VIII Congresso ALAIC
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VIII Congresso ALAIC
VIII Congresso ALAIC São Leopoldo, 2006 Artigo submetido ao GT Telenovelas e Ficção Seriada As telenovelas como texto e diálogo com o contexto: os personagens e suas trajetórias típicas• Márcia Gomes M. (UFMS/Brasil)* Resumo: Este artigo tem como marco a discussão sobre o papel das telenovelas na construção social da realidade e diz respeito, especificamente, aos limites e possibilidades sugeridos pelo gênero que balizam a apropriação que delas fazem os receptores. Focalizando alguns dos aspectos típicos destes programas, procura-se identificar de que forma as telenovelas podem viabilizar, facilitar ou induzir um tipo de interação cognitiva que chegue a somar elementos ao repertório de conhecimentos utilizados pelos telespectadores para desempenhar-se socialmente. Palavras-chave: Telenovelas, estudos de recepção, composição narrativa. Junto com o interesse por entender as repercussões da inserção da televisão na vida social como um todo, nas últimas décadas tem se intensificado também a busca de conhecimento a respeito da interação do público receptor com determinados produtos que, por distintas razões, têm se destacado dentro do conjunto de propostas oferecidas pelos meios de comunicação. De modo geral, nos países centro e sul americanos as telenovelas são, atualmente, o produto de maior destaque e de maior apelo popular no que se refere à indústria dos meios de comunicação. Os dados referentes à produção e à força competitiva deste gênero, demonstrada seja pela posição deste tipo de programação dentro dos quadros de horários das emissoras, seja pela posição (de supremacia) que ocupa nos índices de audiência dos diversos países produtores, têm despertado um grande interesse em torno a estes produtos. O sucesso e a visibilidade social do fenômeno telenovela têm feito, por sua vez, com que se procure entender e explicar, através de distintos enfoques conceituais e • Os resultados apresentados neste artigo fazem parte da pesquisa “Ficção seriada televisiva e representação da realidade social brasileira. A recepção de ficção seriada brasileira no Mato Grosso do Sul”, que conta com o apoio financeiro da FUNDECT * Professora do Departamento de Jornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, com trabalhos publicados na área de ficção seriada e estudos de recepção. Socióloga, formada pela PUC do Rio de Janeiro, mestre em Comunicación Social na Pontifícia Universidad Javeriana, Bogotá, e doutora em Ciências Sociais na Pontificia Università Gregoriana, Roma. e-mail: [email protected] metodológicos, os motivos e as conseqüências da importância sociocultural adquirida pelas telenovelas nos últimos anos. Este artigo tem como marco a discussão sobre o papel e a importância das telenovelas na construção da realidade social, e diz respeito, especificamente, a como as representações apresentadas por estes programas são utilizadas como recursos que colaboram a somar elementos aos esquemas de conhecimentos que os telespectadores usam para interagir e integrar-se a nível social. O objeto deste estudo é indagar acerca do uso desses programas e do papel da recepção de telenovelas como ambiente e espaço de convivência social, a partir do qual se dá a formação de saberes que interferem na percepção e na compreensão que os telespectadores elaboram de si mesmos e do próprio meio social. O tema de discussão articula, então, a recepção de telenovelas à construção social de conhecimento que se realiza através da televisão. Para explicar como se dá a associação entre as telenovelas e aprendizagem social é necessário entender como são as telenovelas e quais são os aspectos de conteúdo e forma que as caracterizam, e identificar como o que é apresentado por elas é aproveitado pelos telespectadores. Como a interpretação e a produção de sentido é condicionada quer pelo horizonte de expectativa prescrito pelos textos/produtos quer pelo horizonte de experiência introduzido pelos receptores/consumidores1, para compreender como um gênero particular (as telenovelas) atrai, interessa e chama a atenção (também a nível cognitivo) dos telespectadores, e pode também chegar a ser utilizado como um espaço onde os indivíduos examinam (ponderam, refletem e avaliam) a si mesmos e ao meio social no qual participam2, é fundamental que se combine, à análise da recepção, a análise do horizonte de expectativas sugerido pelos textos. E é justamente este o propósito aqui: verificar quais são os elementos que, desde o gênero, podem sugerir os limites e as possibilidades que se concretizam na apropriação e no uso que das telenovelas fazem os seus receptores. Neste artigo são abordadas algumas das especificidades destes textos ligadas aos personagens que compõem as suas tramas e que organizam, através de suas trajetórias características e de seus projetos de identidade social, as aspirações típicas do gênero. A identificação de alguns dos limites e de certas de suas possibilidades peculiares ajuda a compreender, segundo a ótica deste estudo, de que forma as telenovelas podem contribuir, viabilizar, facilitar ou induzir a um tipo de interação cognitiva que chegue a somar elementos ao repertório de saberes que os indivíduos utilizam para desempenhar-se a nível social. Como uma obra não pode ser identificada exatamente nem com o que é o texto, nem ainda com as possíveis