse amor que dá origem ao poema e o fim da vida
recorda-o de quando se sentia realmente vivo.
Para quem continue a duvidar, basta lembrar o facto de ele ter guardado as cartas (pedindo na
altura permissão a Ofélia para o fazer).
Em Novembro, mês da morte, três importantes rituais:
Escreve para o n.º 3 da revista «Sudoeste», dirigida por Almada Negreiros. Nesse número inclui
um editorial intitulado «Nós, os de Orpheu» e uma «Nota ao acaso de Álvaro de Campos».
A memória de Orpheu é um tributo aos tempos do seu auge artístico público. Ele continuou
sempre a produzir trabalho com igual ou superior qualidade (o que é espantoso), mas nunca de
modo tão coerente como dentro daquele projecto, que lançou raízes profundas na cultura
nacional, enquanto primeiro Modernismo.
A «Nota ao acaso» é uma prosa provocadora e misteriosa, sobretudo publicada quando foi. Temos
de a ler com maior atenção (negritos nossos):
O poeta superior diz o que efectivamente sente. O poeta médio diz o que decide sentir. O poeta inferior
diz o que julga que deve sentir.
Nada disto tem que ver com a sinceridade. Em primeiro lugar, ninguém sabe o que verdadeiramente sente: é
possível sentirmos alívio com a morte de alguém querido, e julgar que estamos sentindo pena, porque é isso
que se deve sentir nessas ocasiões. A maioria da gente sente convencionalmente, embora com a maior
sinceridade humana; o que não sente é com qualquer espécie ou grau de sinceridade intelectual, e essa é que
importa no poeta. Tanto assim é que não creio que haja, em toda a já longa história da Poesia, mais que uns
quatro ou cinco poetas, que disessem o que verdadeiramente, e não só efectivamente, sentiam. Há alguns,
muito grandes, que nunca o disseram, que foram sempre incapazes de o dizer. Quando muito há, em certos
poetas, momentos em que dizem o que sentem. Aqui e ali o disse Wordsworth. Uma ou duas vezes o disse
Coleridge: pois a Rima do Velho Nauta e Kubla Khan são mais sinceros que todo o Milton, direi mesmo que
todo o Shakespeare. Há apenas uma reserva com respeito a Shakespeare: é que Shakespeare era
essencial e estruturalmente factício; e por isso a sua constante insinceridade chega a ser uma
constante sinceridade, de onde a sua grandeza.
Quando um poeta inferior sente, sente sempre por caderno de encargos. Pode ser sincero na emoção: que
importa, se o não é na poesia? Há poetas que atiram com o que sentem para o verso; nunca verificaram que o
não sentiram. Chora Camões a perda da alma sua gentil; e afinal quem chora é Petrarca. Se Camões
tivesse tido a emoção sinceramente sua, teria encontrado uma forma nova, palavras novas — tudo
menos o soneto e o verso de dez sílabas. Mas não: usou o soneto em decassílabos como usaria luto na vida.
O meu mestre Caeiro foi o único poeta inteiramente sincero do mundo.
Há várias formas de ler o texto. Por um lado Fernando pode estar a querer esclarecer a questão
do fingimento, em continuação do problema da origem dos heterónimos. A prosa remete-nos
para outro poema, ortónimo, intitulado «Isto» e publicado em 1933:
Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!148
A primeira interpretação é então a de vermos Álvaro de Campos a elogiar Caeiro e, por
continuidade, Pessoa. Creio que Pessoa pensou realmente que Caeiro era a sua maior invenção.
Segundo, julgo que é importante a presença de Shakespear e Camões, as duas sombras que o
perseguiam. Ele critica-os aos dois, um pouco menos a Shakespear. Mas identifica nos dois o
problema da insinceridade. Apenas o drama parece salvar o Bardo.
Terceiro, não podemos deixar de ler o poema à luz do que lhe era permitido publicar perante a
censura. Não haverá um laivo de rebeldia nestas palavras? O mero facto de dizer que o poeta
superior diz o que realmente sente poderá querer dizer que nenhum poeta superior se deve
ajoelhar perante a censura da sua obra ou opinião.
Dia
148
escreve o último poem datado em Português, sobre doenças :
Há doenças piores que as doenças,
Há dores que não doem, nem na alma
Mas que são dolorosas mais que as outras.
Há angústias sonhadas mas reais
Que as que a vida nos traz, há sensações
Publicado originalmente em Presença, nº 38, Abril de 1933.
Sentidas só com imaginá-las
Que são mais nossas do que a própria vida.
Há tanta coisa que, sem existir,
Existe, existe demoradamente é nossa e nós...
Por sobre o verde turvo do amplo rio
Os circunflexos brancos das gaivotas...
Por sobre a alma o adejar inútil
Do que não foi, nem pôde ser, e é tudo.
Dá-me mais vinho, porque a vida é nada.
Julgo que este é o terceiro ritual de Novembro, quando ele já tem plena consciência de que vai
morrer dentro em breve.
O dá-me mais vinho , é o apertar do gatilho do revólver. Veremos que foi assim. Que foi ele que,
perdido, se decidiu perder. Explicaremos de seguida toda a lógica do nosso pensamento.
O relato mais próximo que temos do estado de saúde de Pessoa perto de Novembro vem de uma
carta escrita ao seu irmão Luís pelo cunhado Caetano Dias, em 27 de Abril de 1936. Nela Caetano
Dias conta as peripécia do dia em que Pessoa vai para o hospital do qual já não sairia vivo, mas
antes diz que em Setembro/Outubro ele já se encontrava abatidíssimo 149. Mais do que provável
crise hepática/pancreática, antecipando a crise final.
Por volta de dia 19/20 Fernando teve uma crise grave, tendo desmaiado em casa, sozinho.
Levado ao médico este ter-lhe-á dito que mais um cálice de aguardente e seria o fim .
António Quadros lança a suspeita que o poema (á doenças… seja escrito no dia do regresso do
hospital150. Tendemos a concordar. A sentença do médico era o escape preciso da dor – bastava
mais aguardente e Pessoa pede mais vinho . Ou seja, deseja a morte e vê a oportunidade.
Dia 26 ou 27 temos o relato extraordinário da última vez que Fernando é visto em público,
escrito por Gaspar Simões. Um relato que merece ser reproduzido agora, por ser pouco
conhecido:
Ao fundo do café – O Martinho da Arcada, ao Terreiro do Paço, em 1935, como ainda hoje, segundo creio, era
constituído por uma sucessão de corpos ou de salas separadas por arcos -, numa das salas ou dos corpos mais
afastados da entrada da rua Augusta (o café também tinha portas para as Arcadas do Terreiro do Paço), é que
nós – Almada e eu -, fomos encontrar o poeta, de chapéu enterrado na cabeça, de gabardine, alvadia, assaz
suja por sinal, o qual desta feita se não levantou para nos receber, familiar que era para ele o Almada e por
pouco quase tão familiar para ele como o Almada o «lisboeta» que eu já era com oito meses de capital…
Lembro-me porém, de que nunca o vira tão excitado. Dias antes, encontrando-se sozinho na rua Coelho da
Rocha, caíra inanimado na casa de banho. Fora preciso arrombar a porta para o tirarem de lá. O médico era
categórico: mais um cálice de aguardante e seria o fim.
Que dissemos? De que falámos? Naturalmente ainda dos Indícios de Oiro, de Sá-Carneiro, que a Presença ia
publicar, e dos seus projectos literários. Mas teria ainda projectos literários o poeta a quem restavam dois ou
três dias de vida? Concretamente, não me lembro do que falámos. Mas que Pessoa riu, que Pessoa gargalhou ,
de uma maneira ainda muito mais nervosa e pigarreante do que lhe era habitual, disso lembro-me bem, e
lembro-me também de que tudo fez para que nós não nos dessemos conta de que ele se sentia à beira de um
abismo. Almada e eu entreolhávamo-nos, de quando em quando, para perscrutarmos nos olhos um do outro
o que cada um estava a pensar daquela anormal desenvoltura. Mas o poeta não via ou fingia que não via. E,
por detrás dos óculos, agora já não de hastes metálicas, sem aros, mas de lentes redondas e aros de tartaruga,
os seus olhos, com um brilho estranho, antes de febre que brilho de inteligência maliciosa, como em geral era
o brilho os seus olhos, iam de Almada para mim e de mim para o Almada numa inquietação visível, embora
simuladamente brincada. Não trazia lacinho no colarinho branco amarrotado, como era seu hábito, mas
gravata escura – talvez preta. Os bicos do colarinho da camisa branca, um pouco enxovalhada, reviravam-selhe sobre as bandas da gabardine, não menos enxovalhada também.
…
Caetano Dias, a residir no Estoril com a irmã de Pessoa, veio a Lisboa por causa do filho, Luís Miguel, que adoecera, em
busca de ajuda médica. É quando chega à Rua Coelho da Rocha que se depara com Pessoa também doente. Segundo
escreve, quando voltaram para o Estoril ambos estavam melhor, o que indica que a doença de Pessoa era, em verdade,
mais uma das crises que o atacavam periodicamente, ligada sem dúvida à sua causa de morte. Cf. Manuela Nogueira, Op.
Cit., pág. 116.
150 Cf. Op. Cit., pág. 272.
149
Almada e eu tomámos o caminho do Chiado. Estou a vê-lo rindo, com o seu estrepitoso gargalhar, enquanto
apertava a mão de Almada dizendo não sei que palavras. A mim disse-me apenas, sorrindo: «Até breve». E
um pouco como se, em verdade, os pés não chegassem ao empedrado do passeio, e a dita mão o mantivesse
suspenso do seu imperativo comando, lá o vi afastar-se na direcção da igreja, subindo a pequena rampa para
os Fanqueiros, trocando as pernas, com as abas do chapéu desabadas sobre a gola da gabardine, a cabeça
erguida, como se, num esforço sobrehumano, tudo fizesse para mantê-la firmemente agarrada ao tronco de
onde ele, flutuante, tão flutuante como o todo do seu corpo, - à força quisesse desprender-se.151
Há quem diga que Gaspar Simões pouco privou com Pessoa, e isso não deixa de ser verdade, mas
o seu testemunho é inequívoco – sobretudo quando inserido no contexto anterior.
Fernando tinha planeado o seu fim, o seu suicídio lento, e nada o demoveria de o concretizar.
De 27 para 28 é levado novamente para o Hospital S. Luís dos Franceses, ao Chiado. Desta vez
não sairá com vida. Morre no dia 30, à noite.
Da família próxima, só o cunhado o visitou; exceptuando as presenças dos primos, Eduardo
Freitas da Costa e Jaime Neves (o seu médico). A irmã estava sem poder sair de casa, no Estoril,
por ter partido uma perna. Mas nem o cunhado saberia do ocorrido se Pessoa não tivesse falhado
o telegrama de parabéns à irmã, por ter sido hospitalizado.
Na única fotografia que se conhece do funeral, o esquife está à porta da capela, rodeado de
homens, seus amigos literários e uma única mulher visível – Emília, a sua criada. Carlos Queiroz
estaria lá, mas não Ofélia. Pelo menos não visível, mas de certeza que teria sabido de imediato da
notícia pelo seu sobrinho. Na altura não seria de esperar que ela pudesse ir ao funeral, visto não
ser da família e por isso a sua ausência não é chocante.
Fernando, esse, morreu só, como viveu. E não podia ter sido de outra maneira.
Ou podia?
Figura 30
Fernando Pessoa em 1932
Em 1935 Fernando Pessoa estava muito magro e exaurido. A
cara cansada, rugosa e baixa, os olhos baixos e cavados, o cabelo
recendido e fraco. É assim que ele aparece na última fotografia
conhecida, tirada por Augusto Ferreira Gomes.
Mas não é essa fotografia que usamos aqui. Esta não é a última
fotografia de Fernando, mas achámos que seria a indicada para
terminar a sua biografia.
Tirada ao pé de uma janela, a luz que entra do exterior parece
fazê-lo desaparecer ou tornar-se translúcido, como se não
pertencesse à realidade nem à luz. É neste estado dissolvido que
melhor o definiremos visualmente ao terminar a história da sua
vida real.
Dissolvido e indefinido. Para que possa renascer diferente.
151
João Gaspar Simões, Retratos de Poetas que Conheci, pág. 79 e segs.; citado em António Quadros, Op. Cit., pág. 272-3.
II Parte
A BIOGRAFIA ALTERNATIVA
As seguintes páginas descrevem a biografia alternativa de Fernando Pessoa, no período
compreendido entre 1925 e 1963. Esta biografia alternativa é uma biografia ficcionada, que
inclui alguns pormenores verdadeiros e outros inteiramente romanceados.
1925-1935
NON PLUS ULTRA
Ah, quem escreverá a história do que poderia ter sido?
