Ler on-line - Revista Historien

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TORNAR-SE GAY EM TEMPOS DE AIDS: AS
HOMOSSEXUALIDADES NO JORNAL NÓS POR EXEMPLO
(1991-1995)1
Paulo R. Souto Maior Júnior2
Resumo: Este texto trata da produção discursiva sobre as homossexualidades na
primeira metade dos anos 1990 usando como fonte o jornal Nós Por Exemplo (19911995). O artigo se projeta num caminho duplo. Primeiro, analisar a emergência do
jornal; segundo, perceber de que modo os seus textos agenciam um novo modelo de
homossexual. Investigar a homossexualidade no período demarcado significa atentar
para os modos como os homossexuais tentavam reconstruir o seu lugar na sociedade,
sobretudo após a explosão da AIDS nos anos 1980.
Palavras-chave: Homossexualidade – Anos 1990 – Nós Por Exemplo.
Abstract: This text is about the discursive production about homossexualities in the
first half of the 1990s using as a source the newspaper “Nós Por Exemplo" (1991-1995).
The article designs a dual carriageway. First, analise the emergence of the newspaper;
second, realize how their texts induce a new model of homosexual. Investigating
homossexuality in demarcated period means attending to the ways in which
homossexuals were trying to rebuild their place in society, especially after the outbreak
of AIDS in the 1980s.
Key-words: Homossexuality – The 1990s – Nós Por Exemplo.
“O c}ncer gay” estava nas ruas desde 1982 quando se relatou o primeiro caso de
Aids no Brasil3. Era com esse título que a doença era divulgada nos principais veículos
1
Recebido em 10/05/2014. Aprovado em 13/06/2014.
É mestrando em História no Programa de Pós-Graduação em História da UFPE. Endereço eletrônico:
[email protected]
3 Ver: PARKER, Richard. A construção da Solidariedade: AIDS, sexualidade e política no Brasil. Rio de
Janeiro: IMS-UERJ, 1994.
2
Historien (Petrolina). ano 5. n. 10. Jan/Jun 2014: 414-427.
Tornar-se gay em tempos de AIDS
de comunicação, em meados dos anos 1980. Os homossexuais ganharam, não apenas um
novo rótulo, mas também outra carga discursiva negativa.
A homossexualidade havia passado quase todo o século XX discursivamente nas
mãos da Medicina. Nos anos 1960 e 1970 os homossexuais começaram a construir um
discurso afirmativo sobre si mesmos. Mas o clima de luta contra o preconceito e
reconhecimento social passou por modificações quando foram diagnosticados os
primeiros casos de Aids no Brasil. O homossexual passava a ser uma figura associada à
morte. Não a morte que vinha de fora, de uma agressão homofóbica4, mas a morte
daqueles que encarnavam o conceito. Em curto intervalo de tempo a AIDS tirou a vida de
milhares homossexuais. Comumente se perdia um amigo, um colega, um amigo de amigo
e, com isso, evidentemente, alastrava-se o medo de ser mais uma das vítimas da doença.
Até que fosse possível desvincular a AIDS dos homossexuais, eles foram acusados, por
setores conservadores, entre os quais algumas religiões, de serem portadores de um mal
intrínseco à sua prática sexual. E antes mesmo que a doença fosse diagnosticada
corretamente foi batizada de “c}ncer gay”.
Quando se estuda, ou melhor, quando se tenta estudar a homossexualidade nos
anos 1980 e 1990, no Brasil, é possível perceber uma lacuna, um silêncio, sobre o tema.
A razão para isso talvez resida, especialmente, no fato de que, para os historiadores,
majoritariamente brancos e heterossexuais, a homossexualidade ainda se apresente
como um tema de difícil abordagem. Segundo a historiadora Tania Navarro-Swain
(2013), a história é sexuada e quem a constrói é uma “comunidade discursiva, o ‘nós’
patriarcal que comanda a visão única dos incontáveis arranjos sociais a partir da
dominância representacional do sexo e da heterossexualidade reprodutiva” (SWAIN,
2013; p.54). Talvez isso explique o porquê do jornal Nós Por Exemplo (1991-1995), até o
presente momento, segundo averiguei, não ter sido alvo de discussão por parte dos
historiadores.
