Revista Mestrado

Transcrição

Revista Mestrado
2007
Reitora da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) – Janete Gomes Barreto Paiva
Presidente da Fundação Educacional de Divinópolis (FUNEDI) – Gilson Soares
Coordenador do Centro de Pós-Graduação da FUNEDI/UEMG – Alexandre Simões Ribeiro
Apoio Técnico do Centro de Pós-Graduação da FUNEDI/UEMG – Mônica Diniz, Rosimeire de
Freitas Santos Peixoto, Fernanda Stephaine Fernandes (estagiária), Kellen Danielle Pedroso
(estagiária) e Tatiane da Costa Souza (estagiária)
Cadernos da Pós-Graduação – Contemporaneum
Comitê Editorial
Prof. Dr. Alexandre Simões Ribeiro (Presidente do Comitê – FUNEDI/UEMG), Prof. Dr. Alysson
Rodrigo Fonseca (Coordenador do Centro de Pesquisa e Docente do Mestrado FUNEDI/UEMG),
Profª Drª Ana Mónica Henriques Lopes (Docente do Mestrado FUNEDI/UEMG), Profª Drª Batistina Maria de Sousa Corgozinho (Coordenadora do Centro de Memória e Docente do Mestrado da
FUNEDI/UEMG), Prof. Ms. Cláudio Gonçalves Silva (Universidade Federal do Maranhão), Prof.
Ms. Daniel Silva Gontijo Penha (Docente do Mestrado FUNEDI/UEMG), Prof. Dr. Eduardo Sérgio
da Silva (Universidade Federal de São João del-Rei), Profª Ms. Eliete Albano de Azevedo
Guimarães (Docente do Mestrado FUNEDI/UEMG), Profª Drª Francis Paulina da Silva (Centro de
Ensino Superior de Juiz de Fora), Prof. Dr. Francisco de Assis Braga (Docente do Mestrado
FUNEDI/UEMG), Prof. Dr. Gil Sevalho (Universidade Federal de Minas Gerais), Profa. Dra.
Helena Alvim Ameno (Docente do Mestrado FUNEDI/UEMG), Prof. Dr. Ivan Domingues (Membro do Comitê Diretor do Instituto de Estudos Avançados sobre Transdisciplinaridade – IEAT/
UFMG), Prof. Dr. José Geraldo Pedrosa (CEFET/MG), Prof. Dr. José Raimundo Batista Bechelaine (Docente do Mestrado FUNEDI/UEMG), Prof. Dr. Leandro Pena Catão (Docente do Mestrado FUNEDI/UEMG), Profª. Ms. Márcia Helena B. Corrêa (Docente do INESP), Prof. Ms. Marcos
de Morais Tavares (Coordenador Geral da FACIG), Prof. Ms. Maria Desidéria Duarte (Coordenadora Geral do ISED), Prof. Dr. Mateus Henrique de Faria Pereira (Docente do Mestrado FUNEDI/
UEMG), Prof. Maura Silva Soares (Coordenadora Geral do ISEC), Prof. Dr. Natanael Atilas Aleva
(Pró-Reitor de Pós-Graduação da UNINCOR), Profª. Ms. Neide Wood Almeida (Pró-Reitora de
Pesquisa e Extensão da UEMG), Prof. Dr. Paulo Sérgio Carneiro Miranda (Universidade Federal
de Minas Gerais), Prof. Dr. Pedro Pires Bessa (Docente do Mestrado FUNEDI/UEMG), Prof. Dr.
Otávio Dulci (Universidade Federal de Minas Gerais), Prof. Dr. Raul Francisco Magalhães
(Membro da Câmara de Assessoramento de Ciências Sociais, Humanas, Letras e Artes da
FAPEMIG), Profª. Drª Suely Maria de Paula e Silva Lobo (Pontifícia Universidade Católica –
PUC Minas) e Profª Drª Vilma Botrel Coutinho de Melo (Docente do Mestrado da FUNEDI/UEMG)
Consultores ad hoc deste número – Ana Mónica Henriques Lopes (Doutora em História pela
UFMG), Francisco de Assis Braga (Doutor em Ciência Florestal pela UFV) e Helena Alvim
Ameno (Doutora em Literaturas da Língua Portuguesa pela PUC Minas)
Projeto gráfico – Arnaldo Pires Bessa e Elvis Gomes
(Assessoria de Comunicação da FUNEDI/UEMG)
Diagramação – Elvis Gomes
Revisão – Prof. Dr. Alexandre Simões Ribeiro
Capa – Pablo do Prado e Saulo Rafael
Contatos da revista – www.divinopolis.uemg.br / [email protected]
ISSN – 1517-7890
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
Alexandre Simões Ribeiro
5
CULTURA ALIMENTAR, SAÚDE E MUNDIALIZAÇÃO:
UM OLHAR SOBRE A COZINHA BRASILEIRA
Leandro Pena Catão
Sheila Avelar Fumam 7
CIDADE E CONVERGÊNCIA DE MÍDIA:
NOVOS CENÁRIOS DA GLOBALIZAÇÃO
Renata Alencar
Tailze Melo 28
JOGOS DE ESCALA: A 2ª GUERRA MUNDIAL (1939-1945) VISTA
PELOS JORNAIS DE DIVINÓPOLIS (MINAS GERAIS, BRASIL)
Ana Mónica Henriques Lopes
Mateus Henrique de Faria Pereira
Heloisa Helena Corgozinho 37
O TRABALHO DOCENTE NA CONTEMPORANEIDADE: MUDANÇAS,
REPERCUSSÕES NA SAÚDE E POSSÍVEIS INTERVENÇÕES
Renata Cristine de Oliveira 52
IMAGENS E SUBJETIVAÇÕES TRAÇADAS PELOS
GRAFFITI NAS CIDADES CONTEMPORÂNEAS
Gesianni Amaral Gonçalves 67
INDÚSTRIA CULTURAL, TRABALHO
HIPOSTASIADO E VIDA DANIFICADA
José Geraldo Pedrosa 91
CONSIDERAÇÕES SOBRE MITO E GLOBALIZAÇÃO
Batistina Maria de Sousa Corgozinho 107
HOJE, AGORA E... TRANSDISCIPLINARIDADE E MODERNIDADE?
Cristina Silva Gontijo 123
OCIDENTE VERSUS ORIENTE, DEMOCRACIA VERSUS DESPOTISMO:
HERÓDOTO NO CINEMA CONTEMPORÂNEO
Flávia Lemos Mota de Azevedo
Thiago Eustáquio de Araújo 133
EM BUSCA DE UM MÉTODO PARA LIDAR COM O
ACONTECIMENTO CONTEMPORÂNEO GLOBALIZADO
Alexandre Simões Ribeiro 147
BIOÉTICA PARA EDUCAÇÃO AMBIENTAL:
UM PARADIGMA NECESSÁRIO
Sérvio Túlio Portela 163
PACTO PELA VIDA: A INCLUSÃO DO IDOSO
NAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE
Eliete Albano de Azevedo Guimarães
Linda Maira dos Santos Nunes 174
Resenha: Filosofia e psicologia, o pensamento fenomenológico
existencial de Karl Jaspers. José Maurício de Carvalho (Lisboa:
Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2006, 256 p.)
Por Antonio Paim 186
ORIENTAÇÕES PARAA APRESENTAÇÃO
DE TEXTOS PARA A PUBLICAÇÃO 191
APRESENTAÇÃO
A globalização entre nós
P
ropositadamente, escolhemos um tema amplo, multifacetado
e acolhedor de teorias e campos bem diversificados para este
número da Revista Contemporaneum. Um tema, portanto, sem
uma morada única ou exclusiva. Todavia, esta escolha também se fez
a partir dos planejamentos e dos resultados das pesquisas desenvolvidas na FUNEDI/UEMG, sob o impulso promovido por seu Mestrado
em Educação, Cultura e Organizações Sociais.
Ao longo do primeiro semestre de 2007, tivemos a oportunidade
de organizar uma série de encontros nos quais os professores do
Mestrado, pesquisadores de outras instituições, a comunidade acadêmica e o público em geral puderam se debruçar sobre temas que
propunham interrogar os meandros da globalização. Chamamos esta
série de encontros de Seminários Avançados Transdisciplinares.
Nossos percursos, juntamente com o adensamento das investigações que já estavam sediadas em nossas linhas de pesquisa (Cultura
e Linguagem, Espaço e Sociedade, Saúde Coletiva), nos levaram a
verificar que, para-além das controvérsias envolvidas, a globalização
é múltipla e porta as marcas da complexidade. Em outras palavras, as
globalizações nos convocam para um exame, uma crítica, uma vivência que desestabilizam nossas certezas e instrumentos disciplinares.
Desta forma, o conteúdo que se segue não é exatamente o espelho dos Seminários Avançados Transdisciplinares, porém aquilo que
os mesmos puderam fomentar no Mestrado, nas graduações, nas
atividades extensionistas e de pesquisa de nossa instituição, bem como
nas nossas relações inter-institucionais.
