Os circuitos da economia urbana nas cidades brasileiras

Transcrição

Os circuitos da economia urbana nas cidades brasileiras
Os circuitos da economia urbana nas cidades brasileiras
María Laura Silveira
A cidade como meio construído e como mercado
Neste trabalho apresentamos algumas idéias e resultados de um projeto de
pesquisa em andamento, cujo principal objetivo é a busca de um entendimento mais
sistemático das relações entre o espaço urbano e o movimento da sociedade, atentando
para a segmentação da economia urbana em um circuito superior, um circuito inferior e
um circuito superior marginal (M. Santos, 1975).
A premissa de partida é, todavia, considerar a cidade como um todo em
permanente movimento. A cidade é uma totalidade, feita de coisas e pessoas, de objetos
e relações, de formas e ações, num movimento desigual e combinado, numa dinâmica de
cooperação e conflito. A expansão acelerada das suas formas, encarnada num processo
de intensa periferização, que defronta os administradores ao problema da escala do
acontecer, assim como a hibridação de ações públicas e privadas tantas vezes numa
política corporativa, menos visível mas tão onipresente quanto as novas morfologias,
ofuscam no espinhoso encontro de enfoques totalizadores. Diante do seu crescimento e
da multiplicação dos problemas, a totalidade urbana emerge, mais do que antes,
inexaurível, convidando, tantas vezes, a um abandono gradual dos estudos globais sobre
as cidades.
Se os retratos raramente podem ser exaustivos, a vocação totalizadora da teoria
não poderá faltar, pois a cidade não é apenas uma soma de parcelas, nem apenas um
sistema de objetos, mas o conjunto da base material e da vida que a anima.
Em outras palavras, a cidade será vista como um meio construído (uma dada
materialidade, isto é, pontos, linhas e manchas, contíguas ou não) e como um grande
mercado (um conjunto de atividades realizadas em certo contexto e o setor da população
associado pela atividade e pelo consumo). Por isso, podemos dizer que, na cidade, todas
as atividades encontram o seu lugar.
Se a consideração do meio construído como uma totalidade é um partido de
método, é preciso olhar, ao mesmo tempo, os sistemas de ações ou, em outros termos,
ver a cidade como um conjunto, solidário e contraditório, de divisões do trabalho. Suas
funções mais modernas, aquelas que norteiam sua inserção na atual divisão internacional
RII – VIII Seminário Internacional
Grupo 4 – Globalização e expansão metropolitana
1
do trabalho hegemônica, não podem ser confundidas com a cidade ela própria. Conjunto
de todos os instrumentos de trabalho e de todas as formas de fazer, a cidade somente
poderá ser entendida ao considerar a coexistência de divisões territoriais do trabalho. A
cidade não é apenas o reino das grandes corporações e dos grandes bancos, o reino do
circuito superior, mas também o lugar do trabalho não-especializado, das produções e
serviços banais, das ações ligadas aos consumos populares - aquelas necessidades
criadas pelo nosso tempo mas cuja resposta não é dada a todos pela economia
hegemônica.
Daí a proposta de distinguir analiticamente, nessa totalidade, os circuitos da
economia urbana. Enquanto o circuito superior é constituído pelos bancos, comércio,
indústria e serviços modernos amiúde orientados à exportação, o circuito inferior é
integrado por formas de fabricação que não são intensivas em capital e pelo comércio e
serviços não-modernos. O circuito superior marginal é constituído por formas mistas,
pertencentes tanto a atividades herdadas de divisões do trabalho pretéritas como a
formas de trabalho emergentes e inseridas nas atividades modernas. Não se trata, porém,
de atividades divorciadas, mas de um sistema de vasos comunicantes, no qual todos os
circuitos são resultado das modernizações e das respectivas transformações na divisão
territorial do trabalho.
Mas, o entendimento do real total somente pode ser alcançado quando visto como
um período. Nos últimos trinta anos houve, no Brasil, uma importante modernização
industrial, mas pode-se admitir que o aumento da população empregada foi devido à
profusão, nas metrópoles, de indústrias menos modernas, de escasso capital e cuja
existência esteve vinculada à expansão do consumo tanto das classes médias como dos
pobres. Os estabelecimentos de pequeno porte contratavam cerca de dois milhões de
pessoas no Brasil em 1980, o dobro da década anterior e duas vezes a quantidade de
funcionários das empresas industriais de grande porte. Por isso, a pobreza tem sido, de
alguma maneira, um entrave à plena oligopolização da economia, permitindo que firmas
menores subsistam naqueles pedaços da cidade mais desvalorizados.
Mas, a intensa urbanização, a reorganização do Estado e da economia, a
monetarização da economia e da sociedade que vai se perfazendo, os acréscimos de
ciência, técnica e informação à vida social e ao território e a diversificação e
aprofundamento dos consumos são dados novos do período, que alteram a natureza do
espaço em que os circuitos da economia urbana se desenvolvem.
RII – VIII Seminário Internacional
Grupo 4 – Globalização e expansão metropolitana
2
Hoje, as metrópoles despontam como a sede de comandos vinculados a atividades
modernas mas, ao mesmo tempo, como o principal cenário de atividades de aglomeração
- menos capazes de mobilidade espacial ou mais capazes de florescimento local associadas ao circuito superior marginal e ao circuito inferior da economia urbana.
O importante aumento das cidades milionárias e das grandes cidades médias (em
torno do meio milhão de habitantes) permite a diversificação e densificação da divisão do
trabalho. Quanto maiores e mais populosas as cidades, mais capazes são elas de abrigar
uma extensa gama de atividades e de conter uma lista maior de profissões (M. Santos e
M.L. Silveira, 2001), autorizando uma maior complexidade dos circuitos da economia
urbana no período atual.
Esse mesmo processo de urbanização tem um papel relevante sobre o mercado,
que cresce e ganha em espessura e segmentação. Nas grandes cidades brasileiras, o
número de pobres é importante. Se pela precariedade de suas rendas, sua demanda é
menos freqüente, o seu número, sempre crescente, traz consigo um certo efeito de
compensação. As maiores cidades reduzem os custos de produção e circulação, mas isso
é mais relevante para os circuitos inferior e superior marginal.
A globalização, suas unicidades e os circuitos
Diante das unicidades produtoras da globalização (M. Santos, 1996) - a unicidade
das técnicas, da informação e do dinheiro -, as dinâmicas urbanas ganham novos
conteúdos.
Hoje uma base material, com vocação invasora, desenha densidades e rarefações
na cidade. Todavia, o papel do consumo, ancorado na publicidade e no crédito, ainda
mais quando uma boa parcela dos objetos é semovente, alarga o uso dessa nova base
técnica inclusive em áreas pouco modernas. Amparados na convergência entre
informática e telecomunicações e nas necessidades contemporâneas da produção e
comunicação de idéias, imagens e dados em geral, telefones celulares, computadores,
equipamentos de fotografia e vídeo tornam-se mais acessíveis às diversas camadas
sociais. Em 2000 eram 17,3 milhões de pessoas com computador em casa, sendo que as
cidades da Região Concentrada (M. Santos e A.C. Torres Ribeiro, 1979) eram as melhor
dotadas.
Quanto aos telefones celulares, sabemos que o serviço pré-pago difundiu-se
largamente. Comprados no intuito de aumentar a disponibilidade às eventuais
RII – VIII Seminário Internacional
Grupo 4 – Globalização e expansão metropolitana
3
oportunidades de trabalho, sua densa presença mostra o papel do consumo entre os mais
pobres e sua necessidade de comunicação mas, também, a existência de uma rede fixa
rarefeita e, sobretudo, um uso escasso pelo alto valor das tarifas da telefonia celular e
fixa. Assim, se as grandes corporações dominam a produção e a venda desses objetos, o
resto da circulação permanece em mãos de outros agentes. É o caso dos consertos de
alguns desses aparelhos, assim como da revelação de filmes e do aluguel de vídeos nas
periferias. Por isso, o funcionamento dessa base técnica depende também do circuito
superior marginal e do circuito inferior, que são criadores de economia, pois permitem a
reutilização dos bens e a distribuição, tantas vezes desinteressante para os grandes
capitais.