Um passo importante nesse sentido foi dado nos anos 1970, quando o filósofo
Michel Foucault (1926-1984) publicou o primeiro volume da sua história da sexualidade
intitulado A vontade de saber. A obra critica o que era conhecido como hipótese
repressiva, ideia pela qual a sexualidade havia sido reprimida durante a idade moderna.
Estou me referindo ao conceito de homofobia que em breves palavras designa uma agressão verbal ou
física em direção a um grupo de pessoas que se relacionam afetivamente com outras do mesmo sexo.
Entendo que o conceito de homofobia está inserido em um debate mais amplo no campo dos Direitos
Humanos. Para maiores informações, consultar: BORRILO, Daniel. Homofobia. Belo Horizonte: Autêntica,
2011.
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Foucault pontua o contrário: na modernidade houve uma explosão discursiva de temas
relativos à sexualidade humana5. Por essa época alguns personagens foram inventados e
um deles foi o homossexual. Assim, para Foucault, o homossexual é um personagem,
constituído por uma linguagem que obedece a relações de saber-poder e que o apreende
como doente.
Segundo Michel Foucault, em A vontade de saber (2010), foi no século XIX que o
homossexual deixou de ser alvo da polícia para ser capturado pelo discurso médico. Até
então, percebido como um delinquente social tornava-se um doente que precisava ser
curado. Não por acaso, a morfologia da palavra à época já indicava seu caráter desviante.
Usava-se homossexualismo e o uso do sufixo ismo indica doença. Aqui no Brasil o uso do
termo homossexualismo e homossexualidade eram termos usados sem parcimônia até
muito recentemente.
No caso do Brasil, apenas em 1985 devido a uma luta firme e atuante levada a
cabo pelo Grupo Gay da Bahia (GGB) a homossexualidade deixou de ser vista
clinicamente como uma doença. A campanha pela retirada da homossexualidade do
Código de Classificação de Doenças do Instituto Nacional de Assistência Médica e
Previdência Social (INAMPS) começou em 1981. Porém, apenas em 1985 os objetivos
foram conseguidos e a mudança foi sancionada pelo Conselho Federal de Medicina6. Essa
conquista foi fruto de uma árdua luta levada a cabo pelos homossexuais a partir dos
anos 1960.
Os estudos sobre a produção jornalística voltada ao público homossexual
apontam O Snob, que circulou no Rio de Janeiro entre 1963 e 1969, como a primeira
publicação do gênero. O Snob divulgava notícias do público entendido7 carioca,
concursos de miss e travestis. Não foi por acaso que o jornalzinho deixou de circular em
1969. Com a decretação do Ato Institucional número cinco (AI-5), ocorreu severa
censura à imprensa, o que dificultou tanto sua produção, ainda caseira e de poucas
páginas, como sua distribuição.
Maria Hermínia T. de Almeida e Luiz Weis lembram que se durante a Ditadura
Militar (1964-1985) de um lado a classe média vivia os ganhos trazidos pelo milagre
econômico no governo do general Médici, do outro lado, parcela significativa da
Ver: FOUCAULT, Michel. História da sexualidade volume 1: A vontade de saber. São Paulo: Graal, 2012
SIMÕES, Júlio Assis FACCHINI, Regina. Do movimento homossexual ao LGBT. São Paulo: Editora
Fundação Perseu Abramo, 2009.
7Essas e outras particularidades de O Snob podem ser vistas em: GREEN, James. Além do carnaval: A
homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Editora UNESP, 2000.
5
6Ver:
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população vivia os efeitos do fechamento do Congresso, mandatos cassados, demissão
nas universidades, número crescente de presos e desaparecidos políticos e censura à
imprensa8.
Se por um lado, o exílio transformava-se em martírio para aqueles que não
podiam continuar em segurança no país, paradoxalmente, foram esses mesmos exilados
que acabariam trazendo dos países para os quais haviam se estabelecidos, sobretudo
Estados Unidos, França e Inglaterra, as práticas e os conceitos dos movimentos de
libertação sexual que vinham avançando. Vários jornais da época divulgavam as novas
tendências: sexualidades, juventudes, hippies e contracultura compõem algumas
palavras conhecidas pelas inovações que propôs. Dentre alguns grupos e movimentos
que vinham surgindo no país se destacam a Tropicália, os Dzi Croquetes e os Novos
Baianos. Os três inovaram, sobretudo, no modo como o corpo passou a ser trabalhado,
apresentado e discutido. Foi naquele contexto de intensa agitação cultural que emergiu o
Lampião da Esquina, um jornal escrito por um grupo de intelectuais homossexuais e que
circulou por todo o país entre 1978-1981.