A reflexão que se quer contemporânea (não só no que se refere
ao seu tempo mas, principalmente, à sua forma de ver as problemáticas de nossa sociedade) não deve ser demasiadamente territorializada. Daí, a Revista Contemporaneum ser um veículo de pesquisa
e debate, uma espécie de work in progress, que se dá a partir do
Mestrado e, sobretudo, para-além do mesmo. Bem-vindos às globalizações: entre nós e com seus nós.
Prof. Dr. Alexandre Simões Ribeiro
Coordenador do Mestrado em Educação, Cultura e
Organizações Sociais da FUNEDI/UEMG
CULTURA ALIMENTAR, SAÚDE E MUNDIALIZAÇÃO:
UM OLHAR SOBRE A COZINHA BRASILEIRA
LEANDRO PENA CATÃO
Doutor em História Social e da Cultura pela UFMG e professor do
curso de graduação em História e do Mestrado em Educação,
Cultura e Organizações Sociais da FUNEDI/UEMG
SHEILLA AVELAR FUMAM
Graduada em Comunicação Social pela PUC Minas e graduada em
Gastronomia e pós-graduada em Alimentação e Saúde pela Estácio de Sá (BH)
Resumo: O artigo trata da formação da
cultura alimentar brasileira ao longo dos
períodos colonial, imperial e republicano a partir de suas três matrizes: a portuguesa, a indígena e a africana. Discutem-se as implicações da alimentação
sobre a saúde igualmente nos três períodos da História do Brasil. Analisamse as bases da cozinha indígena, sobretudo o papel contundente exercido
pelo milho e pela mandioca, ainda hoje
fundamentais à cozinha brasileira. Outra matriz fundamental da cozinha brasileira tem suas raízes na culinária portuguesa, responsável pela introdução
de um universo de novas espécies vegetais e animais assim como novas técnicas. O texto analisa o papel exercido
pelas grandes navegações quanto à
difusão de ingredientes e técnicas culinárias, o que viria a revolucionar as
culturas alimentares na Ásia, África,
América e Europa. Também é discutido o papel dos africanos nas fundações da cultura alimentar brasileira.
Palavras-chave: cultura alimentar;
Mundialização; Cozinha brasileira.
Abstract: This paperwork is about the
formation of the Brazilian alimentary
culture along the colonial, imperial
and republican periods parting from
its three matrices: the Portuguese, the
Indigene and the African one. We discuss the implications of alimentation
over health in these three periods of
Brazilian History. We also analyze the
bases of the indigene cooking; above
all, we analyze the strong role played
by corn and cassava, also fundamental
to the Brazilian cooking nowadays.
Another fundamental die of Brazilian
cooking has its roots in the Portuguese
cooking tradition, responsible for the
introduction of a large universe of new
vegetable and animal species such as
new cooking techniques. The text
analyzes the importance of the Great
Navigations in order of diffusion of ingredients and cooking techniques, what
would make a revolution in the alimentary cultures in Asia, Africa, America
and Europe. We also discuss the importance of the African people in the foundations of Brazilian alimentary culture.
Key-words: alimentary culture; Worldwide; Brazilian cooking.
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº
- 6 – p. 7 a 27 – outubro de 2007
7
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
E
8
ste artigo trata da cultura alimentar brasileira na perspectiva
da longa duração e suas implicações para a saúde e doenças
dos brasileiros desde os tempos coloniais aos nossos dias. O
principal intento desta pesquisa é chamar a atenção para a vinculação
entre cultura, alimentação e saúde, numa perspectiva transdisciplinar.
Os hábitos alimentares são um dos mais importantes traços culturais de uma sociedade e pode-se dizer muito a respeito de uma sociedade a partir da análise de sua cultura alimentar. Naturalmente, a
alimentação vem sofrendo alterações desde o surgimento das primeiras civilizações, que dizem respeito aos ingredientes, técnicas de
preparo, comensalidade e outros aspectos relacionados a esse universo. O início das primeiras civilizações está intimamente relacionado à uma revolução alimentar que se deu a aproximadamente 12000
anos atrás, quando a humanidade descobriu a agricultura, desenvolveu uma gama de rituais e costumes relacionados a seu cultivo e
preparação. Aliás, para os Gregos Antigos, fabricar seu próprio pão
e vinho era um dos traços que distinguia a civilização da barbárie.1
Os hábitos alimentares de uma nação não são meramente reação
instintiva à sobrevivência. São expressão de sua história, cultura,
condições climáticas e geográficas, condições social e religiosa. Nesse
sentido, o gosto alimentar pode diferir profundamente de uma sociedade para outra. A cultura alimentar tem raízes profundas na identidade social de seus indivíduos.2 Os homens comem como sua sociedade os “ensinou”. Segundo Gilberto Freire: “nossas preferências
de paladar são condicionadas, nas suas expressões específicas, pelas
sociedades a que pertencemos, pelas culturas de que participamos,
pelas ecologias em que vivemos os anos decisivos de nossa existência”.3
No Brasil, a cultura e a alimentação, entendidas como uma expressão da cultura, carregam as marcas e peculiaridades dos grupos
étnicos que as formaram: índios, portugueses e africanos. No início,
a culinária indígena se impõe. As populações indígenas eram em geral mais bem nutridas dos que a maioria dos marinheiros europeus
que primeiro pisaram no Brasil. Aos europeus não restava outra al-
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
ternativa que não assimilar os ingredientes da terra e técnicas de
preparo utilizadas pelos indígenas. À medida que a colonização se
consolidava, os portugueses mais abastados procuraram reproduzir
aqui a mesma alimentação que tinham no velho mundo, buscando no
além-mar a praticamente todos os seus alimentos: queijos, vinho, trigo para fabrico de pão.
No que se refere à História da Alimentação, os navegadores portugueses e espanhóis tiveram destacado papel praticando uma verdadeira “diáspora” alimentar, levando e trazendo alimentos de origem vegetal e animal mundo a fora. Foi no século XVI que chegou
às Américas o trigo, a laranja, o limão, a manga, a banana, a canade-açúcar e animais como o porco, a galinha e boi. A mandioca e o
milho formavam a base da alimentação indígena e seguiria fundamental na formação da cultura alimentar brasileira. O africano contribuiu, sobretudo com sua técnica, tempero e manejo de preparo,
que viriam a influenciar o sabor do alimento brasileiro, uma vez que
os negros trazidos para a América portuguesa na condição de escravos não levavam nenhuma bagagem, não tendo introduzido aqui nenhum novo alimento. Ingredientes de circulação restrita a uma região ou continente passaram a ser conhecidos em outras partes do
planeta ou mesmo todo o mundo conhecido.4 O açúcar e o chocolate
(à base de cacau) são dois bons exemplos. No início do século XV a
produção do açúcar estava restrita a algumas regiões da Índia e o
chocolate era um manjar Asteca. Poucos séculos e ambos estariam
entre as principais iguarias no Velho Mundo. A mundialização de
alimentos, ingredientes e técnicas culinárias antes restritas a uma ou
poucas culturas foi uma das principais conseqüências das Grandes
Navegações, fato que viria a repercutir decisivamente em várias
culturas em todo o planeta.
Nos tempos coloniais e mesmo durante o período imperial, a maior parte da população brasileira, composta de escravos e negros forros e mulatos livres pobres, vivia em meio a grande penúria alimentar, a fome era constante companheira. Naturalmente, esse fator
trazia considerável prejuízo à saúde. Nos nossos dias, a alimentação,
9
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
ou a má alimentação constituem grave problema de saúde publica ao
lado da fome, ainda marcante na contemporaneidade.
A culinária indígena foi a base da alimentação dos habitantes da
recém descoberta América portuguesa. Apesar de poucos registros
gastronômicos:
(...)as nações indígenas, que, embora muito distintas entre
si, tinham maneiras semelhantes de alimentar-se, baseadas
nas alternativas que a terra farta oferecia, marcadas, principalmente, pelo consumo de carnes de caça, peixes, répteis
e mariscos, raízes e tubérculos cozidos, alem de uma infinidade de frutas e frutos silvestres.5
10
Câmara Cascudo, no clássico História da Alimentação no Brasil, enfatiza o inhame, o palmito, a mandioca e o milho como muito
utilizadas na alimentação do nativo – e posteriormente de seus colonizadores – além de várias frutas, as quais apenas se colhiam e não
cultivavam, como os cajus, mangabas, goiaba, maracujá, jabuticabas,
ingás, guarirobas, entre outros.
Alimentavam-se de muitos vegetais e frutas crus, fontes ricas em
vitaminas, mas também de preparações cozidas substanciosas à base
de cereais, farinhas e caldos de vegetais e carnes, constituindo os
mingaus e pirões. Este último fora aprimorado pela técnica portuguesa, mas antes dela, a mistura de calda à farinha já era popular
entre os indígenas. “Pirão é sinônimo da própria alimentação brasileira. Da subsistência total”.6 Era, assim, boa fonte de energia, apresentando poucos elementos maléficos a saúde como gorduras, açúcares
e sódio em excesso, constituindo uma alimentação de boa qualidade.
