Prosaico AMOSTRA GRÁTIS.pmd

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PROSAICO – HENRIQUE SZKLO
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Henrique Szklo
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RÁPIDAS
Jovens desaparecem na floresta
HELSINQUE – Um grupo de estudantes finlandeses está causando grande
apreensão na comunidade policial local. Dezoito jovens bem branquinhos
foram acampar numa reserva florestal próxima à capital Helsinque e não
voltaram. Alertadas por familiares, as autoridades policiais iniciaram as
buscas no local. O problema é que as autoridades também se perderam.
Agora quem comanda as buscas são os maiores especialistas em encontrar
desaparecidos: as empresas de cobrança.
PROSAICO – HENRIQUE SZKLO
NÃO TÃO RÁPIDAS
Jovens são encontrados, mas
polícia continua desaparecida
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HELSINQUE – Um grupo de estudantes finlandeses está causando grande
alívio na comunidade canina local. Após passarem vários dias perdidos na
floresta, eles finalmente foram encontrados. Familiares e cães de estimação
os receberam com grande emoção. Muitos até choraram de alegria. Os
familiares, não os cães. Outros não se contiveram e pularam de felicidade.
Um pouco de familiares, um pouco de cães. Alguns outros abanaram seus
rabinhos. Neste caso ainda não se sabe se eram familiares ou cães.
A empresa de cobrança responsável pelo resgate demonstrou grande
eficiência, mas uma certa truculência quando os familiares se negaram a
pagar a duplicata levada pelos cobradores. A polícia, que deveria investigar
estes desmandos, continua desaparecida na floresta.
PROSAICO – HENRIQUE SZKLO
MEIO LENTAS
Jovens felizes demais preocupam
pacatos cidadãos finlandeses
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HELSINQUE – Um grupo de estudantes finlandeses está causando grande
alarde na comunidade científica local. Após passar alguns dias perdidos
numa reserva florestal, estes jovens até então tristes, obtusos, sorumbáticos
e macambúzios, portanto normais para os padrões escandinavos (pelo
menos enquanto sóbrios), têm se comportado de forma extravagante e
incompreensível. Segundo relatos de amigos, parentes, boateiros e gente
que nem sabe o que está acontecendo mas que adora aparecer na mídia,
todos demonstram um “inexplicável estado de felicidade zenital”. Deveriam
até estar sob proteção policial já que a população anda irritada com tamanha
felicidade alheia, mas a polícia está perdida na floresta e ninguém está muito
preocupado em resgatá-la.
Não se sabe até agora o que pode ter causado este estranho comportamento nos jovens, mas as autoridades, que também estão se mordendo
de inveja, garantem que exames completos já foram realizados sem no
entanto detectar a razão para tão descabida e, por que não dizer, ofensiva
alegria. “Que ódio!”, teria declarado o porta-voz do Ministério da Saúde.
PROSAICO – HENRIQUE SZKLO
QUEIMANDO O FILME
Descoberto na Finlândia
o vírus da felicidade eterna
Já passam de mil as “vítimas” do misterioso
vírus que provoca euforia e inimigos raivosos
JOEL FIUMICINO
Repórter Especial
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AMOÁTIS
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ELSINQUE – Parece que a humanidade finalmente encontrou
o tesouro que sempre esteve à procura. E esse Santo Graal
emocional apareceu na Finlândia, extremo norte do globo
terrestre, na forma de seres microscópicos que, em contato com o sistema
sangüíneo de seu hospedeiro humano provocam uma zenital e transbordante sensação de felicidade.
Tudo começou quando estudantes ficaram perdidos por alguns dias
em uma reserva florestal conhecida como Floresta Bege causando grande
apreensão em todo mundo. Ao serem resgatados, demonstraram uma
felicidade incomum e um sorriso inabalável. Médicos do Hospital
Kuolemattomuutta, na capital Helsinque, ficaram até irritados com
tamanha alegria de viver, sendo que o chefe da equipe foi flagrado por
jornalistas bradando aos seus assistentes “Estes fedelhos! Vou tirar esse
sorrisinho idiota de suas faces esbranquiçadas. Tenha santa paciência!”,
versão posteriormente contestada pela direção do hospital. A verdade,
porém, é que por incompreensão ou pura dor de cotovelo, a equipe médica
alegou que os estudantes sorridentes estavam todos loucos, sofrendo uma
espécie de surto psicótico. Para a felicidade destes mesmos médicos, todos
os jovens foram encaminhados a psiquiatras e internados em manicômios,
o que, diga-se, não alterou em nada o bom humor dos rapazes e das moças.
Já a alegria dos médicos durou pouco. Começou a surgir uma enxurrada
de outros casos e não havia mais como sustentar a teoria da psicose. O
Ministério da Saúde finlandês redirecionou os rumos da pesquisa
considerando a hipótese de contágio por vírus ou bactéria, abandonando
completamente a possibilidade de problemas psíquicos. Os médicos
finlandeses fecharam a cara e fizeram biquinho.
PROSAICO – HENRIQUE SZKLO
Passaram, então, a realizar exames dos mais variados tipos e todos os exloucos apresentaram uma importante alteração nos níveis dos conhecidos
antidepressivos naturais: a endorfina, a noradrenalina, a dopamina, a
serotonina, hormônios produzidos por nosso organismo que, entre outras
funções, melhoram a memória e o estado de espírito, aumentam a resistência
e a disposição física e mental, reforçam nosso sistema imunológico,
bloqueiam as lesões dos vasos sanguíneos, têm efeito antienvelhecimento,
aliviam a dor e fazem a gente rir que nem idiotas. Em meio a tantas dúvidas,
surge mais uma pergunta: se o ser humano sempre foi capaz de produzir
estas verdadeiras poções mágicas, onde elas estavam esse tempo todo?