Será essa, se alguém a escrever,
A verdadeira história da humanidade.
«Pecado Original», Álvaro de Campos, 7/12/1933
I
Pulsão de vida
No mês de Março de 1925, logo a seguir à morte da sua mãe e em seguimento da morte do
General Henrique Rosa em Fevereiro, Fernando tomou a mais importante decisão da sua vida até
esse momento: pedir ajuda psiquiátrica152.
Sentindo dentro de si que estaria a perder a noção da própria realidade, e confrontado com a
hipótese de seguir um caminho sem retorno, ele recorreu em segredo à ajuda de um homem que
já o tinha salvo uma vez: Egas Moniz. Fernando Pessoa será um dos poucos pacientes tratados
por Moniz usando a recente teoria Freudiana da psicanálise.
Destas visitas ficou no espólio apenas uma frase misteriosa:
A pulsão de vida nada mais é que a negação da arte pela vida.
Prof. Egas Moniz 4/4/1925
Já muito antes Fernando estudara sozinho o tema da psiquiatria e da loucura. Mas a psicanálise
era algo de muito recente, tendo sido introduzida em Portugal precisamente por Egas Moniz, em
1915153.
Algo que muitos estudiosos ignoram é que Pessoa, em 1916 já conhece Freud (negritos nossos):
A psiquiatria nota, com efeito, que a desagregação psíquica é quase sempre acompanhada pelo desvio sexual.
Quase sempre? A mais recente das teorias psiquiátricas diz que sempre. Freud e os seus discípulos, através
da psico-análise , afirmam a origem sexual de todas as psicoses. Justa ou não esta doutrina extrema, o
certo é que a sexualidade domina os factos psíquicos tanto, se não mais, que os físicos; e que a sua
importância notavelmente se vê quando se analisam as manifestações mentais de um louco ou de um
degenerado.
O segundo conceito, que a cultura psicológica geral deve à psiquiatria, é o de que a superioridade psíquica
notável é acompanhada por um desvio psíquico, que todo o superior é um doente, ou, em termos mais
flagrantes, que o supernormal é, por ser isso mesmo, anormal. Este conceito teve interpretações
extremas e absurdas, como em Lombroso; mas ninguém, hoje, duvida de que seja, na sua substância, uma
verdade; de que a variação extrema não envolva desadaptação.154
De Freud só restou um livro na sua biblioteca pessoal, datado de 1927 155, mas é provável que
tivesse outros e os tivesse vendido posteriormente, como era seu hábito, por já não lhe serem
essenciais. As traduções para inglês de Freud começaram a surgir em 1909, por isso é provável
que Pessoa, um ávido leitor de novidades e jornais estrangeiros, tivesse acesso a elas assim que
estivessem disponíveis.
É apenas natural que Fernando considerasse há muitos anos a hipótese de um tratamento de
saúde mental para o seu caso . 1907 foi um ano em que ele realmente se preocupou em perceber
se haveria a possibilidade real de ter dentro de si algum resquício dos comportamentos que
observou na sua avó Dionísia – assim provam as cartas surreais que dirigiu a ex-companheiros de
escola em África. Aquele ano foi o ano do choque no regresso a Portugal e ele estava
evidentemente abalado e fraco.
A evidente falta de testemunhos sobre o que terão versado as sessões de psicanálise efectuadas
por Egas Moniz deve ser encarada como normal. À época Egas Moniz, embora profundamente
interessado no novo método, nunca o encarou como parte integrante da sua prática – que nunca
deixou de ser mais neurológica do que psiquiátrica. Aliás, isso é bem visível no facto de ele, a
partir de 1927, ter abandonado em definitivo (pelo menos é o que se depreende dos seus
Se recordarmos o seu perfil astrológico, a meia-idade era o período em que uma grande crise iria decidir o seu futuro.
Se essa crise fosse superada, ele poderia esperar uma vida longa, com gradual aumento de vitalidade.
153 O estudo inovador de Egas Moniz intitulava-se As Bases da Psicanálise e foi publicado na revista A Medicina
Contemporânea, 33 em 1915. Cf. José Martinho, «Sobre a recepção de Freud em Portugal» in Metacrítica, 3, 2003.
154 Fragmento de ensaio sobre o drama Octávio de Vitoriano Braga, levado à cena em
.
155 O livro é: Un souvenir d'enfance de Leonard de Vinci. Trad. et annoté par Marie Bonaparte. I ème ed. Paris: Gallimard,
1927. 216 p. Les documents bleus; 32
152
estudos) o estudo (e uso) da psicanálise. Podemos, no entanto, partir do princípio que, entre
Abril de 1925 e fim de 1927, Fernando poderá ter tido um número elevado de sessões com o Prof.
Egas Moniz. Veremos mais à frente que a prova deste quotidiano terapêutico surge de forma
inesperada, mas perfeitamente tranquila, em desenvolvimentos posteriores.
Tendo nós tão pouco em que nos basear, partiremos no entanto da importância da expressão
pulsão de vida que, embora curta, nos terá de dizer muito se atentarmos a outros dados
relacionados.
A expressão pulsão tem grande significado no léxico Freudiano.
Freud sintetizou a sua teoria em duas grandes pulsões: eros, ou pulsão de vida e thanatos, ou
pulsão de morte. A pulsão é, por definição, algo interno e inconsciente, mas que projecta no
exterior todas as suas consequências.
Como se pode então interpretar a misteriosa frase de Pessoa, citada atrás?
Fernando sempre viu a arte como uma forma de sintetizar a vida. A sua noção de que na base de
toda a arte está a sensação nada mais é do que a concretização deste princípio. A transmissão do
que é a realidade, feita através do processo artístico, é uma forma de matar a própria realidade,
injectando-a de subjectividade. A visão da realidade pela arte, é a visão do artista e só depois
daquele que interpreta a arte em si mesma.
Mas, mais importante do que perceber o processo inteligente de fazer arte, é preciso entender
que a arte foi usada por Fernando Pessoa como forma de mitigar a própria dor do mundo.
Entender o mundo pela arte foi uma forma de diminuir a necessidade de viver o mundo sem o
logos da arte, sem esse intermediário racional. De nenhuma outra forma se explicaria como ele
pretende, por exemplo, expurgar os sentimentos eróticos pela sublimação dessas próprias
sensações primitivas – ele aqui testa a elasticidade da pulsão, querendo torna-la consciente.
A vida nega a (necessidade da) arte quando se assume enquanto coisa objectiva.
Há, entre as duas pulsões, como entre dois pólos magnéticos todo o significado dos opostos. É
impossível, portanto, advocar a vida e a morte de modo simultâneo. Aceitar isso é aceitar a
imperiosa necessidade de negar um dos opostos.
Claramente Egas Moniz aconselhou a negação da arte. Ou seja, a negação da morte.
Figura 1a
Egas Moniz, médico neurologista, prémio Nobel da Medicina em 1949
Egas Moniz ficou conhecido sobretudo pela técnica cirúrgica que lhe
valeu o prémio Nobel em 1949 – a leucotomia; mais tarde deturpada
enquanto lobotomia pelo médico Americano Walter J. Freedman.
No entanto ele teve um papel notável nos anos 20 ao introduzir em
Portugal as teorias de Freud, tendo chegado a aplicá-las a casos clínicos
reais, de acordo com o seu próprio testemunho.
Ainda mais interessante (e relevante) foi a conexão que Egas Moniz fez
entre psicanálise e literatura, dedicando-se à abordagem psicanalítica
da vida e da obra de Júlio Dinis (1924), de Camilo de Castelo-Branco
(1925) e do Abade Faria (1927). No extenso trabalho biográfico que
dedicou a Júlio Dinis falou abertamente da forma como achava que
aquele autor usava o recurso do inconsciente humano no
desenvolvimento das suas personagens e nos diálogos entre eles.
Não restam dúvidas que era a pessoa mais habilitada em Portugal, na
década de 20, para enfrentar um caso como o de Fernando Pessoa.
II
Reconciliação (a tempo inteiro)
No fim de 1925 a irmã de Fernando, Teca, regressa à casa da Rua Coelho da Rocha com o seu
marido Caetano Dias. A estadia deles na Quinta dos Marechais tinha sido dolorosa e marcada por
três mortes, tendo eles a esperança que o regresso a um espaço familiar lhes permitisse um novo
começo.
Eis como os objectivos da irmã finalmente se alinharam com os de Fernando.
Não sabemos, mas é provável que ele tenha partilhado com Henriqueta o desejo de começar a
encontrar-se com o Prof. Egas Moniz de forma a enfrentar as suas preocupações. A abertura
relativamente a partilhar esses medos com o neurologista terá facilitado a progressiva partilha
dos mesmos com a sua família mais próxima.
O período de 1925-27 é transposto em relativa obscuridade, sem grandes notícias de monta no
que toca a actividades exteriores. Apenas se regista o aparecimento da Revista de Comércio e
Contabilidade, lançada em conjunto com o cunhado e pouco mais.
Depreende-se desta relativa baixa na sua produção literária que os efeitos das sessões de
psicanálise junto do Egas Moniz estivessem finalmente a produzir os seus resultados, que, quanto
a nós, teriam necessariamente de ser:






Resolução dos problemas associados a um possível complexo de édipo
Resolução dos problemas de culpa associados à saída de Portugal
Aceitação do comportamento da mãe depois da morte do seu pai
Análise do seu comportamento face às outras mulheres
Análise dos seus objectivos de vida
Análise da projecção feita na sua própria obra
Realmente, e depois de 1927, a produção literária de Fernando Pessoa nunca mais será a mesma.
É certo que, usando como medida qualquer escritor do seu tempo, ele já tinha feito mais do que o
necessário para ser conhecido no futuro – tinha a heteronímia desenvolvida e a obra dos
principais três heterónimos bem estabelecida (nomeadamente a do mestre Caeiro).
Há que entender que, nele, a obra era potenciada pela pulsão de morte e, com a mudança de
paradigma a nível psicológico a pulsão de vida anulou grande parte da sua motivação literária –
sempre ou quase sempre depressiva e negativa.
1927 torna-se um ano essencial por duas razões: o fim das sessões de psicanálise com Egas
Moniz e a reconciliação com Ofélia Queiroz.
Sabemos, como se prova em diversos registos, que Egas Moniz deixou de se interessar pelas
teorias de Freud por volta de 1927156, tendo voltado a sua pesquisa para a importante descoberta
da angiografia cerebral e depois da leucotomia pré-frontal (que lhe valeria o Nobel em 1949).
Ora, o abandono das sessões, depois de dois anos consecutivos, não terá sido fácil, sobretudo
considerando que, no fim de 1927, a irmã de Pessoa volta a sair de casa, desta vez para ir viver
para Évora.
Fernando vê-se subitamente perante um grande dilema: está novamente sozinho e, embora as
sessões de psicanálise tenham tido um efeito potencial positivo na sua psique, tudo poderá estar
em risco se ele voltar aos hábitos antigos. É nesta perspectiva que ele deve ter considerado reatar
a sua relação com Ofélia Queiroz. Não só porque isso o ajudaria no seu caminho futuro, mas
também porque a solidão deveria ser evitada a todo o custo.
156
Cf. José Martinho, Op. Cit.
Lembremos a sua carta de 29/11/1920, na qual ele quebra com Ofélia:
Que isto de «outras afeições» e de «outros caminhos» é consigo, Ophelinha, e não comigo. O meu destino
pertence a outra Lei, de cuja existência a Ophelinha nem sabe, e está subordinado cada vez mais à obediência
a Mestres que não permitem nem perdoam.
Passados sete anos, Fernando está diferente e começa a compreender que os Mestres aos quais
se estava a subordinar, eram afinal representações de si próprio – ele podia ser o único Mestre do
seu próprio destino. Estava agora mais maduro e mais paciente.
A pretensa assunção de um destino mais alto , longe de ser uma arrogância, estava ligada
subconscientemente à justificação do seu curso de vida até 1925. Perante a impossibilidade
psíquica de levar a vida desejada, Fernando dedicou-se a isolar-se da vida como um todo,
trabalhando sucessivamente apenas para a ideia de uma vida que nunca se podia concretizar.
Terá havido então a desistência desse objectivo?
Fernando Pessoa envia apenas uma carta curta a Ofélia Queiroz na segunda fase do seu namoro.
É esta que agora transcrevemos por inteiro:
Querida Ofélia,
Escrevo-te por obrigação, para te deixar por escrito e em símbolo o que te disse ontem no nosso passeio.
Estando transviado por tantos anos sem ti, é apenas de rigor que se te apresente em envelope, para que tu
possas fazer desta encomenda o que desejares, e sem a consternação de me estares a ver. Podes, por isso, e se
o desejares, regressar a mensagem fortuita ao remetente, sem custo adicional que não seja o da dor que me
causarás ao fazê-lo. Diz a quem ta entregue que não mais moras nesse lugar (do meu coração).