Com relação às carnes e pescados, ainda segundo Câmara Cascudo, seu processo de cocção preferencial era o assado, os índios
praticamente desconheciam a fritura. Observa-se, também, o costume de se alimentar das vísceras das caças, incluindo medulas e miolos e, nesse hábito “estavam adivinhando a existência mais concentrada de proteínas, vitaminas e sais animais, valiosos”.7
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Apesar das poucas informações acerca das porções de cada grupo de alimentos consumidos pelas populações nativas, ou seja, o quanto
comiam de cada tipo8, sabe-se que estes se alimentavam não apenas
com o intuito de nutrir-se mas também buscar a cura de doenças e
moléstias.
A chegada dos europeus representou uma revolução alimentar,
tento estes introduzido açucares e gorduras em profusão. Os índios
foram rapidamente seduzidos pelo sabor e aroma dos novos alimentos introduzidos pelos portugueses. Segundo Câmara Cascudo, “a
presença do europeu foi um terremoto”, se bem que desde os primeiros tempos a alimentação dos colonizadores já apresentarem traços da cultura alimentar nativa, fruto do “processo de troca cultural
envolvido no esforço de sobrevivência dos recém-chegados”.9 Assim, a adaptação dos colonizadores à terra desconhecida e “inimiga,
inóspita” fazia ainda com que eles se alimentassem para sobreviver,
principalmente.
No contexto dos grandes descobrimentos, os portugueses estavam acostumados a sopas grosseiras e mingaus de cereais, carnes
cozidas, defumadas, salgadas e conservadas em gordura. Eram apreciadores de doces e alimentos cozidos, consumidos e geral aquecidos. Enquanto isso, os índios alimentavam-se de alimentos em natura, assados e grelhados, cujos ingredientes e técnicas aproximavamse mais do considerado saudável na atualidade, fazendo uso de frutas, legumes, tubérculos, raízes e carnes magras; em lugar de carboidratos simples e processados, gorduras e açúcares, que eram a base
da cozinha européia daquele contexto. O mel, frutas e iguarias que
causariam náuseas ao homem ocidental como cérebro de primatas e
larvas ou bicho de taquara, constituíam os manjares do Novo Mundo. Em geral, os nativos não ingeriam comida em excesso. Eram
escassas as fontes de gordura utilizadas pelas nações indígenas. Na
região amazônica, a gordura de tartaruga constituía exceção a essa
regra.10
Até o início do século XIX, alimentação e saúde eram elementos
intimamente vinculados tanto no Velho quanto no Novo Mundo. Se
11
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
para os nativos a alimentação estava diretamente ligada à dietética,
sabe-se que os pajés conheciam profundamente a utilidade medicinal da vasta flora e fauna nativas, fato alias muito bem observado
pelos padres da Companhia de Jesus.11 Concomitantemente, os europeus também reconheciam a vinculação entre alimentação e saúde. Segundo o médico grego Hipócrates, um dos pilares da medicina
desde a Antiguidade, a alimentação constituía um dos alicerces da
medicina. Nesse sentido, segundo o saber médico do tempo dos descobrimentos:
12
muitas coisas que não são boas para engendrar bom sangue [são] convenientes para muitas naturezas e valem mais
do que as [...] [que são boas em principio para as pessoas
de temperamento equilibrado] porque se, como diz Avicena, [...] o corpo do homem é saudável, quanto mais saborosos são os alimentos ao seu paladar, mais nutritivos se tornam para os seu organismo.12
Entretanto, sob a influencia do Humanismo e mais tarde das Luzes, observa-se que entre os séculos XVII e XVIII, é disseminado o
“novo gosto” de gastrônomos, cozinheiros e comensais, que passam
a discutir harmonia de sabores e os prazeres da mesa, enquanto o
antigo caráter dietoterápico dos alimentos perde força. “(...) esse
afrouxamento dos laços entre cozinha e dietética libera de alguma
forma a gulodice; os refinamentos da cozinha não visam mais manter a boa saúde das pessoas, mas satisfazer o gosto dos glutões.”13
Com a necessidade progressiva de adaptação dos gostos europeus às condições do Brasil, foi-se observando algumas mudanças
nos hábitos alimentares. Tanto os indivíduos se hibridavam, quanto
seus hábitos de alimentação, mas não de forma uniforme:
Transplantadas para uma terra distante, dividindo espaços
com escravas negras e indígenas, privadas de produtos aos
quais estavam acostumadas, as senhoras portuguesas se
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
viam obrigadas a reinventar praticas e costumes tradicionais do Reino, transformando suas novas casas e seus hábitos mais íntimos para adequá-los às exigências da nova
vida.14
Por conta das contingências do Novo Mundo, novos ingredientes
foram descobertos e substituíram os habituais dos europeus, como a
gordura de porco, amendoim e a castanha de caju, utilizadas no lugar
da manteiga e das nozes. Passou-se a criar porcos em maiores escalas, para que deles fossem retirada, além da carne, toda sua gordura,
empregada em toda sorte de preparo; além da pele frita: a pururuca.
Em afirmativas baseadas em relatos de viajantes do século XVIII e
XIX, Paula Pinto e Silva expõe que do porco se extraia o toucinho,
cozido com o feijão, frito como torresmo ou guardado em grandes
potes para a conservação de carnes que sobrassem. Há, ainda, menções a porcos, a pururuca e gorduras empregadas em preparos de
vários outros pratos. Até o século XIX, a carne de porco era de
longe preferida em detrimento da carne bovina. Este último fora inicialmente utilizado como animal de trabalho e só a partir da segunda
metade do século XVII ganha importância na alimentação cotidiana,
sobretudo do sertanejo. Quanto à gordura utilizada na América portuguesa:
(...) Se o gosto do porco evocava a memória lusitana, também recheada de carne suína, o óleo escorrido do toucinho
era o que mais se assemelhava à manteiga consumida no
Reino, importada da Inglaterra pelos senhores mais abastados (...). Desse modo, a gordura passou a ser item de consumo quase vital para a culinária nas terras novas, dando
sabor ao feijão e refogando a serralha. (...) Os alimentos
são preparados com a gordura do porco.15
Não só o português teve sua dieta modificada. Os indígenas tiveram sua culinária fortemente afetada pelos novos alimentos introdu-
13
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
zidos pelo português. O porco com todos os seus “encantos” culinários ganhou de imediato o paladar dos nativos. Aos negros cativos
cabia acatar a dieta imposta por seus senhores. Segundo Câmara
Cascudo, os índios aprenderam com os portugueses a empregar as
gorduras na culinária com a:
utilização de óleos vegetais na comida e conservação de
caça, o leite da castanha-do-pará (...) no cozido e o óleo
para papas, mingaus, farofa. Confeitamento nos beijus. Veio
também a cana-de-açúcar, excelente para ser mastigada e
bebido o sumo nos torcedores que os portugueses e mestiços
improvisaram nos sertões, não para o açúcar, mas para a
sedução da cachaça irresistível, e para a rapadura, democrática e fácil.16
14
A partir desse relato, subentende-se a adesão de costumes relacionados aos prazeres dos sabores por parte da população da América
portuguesa, materializado em dois elementos principais: a gordura,
acima citada e o açúcar. Nem por isso, os princípios hipocráticos
deixaram de ser observados pelos “médicos” coloniais.17
O grande marco na referida transformação alimentar brasileira
foi a produção de açúcar no nordeste e algumas regiões de São Paulo e rio de Janeiro. Para aqueles de mais posses, açúcar refinado e
doces finos, para aquelas de menos posses, rapadura, melaços, entre
outros subprodutos da cana. Era comum no Nordeste, região onde
predominavam os Engenhos, que o melaço e a rapadura fossem dado
aos escravos como parte da refeição matinal. O açúcar, produto mais
fino, era reservado à casa grande, onde manipulado pelas sinhás no
preparo às velhas receitas de doces portugueses e alguns manjares
nascidos no Brasil, como o quindim, por exemplo.
Segundo Gilberto Freire, em sua obra Açúcar, os hábitos alimentares hoje considerados prejudiciais à saúde, foram resultado quase
exclusivamente da cultura monocultora e latifundiária da cana-deaçúcar. Segundo o autor, a questão extrapola o simples consumo de
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
açúcar, englobando a diminuição da produção e consumo de vegetais
diversos e quase substituição do consumo das frutas em natura pelas
compotas, técnica européias adaptada aos frutos da terra.18 A canade-açúcar, que exigia extensos territórios para seu cultivo, além de
tempo e atenção, acabava tomando espaço das verduras e legumes,
mais saudáveis mas menos rentáveis e menos produtivas que o milho
e a mandioca utilizadas comumente para a subsistência. “(...) A monocultura canavieira sempre dificultou (...) a cultura de vegetais destinados à alimentação. Ainda hoje se sente o efeito na dieta do brasileiro – na do rico e especialmente na do pobre”.19 Havia produção
de frutas e legumes nos pomares e hortas das casas grandes, mas
em quantidade insuficiente para a alimentação de toda a população,
sobretudo a formada pelos escravos e livres pobres, exceção feita
aos enfermos. O caju, fruta muito rica em vitamina C era utilizada no
tratamento do escorbuto.