Segundo os médicos contrariados, o fenômeno que está sendo chamado de
Síndrome da Felicidade Zenital, ou Sífeliz, ainda não se tem idéia de algum
efeito posterior a essa alegria incontida, a não ser as inevitáveis brigas com
vizinhos invejosos (sic). Por enquanto, todos os infectados demonstram
saúde de ferro, disposição e alegria de viver. Os pesquisadores também não
estão suportando isso. Até hoje, já foram registrados mais de mil felizes
“doentes”, mas o número cresce a cada dia. E nenhum dos riso-positivos
parece muito preocupado com a tromba dos médicos, pesquisadores e
vizinhos.
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FELICIDADE CONTAGIANTE – Todos os contaminados também
apresentavam sinais de picadas pelo corpo, o que reforçou a versão de que
a Sífeliz fosse causada por um vírus transmitido por inseto. Ao sabatinar
os “doentes”, os médicos descobriram que todos, sem exceção, haviam
passado pela Floresta Bege e concluíram que a resposta seria encontrada
neste local. Não demorou muito para se descobrir o responsável pela
transmissão da moléstia: o Alacreyas dypauperis, nome científico do mosquito
que logo passou a ser conhecido como mosca dim-dim, já que sua
característica é trazer felicidade.
Comenta-se nos círculos médicos que as indústrias farmacêuticas tem
feito pesado lobby contra a divulgação da Sífeliz, já que, felizes e saudáveis,
seus clientes deixarão de consumir boa parte dos medicamentos por elas
produzidos. O sindicato das indústrias, porém, em nota oficial, nega
veementemente a existência de tal lobby, afirmando contudo que o vírus da
felicidade é uma falácia, uma jogada de marketing de pseudocientistas
dispostos a fazer qualquer coisa para aparecer na mídia. “Imagine se é
possível alguém ser feliz de verdade”, encerra a nota.
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Verdades e mentiras
Acreditar é uma virtude reservada a escassos e ingênuos gatos
pingados. Eu, por exemplo, não acredito nem mesmo nesta afirmação
que acabei de fazer. Mas eu talvez não seja um bom exemplo. Quer
dizer, tenho ceteza de que sou um péssimo exemplo, em todos os
sentidos. Sou um incrédulo profissional. Um desconfiado congênito.
Um cético de carteirinha. Você não é dos meus? É dos que acreditam?
Tem certeza? Bem, talvez então você seja um desses privilegiados, desses
predestinados que nasceram com a rara qualidade de crer, de acreditar
e confiar naquilo que um outro ser humano diz ou faz. E já que é
assim, pode acreditar no que vou dizer: essa é uma qualidade admirável
e incomum. Até porque o ser humano não é nada confiável. Pensando
bem, não acredito que você seja um crente. Deve estar escondendo
alguma coisa, planejando alguma iniquidade, sonhando com algum
benefício ilícito, vislumbrando algum lucro imódico. Com certeza.
Você não me engana, seu pulha. Vai carambolar outro escritor, vai.
Tudo bem, vou lhe dar uma colher de café. E de plástico. Mesmo
sendo indigno, vou lhe dar um conselho que é para você levar para o
resto de seus miseráveis dias. Pode acreditar no que eu digo: não acredite
em ninguém.
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Quem sou eu? Se é que interessa
Bem, talvez seja prudente eu me apresentar, até para que você me
conheça melhor e saiba exatamente por que não acreditar em mim.
Meu nome é Joel Fiumicino, mas meus amigos me chamam de Filme.
Meus inimigos também, mas prefiro não dar nenhum crédito aos
bastardos. Até porque são tantos que, se eu for dar crédito a eles, vou
passar o livro inteiro fazendo isso. De qualquer maneira, você pode
me chamar assim também. Quer dizer, você nunca vai me chamar, já
que a gente nunca vai se encontrar, mas tudo bem, deixa pra lá. Sou
jornalista, não por vocação, mas por imposição do destino. Queria ser
escritor de livros pornográficos, mas a minha total falta de imaginação
para o sexo praticamente me manteve fora desse seleto mercado
profissional, me derrubando de meus mais altos e doirados castelos.
Então, fui seguir a carreira jornalística que também não deixa de usar
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PROSAICO – HENRIQUE SZKLO
a sacanagem como matéria-prima. E sabe que até me dei bem? Na
verdade, não sei bem porque, mas não costumo questionar as minhas
vitórias particulares. Já minhas derrotas eu questiono muito menos.
Vitória, derrota, não passam de dois lados de uma moeda falsa chamada
vida. Já reparou também que não existe empate na vida? Quem bolou
isso aqui não queria nos ver acomodados numa igualdade de resultados.
As partidas da vida são como o futebol moderno, decididas por um
golden gol, ou morte súbita, como queira.
Se você começar a se aprofundar nesse assunto acaba por
enlouquecer. Como aconteceu com um colega na faculdade, o
gordinhochato, que desenvolveu uma teoria tão estapafúrdia que
acabou sendo engolido por ela.
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A vitória endeusa, a derrota humaniza
O gordinhochato era um sujeito solitário. Passava a vida em
devaneios tresloucados e, vez por outra, desenvolvia algum tipo de
teoria que, em sua ótica (estrábica com um pouquinho de
astigmatismo), revolucionaria o mundo. A mais famosa delas, ou pelo
menos a única de que eu lembro, foi a teoria do sistema binário da
vida. Era o seguinte, presta atenção: para o gordinhochato, a vida se
constituía num simples sistema binário onde só duas situações
contavam: derrotas e vitórias. A felicidade ou infelicidade do homem
eram diretamente relacionadas à sua quantidade de vitórias ou derrotas
pessoais. Para o gordinhochato, a vida era uma questão de matemática.
