Os circuitos da economia urbana nas cidades brasileiras
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Os circuitos da economia urbana nas cidades brasileiras
Os circuitos da economia urbana nas cidades brasileiras María Laura Silveira A cidade como meio construído e como mercado Neste trabalho apresentamos algumas idéias e resultados de um projeto de pesquisa em andamento, cujo principal objetivo é a busca de um entendimento mais sistemático das relações entre o espaço urbano e o movimento da sociedade, atentando para a segmentação da economia urbana em um circuito superior, um circuito inferior e um circuito superior marginal (M. Santos, 1975). A premissa de partida é, todavia, considerar a cidade como um todo em permanente movimento. A cidade é uma totalidade, feita de coisas e pessoas, de objetos e relações, de formas e ações, num movimento desigual e combinado, numa dinâmica de cooperação e conflito. A expansão acelerada das suas formas, encarnada num processo de intensa periferização, que defronta os administradores ao problema da escala do acontecer, assim como a hibridação de ações públicas e privadas tantas vezes numa política corporativa, menos visível mas tão onipresente quanto as novas morfologias, ofuscam no espinhoso encontro de enfoques totalizadores. Diante do seu crescimento e da multiplicação dos problemas, a totalidade urbana emerge, mais do que antes, inexaurível, convidando, tantas vezes, a um abandono gradual dos estudos globais sobre as cidades. Se os retratos raramente podem ser exaustivos, a vocação totalizadora da teoria não poderá faltar, pois a cidade não é apenas uma soma de parcelas, nem apenas um sistema de objetos, mas o conjunto da base material e da vida que a anima. Em outras palavras, a cidade será vista como um meio construído (uma dada materialidade, isto é, pontos, linhas e manchas, contíguas ou não) e como um grande mercado (um conjunto de atividades realizadas em certo contexto e o setor da população associado pela atividade e pelo consumo). Por isso, podemos dizer que, na cidade, todas as atividades encontram o seu lugar. Se a consideração do meio construído como uma totalidade é um partido de método, é preciso olhar, ao mesmo tempo, os sistemas de ações ou, em outros termos, ver a cidade como um conjunto, solidário e contraditório, de divisões do trabalho. Suas funções mais modernas, aquelas que norteiam sua inserção na atual divisão internacional RII – VIII Seminário Internacional Grupo 4 – Globalização e expansão metropolitana 1 do trabalho hegemônica, não podem ser confundidas com a cidade ela própria. Conjunto de todos os instrumentos de trabalho e de todas as formas de fazer, a cidade somente poderá ser entendida ao considerar a coexistência de divisões territoriais do trabalho. A cidade não é apenas o reino das grandes corporações e dos grandes bancos, o reino do circuito superior, mas também o lugar do trabalho não-especializado, das produções e serviços banais, das ações ligadas aos consumos populares - aquelas necessidades criadas pelo nosso tempo mas cuja resposta não é dada a todos pela economia hegemônica. Daí a proposta de distinguir analiticamente, nessa totalidade, os circuitos da economia urbana. Enquanto o circuito superior é constituído pelos bancos, comércio, indústria e serviços modernos amiúde orientados à exportação, o circuito inferior é integrado por formas de fabricação que não são intensivas em capital e pelo comércio e serviços não-modernos. O circuito superior marginal é constituído por formas mistas, pertencentes tanto a atividades herdadas de divisões do trabalho pretéritas como a formas de trabalho emergentes e inseridas nas atividades modernas. Não se trata, porém, de atividades divorciadas, mas de um sistema de vasos comunicantes, no qual todos os circuitos são resultado das modernizações e das respectivas transformações na divisão territorial do trabalho. Mas, o entendimento do real total somente pode ser alcançado quando visto como um período. Nos últimos trinta anos houve, no Brasil, uma importante modernização industrial, mas pode-se admitir que o aumento da população empregada foi devido à profusão, nas metrópoles, de indústrias menos modernas, de escasso capital e cuja existência esteve vinculada à expansão do consumo tanto das classes médias como dos pobres. Os estabelecimentos de pequeno porte contratavam cerca de dois milhões de pessoas no Brasil em 1980, o dobro da década anterior e duas vezes a quantidade de funcionários das empresas industriais de grande porte. Por isso, a pobreza tem sido, de alguma maneira, um entrave à plena oligopolização da economia, permitindo que firmas menores subsistam naqueles pedaços da cidade mais desvalorizados. Mas, a intensa urbanização, a reorganização do Estado e da economia, a monetarização da economia e da sociedade que vai se perfazendo, os acréscimos de ciência, técnica e informação à vida social e ao território e a diversificação e aprofundamento dos consumos são dados novos do período, que alteram a natureza do espaço em que os circuitos da economia urbana se desenvolvem. RII – VIII Seminário Internacional Grupo 4 – Globalização e expansão metropolitana 2 Hoje, as metrópoles despontam como a sede de comandos vinculados a atividades modernas mas, ao mesmo tempo, como o principal cenário de atividades de aglomeração - menos capazes de mobilidade espacial ou mais capazes de florescimento local associadas ao circuito superior marginal e ao circuito inferior da economia urbana. O importante aumento das cidades milionárias e das grandes cidades médias (em torno do meio milhão de habitantes) permite a diversificação e densificação da divisão do trabalho. Quanto maiores e mais populosas as cidades, mais capazes são elas de abrigar uma extensa gama de atividades e de conter uma lista maior de profissões (M. Santos e M.L. Silveira, 2001), autorizando uma maior complexidade dos circuitos da economia urbana no período atual. Esse mesmo processo de urbanização tem um papel relevante sobre o mercado, que cresce e ganha em espessura e segmentação. Nas grandes cidades brasileiras, o número de pobres é importante. Se pela precariedade de suas rendas, sua demanda é menos freqüente, o seu número, sempre crescente, traz consigo um certo efeito de compensação. As maiores cidades reduzem os custos de produção e circulação, mas isso é mais relevante para os circuitos inferior e superior marginal. A globalização, suas unicidades e os circuitos Diante das unicidades produtoras da globalização (M. Santos, 1996) - a unicidade das técnicas, da informação e do dinheiro -, as dinâmicas urbanas ganham novos conteúdos. Hoje uma base material, com vocação invasora, desenha densidades e rarefações na cidade. Todavia, o papel do consumo, ancorado na publicidade e no crédito, ainda mais quando uma boa parcela dos objetos é semovente, alarga o uso dessa nova base técnica inclusive em áreas pouco modernas. Amparados na convergência entre informática e telecomunicações e nas necessidades contemporâneas da produção e comunicação de idéias, imagens e dados em geral, telefones celulares, computadores, equipamentos de fotografia e vídeo tornam-se mais acessíveis às diversas camadas sociais. Em 2000 eram 17,3 milhões de pessoas com computador em casa, sendo que as cidades da Região Concentrada (M. Santos e A.C. Torres Ribeiro, 1979) eram as melhor dotadas. Quanto aos telefones celulares, sabemos que o serviço pré-pago difundiu-se largamente. Comprados no intuito de aumentar a disponibilidade às eventuais RII – VIII Seminário Internacional Grupo 4 – Globalização e expansão metropolitana 3 oportunidades de trabalho, sua densa presença mostra o papel do consumo entre os mais pobres e sua necessidade de comunicação mas, também, a existência de uma rede fixa rarefeita e, sobretudo, um uso escasso pelo alto valor das tarifas da telefonia celular e