Os fatores de natureza produtiva, ligados à forte demanda de
açúcar pelo mercado europeu, engendraram a uma prática considerada pouco saudável nos nossos dias: o grande consumo de açúcar.
A cultura alimentar do nordeste é também chamada cultura do doce:
“considerado uma especiaria universal, comido puro, misturado à água
para torná-la refrescante, as frutas e flores para a fabricação de
geléias, e ao álcool para a produção de licores”.20 O açúcar tanto era
amplamente usado para a produção de doces finos típicos do Reino,
como quindins, toucinhos do céu, como para “melhorar” as frutas
locais, cuja maioria só era consumida em forma de doces bastante
açucarados, cristalizados ou em caldas. Era um recurso para agradar
ao “paladar excessivamente doce dos senhores e senhoras brancas”.21
Este hábito fora se ampliando no período colonial e imperial, para
além dos Engenhos nordestinos, instaurando um dos contornos da
cozinha brasileira:
De um modo geral, a nutrição da família colonial, tanto nos
engenhos como nas cidades, era de má qualidade: por um
lado, pela deficiência de proteínas de origem animal, vita-
15
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
minas, cálcio e de outros sais minerais e, por outro, pela
riqueza de certas toxinas.22
16
Nas Minas Gerais colonial, era outra a configuração alimentar.
Nos primeiros tempos, devido à falta quase absoluta de infra-estrutura, a vida dos primeiros mineiros foi bastante dura, marcada pela
fome e carestia de uma série de itens que ali não existiam. Não foi
raro naquele contexto homens morrerem de fome com verdadeiras
fortunas em ouro presa à cintura, ou terem que abandonar regiões
riquíssimas em ouro para não morrerem de fome.23
Era um expediente do homem colonial, e das populações indígenas antes da chegada dos europeus a estas terras, a hábito de procurar na natureza selvagem parcela importante do seu sustento diário.
A natureza era uma fonte praticamente inesgotável de alimentos e
outros recursos indispensáveis à vida.24 Saber como extrair do meio
ambiente os meios básicos para a subsistência foi uma vantagem
vital para aqueles que sabiam tirar proveito de tal situação. Neste
ínterim os paulistas levavam uma ligeira vantagem com relação a
seus concorrentes reinóis, uma vez que seus laços com as culturas
indígenas lhe legavam conhecimentos extraordinários de como viver
naquele meio tão hostil àqueles que desconheciam os segredos das
matas e sertões. Em determinadas circunstâncias de extrema penúria vivida pelos mineiros durante os primeiros anos de mineração nas
Gerais, tais conhecimentos foram crucias para determinar aqueles
que teriam sucesso naquela dura empreitada da mineração. Para
sobreviver, muitos homens “se aproveitarão até dos mais imundos
animais” para se alimentarem.25 O alimento era coletado na natureza das mais diversas formas. Raízes, animais de pequeno e médio
porte, frutos e legumes de todo o tipo, ovos, mel, e até mesmo insetos
eram utilizados como fonte de alimento por aqueles homens que se
aventuravam por meses e não raro anos no coração do Continente
ainda “selvagem”.
Naquele contexto, a natureza, ou seja, as florestas e sertões, eram
encarados como verdadeiros mananciais de alimentos e outros gê-
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
neros de extrema necessidade pelas populações luso brasileiras que
habitavam a América portuguesa. Minas Gerais não foi uma região
pródiga quanto à disponibilidade destes gêneros de necessidade encontrados na natureza. Certamente o grande afluxo de homens que
para ali se dirigiu nos primeiros anos de sua colonização foi uma das
causas de tais dificuldades, mas certamente não foi a única. Vejamos algumas fontes a este respeito: “Com esta notícia de grandezas, quis logo vir às Minas, mas não o fiz por falta de mantimentos nos caminhos e cama, de que morria muita gente....” 26 O
autor destas palavras foi um “forasteiro” anônimo que partiu do Rio
de Janeiro para as Minas Gerais em 1698. Ele relata neste mesmo
documento que fora grande a mortandade de homens nas Minas
ocasionada pela carência de alimentos. A falta de comida levou muitos mineiros “a comerem bichos de taquara, que para os comer é
necessário estar um tacho no fogo bem quente, e ali os vão botando; os que estão vivos logo bolem com a quentura e são os
bons, e se se come algum que esteja morto é veneno refinado.”27
Em outro relato relativo à este mesmo contexto, o autor também
acentua a falta de víveres silvestres na região das Minas:
por serem tudo matos e asperíssimas brenhas, e falto do
mais favorável gênero de caças, como veados, antas, emas,
porcos monteses e mais gêneros de animais, e mel silvestre,
que pelos campos gerais eram mais abundantes do que pelos sertões de matos incultos montanhosos e penhascosos...28
Como vimos, a topografia acidentada das Minas também foi um
obstáculo à obtenção de alimentos na Natureza. Em praticamente
todas aquelas pioneiras incursões até as Gerais, os sertanejos, mamelucos e principalmente os indígenas cativos tiveram um papel fundamental, uma vez que dominavam as técnicas necessárias à sobrevivência naquelas matas ainda pouco conhecidas e exploradas.29
Paulatinamente a questão do abastecimento de gêneros alimentares na região mineradora foi equacionada, através da introdução da
17
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
18
agricultura em mais larga escala nos arredores das principais vilas e
localidades da Capitania das Minas Gerais e com o afluxo cada vez
maior de gado àquela região, proveniente principalmente dos arredores do Rio São Francisco e demais terras ao longo do caminho que
ligava Salvador às Minas Gerais. As principais culturas eram o milho, o feijão e a mandioca, sendo a mandioca mais comum nos sertões do Rio São Francisco e o milho prevalecendo nas demais regiões das Minas. A principal região produtora de víveres era a Comarca do Rio das Mortes. Com o tempo também se estabeleceram nas
Gerais redes de comerciantes que garantiram o abastecimento de
todo gênero de mercadorias àquela região, desde gêneros de primeira necessidade, até utensílios do mais alto luxo que alcançavam ali
preços muito maiores do que os observados no litoral.30 A estabilidade referente ao abastecimento e o estabelecimento administrativo da
Coroa portuguesa naquela região consolidariam de vez a colonização
da região mineradora. Em meados do século XVIII a população da
Capitania de Minas Gerais já oscilava em torno de 450000 pessoas.
Isto significou uma pressão tremenda exercida sobre a natureza, em
dois aspectos. De um lado a extração do ouro propriamente dita, e
de outro o desmatamento de áreas cada vez maiores destinadas ao
plantio de gêneros alimentícios destinados ao abastecimento das vilas e arraiais.31
Na capitania das Minas Gerais, a gordura de porco, assim como
nas demais partes da América portuguesa. O porco era presença
certa nas moradas das minas colonial.
a carne de porco, seus miúdos e o toucinho (...) são alimentos que faziam parte do cotidiano das famílias abastadas. O
consumo elevado de toucinho, confirma-nos o seu uso não
só como componente de diversos pratos das pessoas de posse e dos escravos e pobres (no feijão em ‘torresmos’, principalmente), mas como ingrediente na cocção de cereais, tubérculos e hortaliças e, também, como meio de conservação
das carnes.32
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
O açúcar também era muito apreciado, mas seu alto custo restringia seu consumo aos mais abastados. As hortas, quintais e pomares existiam mesmo nas vilas, mas a produção era insuficiente para a
manutenção de uma dieta saudável segundo os padrões atuais.
