Cinema e Psicanálise – SBPRP
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Cinema e Psicanálise – SBPRP
Cinema e Psicanálise – SBPRP Anfiteatro do HC-USP de Ribeirão Preto, 24 de fevereiro de 2012. Maria Bernadete Amêndola Contart de Assis1 Comentários ao filme O CAÇADOR DE PIPAS Dirigido por Marc Forster Baseado no livro homônimo de Khaled Hosseini O Caçador de Pipas é um filme que toca o coração. Coloca o espectador em contato com emoções e experiências essenciais do viver humano: a amizade, a lealdade, a fraternidade, a solidariedade, a compaixão... E também a crueldade, a inveja, o ódio... E ainda, o sofrimento gerado pelo exílio, pela culpa dos atos e das omissões... O luto pelas perdas, a tentativa de reparação, a luta entre a verdade e a mentira... Trata ainda da agressividade, aquela necessária para a proteção da vida e da dignidade, e aquela outra, transfigurada em violência, que serve a propósitos perversos de humilhação, discriminação e sadismo. Como ponto central da história que narra, o autor nos põe em contato com a responsabilidade implicada em atitudes e decisões que tomamos em um determinado dia de inverno de nossas vidas e que marcam para sempre nossa história, transformando-a, muitas vezes, em inverno permanente, em função da culpa que se instala. Começo meus comentários pela análise da brincadeira que dá o título ao livro e ao filme: a brincadeira, empinar pipas; o título, o caçador de pipas. A brincadeira de empinar pipas que aparece no livro não é romântica nem pueril. A densidade e o peso com que é tratada na história, estão presentes também no quadro de Portinari, tão bem escolhido para ilustrar o cartaz da divulgação desse evento. 1 Psicóloga e Psicanalista, Membro Efetivo e Analista Didata da SBPRP e Membro Associado da SBPSP. No quadro veem-se cores escuras acima e abaixo da tela e uma luminosidade no centro. A luminosidade parece “lutar” com a escuridão, em um embate permanente, que caracteriza o movimento da vida. Em Portinari, é como se a escuridão pudesse de alguma forma “engolir” a tentativa de alçar vôo, de ir cada vez mais alto, em um exercício lúdico de liberdade. Ameaças ao sonhar, à liberdade, à brincadeira, à infância... Ameaças à vida, elementos perenes, de hoje, de sempre. Presentes no quadro e no filme a que acabamos de assistir. Na história do Caçador de Pipas, esse peso e essa densidade da brincadeira comparecem de forma extraordinária. A brincadeira contem a disputa, a rivalidade, a luta (sublimadas) entre os meninos, para ver quem é o mais forte, o superior. “Em Cabul, empinar pipas era um pouco como ir para a guerra” (...) “Se a pipa era o revolver, o tar, o fio cortante recoberto de cerol era a munição”(...) “Quando a neve derretia e começavam a cair as chuvas da primavera, todos os meninos de Cabul ostentavam nos dedos talhos horizontais, traços reveladores de um inverno inteiro passado nessas batalhas. Lembro como os meus colegas e eu nos reuníamos para comparar as cicatrizes de guerra no primeiro dia de aula.” (Hosseini, 2005, pag. 56). Em seu momento glorioso, a brincadeira é encenação de uma castração. As pipas altivas, voando pelos ares, fazendo manobras que encenam movimentos de luta e fuga, aproximação provocativa e afastamento estratégico. Nesse momento de embate, o cerol impiedoso de uma pipa corta de forma trágica a linha da pipa rival. Esta cai ao sabor do vento, não mais sob o controle de quem a empina. Quem sabe seja essa uma alusão longínqua à tempos primevos, imemoriais, em que o homem primitivo se lançava contra seu rival para garantir território ou fêmeas. Como nos diz Freud, em Análise terminável e interminável (1937), talvez os dragões de tempos ancestrais não estejam de fato extintos. As forças primitivas nos habitam e fazem sua aparição, sublimada, em brincadeiras, desenhos, narrativas, ou seja, nas mais diferentes formas de representação. Winnicott (1975) em seu livro O brincar e a realidade nos ensina que o espaço transicional - em que o objeto é a um só tempo fantasia e realidade - é fundamental para o desenvolvimento da mente humana. O céu, como espaço transicional, é cenário privilegiado para o embate e a rivalidade natural entre os homens. As alturas são o representante preferencial do mundo mental. No entanto, a violência primitiva