fixa. Assim, se as grandes corporações dominam a produção e a venda desses objetos, o resto da circulação permanece em mãos de outros agentes. É o caso dos consertos de alguns desses aparelhos, assim como da revelação de filmes e do aluguel de vídeos nas periferias. Por isso, o funcionamento dessa base técnica depende também do circuito superior marginal e do circuito inferior, que são criadores de economia, pois permitem a reutilização dos bens e a distribuição, tantas vezes desinteressante para os grandes capitais. Desse modo, tanto pela expansão dos novos produtos, amiúde tornados instrumentos de trabalho em atividades não-hegemônicas, como pela proliferação de atividades de conserto, os circuitos superior marginal e inferior participam, de forma crescente e por vezes contraditória, na produção da unicidade técnica. Se os objetos ligados às telecomunicações e à reparação de maquinários da base industrial alargam o universo do circuito superior marginal, pela demanda de qualificação e de instrumentos específicos, o conserto de boa parcela da atual base material doméstica fundada no consumo globalizado, refugia-se freqüentemente no circuito inferior, como os eletrodomésticos e por vezes os veículos. De um total de 791.954 micro e pequenas empresas de prestação de serviços no país, 77.493 pertenciam, segundo estatísticas do IBGE, em 2001, à manutenção e reparação de veículos e de objetos pessoais e domésticos. Os acréscimos de ciência e tecnologia à medicina e suas áreas afins revelam uma das manifestações da unicidade técnica contemporânea. É o caso da indústria farmacêutica. Altamente concentrada em corporações globais responsáveis pela maior parcela das pesquisas científicas, a fabricação de medicamentos revela, todavia, interstícios que são ocupados por empresas médias e pequenas. Trata-se, por exemplo, de campos menos quimicizados como a produção de produtos fitoterapêuticos próprios de um circuito superior marginal. Mesmo com sua vocação para tornar-se um sistema invasor, que despreza as solidariedades com objetos técnicos mais antigos, as técnicas contemporâneas possuem uma qualidade inexistente em períodos anteriores. Elas são divisíveis, flexíveis, dóceis (Th. Gaudin, 1978; 1999; M. Santos, 1996; 2000) porque permitem, por exemplo, com alguns instrumentos e num pequeno local, fabricar um produto ou organizar um serviço RII – VIII Seminário Internacional Grupo 4 – Globalização e expansão metropolitana 4 que pode ser vendido. Pelo fato de ser altamente demandantes de inteligência e informação, elas permitem usos e escalas distintos. Essa é a sua grande diferença com o sistema técnico do período industrial. A informação é, por essa razão, a verdadeira energia que impregna a ação contemporânea. Mas é também produtora de unicidades. Uma certa informação de cunho globalizante, verticalmente produzida e difundida, aparece como sinônimo do tempo hegemônico do período, indutora de um pensamento único e de comportamentos padronizados. Essencial às divisões territoriais do trabalho particulares das corporações globais, a informação estratégica encarna os nexos extravertidos do território brasileiro (H.K.Cordeiro, 1993; R.L. Corrêa, 1996) e, podemos asseverar, é um sofisticado circuito superior, mormente sediado na cidade de São Paulo. A formulação das bases técnicas, políticas e normativas, precisas e funcionais às exportações, privatizações e fiscalizações, enfim ao novo uso do território nacional são, assim, confiadas a um restrito grupo de empresas mundiais e nacionais de consultoria (A. Bernardes, 2001). Se o espaço da sua ação confunde-se com o território nacional e com o mundo, a intensidade das suas demandas no espaço contíguo é fraca. Não há um uso intensivo da força de trabalho, nem da tecnologia, nem da informação do lugar, assim como não há dependência dos mercados contíguos. Diante das grandes aglomerações urbanas brasileiras a questão é como sobrevive a maior parcela da população senão de um trabalho cujo contexto não ultrapassa a escala da metrópole? Será que quem trabalha em atividades dependentes da contigüidade não utiliza as variáveis do período? Ou haverá uma produção própria, por exemplo, de informação e publicidade? Qual informação técnica e mercadológica está, então, no cerne da ação da maioria da população urbana? O consumo é ação e, por isso, hoje ele é prenhe de informação. Poucas são as atividades, empresas e lugares que parecem permanecer alheios, por exemplo, a um forte conteúdo de publicidade próprio do nosso tempo. O resultado desse ato de império é a existência de agências pequenas e médias que participam da produção global de propaganda graças às formas e normas da terceirização, assim como de firmas criadoras de uma publicidade para o pequeno comércio e para alguns serviços. Assim, faixas, banners e outro tipo de cartazes, que podem ser rapidamente fabricados graças às virtualidades das técnicas contemporâneas, colonizam as áreas de vizinhança da atividade anunciada. No espaço da contigüidade, observa-se uma interrelação dos circuitos da economia urbana. RII – VIII Seminário Internacional Grupo 4 – Globalização e expansão metropolitana 5 No período atual, a imitação - um dos pilares do funcionamento do circuito inferior se faz sobre novas bases. A relevância que o negócio da moda ganha no momento atual, com uma profusão de cursos básicos e superiores de confecções, com as novidades na produção de materiais e tecidos crescentemente híbridos, com a proliferação de revistas e desfiles, com a expansão do crédito e da propaganda, determina que esse consumo se alastre na sociedade e no território. Costureiras e alfaiates, entre as camadas mais pobres, têm diante de si uma possibilidade maior de exercer a imitação dos consumos sofisticados. É também o caso dos móveis e da decoração dos lares. Esse mercado em expansão, que não atinge apenas as camadas mais ricas da sociedade, chama a si toda uma produção industrial e artesanal, que envolve pólos específicos em cidades médias e, nas metrópoles, atividades de restauração de móveis antigos, férias, artesanatos e consertos. Bairros e cidades ganham uma marcada especialização produtiva à luz dessa demanda que parece, nos dias de hoje, tornar-se elástica. O lazer e a cultura, de um modo geral, tornam-se, também, um mercado em expansão. A distribuição de vídeos, a produção e venda de artesanatos, a gravação e distribuição de música, as múltiplas formas de edição de livros, revistas e folhetos tornam mais espessa a divisão do trabalho, permitem localizações mais flexíveis (na própria casa por exemplo), demandam instrumentos de trabalho específicos mas hoje possíveis de serem comprados e formas organizacionais modernas combinadas com relações de amizade, parentesco e vizinhança. Estamos diante de um profuso circuito superior marginal vinculado à cultura. Por fim, a unicidade do motor ou, em outras palavras, a apropriação da maisvalia por um pequeno grupo de atores globais, é responsável, ancorada na nova base material e na possibilidade de dispor de informações em tempo real, pelas acelerações do período. Aumenta vertiginosamente a velocidade de produção do dinheiro em estado puro porque aumenta o número de mecanismos verticalizados capazes de extrair mais recursos de mais atividades, de mais pessoas, de mais lugares. A publicidade e o crédito são estratégias eficientes nessa guerra por uma maior acumulação de capital. Como cada pedaço da cidade é avaliado em função da sua capacidade de reproduzir dinheiro, alguns tornam-se tesouros disputados enquanto outros são desprezados. O abandono de instâncias, setores, parcelas, lugares reflete que, mesmo importantes para completar o trabalho tão fortemente dividido nas metrópoles, o circuito superior não se preocupa em exercer esse papel. No Brasil, dos 3,3 milhões de empregos RII – VIII Seminário Internacional Grupo 4 – Globalização e