Com o enfraquecimento do regime militar, já no governo do general Geisel9, os
grupos socialmente estigmatizados, como as mulheres, negros, movimento ambiental e
também o movimento homossexual, entraram em cena. Este último veio à tona em 1978,
ano da fundação do grupo Somos (Grupo de Afirmação Homossexual) em São Paulo,
primeiro grupo organizado com propostas de lutar pelos direitos homossexuais e
também com o surgimento do jornal Lampião da Esquina, que abriu caminho para que os
homossexuais elaborassem um discurso sobre si mesmo, levando em conta seus
problemas, demandas e desejos. Através de discussões elaboradas, esse grupo procurou
dar à homossexualidade uma voz e retirá-la das zonas do silêncio. Pela primeira vez na
história do Brasil os homossexuais tomaram a palavra, formulando-se, construindo-se,
modelando-se, inventando a si próprios pela linguagem.
Foi no transcorrer da década de 1970 que a homossexualidade adentrou a esfera
pública. Na década seguinte, com a emergência da AIDS, os meios de comunicação
abordaram exaustivamente o tema e ainda que inicialmente tenham trabalhado no
sentido de estigmatizar a doença, criando um sentimento de pânico na população, e nas
Consultar: FIGUEIREDO, Lucas. Ministério do silêncio. São Paulo: Record, 2005.
GOMES, Angela de Castro. Abertura política e controle sindical: trabalho e trabalhadores no
Arquivo Ernesto Geisel. In: CASTRO, Celso e D’ARAÚJO, Maria Celeina (orgs). Dossiê Geisel. Rio de Janeiro:
FGV, 2002.
8
9Ver:
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Paulo R. Souto Maior Júnior
pessoas acometidas pela doença10, paradoxalmente, eles trouxeram o tema da
homossexualidade para a ordem do dia. Em meados dos anos 1980 ainda que associada
à AIDS, a homossexualidade foi parar nas capas das revistas nacionais, entre as quais,
Isto é, Visão e Fatos, assim como nos principais jornais do país, à época com grandes
tiragens como O Globo, Folha de São Paulo, O Estado de S. Paulo e Jornal do Brasil.
A AIDS colabora na modificação da militância de grupos homossexuais no país.
Com a epidemia esses militantes lançaram mão de novas prerrogativas e modelos de
atuação que visassem uma abordagem séria e desesteriotipada da doença. Os
antropólogos Júlio Simões e Regina Facchini (2009) destacam que os ativistas dos anos
1980 não simpatizavam com posições ideológicas de esquerda ou anarquistas, o que
caracterizou uma militância focada em assegurar o direito à diferença.
Em paralelo, o país vivia um clima de euforia, sobretudo política caracterizada pela
tão sonhada redemocratização. A morte misteriosa de Tancredo Neves não impediu o
exercício e restabelecimento de uma democracia que teve na Constituição de 1988 uma
de suas maiores garantias de efetivação. Criteriosa e atenta, a Constituição Cidadã assim
batizada pela sua preocupação social, procurou, na medida do possível, assegurar
condições de estabelecer metas para avanços sociais tanto tempo esperados.
A militância homossexual dos anos 1980 modificou algumas orientações políticas
como, por exemplo, a inclus~o do termo “orientaç~o sexual” para substituir a ideia de
“opç~o”. Esse debate, dentre outros fatores, minimizou a importância dada à discussão
sobre ser as homossexualidades uma escolha ou uma “essência” e focou em outras
questões mais urgentes naquele momento.
No final dos anos 1980 o país parecia vivenciar a modificação efetiva de um
processo político com a primeira eleição direta para presidente pelo voto direto depois
de aproximadamente três décadas. Um aroma de democracia exalava das urnas que
elegeu Fernando Collor de Mello. Aroma que se exalou três anos depois por todo
território nacional quando pela primeira vez na história da política brasileira um
presidente, Collor, foi afastado do cargo “sem quarteladas ou remendos constitucionais”
(CONTI: 2012, p.9). O processo de retirada contou com manifestações populares por
causa, especialmente, do confisco de contas correntes e poupança.