concretizações a que dá lugar, mas se posiciona 1 2 H.R. JAUSS, Estetica della Ricezione. H. NEWCOMB, «Toward a television aesthetic». aproximadamente entre cada uma destas duas partes3, este estudo combina a análise sócionarrativa das telenovelas com a realização de entrevistas em profundidade, no intuito de capturar o entrelaçamento entre gênero e recepção. Até o momento foram realizadas 73 entrevistas em três etapas consecutivas: a primeira, no ano de 1999, onde se entrevistou 22 mulheres que viviam nas cidades de Campo Grande (MS), Bagé e Porto Alegre (RS), e um homem que vivia no Paraná; na segunda, realizada em 2004, onde foram entrevistadas 35 mulheres de diversas procedências que viviam em diferentes cidades de Mato Grosso do Sul, e dois homens que viviam em Campo Grande; e a etapa atual, realizada a partir da metade de 2005, onde já foram entrevistados 15 mulheres e três homens que vivem em diversas partes de Mato Grosso do Sul, em Cuiabá (MT), em Dolcinópolis e Guarujá (SP). Explorando justamente a relação entre o modelo de mundo das telenovelas e o acervo sociocultural dos receptores, nas entrevistas se indaga sobre a experiência dos telespectadores com o gênero, os motivos para assistir e a qualidade da relação que têm com as telenovelas, os hábitos e os rituais de consumo ligados aos meios de comunicação e ao gênero, em particular. 1. O gênero telenovelas: Os textos, de modo geral, solicitam certos repertórios de competências para serem decodificados, convidam os receptores a cooperar de certas formas e não de outras, incluem determinados elementos e núcleos temáticos e excluem outros, enfatizam e priorizam determinados recursos e códigos à revelia de outros. Ao selecionar (incluir e excluir) e hierarquizar os aspectos referentes à estrutura temática e narrativa, os textos estabelecem certos parâmetros que orientam, condicionam e dirigem a atuação do público receptor. Visto assim, os textos contribuem para o processo de produção de sentido que se desencadeia a partir da participação e atualização realizada pelos receptores, à medida que fornecem um conjunto de códigos ou estruturas de sentido4 que são posteriormente interpretadas e apropriadas de diversas maneiras, a partir dos códigos ou estruturas de sentido introduzidas pelos receptores/leitores. Deste modo, é também a partir do que propõem os diferentes (tipos de) textos que se pode compreender, por exemplo, os tipos de identificação que emergem da atividade produtiva dos receptores5, e a variedade de 3 W. ISER, L’Atto della Lettura. S. HALL, «Encoding/decoding». 5 S. MOORES, «Texts, readers and contexts of reading». 4 conhecimentos que são elaborados e adquiridos a partir da interpelação do horizonte de experiências dos receptores pelo horizonte de expectativas dos textos. Um aspecto fundamental a ser tomado em consideração quando se pretende definir o gênero telenovela, é que a produção deste tipo de produtos se desenvolveu de forma mais ou menos simultânea em diversos países americanos. Desde os seus primórdios, portanto, o gênero se desenvolve como um produto de identidade plural6, no sentido que relaciona regras comuns do formato com conteúdos e matrizes socioculturais diversos, oriundos da pluralidade e das singularidades apresentadas pelo conjunto de países produtores. Além dos fatores ligados às especificidades do meio televisão, a produção de telenovelas negocia com uma combinação de distintas situações sociais, políticas, culturais, étnicas e econômicas, constitutivas dos diferentes contextos de produção. O contato com realidades distintas introduz uma dinâmica particular ao gênero7, pois sem que se anule a identidade entre vários diversos8, a reprodução do sistema/gênero interage sistematicamente com uma perene introdução de variações nos elementos de “repetição” e, em certa medida, com inovações em alguns dos aspectos da construção narrativa. O objetivo aqui não é, no entanto, o de se fixar nas diferenças relativas às várias concretizações do gênero. Pelo contrário, a finalidade neste capítulo é a de determinar – levando em consideração a identidade plural destes produtos – alguns dos elementos que identificam e tipificam esta classe de programas televisivos. Desta maneira, a análise deste gênero implica o discernimento dos elementos que caracterizam o modelo de interação comunicativa proposto pelas telenovelas, levando em conta, paralelamente, os elementos que se vinculam às especificidades dos diferentes contextos de produção, e que por isso conferem certa particularidade que situa e expressa a riqueza e os contrastes das matrizes histórico-culturais dos países americanos. A finalidade de discernir as características centrais do gênero no que se refere aos seus personagens e à sua tipologia temática é a de estabelecer parâmetros para entender a apropriação desses produtos. A partir do que propõem os textos pode-se verificar, por conseguinte, se e de que maneira os vários aspectos do gênero se exprimem na leitura e na apropriação feita pelos telespectadores. Todos os textos narrativos podem utilizar todo tipo de recursos/códigos disponíveis, mas a elaboração de um texto inserido em um determinado gênero será marcada pelo uso 6 J. MARTÍN BARBERO, «Memory and form in the Latin American soap opera». N. MAZZIOTTI, «Creer, llorar, reír». 8 O. CALABRESE, La Era Neobarroca, p.47. 