No século XIX e início do XX o padrão alimentar brasileiro não
sofreu alterações bruscas, sobretudo nas regiões interioranas. O milho, a mandioca e seus muitos derivados, o feijão e a carne-seca
seguiam formando o tripé culinário brasileiro.33 A gordura e demais
derivados do porco e o gosto pelos doces também eram elementos
presentes em nosso gosto culinário de norte a sul no Brasil. Contudo,
a combinação arroz-com-feijão tão característica da cozinha brasileira de nosso tempo nasceu ao longo do século XIX, popularizandose primeiro nas maiores cidades e posteriormente alcançando todas
as partes do Brasil, mas isso não quer dizer que a farinha tenha
perdido sua importância, mesmo nas regiões onde o arroz se impôs
com maior veemência. Uma das possíveis causas do ganho de importância do arroz no cenário gastronômico no Brasil durante o século XIX, foi a inclusão do mesmo na alimentação dos soldados.34
No Brasil imperial, alguns eventos vieram reforçar traços de nossa culinária. Fatos como a:
(...)ampliação das áreas de cultivo do café, expansão demográfica e urbana; desenvolvimento dos transportes e das
comunicações; aumento gradativo da faixa de trabalho livre, (...) alta geral nos preços dos alimentos em praticamente todas as províncias do Império [entre outros] prejudicou
a circulação de produtos de outras regiões. 35
Dentre as principais mudanças observadas na sociedade brasileira entre os séculos XIX e XX salientamos uma diretamente relacionada à questão alimentar. Durante todo o período colonial, o Nordeste, principal região produtora de açúcar, possuía, por conta disso,
lugar de destaque no cenário político, econômico e social na sociedade brasileira. Durante o XIX, o Nordeste viu seu prestígio e influen-
19
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
20
cia diminuírem de forma considerável ao passo que o sudeste, sobretudo São Paulo (uma das regiões mais pobres durante o período colonial) crescia e ganhava espaço, por conta da introdução da cultura
do café, entre outros fatores.36
Por conta da precariedade da alimentação, doenças e casos de
opilações, cujos sintomas eram cansaço e hábito de comer terra,
típicos de indivíduos cuja dieta é extremamente carente de vitaminas
e minerais era muito comuns. Os médicos sanitaristas do Brasil imperial apontavam como possíveis causas das referidas moléstias a
alimentação fundamentada na farinha de mandioca, milho e feijão,
ditos pouco nutritivos e indigestos.37
O padrão alimentar brasileiro sofre uma alteração significativa a
partir da década de 1930, durante a Era Vargas, início da “revolução
industrial” no Brasil. É nesse contexto que nascia a indústria alimentar, ao mesmo tempo em que se acentuava o êxodo rural. É nesse
contexto que os alimentos industrializados começaram a se popularizar nas grandes cidades brasileiras. Tais produtos vinham atender às
necessidades da classe trabalhadora, cuja rotina tornara-se mais turbulenta e acelerada. Dados históricos confirmam que os operários
se alimentavam de forma precária, enquanto as classes mais altas
mostravam expansão nos excessos alimentares, numa tendência não
muito diferente da observasa nos períodos anteriores.38
Nos nossos dias, o excesso de peso e obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares, hipertensão arterial (incluídas nas DCNT, Doenças Crônicas Não Transmissíveis), problemas renais, de fígado,
entre tantos outros, incluindo aqueles de ordem emocional fazem
centenas de milhares de vítimas a cada ano. Segundo o Ministério da
Saúde, a má qualidade da dieta está diretamente associada aos riscos da pessoa desenvolver as doenças não-transmissíveis supracitadas. Ainda segundo o Ministério, essas doenças estão relacionadas
às causas mais comuns de morte registradas atualmente. O governo
calcula que cerca de 260 mil mortes poderiam ser evitadas todos os
anos caso o brasileiro optasse ou tivesse acesso a uma alimentação
saudável.39
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
Todavia, no século XX, a alimentação mostrou-se objeto de interesse da saúde pública. A inadequação da dieta nacional, pobre em
leite, laticínios, ovos, verduras e frutas, passou a ser percebida a
ponto de a Nutrição ser reconhecida como ciência. A composição
dos alimentos, bem como a relação entre estes e as enfermidades
passaram a ser estudadas com mais profundidade e profissionais da
nutrição a ser requisitados no campo da saúde.
Sob a influência dos avanços da bioquímica, que propiciaram uma melhor compreensão do funcionamento do organismo e a identificação de novas substâncias, como as vitaminas, o mote passa a ser investigado, abordado ou questionado por vários estudiosos em diversas áreas do conhecimento. É dentro desse contexto efervescente, entre os anos
de 1930 e 1940, que Gilberto Freyre, Josué de Castro e
Nelson Chaves realizaram importantes estudos sobre a alimentação brasileira, justamente num período em que a questão da fome mobilizava vários setores da sociedade brasileira em decorrência da inflação do custo de vida provocada pela crise de 1930.40
A partir desses estudos e dos outros mais que se seguiram a estes, cada vez mais embasados cientificamente, iniciou-se o desenho
da situação alimentar no Brasil contemporâneo. Durante o século
XX assiste-se a uma redução dos índices de subnutrição, sobretudo
nos centros urbanos, mas acentuam-se distúrbios relacionados à má
nutrição. A partir da década de 1960 até 1990, observa-se um marcante declínio da desnutrição em crianças (porém, ainda existente e
preocupante). Mas, por outro lado, há elevação da obesidade em
crianças e adultos nesse mesmo período, que chegou a triplicar em
algumas regiões do Brasil nos extremos da série temporal analisada.
Outro efeito do acelerado processo de industrialização e urbanização sobre as crianças é uma melhora no nível de estatura das crianças da ordem de 72% nas cidades e 54,4% no meio rural.41 Na con-
21
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
temporaneidade, outro fator que interfere diretamente na qualidade
alimentar é a renda familiar. A análise dos dados do período mostram
que a obesidade, antes mais relacionada as classes mais ricas da
população independente da região do país, fora atingindo também
aquelas populações de renda mais baixas inclusive no Nordeste. Todavia, esse quadro é paradoxal quando comparado ao nível de anemias da referida época:
(...)elevada a prevalência de anemia, com uma freqüência
modal entre 40 a 50% em menores de cinco anos e de 3040% em gestantes (...) A anemia representa, em termos de
magnitude, o principal problema carencial do país, aparentemente sem grandes diferenciações geográficas, afetando,
em proporções semelhantes, todas as macrorregiões (...).42
22
Os dados apresentados evidenciam que a obesidade, ou seja, o
sobrepeso, não garante uma boa saúde. Grande quantidade de alimento não é sinônimo de qualidade. Segundo o Guia Alimentar para
a População Brasileira de 2005, o desequilíbrio nutricional se caracteriza, sobretudo pela queda da ingestão de verduras, legumes, frutas
– queda de 19,3% – e peixes, cujo consumo fora reduzido pela metade em detrimento do aumento de consumo de alimentos industrializados como: óleo de soja, açúcar, farinhas e mesmo o arroz e o feijão.
Os dados do Guia Alimentar mostram uma tendência de aumento
no consumo de carnes e leite. Carnes gordurosas, entretanto, contribuem para doenças cardiovasculares. Já o aumento do consumo de
leite é positivo, mas não atingiu ainda as porções nutricionalmente
consideradas ideais. O guia recomenda a restrição do consumo de
sódio, gorduras – principalmente as saturadas e trans – e açúcares.
As gorduras são fontes de ácidos graxos essenciais e de vitaminas
lipossolúveis, entretanto, em 2003, o consumo de gorduras totais extrapolou os limites recomendados nas Regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul e em segmentos populacionais de maiores rendimentos nas
demais regiões. Já o açúcar, que do ponto de vista nutricional não é
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
essencial ao organismo, uma vez que a energia que necessitamos
pode ser adquirida através de carboidratos complexos e açúcares
naturalmente presentes em alimentos in natura, é largamente consumido por todas as classes em todas as Regiões do Brasil, seguindo
uma tradição alimentar com profundas raízes, estabelecidas no período colonial. O excesso de consumo do açúcar simples (sacarose)
está diretamente associado ao aumento de peso, a ocorrência de
cáries, a ocorrência de diabetes, doenças do coração, entre outras.
Já o consumo de sal, que também aumentou consideravelmente no
século XX, bastante presente nos produtos industrializados, está relacionado a doenças coronarianas, como a hipertensão.43
Todavia, enquanto parte da população tem sofrido com os males
crescentes da obesidade, alto consumo de alimentos industrializados,
ricos em gorduras e açúcares, outra tem dado cada vez mais atenção a alimentação visando melhorar a saúde, através do consumo de
alimentos saudáveis, aumento da atividade física e mesmo a preocupação com a saúde mental. Tem ganhado cada vez mais espaço a
alimentação macrobiótica, que exclui alimentos de origem animal,
processados e congelados e afirma que os alimentos existem em
dois grupos “yin e yang” e devem ser consumidos em combinação
desses elementos. Outro método alternativo em expansão e o da
Alimentação Viva, a qual considera que o corpo, composto por células vivas, precisa de alimentos vivos para manter a saúde (somente
vegetais são consumidos, principalmente em forma crua). Estão, ainda,
em destaque no país também a alimentação natural, o vegetarianismo, e as dietas não convencionais.44 Todavia, a alimentação ideal é
aquela variada, equilibrada, harmônica, sendo que pode-se comer de
tudo, desde que com moderação e respeitando as necessidades do
corpo com relação a cada tipo de alimento.45
Na atualidade, seja no Brasil ou em qualquer país capitalista industrializado, um dos maiores obstáculos a uma saúde equilibrada
consiste em promover uma ampla educação alimentar, alertando a
população quanto aos riscos em se consumir em excesso gorduras
trans, gorduras saturadas, açúcares e agentes químicos nocivos à
23
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
nossa saúde. Cabe também uma ação mais incisiva do Ministério da
saúde e demais Órgãos relacionados à comercialização de alimentos, coibindo a venda de determinados produtos.
REFERÊNCIAS
24
CASCUDO, Luis da Câmara. História da Alimentação no Brasil. 3ª edição.
São Paulo: Global, 2004.
FILHO, Malaquias B. e RISSIN, Anete. A transição nutricional no Brasil:
tendências regionais e temporais. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 2003.
FLANDRIN, Jean-Louis e MONTANARI, Massimo. História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998.
FREYRE, Gilberto. Açúcar. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 50ª ed. São Paulo: Global, 2005.