Adivinhas? Fiquei enternecido com as tuas palavras e ainda mais enternecido com os teus olhos, embora sem
perceber bem como podias ter ainda carinho por alguém que foi tão mau para ti. Lembra-te do que te disse e
não te esqueças nunca, sim?
Na esperança de não ser devolvido e reduzido a caixa postal restante, subscreve-se o sempre teu
Fernando157
Ofélia conta-nos, em memória diarística tardia, que no dia anterior – dia 22 de Dezembro de 1927
– por coincidência se tinham encontrado os dois na baixa de Lisboa, sem memória da localização
exacta, mas no meio do rebuliço de uma rua apinhada de gente:
Não o vi, senão algumas vezes de passagem, nos sete anos que se seguiram à nossa separação e nunca nos
falámos. Trocámos apenas telegramas pelo aniversário.
Mas um dia, estava a chegar o fim do ano de 27, ia na baixa já não sei a fazer que recado à minha irmã e,
levantando os olhos vi-o no meio de outras pessoas que estavam na rua. Ele parou e ficou a olhar para mim.
Não foi como das outras vezes, pois o olhar dele ficou fixo no meu e eu não me consegui mexer.
Depois, para minha surpresa, levantou primeiro o chapéu e depois uma das pernas e ficou assim, parado no
meio da rua empedrada, sem se mexer. E eu comecei a rir-me e fui ter com ele.
Deu-me um grande abraço, como se quisesse reunir as forças para recuperar o tempo perdido e ficámos
abraçados durante o que pareceram horas, mas devem ter sido apenas alguns segundos.158
Do que falaram? Ofélia diz-nos novamente:
Levou-me a casa e caminhámos juntos e fomos falando, como se nunca tivesse acabado a nossa relação e
fosse apenas natural que assim estivesse a acontecer. Disse-me que depois da morte da mãe se tinha decidido
a mudar de vida e que nunca me tinha esquecido e disse-o com extrema vergonha, mal se ouvia a voz dele.
O meu coração estava disparado e eu estava confusa, mas, como me era normal, disse-lhe que sentia o
mesmo, porque era a verdade, nunca o tinha esquecido. Ele parou e olhou-me e disse que não podíamos fugir
do destino e que me enviaria uma carta, mas apenas se eu lhe prometesse que nunca mais lhe escrevia. Fiquei
com medo e sem saber o que dizer, mas, com a urgência da situação, concordei, mesmo sem saber com o que
157
158
Carta datada de 22/12/1927, em rigor a única carta da segunda fase do namoro, pois não houve resposta de Ofélia.
Ofélia Queiroz, «O Fernando e eu» in Fernando Pessoa, Obra Completa, Presença, 1971.
estava a concordar. Só queria estar junto dele e sentia-o diferente, com um brilho de felicidade nos olhos
como não via há muito anos.
…
Quando recebi a sua carta, apeteceu-me responder, apeteceu-me tanto escrever-lhe; mas lembrei-me da
promessa e não o fiz, ficando desesperada sem saber o que iria acontecer de seguida. Não conseguia dormir.
Rezei muito. Nos dias seguintes ele arranjou sempre maneira de me encontrar, não sei bem como, e falámos
muito, sobre o que tínhamos feito os dois, sobre o que poderíamos fazer no futuro e ele encheu-me o coração
de esperança.
A decisão temerária de Fernando pode parecer surpreendente à primeira vista, embora não seja
fora de carácter face àquilo que já conhecíamos dele. Afinal, sempre fora impulsivo.
A relação com Ofélia foi reatada lentamente e os testemunhos do que ambos terão feito no dia-adia neste período ficaram relegados apenas às suas próprias memórias pessoais, sem registos
escritos de qualquer ordem. Percebendo a futilidade da comunicação à distância, Fernando
parece ter-se aproximado cada vez mais de uma rotina familiar com Ofélia, mesmo que ainda
não concretizando a relação num verdadeiro namoro. Terá sido Egas Moniz a aconselhar a
quebra da correspondência amorosa? Podemos apenas especular, mas faz todo o sentido. Egas
Moniz sabia perfeitamente os riscos de alguém como Pessoa misturar as emoções reais com as
emoções projectadas ou imaginadas. Aqui terá sido preciosa a experiência de Moniz na análise da
obra de outros escritores, como Júlio Dinis e Camilo Castelo-Branco.
Sabemos de seguida que Fernando, recorrendo aos seus contactos nos escritórios em que
trabalhava, procurou uma posição permanente de Guarda-Livros. A ironia não lhe passou decerto
despercebida. Tinha-se tornado finalmente na figura que desenhara apenas em imaginação para
o Livro do Desassossego? Pouco interessa. Era preciso assegurar, talvez como parte da indicação
terapêutica de Egas Moniz, um trabalho fixo o mais rapidamente possível; por muito que isso
torna-se difícil o desenvolvimento futuro da sua obra.
As suas prioridades tinham de mudar. O primeiro passo fora dado.
A contragosto (pelo menos inicialmente), no início de 1928 arranja posição definitiva na Casa
Moitinho de Almeida, onde trabalhava em part-time desde
. O patrão Vasques , Moitinho de
Almeida, vê com bons olhos a integração de Pessoa elogiando-lhe a qualidade do trabalho,
embora ignorando-o enquanto poeta. Pessoa servir-se-á da posição para desenvolver o Livro do
Desassossego numa linha diferente do que seria de esperar, dando maior azo à sua veia cómica e
observacionista, sobretudo com o seu patrão.
Figura 2a
Ourivesaria Moitinho, circa 1930
A Casa Moitinho de Almeia começou por ser apenas
uma ourivesaria na Rua da Prata, 62-71, fundada em
1790. Quando Pessoa trabalha lá, o negócio mudara,
expandindo-se para o primeiro andar, desenvolvendo
agora actividade também ligada ao comércio em geral.
Fernando tem chave do escritório e usa as máquinas de
escrever a seu belo prazer, de dia ou de noite. Mesmo
antes de 1925 torna-se da confiança dos sócios, que o
consultam em muitos assuntos e é elogiado por todos
devido ao seu bom humor e fácil trato.
III
O conforto de sofrer
Não se pense que Fernando, em pouco tempo, conseguiu resolver todos os problemas que o
inquietavam. É certo que bebia muito menos e tinha deixado de fumar – isso revela-se nas suas
fotografias tardias, em que mantém a sua saúde, que começara a sair fragilizada sobretudo entre
1920 e 1925 – mas interiormente os mesmos fantasmas de sempre ocupavam ainda o seu lugar,
embora cada vez mais silenciados.
O posto definitivo junto de Moitinho de Almeida ajuda-o a manter-se ocupado durante o dia. A
sua mente já não tem como vaguear em busca de problemas alternativos. E embora a rotina lhe
seja difícil de aceitar, esta terá sido recomendada certamente pelo seu famoso psicanalista.
É também a rotina que lhe permite alterar a forma de lidar com a sua dor.
Essa rotina permite-lhe equacionar uma coisa até então inimaginável: trazer Ofélia para junto de
si. O facto é que, depois de seis meses de salário certo, Fernando começa finalmente a frequentar
a casa de Ofélia, que a medo o apresenta como pretendente . O trato fácil de Pessoa, elogiado por
quem o conhece, estende-se sem esforço à família de Ofélia, sobretudo encantando a sua irmã. O
pai – pequeno negociante – fica também impressionado com aquele homem magro e quieto, que
com a mesma aparente facilidade fala de política como de negócios.
Na ausência de Egas Moniz, Pessoa partilha os seus medos com a irmã Teca, nas visitas cada vez
mais frequentes ao Estoril, e, claro, com Ofélia.
Relembre-mos, para este efeito, um texto curto (e sem data) do seu Fausto:
Ao teu seio irei beber
O conforto de sofrer.
É essencial lembrarmos que a dor nunca desaparece completamente, mas ela podia ser
transformada e podia haver conforto em não sofrer em solidão.
Outro ponto que deve ser realçado é o da ambição. Lembremos quando ele fala de Vicente Guedes
(o primeiro autor do Livro):
O meu conhecimento com Vicente Guedes formou-se de um modo inteiramente casual. Encontrávamo-nos
muitas vezes no mesmo restaurante retirado e barato. Conhecíamo-nos de vista; descaímos, naturalmente, no
cumprimento silencioso. Uma vez, que nos encontrámos à mesma mesa, tendo o acaso proporcionado que
trocássemos duas frases, a conversa seguiu-se. Passámos a encontrarmo-nos ali todos os dias, ao almoço e ao
jantar. Por vezes saíamos juntos, depois do jantar, e passeávamos um pouco, conversando.
Vicente Guedes suportava aquela vida nula com uma indiferença de mestre.
Um estoicismo de fraco alicerçava toda a sua atitude mental.
A constituição do seu espírito condenava-o a todas as ânsias; a do seu destino a abandoná-las a todas. Nunca
encontrei alma, de quem pasmasse tanto. Sem ser por um ascetismo qualquer, este homem abdicara de todos
os fins, a que a sua natureza o havia destinado. Naturalmente constituído para a ambição, gozava lentamente
o não ter ambições nenhumas.
É fácil de ver que, parte da abdicação da vida é também abdicar da ambição na vida. Guedes tem
todas as condições para ser ambicioso (depreendemos, capacidades), mas tem prazer em não ter
ambições. É a sua forma de racionalizar o facto de estar sozinho e de pensar que tem
necessariamente de sofrer nessa solidão. A falta de ambições, imposta a si mesmo a um grau
extremo, é a sua forma de controlar o seu próprio destino – se foi abandonado, mais vale que ele
próprio leve esse abandono ao extremo, controlando-o.
A indiferença e o estoicismo são, por isso, apenas instrumentos virtuais de uma ilusão psicológica
de controlo de uma vida que, na realidade, nunca é controlada. Abdicara de tudo, sim, mas não
em favor de uma obra ou de um destino – antes, e somente, a favor de uma esperança em sofrer
menos. Mas, na realidade, a abdicação não traz menos dor, apenas uma dor diferente na mesma
intensidade.
Aceitar uma vida diferente, com emprego e amor, é também uma abdicação invertida. Nesta
altura, por volta de 1929-30, Fernando percebe intimamente que o único curso de acção é
continuar na estrada em que entrou em 1925. Não há regresso possível da sua regeneração
psíquica, tão ao gosto do seu lado escorpião.
E o que ele faz de seguida, pode apenas surpreender os menos atentos: ele torna-se ambicioso.
Em 1930 Fernando Pessoa abandona a Casa Moitinho de Almeida e, em continuidade, a sua
função de empregado de escritório , para se juntar a um projecto recente em Portugal, mas um
projecto com grande futuro económico: a empresa Vacuum Oil dos Estados Unidos da América. A
sua excelente familiaridade com a língua Inglesa e a palavra certa de um familiar servem de carta
de recomendação imediata. O emprego que aceita permite-lhe arrendar casa ampla no Chiado,
para onde se muda em 1931 com Ofélia. A irmã tinha entretanto regressado de Évora e foi ocupar
sozinha a casa da Rua Coelho da Rocha, entaipada desde o ano anterior.
O casamento de ambos, no dia 13 de Junho, simples e contando apenas com a presença de
familiares (incluindo o irmão que veio de Inglaterra) lembrou o segundo casamento da sua mãe
36 anos antes, pela ausência de pompa e circunstância. Mas para Ofélia tudo importava menos o
ambiente que rodeava o acto que mais desejava. O casamento para ela significa algo pelo que
lutou tanto tempo e – há que reconhecê-lo – sem ela não seria possível a Fernando ter atingido
também um outro passo na sua vida em termos de reconhecimento e maturidade.
Ocupado com a sua nova família e com os encargos de uma função complexa e promissora,
Fernando pouco tempo tem para escrever algo de novo. Continua com as insónias de sempre e
aproveita algumas horas à noite para organizar os milhares de folhas já arquivadas na sua arca,
encostada a um canto do seu escritório pessoal com vista para um Tejo distante. A sua Ofélia trazlhe, amorosamente, café ou chá e acaricia-lhe a cara antes de o deixar em sossego, bem ciente que
o seu Fernando ainda não se esquecera completamente da sua outra noiva – a sua Obra.
Mas até certo ponto, teve de a esquecer. Prova disso é um apontamento deixado ao acaso entre os
seus papéis inéditos. António Ferro, recém-presidente do SPN pede-lhe que acabe o seu livro
Portugal para entrar num concurso literário do regime. Pessoa recusa, por falta de tempo:
Ferro pediu-me «Portugal» para concurso em fim de Novembro. Impossível, mesmo que quisesse.159
Figura 3a
António Ferro
Pessoa recusa a comissão de Portugal em 1928, mas existem
alguns poemas nessa altura que mostram já uma considerável
ideia central da obra, centrada no nacionalismo sebastianista.