O cara era tão doido que acabou desenvolvendo um método para
encontrar a felicidade. E, na verdade, era muito simples até. Consistia
em contabilizar diariamente a quantidade de derrotas e vitórias. Ele
passava o dia inteiro com uma planilha na mão fazendo risquinhos na
coluna “vitória” ou na coluna “derrota”. Acordou atrasado, derrota.
Tomou choque no chuveiro, derrota. Derrubou café na camisa branca,
derrota. Encontrou a vizinha gostosa no elevador, vitória. Ela nem
olhou pra ele, derrota. Lembrou que ela era sapatão, vitória. Carro
não pega, derrota. Carro pega, vitória. Carro morre de novo, derrota.
Carro quebra, derrota. Não consegue ir para o trabalho, vitória, sublime
vitória. Carro pega de novo, agora derrota. E assim por diante. Segundo
sua teoria genial, o segredo era manter o equilíbrio entre as duas colunas.
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Assim, ele seria uma pessoa emocionalmente estável e moderada. E
como ele fazia isso? Todo o final de dia, fazia as contas e descobria qual
era seu saldo médio. Se tivesse muito mais derrotas do que vitórias,
dava um jeito para equilibrar as contas, realizando tarefas que ele sabia
que seriam vitoriosas, por mais insignificantes e desimportantes que
fossem. Por exemplo, ia à zona e perguntava para uma puta se ele era
gostoso. Estava no carro quando fechava o farol. Olhava se não tinha
polícia e passava. Era uma vitória. Ia jogar damas com um sobrinho de
três anos. Aliás, esse era seu método mais utilizado até que o sobrinho
fez quatro anos e começou a ganhar dele.
No caso inverso, a mesma coisa. Segundo o grande pensador
contemporâneo gordinhochato, não era bom também ter muito mais
vitórias do que derrotas. Ele era meio budista ou qualquer coisa assim
e acreditava que o ideal era encontrar a harmonia entre as divergências
da vida. Por isso, quando as vitórias eram em maior quantidade do
que as derrotas, ele também dava um jeito de equilibrar as coisas. Ia à
loja de um judeu e pedia desconto. Telefonava para algumas garotas e
convidava para sair. Jogar dama com o sobrinho, depois que o menino
fez quatro anos. Teve um momento em que chegou até a mudar de
time do coração em função das estatísticas que não lhe estavam sendo
favoráveis. Mudava muito de opinião, principalmente se percebesse
que seu ponto de vista o levaria a uma derrota ou vitória indesejada. O
cara era mesmo um doido de fazer corar até o imperadorfrancêscomamãonabarriga.
Aos poucos ele foi percebendo que as vitórias e derrotas não podiam
ter o mesmo peso na pontuação. Uma fechada no trânsito não poderia
valer o mesmo que um seqüestro-relâmpago. Um sorriso de uma moça
bonita não podia ser comparado a um sorriso de uma moça com poucos
atributos estéticos. Ao longo do tempo, ele foi criando um compêndio
de pesos e valores que cada situação merecia. Criou uma tabela enorme
em que podia se encontrar quase tudo o que pode acontecer com uma
pessoa normal. Aliás, não sei como conseguiu fazer esta tabela, visto
que ele podia ser tudo, menos normal. Enfim, a tabela estava feita. E
cada situação de vida possuia um peso, um valor a ser computado. O
negócio era sofisticado, de fato.
Ele contabilizava e fazia planilha de tudo. Gráficos, curvas, projeções,
sua vida girava em torno de seu método delirante. Ele tinha registrado
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e devidamente arquivados relatórios diários, semanais, mensais,
semestrais, anuais e um grande gráfico de toda a sua vida.
A vida dele mudou muito. Conheci o gordinhochato antes de ele
começar com essa insanidade. Naquela época, ele tinha um ar de
desencantado, um semblante carregado, um olhar vazio. Depois dessa
história toda, tudo mudou. Em pouco tempo, já estava com um ar
carregado, um semblante vazio e um olhar de desencantado. Realmente
a mudança foi total, impressionante.
A coisa cresceu tanto e ele ficou tão entusiasmado com os resultados
que resolveu levar a público o seu método de vida binária. Escreveu
um livro onde a pessoa poderia aprender em pouco tempo como
transformar sua vida. Chamava “Como é bom ser bi”, ou qualquer
coisa assim, bem sugestiva. E não é que aquela porcaria foi um sucesso?
Vendeu horrores e o gordinhochato ficou muito bem de vida. Ficou
famoso. Ficou rico. Ficou bonito. Lindas mulheres se engalfinhavam
por ele. Que charme irresistível ele tinha. O dinheiro, quero dizer.
Mas esse sucesso todo foi a sua desgraça. Com dinheiro, fama,
poder, todas as capas de revista masculina querendo dar para ele, a sua
quantidade de vitórias superava em muito a de derrotas. E ele não
estava mais conseguindo compensar. As vitórias cresciam vertiginosamente e não havia nada que ele pudesse fazer. O gordinhochato
acabou ficando doente. E nem isso serviu como derrota, já que sua
enfermidade despertou a comoção nacional e muitas homenagens,
preces e macumbas foram feitas em seu favor, esperando pronta
recuperação. A quantidade de flores que recebeu daria para abastecer
uns cinco anos de Finados, pelo menos.Vitória atrás de vitória. Isso o
deixava cada vez mais doente. Ele não se conformava.
Acabou morrendo, o coitado. Morreu rico, famoso, poderoso,
gordinho, chato. Sua contabilidade que durante anos foi mantida em
equilíbrio estava completamente descompensada. Aquele homem
infeliz passou o último ano de sua vida só sofrendo vitórias. Uma atrás
da outra. Uma maldita vitória atrás da outra. As derrotas eram mínimas,
insignificantes, quase inexistentes. Pobre homem. O método que o
havia notabilizado não funcionou justamente quando ele mais
precisava, em seus momentos derradeiros, nos estertores de sua
miserável vida. Foi o desequilíbrio que o matou. Todas aquelas vitórias
fizeram dele um homem derrotado.