7 de certos recursos/códigos, e serão estes mesmos a garantir não somente a presença de certos elementos específicos, mais também a centralidade de alguns deles nos textos narrados. As telenovelas, como programas televisivos inseridos na lógica da produção por gêneros, compartilham uma série de elementos comuns; isto é, compartilham um estoque de sentido, um modelo de mundo9 e, portanto, de objetos e de eventos, de ações e de atores, que caracterizam seja os temas recorrentes nestes textos seja a forma que eles assumem. Para delimitar o modelo de mundo proposto pelo gênero é importante, portanto, individualizar alguns dos elementos que, pela sua centralidade, conferem especificidade às histórias contadas pelas telenovelas. Entre estes aspectos se pode salientar, por exemplo, o universo da ação, os personagens centrais, o que eles representam e as funções que desempenham, os atributos característicos e as temáticas recorrentes que, no conjunto, configuram e delimitam a identidade de uma classe de produtos. Um primeiro elemento que auxilia a circunscrever o gênero é a especialização em um determinado setor do mundo social, visto que as histórias contadas pelas telenovelas se remetem principalmente ao mundo da casa, e ao que existe no mundo da rua como extensão do mundo da casa10. A vida pessoal e privada é, nas telenovelas, o centro da vida dos personagens: é o lugar desde onde se cria e se define toda a sorte de aspectos que tecem a trajetória e o projeto de vida dos indivíduos. Na hierarquia de esferas que prima no gênero, pode-se afirmar que a vida doméstica/familiar ocupa uma posição de primeiro plano, cuja supremacia lhe confere o poder de determinar e de impor a sua própria lógica e razão a todas as outras esferas que compõem a vida dos atores sociais. Deste modo, é o terreno das emoções, das relações afetivas, dos valores familiares e das relações de parentesco que vai prevalecer no universo das telenovelas e que vai, adicionalmente, informar a ação dos personagens e o desenvolvimento dos enredos. “Não seria o romantismo não [o tipo de emoção que mais sente com as novelas]. Eu acho que seriam aquelas emoções de entrosamento, de família, de lealdade, de coisa forte mesmo, aquilo que me prende. Muitas vezes eu choro, quando eu vejo aquelas coisas. Talvez um reencontro de pessoas que não se vêem há muitos anos, que por algum motivo tiveram caminhos diferentes.” (Elci, 56 anos) “O enredo tá muito bom também. O enredo da novela [Força de um desejo], essa casou com o barão e foi morar na fazenda. E teve esses dois filhos lá, sendo que um não era do barão, não é? Era daquele que tinha sido namorado dela e numa ocasião se aproveitou dela e ela ficou grávida. Ainda não tá bem delineado aí na novela, mas ele é filho do outro. Tanto é que eu acho que ele vai gostar da irmã e depois é que vão descobrir que eles não podem casar.” (Antônia, 91 anos) 9 F. CASETTI – L. LUMBELLI – M. WOLF, «Indagine su alcune regole di genere televisivo». Sobre as categorias de casa e rua, ver R. Da MATTA, Carnavais, Malandros e Heróis, 70-79. 10 Como o mundo da casa/privado é, segundo a divisão social dos espaços11, expressão e lugar do feminino, a opção por um modelo de mundo centrado e informado pela dimensão familiar/doméstica traz consigo, como contraponto, o fato de que são as mulheres, desde o personagem central da heroína, as que exercem efetivamente o protagonismo nas histórias contadas pelas telenovelas. “Lembro dessa [Os Ossos do Barão, 1973/1974], porque além de ser uma novela que tratava três fases de uma família, não sei, por a gente já ter esse negócio desses nossos velhos na família, era aquela intransigência do patriarca, né? O patriarca é que mandava em tudo, mas a família é matriarcado, né? A força toda é da mulher, e na novela tava caracterizado isso: o cara esbravejava, mandava, falava; inclusive ele morreu em pé. Eu me lembro muito dessa última cena, porque ele morreu em pé encostado, mas quem mandava e desmandava dentro de casa era a mulher. E é uma coisa que acontece muito na nossa família, aconteceu muito na nossa família. O vovô Silvério mesmo era um homem boca suja, brigão, mas quem mantinha a coisa ali era a vovó Julieta. (risos)” (Elmina, 57 anos) 2. Os personagens: Dentro do microcosmo proposto pelo mundo das telenovelas, os personagens se posicionam e se constroem em relação ao personagem principal: os que estão em contra e os que estão a favor do que este empreenderá. Assim sendo, após a apresentação de uma situação inicial, onde são configurados os motivos que induzem a heroína no seu percurso de busca e a superar as sucessivas provas que este comporta, os outros personagens centrais se posicionam de acordo com as funções de apoio ou de contraste que exercem nas distintas etapas do trajeto do actante. O objetivo final da trajetória da heroína é o de restabelecer uma ordem social que foi inicialmente subvertida12 ou de conformar uma nova ordem social, onde a heroína poderá usufruir do objeto ou da posição cujo desejo lhe há instigado a lançar-se no seu percurso de luta pessoal. Em oposição à heroína, o papel (e as funções) da “malvada” é executado por um ou mais personagens, entre os quais está sempre o personagem da “falsa heroína”. Os personagens da heroína e da falsa heroína se constroem através do antagonismo entre duas versões distintas de projetos femininos dentro da sociedade contemporânea. O personagem da heroína é caracterizado por uma série de