Especula-se que Ferro, dirigente máximo do SPN, tivesse
tentado Pessoa para o projecto da renovação cultural nacional
pela política do espírito. Mas o poeta, demasiado ocupado com
o decorrer da sua vida não-literária e naturalmente avesso a
completar projectos literários, não conseguiu (ou não quis)
fazer-lhe essa vontade. Claro que Fernando não teria também
vocação para poeta do regime , como bem se compreende.
O livro será completado mais tarde, mas por razões
completamente opostas.
159
Fragmento com data presumida de 1934.
1935-1945
OBRA COMPLETA
Publicar-se - socialização de si próprio.
Que ignóbil necessidade! Mas ainda assim que afastada de
um acto - o editor ganha, o tipógrafo produz.
O mérito da incoerência ao menos.
Livro do Desassossego, sem data
I
Fuga de Lisboa
Fernando, no início de 1936 está feliz e a sua situação familiar deu-lhe uma estabilidade nunca
por ele antes imaginada. Isso proporcionou que até a sua vida económica melhorasse a olhos
vistos. Depois de quase seis anos passados na Vaccum Oil, ele é nomeado administrador da
empresa em Portugal.
Ele, que sonhara com imensas profissões que lhe deixassem tempo para escrever, tem agora a
oportunidade de uma vida de regressar a esse sonho. A posição continua a mantê-lo ocupado,
mas, tendo subido na hierarquia, acha maior tempo e disposição para fugir cada vez mais de
Lisboa. Finalmente com acesso a um automóvel próprio, pode conduzir de e para a capital e as
visitas à irmã no Estoril tornam-se mais frequentes, isto embora a Marginal de Cascais seja
apenas inaugurada no início dos anos 40. Em muitas deles leva Ofélia junto do mar e compartilha
com ela o sonho antigo de morar fora de Lisboa e próximo da inspiração das ondas contra as
rochas:
Íamos agora muito ao Estoril, à casa da irmã que ele adorava e que o adorava a ele. A partir de 1936, por
causa do automóvel – um Chevrolet azul-escuro -, era mais fácil, embora ainda fosse longa. Nunca saíamos de
lá sem ir junto ao mar. Umas vezes eu ia com ele e outras deixava-o ir sozinho, porque sabia que ele apreciava
ainda e precisava daquela solidão que nunca morreria por completo dentro de si.
Uma vez ele levou-me junto à água, quase em cima das rochas, e disse-me que se imaginava a morar ali, que
em Lisboa não se conseguia concentrar como antigamente.
Eu sentia que ele, apesar de feliz, sentia falta de escrever, de tratar dos seus papéis. Por isso sacrifiquei estar
perto da minha família para irmos viver para o Estoril. Não me passava pela cabeça deixá-lo sozinho.
A nossa casa ficava ao pé do mar e o Fernando caminhava muitas vezes à noite sozinho pelas ruas, de mãos
nos bolsos, abandonado aos seus pensamentos. Julgo que isso o ajudou muito a enfrentar o que ainda ia na
sua memória de coisas passadas.160
A Vacuum Oil providenciou uma casa para Fernando Pessoa que ia perfeitamente de encontro às
suas necessidades futuras. Dois pisos baixos, mas quartos suficientes para a família crescer e um
jardim amplo na parte de trás, com vista aberta de mar.
Progressivamente, sobretudo a partir do Verão de 1936, Fernando e Ofélia fazem a sua vida na
Costa do Sol. Ele viajando de e para Lisboa, várias vezes por semana, ela dedicando-se a preparar
a casa – decorada numa mistura de estilo art noveau (por influência dele) e mobiliário tradicional
Português (por influência dela).
Apesar da distância o afastar da companhia diária junto dos seus companheiros de escrita,
muitos deles fazem da sua casa um ponto de encontro, sobretudo nos fins-de-semana. Esses
encontros, inicialmente dedicados à discussão livre de temas (bem ao gosto de Fernando),
tornar-se-á ao longo do tempo uma discussão cada vez mais política. A corporização da sociedade
advinda do estabelecimento do Estado Novo em
normaliza quase todas as actividades
sociais e culturais, o que entra em óbvio choque com o idealismo liberal de Pessoa.
A sua posição social tinha mudado substancialmente desde que em
tinha escrito O
)nterregno , que, no entanto, nunca tinha publicado. O folheto, inédito até depois da sua morte,
foi com certeza mostrado aos seus companheiros de conversa, paralelamente aos argumentos
contrários que ele já com certeza tinha depois de
, face à presença já de um regime e não
um interregno . Documentos do período provam a evolução deste mesmo pensamento e
esclarecem que Pessoa tinha grandes dúvidas sobre o efeito a longo prazo deste regime ditatorial
na sociedade e economia de Portugal.
De facto Salazar cortara as liberdades sociais e de imprensa e limitara a influência estrangeira na
economia, corrigindo a dívida pública (muito por culpa do comércio com a Alemanha dentro do
160
Ofélia Queiroz, Op. Cit.
esforço de guerra no período 1938-45, comércio este feito sobretudo com base em ouro) mas
estrangulando o seu crescimento. Tudo isto fazia com que, lentamente, se começasse a
desenvolver na sociedade Portuguesa um movimento de resistência ao regime que só começará a
ser verdadeira oposição nos anos 50 e 60.
Embora as responsabilidades profissionais de Fernando lhe deixassem pouco ou nenhum tempo
para conspirações, não será arriscado dizer que, mesmo que não se envolvesse directamente,
estaria certamente a par do que se passava a nível político, sobretudo junto da franja mais
reaccionária: os anarquistas. Terá contribuído para o ideário de revolta? Só temos escritos
inéditos em vida e nada publicado em jornais ou revistas a esse respeito. Bem ciente do impacto
público das suas eventuais opiniões – tal invalidaria a sua continuidade na Vaccum Oil e
potencialmente colocaria em perigo não só a sua vida como a da sua mulher – Fernando Pessoa
mantém-se silencioso e observa de longe tudo o que se passa em Portugal.
Foca-se então no desenvolvimento do negócio da Vaccum Oil em Portugal. A empresa dedicava-se
não só à comercialização de produtos refinados derivados do petróleo bem como de outros
produtos, como candeeiros, fogões e esquentadores. Tão cedo quanto 1915 já a companhia
publica também itens curiosíssimos como seja um dos primeiros mapas rodoviários de Portugal
– à altura denominado de Carta )tinerária de Portugal .
Não sendo claro – por falta de documentação – quais as exactas responsabilidades de Fernando
na gestão dia-a-dia da delegação Portuguesa, podemos apenas depreender que, como lhe era
hábito, conseguiria tocar diversos temas. De outra forma não se manteria tanto na mesma
empresa, dado como era ao tédio de funções repetitivas. Um pormenor delicioso – que não
podemos deixar de apontar – é a forma como a publicidade da Vaccum Oil varia ao longo dos
anos, antes e depois de Pessoa. A certa altura os desenhos simples e sem cor são substituídos por
cartazes coloridos e com tons modernistas. Será a mão de Fernando? É muito provável que sim.
Figura 4a
Anúncio de imprensa à gasolina Auto-Gazo, circa 1940
A promoção turística de Portugal está dependente, nos
anos 30, 40 e 50, do desenvolvimento da rede viária
nacional. António Ferro, à frente da propaganda, sabe
melhor do que ninguém que a divulgação das qualidades
turísticas da Costa do Sol só será conseguida em conjunto
com esse esforço de engenharia.
Pessoa já tinha escrito sobre turismo na Costa do Sol e, em
conjunto com Ferro, estava em condições de implementar
uma estratégia simultaneamente publicitária e económica.
É com este propósito que a SPN tem o apoio incondicional
da Vaccum Oil na produção de folhetos publicitários da
rede viária, mapas e outras publicações.
Será o triunvirato Vaccum Oil (Pessoa), SPN (Ferro) e
Ministério das Obras Públicas (Duarte Pacheco) a
empreender este projecto de enorme interesse nacional –
sobretudo perante o push do orgulho nacional enquanto
o alfa e ómega do fascismo suave de Salazar.
II
Irmandade
Desde pelo menos o final de
que Pessoa trabalhava na organização da sua Obra ,
dedicando-lhe as horas que podia, sobretudo nas noites de insónia, observado de longe por
Ofélia, que já não estranhava acordar sozinha de manhã.
O seu escritório estava num dos cantos da casa, localização propositada para que o barulho da
máquina de escrever nunca perturbasse o sono de Ofélia, separado pelo menos por duas portas
de Fernando em pleno acto criativo.
Mas antes da sua própria obra, Fernando dedicou muito tempo a acabar o livro Indícios de Oiro de
Mário de Sá-Carneiro, incluindo no volume as cartas trocadas com o seu irmão de arte . Esse
livro ficou pronto em 1941, nos 25 anos da sua morte, e foi publicado e custeado pelo próprio
Fernando Pessoa. O acto de ter dedicado tanto tempo a Sá-Carneiro não foi mais do que uma
derradeira homenagem àquele que melhor o tinha acompanhado e compreendido,
provavelmente durante os piores anos da sua vida (logo antes e depois de Orpheu).
Sem indicação de editora, apenas foi deixado um símbolo no fundo da capa, uma esfinge impressa
numa moeda romana.161
Depois do tributo, Fernando edita de jacto a sua produção heteronímica – Caeiro, Campos e Reis,
num volume único, seguindo a sua última intuição. O volume vem assinado com o seu nome –
Fernando Pessoa – e a subtil e curta introdução (3 páginas), deita por terra qualquer veleidade
em torno de quem é o verdadeiro autor dos versos apresentados em conjunto pela primeira vez
na sua forma final.
Esta edição, embora nada pudesse ter a ver com Sá-Carneiro, não deixou de ser um segundo
tributo, porque finalmente Fernando Pessoa poderia deixar de ser um desconhecido – algo que
sempre tinha incomodado Sá-Carneiro.
Como Pessoa não tinha um perfil demasiado exposto à censura – isto apesar da sua actividade em
jornais antes de 1925 – não seria de prever grandes dificuldades na aprovação do seu livro. De
facto tudo parecia correr bem, quando o volume sai para as livrarias em 1942. Mas Portugal,
mesmo em contraciclo com o resto da Europa mergulhada na 2ª Guerra Mundial, não deixa no
entanto de estar atento ao que é publicado, sobretudo quando o que é publicado é tão
visceralmente original.
A Censura impede que o livro saia antes do fim das eleições gerais de 1942, que decorriam em
Novembro. Talvez apenas como precaução ou então pela incapacidade notória dos censores
perceberem realmente o impacto que o livro poderia ter, mesmo só contendo versos…
O lançamento foi deitado para o fim do ano e Fernando, percebendo o possível impacto negativo,
não fez em volta do mesmo grande alvoroço. Já o mesmo não pode ser dito pelo meio intelectual
do tempo que, finalmente, via o seu mestre a sair das sombras onde residia há tanto tempo. Os
elogios começam com os Presencistas , que criticam muito favoravelmente o livro de versos,
sobretudo Caeiro.
Ofélia, mais uma vez, serve de cicerone à reacção do autor:
Nunca o tinha visto tão feliz como no dia em que teve o livro na mão pela primeira vez. Lembro-me que o
pousou na mesa e se sentou, começando a chorar com os braços deitados a segurar a cara caída. Cheguei-me
logo ao pé dele para lhe perguntar o que era, mas antes que o perguntasse não falei porque percebi o que ele
Sá-Carneiro, dois meses antes de morrer, define-se entre outras coisas como sendo uma esfinge gorda : O raimoso,
o corrido, o desleal - / O balofo arrotando Império astral: / O mago sem condão, o Esfinge gorda última estrofe do
soneto Aquele Outro , datado de Fevereiro de
. Quanto à moeda escolhida, ela tem o nome Augustus gravado,
referindo-se a César Augusto, o primeiro Imperador Romano a governar o Egipto.
161
estava a sentir. Tinham sido tantos anos, tanto sofrimento. E de repente estava tudo ali. Era como se um
grande peso tivesse saído de cima dos seus ombros.
Há no entanto que registar que os autores do segundo modernismo não foram propriamente
revolucionários – escritores como Torga, Aquilino Ribeiro ou Vitorino Nemésio, embora
magníficos escritores, não aparecem como figuras de quebra, mas de continuidade e, de certo
modo, mais alinhados com o que seria uma espécie de saudosismo redesenhado face a uma prosa
mais modernizada.