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A mentira e o comprimento de suas pernas
Minha idéia de mundo é parcialmente iconoclasta e moderadamente
incrédula, o que significa que não ponho a mão no fogo por nada nem
por ninguém. Jamais faria um churrasquinho de mão por você, por
exemplo, mas muito menos por mim mesmo. Por isso, acabei me
transformando numa espécie de marginal light. As pessoas se
incomodam com o que eu escrevo, mas acabam me aceitando, até
porque de uma forma ou de outra eu falo mal de todo mundo, e essa
é uma qualidade muito admirada pelas pessoas, principalmente por
aquelas que nunca foram citadas. Já as que foram... bem, essas não
nutrem um verdadeiro amor pela minha pessoa. Mas eu não os culpo.
Ou melhor, culpo sim. Para mim, são um bando de degenerados. Mas
devo dizer que a grande maioria das pessoas não sofreram sob minha
pena, não porque não merecessem, apenas porque não ainda deu para
conhecer todas as pessoas do mundo. Como esses privilegiados são a
grande maioria e também os que compram jornais e sustentavam aquele
circo de papel, meus queridos coleguinhas acabaram tendo de me
engolir. A seco, mas mesmo assim engolindo.
Uma das coisas que eu mais gosto é de desafiar os poderosos, não
na praia deles, mas na minha, é lógico. Não sou idiota e sou covarde.
Esta combinação interessante me levou a criar um chavão que acabou
se transformando na minha marca registrada. Quando algum figurão
dá uma declaração à imprensa, eu sempre faço a pergunta: “Você
passaria por um detector de mentiras?” Você não imagina as reações
que eu já presenciei após essa singela e despretensiosa pergunta. Na
melhor das hipóteses, eu levo uma sapatada do entrevistado. Mas
funciona que é uma beleza.
Uma vez, eu estava com a pulga atrás da orelha com uma estrela
em ascensão da política nacional. Ele era arrogante e vaidoso, por isso,
eu sabia que a entrevista seria quente. Quando eu fiz a minha pergunta
habitual, ele, preparado num curso de atores, respondeu que sim, que
passaria por um detector de mentiras. Foi o fim de sua carreira, por
que ele não esperava que eu estivesse com um desses aparelhos ali no
carro, para, na frente de toda a imprensa, testar a sua canalhice. Todos
sabem que o detector de mentiras não é cem porcento confiável, até
porque foi inventado por um ser humano, mas faz o maior sucesso
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com os maldosos, grupo do qual orgulhosamente faço parte. O sujeito
ficou sem ter como fugir e acabou sendo sabatinado pela imprensa
preso à engenhoca. Foi um desastre. Para ele, claro. Para nós da
imprensa, foi o dia mais divertido de todos os tempos. Bastou eu
perguntar se ele já estava pronto que a agulha que mede a reação
mentirosa deu um salto mortal diante do “sim”. Mas não durou muito
a nossa festinha. Quando o escroque engomadinho percebeu que, a
cada pergunta, ele se afundava mais, simulou um ataque do coração.
Imediatamente, a agulha quase pulou para fora da maquininha. Mas a
gente não queria chutar cachorro morto e fingimos que acreditamos
no ataque. Mas só por uns segundos. Na verdade, nosso esporte
predileto é chutar em cachorro morto e então continuamos a fazer
perguntas delicadas e o cara acabou tendo mesmo um ataque cardíaco.
Não foi nada grave, e em um ou dois meses ele saiu do hospital com
trinta e cinco pontes de safena, só que nunca mais retornou à carreira
política. Foi uma pena, realmente. Perdemos nosso grande ídolo, nosso
herói, nosso muso inspirador, nosso bozo.
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Mentiras e verdades
Bem, duvidar de políticos e celebridades não é exatamente uma
exclusividade minha, portanto não vou ficar aqui me regozijando de
atitudes que qualquer pessoa normal pode tomar. Por exemplo, essa
história que eu acabei de contar do político que teve um ataque não é
totalmente verdadeira, até porque eu não sou muito ligado a esses
detalhes. Para mim, verdade e mentira não têm muita diferença entre
si. São apenas duas versões de fatos que poderiam perfeitamente ser
infinitas. E se eu um dia tiver de passar por um detector de mentiras,
provavelmente vou dar um nó na geringonça. Portanto, já vou avisando,
tudo o que você ler aqui será extremamente duvidoso. Não é bom
acreditar em mim, juro.
Cuba lançou
Me lembro até hoje onde eu estava quando ouvi falar pela primeira
vez nesta história de vírus da felicidade. Me encontrava em Cuba,
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investigando o caso que foi uma verdadeira obsessão por quase toda a
minha vida: o assassinato de mamy, que havia acontecido uns quarenta
anos antes. Eu era bem pequeno quando ela saiu de casa,
completamente transtornada por causa de um entrevero que teve com
papy. Nunca mais a vi, nem tive notícias suas. Só soube de sua morte
uns poucos anos depois acontecida nos Estados Unidos. Foi encontrada
no campanário de uma igreja com a cabeça esmagada. Ao seu lado,
um exemplar de um livro do escritorbarbudoquesematou que falava
sobre sinos dobrando, ou qualquer coisa do tipo. Aparentemente, este
livro, de capa dura, foi a arma utilizada no crime, segundo o legista
encarregado do caso. Mamy morreu levando várias livradas na cabeça,
pobrezinha. Alguns anos depois de eu me formar jornalista, decidi
investigar o crime por conta própria já que na época ninguém se
interessou muito em descobrir a verdade. Sempre que podia, conseguia
uma folga para seguir as poucas pistas que havia do caso. E Cuba foi o
primeiro lugar para onde ela fora após sua fuga de casa, sua deserção
de nosso exército familiar.