atributos que, de um lado, permitem aos leitores identificá-la como tal e, de outro, justificam a sua vitória (e a recompensa obtida) no desenlace das histórias. O personagem da heroína tem o seu desempenho fortemente marcado pelo dualismo maniqueísta que contrapõe o bem ao mal, o verdadeiro ao falso, o espiritual ao carnal, os que merecem ser recompensados dos que devem ser castigados: ou 11 12 R. DA MATTA, A Casa e a Rua. A. J. GREIMAS, Del Senso. se está de um lado, ou se cairá no outro. Esta mesma lógica se aplica à sua rival/oponente, que lutará com a heroína pelo “amor” do protagonista masculino: por sua “debilidade de caráter” ou, em últimas, por sua “maldade”, à falsa heroína deve ser negada a petição do reconhecimento da legitimidade do projeto de vida que representa e, portanto, ser castigada por ser o que e como é. A heroína é frágil, a oponente é forte; a heroína é abnegada, a outra impõe e luta pelos seus propósitos e objetivos; a heroína é humilde, a oponente é ambiciosa; a heroína é fiel, a outra é volúvel/infiel; para a heroína o sexo é conseqüência do amor, a outra separa - e às vezes distingue - o sexo do amor. A oposição entre os dois personagens também se expressa no tipo físico que apresentam: se uma é loira, a outra é morena ou ruiva; a heroína tem um tom de voz suave e angelical (estilo Grecia Colmenares), e uma forma tranqüila de falar e de gesticular; a oponente é inquieta, agressiva e arrogante. A seu favor, a oponente possui geralmente o apoio da família do herói, é da sua mesma classe social, e freqüentemente incorpora a figura de uma parente, amiga de família ou companheira de trabalho, para que possa ter acesso a ele e à sua família sem muita dificuldade. “ela [heroína] tem esse amor total, esse amor total por quem ela se apaixona. Ela faz de tudo, sofre, aquele sofrimento que ela vive durante o enredo. Só que ela vive esse sofrimento nunca com ódio, não tem aquele ódio que todo mundo tem [risos], né? Ela é benevolente, ela é compreensiva, ela é abnegada, ela tem um tanto de resignação, porque esses valores levam a isso. […] ela só vai pra cama, por exemplo, depois que realmente tem aquela certeza que aquele é o homem da vida dela: E ela só vai viver a sexualidade pra esse homem.” (Rosana, 39 anos) “O personagem dela [Maria Regina, Suave veneno] é uma pessoa egoísta, assim, muito cruel. Pra começar, ela não quer dividir; quando descobriu que aquela menina era filha do pai, ela ficou com muita raiva, ela é muito egoísta. […] Ela pode ser um pouquinho boa mãe, muito pouco também. Ela não dá muita atenção às crianças, sei lá. Ela não é boa mãe. […] ela não ama o marido, né? Ela não gosta do marido dela e faz aquele papel, tem um caso com aquele motorista.” (Valdecy, 37 anos) A polaridade entre os dois personagens é acentuada, adicionalmente, pelas relações que estabelecem com os outros personagens dos enredos: com os pais, com os irmãos e irmãs, com os primos e primas, com as crianças, com os vizinhos, com os empregados, com os ricos, etc. Enquanto que a heroína é carinhosa com as crianças e as protege das agressões dos adultos (Antonella, Argentina), se senta na mesma mesa com os empregados (Guadalupe, Miami), alfabetiza aos pescadores (Ruth, Mulheres de Areia, Brasil), é atenciosa com os vizinhos (Luzia, Gorrión, Peru), se preocupa com a saúde da esposa do seu namorado (Gaviota, Café, Colômbia), a oponente/má é individualista, “egoísta”, interesseira, classista e arrivista. “Ela [Júlia, Andando nas nuvens] é boa porque tem um rapaz que gosta dela, ele é desquitado e a ex-mulher dele quer voltar com ele. Então fez a mãe dele ligar pra ela, falar que é pra ela não namorar ele, que ele é casado e vai voltar com a mulher dele. E ela gosta do rapaz, mas tá abrindo mão de tudo pro rapaz voltar com a mulher dele. E ela é muito carinhosa com as irmãs e com o pai. Ela faz tudo pelo pai, faz tudo pelas irmãs, então ela é muito boa.” (Jacira, 59) Através da sua fragilidade, dos contínuos obstáculos e dificuldades (físicas, econômicas, sociais) que tem que ultrapassar, das agressões morais que deve suportar por estar em uma posição menos favorecida, a heroína cativa a simpatia e a cumplicidade do público, que é solicitado a assumir a posição da vítima/heroína, a compreender o seu ponto de vista, a tomar para si as suas dores e penas. Os telespectadores, então, são intimados a aliar-se, a “proteger” e a apoiar a vítima13 nas diversas ações que esta terá que empreender para conquistar o objeto ou a posição de desejo. É uma espécie de simpatia provocada pela lástima, pelo apoio aos mais “fracos”, pela solidariedade em relação aos menos favorecidos e aos que sofrem, pela evocação do sofrimento e da dor vivida ou já experimentada pelo público receptor. O carisma do personagem também será acentuado pelos seus atributos e características (índices), que dão a entender que a posição inicial não é aquela que o personagem deveria e/ou “mereceria” ocupar. A heroína é “bonita” (Manuela, Argentina), é generosa e gentil (Maria Luisa, La Madre, Colômbia), inteligente e educada (Ruth, Mulheres de Areia, Brasil), possui uma capacidade excepcional de superação intelectual (Gaviota, Café, Colômbia; Esmeralda, México), é com freqüência a filha desconhecida de alguém muito rico (Marimar, México), ou tem uma capacidade surpreendente de fazer fortuna a partir do nada (María, Simplemente María, México). É justamente a