expansão metropolitana 6 no setor de serviços correspondente às micro e pequenas empresas, mais de 400 mil pertenciam a transportes e serviços auxiliares dos transportes. É o caso das diversas formas de distribuição, na cidade grande, de mercadorias, objetos, documentos e pequenos valores. Todavia, a creditização parece não deixar de lado nenhuma parcela do território nem da economia. A capilaridade das redes financeiras resulta da coexistência de filiais de grandes instituições como Panamericano, Crefisa ou Zogbi, de todo tipo de agiotas e da profusão de novos tipos de crédito oferecidos pelos bancos públicos e privados. A rentabilidade dos bancos, por exemplo, passou de 10,6% em 1994 para 15,7% em 1998 e para 24,5% em 2002. Ao contrário da produção que é seletiva nas suas escolhas locacionais, a finança se interessa, direta ou indiretamente, pela totalidade do território vivente. É por isso que podemos afirmar que ela não é apenas uma variável determinante, mas também uma variável dominante, responsável por uma drenagem que não conhece limites. Assim, o circuito inferior, caracterizado pelo seu baixo grau de capital fixo tecnológico, é impingido a aumentar seu capital de giro por meio do crédito, ainda mais quando muitos dos pequenos empresários trabalham como pessoa física. Quando o spread bancário para empréstimos às empresas era de 25% anuais, para as pessoas físicas era de 57% anuais. A vulnerabilidade aumenta com a utilização do cheque especial, do crediário e, sobretudo, do crédito pessoal, pois os juros atingem valores extremamente altos (entre 50% e 160% anual). Como o número de pessoas sem conta bancária ou incapaz de dispor das necessárias garantias é significativo, o crédito pessoal, concedido por instituições financeiras, encontra um terreno fértil. Formas de verticalização de uma economia gerada pelo circuito inferior que, no período da globalização, conhecem graus superlativos. O circuito superior marginal não está a salvo dessas emboscadas. Os mecanismos leoninos de um certo crédito também atingem as práticas desses atores. Mas, paralelamente, o sistema de franquias, um conteúdo novo do período, parece enraizar-se em algumas das suas atividades e, assim, tornar mais complexo o reconhecimento desse circuito. Se o grau de organização é bastante alto, pois as formas e normas da natureza e uso do capital e da tecnologia são prescritas pela firma matriz, a gestão cotidiana e os riscos são assumidos por um empresário pequeno ou médio, que deve cumprir com os direitos e royalties e, nessa complexa situação, encontrar sua modesta equação de lucro. RII – VIII Seminário Internacional Grupo 4 – Globalização e expansão metropolitana 7 Verificamos este fato em algumas gráficas expressas e escolas de línguas. Tratar-se-ia de mais uma manifestação organizacional das atuais unicidades. Os quatro brasís urbanos... Nos últimos anos, todas as áreas do país experimentaram um revigoramento do seu processo de urbanização, ainda que em níveis e formas diferentes, graças às diversas modalidades do impacto da modernização sobre o território. A situação anterior de cada região pesa sobre os processos recentes. A partir do momento em que o território brasileiro se torna efetivamente integrado e se constitui como mercado único, o que à primeira vista aparece como evolução divergente é, na verdade, um movimento convergente. Há uma lógica comum aos diversos subespaços. Essa lógica é dada pela divisão territorial do trabalho em escala nacional, que privilegia diferentemente cada fração a um dado momento de sua evolução. Nas áreas pouco povoadas do Norte e do Centro-Oeste, a modernidade posterior à segunda guerra mundial se implanta sobre o vazio e, desse modo, não encontra o obstáculo das heranças. Essas áreas ainda se mantinham praticamente pré-mecânicas até trinta ou quarenta anos atrás. O Centro-Oeste apresenta-se extremamente receptivo aos novos fenômenos da urbanização, já que era praticamente virgem, pois não possuia infra-estrutura de monta, nem outros investimentos fixos vindos do passado que pudessem dificultar a implantação de inovações. Pôde, assim, receber uma infraestrutura nova, totalmente ao serviço de uma economia moderna, já que em seu território eram praticamente ausentes as marcas dos precedentes sistemas técnicos. Desse modo, aí o novo vai dar-se com maior velocidade e rentabilidade. É por isso que o Centro-Oeste conhece uma taxa extremamente alta de urbanização, podendo nele se instalar, de uma só vez, toda a materialidade contemporânea indispensável a uma economia exigente de movimento. Na Amazônia Legal, o índice de urbanização passa de 28,3% em 1950 a 52,4% em 1980 (Lia Osório Machado, 1984) e o número de núcleos urbanos duplica nesse mesmo período, subindo de 169 para 340. A Região Centro-Oeste - e, particularmente, Mato Grosso do Sul e Goiás distingue-se da Amazônia pelo fato da continuidade espacial da ocupação, feita a partir de capitais mais intensivos, com a evidência de uma maior composição orgânica e num subespaço onde a fluidez é maior. Graças às novas técnicas, cidades médias RII – VIII Seminário Internacional Grupo 4 – Globalização e expansão metropolitana 8 relativamente espaçadas (em contraste com áreas de velha urbanização como o Nordeste) se desenvolvem rapidamente. E na Amazônia houve, desde o século passado, condições para a concentração da população em poucos núcleos, exatamente em função da descontinuidade e da raridade do povoamento. Outra é a realidade do Nordeste, onde uma estrutura fundiária hostil desde cedo a uma melhor distribuição de renda, a um maior consumo e a uma maior terciarização, ajudava a manter na pobreza milhões de pessoas, e impedia uma urbanização mais expressiva. Por isso, a introdução de inovações materiais e sociais iria encontrar a grande resistência de um passado cristalizado na sociedade e no espaço, atrasando o processo de desenvolvimento. Um antigo povoamento, asentado sobre estruturas sociais arcaicas, atua como freio às mudanças sociais e econômicas, acarreta o retardo da evolução técnica e material e desacelera o processo de urbanização. Esta é recentemente menos dinâmica no Nordeste, se comparada a outras áreas do país. Já o Sudeste, mais "novo" que o Nordeste e mais "velho" que o Centro-Oeste, consegue, a partir do primeiro momento de mecanização do território, uma adaptação progressiva, eficiente aos interesses do capital dominante. Cada vez que há uma modernização, esta é encampada pela região. A cidade de São Paulo é um bom exemplo disso, pois constantemente abandona o passado, volta-lhe permanentemente as costas e, em contraposição, reconstrói seu presente à imagem do presente hegemônico, o que lhe tem permitido, nos períodos recentes, um desempenho econômico superior, acompanhado por taxas de crescimento urbano muito elevadas. Uma permanente renovação técnica serve como base material para uma permanente renovação da economia e do contexto social, ensejando uma divisão do trabalho cada vez mais ampliada e a aceleração correlativa do processo de urbanização, cujos índices atuais no Sudeste são comparáveis, senão superiores, ao da maioria dos países da Europa Ocidental. Quanto à Grande Região Sul, reúne áreas de povoamento mais antigo, incorporadas à civilização mecânica desde fins do século XIX a outras cuja incorporação tardia à civilização técnica lhes permitiu um desenvolvimento urbano mais rápido. Quando é mais descontínua, a colonização mobiliza relativamente menos capitais e mais trabalho, enquanto as ocupações mais recentes são geralmente acompanhadas de maior densidade capitalística e técnica. Isso ajudaria a explicar o maior desenvolvimento urbano e a presença de uma classe média urbana mais notável. RII – VIII Seminário Internacional Grupo 4 – Globalização e expansão metropolitana 9 Mas, nos quatro brasís (M. Santos e M.L. Silveira, 2001), as aglomerações nascidas das