faz sua aparição também fora do espaço transicional e se torna combate, corpo a corpo, feroz, bruto, cruel. Quando se apresenta na realidade concreta das relações, ela pode assumir proporções trágicas. Khaled Hosseini (o escritor) e Marc Forster (o cineasta) apresentam isso com clareza nas diferentes formas de violência que aparecem na narrativa. Uma delas, a violência sócio-cultural. A cena do apedrejamento da mulher adúltera é referência forte a esse tipo de violência. Há uma regra severa onde não há lugar para o pensamento ou para a compreensão de sentimentos. Há ação punitiva, sem mediação do pensar. Tais ditames da cultura servem como uma espécie de autorização para a realização da brutalidade que nos habita. Atirar pedras é forma concreta de agressão, aliás, milenar. Lembram-se da história de Maria Madalena, quando Jesus diz a sábia frase: “Atire a primeira pedra quem não for pecador”? Estava ali presente o convite à reflexão, uma espécie de inauguração da mediação do pensar diante do impulso bruto à ação. Atirar pedras é a encenação, na realidade, de um mecanismo mental freqüentemente utilizado por todos nós: a escolha de um “bode expiatório”, ou seja, alguém que carregará todas as culpas por nossos atos. Mecanismo de evasão de fuga à responsabilidade. Velho conhecido nosso, nas mais diferentes instâncias, do mundo subjetivo ao mundo político. Conhecemos formas mais sutis de agressão ao outro e a nós próprios, do que atirar pedras. Mais sutis, mas igualmente mortíferas. O filme nos apresenta isso de modo tocante. Assef e sua turma ameaçam Amir e Hassan, usando para isso ditames de uma sociedade alicerçada em castas, que legitima a discriminação, a humilhação e a submissão. “O Afeganistão é a terra dos pashtuns. Sempre foi e sempre será. Nós é que somos os verdadeiros afegãos, os afegãos puros, e não esse ‘nariz achatado’ aqui. Essa gente polui a nossa terra, o nosso wattan. Sujam o nosso sangue”. (Hosseini, 2005,pag. 47). Essa referência aos puros e impuros (modelo nazista), pode ser pensada como uma projeção no plano sócio-cultural de uma violência que é intrínseca à constituição humana. No movimento recíproco, serve como legitimação da própria maldade. Trata-se de uma das formas mais cruéis de realização do ódio nas relações humanas. André Green (1990) refere-se a essa forma de violência perversa como função desobjetalizante, movida pela pulsão de morte, em que se destitui o outro de suas qualidades humanas, transformando-o em objeto a satisfazer necessidades próprias. No terrível episódio do estupro de Hassan, Assef sustenta sua ação na frase: “É só um hazara”. Vê-se a malignidade dos instrumentos da cultura, legitimadores da crueldade e do sadismo de cada um. A malignidade dos ditames sócio-culturais que espalham humilhação e sofrimento apresenta-se com outra face, se olharmos para Hassan. A descrição que é feita, pela ótica de Amir, da atitude de Hassan no momento do estupro, é a seguinte: “Este não lutou. Nem mesmo se lamentou. Virou a cabeça lentamente e pude ver o seu rosto de relance. O que vi, ali, foi resignação. Era um olhar que eu já tinha visto antes. O olhar de um cordeiro” (op.cit., pag. 81). Vê-se que a violência sócio-cultural pode gerar uma outra, ainda mais danosa, porque internalizada, que é a violência contra si mesmo, a que podemos identificar em Hassan, em sua posição de servidão e de cordeiro a ser imolado (mais uma referência bíblica). Pelo amigo Amir ele era capaz de sacrificar-se ao extremo. A frase “Por você mil vezes” é linda porque indica lealdade e amizade inabaláveis, mas o autor é brilhante quando mostra que até mesmo a radicalização do que é belo e sublime, pode revelar sua face destrutiva. Hassan era o amigo leal, bondoso, amoroso, disposto a proteger sempre seu amigo. Junto a isso, em sua personalidade havia o traço autodestrutivo, que o transformava em cordeiro, que o fará admitir que roubara o relógio de Amir, quando essa não era a verdade. Ou seja, sacrifica-se para salvar o outro, uma espécie de Jesus que se imola na cruz para redimir os pecados da humanidade. Uma das cenas mais tocantes do filme é quando Assef (o estuprador, nos mais variados sentidos) e seus comparsas, estão na festa de aniversário de Amir e são servidos por Hassan que segura uma bandeja de