MAGALHAES, Sonia Maria de. Alimentação, Saúde e Doença em Goiás
no Século XIX. Tese de Doutorado. Franca, SP. 2004.
MENESES, Jose Newton Coelho. O Continente Rústico: abastecimento alimentar nas Minas Gerais setentistas. Diamantina MG: Maria Fumaça, 2000.
Ministério da Saúde. Guia Alimentar para a População Brasileira. Brasília – DF 2005.
SILVA, Paula Pinto e. Farinha, feijão e carne-seca: um tripé culinário no
Brasil colônia. São Paulo: Editora Senac, 2005.
NOTAS
1
FLANDRIN, Jean-Louis e MONTANARI, Massimo.
História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998.
2
FRANCO, Ariovaldo. De caçador a Gourmet: uma História da Gastronomia. São Paulo: Ed Senac, 2004. pp. 23-24.
3
FREIRE, Gilberto. Açúcar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 10.
4
LEMPS, Alain Huertz. As bebidas coloniais e a rápida expansão de açúcar. In: FLANDRN, Jean-Louis; MONTANARI, Máximo. História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998. p. 611-616.
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
5
SILVA, Paula Pinto e. Farinha, feijão e carne-seca. São Paulo: SENAC,
2005, p. 26.
6
CASCUDO, Luis de Câmara. História da Alimentação no Brasil. São
Paulo: Global, 2004. p. 48.
7
Idem. P. 146.
8
O Guia Alimentar Brasileiro atual recomenda que: Os cereais, de preferência, integrais, frutas, legumes e verduras, e leguminosas (“feijões”), no seu
conjunto, devem fornecer mais da metade (55-75%) do total de energia diária da alimentação; Gorduras: 15-30% do valor energético total (VET) da
alimentação. Proteínas: 10-15% do valor energético total (VET).
9
SILVA, Paula Pinto e. Farinha, feijão e carne-seca. São Paulo: SENAC,
2005, p. 26.
10
Idem. Ver: capítulos I e II.
11
Ver, entre outros: DEAN, Warem. A ferro e fogo: história da devastação
da mata Atlântica no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
12
FLANDRN, Jean-Louis. Da dietética à gastronomia, ou a libertação da
gula. In: FLANDRN, Jean-Louis; MONTANARI, Máximo. História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998. p. 676.
13
FLANDRN, Jean-Louis. Tempos Modernos. In: FLANDRN, Jean-Louis;
MONTANARI, Máximo. História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998. p. 549.
14
SILVA, Paula Pinto e. Farinha, feijão e carne-seca. São Paulo: SENAC,
2005, p. 39.
15
Idem. p. 44.
16
CASCUDO, Luis de Câmara. História da Alimentação no Brasil. São
Paulo: Global, 2004. p. 147.
17
Ver, entre outros: FERREIRA, Luís Gomes: Erário Mineral. (org) FURTADO, Júnia Ferreira. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 2002.
18
FREIRE, Gilberto. Açúcar. São Paulo: Companhia das letras, 1988.
19
FREIRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. São Paulo: Global, 2005. p. 149.
20
SILVA, Paula Pinto e. Farinha, feijão e carne-seca. São Paulo: SENAC,
2005, p 38.
21
Idem. p. 38.
25
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
22
26
MAGALHAES, Sonia Maria de. Alimentação, Saúde e Doença em Goiás
no Século XIX. Tese de Doutorado. Franca, SP. 2004. p. 36-37.
23
BOXER, Charles R. pp. 71-72. ANTONIL, André João. pp. 164-168 e 181-186.
24
Para maiores informações a este respeito ver: HOLANDA, Sergio Buarque de. Caminhos e Fronteiras.
25
Idem. p. 56.
26
“NOTÍCIAS do descobrimento das minas de ouro e dos governos políticos nelas havidos.” In: Códice Costa Matoso. Vol. 1 p. 245.
27
Idem. p. 245.
28
NOTÍCIAS dos primeiros descobridores das primeiras minas do ouro e
estas Minas Gerais, pessoas mais assinaladas nestes empregos e dos mais
memoráveis casos acontecidos desde os seus princípios. In: Códice Costa
Matoso. Vol.I pp. 170-171.
29
Acerca das habilidades e técnicas de indígenas e mamelucos com relação
à obtenção de alimentos e outros do meio ambiente ver: HOLANDA, Sergio
Buarque de. Caminhos e Fronteiras.
30
BOXER, Charles R. A Idade de Ouro do Brasil. pp. 70-80.
31
DEAN, Warren. op. cit. pp. 108-109.
32
MENESES, José Newton. O continente rústico: abastecimento alimentar
nas Minas Gerais setecentistas. Diamantina: Maria Fumaça: 2000. p. 114.
33
Ver: SILVA, Paula Pinto e. Farinha, feijão e carne-seca. São Paulo: SENAC, 2005.
34
MACIEL, Maria Elnice. Uma cozinha à brasileira. Estudos Históricos,
Rio de Janeiro, nº 33, 2004. p. 8-9.
35
MAGALHAES, Sonia Maria de. Alimentação, Saúde e Doença em Goiás
no Século XIX. Tese de Doutorado. Franca, SP. 2004. p. 29.
36
Ver: Parte II: IGLESIS, Francisco. Trajetória política do Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.
37
Idem. p. 29.
38
Ver: LEAL, Maria Leonor de Macedo Soares. História da Gastronomia.
São Paulo: Senac, 2004. pp. 63-91.
39
MINISTÉRIO da Saúde. Guia Alimentar para a População Brasileira.
Brasília – DF 2005.
40
Idem. p. 36.
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
41
FILHO, Malaquias B. e RISSIN, Anete. A transição nutricional no Brasil:
tendências regionais e temporais. Rio de Janeiro: Cad. Saúde Pública: 2003.
42
Idem.
43
MINISTÉRIO da Saúde. Guia Alimentar para a População Brasileira.
Brasília – DF 2005.
44
Ver: GONZALEZ, Alberto Peribanez. Lugar de Médico é na Cozinha. Rio
de Janeiro: Editara Estácio de Sá, 2006.
45
Ver: FLANDRIN, Jean-Louis; TEUTEBERG, Hans Jurgen. Transformações do consumo alimentar. In: FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI,
Máximo. História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998.
27
CIDADE E CONVERGÊNCIA DE MÍDIA:
NOVOS CENÁRIOS DA GLOBALIZAÇÃO
RENATA ALENCAR
Professora do Departamento de Comunicação Social da FUNEDI/UEMG
e coordenadora do curso de pós-graduação lato sensu Processos
criativos em palavra e imagem, do IEC-PUC Minas
e-mail: [email protected]
TAILZE MELO
Professora do Departamento de Comunicação Social da Faculdade
Estácio de Sá (BH) e coordenadora do curso de pós-graduação lato
sensu Processos Criativos em palavra e imagem, do IEC-PUC Minas
e-mail: [email protected]
28
Resumo: O artigo propõe discutir a
cidade como espaço catalisador de
trocas e de um tipo particular de produção simbólica atravessada pela
chamada convergência de mídia, no
cenário do conjunto de mudanças
que pode ser sintetizado no termo
globalização. O projeto Canal Motoboy, de autoria do artista catalão Antoni Abad, se apresenta como contexto analítico, por incorporar a dinâmica da cidade contemporânea que
se revela em signos fugazes, cartografando novos territórios estéticos.
Dessa forma, a mobilidade, inerente
ao processo de globalização, constitui-se como operador de leitura para
a compreensão das trocas urbanas,
da permanente reciclagem simbólica
e das paisagens citadinas, bem como
das tecnologias nômades.
Palavras-chave: cidade; mobilidade;
globalização; produção simbólica.
Abstract: This article approachs the
city as catalytic space of exchanges
and a particular type of symbolic
production crossed by the call media convergence. In this context, the
set of changes can do examined in
the scene of globalization. The project “Canal Motoboy”, of the Catalan artist Antoni Abad, to introduce
oneself how an analytical context
because it incorporates dynamics of
the city contemporary, mapping a
new aesthetic territories. Of this
form, mobility, inherent to the globalization process, consists as operator of reading for the understanding of the urban exchanges, the
permanent symbolic recycling and
the landscapes city, as well as of the
nomadic technologies.
Key-words: globalization; media
convergence; city.
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº
- 6 – p. 28 a 36 – outubro de 2007
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
M
otoboys circulam freneticamente pela cidade de São Paulo. Costuram cartografias urbanas fixadas em cenas capturadas por potentes celulares utilizados como suportes de
narrativas que se deslocam pelas mais variadas enunciações textuais: fotografia, produções audiovisuais, mensagens de texto e gravações sonoras. O registro é exibido, instantaneamente, em um site1,
gerando uma recepção quase da ordem do tempo real.
Em suas motos, assumem o papel de cronistas da cidade ao recortar flashes do cotidiano urbano, registrando impressões de um
olhar em movimento constante e que, portanto, não se fixa em nada.
São apenas rasgos de cenas de uma cidade inquieta, marcada por
suas tensões e encantos.