posição relacional da heroína que determinará a forma por meio da qual ela operacionalizará a sua ação. Ela terá que transcender os seus limites e as suas limitações dentro de um jogo cujas regras não tem o poder de estabelecer, terá que transitar por códigos sociais que lhes são alheios, terá que manobrar termos impostos por uma economia cultural dominante cuja sintaxe das relações sociais desconhece. A trama se desenvolverá através da luta entre duas lógicas de ação distintas e opostas: a dos fortes e a dos fracos; a dos que tem poder e a dos que lutam por obtê-lo (ou, pelo menos, tentam sobreviver a ele); a dos que pautam as suas ações pelo cálculo das estratégias e a dos que guiam os seus movimentos pela recursividade das táticas14. A heroína encarna a posição dos fracos, dos oprimidos, dos pobres, dos que sofrem todo tipo de injustiças; a má/oponente e os ricos representam os fortes, os que têm o poder de controlar as situações, os que podem planejar e articular os elementos para construir uma realidade que lhes 13 Referindo-se à heroína, Martín Barbero afirma que é “un personaje cuya debilidad reclama todo el tiempo protección – excitando el sentimiento protector en el público – pero cuya virtud es una fuerza que causa admiración y en cierto modo tranquiliza”. J. MARTÍN BARBERO, «Matrices culturales de la telenovela», 146. 14 Sobre os conceitos de tática e estratégia, ver M. DE CERTEAU, L’Invention du Quotidien, 20-30, 86-89. favoreça, ou melhor, para reproduzir uma situação que de por si lhes favorece. A heroína terá, portanto, que aproveitar-se das situações criadas pelos que tem poder de criar, de produzir situações, porque manejam as regras por meio das quais se inscrevem as relações sociais. Neste sentido, o sucesso e a “vitória” da heroína se construirá/conquistará por meio da capacidade de saber aproveitar das ocasiões que se apresentam, de tomar as decisões corretas no tempo preciso, da congruência moral das suas práticas, da expressão pragmática de seus valores no cotidiano, da (re)afirmação coesa e permanente do projeto de vida que pretende realizar. O protagonismo masculino se apresenta geralmente dividido em dois personagens: o herói e o justiceiro. O herói é atraente, ou melhor, é o mais “atraente”, e é o que se encontra na posição social mais elevada. Este personagem, porém, é geralmente teimoso, ciumento e manipulado por sua família; e são estas características que lhe impedem de enxergar as grandes qualidades, os bons sentimentos e a fidelidade demonstrada pela heroína. Em conseqüência disso, o herói não estará ao lado da heroína, na maioria dos casos, quando ela terá que atravessar os momentos mais difíceis e superar os obstáculos mais complexos. A apoiá-la na realização das provas será, em geral, o personagem do justiceiro, que re-conhecendo as qualidades e valorizando o projeto de vida represento por ela, lhe oferecerá o seu apoio, a sua ajuda e a sua fidelidade. O justiceiro, portando, é um aliado/ajudante da heroína, é o encarregado de fazer com que a “justiça” prevaleça, com que a heroína supere com sucesso as provas que se apresentam, com que venha reconhecida publicamente e receba a recompensa por ser como é. O justiceiro, portanto, apoiará a heroína compartilhando com ela os seus conhecimentos, o seu prestigio, a sua força e o seu poder: lhe ensinará “boas maneiras”, lhe ajudará financeiramente, lhe oferecerá suporte emocional. Os parâmetros utilizados para julgar e dividir de forma polar os personagens femininos não são aplicados, de modo análogo, aos personagens masculinos. O herói, por exemplo, não é necessariamente fiel, tem regras amplas ou carece de regras no que se refere à conduta sexual, não discerne com clareza os seus objetivos e cede/sucumbe às pressões familiares e sociais. Além disso, não é ele quem conquista e quem desmascara/revela. Pelo contrário, é o conquistado, é o objeto do desejo ou parte do contexto da posição desejada. O herói é, em última instância, aquele que é convencido, pelas evidências manifestadas pelos resultados do desempenho das provas, de que a heroína é a mulher com a qual ele sempre desejou estar, é a pessoa que mais se aproxima do seu ideal de mulher-esposa-mãe dos seus filhos. As regras de conduta social que regem o comportamento dos personagens, portanto, não são homogêneas para o gênero masculino e feminino: são mais rígidas e inflexíveis para os personagens femininos, à medida que se pune severamente, com a negação da ‘felicidade’, as mesmas atitudes e condutas que são permitidas ou toleradas para o outro gênero sexual. Embora seja bastante comum encontrar que o campo de ação dos “malvados”15 seja desempenhado pela rival (falsa heroína) em conjunto com alguma parente próxima do herói, as “funções de maldade” não são necessariamente sempre cobertas por atores fixos, mas sim por papéis móveis, diversos e renovados. Além da falsa heroína, um outro papel importante de antagonismo ao projeto da heroína é aquele desempenhado pelo personagem do Tirano/Traidor. Como expressão do melodrama nas telenovelas, o tirano (vilão) é a personificação da dissimulação, do engano e da mesquinharia, que ocultando as suas verdadeiras intenções sob a máscara da amizade ou do cortejamento, semeia a dúvida e a discórdia, trai e subverte a ordem moral16. Aos televidentes, o vilão deixa transparecer a sua verdadeira índole através de olhares sinistros, de palavras