Em âmbito internacional ocorreram modificações na vida política com a queda do
muro de Berlim, abalando sobremaneira a utopia de um mundo socialista. A construção
10
Ibid, 2
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Tornar-se gay em tempos de AIDS
do muro em 1961 trouxe à tona não apenas a divisão entre Alemanha Ocidental
(capitalista e ligada aos Estados Unidos) e Alemanha Oriental (socialista e ligada ao
governo soviético), separou o mundo em espaços capitalista e socialista com tensões e
disputas territoriais que nos afetam ainda hoje.
Eis o cenário político do surgimento do jornal Nós Por Exemplo que passou a
chegar às bancas no final de 1991, organizado por Sylvio de Oliveira, coordenador do
Núcleo de Orientação em Saúde Social (NOSS) e Paulo Henrique Largo, psicólogo e
presidente da NOSS. Inicialmente, a grande preocupação do jornal foi com aspectos
ligados à saúde dos homossexuais. De início, fica claro, o desejo de esclarecer, informar e
prevenir a AIDS. Vejamos como o tema aparece na capa abaixo:
Esta é a capa do jornal na edição de julho/agosto de 1993, ou seja, Ano II, nº: 9. Nos
primeiros números o jornal foi impresso em preto e branco. Mais tarde passou a ser
impresso em preto e verde, cores que o caracterizam. Nessa época o jornal já era
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distribuído gratuitamente porque conseguiu um financiamento particular. Podemos
apontar como uma das razões, o fato de ter surgido tendo como maior objetivo tratar de
temas relativos à AIDS. Como a “epidemia” se tornou uma preocupaç~o do governo
federal, foram criados vários acordos com associações, ONGS e a OMS na tentativa de
diminuir o contágio pela AIDS. Assim, provavelmente o investimento tenha vindo de
alguma instituição pública. Percebemos a preocupação com o tema nitidamente na capa
do jornal com o uso do termo agaivê, maneira pela qual era chamado na época11.
Segundo Jorge Caê Rodrigues (2010:106) a primeira edição do jornal veio com a
seção Lá fora, divulgando aspectos da sociabilidade gay fora do Rio de Janeiro; a seção
Nós mulheres e Nós homens trazia informações para lésbicas e gays, na intenção em
ganhar a atenção de ambos os grupos. Outras seções como

AIDS, que cumpria o ritual de informar e alertar;

Entre nós, trazia entrevistas com homossexuais famosos na época;

Informes, de modo geral tratava de notícias diversas;

Opinião, trazia a opinião do periódico a cerca de variados temas;

Rumos, narrava as novidades do mundo gay;

Arte; Roteiro, divulgava locais de sociabilidade no Brasil.
Rodrigues (2010) destaca que a seção AIDS passa a ser um encarte dentro do jornal,
intitulado “Agaivê hoje” – o que ocorreu a partir da edição número oito.
Construído em formato tabloide, semelhante ao Lampião, Nós Por Exemplo foi
impresso em papel off-set um pouco mais resistente que folha de jornal comum. Apesar
de seu formato assemelhar-se ao de um jornal, lembrava também uma revista. A tiragem
inicial, aponta Rodrigues (2010), foi de quinhentos exemplares sendo vendido em
bancas de revista, principalmente na cidade do Rio de Janeiro, ou por assinatura.
As condições de emergência desse jornal se dão nas modificações culturais que
afetaram o Ocidente desde a Revolução Sexual dos anos 1960 e que se fez sentir nos
anos 1980, no meio homossexual, com a produção de vídeos de sexo explícito gay,
tornando-se uma indústria multimilionária, destaca James Green (2000). Ainda de
acordo com as pesquisas do historiador, Kristen Bjorn, produtor de cinema erótico gay,
levou o gênero para vários lugares do mundo, divulgando inclusive alguns filmes
Ver: RODRIGUES, Jorge Caê. Impressões de Identidade: um olhar sobre a imprensa gay no Brasil.
Niterói: Editora da UFF, 2010.
11
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rodados no Brasil. Carnival in Rio, de 1989, foi uma dessas produções que trouxe
homens morenos e robustos. Muitos desses filmes divulgavam internacionalmente
imagens de como a homossexualidade era praticada e sentida no Brasil, levando a uma
equivocada ilusão, a de que a sociedade brasileira tolerava a homossexualidade.