Desse modo, tanto pela expansão dos novos produtos, amiúde tornados
instrumentos de trabalho em atividades não-hegemônicas, como pela proliferação de
atividades de conserto, os circuitos superior marginal e inferior participam, de forma
crescente e por vezes contraditória, na produção da unicidade técnica.
Se os objetos ligados às telecomunicações e à reparação de maquinários da base
industrial alargam o universo do circuito superior marginal, pela demanda de qualificação
e de instrumentos específicos, o conserto de boa parcela da atual base material
doméstica fundada no consumo globalizado, refugia-se freqüentemente no circuito
inferior, como os eletrodomésticos e por vezes os veículos. De um total de 791.954 micro
e pequenas empresas de prestação de serviços no país, 77.493 pertenciam, segundo
estatísticas do IBGE, em 2001, à manutenção e reparação de veículos e de objetos
pessoais e domésticos.
Os acréscimos de ciência e tecnologia à medicina e suas áreas afins revelam uma
das manifestações da unicidade técnica contemporânea. É o caso da indústria
farmacêutica. Altamente concentrada em corporações globais responsáveis pela maior
parcela das pesquisas científicas, a fabricação de medicamentos revela, todavia,
interstícios que são ocupados por empresas médias e pequenas. Trata-se, por exemplo,
de campos menos quimicizados como a produção de produtos fitoterapêuticos próprios de
um circuito superior marginal.
Mesmo com sua vocação para tornar-se um sistema invasor, que despreza as
solidariedades com objetos técnicos mais antigos, as técnicas contemporâneas possuem
uma qualidade inexistente em períodos anteriores. Elas são divisíveis, flexíveis, dóceis
(Th. Gaudin, 1978; 1999; M. Santos, 1996; 2000) porque permitem, por exemplo, com
alguns instrumentos e num pequeno local, fabricar um produto ou organizar um serviço
RII – VIII Seminário Internacional
Grupo 4 – Globalização e expansão metropolitana
4
que pode ser vendido. Pelo fato de ser altamente demandantes de inteligência e
informação, elas permitem usos e escalas distintos. Essa é a sua grande diferença com o
sistema técnico do período industrial.
A informação é, por essa razão, a verdadeira energia que impregna a ação
contemporânea. Mas é também produtora de unicidades. Uma certa informação de cunho
globalizante, verticalmente produzida e difundida, aparece como sinônimo do tempo
hegemônico do período, indutora de um pensamento único e de comportamentos
padronizados. Essencial às divisões territoriais do trabalho particulares das corporações
globais, a informação estratégica encarna os nexos extravertidos do território brasileiro
(H.K.Cordeiro, 1993; R.L. Corrêa, 1996) e, podemos asseverar, é um sofisticado circuito
superior, mormente sediado na cidade de São Paulo. A formulação das bases técnicas,
políticas e normativas, precisas e funcionais às exportações, privatizações e fiscalizações,
enfim ao novo uso do território nacional são, assim, confiadas a um restrito grupo de
empresas mundiais e nacionais de consultoria (A. Bernardes, 2001). Se o espaço da sua
ação confunde-se com o território nacional e com o mundo, a intensidade das suas
demandas no espaço contíguo é fraca. Não há um uso intensivo da força de trabalho,
nem da tecnologia, nem da informação do lugar, assim como não há dependência dos
mercados contíguos. Diante das grandes aglomerações urbanas brasileiras a questão é
como sobrevive a maior parcela da população senão de um trabalho cujo contexto não
ultrapassa a escala da metrópole? Será que quem trabalha em atividades dependentes
da contigüidade não utiliza as variáveis do período? Ou haverá uma produção própria, por
exemplo, de informação e publicidade? Qual informação técnica e mercadológica está,
então, no cerne da ação da maioria da população urbana?
O consumo é ação e, por isso, hoje ele é prenhe de informação. Poucas são as
atividades, empresas e lugares que parecem permanecer alheios, por exemplo, a um forte
conteúdo de publicidade próprio do nosso tempo. O resultado desse ato de império é a
existência de agências pequenas e médias que participam da produção global de
propaganda graças às formas e normas da terceirização, assim como de firmas criadoras
de uma publicidade para o pequeno comércio e para alguns serviços. Assim, faixas,
banners e outro tipo de cartazes, que podem ser rapidamente fabricados graças às
virtualidades das técnicas contemporâneas, colonizam as áreas de vizinhança da
atividade anunciada. No espaço da contigüidade, observa-se uma interrelação dos
circuitos da economia urbana.
RII – VIII Seminário Internacional
Grupo 4 – Globalização e expansão metropolitana
5
No período atual, a imitação - um dos pilares do funcionamento do circuito inferior se faz sobre novas bases. A relevância que o negócio da moda ganha no momento atual,
com uma profusão de cursos básicos e superiores de confecções, com as novidades na
produção de materiais e tecidos crescentemente híbridos, com a proliferação de revistas e
desfiles, com a expansão do crédito e da propaganda, determina que esse consumo se
alastre na sociedade e no território. Costureiras e alfaiates, entre as camadas mais
pobres, têm diante de si uma possibilidade maior de exercer a imitação dos consumos
sofisticados.
É também o caso dos móveis e da decoração dos lares. Esse mercado em
expansão, que não atinge apenas as camadas mais ricas da sociedade, chama a si toda
uma produção industrial e artesanal, que envolve pólos específicos em cidades médias e,
nas metrópoles, atividades de restauração de móveis antigos, férias, artesanatos e
consertos. Bairros e cidades ganham uma marcada especialização produtiva à luz dessa
demanda que parece, nos dias de hoje, tornar-se elástica.
O lazer e a cultura, de um modo geral, tornam-se, também, um mercado em
expansão. A distribuição de vídeos, a produção e venda de artesanatos, a gravação e
distribuição de música, as múltiplas formas de edição de livros, revistas e folhetos tornam
mais espessa a divisão do trabalho, permitem localizações mais flexíveis (na própria casa
por exemplo), demandam instrumentos de trabalho específicos mas hoje possíveis de
serem comprados e formas organizacionais modernas combinadas com relações de
amizade, parentesco e vizinhança. Estamos diante de um profuso circuito superior
marginal vinculado à cultura.
Por fim, a unicidade do motor ou, em outras palavras, a apropriação da maisvalia
por um pequeno grupo de atores globais, é responsável, ancorada na nova base material
e na possibilidade de dispor de informações em tempo real, pelas acelerações do período.
Aumenta vertiginosamente a velocidade de produção do dinheiro em estado puro porque
aumenta o número de mecanismos verticalizados capazes de extrair mais recursos de
mais atividades, de mais pessoas, de mais lugares. A publicidade e o crédito são
estratégias eficientes nessa guerra por uma maior acumulação de capital. Como cada
pedaço da cidade é avaliado em função da sua capacidade de reproduzir dinheiro, alguns
tornam-se tesouros disputados enquanto outros são desprezados.
O abandono de instâncias, setores, parcelas, lugares reflete que, mesmo
importantes para completar o trabalho tão fortemente dividido nas metrópoles, o circuito
superior não se preocupa em exercer esse papel. No Brasil, dos 3,3 milhões de empregos
RII – VIII Seminário Internacional
Grupo 4 – Globalização e expansão metropolitana
6
no setor de serviços correspondente às micro e pequenas empresas, mais de 400 mil
pertenciam a transportes e serviços auxiliares dos transportes. É o caso das diversas
formas de distribuição, na cidade grande, de mercadorias, objetos, documentos e
pequenos valores.
Todavia, a creditização parece não deixar de lado nenhuma parcela do território
nem da economia. A capilaridade das redes financeiras resulta da coexistência de filiais
de grandes instituições como Panamericano, Crefisa ou Zogbi, de todo tipo de agiotas e
da profusão de novos tipos de crédito oferecidos pelos bancos públicos e privados. A
rentabilidade dos bancos, por exemplo, passou de 10,6% em 1994 para 15,7% em 1998 e
para 24,5% em 2002.