bebidas. Neste gesto servil, quanto ódio precisou ser contido? Quanto sofrimento soterrado? Podemos conjecturar sobre a origem desse traço na personalidade de Hassan. O livro nos informa mais que o filme, sobre a origem de Hassan. Sua mãe, Sanaubar, “um mulher linda, mas sabidamente sem escrúpulos, que vivia de sua reputação nada honrosa” (pag. 15). Usava sua sensualidade e beleza para conquistar os homens e não foi diferente com o pai de Amir, com quem teve Hassan. Uma semana após o nascimento de Hassan ela abandonou o lar para seguir em companhia de artistas errantes. Hassan carregava então, tal como Amir, uma espécie de pecado original, por ter nascido de uma “desonra” ao pai (mesmo que ele não soubesse, conscientemente, disso) e por ter sido rejeitado pela mãe. Não teria sido esse o mote principal para que se tornasse subserviente? Freud nos ensina que o desamparo e o conseqüente medo do abandono estão na raiz da subserviência. Além disso, a culpa desse “pecado” pode ter produzido, inconscientemente, uma necessidade permanente de autopunição. A culpa provoca estragos profundos na personalidade. Foi assim também com Amir que, igualmente, carregava o peso de seu “pecado original”. (E aqui cabe um parêntesis reflexão sobre cada um de nós: quem não carrega o peso de um pecado original? Resta saber qual é o nosso, para que a culpa não nos maltrate muito...). Não me refiro aqui à omissão de socorro ao amigo que foi estuprado (esse “pecado” ou essa culpa já eram secundários). Refiro-me ao desastre inicial ocorrido no nascimento de Amir: ele nasceu em uma espécie de “berço de sangue”, em meio à morte da mãe, por hemorragia. Sobre esse fato, o autor Hosseini coloca no personagem Rahim Khan uma fala de sabedoria extraordinária: “Nascer é perigoso para a mãe e para o bebê”. De fato, dar à luz é ato arriscado, que provoca vida e morte a um só tempo. Isso vale não apenas para os corpos físicos que nascem e correm o risco de morrerem, mas também para o mundo mental em que cada nascimento de uma nova idéia, de um novo insight, provoca a morte do que não havia sido visto antes. Voltando às apreensões de Amir, podemos conjecturar sobre a fantasia inconsciente de ter atacado o corpo materno a ponto de matá-lo. O pai de Amir lhe diz que o maior e único pecado que existe é o roubo. Matar é roubar a vida de alguém, ou a oportunidade de outras pessoas conviverem com ela. Ora, Amir cometera o grande pecado: havia roubado a vida de sua mãe e a oportunidade de seu pai conviver com ela. A partir daí configuram-se características importantes de sua personalidade. Amir tem medo de ser agressivo, torna-se inseguro, acanhado, uma espécie de militante da turma do “deixa disso”. Ele não aprende com Hassan o uso da agressividade benigna, que protege, que defende a dignidade. Essa característica o leva ao segundo grande episódio de culpa em sua vida, que o marcará parra sempre: o ato de omissão diante do estupro do amigo, em que ele nada faz para protegê-lo. Podemos pensar que não foi somente o medo de ser agredido ou medo de agredir que inibiu o ato de coragem para proteger o amigo. Mecanismos psíquicos mais poderosos estavam em curso: havia na relação de Amir com Hassan um misto de amor e ódio. A inveja de Amir pela coragem, ousadia, sabedoria e lealdade de Hassan estavam intensamente presentes. Era também intenso o ciúme despertado pelo tratamento amoroso e pela admiração que o pai tinha por Hassan. “Baba comprava para cada um de nós três pipas idênticas e carretéis de linha com cerol. Se eu mudasse de idéia e resolvesse pedir uma pipa maior e mais extravagante, ele a compraria,mas compararia a mesma também para Hassan. Às vezes gostaria que não agisse assim. Que me deixasse ser seu favorito”. (pag. 57). Ora, tais situações emocionais eram um caldo de cultura propício para alimentar ódio e, assim, configurar o desejo de ver o amigo ser violentado. Podemos pensar então que no momento em que percebeu a eminência da agressão a Hassan, pelo grupo liderado por Assef, Amir omitiu-se como uma forma indireta de agressão. Havia ódio e vingança nessa omissão. Além disso, Amir optou por negar que tivesse visto alguma coisa, conversar com Hassan sobre isso, enfim assumir a omissão. Omitiu-se uma vez mais. “Benditas sombras no anoitecer, que encobriam o