Um exemplar da revista Veja de 1993, mencionados por Green, destaca uma
pesquisa com estatísticas nada favoráveis às homossexualidades. Nessa pesquisa a
maioria dos entrevistados se incomodava de alguma forma com as homossexualidades.
Ficava claro que 50% dos entrevistados tinham contato diário com homossexuais na
vida cotidiana, 56% admitiram que mudariam de comportamento com alguém que se
soubesse ser homossexual. De todos os entrevistados, 36% não dariam emprego para
um homossexual, mesmo que tivesse um bom currículo, e 79% não admitiam que o seu
filho tivesse um amigo gay (GREEN, 2000). Essas questões vão situando não só o que
permitiu a emergência do jornal, atento as questões que lhe foram contemporâneas, ele
se afirma, portanto, com ousadia a partir do momento que ganha as ruas num clima de
intolerância da população brasileira.
Na tentativa de compreender as propostas do jornal vejamos o que dizia o
editorial do primeiro número:
Já que normalmente o editorial do primeiro número de um jornal traz
explícitas suas tendências, devemos dizer que não é pretensão ou desejo
do Nós, Por Exemplo fincar no preconceito de nosso tempo a bandeira
da homossexualidade nem tentar iniciar um movimento de organização
de grupos homossexuais. Muito menos guetificar a imprensa escrita.
Acontece que os outros meios de comunicação habituaram-se a
discriminar o homossexual. faz-se necessário, então, um jornal que teve
neste público informação digna, reais e de seu interesse. Para Nós, Por
Exemplo é vital que o homossexual brasileiro seja respeitado. E para
que isso aconteça, a busca do conhecimento é indispensável. Refletir
sobre a própria condição é iniciar o processo de auto-estima que é único
caminho para se fazer respeitar.
Para este número, convidamos pessoas significativas em suas áreas para
escreverem artigos que abordassem a homossexualidade de uma forma
bastante abrangente. Notamos que, de uma forma ou de outra, s AIDS
sempre veio em seus artigos, o que demonstrou ser uma preocupação
geral. Abrimos então uma seção exclusiva sobre a doença e suas formas
de prevenção.
(Editorial. Jornal Nós, Por exemplo. Edição 01, número 01, p.1)
A leitura do trecho em destaque chama a atenção, particularmente, pela maneira
como a imprensa gay procurou construir um modelo de homossexualidade nos anos
1990. O que estava em jogo era a preocupação com a imagem que se tinha da
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homossexualidade e qual a imagem que se pretendia difundir. Para isso, esclarece que
não pretende se relacionar com a política e proclamar um movimento conjunto de
organização homossexual. Em vez disso, visa tratar dos estereótipos e preconceitos
difundidos sobre a homossexualidade, o termo era utilizado no impresso no singular.
A preocupação central do jornal é com o respeito à AIDS e à homossexualidade
deixando claro que para isso “a busca do conhecimento é indispensável. Refletir sobre a
própria condição é iniciar o processo de autoestima que é único caminho para se fazer
respeitar”. Deparamo-nos aqui com um argumento que irá fundar outro momento na
história da homossexualidade nos anos 1990, os discursos sobre a instrução do gay por
meio de vários recursos, isto é, a questão da busca do conhecimento como ferramenta
para diminuir o preconceito em tempos de AIDS.
Essa busca relativa à compreensão de questões diversas ligadas às
homossexualidades adquiriu maneiras diferentes de vir à tona. Inicialmente, a partir da
publicação do Nós Por exemplo, o exercício de instruir-se se deu como uma resposta
necessária e urgente à AIDS. Como dito anteriormente, a AIDS ocupou a atenção da
sociedade brasileira nos anos 1980 especialmente quando no começo se vinculava que a
doença apenas tinha a ver com certo grupo já estigmatizado na sociedade e não atingia o
segmento heterossexual da população.
Ao procurar informar o homossexual sobre saúde e prevenção, mas também arte,
cultura e entretenimento Nós Por Exemplo colocava, nas ruas, discursos com uma função
sensível. Era o conforto, a força necessária para que seus leitores pudessem entender
melhor variados aspectos ligados à doença. Paralelamente, os textos do jornal vinham
preencher uma lacuna afetiva sofrida por muitos homossexuais, posto que com a
elevação do estigma no surgimento da AIDS o processo de aceitação da sexualidade seja
do amigo, seja do parente, complicava-se à medida que um dos postulados colocados
contra as homossexualidades é de que estava sofrendo um castigo divino por serem
desviantes dos bons costumes.