atuais dinâmicas territoriais têm um tamanho maior do que aquelas de períodos anteriores. As técnicas contemporâneas da produção e da circulação de bens materiais e imateriais permitem a uma boa parcela da população vencer as distâncias num tempo menor e, assim, diminui a necessidade da proliferação de núcleos urbanos. Paralelamente, o aumento dos consumos, tanto das famílias como das empresas e do governo, e as novas formas do trabalho agrícola, que permitem a um número importante de trabalhadores viver na cidade, são, entre outros, os fatores que explicam o crescimento simultâneo das metrópoles, capazes de abrigar um crescente número de pobres, e das grandes cidades médias. Assim, a extensão e diversidade do meio construído junto a uma maior divisão do trabalho ligada também às especificidades da vida regional perfazem os retratos urbanos diferenciados no Brasil. ... e as feições regionais dos circuitos da economia urbana No período da globalização novas fontes de riqueza e de pobreza multiplicam-se nas grandes cidades, uma vez que estas buscam adaptar-se às demandas da economia mais moderna, adequando seu meio construído às respectivas exigências e racionalidades. Mas, esse fenômeno atinge apenas uma pequena parcela do espaço urbano, mesmo porque os custos são muito altos, enquanto o resto da cidade mostra uma grande variação de infraestruturas e valores. A criação de racionalidade é, certamente, limitada (M. Santos, 1996). O Brasil que se globaliza é, ao mesmo tempo, um Brasil que se metropoliza e, por isso, a explosão do circuito inferior é concomitante à enorme expansão urbana, tantas vezes na base de um processo de urbanização sem industrialização. A crise econômica recorrente no período da globalização traz consigo uma extensão da periferia pobre (E. Almeida, 2000) e uma deterioração do meio construído urbano já existente (sobretudo os centros), que também se desvaloriza pela modernização de outras parcelas da cidade. Esse processo é sempre acompanhado pela multiplicação de atividades de sobrevivência. O crescimento de um circuito superior marginal residual dá-se pela incapacidade de modernizar-se ao ritmo imposto pela época. Mas, paralelamente, a normatização, a relevância e antecedência do trabalho intelectual, a cientificização das atividades, a expansão dos consumos são pilares do crescimento de um circuito superior marginal emergente. Por isso, o circuito superior marginal poderia ser visto como um laboratório da RII – VIII Seminário Internacional Grupo 4 – Globalização e expansão metropolitana 10 substituição de uma divisão territorial do trabalho por outra. A decadência e emergência de profissões e empresas, ligadas às formas hegemônicas do fazer e do mandar, atingem diretamente ao circuito superior marginal. Enquanto certos saberes se desvalorizam, outros surgem. Nas grandes metrópoles da Região Concentrada e especialmente em São Paulo, a cidade moderna, pivô central das geometrias das grandes empresas, vê ampliar suas tarefas e os horizontes das ações que abriga pois se torna, outrossim, o relé das topologias das corporações globais na América do Sul. A necessidade de informação precisa e de diversos tipos de dinheiro atribui novos papéis às metrópoles e consolida, mesmo com base na segmentação socioespacial, a sua existência como um grande mercado. Como a expansão do meio construído se acelera, as valorizações e desvalorizações dos pedaços da cidade são frenéticas, ensejando a possibilidade de instalação, aqui ou ali, de atividades menos capazes de dar valor aos seus produtos. A extrema variedade de capitais - fixos e variáveis - assegura a existência de uma extrema variedade do trabalho. As sazonalidades superpostas tendem a anular-se e, portanto, a grande cidade é mais apta a abrigar um circuito inferior. Não há, portanto, uma única área de mercado da cidade como quer a teoria dos lugares centrais, cujo partido de método é identificar o setor moderno com a economia urbana. As atividades de pequena escala, cujos atores são os mais pobres, têm relações privilegiadas com a sua região. Nem mesmo as cidades que reconstroem seu presente à imagem das variáveis hegemônicas são formadas apenas pelo setor moderno (circuito superior), mas também por um circuito inferior, que não é um freio à modernização mas seu resultado e, ainda, por um circuito superior marginal, nascido, sobretudo, em função da relevância que ganha a circulação. Muitas vezes próximo do circuito superior pela funcionalidade do seu trabalho, o circuito superior marginal emparenta-se com o circuito inferior pelo comportamento dos seus atores. Embora as estatísticas não possam revelar, fielmente, a natureza e a magnitude do circuito inferior nem do circuito superior marginal, é importante sublinhar que, em 2001, apenas as micro e pequenas empresas de comércio e serviços (pouco mais de 2 milhões de estabelecimentos) contratavam 7,3 milhões de pessoas (desse total três quartas partes eram empresas que contratavam até 5 pessoas), isto é, cerca de um dízimo da população ocupada no Brasil. O número de empresas vêm crescendo mas, sobretudo, sua contribuição para criar empregos. Eram 5,5 milhões de pessoas por elas contratadas em RII – VIII Seminário Internacional Grupo 4 – Globalização e expansão metropolitana 11 1998, o que significa que houve um aumento de mais de 32% entre 1998 e 2001 (IBGE, 2003). Fundadas no trabalho intensivo, muitas dessas firmas são familiares, mas seu denominador comum é o escasso capital. Segundo o mesmo estudo do IBGE, 30% dos custos destas pequenas unidades empresariais correspondem a despesas com pessoal e apenas 4% a aluguéis e arrendamentos de máquinas, veículos e outros equipamentos. Sua adaptação a localizações, prédios e sistemas técnicos menos valorizados reflete-se na composição das suas despesas. Destinar uma proporção maior dos rendimentos ao pagamento de mão-de-obra em lugar de aumentar e modernizar o capital fixo (sobretudo localização e maquinário) não deixa de ser, no período atual, uma produção de irracionalidade. Uma boa localização, capaz de atrair camadas de população de maior poder aquisitivo, assim como a compra de equipamentos mais modernos, poupadores de mão-de-obra, dos seus encargos e de eventuais conflitos, seriam, certamente, formas de produção de racionalidade. Essência das políticas do poder público e das grandes empresas, essa racionalidade revela-se, ainda mais nas grandes metrópoles, limitada. Do norte ao sul desse Brasil urbano, as maiores metrópoles suportam taxas de desemprego em torno de 20% da população economicamente ativa: São Paulo, Salvador, Recife, Belo Horizonte e Brasília (DIEESE, 2003). Mas, qual a racionalidade de uma economia urbana que despreza, como em Salvador, cerca de 30% da sua PEA? O fato é que, a cada dia, há um menor número de atividades e de empregos ligados a essa racionalidade hegemônica e isso é mais visível nas grandes cidades dos quatro brasís. Diante dessa realidade, uma enorme parcela da população deve encontrar uma atividade - e um lugar dentro da cidade - que seja capaz de permitir sua sobrevivência. É uma economia de baixo para cima (M. Santos, 1996; 2000) que parte do princípio de que os mais pobres, os vizinhos, os demais trabalhadores poderão a consumir os produtos e serviços oferecidos. É uma cooperação que se perfaz na contigüidade e, portanto, não precisa ser fluida, nem veloz, nem competitiva. Essa cooperação pode, assim, ser lenta e, por isso, é vista como irracional. Quitandas, mercearias, armazéns, minimercados, padarias, açougues, peixarias, venda de frutas e verduras coexistem com as densas topologias dos grandes supermercados e das modernas lojas de conveniência. Nesse comércio de contigüidade, a iliquidez não é um empecilho, pois vários tipos de dinheiro e de crédito são utilizados RII – VIII Seminário Internacional Grupo 4 – Globalização e expansão metropolitana 