Com a sua poesia revelada, Fernando dedica a sua atenção à família, deixando a obra futura
definitivamente para trás – daqui em diante apenas irá traduzir aquilo que já tinha feito em
Português, com a esperança de poder publicar em Inglês; um sonho de sempre. Pouco mais
produz de original, a não ser algumas partes do Livro do Desassossego.
Parece estar finalmente em paz.
A Vaccum Oil mantém-se líder de mercado até pelo menos 1946, dando-lhe um rendimento
elevado e seguro. Isto apesar do regime de Salazar se começar a movimentar no sentido de
estabelecer um monopólio de combustíveis – sobretudo na parte da refinação de petróleo. Sem
grandes gastos, a família Pessoa acumula alguma riqueza, o que lhe permitirá passar o futuro sem
grandes preocupações financeiras. Finalmente ele tinha dinheiro suficiente para não se
preocupar com o dinheiro.
Ofélia aproveita o período tranquilo para começar a pensar finalmente em ter um filho.
Ela tem agora 42 anos, ele mais 12 – 54.
Aceitar o amor é também aceitar reduzir o mundo ao outro. E o passo seguinte concretizaria essa
mesma visão, mudando no mundo apenas aquilo que o amor permite mudar.
Figura 5ª
1ª edição dos versos de Fernando Pessoa, 1942
Ao longo da sua vida de escritor, Fernando Pessoa desenhou
inúmeros planos para a organização da sua obra, sem nunca se
conseguir realmente fixar apenas em um. É apenas na década de
40, com a sua vida familiar estabilizada, que ele finalmente se
concentra na organização final dos seus papéis mais
importantes, nomeadamente os poemas dos três principais
heterónimos.
O volume Poemas surge com cerca de
páginas, contando
com um estudo introdutório de António Mora, que sintetiza o
objectivo neo-pagão do livro.
Deste volume não constava nenhum poema ortónimo de
Fernando Pessoa, que só seriam editados mais tarde, em volume
próprio, mas já financiados por uma editora. Mesmo assim ele
não hesitou em assumir sob o seu nome a autoria dos poemas
dos heterónimos, porventura mais ciente da significação
intelectual dos mesmos. O autor estava numa fase da vida em
que a cisão da juventude deixava cada vez mais de fazer sentido.
III
Fernandinho pequenininho
Apesar de Ofélia Queiroz ter falado extensamente sobre casamento nas cartas que trocou com
Fernando Pessoa no primeiro período do namoro (1920), raramente falava em ter filhos com ele.
Esse foi um tema tocado apenas num postal (reproduzido em baixo)162 e em forma de
brincadeira, mais ou menos inocente.
Com uma casa ampla e cheia de sol – algo que tanto alegrava Ofélia – faltava apenas o movimento
de crianças.
Era apenas natural que Fernando se opusesse, ou pelo menos que tivesse pouca vontade de ter
filhos, devido à sua própria infância. Mas aos poucos Ofélia deve tê-lo convencido que a vida de
ambos só teria a ganhar com esse acrescento. Ele também deve ter percebido que não estava
destinado necessariamente a perpetuar a dor que ele próprio tinha sentido. Além do mais, temos
amplos testemunhos do amor de Fernando pelas crianças.
Tinha tido irmãos mas sentira-se sempre um pouco filho único. Vivia num mundo de fantasia
desde muito pequeno, por força de se proteger contra o que lhe ia acontecendo, e esse mundo
facilitava-lhe a comunicação com as crianças – podia viver também, sem o forçar, no mundo delas
e aparentava assim uma facilidade incrível em se dar com elas.
Escreve poemas para os sobrinhos e até poemas para a Lili, a boneca de louça da irmã Teca.
O hábito de se pôr só apoiado numa perna na rua, sem medo de quem o possa ver, ficou também
famoso nos testemunhos deixados por quem o conheceu. A imitação do Íbis era feita, não só para
a delícia das crianças, mas também dos adultos na sua vida.
No poema Liberdade , que publicara anos antes, numa revista, escreve:
Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,163
Finalmente, em 1942, ele conhece essa mesma felicidade. Apesar de ser uma mãe tardia,
sobretudo para o que se esperaria no tempo, Ofélia fica grávida no fim de 1942 e tem o seu
primeiro filho – Manuel – em Agosto de 1943.
Nesse mesmo ano, talvez revigorado com o nascimento de Manuel, Fernando dá uma palestra em
Lisboa, em que apresenta a uma plateia de intelectuais os conceitos por detrás da sua
heteronímia. O evento, no Teatro da República – curiosamente perto da sede da PIDE – atrai uma
plateia vasta, desejosa de enfim conhecer Fernando Pessoa. Nesse mesmo teatro, em 1917, tinha
Almada Negreiros lançado o movimento modernista às massas, com uma conferência polémica
intitulada Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século XX .
A apresentação de Pessoa é muito menos espalhafatosa e decorre em inteira serenidade. Junto
com mais alguns vultos das letras da época, sobretudo intelectuais, ele discorre sobretudo sobre
as origens e forma da sua escrita e enquadramento da mesma nos fenómenos culturais Europeus
e mundiais da época. O seu desejo por polémica é, nesta altura, nulo.
Os jornais não deixam, no entanto, de marcar o acontecimento.
Várias reportagens dão notícia da conferência, dando relevo a Pessoa enquanto figura maior das
letras nacionais, agora trazido à luz do dia, depois de anos seguidos de obscuridade. A isso ajuda
certamente a proeminência dele enquanto empresário, estando em posição privilegiada para ter
contactos directos com diferentes figuras do regime. Poder-se-ia defender que tinha nascido, não
162
163
Retirado de: Cartas de amor de Ofélia a Fernando Pessoa, Assírio & Alvim, 1996, pág. 163
Seara Nova, nº 526, Coimbra, 11/9/1937
só o seu herdeiro, mas também ele próprio – desta vez simbolicamente, para o público que o
desconhecia. Afinal, e devido a uma vida de publicações dispersas as jornais e folhetos, a sua fama
reduzia-se a um punhado de pessoas que circulavam nos mesmos meios do que ele.
De 1942 a 1945, ocupado como estava com a sua família e também com a expansão da empresa
na Europa, Fernando tem pouco tempo para ampliar a sua fama interna. Além do mais, seria de
todo cauteloso esperar pelos desenvolvimentos da Grande Guerra para sequer pensar nisso com
calma. Embora escreva sobre a guerra, tendo mudado da sua posição inicial de apoiante
Germânico para apoiante das potências aliadas, sente-se nas suas palavras nada mais do que
desabafos mentais, formas delineadas de tentar compreender o desenlace da história mundial e
talvez de tentar prever o seu fim.
O seu maior desafio virá com o fim da guerra.
A Europa destruída vira-se para um pensamento político positivista e matemático e os países
derrotados forçam um esforço descomunal de reconstrução. Pensar-se-ia que seria inevitável um
segundo período de decadência (depois do sentido em 1918). Mas o que viria a ocorrer, à medida
que Manuel Pessoa crescia e começava a aprender a nadar, passeando demoradamente com a
mãe à beira-mar do Estoril, é que a Europa falhada chamava por Fernando e chamava pelas suas
ideias.
Figura 6a
Postal enviado por Ofélia em 25/4/1920
Um dos vários postais enviados por Ofélia tem um bebé a chorar
na imagem, que ela aproveita para usar como brincadeira no texto
interior:
Querido Nininho
Envio-te a fotografia do nosso Fernandinho pequenininho de um
dia… É engraçadinho não é amor? Coitadinho está a chorar
naturalmente foi o paizinho que lhe puxou alguma orelha
É bonito como o pai.
Adeus dá-lhe muitos beijinhos que eu também lhe dou muitos para
ele te dar. Que saudades eu tenho d’eles! .
Adeus amorzinho nunca te esqueças do teu e muito teu
Bébézinho
O que é que diz por baixo? É inglês não é? Tu é que me podias
ensinar-me o inglês.
1945-1955
UM SONHO INGLÊS
Saí e fui jantar ao Imperial com o Coelho. Prometeu
arranjar-me 100 000 réis para a minha viagem a Inglaterra
Diário de 1913
I
Para Londres via SNI
Desde que saiu de África do Sul que Fernando sonhava ir a Inglaterra. Devemos compreender, no
entanto, que o seu sonho não era tanto de conhecer o país mas antes de ser influente lá, de ser
reconhecido como poeta em inglês. E, face à maneira como foi educado, em conjunto com as suas
ambições na vida – ser reconhecido pela escrita – não é de estranhar que esse fosse o seu desejo.
Essa ambição terá esmorecido um pouco com o decorrer dos anos, mas não se afastou
complemente da sua mente.
O destino providenciou que assim não acontecesse.
Com o fim da Guerra em Setembro 1945, dada a rendição do Japão, existiam novamente
condições para que se efectuassem viagens de forma segura ao norte da Europa. É nessa condição
que a família Pessoa visita pela primeira vez a Inglaterra, em Julho de 1946. A viagem é feita por
vapor e dela restaram alguns indícios dispersos na arca dos inéditos, lembrando as memórias da
outra grande viagem de infância, feita há tantos anos atrás.
Mas voltando um pouco atrás…
Depois do falhanço da aproximação do regime a Pessoa nos anos 30, António Ferro, agora preside
o SNI (Secretariado Nacional de Informação), antigo SPN. O nome tinha mudado com o fim da
guerra e Ferro, na segunda aproximação a Pessoa, muda igualmente a sua táctica. É que, no
intervalo de tempo dos dois contactos, Pessoa tinha-se tornado uma figura influente num campo
muito particular, embora restringindo-se a uma posição de bastidores. Esse campo era a
promoção turística.
Residente da tão amada Costa do Sol – linha que vai do Estoril a Cascais – Fernando mantém, nos
anos 30 e 40, uma posição de influenciador, ou lobbyist, para o desenvolvimento de projectos
turísticos na área. Não só aconselha investimentos estrangeiros junto dos bancos, devido à sua
posição de intermediário na Vaccum Oil, como também se involve mais a fundo nos mesmos,
ajudando a conceber estratégias de marketing e comunicação muito originais para a época. Claro
que, por este trabalho, cobra agradáveis comissões.
Esse conhecimento será posto à prova por António Ferro que convida Pessoa para um projecto
que ele não podia recusar: promover a Costa do Sol em Inglaterra. A ideia era começar a captar
visitantes estrangeiros daquele país destruído pela guerra, mas ainda mantendo um alto nível de
riqueza.
Em carta datada de 20/12/1945 Pessoa escreve:
Meu querido António Ferro
Muito obrigado pela sua carta à qual, por falta de tempo e por excesso de compromissos com o tempo
restante, apenas agora lhe consigo responder.
Tenho receio que sua ideia não venha a fruir os efeitos que deseja para ela, mas, como bem sabe, eu fui
sempre a favor de ideias, sobretudo aquelas das quais efeitos dificilmente iriam provir. Julgo que saberá que
em mim ainda reservo boa parte desse idealismo de juventude.
Serve isto para dizer que aceito o seu convite, com a condição que possa viajar com a Ofélia e o pequeno
Manuel. Sobretudo face ao pequeno, não faz muito sentido deixá-lo cá parado com uma ama, quando nós
temos amor mais do que suficiente para lhe dar mesmo em movimento.
Envie-me os pormenores, ou, se achar melhor, telefone-me.
Muito seu,
Fernando Pessoa
É bem visível que Fernando tinha as suas dúvidas relativamente ao projecto de Ferro. E com
razão, porque, apesar da ansiedade de Ferro, a Europa apenas iria reagir positivamente ao fim da
guerra no inicio dos anos 50. Há que entender que Ferro, com a posição já mais ou menos em
perigo (seria destituído em 1950), podia estar a ficar desesperado em ter um grande sucesso em
mãos, sem tempo disponível para esperar até ao fim da década…
Seja como for, em Julho de 1946 todos os pormenores tinham sido resolvidos.
Fernando, Ofélia e o pequeno Manuel seguem viagem, com uma criada, apanhando vapor em
Lisboa e chegando dois dias depois a Londres, apanhando muito mau tempo pelo meio.
Alojados num dos melhores hotéis da cidade, o Savoy, os Pessoa ficam na cidade durante duas
semanas. Presume-se que os gastos terão sido suportados pelo SNI, sem que, no entanto, restem
memórias, muito menos provas, dos mesmos. Esses gastos, porém, não eram muito elevados se
descontarmos a estadia, pois na maioria do tempo sabemos que Fernando estava reunido com
alguns responsáveis de empresas Inglesas ou então em passeio com a família por um dos muitos
parques recuperados da vizinhança.
Londres deve ter causado a ambos uma grande impressão. Todo o vocabulário de Álvaro de
Campos, sobretudo no que se traduzia no reinado das máquinas, estava agora à frente dos olhos
de Fernando, com ruas cheias de automóveis, sinais luminosos e, claro, pessoas de todos os
cantos de um Império ainda mais ou menos florescente. Londres, mesmo ferida, era uma grande
cidade cosmopolita que, com o seu movimento e energia, causava vergonha à Lisboa da época,
calma e adormecida em comparação.