Nos anos 1990, contemporâneo ao periódico, era possível ler semanalmente uma
coluna do jornal Folha de São Paulo, era a coluna Gay. A existência dessa coluna
promoveu
a
difusão
e
abordagem
de
diversos
assuntos
relacionados
à
homossexualidade. Podia-se ler sobre peças de teatro em cartaz no eixo Rio-São Paulo,
cinema e histórias de homossexuais que estavam saindo do armário e assumindo uma
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Tornar-se gay em tempos de AIDS
nova maneira de se relacionar com a homossexualidade, tornando pública uma
dimensão até então pertencente à esfera privada.
É oportuno esclarecer que a imprensa escrita nas duas últimas décadas do
século passado passou por modificações que “compreendeu a reestruturação das
empresas proprietárias, a racionalização da produção da notícia com a incorporação da
inform|tica e a adaptaç~o do profissional a novos métodos e concepções” (SENRA, 2001;
p.41). Ainda assim, o Nós Por Exemplo não conta com edições gráficas atrativas apesar de
em pouco tempo o periódico ter se tornado uma sensação no meio gay, particularmente
na cidade do Rio de Janeiro.
Não foi à toa que no quinto número, em novembro de 1992, o editorial destacou o
aumento no volume do jornal de 16 para 20 páginas. Isso esteve relacionado a centenas
de cartas recebidas parabenizando o jornal e fazendo sugestões de assuntos para outras
matérias.
Nós temos uma identidade quando nos divertimos juntos, quando
exibimos a fecundidade de nossa irônica linguagem, quando
respondemos, ou não, às expectativas produzidas ao nosso respeito.
Assim, os homossexuais devem ser entendidos como imersos num dever
que se articula com a expressão, num processo contínuo de
singularização frente os padrões de subjetividade majoritários. A
experiência não está, deste modo, reunida exemplarmente sob a égide
de alguma identidade. A possibilidade de singularização é uma
possibilidade de recomposição da experiência. Nesses tempos de morte
do significado, a experiência homossexual deve ser entendida como
empenhada nesse processo.
Mesmo aqueles de nós que hoje, adultos e bem sucedidos, supomos não
ter mais nada a ver com a guerra sórdida que se locomove
sombriamente no Brasil contra as bichas pobres e travestis, não temos a
dolorosa recordação de uma piada grosseira na terceira série primária
ou da eterna suspeita “ser| que meus amigos de rua sabem o que eu
sinto?” Aí, neste momento, somos constituintes de um universo
partilhado de sensibilidades.
A experiência homossexual deve ser compreendia então como definida
na modernidade, e dessa forma padecendo das mesmas contradições
que s~o intrínsecas { “aventura da modernidade”, melhor dizendo a
experiência homossexual é uma dessa contradições. Por outro lado, ela
só existe na relação com a sociedade inclusiva e todas as questões
ligadas a condição homossexual só pode ser desenvolvidas nesse
contexto.
Assim sendo, a agenda de qualquer movimento homossexual só se
constitui verdadeiramente quando avança até a consideração de que só
existe futuro melhor para a comunidade gay se tivermos munição e
coragem para reinstituir os valores globais. Ou envolvermos toda a
sociedade na discussão de questões que são vistas como só nossas ou
permaneceremos sempre no mesmo lugar: aquele que nós não
escolhemos. A única maneira, entretanto, de constituir diálogo com a
Historien (Petrolina). ano 5. n. 10. Jan/Jun 2014: 414-427.
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sociedade inclusiva é assumindo o lugar de sujeito do discurso, ou seja,
assumindo o processo de subjetivação.
(PINHO, Osmundo de A. Nós Por Exemplo, julho/agosto de 1993. p.)
O excerto acima não apenas informa, ele afirma, sugere, indica, pontua, esclarece,
valendo-se de alguns mecanismos que o homossexual pode assimilar a fim de constituir
uma identidade afirmativa. Há um diálogo acadêmico no texto. A expressão
subjetividade e a maneira como o texto traz suas afirmações parecem sugerir algumas
leituras realizadas pelo autor. A maneira utilizada no tratamento da sexualidade e
principalmente o uso do termo “subjetividade” alude {s reflexões trazidas por Michel
Foucault (2009), sobretudo nos estudos que realizou pensando o sujeito e a constituição
das subjetividades.