Aproveitando minha visita à ilha, estava conhecendo a casa onde
morou justamente o escritorbarbudoquesematou. Mamy era uma
grande fã dele, mas eu também nutria uma grande admiração por seu
trabalho, mas mais ainda por seu estilo de vida. Aventureiro contumaz,
vivia intensamente e ainda era grande naquilo que fazia para viver.
Não dá para entender porque se matou. Quer dizer, até dá. Deve ter
pintado uma baita depressão e ele não resistiu. Depressão é assim, não
tem explicação. Você fica com vontade de morrer e isso se transforma
na coisa mais importante do mundo. A morte é o descanso, o alívio.
Pára a vida que eu quero descer. Não tem nada a ver com conquistas
materiais, dinheiro, fama, nada. Dizem até que era um problema
congênito. O pai dele se matou e parece que o irmão também. Sem
contar que ele estava com câncer e provavelmente sua saúde debilitada
não combinava com seu estilo másculo de viver. Bom, cada um com
sua dor.
A casa onde ele morou por vinte anos havia se transformado num
museu e tudo lá dentro permanecia do jeito que ele havia deixado
quando abandonou a ilha. Um lugar realmente interessante. Como
me deu vontade de ser ele. Ter a vida que ele teve.
De volta ao meu hotel havia um recado da redação do jornal onde
eu trabalhava. Pediam para que eu entrasse em contato imediatamente.
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Como a pressa era deles e não minha, acendi um charuto com uns
dois palmos de cumprimento e comecei a refletir sobre a vida de mamy,
mas logo meus pensamentos se voltaram para o escritorbarbudoquesematou. Que vida maravilhosa. Que morte besta. Será que era
o preço que a vida cobrava? Para se ter tudo o que ele teve enquanto
esteve vivo, foi morrer de forma trágica? E, provavelmente, passando
por um sofrimento nada menos que insuportável? Eram perguntas as
quais eu não sabia a resposta. Ninguém sabia. E daí? O cara já tinha
morrido há tanto tempo... Quem se importa? E a mamy? Ela sim
importava. O que havia acontecido com ela? Cedo ou tarde, eu acabaria
descobrindo. Ou não.
Quando terminei de fumar, me dirigi lentamente, o mais lentamente
que consegui, ao telefone e fiz a ligação para a redação do jornal. O
editorincompetente contou a história do grupo de estudantes
finlandeses que estava causando grande curiosidade na comunidade
jornalística mundial e mandou que eu esquecesse a minha folga e fosse
escrever um artigo sobre o assunto. Fiquei tão feliz. Adorava ser
interrompido em minha investigação sobre a morte de mamy para
escrever artigos sobre assuntos idiotas. O que será que o escritorbarbudoquesematou pensaria desse vírus? Como seria um artigo escrito
por ele sobre o assunto? Talvez ele se matasse antes de ter de escrever
sobre tamanha bobagem. Será que não foi isso que aconteceu com ele?
Ele era feliz e tal, aí um dia um editor incompetente ligou para ele e
pediu para escrever um artigo sobre a possibilidade da participação de
judeus ortodoxos na invasão da Baia dos Porcos. Ele não suportou e
meteu uma bala na boca. Só pode ter sido isso. Não o recrimino.
Lógico, uma coisa dessas deprime qualquer um.
Lembro claramente que, desde aquele momento, achei essa história
do vírus uma bobagem. Realmente não acreditava que fosse possível
alguém ficar feliz de verdade. Do jeito que a vida é, as coisas que
acontecem com a gente, as pessoas com quem temos de conviver, o
preço da ligação telefônica para o Sri Lanka, o cheiro dos banheiros
públicos, tudo, absolutamente tudo o que nos cerca praticamente
impossibilita a felicidade em qualquer grau. Mas, como eu já disse lá
atrás, existem sempre os que acreditam. Pobres almas.
O editorincompetente queria que eu fosse a Helsinque cobrir a
história, mas consegui convencê-lo de que não valia a pena por
enquanto investir tanto dinheiro num assunto ainda sem confirmação.
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Ele relutou, mas acabou aceitando. Sem sair de Cuba, fiz algumas
ligações e ativei alguns contatos internacionais para escrever o artigo.
Fiquei mais alguns dias e voltei para casa. Foi uma viagem muito boa,
tirando é claro o fato de eu ter tido que viajar de avião, que, para mim,
é uma tortura chinesa. Mas mais para frente eu falo sobre isso. O
melhor dessa viagem é que não gastei um tostão. Foi tudo presente do
dono de uma grande empresa de turismo. Antes que você pense que
sou daquele tipo de jornalista que fica aceitando presentinho de
empresário, saiba que este empresário em particular não era ninguém
menos do que meucunhadobabaca. E antes que eu me esqueça: sou
mesmo do tipo de jornalistas que aceita presentinho de empresários.
Nunca se sabe o dia de amanhã, não é mesmo?
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Rumo a Helsinque
Pois é, eu tinha um cunhado babaca – está vendo como tudo na
vida conspira contra nossa felicidade? – dono de uma grande empresa
de turismo. Ele era uma espécie de tubarão do entretenimento. Um
gigolô de férias alheias. Para ele, o passeio chato e desconfortável dos
outros era seu passaporte para a felicidade. Não havia nada no mundo
que o impedisse de perpetrar as maiores barbaridades para fazer com
que sua agência de turismo crescesse e aparecesse. E ele enriquecia,
cada vez mais. Bacana, meucunhadobabaca.
Bastou sair o meu artigo sobre o vírus da felicidade que ele teve um
troço. Foi até me esperar no aeroporto para me contar, tamanha era
sua ansiedade. Quando cheguei, nem me disse olá. Foi logo despejando
seu caminhão de lixo verbal em cima de mim. Seus olhinhos pequenos
e vazios brilhavam com uma intensidade nunca vista. Seria o seu salto
para a imortalidade, a sua redenção, ia lavar a égua. Ele sempre teve
bons contatos em todo o mundo, às custas de muita propina, é claro.