Guardadas as devidas diferenças contextuais2, não seria impróprio afirmar que a atividade parece configurar um tipo de flânerie
contemporânea, pois tal qual o flâneur da Modernidade, os motoqueiros criam uma singular poética da observação. No delírio da cidade, o caleidoscópio da vida se apresenta apenas como um volúvel
espetáculo registrado por um grupo situado fora do circuito da mídia
hegemônica.
O grupo de motoboys faz parte do projeto Canal Motoboy, coordenado por Antoni Abad. O artista catalão possui experiências anteriores da mesma linhagem em outros países, sempre trabalhando com
grupos alijados da produção exibida no cenário midiático contemporâneo. Não que os protagonistas dos projetos de Abad – prostitutas,
taxistas, ciganos e motoboys – não apareçam como pauta na mídia,
mas não é comum encontrar, nesse espaço enunciativo, produções
discursivas de autoria desses segmentos sociais. Trata-se, pois, de uma
iniciativa com importância política, já que algumas produções artísticas
propiciam visibilidade a manifestações culturais construídas por realidades outras e, por conseqüência, podem fomentar o debate público
acerca das tensões que envolvem o cotidiano de certos grupos sociais.
Apesar do engajamento do projeto de Abad ser de real importância, neste artigo, será feito outro recorte de discussão, qual seja, a
cidade como espaço catalisador de trocas e de um tipo particular de
29
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
produção simbólica atravessada pela chamada convergência de mídia. Esse recorte tem como ponto fundamental a compreensão do
espaço-tempo na chamada globalização.
30
Itinerâncias urbanas: a cidade e a globalização
O projeto Canal Motoboy parece ser emblemático para se tecer
uma reflexão sobre a via de mão dupla estabelecida entre o que Steven Johnson (2001) chamou de mundo da cultura e mundo-objeto
da tecnologia.
Para o autor, ao tempo que o mundo da cultura alimenta o mundo-objeto da tecnologia com suas dúvidas, necessidades e construtos, o mundo-objeto da tecnologia inova o mundo da cultura
na medida em que oferece condições para que novas formas de
pensar e perceber o mundo se ergam. Assim, o contexto cultural e o
contexto tecnológico dialogam em um exercício constante de retroalimentação.
Nesse sentido, há que se pensar que o mundo contemporâneo
engendra-se sob as lógicas da aceleração, do deslocamento e do
hibridismo de linguagens, atravessando fronteiras nacionais e tornando nossa experiência de mundo mais interconectada. Essa complexa trama de relações tem sido denominada de globalização. David Harvey, citado por Stuart Hall (2000, p.70), enfatiza que:
À medida que o espaço se encolhe para se tornar uma aldeia “global” de telecomunicações e uma “espaçonave planetária” de interdependências econômicas e ecológicas –
para usar apenas duas das imagens familiares e cotidianas
– e à medida em que os horizontes temporais se encurtam
até ao ponto em que o presente é tudo que existe, temos que
aprender a lidar com um sentimento avassalador de compressão de nossos mundos espaciais e temporais.
Nota-se, pois, que a cada contexto cultural e tecnológico, há uma
sensibilidade própria que se impõe. Sensibilidade esta que diz respei-
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
to tanto aos processos de enunciação quanto aos atos de recepção
que a esfera midiática suscita. Vale dizer que a experiência com os
meios, atravessada pela dimensão sensível do tempo presente, é capaz de atualizar as linguagens e seus agenciamentos semióticos. Segundo Plaza (1987, p.10),
(...) as formas da linguagem atual, junto com as formas técnicas produtivas, contaminam e semantizam a leitura da
história assim como determinam a recepção, ao mesmo tempo em que elas definem sua própria historicidade. Passadopresente-futuro estão atravessados pelas antigas e novas
formas tecnológicas.
As tecnologias digitais não apenas transformam nossa forma de
ação e percepção sobre o mundo – a maneira como construímos
nossos signos da realidade – como também transformam as linguagens e as técnicas pré-existentes. Trata-se de uma configuração
cultural cumulativa que remodela, à sua maneira, dispositivos e linguagens anteriores.
Quando pensamos em cultura como o modo pelo qual uma determinada sociedade constrói seus códigos simbólicos e padrões sociais, não há como ignorar o intercâmbio entre a produção de tais códigos e padrões com a cidade, pois o espaço urbano talvez seja o
mais importante operador de leitura de um determinado tempo histórico/cultural. Obviamente, a cidade é um grande texto em que é possível detectar todas as nuances de uma época. Nesse sentido, a cultura se dá em consonância com a modelagem urbana de um determinado tempo e, por isso, torna-se importante pensar na rede semântica que, hoje, cerca o significante cidade.
A tarefa não é fácil, pois nosso tempo, a pós-modernidade, parece mesmo ser avesso a definições engessadas, por isso mesmo a
palavra itinerante pode ser tomada como paradigma no qual orbita
uma rede semântica3 formada por outros significantes como: globalização, nomadismo simbólico, híbrido, convergência de mídia, etc. Por
31
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
32
sua vez, tal rede semântica, está intrincada às enunciações espaciais
próprias da cidade contemporânea cujas tessituras simbólicas estão
engendradas sob a ordem do híbrido.
A política urbanística da chamada Modernidade, cujo planejamento
urbano foi norteado por uma organização racional das políticas espaciais ao lado de mecanismos de controle, valeu-se de princípios como
o do progresso e da ordem para atuar como instrumento que permite
conservar um modelo de dominação política, social, econômica e
cultural segregacionista (GOMES, 1999). Nesse sentido, a tentativa
de projetar a cidade nos moldes de um cartão-postal foi amplamente
exercida com vistas a conformar um imaginário citadino baseado no
controle dos dejetos que assume inclusive uma conotação social4.
No entanto, o mencionado projeto da Modernidade falhou. A cidade contemporânea não pode mais ser vislumbrada sob a égide de
uma falsa assepsia. Ao contrário, o espaço urbano se revela nas
fissuras, nas contaminações, formando uma trama que pode ser visualizada como um novelo que, no entanto, não se encerra em um
ponto de origem e chegada. Pelo novelo da cidade coexistem fios de
densidade e texturas diversas que, por vezes, se encontram em nós,
gerando curta-circuitos de significação. É a cidade-dispositivo5 que
se apresenta. Cidade, esta, cujas linhas de força regulam padrões de
interação. No entanto, para além das instâncias reguladoras de trocas, há linhas de fuga que a fazem espaço também de deslocamentos e rupturas. É nesse âmbito que a cidade se apresenta como terreno da permanência, da gestão de uma memória coletiva, mas também como desencadeadora de mudanças, migrações e não-fixação:
características próprias da globalização.
Nessa perspectiva, a cidade se revela em camadas em que o
avesso do cartão postal se desloca para a ordem do visível. Basta
um vaguear pela cidade para observar as impressões da diversidade
em seus vários domínios: simbólico, social, político.
A questão das construções simbólicas emergentes do referido
contexto urbano ganha centralidade na discussão aqui apresentada,
uma vez que criam cartografias de territórios estéticos pautados por
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
circuitos nômades e pela ubiqüidade das trocas. Nesse âmbito, a
mídia não pode ser abordada apenas como um aparato técnico, mas
como espaço no qual circulam produtos simbólicos condicionadores
de práticas interacionais6, modelando imaginários coletivos. Dessa
forma, a mídia se apresenta para além de seu aspecto transmissivo,
visto que se constitui como espaço social capaz de encarnar em si
mesma a retro-alimentação, mencionada por Johnson, entre mundo
da cultura e mundo objeto da tecnologia. O espaço midiático digital,
particularmente, constitui-se como importante veículo para mensagens e, inclusive, veículo para outras mídias, mas suas especificidades o fazem ser, sobretudo, produtor de linguagem.
Nesse sentido, pode-se mencionar o projeto Canal Motoboy como
expressão tradutora de um tipo de vivência urbana marcada pelo
trânsito. Interessante pensar na figura do motoboy como um representante genuíno dessa cidade contemporânea. Há uma lógica da
eficácia que atravessa o nosso tempo; nesse contexto, o motoboy
transita para que outros não precisem transitar. De forma paradoxal,
a cidade apresenta uma dialética entre o movimento e a clausura,
sintoma de um mundo em que as experiências se fazem cada vez
mais mediadas pela tecnologia e suas globalizações.
Nesse contexto, os motoboys, no projeto de Abad, assumem a
autoria de signos fugazes tradutores de uma dinâmica também volátil, criando uma topologia eletrônica a partir de seu trânsito no espaço urbano. O ponto de encontro agora não mais é a cidade, mas a
tela eletrônica que a revela. No entanto, essa tela não se constitui
como ruptura das vivências pessoais, tal como coloca Virilio (1993).
A tela pode ser abordada como um novo espaço interacional, capaz
de conectar experiências individuais e, assim, atuar na ordem da coletividade. As mídias móveis, no caso celulares, se oferecem para construir signos da mobilidade a partir de olhares em permanente itinerância no espaço citadino. Dessa forma, pode-se inferir uma reduplicação da mobilidade entre a experiência de um sujeito, a configuração urbana e a mediação tecnológica de que se vale esse sujeito
para singularizar seu estar no mundo.