Ao contrário da produção que é seletiva nas suas escolhas locacionais, a finança
se interessa, direta ou indiretamente, pela totalidade do território vivente. É por isso que
podemos afirmar que ela não é apenas uma variável determinante, mas também uma
variável dominante, responsável por uma drenagem que não conhece limites.
Assim, o circuito inferior, caracterizado pelo seu baixo grau de capital fixo
tecnológico, é impingido a aumentar seu capital de giro por meio do crédito, ainda mais
quando muitos dos pequenos empresários trabalham como pessoa física. Quando o
spread bancário para empréstimos às empresas era de 25% anuais, para as pessoas
físicas era de 57% anuais. A vulnerabilidade aumenta com a utilização do cheque
especial, do crediário e, sobretudo, do crédito pessoal, pois os juros atingem valores
extremamente altos (entre 50% e 160% anual). Como o número de pessoas sem conta
bancária ou incapaz de dispor das necessárias garantias é significativo, o crédito pessoal,
concedido por instituições financeiras, encontra um terreno fértil. Formas de verticalização
de uma economia gerada pelo circuito inferior que, no período da globalização, conhecem
graus superlativos.
O circuito superior marginal não está a salvo dessas emboscadas. Os mecanismos
leoninos de um certo crédito também atingem as práticas desses atores. Mas,
paralelamente, o sistema de franquias, um conteúdo novo do período, parece enraizar-se
em algumas das suas atividades e, assim, tornar mais complexo o reconhecimento desse
circuito. Se o grau de organização é bastante alto, pois as formas e normas da natureza e
uso do capital e da tecnologia são prescritas pela firma matriz, a gestão cotidiana e os
riscos são assumidos por um empresário pequeno ou médio, que deve cumprir com os
direitos e royalties e, nessa complexa situação, encontrar sua modesta equação de lucro.
RII – VIII Seminário Internacional
Grupo 4 – Globalização e expansão metropolitana
7
Verificamos este fato em algumas gráficas expressas e escolas de línguas. Tratar-se-ia
de mais uma manifestação organizacional das atuais unicidades.
Os quatro brasís urbanos...
Nos últimos anos, todas as áreas do país experimentaram um revigoramento do
seu processo de urbanização, ainda que em níveis e formas diferentes, graças às
diversas modalidades do impacto da modernização sobre o território. A situação anterior
de cada região pesa sobre os processos recentes.
A partir do momento em que o território brasileiro se torna efetivamente integrado e
se constitui como mercado único, o que à primeira vista aparece como evolução
divergente é, na verdade, um movimento convergente. Há uma lógica comum aos
diversos subespaços. Essa lógica é dada pela divisão territorial do trabalho em escala
nacional, que privilegia diferentemente cada fração a um dado momento de sua evolução.
Nas áreas pouco povoadas do Norte e do Centro-Oeste, a modernidade posterior à
segunda guerra mundial se implanta sobre o vazio e, desse modo, não encontra o
obstáculo das heranças. Essas áreas ainda se mantinham praticamente pré-mecânicas
até trinta ou quarenta anos atrás.
O Centro-Oeste apresenta-se extremamente receptivo aos novos fenômenos da
urbanização, já que era praticamente virgem, pois não possuia infra-estrutura de monta,
nem outros investimentos fixos vindos do passado que pudessem dificultar a implantação
de inovações. Pôde, assim, receber uma infraestrutura nova, totalmente ao serviço de
uma economia moderna, já que em seu território eram praticamente ausentes as marcas
dos precedentes sistemas técnicos. Desse modo, aí o novo vai dar-se com maior
velocidade e rentabilidade. É por isso que o Centro-Oeste conhece uma taxa
extremamente alta de urbanização, podendo nele se instalar, de uma só vez, toda a
materialidade contemporânea indispensável a uma economia exigente de movimento.
Na Amazônia Legal, o índice de urbanização passa de 28,3% em 1950 a 52,4% em
1980 (Lia Osório Machado, 1984) e o número de núcleos urbanos duplica nesse mesmo
período, subindo de 169 para 340.
A Região Centro-Oeste - e, particularmente, Mato Grosso do Sul e Goiás distingue-se da Amazônia pelo fato da continuidade espacial da ocupação, feita a partir de
capitais mais intensivos, com a evidência de uma maior composição orgânica e num
subespaço onde a fluidez é maior. Graças às novas técnicas, cidades médias
RII – VIII Seminário Internacional
Grupo 4 – Globalização e expansão metropolitana
8
relativamente espaçadas (em contraste com áreas de velha urbanização como o
Nordeste) se desenvolvem rapidamente. E na Amazônia houve, desde o século passado,
condições para a concentração da população em poucos núcleos, exatamente em função
da descontinuidade e da raridade do povoamento.
Outra é a realidade do Nordeste, onde uma estrutura fundiária hostil desde cedo a
uma melhor distribuição de renda, a um maior consumo e a uma maior terciarização,
ajudava a manter na pobreza milhões de pessoas, e impedia uma urbanização mais
expressiva. Por isso, a introdução de inovações materiais e sociais iria encontrar a grande
resistência de um passado cristalizado na sociedade e no espaço, atrasando o processo
de desenvolvimento. Um antigo povoamento, asentado sobre estruturas sociais arcaicas,
atua como freio às mudanças sociais e econômicas, acarreta o retardo da evolução
técnica e material e desacelera o processo de urbanização. Esta é recentemente menos
dinâmica no Nordeste, se comparada a outras áreas do país.
Já o Sudeste, mais "novo" que o Nordeste e mais "velho" que o Centro-Oeste,
consegue, a partir do primeiro momento de mecanização do território, uma adaptação
progressiva, eficiente aos interesses do capital dominante. Cada vez que há uma
modernização, esta é encampada pela região. A cidade de São Paulo é um bom exemplo
disso, pois constantemente abandona o passado, volta-lhe permanentemente as costas e,
em contraposição, reconstrói seu presente à imagem do presente hegemônico, o que lhe
tem
permitido,
nos
períodos
recentes,
um
desempenho
econômico
superior,
acompanhado por taxas de crescimento urbano muito elevadas.
Uma permanente renovação técnica serve como base material para uma
permanente renovação da economia e do contexto social, ensejando uma divisão do
trabalho cada vez mais ampliada e a aceleração correlativa do processo de urbanização,
cujos índices atuais no Sudeste são comparáveis, senão superiores, ao da maioria dos
países da Europa Ocidental.
Quanto à Grande Região Sul, reúne áreas de povoamento mais antigo,
incorporadas à civilização mecânica desde fins do século XIX a outras cuja incorporação
tardia à civilização técnica lhes permitiu um desenvolvimento urbano mais rápido. Quando
é mais descontínua, a colonização mobiliza relativamente menos capitais e mais trabalho,
enquanto as ocupações mais recentes são geralmente acompanhadas de maior
densidade capitalística e técnica. Isso ajudaria a explicar o maior desenvolvimento urbano
e a presença de uma classe média urbana mais notável.
RII – VIII Seminário Internacional
Grupo 4 – Globalização e expansão metropolitana
9
Mas, nos quatro brasís (M. Santos e M.L. Silveira, 2001), as aglomerações
nascidas das atuais dinâmicas territoriais têm um tamanho maior do que aquelas de
períodos anteriores. As técnicas contemporâneas da produção e da circulação de bens
materiais e imateriais permitem a uma boa parcela da população vencer as distâncias
num tempo menor e, assim, diminui a necessidade da proliferação de núcleos urbanos.
Paralelamente, o aumento dos consumos, tanto das famílias como das empresas e do
governo, e as novas formas do trabalho agrícola, que permitem a um número importante
de trabalhadores viver na cidade, são, entre outros, os fatores que explicam o
crescimento simultâneo das metrópoles, capazes de abrigar um crescente número de
pobres, e das grandes cidades médias. Assim, a extensão e diversidade do meio
construído junto a uma maior divisão do trabalho ligada também às especificidades da
vida regional perfazem os retratos urbanos diferenciados no Brasil.