Pois é, ele aproveitou esses contatos e criou uma série de pacotes para
a Finlândia com hospedagem em hotéis da Floresta Bege e a garantia
de uma picada do mosquito transmissor do vírus. Mais do que isso,
ele ofereceria a seus clientes incautos a garantia da felicidade eterna. E
em dez vezes sem acréscimo.
Tentei convencê-lo da loucura, mas ele estava cego, louco, feliz. O
vírus nem o havia atingido e ele já estava sentindo os efeitos da doença.
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Cheguei até a perguntar se ele acreditava na história da felicidade
epidêmica e ele respondeu “claro que não!”. Disse que não era idiota
de acreditar numa bobagem daquelas, mas que a opinião dele não
importava. Ele era muito modesto. Disse que estava levando em conta
a opinião de seus milhares de clientes, e que realmente a minha ou a
dele não valiam uma nota de dinheiro falso rasgada ao meio. Diante
da força e contundência dos argumentos, me resignei e calei. Ele me
deixou em casa e foi embora com um sorriso que quase dava a volta
em seu rosto e se tocava na nuca.
Admiração incondicional
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Por favor, não me julguem mal, mas eu quase admirava
meucunhadobabaca. Uma pessoa tão despreparada e inculta, sem
nenhuma educação, hipócrita e egoísta, ele tinha uma sabedoria primal.
Aquela consciência do inconsciente que faz com que pessoas
absolutamente medíocres consigam vencer os obstáculos da vida e se
realizarem, tanto pessoal como profissionalmente. Ele era um trator,
passava por cima de tudo e de todos com a sua vontade incansável, seu
desejo incontrolável e seu desodorante vencido. Era um vampiro que
roubava a energia de pessoas à sua volta. Gente boa, meucunhadobabaca. Quando chegava em um lugar, começava a falar
compulsivamente de seus planos mirabolantes, gesticulando sem parar
e com uma voz que parecia um trovão que deu xabú. Não sobrava
tempo nem espaço para ninguém. Ele tomava conta mesmo.
Tá lento, talento
Na mesma noite que voltei de viagem, fomos a um sarau de
intelectuais, eu, ele e minhairmãproblemática. Não demorou muito
para ele dominar o lugar, roubar a cena, até porque roubar era uma de
suas mais admiráveis qualidades. O lugar estava atulhado de intelectuais
iletrados e aspirantes à eternidade. Todos se calaram quando
meucunhadobabaca tirou os sapatos e colocou os pés em cima da
mesinha indiana do século XVIII e ficou mexendo os dedinhos com
expressão de prazer no seu rosto lunar: redondo, frio, branco e cheio
de crateras. Como era um sarau ele se sentiu na obrigação de mostrar
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seus dotes artísticos a todos os presentes. Sem muita cerimônia, ou
sem nenhuma, sacou do bolso um papel dobrado onde ele mesmo
havia escrito algumas palavras sobre a mulher. Carregado de preconceito
e chauvinismo, o poema – desculpe chamar assim, mas não encontro
outra palavra – arrancou aplausos entusiasmados de boa parte da platéia,
até mesmo das mulheres, já que era tão absurdo que elas consideraram
que só poderia ser brincadeira, ironias de um grande pensador da
mulher moderna, defensor da igualdade e até mesmo da superioridade
feminina. Já os homens, aplaudiram porque entenderam que aquele
era um pensamento legítimo e autêntico de um homem sem nada a
esconder.
A partir desse momento, o sarau foi totalmente canalizado para
meucunhadobabaca. Virou o centro das atenções e sua figura tosca,
admirada pelos homens, passou a causar, apesar de sua feiúra indômita,
suspiros entre as mais belas damas presentes. Não posso afirmar com
precisão cirúrgica (não tem importância já que adoro espalhar esse
tipo de notícia picante), mas acho, que com aquele poema, que poderia
ser considerado o manifesto definitivo do caminhoneiro da mais nobre
estirpe, daquele sarau, meuqueridocunhadobabaca levou para cama,
nos dias seguintes, umas quatro ou cinco damas da sociedade, todas
independentes, todas feministas e todas casadas, como ele. E felizes,
como ele.
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Cobaias da província
Não preciso dizer que os pacotes turísticos criados por
meucunhadobabaca foram um retumbante sucesso. Não preciso dizer,
mas disse. Filas de espera de meses, linhas telefônicas abarrotadas, e
conta no banco idem. Meucunhadobabaca lavou a égua, o cavalo, o
pônei e até a zebra. Ele estava nas nuvens. Tão exultante que chegou a
me oferecer uma semana grátis para conhecer a sua galinha dos ovos
de ouro. Não, ele não estava me oferecendo sua amante e sim uma
viagem com tudo pago para a Finlândia. Quando perguntei se ele iria
também, me respondeu com uma gargalhada. Ele achava essa história
do vírus realmente fantasiosa e ridícula. Mas, na propaganda de sua
agência de turismo, garantia que era verdade. O canalha chegou a me
dizer que de fato o vírus da felicidade existia já que com os milhares de
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incautos que usufruíram de seus pacotes à Finlândia deixaram em seu
caixa uma quantia capaz de deixar qualquer um com uma felicidade
inquebrantável. É claro que eu não aceitei o presente.
Em pouco tempo, a empresa do meucunhadobabaca era a primeira
no ranking de agências de turismo a visitar a Floresta Bege em busca
da felicidade. Aliás, cabe aqui comentar que a elite do nosso país sempre
se mostrou atenta às tendências internacionais e nunca se furtou a ser
cobaia provinciana de modismos, quaisquer que sejam e que, portanto,
não poderia fugir do dever patriótico de trazer para a nosso amado
país mais este grande título. Em matéria de relevância social,
profundidade cultural e princípios éticos a nossa elite sempre foi “a
melhor do mundo”. Graças a deus, que não por acaso é nosso
compatriota.