rosto de Hassan e encobriam o meu” (...) “...fingi que não tinha percebido que sua voz estava embargada. Assim como ofingi não ver a mancha escura nos fundilhos de sua calça. Ou aquelas gotinhas que iam pingando por entre as pernas, deixando marcas escuras na neve”. (pag. 84). Ainda, nas palavras do autor: “Depois disso, Hassan ficou circulando pelas beiradas da minha vida. Eu tomava todas as precauções para que os nossos caminhos se cruzassem o mínimo possível, planejando meus dias nesse sentido. Porque, quando ele estava por perto, o oxigênio desaparecia do aposento. Sentia o peito apertado e tinha dificuldade para respirar; ficava ali, sufocando na minha bolhazinha de atmosfera absolutamente abafada. Mas mesmo quando ele não estava por perto, estava presente. Estava nas roupas lavadas e passadas sobre a cadeira do assento de palhinha, nos chinelos aquecidos deixados diante da porta do meu quarto, na lenha que já ardia no fogareiro quando eu descia para tomar o meu café da manhã. Para onde quer que eu me virasse, lá estavam os sinais de sua lealdade, da sua maldita lealdade inabalável” (pag. 93). Atormentado pela culpa, Amir provoca Hassan, na tentativa de ser agredido por ele e assim, expiar sua culpa. Isso está apresentado claramente na cena em que Amir atira romãs em Hassan. “Atirei a romã em cima dele. Ela bateu em cheio no seu peito com um jorro de polpa vermelha. O grito que ele deu estava cheio de surpresa e de dor. _ Bata em mim! – exclamei. Hassan ficou olhando para a mancha em seu peito e para mim. _ Levanta daí! Bata em mim! – disse eu. Hassan levantou mesmo, mas ficou parado, atordoado como um homem que é arrastado para o oceano por uma onda repentina quando, minutos antes, estava passeando calmamente pela praia. Atirei outra romã em cima dele; desta vez no ombro. O suco espirrou em seu rosto. _ Revide! – exclamei. – Revide seu maldito! Queria mesmo que ele fizesse isso. Queria que me desse o castigo que eu estava pedindo. Talvez, assim, pudesse finalmente dormir de noite. Talvez, assim, as coisas pudessem voltar a ser como antes entre nós. Mas Hassan não fez nada e continuei atirando frutas nele sem parar. _ Você é um covarde! – gritei. - Apenas um maldito covarde.” (pag. 97). Se a presença de Hassan era incômoda antes, agora se tornara insuportável e Amir, mais uma vez equivocado, pensou que pudesse livrarse dele, acusando-o de roubo. O equívoco era a idéia de que se pode livrar de um sentimento, afastando a fonte que o provoca. Ao acusar o amigo de roubo, tentando afastá-lo da casa, Amir enreda-se ainda mais em sua teia mortífera. A culpa vai levando-o a ações autodestrutivas que o aprisionam cada vez mais. Vê-se assim como a culpa ocupa lugar de destaque no nosso mundo mental, provocando tragédias internas (e externas). E os mecanismos de evasão, de isenção de responsabilidade, também tem um preço alto em nossas vidas. Por falar em mecanismos de evasão, vamos tratar da atitude do pai de Amir que saiu do país numa tentativa de se proteger. Tentando buscar a vida ele se condena à morte. O inconsciente é poderoso e vai “cobrar seu preço” por ele ter abandonado o país. Não teria sido com essa parte da personalidade do pai que Amir se identifica para também evadir-se da responsabilidade? O autor nos mostra de forma sensível que a fuga é dolorosa, arriscada e fere a identidade em suas bases. Pensando na metáfora em relação aos mecanismos psíquicos de evasão, o homem que perde o poder e a riqueza corresponde à mente que empobrece. O que adoece e morre no exílio não é somente o pai, mas uma identidade, uma história, a rede de relações afetivas. A oportunidade de redenção para Amir virá anos depois, quando ele chamado por Rahim Khan para o resgate de Sohrab, filho de Hassan. Aliás, a figura de Rahim é fundamental na composição da história. Equivale ao personagem sempre presente na mitologia e no teatro grego, que acompanha o herói em sua jornada, orientando, conversando, acolhendo com sabedoria e afeto, conduzindo o personagem ao seu destino. É o Tirésias do Caçador de Pipas. Quando Rahim convoca Amir para a missão de resgate, é o momento da história em que ele terá a oportunidade de realizar coragem, ousadia e o uso da agressividade benigna, que protege a dignidade. Ele enfrenta o medo e se arrisca para