... e as feições regionais dos circuitos da economia urbana
No período da globalização novas fontes de riqueza e de pobreza multiplicam-se
nas grandes cidades, uma vez que estas buscam adaptar-se às demandas da economia
mais
moderna,
adequando
seu
meio
construído às respectivas exigências e
racionalidades. Mas, esse fenômeno atinge apenas uma pequena parcela do espaço
urbano, mesmo porque os custos são muito altos, enquanto o resto da cidade mostra uma
grande variação de infraestruturas e valores. A criação de racionalidade é, certamente,
limitada (M. Santos, 1996).
O Brasil que se globaliza é, ao mesmo tempo, um Brasil que se metropoliza e, por
isso, a explosão do circuito inferior é concomitante à enorme expansão urbana, tantas
vezes na base de um processo de urbanização sem industrialização. A crise econômica
recorrente no período da globalização traz consigo uma extensão da periferia pobre (E.
Almeida, 2000) e uma deterioração do meio construído urbano já existente (sobretudo os
centros), que também se desvaloriza pela modernização de outras parcelas da cidade.
Esse processo é sempre acompanhado pela multiplicação de atividades de sobrevivência.
O crescimento de um circuito superior marginal residual dá-se pela incapacidade
de modernizar-se ao ritmo imposto pela época. Mas, paralelamente, a normatização, a
relevância e antecedência do trabalho intelectual, a cientificização das atividades, a
expansão dos consumos são pilares do crescimento de um circuito superior marginal
emergente. Por isso, o circuito superior marginal poderia ser visto como um laboratório da
RII – VIII Seminário Internacional
Grupo 4 – Globalização e expansão metropolitana
10
substituição de uma divisão territorial do trabalho por outra. A decadência e emergência
de profissões e empresas, ligadas às formas hegemônicas do fazer e do mandar, atingem
diretamente ao circuito superior marginal. Enquanto certos saberes se desvalorizam,
outros surgem.
Nas grandes metrópoles da Região Concentrada e especialmente em São Paulo, a
cidade moderna, pivô central das geometrias das grandes empresas, vê ampliar suas
tarefas e os horizontes das ações que abriga pois se torna, outrossim, o relé das
topologias das corporações globais na América do Sul. A necessidade de informação
precisa e de diversos tipos de dinheiro atribui novos papéis às metrópoles e consolida,
mesmo com base na segmentação socioespacial, a sua existência como um grande
mercado.
Como a expansão do meio construído se acelera, as valorizações e
desvalorizações dos pedaços da cidade são frenéticas, ensejando a possibilidade de
instalação, aqui ou ali, de atividades menos capazes de dar valor aos seus produtos. A
extrema variedade de capitais - fixos e variáveis - assegura a existência de uma extrema
variedade do trabalho. As sazonalidades superpostas tendem a anular-se e, portanto, a
grande cidade é mais apta a abrigar um circuito inferior.
Não há, portanto, uma única área de mercado da cidade como quer a teoria dos
lugares centrais, cujo partido de método é identificar o setor moderno com a economia
urbana. As atividades de pequena escala, cujos atores são os mais pobres, têm relações
privilegiadas com a sua região. Nem mesmo as cidades que reconstroem seu presente à
imagem das variáveis hegemônicas são formadas apenas pelo setor moderno (circuito
superior), mas também por um circuito inferior, que não é um freio à modernização mas
seu resultado e, ainda, por um circuito superior marginal, nascido, sobretudo, em função
da relevância que ganha a circulação. Muitas vezes próximo do circuito superior pela
funcionalidade do seu trabalho, o circuito superior marginal emparenta-se com o circuito
inferior pelo comportamento dos seus atores.
Embora as estatísticas não possam revelar, fielmente, a natureza e a magnitude do
circuito inferior nem do circuito superior marginal, é importante sublinhar que, em 2001,
apenas as micro e pequenas empresas de comércio e serviços (pouco mais de 2 milhões
de estabelecimentos) contratavam 7,3 milhões de pessoas (desse total três quartas partes
eram empresas que contratavam até 5 pessoas), isto é, cerca de um dízimo da população
ocupada no Brasil. O número de empresas vêm crescendo mas, sobretudo, sua
contribuição para criar empregos. Eram 5,5 milhões de pessoas por elas contratadas em
RII – VIII Seminário Internacional
Grupo 4 – Globalização e expansão metropolitana
11
1998, o que significa que houve um aumento de mais de 32% entre 1998 e 2001 (IBGE,
2003). Fundadas no trabalho intensivo, muitas dessas firmas são familiares, mas seu
denominador comum é o escasso capital.
Segundo o mesmo estudo do IBGE, 30% dos custos destas pequenas unidades
empresariais correspondem a despesas com pessoal e apenas 4% a aluguéis e
arrendamentos de máquinas, veículos e outros equipamentos. Sua adaptação a
localizações, prédios e sistemas técnicos menos valorizados reflete-se na composição
das suas despesas.
Destinar uma proporção maior dos rendimentos ao pagamento de mão-de-obra em
lugar de aumentar e modernizar o capital fixo (sobretudo localização e maquinário) não
deixa de ser, no período atual, uma produção de irracionalidade. Uma boa localização,
capaz de atrair camadas de população de maior poder aquisitivo, assim como a compra
de equipamentos mais modernos, poupadores de mão-de-obra, dos seus encargos e de
eventuais conflitos, seriam, certamente, formas de produção de racionalidade.
Essência das políticas do poder público e das grandes empresas, essa
racionalidade revela-se, ainda mais nas grandes metrópoles, limitada. Do norte ao sul
desse Brasil urbano, as maiores metrópoles suportam taxas de desemprego em torno de
20% da população economicamente ativa: São Paulo, Salvador, Recife, Belo Horizonte e
Brasília (DIEESE, 2003).
Mas, qual a racionalidade de uma economia urbana que despreza, como em
Salvador, cerca de 30% da sua PEA? O fato é que, a cada dia, há um menor número de
atividades e de empregos ligados a essa racionalidade hegemônica e isso é mais visível
nas grandes cidades dos quatro brasís.
Diante dessa realidade, uma enorme parcela da população deve encontrar uma
atividade - e um lugar dentro da cidade - que seja capaz de permitir sua sobrevivência. É
uma economia de baixo para cima (M. Santos, 1996; 2000) que parte do princípio de que
os mais pobres, os vizinhos, os demais trabalhadores poderão a consumir os produtos e
serviços oferecidos. É uma cooperação que se perfaz na contigüidade e, portanto, não
precisa ser fluida, nem veloz, nem competitiva. Essa cooperação pode, assim, ser lenta e,
por isso, é vista como irracional.
Quitandas, mercearias, armazéns, minimercados, padarias, açougues, peixarias,
venda de frutas e verduras coexistem com as densas topologias dos grandes
supermercados e das modernas lojas de conveniência. Nesse comércio de contigüidade,
a iliquidez não é um empecilho, pois vários tipos de dinheiro e de crédito são utilizados
RII – VIII Seminário Internacional
Grupo 4 – Globalização e expansão metropolitana
12
(tickets, vale-transporte, vale-alimentação, compra a fiado, cadernetas de compra).
Completam o retrato pequenas lojas de roupas, de bijuterias, de sapatos assim como
lanchonetes, pequenos restaurantes, pastelarias, pizzarias, casas de sucos e sorveterias.
Mas, entre as pequenas firmas, os serviços técnico-profissionais prestados às
empresas representam 27,8% do total. Trata-se de serviços jurídicos, contabilidade,
auditoria, consultoria empresarial, serviços técnicos de engenharia e arquitetura,
publicidade e propaganda. As atividades de informática também aumentam sua
proporção. Juntos, os serviços técnico-profissionais e as atividades de informática
somavam cerca de 125 mil empresas que contratavam mais de 400 mil pessoas. Ainda
que o capital fixo possa não ser muito significativo, a existência de um conhecimento
específico e de uma rede de relações, faz dessas atividades um circuito superior
marginal.