ferozes e de gestos criminais, pois utiliza de todos os meios ao seu alcance para viabilizar os seus objetivos e projetos17. O personagem do tirano é, muitas vezes, representado por um homem pouco atraente e potencialmente poderoso, que desejando ter a heroína consigo, ou simplesmente por inveja ou por avidez, tenta obstaculizar e impedir a aproximação, o entendimento e a harmonia entre os personagens da heroína e do herói. Junto com os outros opositores e com os seus cúmplices, coloca à prova a paciência e a virtude da heroína até que, no desenlace do enredo, vê naufragar o seus projetos e é definitivamente derrotado e punido pelas suas ações. “Na presença ele [o mau] é uma pessoa normal, ele é uma pessoa, vamos dizer, meiga, ele está procurando te seduzir, em fim. Agora, quando ele sai dali ele faz uma cara feia e diz assim: ‘eu hei de vencer’ (risos); ou então ‘eu já consegui’ (risos).” (Julieta, 67 anos) No desenvolvimento das tramas, tão importante é a sorte dos "bons" quanto o destino dos ‘maus’. Nos últimos capítulos, portanto, dedica-se tanto espaço para os bons (a heroína e os seus ajudantes) quanto para os outros, os seus opositores. Se, por um lado, a heroína conquista o direito a um final feliz e é recompensada com a felicidade eterna, todos aqueles que em algum momento fizeram algo contra a vitória do projeto representado por este personagem “devem”, por outro lado, ser castigados pela justiça dos homens ou pela justiça divina. Mas, neste caso, o julgamento que determinará o destino dos personagens 15 V. PROPP, Morfologia della Fiaba. P. BROOKS, L’Immaginazione Melodrammatica. 17 Trattato del Melodramma. 16 também utiliza parâmetros distintos de avaliação: um para os parentes, outro para os “outros”; um para os ricos, outro para os pobres. Enquanto que os “outros” e os pobres são castigados com a cadeia ou com o incremento significativo da pobreza em que vivem, os parentes e os ricos são excluídos da convivência social, morrem em algum acidente inesperado, perdem a razão, se arrependem (se convertem) e tudo volta a ‘ser como antes’. Em outros casos, ainda, se vêem privados de parte de seus bens materiais. “aquele caso do Alex [América], que ta ludibriando outra vez aquela menina [Mari], eu falei: mas ela vai cair de novo na conversa desse Alex, essa menina é burra, que ódio. (risos). Fico sabe, eu torço, eu torço muito pras coisas. […] eu to torcendo pra ele seja preso, que acabe com a alegria desse cara. Não vejo a hora dele se preso. (risos). […] Ah, mas eu não quero que ele se livre, diz que ele vai se livrar, falaram ai, que ele vai se livrar, não quero. Eu quero ver ele pagar por tudo que fez.” (Anésia, 65 anos) “teve uma novela que passava às seis horas da tarde. Eu não me lembro o nome dela [Livre para voar, 1984-85], que tinha uma fábrica de cristais em Poços de Caldas. Que era com a Carla Camurati e o Tony Ramos. O último beijo foi, assim, um beijinho de selinho no último dia. Ele sofreu a novela inteira. Então isso eu acho uma falta de respeito com a gente, sabe? Não podia ter mostrado já os filhos, aquela coisa; anos, dez anos depois.” (Sherry, 28 anos) A diferença que se estabelece no final de uns e outros atende às diferentes possibilidades que, nestas sociedades, se vislumbra para os indivíduos e para as pessoas. Os parentes e os ricos são classificados como pessoas, pois estão inseridos em uma rede importante de dependência social; os “outros” e os pobres são indivíduos e, portanto, devem enfrentar-se integralmente à força e à rigidez das leis e das normas. As pessoas merecem solidariedade e um tratamento diferencial, os indivíduos (merecem) a aplicação prática e objetiva dos regulamentos e decretos. A dicotomia entre indivíduos e pessoas se funda na distinção entre o domínio básico das pessoas e das relações pessoais, e o domínio das relações impessoais mediadas pelas leis e pelos regulamentos18. De um lado, está a totalidade de um sistema fundado no ‘favor’, na ‘consideração’, no ‘respeito’, na ‘honra’, na rede de relações sociais; do outro lado, está o eixo econômico e da legislação, com os seus mecanismos universalizantes. Neste sentido, a busca da protagonista, através do reconhecimento de suas origens (nascimento) e do casamento, tem como objeto a inserção e participação na rede de relações pessoais: é a conquista do status de pessoa, onde se combina a posição hierárquica conferida pelo poder econômico, com a posição hierárquica e a segurança do apoio familiar. “eu torço pra Serena e pro Rafael [Alma Gêmea], que ali é um amor muito bonito, que é até difícil de imaginar que acontece isso, né, não sei, às vezes acontece e a gente não sabe, mas é um amor muito bonito, né? […] Tem [diferença de classe social entre os dois], mas eu acho que isso ai quando tem amor assim, muitas maneiras de vencer isso, quem tem dinheiro pode até dar um 18 R. DA MATTA, Carnavais, Malandros e Heróis. jeito dela, sei lá, estudar, fazer mais alguma coisa, ensinar pra ela algumas coisas. Naquela época tinha que saber se comportar, né, o fato de não ter cultura, assim, acho que nem influenciava tanto, o mais é dinheiro mesmo […] Acho que é ensinar boas maneiras, colocar numa, dar uma aulas de etiqueta e tal” (Zélia, 50 anos) As funções e os atributos dos personagens se expressam por meio de uma série de recursos, entre os quais se pode mencionar, por exemplo, a multiplicidade de diálogos de curta ou de