12 (tickets, vale-transporte, vale-alimentação, compra a fiado, cadernetas de compra). Completam o retrato pequenas lojas de roupas, de bijuterias, de sapatos assim como lanchonetes, pequenos restaurantes, pastelarias, pizzarias, casas de sucos e sorveterias. Mas, entre as pequenas firmas, os serviços técnico-profissionais prestados às empresas representam 27,8% do total. Trata-se de serviços jurídicos, contabilidade, auditoria, consultoria empresarial, serviços técnicos de engenharia e arquitetura, publicidade e propaganda. As atividades de informática também aumentam sua proporção. Juntos, os serviços técnico-profissionais e as atividades de informática somavam cerca de 125 mil empresas que contratavam mais de 400 mil pessoas. Ainda que o capital fixo possa não ser muito significativo, a existência de um conhecimento específico e de uma rede de relações, faz dessas atividades um circuito superior marginal. Mais da metade do conjunto de micro e pequenas empresas comerciais e de serviços concentra-se na região Sudeste e, somados, o Sudeste e o Sul (a Região Concentrada) abrigam cerca de 78% do total nacional. A alta urbanização desses Estados ajuda a explicar este retrato. Somente no Estado de São Paulo as micro e pequenas empresas de comércio e serviços empregam mais de 2,2 milhões de pessoas. Na região Nordeste o total ultrapassa um milhão de pessoas, contrastando com os modernos Estados do Centro-Oeste, onde o circuito inferior parece ser mais fraco (pouco mais de 500 mil pessoas são contratadas nas firmas desse porte). Quanto mais populosa a cidade, mais seu mercado é grande e segmentado, apoiado num vasto meio construído, mas bastante fragmentado quanto aos seus valores, mesmo que se trate de áreas modernas da Região Concentrada. Isso autorizar-nos-ia a falar de áreas de diversidade e áreas de especialização. Ambas vêm constituindo o nosso escopo de pesquisa. Nas áreas de diversidade, o trabalho se especializa e se divide em múltiplos circuitos espaciais de produção, cujo território é todavia o bairro ou a cidade em virtude da sua condição não-hegemônica. A circulação é determinante e, por isso, os circuitos diferentes se entrecruzam e criam um mercado, segmentado, que se nutre da diversidade de fabricação, de comércio e de serviços. São pontos e áreas densas da divisão do trabalho, onde coexistem técnicas de diferentes momentos históricos. Os prédios são, quiçá, a manifestação mais clara das rugosidades que nos vêm do passado, pela sua idade e pelas suas condições. É o reino do circuito inferior e, também, de um variado circuito superior marginal em áreas de grande circulação como o Largo Treze, o Largo de RII – VIII Seminário Internacional Grupo 4 – Globalização e expansão metropolitana 13 Pinheiros e o próprio centro velho da cidade de São Paulo ou, mesmo, em áreas renovadas como o bairro Tatuapé. É também o caso dos centros antigos do Rio de Janeiro e de Porto Alegre, assim como das áreas contíguas às rodoviárias em todas as grandes metrópoles brasileiras. Mesmo que a existência dessas áreas de diversidade não seja um fenômeno exclusivamente metropolitano, o volume da circulação, nesses pontos, manchas e linhas evidencia que se trata de grandes corpos urbanos. As áreas de especialização urbana, ao contrário, tendem a ser um dado do fenômeno metropolitano. Ali o trabalho se especializa e se divide dentro de um mesmo circuito espacial de produção, envolvendo diversas etapas e atores de diferente poder em complexos processos de cooperação e concorrência. Numa cidade como Belém encontramos uma área especializada em lojas de maquinários e ferramentas para a exploração de madeira e para as embarcações do espesso sistema de movimento fluvial que ela preside. Numa macrometrópole como São Paulo, várias áreas poderiam ser mencionadas: zona cerealista no centro, eletrônicos na rua Santa Ifigênia, lustres e material elétrico na rua da Consolação, vestidos de noiva na rua São Caetano, confecções em Bom Retiro e Brás, entre outros. Amiúde, a existência dessas economias de aglomeração a escala urbana nos fala das suas relações de produção e de mercado com a cidade, com a região, com o país. A sua especialização produtiva é causa e conseqüência da densificação do espaço de fluxos (mais transportes, mais comunicações, mais finanças) e, portanto, essas áreas são lugares de coexistência dos circuitos da economia urbana que todavia podem acabar por aumentar o valor da localização e do meio construído e, com isso, expulsar alguns atores. Essa é uma das manifestações da aceleração contemporânea (M. Santos, 1993). Uma nova demografia empresarial está diante dos nossos olhos. Natalidade, mortalidade, migrações de empresas são processos freqüentes e velozes. Se para as grandes corporações as fusões são comportamentos habituais nesses tempos, o fenômeno mais corrente para as firmas do circuito inferior e do circuito superior marginal são as altas taxas de mortalidade. Contudo, também são altas as taxas de natalidade e mesmo as taxas de mortalidade refletem, por vezes, as migrações de ramo ou de localização. Se a velocidade da acumulação de lucro não é rápida, como reza o mandamento da globalização, o dinamismo do circuito inferior e do circuito superior marginal não pode ser negligenciado. É exatamente a sua vulnerabilidade o que exige dessa economia de baixo um importante dinamismo. Em 2000, as mais altas taxas de mortalidade verificamse nas empresas de serviços que contratavam até 5 pessoas (19%) e nas firmas RII – VIII Seminário Internacional Grupo 4 – Globalização e expansão metropolitana 14 comerciais do mesmo porte (15,8%). Mas é essa mesma faixa que registra as mais altas taxas de natalidade: 27,1% e 22,7% respectivamente. É uma tendência que se verifica nos últimos anos. Esses dados contrastam com o comportamento das firmas que contratavam mais de 20 pessoas, cuja taxa de natalidade foi de 6,6% para as atividades de comércio e 9% para os serviços em 2000. Vemos, assim, como a cada divisão territorial do trabalho, vários interstícios são ocupados pelas pequenas empresas. Às portas da moderna São Paulo, Jano revela sua outra face Se as crises econômicas constituem um freio na renovação da maior parcela do meio construído, o neoliberalismo, com a pretensa estabilidade monetária, parece ter acionado um processo acelerado de renovações urbanas pontuais. Para certas áreas da cidade de São Paulo fluem, sem viscosidades, torrentes de dinheiro sob a forma de empréstimos privados, internacionais e nacionais, por vezes vinculados à esfera do poder público. Vejam-se os exemplos da construção de prédios residenciais de classe média cada vez mais longe do centro da cidade ou verticalizando áreas tradicionalmente baixas , de condomínios fechados dentro ou fora da grande mancha urbana, ou a renovação do antigo centro urbano comandada pelo Banco de Boston. Uma área comercial tradicional e central como a zona cerealista, nascida ao abrigo da estrada de ferro Santos-Jundiaí mas cuja localização e equipamento continuaram funcionais quando o sistema de movimento de cargas (arroz, feijão, batata, cebola) tornou-se rodoviário, parece não resistir os impactos do período atual. A sua virtual transferência para uma nova área de encruzilhada (rodovias Regis Bittencourt e Raposo Tavares) é uma ação política com base em dados técnicos e organizacionais novos: as atuais áreas produtoras (Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul, Maranhão), o grau de acessibilidade e os problemas de trânsito de cargas, os novos equipamentos de comunicação (telefone, computador, fax, correio eletrônico) e a logística dos grandes supermercados (pedidos informatizados, terminais próprios, marcas próprias). Se nos projetos oficiais o uso é mantido, essa transferência significará também que nem todos poderão acompanhar os custos desse deslocamento. Concretizados ou em vias de