Mais da metade do conjunto de micro e pequenas empresas comerciais e de
serviços concentra-se na região Sudeste e, somados, o Sudeste e o Sul (a Região
Concentrada) abrigam cerca de 78% do total nacional. A alta urbanização desses Estados
ajuda a explicar este retrato. Somente no Estado de São Paulo as micro e pequenas
empresas de comércio e serviços empregam mais de 2,2 milhões de pessoas. Na região
Nordeste o total ultrapassa um milhão de pessoas, contrastando com os modernos
Estados do Centro-Oeste, onde o circuito inferior parece ser mais fraco (pouco mais de
500 mil pessoas são contratadas nas firmas desse porte).
Quanto mais populosa a cidade, mais seu mercado é grande e segmentado,
apoiado num vasto meio construído, mas bastante fragmentado quanto aos seus valores,
mesmo que se trate de áreas modernas da Região Concentrada. Isso autorizar-nos-ia a
falar de áreas de diversidade e áreas de especialização. Ambas vêm constituindo o nosso
escopo de pesquisa.
Nas áreas de diversidade, o trabalho se especializa e se divide em múltiplos
circuitos espaciais de produção, cujo território é todavia o bairro ou a cidade em virtude da
sua condição não-hegemônica. A circulação é determinante e, por isso, os circuitos
diferentes se entrecruzam e criam um mercado, segmentado, que se nutre da diversidade
de fabricação, de comércio e de serviços. São pontos e áreas densas da divisão do
trabalho, onde coexistem técnicas de diferentes momentos históricos. Os prédios são,
quiçá, a manifestação mais clara das rugosidades que nos vêm do passado, pela sua
idade e pelas suas condições. É o reino do circuito inferior e, também, de um variado
circuito superior marginal em áreas de grande circulação como o Largo Treze, o Largo de
RII – VIII Seminário Internacional
Grupo 4 – Globalização e expansão metropolitana
13
Pinheiros e o próprio centro velho da cidade de São Paulo ou, mesmo, em áreas
renovadas como o bairro Tatuapé. É também o caso dos centros antigos do Rio de
Janeiro e de Porto Alegre, assim como das áreas contíguas às rodoviárias em todas as
grandes metrópoles brasileiras.
Mesmo que a existência dessas áreas de diversidade não seja um fenômeno
exclusivamente metropolitano, o volume da circulação, nesses pontos, manchas e linhas
evidencia que se trata de grandes corpos urbanos. As áreas de especialização urbana, ao
contrário, tendem a ser um dado do fenômeno metropolitano. Ali o trabalho se especializa
e se divide dentro de um mesmo circuito espacial de produção, envolvendo diversas
etapas e atores de diferente poder em complexos processos de cooperação e
concorrência. Numa cidade como Belém encontramos uma área especializada em lojas
de maquinários e ferramentas para a exploração de madeira e para as embarcações do
espesso sistema de movimento fluvial que ela preside. Numa macrometrópole como São
Paulo, várias áreas poderiam ser mencionadas: zona cerealista no centro, eletrônicos na
rua Santa Ifigênia, lustres e material elétrico na rua da Consolação, vestidos de noiva na
rua São Caetano, confecções em Bom Retiro e Brás, entre outros. Amiúde, a existência
dessas economias de aglomeração a escala urbana nos fala das suas relações de
produção e de mercado com a cidade, com a região, com o país. A sua especialização
produtiva é causa e conseqüência da densificação do espaço de fluxos (mais transportes,
mais comunicações, mais finanças) e, portanto, essas áreas são lugares de coexistência
dos circuitos da economia urbana que todavia podem acabar por aumentar o valor da
localização e do meio construído e, com isso, expulsar alguns atores.
Essa é uma das manifestações da aceleração contemporânea (M. Santos, 1993).
Uma nova demografia empresarial está diante dos nossos olhos. Natalidade, mortalidade,
migrações de empresas são processos freqüentes e velozes. Se para as grandes
corporações as fusões são comportamentos habituais nesses tempos, o fenômeno mais
corrente para as firmas do circuito inferior e do circuito superior marginal são as altas
taxas de mortalidade. Contudo, também são altas as taxas de natalidade e mesmo as
taxas de mortalidade refletem, por vezes, as migrações de ramo ou de localização.
Se a velocidade da acumulação de lucro não é rápida, como reza o mandamento
da globalização, o dinamismo do circuito inferior e do circuito superior marginal não pode
ser negligenciado. É exatamente a sua vulnerabilidade o que exige dessa economia de
baixo um importante dinamismo. Em 2000, as mais altas taxas de mortalidade verificamse nas empresas de serviços que contratavam até 5 pessoas (19%) e nas firmas
RII – VIII Seminário Internacional
Grupo 4 – Globalização e expansão metropolitana
14
comerciais do mesmo porte (15,8%). Mas é essa mesma faixa que registra as mais altas
taxas de natalidade: 27,1% e 22,7% respectivamente. É uma tendência que se verifica
nos últimos anos. Esses dados contrastam com o comportamento das firmas que
contratavam mais de 20 pessoas, cuja taxa de natalidade foi de 6,6% para as atividades
de comércio e 9% para os serviços em 2000. Vemos, assim, como a cada divisão
territorial do trabalho, vários interstícios são ocupados pelas pequenas empresas.
Às portas da moderna São Paulo, Jano revela sua outra face
Se as crises econômicas constituem um freio na renovação da maior parcela do
meio construído, o neoliberalismo, com a pretensa estabilidade monetária, parece ter
acionado um processo acelerado de renovações urbanas pontuais. Para certas áreas da
cidade de São Paulo fluem, sem viscosidades, torrentes de dinheiro sob a forma de
empréstimos privados, internacionais e nacionais, por vezes vinculados à esfera do poder
público. Vejam-se os exemplos da construção de prédios residenciais de classe média cada vez mais longe do centro da cidade ou verticalizando áreas tradicionalmente baixas , de condomínios fechados dentro ou fora da grande mancha urbana, ou a renovação do
antigo centro urbano comandada pelo Banco de Boston.
Uma área comercial tradicional e central como a zona cerealista, nascida ao abrigo
da estrada de ferro Santos-Jundiaí mas cuja localização e equipamento continuaram
funcionais quando o sistema de movimento de cargas (arroz, feijão, batata, cebola)
tornou-se rodoviário, parece não resistir os impactos do período atual. A sua virtual
transferência para uma nova área de encruzilhada (rodovias Regis Bittencourt e Raposo
Tavares) é uma ação política com base em dados técnicos e organizacionais novos: as
atuais áreas produtoras (Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul, Maranhão), o grau de
acessibilidade e os problemas de trânsito de cargas, os novos equipamentos de
comunicação (telefone, computador, fax, correio eletrônico) e a logística dos grandes
supermercados (pedidos informatizados, terminais próprios, marcas próprias). Se nos
projetos oficiais o uso é mantido, essa transferência significará também que nem todos
poderão acompanhar os custos desse deslocamento.
Concretizados ou em vias de implantação, numerosos projetos parecem coincidir
na busca de localizações periféricas, bem dotadas de infraestrutura, próximas às
marginais, que garantam o exercício de uma circulação mais fluida e, sobretudo, a
instalação mais seletiva dos atores. Como o novo centro empresarial da Avenida Berrini,
RII – VIII Seminário Internacional
Grupo 4 – Globalização e expansão metropolitana
15
essas localizações em zonas circunvizinhas das marginais parecem confirmar a adoção
de um modelo de urbanismo periférico de origem norte-americana.
Essa
produção
permanente
de
escassez
ganha
hoje
sua
expressão
contemporânea na aplicação de receitas de cunho macroeconômico nas quais o capital é
sempre mais abundante que o trabalho para aqueles atores hegemônicos em detrimento
da economia real do país e da cidade, na qual o trabalho é sempre mais abundante que o
capital. Estado e empresas, tantas vezes, em cooperação ou em conflito, tem tido um
papel determinante na produção do desemprego, um claro indício da produção limitada de
racionalidade.