longa duração onde abundam as avaliações morais explícitas e imediatas (“eu não estou de acordo”, “isso é terrível”, “creio que ele seja invejoso e cruel”, “ela é generosa”) com as quais os personagens exprimem a própria visão de mundo e caracterizam a si mesmos e aos demais. Nas conversas longas e exaurientes, por exemplo, se discutem os dilemas éticos e os significados morais latentes, se explicam os sentimentos e se esclarece o desenvolvimento dos acontecimentos. Os diálogos, portanto, constituem um espaço importante onde cada qual expressa e explica a sua própria posição/opinião19, de acordo com o ponto de vista que pretende representar. Um mesmo conjunto de eventos ou dilemas pode, assim, ser discutido por diversos caracteres situados em distintos ambientes e contextos sociais, onde através da apresentação de um rol variado de opiniões, perspectivas de análise e de juízos de valor, se solicita a participação dos receptores no debate e na construção de um consenso moral a respeito dos eventos e dos comportamentos avaliados. Através da multiplicidade de conversações de estilo casual, íntimo ou pessoal20 propostas pelos personagens, os televidentes são convidados a posicionar-se entre e com os personagens no decurso do debate, e a envolver-se exatamente no mesmo tipo de especulações e de julgamentos. Na medida em que aceitam inserir-se nas discussões levantadas, os televidentes acompanham os raciocínios e analisam o repertório de argumentos apresentados; exploram e observam as implicações e as possibilidades relacionadas aos distintos modos de comportamentos; experimentam, de forma vicária, os resultado e as conseqüências das condutas e atitudes representadas e podem, assim, chegar a reunir um elenco de elementos sobre as temáticas tratadas para, a partir daí, construir uma própria opinião a respeito dos dilemas e dos problemas apresentados. “Ah ele [Manoel Carlos] tem uns final bom pra todo mundo ué, a vida não é assim ah não... eu acho que te incute a fazer e que te dá tudo certo, mas a vida não é por ai, eu acho. É como a Capitu ela é uma garota de programa, porque ela contou ontem pro Fred que era uma garota de programa, e ele perguntou por que ela foi por esse caminho, ai ela falou que ela viu que ela estava sem dinheiro que tinha que sustentar o pai e a mãe e ela foi ser vendedora, foi, mas o dinheiro realmente não dava e a dívida deles estava grande, ai ela conheceu é a Simone que é amiga dela né, e ela mesmo falou que ela foi fraca ai a Simone incentivou, ela entrou nisso 19 20 C. BRUNSDON, «“Crossroads”». M. FINE, «Soap opera conversations». […] eu não sei como aqueles pais não vêem isso, eles só vão descobrir por que a outra vai falar num casamento” (Soraia, 46 anos) De fato, boa parte do que se vê nas telenovelas são diálogos, são conversas entre os personagens, onde se fala sobre o que eles estão fazendo, sobre o que eles fizeram e sobre o que eles estão planejando fazer. Neste aspecto, ainda, as telenovelas se aproximam mais uma vez ao ambiente doméstico, às rotinas domésticas/familiares dos telespectadores através da cotidianização da narrativa21, à medida que com um tom coloquial e íntimo, como a linguagem usada dentro de casa, se insiste novamente com as relações de proximidade através das rotinas e dos ritmos próprios do ambiente doméstico. Além do que se fala, do que se conta, e dos demais efeitos sonoros (entonação e modulação da voz, trilha musical) já utilizados precedentemente pelas radionovelas22, as telenovelas contam também com o que se pode ver durante as conversações e nas demais situações vividas pelos personagens. Visto que a televisão, à diferença da rádio, combina o som e a imagem, uma outra forma de expressar as funções e os atributos dos personagens nas telenovelas é através daquilo que eles dão a ver; ou seja, o que eles fazem, como se comportam, e as atitudes e as posturas (movimentos corporais, expressões faciais, gestos) que assumem diante dos acontecimentos e das ações dos outros personagens, dão pistas aos telespectadores sobre o que cada qual é e propõe23. Deste modo, além do aspecto físico (penteados, cicatrizes, tatuagens, cores de cabelo, maquiagem, indumentária, harmonia do corpo), do nome que lhes é dado (Malvina, Maria Clara, Vitória, Gaviota, Serena) e das coisas que dizem e contam (como narram a si mesmo e aos outros), será também por meio das ações (desempenho de papéis sociais, condutas e atitudes, comportamentos) que os personagens centrais e os coadjuvantes projetarão uma imagem de si mesmos aos olhos do público. O uso primordial da imagem no meio televisão oferece também outros recursos que ajudam na caracterização dos personagens e limitam, de certa forma, a interpretação do nexo entre os elementos significantes apresentados. Um aspecto importante da construção dos enredos — que na televisão é fortemente ligado ao uso da imagem — é a escolha do ponto de vista, ou da perspectiva de abordagem, a partir do qual se observa e interpreta o desencadeamento dos fatos e eventos que compõem a trama. Uma abordagem imparcial e totalmente “objetiva” pode ser, por exemplo, uma aspiração adequada a quem se ocupa de jornalismo ou de historiografia, mas é improvável que uma história imaginária atraia o 21 D. PIGNATARI, Signagem da Televisão, 61-62. S.H. BORELLI – M.C. MIRA, «Sons, imagens, sensações». 23 A. TRINTA – M. RECTOR, «Los gestos del hechizo». 