salvar não somente Sohrab, mas a si mesmo. O resgate de Sohrab é o resgate de si; o retorno necessário à terra natal encena o retorno ao passado o que, na realidade, é impossível. Só se vive no presente. Somente as ações do presente podem ser diferentes daquelas que foram realizadas no passado e que permanecem produzindo culpa. O presente oferece a oportunidade de outras ações, que não repetem as primeiras, que são outras, as de hoje, que podem amenizar culpas, mas não reparar o passado. Lembrei-me de uma entrevista com Joseph Campbell em que ele diz que o que caracteriza o herói é uma missão que ele precisa cumprir e para isso empreende uma grande e difícil jornada, em que passa por riscos imensos, seja para salvar um povo, seja para salvar a si mesmo. Amir, nesse sentido, tem características de herói. Voltou ao Afeganistão para salvar a si mesmo. O resgate é doloroso no corpo e na alma. O resgate não se dá sem riscos e sofrimentos. O passado volta à cena e é Shorab que fere Assef, agora adulto, com seu estilingue. Mais uma vez, a violência que protege, que liberta, que redime. A terra devastada que ele encontra em sua volta é produto também da guerra interna que viveu e do regime Talibã (superego assassino) interno a que ficou submetido. É contra isso, psiquicamente, que precisa lutar, assim como cada um de nós tem sua lida cotidiana com as culpas e com as ditaduras internas a que nos submetemos. A terra devastada é também referência a outra faceta da sordidez humana: a violência política. O cenário histórico da narrativa é o de um país que sofre com a violência política. Primeiramente a invasão russa, vinda de fora e, posteriormente, a ditadura talibã, a imposição vinda dos próprios afegãos. A força devastadora desse tipo de violência foi bem retratada nas imagens que aparecem de Cabul quando Amir retorna. Ele pergunta pelas árvores (símbolos da vida) e o motorista lhe diz que foram arrancadas pelos invasores. Belíssima metáfora: os invasores, de fato, arrancam brutalmente a vida de um povo, sua dignidade, sua autonomia. Conhecemos correspondentes dessa violência no mundo mental. Conhecemos objetos internos terroristas, ditadores, que nos arrancam fontes de vida e nos condenam a vivermos aterrorizados, como o povo afegão, ou como as crianças desamparadas daquele orfanato. Antes de terminar meus comentários, não poderia deixar de fazer referência ao título do livro e do filme: Por que o autor escolheu o caçador de pipas e não o empinador de pipas? Aprendi, com Agnaldo Farias2, crítico de arte, que cada gesto do artista é significativo, que cada elemento da obra é componente e que nada é por acaso. Pois bem, seguindo isso, posso pensar que o autor não escolheu o título por acaso. O caçador é o que consegue pegar a pipa que foi abatida. É um troféu que marca a vitória e que requer sensibilidade para saber onde irá cair a pipa. “Ao longo dos anos, vi milhares de garotos correrem atrás de pipas. Mas Hassan foi de longe o melhor que jamais vi. Era impressionante como ele percebia onde a pipa poderia ir parar antes 2 Curso sobre História da Arte, ministrado nos dias 5, 6 e 7 de dezembro de 2011, no Instituto Figueiredo Ferraz, em Ribeirão Preto-SP. mesmo que ela começasse a cair, como se tivesse uma espécie de bússola interna” (pag. 58). Um traço que marca a personalidade de Hassan, exímio caçador de pipas, é a sensibilidade para o mundo psíquico, a tal “bússola interna” a que Amir se refere. Hassan “sabia” onde a pipa ia cair, e também “sabia” ler a alma de Amir. Já que não podemos evitar, pelas circunstâncias da vida que nossas pipas que voam alto (nossos sonhos) sejam vez ou outra abatidas (nossas frustrações), podemos nos tornar exímios caçadores de pipas, sabendo resgatar, com sabedoria e sensibilidade, as pipas caídas. Referências Bibliográficas Freud, S. (1937) Análise Terminável e Interminável, ESB das Obras Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago, 1969. Green, A. (1990) Conferências Brasileiras de André Green, Metapsicologia dos limites, Rio de Janeiro, Imago, 1990 Hosseini, K. (2005) O caçador de pipas, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2005. Winnicott, D. W. (1975) O brincar e a realidade, Rio de Janeiro, Imago, 1975.
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