Estruturalmente a cidade é criadora, ao mesmo tempo, de riqueza e pobreza, de
abundância e de escassez. Vetores internos e externos têm o papel de acelerar ou
desacelerar as necessárias e permanentes readaptações. Por isso, os circuitos da
economia urbana desenvolveram-se tanto na metrópole industrial como na metrópole
informacional-financeira na forma de vasos comunicantes pois, sendo ambos um
resultado da modernização, encontram, hoje, as condições da sua reprodução. E, ainda
mais, identificada como a chegada de novos objetos e novas formas de fazer, a
globalização convida à emergência de um novo circuito superior marginal, embrenhado
em codificar e decodificar os objetos e as normas necessárias ao novo momento do modo
de produção. Nascem escritórios e empresas, tantas vezes ligados às novas profissões,
que prestam serviços às firmas hegemônicas ou ao poder público. Em 1999 eram 3,7
milhões de pessoas no setor de serviços, equivalente a 53% da população
economicamente ativa na Região Metropolitana de São Paulo (um acréscimo de 1,4
milhão de pessoas em relação a 1981).
Se a divisão social do trabalho que acompanha o mundo da informação e da
finança multiplica as profissões, ela diminui, ao mesmo tempo, o número de empregos. As
formas técnicas e de regulação contemporâneas satisfazem seu apetite com um número
menor de pessoas altamente qualificadas. O emprego tradicional da metrópole industrial
esvai-se, de um lado, ao ritmo das novas acelerações normativas como as formas
temporárias de contratação e a terceirização, da interiorização da indústria que é
sinônimo de modernização e de busca de novas densidades normativas e, de outro, pelas
novas ocupações na produção e adaptação das informações externas ao mercado
brasileiro, da criação de uma publicidade que aprofunde os consumos, da produção
codificada de formas de fazer e regular como a miríade de instrumentos financeiros em
vigor.
RII – VIII Seminário Internacional
Grupo 4 – Globalização e expansão metropolitana
16
As
reformas
neoliberais,
portadoras
da
racionalidade
da
época,
foram
responsáveis, outrossim, pela diminuição do número de empregos ligados às atividades
modernas nas empresas e no setor público. Automação, reengenharia de processos,
redução do chamado inchaço do Estado, diminuição das vendas, entre outras, foram
razões aduzidas para concretizar as demissões. Quando estas eram as chamadas
demissões voluntárias, um novo elemento aparecia na economia urbana, pois as
indenizações decorrentes pairavam na cidade buscando implantar antigas, novas ou
renovadas funções da divisão do trabalho. A natureza volátil dos capitais das grandes
corporações e de suas geometrias mundiais contrasta com a fixação dos pequenos
capitais das famílias no próprio meio construído urbano empreendendo uma nova
atividade econômica. A cidade de São Caetano do Sul na Região Metropolitana de São
Paulo é, talvez, um bom exemplo com a instalação de lojas e empresas de serviços por
parte dos antigos funcionários da indústria automobilística.
A concentração de pobres na cidade de São Paulo acaba tendo um efeito positivo
sobre os volumes produzidos e comercializados. Cria-se um mercado que, apesar das
demandas individuais limitadas, constitui, pelo grande número de famílias, um efeito
ampliado. Graças aos custos de produção mais baixos pela ampla oferta e proximidade
de insumos, mão-de-obra e clientes, surge um considerável número de pequenas
empresas e, desse modo, mesmo que a mortalidade das firmas possa ser alta, a
demanda constante possibilita que outras possam nascer.
Na própria garagem da casa costuma funcionar o escritório das pequenas
empresas de carretos e mudanças com baú. Próprio, o caminhão ou caminhonete é,
amiúde, o fator que define a capacidade de trabalho mensal. Variando entre sete e cerca
de 40 mudanças por mês, as empresas contratam alguns ajudantes para realizar um
trabalho que geralmente é no próprio bairro ou nos bairros contíguos. Localizações em
áreas residenciais, como Butantã ou Pinheiros, são privilegiadas por oferecer
permanentemente possibilidades de trabalho. Pequenos cartazes fixados em postes e
muros do bairro e um telefone, por vezes celular, são os instrumentos indispensáveis para
garantir sua demanda. Criam-se, paralelamente, solidariedades econômicas com os
coletores-vendedores de caixas de papelão.
A contigüidade é um dado central também para um bom número de costureiras
entrevistadas que, dedicadas a essa atividade por falta de emprego, trabalham em casa
com uma ou duas máquinas domésticas, freqüentemente compradas de segunda mão.
Morando em bairros como Santo Amaro, Itaim Bibi, Brooklin, Jardim Bonfiglioli ou Alto da
RII – VIII Seminário Internacional
Grupo 4 – Globalização e expansão metropolitana
17
Boa Vista, deslocam-se para Brás e Bom Retiro, áreas de especialização comercial, para
comprar seus insumos. O conserto de roupas acaba configurando um verdadeiro
mercado, indicado entre fregueses e conhecidos, uma vez que a importação no setor têxtil
e confecções tem atingido seriamente a produção de roupas sob medida.
Dentre as numerosas situações do circuito superior marginal, as agências de
motoboy espalham-se na cidade, ao ritmo de uma intensa necessidade de cooperação e
dos atritos à circulação. Mais do que o grau de capitalização, é a capacidade organizativa
o que define as empresas. A agência recebe os pedidos e ordena as viagens, que são
feitas pelos trabalhadores com suas próprias motos. Para realizar o transporte de
documentos e pequenas mercadorias para escritórios e empresas das imediações, numa
média de duzentas viagens por mês, o pessoal contratado é pago por hora de trabalho.
O desenvolvimento das técnicas da informática também tem permitido a instalação
das chamadas gráficas digitais ou express que, em pequenos locais, podem oferecer um
bom leque de produtos: cartões de visita, convites, folders, folhetos, entre outros. Os
equipamentos e instrumentos de trabalho são computadores (cujo número varia de 3 a 20
nos casos entrevistados), scanner e softwares específicos (como o Corel). Algumas
empresas compraram os equipamentos usados. Sua localização, ora em áreas
valorizadas como um shopping-center com aluguel que ultrapassa os dois mil reais, ora
em áreas mais deterioradas como largos e praças de grande circulação de pessoas,
permite ganhar um mercado de empresas e famílias. Observamos, também, que existe
uma divisão do trabalho e uma cooperação entre as gráficas tradicionais, de localização
mais periférica e orientadas à produção de grandes volumes, e as gráficas digitais. Com
freqüência, estas últimas são responsáveis pelo trabalho de provas, enquanto as
indústrias tradicionais encarregam-se, graças aos seus equipamentos, das grandes
tiragens (impressão off set). Quando a gráfica é de maior porte, o seu mercado é
constituído por empresas e abrange amplas regiões, quando a firma é pequena, o seu
mercado é dado pelas famílias no bairro ou na cidade. Às demandas de cartões de visita,
material promocional, impressão de trabalhos, todas acrescentam outros serviços tais
como xerox, encadernação, plastificação, serviço de fax. A publicidade, vista como um
suporte indispensável da produção hoje, acaba configurando-se como um nicho de
mercado para estas firmas. Sua atividade encontra-se bastante financeirizada: compra de
equipamentos com leasing bancário, transações diárias com bancos privados mas,
paralelamente algumas usam tickets como moeda. Várias delas são franquias.
RII – VIII Seminário Internacional
Grupo 4 – Globalização e expansão metropolitana
18
A divisibilidade das técnicas atuais tem permitido, outrossim, uma certa
banalização do trabalho de produção musical. A convergência entre as técnicas da
informática e da música ampliaram o leque de possibilidades de criação e de divulgação.