implantação, numerosos projetos parecem coincidir na busca de localizações periféricas, bem dotadas de infraestrutura, próximas às marginais, que garantam o exercício de uma circulação mais fluida e, sobretudo, a instalação mais seletiva dos atores. Como o novo centro empresarial da Avenida Berrini, RII – VIII Seminário Internacional Grupo 4 – Globalização e expansão metropolitana 15 essas localizações em zonas circunvizinhas das marginais parecem confirmar a adoção de um modelo de urbanismo periférico de origem norte-americana. Essa produção permanente de escassez ganha hoje sua expressão contemporânea na aplicação de receitas de cunho macroeconômico nas quais o capital é sempre mais abundante que o trabalho para aqueles atores hegemônicos em detrimento da economia real do país e da cidade, na qual o trabalho é sempre mais abundante que o capital. Estado e empresas, tantas vezes, em cooperação ou em conflito, tem tido um papel determinante na produção do desemprego, um claro indício da produção limitada de racionalidade. Estruturalmente a cidade é criadora, ao mesmo tempo, de riqueza e pobreza, de abundância e de escassez. Vetores internos e externos têm o papel de acelerar ou desacelerar as necessárias e permanentes readaptações. Por isso, os circuitos da economia urbana desenvolveram-se tanto na metrópole industrial como na metrópole informacional-financeira na forma de vasos comunicantes pois, sendo ambos um resultado da modernização, encontram, hoje, as condições da sua reprodução. E, ainda mais, identificada como a chegada de novos objetos e novas formas de fazer, a globalização convida à emergência de um novo circuito superior marginal, embrenhado em codificar e decodificar os objetos e as normas necessárias ao novo momento do modo de produção. Nascem escritórios e empresas, tantas vezes ligados às novas profissões, que prestam serviços às firmas hegemônicas ou ao poder público. Em 1999 eram 3,7 milhões de pessoas no setor de serviços, equivalente a 53% da população economicamente ativa na Região Metropolitana de São Paulo (um acréscimo de 1,4 milhão de pessoas em relação a 1981). Se a divisão social do trabalho que acompanha o mundo da informação e da finança multiplica as profissões, ela diminui, ao mesmo tempo, o número de empregos. As formas técnicas e de regulação contemporâneas satisfazem seu apetite com um número menor de pessoas altamente qualificadas. O emprego tradicional da metrópole industrial esvai-se, de um lado, ao ritmo das novas acelerações normativas como as formas temporárias de contratação e a terceirização, da interiorização da indústria que é sinônimo de modernização e de busca de novas densidades normativas e, de outro, pelas novas ocupações na produção e adaptação das informações externas ao mercado brasileiro, da criação de uma publicidade que aprofunde os consumos, da produção codificada de formas de fazer e regular como a miríade de instrumentos financeiros em vigor. RII – VIII Seminário Internacional Grupo 4 – Globalização e expansão metropolitana 16 As reformas neoliberais, portadoras da racionalidade da época, foram responsáveis, outrossim, pela diminuição do número de empregos ligados às atividades modernas nas empresas e no setor público. Automação, reengenharia de processos, redução do chamado inchaço do Estado, diminuição das vendas, entre outras, foram razões aduzidas para concretizar as demissões. Quando estas eram as chamadas demissões voluntárias, um novo elemento aparecia na economia urbana, pois as indenizações decorrentes pairavam na cidade buscando implantar antigas, novas ou renovadas funções da divisão do trabalho. A natureza volátil dos capitais das grandes corporações e de suas geometrias mundiais contrasta com a fixação dos pequenos capitais das famílias no próprio meio construído urbano empreendendo uma nova atividade econômica. A cidade de São Caetano do Sul na Região Metropolitana de São Paulo é, talvez, um bom exemplo com a instalação de lojas e empresas de serviços por parte dos antigos funcionários da indústria automobilística. A concentração de pobres na cidade de São Paulo acaba tendo um efeito positivo sobre os volumes produzidos e comercializados. Cria-se um mercado que, apesar das demandas individuais limitadas, constitui, pelo grande número de famílias, um efeito ampliado. Graças aos custos de produção mais baixos pela ampla oferta e proximidade de insumos, mão-de-obra e clientes, surge um considerável número de pequenas empresas e, desse modo, mesmo que a mortalidade das firmas possa ser alta, a demanda constante possibilita que outras possam nascer. Na própria garagem da casa costuma funcionar o escritório das pequenas empresas de carretos e mudanças com baú. Próprio, o caminhão ou caminhonete é, amiúde, o fator que define a capacidade de trabalho mensal. Variando entre sete e cerca de 40 mudanças por mês, as empresas contratam alguns ajudantes para realizar um trabalho que geralmente é no próprio bairro ou nos bairros contíguos. Localizações em áreas residenciais, como Butantã ou Pinheiros, são privilegiadas por oferecer permanentemente possibilidades de trabalho. Pequenos cartazes fixados em postes e muros do bairro e um telefone, por vezes celular, são os instrumentos indispensáveis para garantir sua demanda. Criam-se, paralelamente, solidariedades econômicas com os coletores-vendedores de caixas de papelão. A contigüidade é um dado central também para um bom número de costureiras entrevistadas que, dedicadas a essa atividade por falta de emprego, trabalham em casa com uma ou duas máquinas domésticas, freqüentemente compradas de segunda mão. Morando em bairros como Santo Amaro, Itaim Bibi, Brooklin, Jardim Bonfiglioli ou Alto da RII – VIII Seminário Internacional Grupo 4 – Globalização e expansão metropolitana 17 Boa Vista, deslocam-se para Brás e Bom Retiro, áreas de especialização comercial, para comprar seus insumos. O conserto de roupas acaba configurando um verdadeiro mercado, indicado entre fregueses e conhecidos, uma vez que a importação no setor têxtil e confecções tem atingido seriamente a produção de roupas sob medida. Dentre as numerosas situações do circuito superior marginal, as agências de motoboy espalham-se na cidade, ao ritmo de uma intensa necessidade de cooperação e dos atritos à circulação. Mais do que o grau de capitalização, é a capacidade organizativa o que define as empresas. A agência recebe os pedidos e ordena as viagens, que são feitas pelos trabalhadores com suas próprias motos. Para realizar o transporte de documentos e pequenas mercadorias para escritórios e empresas das imediações, numa média de duzentas viagens por mês, o pessoal contratado é pago por hora de trabalho. O desenvolvimento das técnicas da informática também tem permitido a instalação das chamadas gráficas digitais ou express que, em pequenos locais, podem oferecer um bom leque de produtos: cartões de visita, convites, folders, folhetos, entre outros. Os equipamentos e instrumentos de trabalho são computadores (cujo número varia de 3 a 20 nos casos entrevistados), scanner e softwares específicos (como o Corel). Algumas empresas compraram os equipamentos usados. Sua localização, ora em áreas valorizadas como um shopping-center com aluguel que ultrapassa os dois mil reais, ora em áreas mais deterioradas como largos e praças de grande circulação de pessoas, permite ganhar um mercado de empresas e famílias. Observamos, também, que existe uma divisão do trabalho e uma cooperação entre as gráficas tradicionais, de localização mais periférica e orientadas à produção de grandes volumes, e as gráficas digitais. Com freqüência, estas últimas são responsáveis pelo trabalho de provas, enquanto as indústrias tradicionais encarregam-se, graças aos seus equipamentos, das grandes tiragens (impressão off set). Quando a gráfica é de maior porte, o seu mercado é constituído por empresas e abrange