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No ar, mais um campeão de audiências na justiça
Meucunhadobabaca sempre foi um grande negociante. Sempre teve
um faro apurado para os negócios. Já em matéria de tato, ele sempre
foi um neanderthal. Mas, como um cachorro, o faro lhe bastava, além
de encobrir as deficiências. Anos antes de abrir a agência de turismo,
ele ganhou um bom dinheiro vendendo um souvenir que faz muito
sucesso em todo o mundo. Muito divertido e completamente inútil,
eram latinhas vazias, imitando uma embalagem de sardinhas, em que
se supunha conter o ar de cidades famosas. “Ar de Paris”, ou “Ar de
Nova York”, “Ar de Roma”, e assim por diante. Era ar, mas vendeu que
nem água. Meucunhadobabaca não estava dando conta de tantas
encomendas vindas de todos os lugares do mundo. Um dia,
descobriram que, para enxugar os custos de produção, meucunhadobabaca mandava fabricar estas latinhas na Indonésia. Não
importava o nome da cidade que estivesse escrito na lata, vinha tudo
da Indonésia. Quer dizer, além de inútil, o produto que fez o pé-demeia de meucunhadobabaca era falso. A notícia se espalhou
rapidamente e ele teve de fechar sua empresa e ficar alguns meses
foragido da polícia. Quantos milhões de pessoas hoje em dia se
regozijam de estar guardando em suas casas o ar de grandes cidades?
Não que isso faça diferença. Um palerma que compra este tipo de
souvenir merece mesmo ser enganado. Mas esta história para mim é
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emblemática. Demonstra claramente o verdadeiro talento de um bom
comerciante: ganhar dinheiro vendendo ar. E no caso específico do
meucunhadobabaca, ar falsificado. Coisa de gênio.
Felicidade em pó
Na volta do sarau, aconteceu uma pequena discussão no carro.
Minhairmãproblemática estava doidinha para ir à Helsinque e
meucunhadobabaca não queria de jeito nenhum que ela fosse. Detesto
admitir, mas, nesse ponto, acho que ele teve um mínimo de dignidade
e bom senso. Não queria que ela passasse por idiota, acreditando
naquela bobagem. Já comigo ele não teve esse cuidado, essa delicadeza.
Com ela, fez de tudo. Até tentou uma coisa diferente: ali mesmo no
carro prometeu levá-la para dar a volta ao mundo, só viajando de
primeira classe e ficando nos melhores hotéis do planeta.
Minhairmãproblemática não aceitou a oferta e disse que iria de qualquer
jeito para Helsinque, com ou sem a ajuda e o consentimento do marido,
meucunhadobabaca. Ele teve de aceitar.
Semanas depois, eles partiram e ficaram quase dois meses viajando.
E não adiantou nada. Ela voltou deprimidíssima. Estava muito pior
do que quando foi. Fez a viagem que tanto queria e ainda assim estava
infeliz. Se eu fosse o meucunhadobabaca matava a desgraçada. Mas, se
ele matasse a minhairmãproblemática, eu seria obrigado a matá-lo
também. Ia ser uma carnificina desnecessária já que a minhairmãproblemática nunca foi muito feliz mesmo.
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Depressão e depressinha
Era de família. A gente não conseguia se achar nesse mundo.
Tentava, tentava, mas não conseguia. Eu era mais resignado, mas ela
sempre fazia de tudo para se livrar dessa sina. Era muito mística,
acreditava em tudo e sempre acabava decepcionada. Fez todo tipo de
análise e de tratamentos espirituais, não saia de casa sem ler o horóscopo,
fazia meditação, consultava regularmente o tarólogo, aplicava o feng
shui em sua casa e não tinha jeito: continuava infeliz.
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Desta vez, era a mesma coisa. Ela estava acreditando demais no
vírus e na doençaenganatrouxa e queria de qualquer jeito ser infectada
de bem-aventurança. Era a chance que sempre esperara na vida. Poder,
finalmente, ser feliz e abandonar toda essa bobagem mística, que, no
fundo no fundo, ela também não acreditava, mas queria muito
acreditar. Queria que toda aquela baboseira fosse verdade, mas a
realidade sempre foi mais convincente. Pobre minhairmãproblemática,
estava mais uma vez embarcando numa canoa furada, uma canoa que
parecia uma peneira. Mas fazer o quê? As pessoas acreditam. São loucas
para acreditar.
Meucunhadobabaca não entendia muito bem a minhairmãproblemática. Se bem que nenhum homem entende muito bem nenhuma
mulher, então estava tudo bem com eles. Tudo bem, médio.
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Diferentemente igual
Na verdade, nunca entendi muito bem o que unia minhairmãproblemática e meucunhadobabaca. Eram duas pessoas completamente
diferentes e diria até opostas. Mas já estavam casados havia tanto tempo
que eu tenho até preguiça de fazer as contas. Eles não concordavam
com nada e mesmo assim seguiam vivendo juntos. A casa deles era um
festival de meios-termos. Uma exposição permanente de “meio do
caminho”. Nenhuma peça de decoração agradava aos dois, portanto
para se comprar alguma coisa só era possível se fossem aqueles objetos
que, se não agradavam, também não causavam nojo e desprezo. E o
resultado era uma casa sem personalidade, sem sal, sem gosto. E eles
seguiam vivendo juntos. Cada um tinha a sua verdade e uma não
convergia com a outra e mesmo assim não deixavam de ser verdades.
Ou mentiras. Sei de alguns casos que o meucunhadobabaca teve,
contados por ele mesmo e também desconfio que minhairmãproblemática não era nenhuma santa. Ela não tinha o corpo muito bonito,
mas era uma mulher muito interessante, muito interessante. Mesmo
sendo minhairmãproblemática eu reconhecia seus dotes físicos.