A isso contribuem também as novas ou renovadas formas organizacionais como a
terceirização e o aluguel dos estúdios por hora de trabalho. É o caso dos pequenos
estúdios de ensaio e gravação pesquisados na cidade de São Paulo, que contam entre
seus instrumentos de trabalho, geralmente comprados usados, computadores, softwares
(como o Sound Ford e o Protus) para digitalizar as músicas, mesas de som, microfones,
cabos, instrumentos musicais, amplificador e retorno, entre outros. Os computadores são
também utilizados para produzir a própria propaganda (folhetos que serão distribuidos em
lojas de instrumentos musicais e casas de shows), assim como para obter informações
sobre técnicas, mercados, incentivos e oportunidades de negócios através da Internet. O
resto da informação e da propaganda provém de revistas especializadas e da troca de
informações orais (“boca a boca”) nos ambientes musicais. Os estúdios funcionam em
antigas residências preparadas para tal fim, raramente alugadas (valores entre 200 e
1000 reais) ou, por vezes, nos fundos da própria casa. Não conformam um área
especializada da cidade, mas estão dispersos em áreas residenciais e bem-localizadas da
capital. Contratam um ou dois auxiliares técnicos para os ensaios e gravações, mas esse
número pode aumentar no caso dos estúdios que funcionam 24 horas. O uso de
instrumentos financeiros por parte das pequenas firmas confunde-se com o uso desses
produtos por parte do seu proprietário (cheques, cartão de crédito, depósitos emitidos ou
recebidos como pessoa física e não jurídica). Conforme o seu tamanho e sua sofisticação
técnica, contam entre seus clientes as classes médias e altas ou camadas mais pobres da
população. Sua margem de lucro oscila entre 45% e 60%.
A refuncionalização de casas em bairros como Pinheiros, Cerqueira César e Bela
Vista para ali instalar uma atividade ligada à produção cultural torna-se um fenômeno
freqüente na cidade de São Paulo. Assim como os estúdios também mencionamos as
pequenas e médias editoras de livros e revistas. Geralmente pagando aluguéis que
ultrapassam mil ou dois mil reais, as editoras são comandadas por pessoas com
formação profissional técnica na área de contabilidade ou de nível universitário e,
enquanto as pequenas contratam de três a seis funcionários, as empresas médias
empregam em torno de vinte. Todas as firmas entrevistadas estão registradas como
pessoa jurídica e seus funcionários possuem carteira assinada, representando de 30% a
40% das suas despesas.
RII – VIII Seminário Internacional
Grupo 4 – Globalização e expansão metropolitana
19
Essas localizações foram escolhidas em função da acessibilidade a fornecedores,
clientes e mão-de-obra, assim como pela oferta de serviços. A quantidade de
instrumentos de trabalho é central para determinar a sua força de mercado. Equipadas
com telefones fixos e celulares, máquina de xerox, computadores (que variam de 3 a 40),
impressoras e scanner, algumas possuem também máquinas fotográficas, filmadoras e
outras tecnologias ligadas à imagem. As virtualidades da informática tornam possível o
trabalho de editoração que se completa, mais tarde, pelo trabalho material terceirizado em
favor de uma indústria gráfica e, em alguns casos, por serviços de fotografia e
reportagem. Vê-se aqui uma solidariedade entre atores do circuito superior marginal.
A multiplicação dos consumos e a divisão do trabalho possibilitam a existência de
um número crescente de revistas gerais e especializadas, cuja comercialização não se
reduz unicamente às bancas de jornais e livrarias, mas também às vendas por assinatura.
A produção de livros tem sido beneficiada por leis específicas de incentivo e por parcerias
com editoras universitárias e agências de financiamento à pesquisa e suas vendas,
multiplicadas pelo aumento do número de feiras gerais e universitárias. A participação dos
consumos religiosos é também um dado importante. Salienta-se o exemplo das editoras
evangélicas.
A propaganda é feita através de folhetos produzidos na própria firma, da internet,
de outdoors e também de agências de publicidade. Com esses meios é atingido um
mercado que, para algumas, chega a ser nacional. Todas as editoras entrevistadas
trabalham com vários bancos e utilizam, hoje, mais serviços do que no início de sua
atividade. As firmas menores já utilizaram o limite do cheque especial e o período de
isenção de juros. Os empréstimos solicitados como pessoa jurídica destinam-se a saldar
dívidas e a manter-se no mercado. Aos clientes são oferecidos diversos instrumentos de
pagamento: cheque à vista e pré-datado, cartão de crédito, dinheiro, boleto bancário,
duplicata, débito automático. Existem relações horizontais entre empresas do mesmo
ramo, principalmente para troca e atualização de informações.
Por outra parte, o aumento na procura e na oferta de cursos de diversa natureza,
fundado na necessidade de qualificação profissional e, por vezes, num certo consumo
cultural, é mais um dado do período contemporâneo. Pesquisamos algumos cursos de
informática, pré-vestibulares, de línguas e gastronomia. No caso do ensino de línguas,
assistimos a uma acirrada concorrência entre as grandes redes e as escolas de menor
porte. Aqui, a criação de uma demanda, por parte de uma agressiva propaganda do
circuito superior, acaba por contribuir ao surgimento de pequenas e médias escolas de
RII – VIII Seminário Internacional
Grupo 4 – Globalização e expansão metropolitana
20
bairro, que se beneficiam da proximidade dos seus potenciais alunos. Computadores e
equipamentos de imagem e som são os principais instrumentos de trabalho, além dos
materiais escritos. Estes últimos são, por vezes, verdadeiras verticalidades que amarram
o pequeno empreendimento a atores poderosos. É sobretudo o caso das franquias, nas
quais os royalties pelo uso do material escrito alcança 20%. Contribuindo a aumentar a
demanda própria do início de cada semestre, as pequenas empresas repartem panfletos
nos bairros vizinhos, incluindo as empresas. É destas que vem a maior parte da procura
e, amiúde, são as que pagam os cursos. Todavia, verificamos a existência da Associação
das Escolas Independentes de Idiomas que busca, por meio de ações conjuntas como
prêmios, aumentar o seu quinhão diante das franqueadas das grandes redes. A topologia
das escolas de línguas ganha, assim, em capilaridade.
A metrópole estendida
A densidade da divisão territorial do trabalho no Estado de São Paulo permitir-nosia comparar as ofertas desse espaço às ofertas da grande metrópole. Suas densidades
viárias, infoviárias e de movimento, sua intensa urbanização e os graus de organização
política no poder público e nas empresas são formas de cooperação que completam essa
profunda divisão interurbana do trabalho. Assim, se a intensa especialização do trabalho
em cada cidade chama a si a um circuito superior marginal emergente, com um crescente
número de pequenas e médias empresas modernas, a intensa cooperação vê
descortinar-se um leque de empresas ligadas ao diálogo entre essas instâncias.
Nesse contexto, nossa preocupação tem sido a de relacionar a vida dos circuitos
inferior e superior marginal com as especializações territoriais produtivas nesse Estado,
onde o meio técnico-científico-informacional se alarga e densifica. Apresentado como
característica constitucional do espaço nacional e, ao mesmo tempo, como hipótese no
livro O Brasil: território e sociedade no início do século XXI, o tema das especializações
produtivas foi aqui retomado a partir da perspectiva das pequenas e médias empresas
que nascem e crescem nessa vida de relações assim recriada. É um circuito superior
marginal emergente, capaz de florescer num pedaço de território onde a divisão
interurbana e intraurbana do trabalho é significativa. Centramos nossas pesquisas no pólo
de confecções de Americana, Santa Bárbara d´Oeste, Nova Odessa e Sumaré, nas
produções de calçados masculinos, femininos e infantís de Franca, Jaú e Birigüi
respectivamente, nos objetos de cerâmica e ferro de Porto Ferreira, na produção de flores
RII – VIII Seminário Internacional
Grupo 4 – Globalização e expansão metropolitana
21
e morangos de Atibaia e na fabricação de móveis de Votuporanga e Mirassol. Neste
último caso, além dos mercados de exportação, detectamos o monopsônio exercido por
uma grande empresa como a Casas Bahia com os fabricantes locais. Quanto às
indústrias de calçados, além das firmas cuja produção começa a ganhar mercados extraregionais, nacionais e internacionais, identificamos uma profusão de fornecedores de
pequenos insumos e peças, assim como de serviços que são essenciais para perfazer o
processo produtivo e que constituem um circuito inferior e um circuito superior marginal.
Questões em aberto sobre um Brasil urbano e globalizado
Nesta pesquisa ainda inacabada, a indagação sobre o uso das variáveis
determinantes
do
período
e
suas
novas
combinações
foi
uma
preocupação,
especialmente em relação aos atores não-hegemônicos. Por isso, as variáveis
privilegiadas são: localização (condições do meio construído: infraestruturas, acesso,
valores), instrumentos de trabalho (tipos, usos, valores, origem, reutilização), formas de
organização empresarial e fiscal, emprego, matérias primas e produtos (preços,
quantidades, lucro), transporte, publicidade, informação, finanças.