22 interesse e estimule o envolvimento se não se sabe a quem a história se refere. Pode-se dizer que a escolha do ponto (ou dos pontos) de vista a partir do qual se narra cada história é um aspecto importante da composição de textos de ficção, já que influi, em modo determinante, nas relações emotivas e morais que os telespectadores desenvolvem no confronto dos personagens e das ações que esses levam a cabo24. O ponto de vista, em um meio como a televisão, é fortemente influenciado (ou comunicado) pela seleção de imagens e pelo ângulo a partir do qual as cenas aparecem aos olhos do público25. O modo com que a câmara apresenta a história aos telespectadores, de certa maneira, informa e orienta o ponto de vista dos telespectadores. A atmosfera íntima e a intensidade emotiva não são dadas somente pelo ambiente onde se desenvolvem os acontecimentos (dentro da “casa” dos personagens), ou pela centralidade dos temas sentimentais e privados, mas também pelo estilo das imagens, pelos “close-ups” e pelos extremos “close-ups”. O uso das imagens, neste caso, interpela o telespectador, promove a identificação com os personagens, e fornece parâmetros (perspectivas) que ajudam a reafirmar a centralidade de certos aspectos e a limitar o elenco de interpretações dos acontecimentos propostos. Considerações finais: Neste artigo são abordadas algumas das especificidades destes textos ligadas aos personagens que compõem as suas tramas e que organizam, através de suas trajetórias características e de seus projetos de identidade social, as aspirações típicas do gênero. Levando em consideração a identidade plural destes programas, foram apontados alguns dos elementos que caracterizam o modelo de interação comunicativa proposto pelas telenovelas. Entre os elementos que tipificam as telenovelas foi mencionado, por exemplo, que elas se especializam em um determinado setor do mundo social, o mundo da casa. Foi indicado, adicionalmente, que a vida privada e familiar é, no mundo das telenovelas, o centro da vida dos personagens: é onde se cria e se define toda sorte de questões que tecem a trajetória e o projeto de vida dos indivíduos. Foi também apontado que a posição de supremacia da vida pessoal e familiar dentro do projeto de vida dos personagens, faz com que esta seja em grau de impor, dentro do mundo das telenovelas, a sua própria lógica e razão a todas ao outras esferas da vida dos personagens/sujeitos sociais. Dentro deste contexto, portanto, são as emoções, os valores familiares, as normas e os procedimentos que regem as relações afetivas e as relações de parentesco, os aspectos que vão prevalecer e 24 25 D. LODGE, L’Arte della Narrativa. R. PALLOTTINI, Dramaturgia de Televisão. ocupar o primeiro plano no universo das telenovelas: são essas dimensões, enfim, que vão informar a ação dos personagens e o desenvolvimento dos enredos; e são esses aspectos, consequentemente, que estão no centro da discussão proposta pelas tramas, e do vínculo interativo entre texto e receptor. Ainda dentro dos aspectos típicos do gênero, a centralidade da dimensão feminina nas telenovelas se manifesta tanto no ambiente onde se desenvolve a ação e que caracteriza as situações e as temáticas tratadas – o mundo da casa como expressão e lugar do feminino – quanto na centralidade do personagem da heroína: personagem que fornece com o seu percurso de busca e de conquista o eixo que determina o desenvolvimento das histórias. Através do percurso de busca, que aponta no sentido de inserir-se em uma rede de relações pessoais e de conquistar o status de pessoa, a heroína expressa o seu particular projeto/plano de vida, que é elaborado a partir de uma configuração específica de escolhas e de hierarquias de prioridades que identificam (configuram o modelo de identidade proposto) e distinguem a sua forma de ser, de entender a vida e de posicionar-se dentro da vida social. Os outros personagens, por sua vez, apresentam projetos distintos/concorrentes, representam o objeto/posição do desejo (herói), ou se dedicam a ajudar, a auxiliar ou a obstaculizar o desenvolvimento e a afirmação do projeto representado pela heroína. O veredicto dado pela história aos projetos concorrentes se verifica, por sua vez, através da recompensa (com a felicidade eterna) dada à heroína e aos seus ajudantes, e com o desmascaramento, a punição, o castigo e o banimento dado aos seus opositores. No que se refere aos seus aspectos característicos ou constantes, as telenovelas, como textos inscritos em um gênero específico e como proposta de interação comunicativa, interpelam de certa forma os receptores, abrem espaços para determinadas interpretações e limitam outras, antecipam os movimentos de cooperação necessários para que se restitua continuamente o sentido entre o todo e as partes da narrativa. Como proposta narrativa, o conjunto de artifícios e de recursos explorados pelas telenovelas necessita ser articulado, completado, correlacionado e interpretado, através da colaboração produtiva dos destinatários, para que o repertório potencial de sentido inscrito nos textos de fato se concretize. Bibliografia: BORELLI, S.H. – MIRA, M.C., «Sons, imagens, sensações: radionovelas e telenovelas no Brasil», INTERCOM XIX (1), 1996, 33-57. BROOKS, P., L'Immaginazione Melodrammatica, Parma, 1985. BRUNSDON, C., «Crossroads: notes on soap opera», Screen 22 (4), 1981, 32-37. 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