O debate em torno da identidade também vem demonstrar um diálogo com
formas de pensamento distante do marxismo e mais próximo dos estudos culturais. É o
que se percebe no seu argumento sobre uma possível identidade homossexual “A
experiência não está, deste modo, reunida exemplarmente sob a égide de alguma
identidade. A possibilidade de singularização é uma possibilidade de recomposição da
experiência” (PINHO,1993).
Estamos falando de uma estratégia do jornal no sentido de instruir o
homossexual. O autor elabora um argumento crítico sobre o tema, investe na
possibilidade de reflexão centrada em conhecimentos acadêmicos e lança a ideia de que
o homossexual, ao estar próximo desses argumentos, é um sujeito que se posiciona no
mundo através de leituras que o faça entender o seu lugar no mundo. Há uma estratégia
clara nisso: dar uma resposta consciente do que é e do que pode fazer um homossexual
em tempos de AIDS. Era assim um modo de se colocar após a série de estereótipos e
preconceitos sofridos especialmente nos anos 1980.
Ficamos sabendo também que a homossexualidade no começo dos anos 1990 foi
dotada de uma estilística da existência (ORTEGA, 1997) que se pode entender aqui como
a elaboração de um conjunto de estratégias elaboradas, pelos homossexuais, para
criarem mecanismos de resistência diante do preconceito e da crítica aos seus desejos.
Ao utilizarem uma linguagem característica, autorreferente, de resistirem a
piadas de mau gosto, dotadas de palavras e gestos excludentes, ditas por heterossexuais,
os homossexuais começavam a criar formas de resistência. Parece ter se iniciado
naquela época a resistência a uma sociedade que alçara a heterossexualidade como
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Tornar-se gay em tempos de AIDS
norma. Lembrando aqui que a heterossexualidade também é fruto de uma construção
discursiva.
Os homossexuais criavam maneiras de fugir a esses heteronormativos eivados de
preconceito. Essas estratégias, no seu conjunto, apontam para a constituição de um
discurso autorreferente positivo. Constituíram igualmente, à época, uma estética da
existência homossexual em tempos de AIDS.
De acordo com estudos de Jane Galvão (2000), os anos de 1992-1996 foram
marcados por um incentivo do governo em ações e políticas para tratar a AIDS. Talvez a
morte de artistas e cantores, como Cazuza, em 1990, e Hebert Daniel, em 1992,tenha
incentivado debates em organizações governamental e não-governamental. Em 1993,
iniciou-se o Projeto de Controle da AIDS e DST, que teve como um dos grandes feitos, em
1996, a importância dada pelo Ministério da Saúde à doença, dando acesso universal aos
medicamentos. Para Galv~o as tensões entre ONG’s com atividades ligadas { AIDS e
Estado foi cedendo lugar, nos anos 1990, para uma relação de ajuda e compreensão
mútua caracterizada inclusive por participação em comitês diversos, acordos e
convênios para elaboração de atividades. (GALVÃO, 2000)
Desse modo, o jornal Nós Por Exemplo ia se constituindo num corpo documental
que trazia inquietações acerca do cotidiano, das práticas, dos modos de se comportar e
da constituição de si, por meio da construção dos enunciados. O periódico em questão
demarcou o seu lugar por situar a importância de debater criticamente questões
relativas aos preconceitos contra homossexuais e à AIDS. Talvez, e, isso fica como
hipótese para uma questão vindoura, o Nós Por Exemplo tenha colaborado sobremaneira
para as campanhas implantadas nos anos 1990 das quais fala Galvão, como menciono
acima. Há muito ainda para ser estudado, pesquisado, analisado e escrito a respeito da
miríade de questões colocadas por essa fonte. Resta aos historiadores desarmarem-se
do preconceito que vigora nas academias e fazer dele outra coisa, uma reflexão que salve
o presente e aponte para o futuro porque é apenas nesse sentido, creio, que uma
pesquisa em história encontra sua razão de ser. Acredito, portanto, que esse jornal,
devido ao seu conteúdo, deva ser objeto de estudos para que se possa sanar outras
lacunas na história das homossexualidades no Brasil.
REFERÊNCIAS
Historien (Petrolina). ano 5. n. 10. Jan/Jun 2014: 414-427.
Paulo R. Souto Maior Júnior
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