A escolha de um limite normativo que determina a formalidade e a informalidade
das atividades pode levar a criar uma tipologia estéril para entender o funcionamento da
cidade como meio construído e como mercado. Capitalistas na posse de objetos técnicos
relativamente modernos, de uma eficiente organização e, certamente, informados para
evadir suas cargas tributárias são protagonistas centrais no processo de transformar os
excedentes em lucros, negligenciando as suas responsabilidades sociais. Será que este
conjunto de atores pode ser analisado como se suas ações fossem da mesma natureza e
escala que as ações de pequenas empresas ou, mesmo, indivíduos, cujo propósito é
apenas reproduzir a sua existência? Com baixo grau de capital, de tecnologia e de
organização, sua rentabilidade pode estar no limite da sobrevivência e seu grau de
informação muito aquém da compreensão do complexo e dinâmico arcabouço tributário
do poder público.
O que realmente interessa é um olhar que possa descobrir as manifestações do
trabalho. É o trabalho intensivo (sem horários, sem benefícios, sem pausas préestabelecidas) o que define o circuito inferior e hoje, mais do que nunca, também o
circuito superior marginal, em contraposição à escassez de capital, e não o cumprimento-
RII – VIII Seminário Internacional
Grupo 4 – Globalização e expansão metropolitana
22
descumprimento de um sistema normativo em vigência. Vão-se os empregos, fica o
trabalho.
Por isso, uma das manifestações da produção ilimitada de irracionalidade pode ser
identificada no uso desigual e combinado das variáveis da época. É isso que define um
período e sua constituição. O período é dado pelas possibilidades desse tempo histórico,
pelo reconhecimento das variáveis da técnica e da política que caracterizam uma época e
a diferenciam de épocas anteriores. Trata-se, hoje, de descobrir os elementos que
participam do exercício das unicidades.
Todavia,
sabemos
que
nem
todos
os
agentes
usufruem
das
mesmas
oportunidades, que os usos dessas variáveis são diferentes, que as combinações de
variáveis podem produzir comportamentos mais “racionais” ou mais “irracionais”. Essas
diferenças são as temporalidades, os tempos dentro do tempo.
A cidade é una e fragmentada. Isto é hoje mais verdadeiro que em períodos
anteriores. Ela não é apenas o palco mas sobretudo a protagonista dessas unicidades e
fragmentações, porque feita de uma nova base material e de uma nova base política. A
cidade atual é que nos fala do período, enquanto os circuitos nos falam das
temporalidades, isto é, a interpretação que cada ator é capaz de fazer do seu tempo e a
forma que encontra de sobreviver. Aquele que é mais capaz de usar as variáveis
modernas no seu trabalho, dialogar mais com os dados do período sem, por isso, deixar
de ser vulnerável, faz parte de um circuito superior marginal (emergente).
O Estado de São Paulo, onde o meio técnico-científico-informacional se difunde
com menores resistências, pode abrigar um conjunto de atores capazes de se inserir na
modernidade e seus mandatos - competitividade, eficiência, exportação - mas em
situação de vulnerabilidade. A dependência das mudanças frenêticas de uso do território
e das topologias nervosas das grandes corporações tornam esses atores mais ligados às
racionalidades do período.
Nesse leque de situações, o circuito inferior nas metrópoles seria, talvez, o mais
capaz de produzir irracionalidades. É a grande metrópole quem melhor acolhe essas
formas de sobrevivência.
O papel do poder público é diferenciado. Mas, com freqüencia, mesmo quando
pretende ajudar no desenvolvimento das pequenas empresas, acaba sendo produtor de
verticalidades, por vezes pela sua política corporativa, por vezes por uma certa
incapacidade de entender o funcionamento atual do mundo. A oferta de crédito que
implica alargar a escala de produção de um pequeno empresário e, em conseqüência,
RII – VIII Seminário Internacional
Grupo 4 – Globalização e expansão metropolitana
23
arrojá-lo às acelerações do período (taxa de juros, normatizações crescentes, etc.) e a
produção de normas públicas que buscam favorecer os pequenos, mas cuja informação e
comunicação são deficientes são alguns dos empecilhos para uma política de novo
conteúdo.
Falta, amiúde, compreender o “existencialismo territorial” (M. Santos, 1999) que é a
forma de sobrevivência da maior parcela da população brasileira. Pragmatismo mais
emoção na busca de soluções que são vistas como irracionais, como formas de atraso,
como economia tradicional. Uma localização menos valorizada mas que permite contar
com um mercado contíguo ou evitar o pagamento de um aluguel porque funciona na
própria casa, priorizar a venda de um produto à liquidez (outras “moedas” como o valetransporte são aceitas), utilizar instrumentos de trabalho usados ou próprios de um
sistema técnico anterior, trocar serviços ou produtos ao modo de um novo escambo são
bons exemplos dessa vida de relações. Toda uma produção se desenvolve mesmo
quando as variáveis determinantes do período convidem mais à usura e menos ao
trabalho. É a existência no território, uma verdadeira base para a política.
Bibliografia:
ALMEIDA, Eliza. A metropolização-periferização brasileira no período técnico-científicoinformacional. Dissertação de Mestrado, Departamento de Geografia, Universidade de
São Paulo, 2000.
BERNARDES, Adriana. A contemporaneidade de São Paulo: produção de informações e
novo uso do território brasileiro. Tese de Doutorado, Departamento de Geografia,
Universidade de São Paulo, 2001.
CORDEIRO, Helena Kohn. “A cidade mundial de São Paulo e o complexo corporativo de
seu centro metropolitano”. In: Santos, M. et all (orgs.) O novo mapa do mundo. Fim de
século e globalização. São Paulo: Hucitec/Anpur, 1993, pp. 318-331.
CORREA, Roberto Lobato.
“Os centros de gestão no território: uma nota”. Revista
Território. 1 (1). Rio de Janeiro: Laget-UFRJ, 1996, pp.23-30.
Departamento Intersindical de Estastística e Estudos Sócio-Econômicos (DIEESE).
Pesquisa de Emprego e Desemprego, 2003.
GAUDIN, Thierry. L´écoute des silences, les institutions contre l´innovation? Union
Générale des Éditions, Paris, 1978.
GAUDIN, Thierry. Economia cognitiva. Beca, São Paulo, 1999.
RII – VIII Seminário Internacional
Grupo 4 – Globalização e expansão metropolitana
24
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Coordenação de Serviços e
Comércio. As micro e pequenas empresas comerciais e de serviços no Brasil 2001.
Estudos e Pesquisas, Informação Econômica número 1. Rio de Janeiro, 2003 (102 p.)
MACHADO, Lia Osório. Urbanização e monopólio do espaço: o exemplo da Amazônia.
Departamento de Geografia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, mimeo, jul. 1984
(34 p.).
SANTOS, Milton. L'Espace Partagé. Les deux circuits de l'économie urbaine des pays
sous-développés. Paris: M.-Th. Génin, Librairies Techniques, 1975.
SANTOS, Milton. A natureza do espaço. Técnica e Tempo. Razão e Emoção. São Paulo:
Hucitec, 1996.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Do pensamento único à consciência
universal. Rio de Janeiro: Record, 2000.
SANTOS, Milton. Entrevista concedida a Josê Corrêa Leite, in Teoria e Debate, ano 12,
número 40, fev/mar/abr 1999. Fundação Perseu Abramo. Para onde vai o país? Para
onde vai o PT? pp. 32-29.
SANTOS, Milton e Ana Clara Torres RIBEIRO. O conceito de Região Concentrada. Rio de
Janeiro, UFRJ, IPPUR e Departamento de Geografia, 1979, mimeo.
SANTOS, Milton e María Laura SILVEIRA. O Brasil: Território e Sociedade no início do
século XXI. Rio de Janeiro: Record, 2001.
RII – VIII Seminário Internacional
Grupo 4 – Globalização e expansão metropolitana
25

Documentos relacionados