Realçamos as visitas de Fernando a diversos editores. Dessas visitas, uma teve sucesso. Foi feita à
editora Faber and Faber que, na altura como ainda hoje, editava muita poesia. O principal editor
da Faber em 1946 era um escritor Sul-Africano chamado William Plomer, formado na Inglaterra e
que viveu ainda no Japão, que se considerava a si mesmo como Anglo-Afro-Asiático. Como na
imagem mítica de Camões, Pessoa terá entrado no escritório com a sua obra traduzida debaixo
do braço com a esperança de lhe dar um futuro maior do que lhe estava reservado apenas em
Portugal.
A empatia entre os dois foi imediata. Não seria de desprezar o que tinham em comum, e que não
era pouco.
A Faber, que publicava por exemplo Ezra Pound, não terá ficado demasiada chocada com este
poeta múltiplo Português. E embora o sucesso não tivesse sido imediato, os Poems de Fernando
Pessoa (curiosamente na capa não havia referência aos heterónimos), foram editados dois meses
depois e estavam na mão de Pessoa antes do fim do ano.
Figura 7a
Londres (Piccadilly Circus) em 1946
O pós-guerra mostrou-se um período particularmente
difícil para a Europa, a conta com uma gigantesca
reconstrução e, sobretudo, uma tendência mórbida para
um novo recuo degenerativo , como ocorrera depois de
1918.
Desta vez esse recuo far-se-ia sentir na direcção do
objectivismo e do logicismo matemático, com a
introdução de escolas de filosofia analítica em Inglaterra
e autores como Bertrand Russell.
No entanto, este medo reactivo não impedia a rápida
reacção económica e, no início da década de 50, a ilha
voltava a mostrar grandes sinais de vitalidade.
II
The Book of Unrest
A aceitação dos Poems em Inglaterra foi lenta e dentro de círculos muito restritos, embora muito
mais efusiva do que a recepção dos seus poemas em Inglês anteriormente propostos a editores
daquele país. O sucesso relativo deixou Fernando num impasse problemático: havia razões para
esperar mais alguns anos e deixar a estranheza da sua heteronímia penetrar os círculos rígidos e
cada vez mais influenciados pelo objectivismo, ou então tentar uma outra via: publicar a sua
prosa.
O Livro do Desassossego nunca foi um livro fácil para Fernando Pessoa. Definido desde início
como um não-livro, mais a incorporação de uma vida feita em livro, não havia nenhuma forma de
o sistematizar sem lhe tirar as características principais, nomeadamente a sua natureza
fragmentária.
A intenção de o publicar – e logo em Inglês – terá algumas conotações particulares,
nomeadamente a expiação de muitos demónios ainda presentes na sua psique. O Livro continha
muitas passagens da sua juventude e uma energia negativa muito evidente, advinda de uma
depressão que nunca chegou a ser efectivada (ou até admitida). Enquanto obra literária, o seu
valor era inegável e foi isso que lhe garantiu a continuidade na Faber. Claro que os editores
desconheciam o real significado do que estavam a ler, enganados que eram pela beleza clara das
palavras de Vicente Guedes – no final o único autor do Livro.
A ajuda de Plomer, o editor da Faber, foi essencial na tarefa de organizar o Livro.
O resultado final foi um livro com cerca de 300 páginas, em que os grandes textos se
intercalavam com prosas mais curtas, a maneira de interjeições ou intermezzos numa grande
ópera clássica. A visão do Livro enquanto canção não será de todo descabida se considerarmos
como os textos principais se assomam como verdadeiros solos, à frente de uma melodia de
fundo que se compõe a si mesma num tom grave e muitas vezes perturbador.
O título The Book of Unrest faz transparecer uma imagem de uma certa intranquilidade que já não
é desassossego, pois Fernando tinha virado essa página da sua vida e as outras páginas soltas, as
do Livro, eram momentos fixos e lembrados, doloroso e reais, mas passados. A intranquilidade
vinha, pelo menos para ele, não tanto de continuar a sentir as mesmas dores, mas do facto de as
já ter sentido anteriormente. O processo de cura era prolongado – e mesmo sem fim – e era de
esperar que, na via futura, houvessem obstáculos que o fizessem recuar de quando em vez.
Talvez a própria edição do Livro possa ser considerada um recuo pois, em rigor, nada o obrigava
a insistir na sua publicação. Será que ele, mesmo no meio de uma amena tranquilidade, ainda
sentia o troar dos demónios distantes, sobretudo quando eles tinham ficada na impressão eterna
da tinta em papel? É muito provável que o exercício de edição seja um exercício psíquico, de
expulsão desses mesmos demónios, tanto quanto era um exercício para obter fama e
reconhecimento.
Não podemos deixar de transcrever um dos textos tardios que ele acaba por escrever apenas em
Inglês para o Livro, e que ilustra bem o que dissemos antes:
The clock that sits behind me, in the empty house, drops slowly the clear four-folded sound of 4 am at night,
because all are deep asleep. ) haven’t slept yet, nor do ) hope to sleep. Without any distractions, and no
reason to sleep, or because the my body weights me down, impeding rest, as I lay in the shadows vaguely cast
by the street lamps and, by them made even more lonely, for my weird and laden dead body silence.
) don’t know what to think, stricken with sleep ) have; and ) can’t feel, from the sleep i cannot seem to have.
All around me is the naked universe, abstract, made of nocturnal denials. )’m split in being both tired and
trouble, and I can almost touch the metaphysical mystery of things with a bodily sensation.
Sometimes my soul goes soft, and then the shapeless details of everyday life float in the surface of my
consciousness, and )’m throwing things at the shallow of not being able to sleep. Other times ) wake inside
middle-sleep in which I stagnated, and vague images, made of involuntary and poetic colours let slide by my
unawareness their noiseless spectacle. My eyes are semi-closed. A far away light beckons my view, the pubic
street lights downstairs, in the abandoned ends of the street.
To end, sleep, to change this gapped conscientiousness by better melancholic things, said in secrecy to the
one that knew me now!... To cease, to pass by fluid and river-like, flow and reflow of a vast sea, in visible
shores in the night in which we truly could sleep!... To be no more, unknown and external, movement of tree
branches in fair away avenues, slow fall of leafs, known in sound more than in fall, tall thin sea of faraway
foam, and al the undefined shapes of parks at night, lost between infinite unravels, natural dark labyrinths!...
To end, to finally end, but with a uncanny survival, to be page of a book, a piece of lose hair, the waving of a
creeper by the open window, the meaningless steps in the slim turn of the road, the last of the smoke high of
the sleeping village, the warmth of the whip of the wagon master at dawn… The absurd of it all, the mess,
being erased – all but life itself… And ) sleep, in my own way, without sleep or rest, this vegetative life of
guessing, and beneath my eyebrows without calm hovers, like the quiet foam of the dirt laden sea, the
faraway reflexes of the mute street lamps.
I sleep and unsleep.
From the other side of me, beyond where I lay, the silence of the house touches infinity. I hear time fall down,
drop by drop, and no drop that fells can be heard. Memories are oppressed by the physical heart, reducing
them to nothing, of all that once was. I feel my head materially placed in the pillow in which she is. The
outsider of the pillow has, with my own skin, the subtle touch of someone in the shadows. My own ear, in
which I stand, is mathematically imprinted into my brain. I blink from tiredness, and my eyelids make the
smallest of sounds, mute, in the whiteness of the raised pillow. I breathe and sigh, and my breathing happens
– not really mine. I endure this pain without feeling of thinking. The house’s clock, fixed in the bottom of
things, sound the dry and null half hour. All feels like so much, everything is so deep, everything if so dark
and cold!
I spend time, I spend silences, shapeless worlds go by me.
Suddenly, like a child of Mystery, a rooster sings unknowing of the night. I can sleep, because it is morning in
me. And I feel my mouth smiling, slowing moving the creases in the pillow that holds my face.
) can let myself go live, ) can sleep, ) can ignore myself… And, through the new sleep that darkens me, ) can
remember the rooster that sang or he is, truly, singing a second time already.164
O texto anterior, embora aparentemente depressivo, parece mostrar apenas a importância da
memória e a presença contínua dos fantasmas do passado, não completamente mortos pelas
sessões de psicanálise com Egas Moniz.
A literatura, sobretudo dentro do Livro, servirá a Pessoa para lidar com estes fantasmas
ocasionalmente e não já como forma de os aumentar, sistematicamente.
Figura 8a
William Plomer, circa 1933
William Plomer, muito viajado e aberto a diversas tendências artísticas
– e até sexuais, visto que era homossexual – desempenhou um papel
essencial na publicação da obra de Pessoa em Inglaterra. A sua
abertura de espirito e companheirismo foram essenciais para que
Fernando Pessoa pudesse entrar num meio literário muito fechado e
elitista, sendo progressivamente aceite como um dos mais influentes
escritores da sua geração.
A influência da obra de Pessoa, sobretudo do Livro, é notável nos anos
50, junto de outros poetas mas também dos filósofos que começavam a
propor de forma estruturada o existencialismo ateísta. Para estes, o
Livro do Desassossego surgia como a perfeita reflexão do homem
moderno, perdido dentro de si mesmo e perdido dos seus valores
essenciais.
164
Fernando Pessoa, The Book of Unrest, Faber and Faber, London, 1949, pág. 203.
III
A mudança para Inglaterra
Depois de publicar o Livro em inglês, Fernando olha com cada vez mais cuidado a opção de se
mudar para Inglaterra, sobretudo tendo em consideração o clima politico em Portugal, que
insistia em perseguir a maioria dos intelectuais não-alinhados com o regime.
Tem família lá, o que lhe facilitaria imenso a integração e amplas possibilidades de se manter na
Vaccum Oil, agora (início dos anos 50) já Mobil, depois de várias fusões com outras empresas do
sector. O arranque da economia Inglesa significava uma cada vez maior necessidade de
fornecimento de combustíveis, sobretudo no sector privado.
A conversa não pode ter sido fácil com Ofélia. A fuga seria menos significativa para Fernando,
com poucos amigos íntimos tirando a sua irmã, mas para Ofélia era o mesmo que mudar de
continente, ou de planeta. Habituada às visitas regulares às irmãs e aos pais, Ofélia resistirá até á
última a transição, mas, por amor, seguirá Fernando Pessoa com o filho para Londres. Não terá
certamente ficado indiferente às ameaças à segurança (e sempre frágil saúde) de Fernando e, por
extensão, a si própria e ao seu filho.
A casa do Estoril foi posta à venda e todos os investimentos da família transferidos para um
banco Inglês por intermédio da Vaccum Oil. Os documentos de Pessoa empacotados com todo o
cuidado e enviados para a nova casa em Londres, uma town house com dois andares perto do
bairro financeiro.
Sendo assim, por volta de 1952 tudo estava preparado para partirem.
A chegada a Londres, em Fevereiro de 1952 coincide com outra notícia: Ofélia estava grávida
novamente. Nove meses depois nasce o segundo filho dos Pessoa, desta vez uma rapariga a quem
dão o nome de Madalena.
A estadia dos Pessoa em Londres é feita sem grande alvoroço, tendo Fernando de se habituar a
uma nova rotina e ritmo de trabalho. Entretanto Ofélia aproveita para a aperfeiçoar o Inglês junto
das outras mulheres dos administradores da Mobil, quando se reúnem para o chá toda as tardes,
circulando amigavelmente entre todas as respectivas casas. As memórias de Portugal são
mitigadas em inúmeras cartas que Ofélia escreve regularmente, por vezes com intervalos de
apenas dois dias.
Numa delas ela dá conta dos esforços extracurriculares de Pessoa e dela própria na nova
cidade:
Querida irmã,
Não estranhes que não te tenha escrito há dois dias porque estivemos, o Fernando e eu, em corridas na
esperança de comprarmos os restos dos móveis de sala e de quarto. Tenho tido tanto trabalho mas estou feliz
porque tenho o meu maridinho ao pé e a felicidade é ainda maior quando olho para os meus filhos, já tão
crescidos, não imaginas. Tens de os ver no Natal sem falta.
Hoje fomos almoçar com um senhor muito simpático que trabalha numa universidade e que queria muito
conhecer o Fernando. Ele nem o queria ir falar com ele, tu vê lá. Mas eu insisti. Ele quis que eu fosse também,
mas só para o apoiar porque continua muito tímido quando lhe falam da escrita. Ele nunca vai mudar.
Acabaram por combinaram uma palestra que ele vai dar aos estudantes universitários e ele ficou muito
excitado e ria nervoso, como eu já bem o conheço.