amplas regiões, quando a firma é pequena, o seu mercado é dado pelas famílias no bairro ou na cidade. Às demandas de cartões de visita, material promocional, impressão de trabalhos, todas acrescentam outros serviços tais como xerox, encadernação, plastificação, serviço de fax. A publicidade, vista como um suporte indispensável da produção hoje, acaba configurando-se como um nicho de mercado para estas firmas. Sua atividade encontra-se bastante financeirizada: compra de equipamentos com leasing bancário, transações diárias com bancos privados mas, paralelamente algumas usam tickets como moeda. Várias delas são franquias. RII – VIII Seminário Internacional Grupo 4 – Globalização e expansão metropolitana 18 A divisibilidade das técnicas atuais tem permitido, outrossim, uma certa banalização do trabalho de produção musical. A convergência entre as técnicas da informática e da música ampliaram o leque de possibilidades de criação e de divulgação. A isso contribuem também as novas ou renovadas formas organizacionais como a terceirização e o aluguel dos estúdios por hora de trabalho. É o caso dos pequenos estúdios de ensaio e gravação pesquisados na cidade de São Paulo, que contam entre seus instrumentos de trabalho, geralmente comprados usados, computadores, softwares (como o Sound Ford e o Protus) para digitalizar as músicas, mesas de som, microfones, cabos, instrumentos musicais, amplificador e retorno, entre outros. Os computadores são também utilizados para produzir a própria propaganda (folhetos que serão distribuidos em lojas de instrumentos musicais e casas de shows), assim como para obter informações sobre técnicas, mercados, incentivos e oportunidades de negócios através da Internet. O resto da informação e da propaganda provém de revistas especializadas e da troca de informações orais (“boca a boca”) nos ambientes musicais. Os estúdios funcionam em antigas residências preparadas para tal fim, raramente alugadas (valores entre 200 e 1000 reais) ou, por vezes, nos fundos da própria casa. Não conformam um área especializada da cidade, mas estão dispersos em áreas residenciais e bem-localizadas da capital. Contratam um ou dois auxiliares técnicos para os ensaios e gravações, mas esse número pode aumentar no caso dos estúdios que funcionam 24 horas. O uso de instrumentos financeiros por parte das pequenas firmas confunde-se com o uso desses produtos por parte do seu proprietário (cheques, cartão de crédito, depósitos emitidos ou recebidos como pessoa física e não jurídica). Conforme o seu tamanho e sua sofisticação técnica, contam entre seus clientes as classes médias e altas ou camadas mais pobres da população. Sua margem de lucro oscila entre 45% e 60%. A refuncionalização de casas em bairros como Pinheiros, Cerqueira César e Bela Vista para ali instalar uma atividade ligada à produção cultural torna-se um fenômeno freqüente na cidade de São Paulo. Assim como os estúdios também mencionamos as pequenas e médias editoras de livros e revistas. Geralmente pagando aluguéis que ultrapassam mil ou dois mil reais, as editoras são comandadas por pessoas com formação profissional técnica na área de contabilidade ou de nível universitário e, enquanto as pequenas contratam de três a seis funcionários, as empresas médias empregam em torno de vinte. Todas as firmas entrevistadas estão registradas como pessoa jurídica e seus funcionários possuem carteira assinada, representando de 30% a 40% das suas despesas. RII – VIII Seminário Internacional Grupo 4 – Globalização e expansão metropolitana 19 Essas localizações foram escolhidas em função da acessibilidade a fornecedores, clientes e mão-de-obra, assim como pela oferta de serviços. A quantidade de instrumentos de trabalho é central para determinar a sua força de mercado. Equipadas com telefones fixos e celulares, máquina de xerox, computadores (que variam de 3 a 40), impressoras e scanner, algumas possuem também máquinas fotográficas, filmadoras e outras tecnologias ligadas à imagem. As virtualidades da informática tornam possível o trabalho de editoração que se completa, mais tarde, pelo trabalho material terceirizado em favor de uma indústria gráfica e, em alguns casos, por serviços de fotografia e reportagem. Vê-se aqui uma solidariedade entre atores do circuito superior marginal. A multiplicação dos consumos e a divisão do trabalho possibilitam a existência de um número crescente de revistas gerais e especializadas, cuja comercialização não se reduz unicamente às bancas de jornais e livrarias, mas também às vendas por assinatura. A produção de livros tem sido beneficiada por leis específicas de incentivo e por parcerias com editoras universitárias e agências de financiamento à pesquisa e suas vendas, multiplicadas pelo aumento do número de feiras gerais e universitárias. A participação dos consumos religiosos é também um dado importante. Salienta-se o exemplo das editoras evangélicas. A propaganda é feita através de folhetos produzidos na própria firma, da internet, de outdoors e também de agências de publicidade. Com esses meios é atingido um mercado que, para algumas, chega a ser nacional. Todas as editoras entrevistadas trabalham com vários bancos e utilizam, hoje, mais serviços do que no início de sua atividade. As firmas menores já utilizaram o limite do cheque especial e o período de isenção de juros. Os empréstimos solicitados como pessoa jurídica destinam-se a saldar dívidas e a manter-se no mercado. Aos clientes são oferecidos diversos instrumentos de pagamento: cheque à vista e pré-datado, cartão de crédito, dinheiro, boleto bancário, duplicata, débito automático. Existem relações horizontais entre empresas do mesmo ramo, principalmente para troca e atualização de informações. Por outra parte, o aumento na procura e na oferta de cursos de diversa natureza, fundado na necessidade de qualificação profissional e, por vezes, num certo consumo cultural, é mais um dado do período contemporâneo. Pesquisamos algumos cursos de informática, pré-vestibulares, de línguas e gastronomia. No caso do ensino de línguas, assistimos a uma acirrada concorrência entre as grandes redes e as escolas de menor porte. Aqui, a criação de uma demanda, por parte de uma agressiva propaganda do circuito superior, acaba por contribuir ao surgimento de pequenas e médias escolas de RII – VIII Seminário Internacional Grupo 4 – Globalização e expansão metropolitana 20 bairro, que se beneficiam da proximidade dos seus potenciais alunos. Computadores e equipamentos de imagem e som são os principais instrumentos de trabalho, além dos materiais escritos. Estes últimos são, por vezes, verdadeiras verticalidades que amarram o pequeno empreendimento a atores poderosos. É sobretudo o caso das franquias, nas quais os royalties pelo uso do material escrito alcança 20%. Contribuindo a aumentar a demanda própria do início de cada semestre, as pequenas empresas repartem panfletos nos bairros vizinhos, incluindo as empresas. É destas que vem a maior parte da procura e, amiúde, são as que pagam os cursos. Todavia, verificamos a existência da Associação das Escolas Independentes de Idiomas que busca, por meio de ações conjuntas como prêmios, aumentar o seu quinhão diante das franqueadas das grandes redes. A topologia das escolas de línguas ganha, assim, em capilaridade. A metrópole estendida A densidade da divisão territorial do trabalho no Estado de São Paulo permitir-nosia comparar as ofertas desse espaço às ofertas da grande metrópole. Suas densidades viárias, infoviárias e de movimento, sua intensa urbanização e os graus de organização política no poder público e nas empresas são formas de cooperação que completam essa profunda divisão interurbana do trabalho. Assim, se a intensa especialização do trabalho em cada cidade chama a si a um circuito superior marginal emergente, com um crescente número de pequenas e médias empresas modernas, a