Interessante e inteligente. Namorou muito antes de casar. Se eu contar
para você a metade dos caras para quem ela deu o livro vai acabar e
ainda vai ficar um monte de gente de fora, o que seria uma tremenda
injustiça. A moça, porém, se fazia de santa, dizia que ninguém olhava
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para ela, ninguém mexia com ela na rua, que nem peão de obra notava
quando ela passava. Aliás, isso tinha a ver com outra característica
dela: minhairmãproblemática mentia que era uma beleza. Conhecendo
homem, você acha realmente que existe alguma mulher que passe em
frente a uma obra e não seja alvo de doces baixarias? E interessante
como ela era, trabalhando fora, não tinha nenhum desavisado a fim de
dar um passeio naquele jardim? Ela mentia no básico, nas coisas que
não precisaria mentir. É claro que todo mundo mente um pouquinho
de vez em quando, mas ela exagerava.
Meucunhadobabaca, coitado, pelo menos dentro de casa ele era
honesto. Justo com ela que não o tratava da mesma forma. Ele tinha
um comportamento muito transparente. Só não falava dos casinhos
inocentes que tinha, mas aí a gente entra naquele tipo de mentira que
eu disse que é aceitável. A verdade é que os dois tinham algum tipo de
carência que era suprida pelo outro. Amor ali, não existia. A relação
deles era uma grande mentira.
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Surpresa, surpresa!
Minhairmãproblemática e meucunhadobabaca foram para a Floresta
Bege, ficaram no ponto mais central, passearam quase uma semana
pelos bosques e tomaram algumas picadas dos insetos transmissores
da doençaenganatrouxa.
Fui buscá-los no aeroporto e a cena que presenciei não poderia ser
mais burlesca: minhairmãproblemática, fiel seguidora da crença na
doençaenganatrouxa estava, como sempre, deprimida. Meucunhadobabaca – cuja felicidade sempre esteve sustentada por três grandes
pilares: um bom saldo bancário, um estoque de cerveja gelada e bastante
tremoço para acompanhar – estava radiante, irritantemente radiante.
E não era apenas efeito da doença, não. É que visitar o centro de sua
maior fonte de renda o fez perceber a verdadeira dimensão dos lucros
que poderia alcançar.
Fomos jantar em um restaurante muito chique e em pouco tempo
de conversa fiquei sabendo que os rumos empresariais do
meucunhadobabaca haviam mudado completamente durante a viagem.
Eu e toda a clientela do restaurante, já que a mula falava bem alto. Ele
me disse, ou nos disse, tanto faz, entusiasmado, que, ao contrário do
que esperava, o turismo na região estava começando a desaquecer.
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PROSAICO – HENRIQUE SZKLO
Alguns hotéis e restaurantes começavam a fechar as suas portas. Eu,
equivocadamente, sugeri que finalmente as pessoas haviam percebido
que aquilo tudo era uma bobagem sem fim e como várias modas
ridículas estaria nos seus momentos finais. Que nada, disse ele com
entusiasmo. Ao contrário. A doençaenganatrouxa era uma realidade e
o grande boom estava apenas começando. Tudo porque um
professorindiano de biologia que havia viajado para lá teria conseguido
transformar a picada do mosquito que causava a doença em vacina. O
lobby da indústria farmacêutica contra a aceitação da doença era pesado,
mas não resistiu. Ninguém resiste à tanta felicidade. O professorindiano
começou fabricando a droga, ele mesmo, numa garagem e vendendo
nos pontos turísticos, mas logo os hotéis e restaurantes passaram a
vendê-los e em pouco tempo ninguém mais precisava ir até a Floresta
Bege para contrair a doença. Bastava uma única dose da engenhosa
injeção para em poucos dias já começar a sentir os efeitos da felicidade
plena. Não demorou muito para um grande laboratório perceber que
não adiantava mais lutar contra e acabou comprando a idéia do
professorindiano. Ele enriqueceu da noite para o dia e as ações do
laboratório subiram mais de cinco vezes, deixando felizes não só os
infectados como também os acionistas. Estes certamente mais felizes
do que os primeiros.
E por que tanto entusiasmo do meucunhadobabaca? Primeiro
porque ele já era um riso-positivo e, mais importante que isso, havia
fechado um acordo de importação e seria distribuidor exclusivo da
doença em nosso país. Bingo! Disse que sua primeira atitude seria
fechar a agência de turismo e se dedicar exclusivamente à disseminação
da doençaenganatrouxa. Ele seria uma espécie de embaixador da
felicidade zenital. Achei muito louvável de sua parte, querer levar a
felicidade aos quatro cantos de uma pátria tão sofrida. Cheguei a
acreditar que meucunhadobabaca iria para o céu ao morrer e só não
me derramei em lágrimas porque tinha uma reputação a zelar. Grande
merda.
Para mim estava claro que o fim do mundo mostrava seus primeiros
e inapeláveis sinais. Um remédio que causava uma doença que todo
mundo queria pegar. Sendo que o agente de tudo isso era o
meuqueridíssimocunhadobabaca, veja só. Só mesmo com a raça
humana isso poderia estar acontecendo.
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Nosso jantar, entretanto, foi muito proveitoso, principalmente
porque com as informações trazidas pelo meucunhadobabaca, eu pude
mais uma vez adiar a viagem à Finlândia e acabei escrevendo mais um
artigo sem tirar a bunda de minha cadeira predileta, uma espécie de
protegida minha, que tinha o sagrado privilégio de acomodar e
armonizar as duas partes do que de melhor havia em meu corpo físico.
Estética e conceitualmente. Mesmo encantado com minha retaguarda,
eu não conseguia me livrar de uma forte sensação de que aquele vírus
da felicidade ainda acabaria com a minha alegria.
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