Depois do almoço deixei-os aos dois e, no caminho para casa, parei na casa da Sr. a Samuel para discutirmos os
preparativos para a coroação, estou tão excitada que nem sabes; há uma tal sensação no ar na cidade, todos
estão desejosos que o dia finalmente chegue!165
165
Carta datada de 18/10/1952.
O dia a que Ofélia se refere era o dia da coroação (coronation) da Rainha Isabel II, que viria a
ocorrer em 2 de Junho de 1953. A verdade é que as preparações demoraram dezasseis meses e
passaram por inúmeras fases, algumas delas menores, como aquela em que certamente Ofélia
estava envolvida com as suas amigas londrinas. Estas comissões podiam ajudar com as
decorações ou então organizando encontros locais nos seus bairros de modo a estruturar a forma
como seria acompanhado o grande dia.
Já quanto à palestra de Pessoa, esta teve lugar um mês depois do encontro com o senhor da
universidade . A universidade era Oxford (a uma hora de Londres) e o senhor, um professor de
literatura cujo nome se desconhece, conseguira organizar uma conferência sobre o modernismo
centrada nas figuras de T. S. Elliot e Fernando Pessoa.
A palestra, intitulada Modernist Expression in XX Century Literature teve uma grande
repercussão nos círculos culturais da época, juntando aqueles que eram os dois principais
defensores de teorias de despersonalização na literatura moderna na Europa. Nascidos no
mesmo ano, Pessoa e Eliot partilhavam muito no que toca a ideias e conceitos e seria
imensamente curioso imaginar a reacção dele à palestra. Infelizmente, ou talvez não, só nos
chegou o testemunho de Ofélia, um dia depois, por carta à irmã:
Minha linda irmã,
Escrevo-te depois de um pequeno-almoço de scones que me deixou maldisposta e pronta a jurar nunca mais
comer coisa semelhante. Sabes o que são? Pequenos bolos de pastelaria, com recheios variados? O Fernando
bem me disse que são só comidos à tarde mas eu não resisti e vê lá onde me meti. Agora tenho o estômago às
voltas, mas não te preocupes que é coisa ligeira e que logo vai passar. E tu como estás? Diz-me rápido se o pai
já resolveu o problema de que me falavas. Fiquei preocupada.
O Fernando ontem veio cheio de sorrisos da palestra que te contei. Parecia dez anos mais novo e quando
chegou a casa levantou o Manuel ao alto e pôs-se a dançar com ele. Não que o rapaz estranhasse, mas desta
vez foi tão inesperado que ele até se assustou, o coitadinho! Ele que costuma falar tão pouco, ontem esteve à
conversa comigo enquanto bebíamos chá e ouvíamos o rádio baixinho e falou sem parar da palestra, dos
assuntos que tinha discutido e de um tal de Eliot. Disse que em Portugal isto nunca poderia acontecer. Sabes
que eu pouco percebo de poesia, mas percebo de felicidade e sei-te dizer que isso é tudo o que interessa na
vida, é veres aqueles de quem gostas felizes.166
Terão Pessoa e Eliot mantido o contacto? Não restaram evidências disso, mas, mesmo que o
contacto de ambos tivesse sido apenas nesta curta palestra, certamente que nenhum dos dois
terá ficado indiferente a uma espécie de reflexo que surgiu do nada – um contraponto à sua
própria existência literária numa outra presença tão semelhante à sua.
Figura 9a
T. S. Eliot na capa da Time de 6/3/1950
Reconhecido em 1948 com o Prémio Nobel da Literatura, T. S. Eliot é
considerado como uma figura-chave na evolução da poesia em língua
Inglesa no Séc. XX, sendo considerado o maior dos modernistas
Ingleses.
A vida de Eliot tem estranhas coincidências com a de Pessoa, que
começam com o mesmo ano de nascença e continuam com o facto do
Americano naturalizado Inglês ter tido uma carreira como editor e
como empregado de escritório trabalhou num banco . Eliot foi
igualmente uma figura de proa no modernismo Inglês, estabelecendo
muitos dos mais famosos poemas modernos naquela língua e
defendendo uma teoria da despersonalização na literatura.
Embora reconhecido no seu país, Eliot foi sempre um expatriado ,
identificando-se muito mais com o seu país de acolhimento.
166
Carta datada de 21/11/1952.
1955-1963
É A HORA!
O êxtase violeta exílio do fim do poente com os montes.
Livro do Desassossego
I
Uma Mensagem
Num curioso texto datado de 8/10/1919 Fernando Pessoa escrevia aquele que, à altura, era o seu
sonho favorito:
O MAJOR
Nada há que tão intimamente revele, que tão completamente interprete a substância do meu infortúnio nato
como o tipo de devaneio que, na verdade mais acarinho, o bálsamo que com mais íntima frequência escolho
para a minha angústia de existir. O resumo da essência do que desejo é só isto: dormir a vida. Quero de mais à
vida, para que a possa desejar ida; quero de mais a não viver para ter sobre a vida um anseio demasiado
importuno.
Assim, é este, que vou deixar escrito, o melhor dos meus sonhos preferidos. À noite, às vezes, com a casa
quieta, porque os donos saíssem ou se calem, fecho as vidraças da minha janela, tapo-as com as pesadas
portas; [...] num fato velho, aconchego-me na cadeira profunda, e prendo-me no sonho de que sou um major
reformado num hotel de província, à hora de depois de jantar, quando ele seja, com um outro mais sóbrio, o
conviva lento que ficou sem razão.
Suponho-me nascido assim. Não me interessa a juventude do major reformado, nem os postos militares por
onde subiu até àquele meu anseio. Independente do Tempo e da Vida, o major que me suponho não é
posterior a nenhuma vida que tivesse; não tem, nem teve parentes; existe eternamente àquele viver daquele
hotel provinciano, cansado já de conversas de anedotas que teve com os parceiros na demora.
Claro que esta era uma visão da juventude , num período em que ele não conseguia vislumbrar
um futuro diferente. Mas, no entanto, há neste texto algo da realidade que ele iria viver no meio
dos anos 50 em Londres.
Com 68 anos, em 1956, ele reforma-se da função que desempenhava na Mobil e pára com toda a
actividade comercial. Tinha ganho o suficiente para duas vidas e o futuro da mulher e dos filhos
está definitivamente assegurado em investimentos financeiros e imobiliários.
Esta condição de reformado da vida deve ter-lhe agradado sobremaneira. Podemos imaginá-lo
sentado na tal cadeira profunda, lembrando uma vida que, depois de muitos dissabores, lhe
trouxe algumas grandes alegrias e contentamentos. Tinha agora uma família, dois filhos e uma
carreira literária internacional, se bem que ainda pouco desenvolvida. Mas não interessava, o que
realmente interessava era ter atingido esse patamar de sucesso, esse degrau de evolução, ter
atingido alguma daquela paz ilusória que sempre procurara desde criança. Um reconhecimento.
No entanto essa vida tranquila não duraria muito tempo.
Portugal chamava por ele novamente. Curiosamente seria a Costa da Sol a impulsionar esse
chamamento, pois o desenvolvimento da Costa, sobretudo com a chegada dos exilados da II
Guerra Mundial, começara a derrubar a estratégia montada pelo SPN/SNI de António Ferro. Os
Portugueses viam com maus olhos a riqueza dos estrangeiros, comparando-a com sua pobreza
por vezes extrema. A emergência dos Estados Unidos no pós-guerra só serve para aumentar esse
contraste e inicia um lento derrubar do regime, que no entanto só cairá em 1974.
Entretanto Ferro é afastado em 1949 devido à caducidade da estratégia do SNI, saindo de
Portugal para Berna, onde fica com um posto diplomático que camuflou uma espécie de reforma
compulsória. Mas, em rigor, é também a própria política do regime que o derruba, sobretudo a
aposta de Salazar na educação. Embora ele tivesse uma ideia de regimentar o ensino, passando a
mensagem do regime, a diminuição do número de iletrados apenas teve como consequência que
um número cada vez maior de pessoas tivessem acesso a novas ideias e conceitos.
Fernando era, há anos, cativado por elementos da oposição – ainda um pouco desagregada – e
amigos intelectuais que tinha deixado em grande número em Lisboa, para servir de intermediário
racional da mensagem da revolução. Ele sempre se parece ter distanciado de uma real acção
política, mas em 1956 ele finalmente toma uma posição, bem à sua maneira: pela escrita.
É em 1956 que é lançado o livro adiado de Pessoa, agora Mensagem, antes Portugal.
Como todos os grandes livros dramáticos – do qual a Bíblia é o maior exemplo - Mensagem, um
pequeno livro de pouco mais de 40 poemas, constitui uma crítica presente com objectivos
futuros, desenhando uma realidade sonhada e possível. Este é o único acto público de Pessoa
contra o regime, porque é escrito em Português na Inglaterra, e porque é apenas lançado em
Portugal. Se Pessoa recusara de imediato a encomenda de Ferro em 1930, aceita agora
tranquilamente o desafio dos amigos, motivado por um ímpeto que não pode ser ignorado.
No entanto, e interpretado enquanto livro nacionalista, poucos se apercebem do seu teor
revolucionário, sobretudo o último poema, que urge à mudança:
NEVOEIRO
Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer –
Brilho sem luz e sem arder,
Como o que o fogo-fátuo encerra.
Ninguém sabe que coisa quere.
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...
É a Hora!
O livro, obra de expatriado suspeito, circula livremente, sem que a Censura – composta sobretudo
por militares – suspeite do seu conteúdo revolucionário mascarado por profundo esoterismo.
Pessoa fica em silêncio para que isso mesmo possa ocorrer, não dando entrevistas nem
escrevendo nada em jornais. Mensagem mais não é que um grito distante de esperança que possa
ocorrer uma revolução em Portugal que derrube o regime e instaure novamente a democracia,
por muito que os intelectuais do regime lhe aprovem o nacionalismo inerente.
Fernando nunca fora realmente um homem de acção, antes um doutrinador, um educador de
almas. A sua obra derradeira é o testemunho fiel dessa mesma missão de vida, simples e linear, se
bem que complexa de compreender. Ele, que tanto tinha conseguido, não consegui ver o seu país
libertado, mas soube ao menos que colaborava para a sua libertação.
Figura 10ª
Dactiloscrito do poema Nevoeiro
Publicada sem qualquer apoio oficial, Mensagem foi bem
recebida pelos meios culturais de Portugal, sendo
anunciada como um livro de pendor nacionalista e de
exaltação de valores queridos ao regime.
No entanto o seu conteúdo era tudo menos elogioso ao
sistema corporativista ditatorial. Desde a estrutura rosacruciana, passando pela escolha de heróis e acabando no
conteúdo explícito de muitos poemas, podem ler-se óbvias
criticas à forma como o país era sufocado num clima de
redução de liberdades sociais e económicas.
Há quem indique que Mensagem era sobretudo
Sebastianista, um livro sem teor prático nenhum, apenas
uma contraposição tardia e obscura aos Lusíadas. Não
concordamos. Nós vemos este livro enquanto uma forte
reacção a um presente estagnado.
II
Honoris Causa
O reconhecimento da obra de Pessoa crescia na Europa do pós-guerra. Depois de ter cessado a
sua actividade profissional, manteve-se activo porque era convidado para falar em universidades
de todo o país e até do estrangeiro, sobre o modernismo e sobretudo sobre os heterónimos e o
sensacionismo. A sua celebridade atingiu o clímax em 1960, quando ele, já enfraquecido, recebe o
título de Doutor em Letras Honoris Causa pela Universidade de Oxford.
Os Poems atingem a 3ª edição e o The Book of Unrest a 2ª.
O reconhecimento, no entanto, não serviu para superar as saudades de Lisboa.
Encontrando-se numa situação particularmente paradoxal, ele agora, e mais uma vez, desejava
estar onde não podia estar. Para sempre insatisfeito – este parecia ser o seu destino. E a verdade
é que as características essenciais da sua personalidade não se diluíram ao longo dos anos,
mesmo com todos os sucessos, profissionais e pessoais. No fundo do seu ser ele talvez se sentisse
sempre o filho esquecido pela mãe , a pequena criança ignorada e deixada ao abandono de uma
vida que o tinha colhido demasiado cedo para a idade adulta.
O tempo de ser criança nunca chegou.
O seu único, e ainda assim grande conforto, consistia nas tardes passadas no jardim a ler e a
partilhar histórias com os seus filhos, sobretudo com Madalena, de oito anos de idade. Com
Manuel já no High School, Madalena restava como seu foco principal nos últimos anos de vida e
ele dedicava-lhe todo o tempo que podia, entre palestras e viagens. Ofélia, sempre carinhosa e
presente, acompanhava-o de longe e ficava para trás quando era preciso. Como sempre. Foi uma
companheira incansável e mostrou o seu amor sempre na persistência e dedicação com que
tratou Fernando ao longo de tantos anos.