intensa cooperação vê descortinar-se um leque de empresas ligadas ao diálogo entre essas instâncias. Nesse contexto, nossa preocupação tem sido a de relacionar a vida dos circuitos inferior e superior marginal com as especializações territoriais produtivas nesse Estado, onde o meio técnico-científico-informacional se alarga e densifica. Apresentado como característica constitucional do espaço nacional e, ao mesmo tempo, como hipótese no livro O Brasil: território e sociedade no início do século XXI, o tema das especializações produtivas foi aqui retomado a partir da perspectiva das pequenas e médias empresas que nascem e crescem nessa vida de relações assim recriada. É um circuito superior marginal emergente, capaz de florescer num pedaço de território onde a divisão interurbana e intraurbana do trabalho é significativa. Centramos nossas pesquisas no pólo de confecções de Americana, Santa Bárbara d´Oeste, Nova Odessa e Sumaré, nas produções de calçados masculinos, femininos e infantís de Franca, Jaú e Birigüi respectivamente, nos objetos de cerâmica e ferro de Porto Ferreira, na produção de flores RII – VIII Seminário Internacional Grupo 4 – Globalização e expansão metropolitana 21 e morangos de Atibaia e na fabricação de móveis de Votuporanga e Mirassol. Neste último caso, além dos mercados de exportação, detectamos o monopsônio exercido por uma grande empresa como a Casas Bahia com os fabricantes locais. Quanto às indústrias de calçados, além das firmas cuja produção começa a ganhar mercados extraregionais, nacionais e internacionais, identificamos uma profusão de fornecedores de pequenos insumos e peças, assim como de serviços que são essenciais para perfazer o processo produtivo e que constituem um circuito inferior e um circuito superior marginal. Questões em aberto sobre um Brasil urbano e globalizado Nesta pesquisa ainda inacabada, a indagação sobre o uso das variáveis determinantes do período e suas novas combinações foi uma preocupação, especialmente em relação aos atores não-hegemônicos. Por isso, as variáveis privilegiadas são: localização (condições do meio construído: infraestruturas, acesso, valores), instrumentos de trabalho (tipos, usos, valores, origem, reutilização), formas de organização empresarial e fiscal, emprego, matérias primas e produtos (preços, quantidades, lucro), transporte, publicidade, informação, finanças. A escolha de um limite normativo que determina a formalidade e a informalidade das atividades pode levar a criar uma tipologia estéril para entender o funcionamento da cidade como meio construído e como mercado. Capitalistas na posse de objetos técnicos relativamente modernos, de uma eficiente organização e, certamente, informados para evadir suas cargas tributárias são protagonistas centrais no processo de transformar os excedentes em lucros, negligenciando as suas responsabilidades sociais. Será que este conjunto de atores pode ser analisado como se suas ações fossem da mesma natureza e escala que as ações de pequenas empresas ou, mesmo, indivíduos, cujo propósito é apenas reproduzir a sua existência? Com baixo grau de capital, de tecnologia e de organização, sua rentabilidade pode estar no limite da sobrevivência e seu grau de informação muito aquém da compreensão do complexo e dinâmico arcabouço tributário do poder público. O que realmente interessa é um olhar que possa descobrir as manifestações do trabalho. É o trabalho intensivo (sem horários, sem benefícios, sem pausas préestabelecidas) o que define o circuito inferior e hoje, mais do que nunca, também o circuito superior marginal, em contraposição à escassez de capital, e não o cumprimento- RII – VIII Seminário Internacional Grupo 4 – Globalização e expansão metropolitana 22 descumprimento de um sistema normativo em vigência. Vão-se os empregos, fica o trabalho. Por isso, uma das manifestações da produção ilimitada de irracionalidade pode ser identificada no uso desigual e combinado das variáveis da época. É isso que define um período e sua constituição. O período é dado pelas possibilidades desse tempo histórico, pelo reconhecimento das variáveis da técnica e da política que caracterizam uma época e a diferenciam de épocas anteriores. Trata-se, hoje, de descobrir os elementos que participam do exercício das unicidades. Todavia, sabemos que nem todos os agentes usufruem das mesmas oportunidades, que os usos dessas variáveis são diferentes, que as combinações de variáveis podem produzir comportamentos mais “racionais” ou mais “irracionais”. Essas diferenças são as temporalidades, os tempos dentro do tempo. A cidade é una e fragmentada. Isto é hoje mais verdadeiro que em períodos anteriores. Ela não é apenas o palco mas sobretudo a protagonista dessas unicidades e fragmentações, porque feita de uma nova base material e de uma nova base política. A cidade atual é que nos fala do período, enquanto os circuitos nos falam das temporalidades, isto é, a interpretação que cada ator é capaz de fazer do seu tempo e a forma que encontra de sobreviver. Aquele que é mais capaz de usar as variáveis modernas no seu trabalho, dialogar mais com os dados do período sem, por isso, deixar de ser vulnerável, faz parte de um circuito superior marginal (emergente). O Estado de São Paulo, onde o meio técnico-científico-informacional se difunde com menores resistências, pode abrigar um conjunto de atores capazes de se inserir na modernidade e seus mandatos - competitividade, eficiência, exportação - mas em situação de vulnerabilidade. A dependência das mudanças frenêticas de uso do território e das topologias nervosas das grandes corporações tornam esses atores mais ligados às racionalidades do período. Nesse leque de situações, o circuito inferior nas metrópoles seria, talvez, o mais capaz de produzir irracionalidades. É a grande metrópole quem melhor acolhe essas formas de sobrevivência. O papel do poder público é diferenciado. Mas, com freqüencia, mesmo quando pretende ajudar no desenvolvimento das pequenas empresas, acaba sendo produtor de verticalidades, por vezes pela sua política corporativa, por vezes por uma certa incapacidade de entender o funcionamento atual do mundo. A oferta de crédito que implica alargar a escala de produção de um pequeno empresário e, em conseqüência, RII – VIII Seminário Internacional Grupo 4 – Globalização e expansão metropolitana 23 arrojá-lo às acelerações do período (taxa de juros, normatizações crescentes, etc.) e a produção de normas públicas que buscam favorecer os pequenos, mas cuja informação e comunicação são deficientes são alguns dos empecilhos para uma política de novo conteúdo. Falta, amiúde, compreender o “existencialismo territorial” (M. Santos, 1999) que é a forma de sobrevivência da maior parcela da população brasileira. Pragmatismo mais emoção na busca de soluções que são vistas como irracionais, como formas de atraso, como economia tradicional. Uma localização menos valorizada mas que permite contar com um mercado contíguo ou evitar o pagamento de um aluguel porque funciona na própria casa, priorizar a venda de um produto à liquidez (outras “moedas” como o valetransporte são aceitas), utilizar instrumentos de trabalho usados ou próprios de um sistema técnico anterior, trocar serviços ou produtos ao modo de um novo escambo são bons exemplos dessa vida de relações. Toda uma produção se desenvolve mesmo quando as variáveis determinantes do período convidem mais à usura e menos ao trabalho. É a existência no território, uma verdadeira base para a política. Bibliografia: ALMEIDA, Eliza. A metropolização-periferização brasileira no período técnico-científicoinformacional. Dissertação de Mestrado, Departamento de Geografia, Universidade de São Paulo, 2000. BERNARDES, Adriana. A contemporaneidade de São Paulo: produção de informações e novo uso do território brasileiro. 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