A fama, como ele sempre suspeitara, era coisa efémera e sem significado. Mais até que efémera, a
fama dilacera o verdadeiro significado dos sonhos:
O único destino nobre de um escritor que se publica é não ter uma celebridade que mereça. Mas o verdadeiro
destino nobre é o do escritor que não se publica. Não digo que não escreva, porque esse não é escritor. Digo
do que por natureza escreve, e por condição espiritual não oferece o que escreve.
Escrever é objectivar sonhos, é criar um mundo exterior para prémio evidente da nossa índole de criadores.
Publicar é dar esse mundo exterior aos outros; mas para quê, se o mundo exterior comum a nós e a eles é o
"mundo exterior" real, o da matéria, o mundo visível e tangível? Que têm os outros com o universo que há em
mim?167
É claro que certas evidências apenas tomam forma depois de as negarmos. A desnecessidade de
ser publicado parecia-lhe ideal, até ter oportunidade de ser publicado. Talvez apenas na sua
velhice ele conseguisse realmente perceber aquelas palavras antigas. Talvez só então fizessse
sentido perceber que nada na vida se alcança de precioso que se consiga agarrar, que todas as
coisas finais e sinceras são feitas de sentimento alheio a nós.
Como explicar ao outro Fernando Pessoa, àquele apenas focado em si próprio e obcecado com o
seu próprio destino, que a vida não se resumia a ele e que essa era a razão por que o mundo o
parecia ignorar? De facto a celebridade foi-lhe madrasta, mas ela é madrasta para todos os que
torna célebres. A pequena vitória de ser reconhecido logo passa e o que permanece é o
sentimento de ter de recomeçar.
O sonho, tudo aquilo que permanece e é irreal, é a única forma de se manter viva uma recordação
que nunca acontece – essa era a sua visão poética que se tornou a sua própria vida, ao ponto de
ele não viver senão pelo sonho que tinha da vida.
167
The Book of Unrest, pág. 221. Tradução nossa do inglês.
Quando a vida se substituiu ao sonho, ele tentou ainda agarrar-se à necessidade do sonho,
escrevendo. Foi ainda fraco, não conseguindo desistir. Mas era apenas natural que assim fosse,
que nele restasse um fragmento, uma fim de fogo que teimava em não morrer e em lhe sussurrar
que tinha sempre de haver algo mais, algo superior. Ele, mestre em tempos dos ensinamentos
proibidos, sabedor repetido ao infinito do lema alquímico tudo no alto se assemelha a tudo no
fundo , não soube ver completamente o lado mais simples da vida, deixar-se cair no hedonismo
evidente dos sentimentos familiares.
Errou por metade.
Pelo menos não errou por completo, abandonando-se à escrita.
Podemos apenas imaginar o que lhe poderia ter acontecido se, por exemplo, nunca tivesse pedido
ajuda, no longínquo ano de 1925, o ano de uma encruzilhada que poderia ter terminado com a
sua vida muito mais cedo e de uma forma muito mais cruel e dolorosa. A sua luta ficou como
testemunho corajoso de alguém que, mesmo cedendo à tentação da celebridade e do
reconhecimento exterior, não deixou de ser um pai de família adorado e um marido exemplar.
A herança que nos deixou é artística, sim; mas, mais do que isso, sobretudo humana.
O testemunho deixado pelo seu discurso de aceitação deixa-nos essa impressão final:
Senhoras e Senhores,
É com um prazer único que me encontro dentro destes muros ancestrais para receber uma distinção que
certamente não mereço mais do que tantos outros já esquecidos. Desejo ser breve e endereçar uma primeira
recordação à minha mulher Ofélia que, felizmente, longe do fim trágico que se lhe esperaria do nome, tornouse no fim feliz de todas as histórias de que eu fiz parte. Quero lembrar, em segundo lugar, os meus dois filhos.
Podemos deixar uma obra, uma memória, mas nada perdura de nós como o melhor das memórias numa obra.
…
Quanto à honra que me concedem, o que dizer?
A cada qual, como a estatura, é dada a justiça. Uns faz altos o fado, outros felizes. Eu fui feliz e não me posso
erguer mais alto do que agora, para que seja plena a felicidade que sinto. As palavras que escrevi não foram
nada perto das que nunca disse senão em gesto. Há, em tudo o que lêem de mim, o que não está lá e era só
imaginado e isso é que era belo. Mas, por ser belo, imaginado em si mesmo, sentido quanto muito pelo olhar
ou pelo toque da mão na pele.
Escritor? Não. Sonhador inveterado. E, de entre os sonhadores inveterados, homem de acção.168
Figura 10a
Oxford (com vista para a Universidade) circa 1960
Aquando da sua frequência universitária na África do Sul,
Fernando pessoa ficaria habilitado para ingressar numa das
grandes universidades Inglesas. Mas, por diversas razoes
burocráticas (e talvez racistas) foi preterido em favor de um seu
colega de nome Geerdts, que entrou para o Lincoln College em
Oxford.
Por estas razões, ter finalmente entrado em Oxford, mesmo que
de forma honorária, não poderá deixar de ter uma conotação
extremamente emocional para o poeta.
Discurso proferido na Universidade de Oxford em 12/2/1960. O discurso completo não chegou até hoje, sendo a
transcrição efectuada a partir de fragmentos preparatórios encontrados no espólio.
168
III
Quando vier a Primavera
Por volta de Janeiro de 1963 Fernando Pessoa ficou gravemente doente.
Tinha então 74 anos e poder-se-ia dizer que a idade não perdoaria durante mais tempo a
compleição frágil e magra do seu corpo já tão torturado por anos de desleixo e herança genética
desafortunada.
O mais provável é que não existisse apenas uma causa para dar origem à doença que finalmente
lhe trouxe o final de vida, mas antes um concurso de causas: bebida, tabaco, solidão, exílio,
cansaço…
Depois de ter voltado de uma viagem ao norte de Inglaterra, sentiu-se mal à mesa, com dores
intensas no peito que levaram a que fossem de imediato chamados os médicos. Supõe-se que terá
sofrido um problema cardíaco que limitou de imediato os seus movimentos e, quase de seguida, o
impediu de falar. Ficou acamado durante alguns dias, usando um bloco de notas para comunicar
com a família.
Bloco que Ofélia guardou carinhosamente até que ela própria morreu.
Permaneceu em silêncio até Março de 1963, sem demonstrar dor. Na noite de 15 de Março de
1963, por volta das 20 horas, morreu tranquilamente no sono. Minutos antes deitou apenas um
olhar demorado àqueles que estavam ao seu redor. Não morreu sozinho. Rodeavam-no Ofélia,
Manuel, Madalena, duas criadas, o irmão Luís Miguel e a irmã Henriqueta Madalena (Teca) que
tinha vindo de Portugal assim que soubera do acontecido.
A morte foi noticiada nos principais jornais Londrinos e Lisboetas da época, mas os títulos, vagos
e elogiosos, não podiam transmitir a dor de uma família destruída.
O esquife foi depois levado, do soturno e escuro tempo de Londres para uma Lisboa acesa de luz
e calor. Levado de vapor como, em 1901 a sua irmã pequena tinha sido transportada da África do
Sul para Lisboa.
Ao chegarem a Lisboa, no dia 18 de manhã, levaram o corpo para a casa da Rua Coelho da Rocha,
onde a família recebeu amigos e conhecidos para apresentação de pêsames e depois para a capela
do Cemitério dos Prazeres, a 600 metros dali, onde foi reunida uma pequena multidão que
encheu a entrada e desabou para fora dos portões do grande cemitério, fazendo até parar o
trânsito. Entre todos e perto do caixão espreitavam velhos conhecidos: Gaspar Simões, Casais
Monteiro e Almada Negreiros. Muitos dos outros já tinham partido e não podiam estar ali, pelo
menos em corpo presente.
Foi aberto o jazigo da família e o caixão deixado perto do chão do lado direito.
Uma pequena placa comemorativa deixada encostada ao jazigo dizia:
Aqui jaz Fernando Pessoa, Pai e marido amado.
Um dos maiores poetas de Portugal.
Fechada a procissão de enterro e depois de muitas horas se terem passado, caía já a tarde,
ficaram para trás os três que melhor o conheceram. Ofélia deu então ordem para que Manuel
levasse Madalena para o carro que os esperava na entrada do cemitério e, vendo-os na distância,
deitou um último olhar para a janela de vidro tingido que mal dava a perceber os contornos
escuros e macabros do que continha. Esticou e tocou o vidro com uma das mãos e fez desse gesto
uma despedida eterna.
Quando entrou no carro americano que a esperava, Ofélia olhou para os seus filhos e acaricioulhes a cara, primeiro a Madalena e depois a Manuel, que se parecia tanto com o pai. O automóvel
seguiu pela estrada que levava à Rua Coelho da Rocha e depois desceu pelo Jardim da Estrela em
direcção ao Rato. Depois desceram a grande avenida iluminada que desce da rotunda do Marquês
de Pombal, a Avenida da Liberdade, olhando com atenção os prédios novos que entretanto
tinham sido construídos, parando por momentos na praça dos Restauradores por causa do
trânsito.
Os seus olhos fixaram-se ainda nos rebordos trabalhados dos palácios, sobretudo no palácio Foz,
antiga sede de um SPN agora já tão distante no tempo que parecia nunca ter existido. No novo
arranque os pneus chiaram levemente e torceram no sentido do Rossio e depois da baixa.
Ofélia fez sinal ao motorista para que parasse perto de uma pequena rua transversal e saiu
inesperadamente da viatura.
Estava frio e sentia-se um vento marítimo que cheirava a sal. Um cheiro muito diferente daquele
que havia em Londres, onde tudo parecia maior e mais pequeno ao mesmo tempo.
O corpo frágil de Ofélia caminhou durante uns minutos pela rua transversal – era a Rua da
Assunção. Parou no número 42. Uma portada de ferro escondia uma escadaria sem luz que subia
para o primeiro e depois para o segundo andar. A mesma mão que tocara à maneira de despedida
o ferro frio da sepultura tocou novamente na grande porta de ferro.
O regresso seria ainda pela noite. Ao embarcarem sentia-se que algo estava a mudar enquanto o
sol descia no horizonte.
Algo se aproximava do sul.
Estava a chegar a Primavera.
Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.
Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.
Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.
Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.169
169
Poema inconjunto de Alberto Caeiro, datado de 7-11-1915.
ÍNDICE
NOTA PREVIA - 4
I PARTE - A BIOGRAFIA REAL - 7
1888-1905 - LOUCURA - 8
I - Sol em Gémeos, Ascendente em Escorpião - 9
II - Paraíso Perdido ? - 12
III - Menino de sua mãe - 14
IV - As saudades da infância - 16
V - Carnaval em África - 18
VI - Un Soir à Lima - 21
1905-1915 - UM ESTRANGEIRO SEM PAÍS - 23
I - O tio General - 24
II - A invenção de uma literatura - 27
III - És casto - 29
IV - A mulher loura - 31
V - Vida de café - 34
VI - Tudo vive no destino - 37
VII - Dispersão - 39
VIII - O plano de Orpheu - 43
1915-1925 - EROS - 47
I - A queda do eléctrico - 48
II - Escrita Automátca e a "busca pelo amor" - 50
III - Morre jovem o que os Deuses amam - 52
IV - Finalmente, aquém da literatura - 54
V - Meu bebezinho - 56
VI - Olisipo - 58
VII - Vivem em nós inúmeros - 61
1925-1935 - THANATOS - 66
I - Finalmente, Presença - 67
II - A ditadura do espírito - 69
III - Uma segunda oportunidade - 71
IV - Exilado - 73
V - Aleister - 75
VI - Hanni - 77
VII - O sonhador é que é o homem de acção - 79
VIII - A fuga de Lisboa - 82
IX - Conservador-biliotecário na aldeia de Cascais - 85
X - Uma Mensagem inesperada - 89
XI - Se te queres matar, porque não te queres matar? - 92
II PARTE - A BIOGRAFIA ALTERNATIVA - 99
1925-1935 - NON PLUS ULTRA - 100
I - Pulsão de vida - 101
II - Reconciliação (a tempo inteiro) - 103
III - O conforto de sofrer - 106
1935-1945 - OBRA COMPLETA - 108
I - Fuga de Lisboa - 109
II - Irmandade - 111
III - Fernandinho pequenininho - 113
1945-1955 - UM SONHO INGLÊS - 115
I - Para Londres via SNI - 116
II - The Book of Unrest - 118
III - A mudança para Inglaterra - 120
1955-1963 - É A HORA! - 122
I - Uma Mensagem - 123
II - Honoris Causa - 125
III - Quando vier a Primavera - 127