33
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
34
Considerações finais
As reflexões aqui apresentadas constroem um prefácio de um tema
que não se esgota facilmente, pois abriga em sua própria existência a
dimensão processual e a construção cotidiana de seu horizonte de possibilidades. Interessante apontar alguns caminhos possíveis para uma
abordagem dos novos territórios estéticos que se evidenciam com produções simbólicas realizadas a partir de situações de não-permanência que a natureza de mobilidade de alguns dispositivos midiáticos
permitem capturar. Tal natureza dialoga efetivamente com o contexto
de globalização no qual se encontra a sociedade contemporânea.
Caminhos apontam possibilidades. No entanto, há um ponto de
convergência capaz de costurar as várias ramificações que eclodem
dessas travessias. Aqui a cidade é o ponto.
A cidade parece encarnar em uma espacialidade singular, ao mesmo tempo catalisadora e acolhedora, construções simbólicas genuinamente contemporâneas em torno das quais se desenham novos territórios estéticos. Esses territórios se caracterizam, em um primeiro momento, pela produção de signos fugazes, escrituras de um homem ordinário, em trânsito pelo espaço urbano. Exercita-se, pois, uma nova
poética da observação pautada na superfície pela qual o olhar vagueia
inquieto e, paradoxalmente, acomodado pela velocidade do tempo real.
Por sua vez, a singularização desses olhares acontece mediada por
dispositivos portáteis que assumem aspectos multifuncionais, dentre
os quais se inclui a produção de diversas enunciações: a palavra, a
imagem fixa, a imagem em movimento, o som. Enunciações essas que
também projetam sobre a cidade um imaginário que possui como significante primordial a mobilidade. A cidade é em si mesma objetos e
representações nas migrações do mundo contemporâneo.
REFERÊNCIAS
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LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na
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RIO, João do. A alma encantadora das ruas. São Paulo: Companhia das
Letras, 1997.
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Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
VIRILIO, Paul. O espaço crítico. Tradução: Paulo Roberto Pires. Rio de
Janeiro: Ed. 34, 1993.
NOTAS
1
Disponível em: www.zexe.net/saopaulo.
Vale lembrar que o flâneur, típico personagem do início do século XX,
vagueava pelas ruas da cidade em ritmo despreocupado e lento, captando
detalhes de paisagens e personagens urbanos. No Brasil, durante a chamada Belle Époque carioca, o hábito de flanar definiu o modo de ser de alguns
de nossos escritores, dentre eles João do Rio, para quem o verbo Flanar
pode ser definido como: “A distinção de perambular com inteligência” (RIO,
1997, p.51). Nesse âmbito, obviamente, quando aproximamos os motoboys
do projeto de Abad do flâneur, é apenas no sentido de capturar a cidade por
meio do olhar em constante movimento, já que seria improvável uma analogia entre esses transeuntes urbanos por meio do critério de ritmos de percepção.
3
João Anzanello Carrascoza (1999) define paradigma como uma palavra
geradora de um campo associativo em que outras palavras orbitam, construindo uma determinada rede semântica.
4
No Brasil, o processo de afastamento do “lixo social” de áreas valorizadas
aconteceu de forma significativa durante a chamada Belle Époque carioca.
O Rio de Janeiro, sob o comando do prefeito Pereira Passos, sofreu um
processo de remodelação urbana que ficou conhecido como operação “Botaabaixo”. Nesse contexto, a modernização carioca não se limitou ao espaço
geográfico, antes se ampliou para o social e o existencial, afetando bruscamente as socialidades e os hábitos da população de baixa renda. Cortiços e
casas simples que se situavam próximos ao centro foram simplesmente demolidos, obrigando os pobres a migrarem para os subúrbios e para os espaços que ficaram conhecidos como favelas.
5
Sobre o conceito de dispositivo: Cf. DELEUZE, 1990.
6
Sobre as interações comunicacionais: Cf. BRAGA, 2001.
2
36
JOGOS DE ESCALA: A 2ª GUERRA MUNDIAL
(1939-1945) VISTA PELOS JORNAIS DE
DIVINÓPOLIS (MINAS GERAIS, BRASIL)
Este texto é dedicado à Batistina Corgozinho
ANA MÓNICA HENRIQUES LOPES
Doutora em História pela UFMG e professora do Mestrado em
Educação, Cultura e Organizações Sociais da FUNEDI/UEMG
E-mail: [email protected]
MATEUS HENRIQUE DE FARIA PEREIRA
Doutor em História pela UFMG e professor do Mestrado em Educação,
Cultura e Organizações Sociais da FUNEDI/UEMG
E-mail: [email protected]
HELOISA HELENA CORGOZINHO
Licenciada em História pela FUNEDI/UEMG
Resumo: Considerando-se que o
acontecimento ganhou, a partir de
meados do século passado, uma
nova legitimidade como objeto, pretende-se refletir sobre sua construção através do olhar do jornalista de
Divinópolis no período da 2ª Guerra
Mundial (1939-1945), levando em
conta o fato de tropas brasileiras terem sido enviadas à Itália durante o
conflito. Por meio deste objeto pretendemos pensar a relação entre os
conceitos de globalização e acontecimento como articuladores que possibilitam a compreensão e explicação
dos sentidos, traços e apropriações
de que um “acontecimento global e
traumático”, a 2ª Guerra Mundial, recebeu em Divinópolis (Minas Gerais).
Palavras-chave: Acontecimento; Globalização; Jornalismo e Divinópolis.
Resume: En se considérant que
l’événement a gagné, à partir de milieux du siècle passé, une nouvelle
légitimité comme objet, se prétend
refléter sur sa construction à travers
le regard du journaliste de Divinópolis dans la période de la 2ª Guerre Mondiale (1939-1945), dans le
moment que les troupes brésiliennes avoir été envoyé à l’Italie pendant le conflit. Au moyen de cet objet nous prétendons penser la relation entre les concepts de globalisation et l’événement comme articuladores qui rendent possible la compréhension et l’explication des sens,
traces et appropriations dont une
“événement global et traumatique”,
la 2ª Guerre Mondiale, a reçu dans
Divinópolis (Minas Gerais).
Mots-clef: Événement, Globalisation, Journalisme et Divinópolis.
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº
- 6 – p. 37 a 51 – outubro de 2007
37
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
(...) porque raciocinar sobre as causas e sobre os efeitos é
coisa muito difícil, creio que o único juiz possível é Deus. Já
temos a maior dificuldade em apreender uma relação entre
um efeito tão evidente como um árvore queimada e o raio
que a incendiou: assim, remontar encadeamentos às vezes
muito longos de causas e efeitos parece-me tão louco quanto procurar construir uma torre que vá até o céu (Umberto
Eco. O Nome da Rosa)
E
38
nfocar a Segunda Guerra Mundial como um acontecimento
significa tentar apreender o olhar dos indivíduos no momento
o que o mesmo se desenvolvia. Trata-se de buscar nos registros deixados – em nossa abordagem textos jornalísticos – as expectativas, esperanças e leituras produzidas de um processo em desenvolvimento.
Considerando-se que o acontecimento ganhou, a partir de meados do século passado, uma nova legitimidade como objeto, pretende-se refletir sobre sua construção através do olhar do jornalista de
Divinópolis no período da 2ª Guerra Mundial (1939-1945), levando
em conta o fato de tropas brasileiras terem sido enviadas à Itália
durante o conflito. Por meio deste objeto pretendemos pensar a relação entre os conceitos de globalização e acontecimento como articuladores que possibilitam a compreensão e explicação dos sentidos,
traços e apropriações de que um “acontecimento global e traumático”, a 2ª Guerra Mundial, recebeu em Divinópolis (Minas Gerais).
Nossa reflexão insere-se no que Paul Ricouer (2000) denomina
de grande conquista ou liberdade metodológica: o jogo de escalas,
pois indica um caminho de saída para a falsa alternativa entre os
partidários do acontecimento e os da longa duração. O princípio de
variação não opera com a escolha de uma escala particular, mas
com a mutação intrínseca sem, no entanto, ter a pretensão de passagem da microanálise à macroanálise. A transposição das conclusões
de uma micro para a macro escala deve ser feita com o cuidado
necessário para evitar o decalque ou o mero encaixe por correspon-
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
dência direta de elementos comuns. Em cada escala vêem-se aspectos que não são vistos em outra e cada olhar tem a sua legitimidade (RICOUER, 2000, p. 276-277).
Para Jacques Revel, “variar a objetiva não significa apenas aumentar (ou diminuir) o tamanho do objeto no visor, significa modificar sua forma e trama” (1998, p. 20). Não existe, assim, oposição
entre a história do particular ou história local e história global:
O que a experiência de um indivíduo, de um grupo, de um
espaço permite perceber é uma modulação particular da
história global. Particular e original, pois o que o ponto
de vista micro-histórico oferece à observação não é a versão atenuada, ou parcial, ou mutilada, de realidades microssociais: é, (...), uma versão diferente (REVEL, 1998, p.
27-28).
No entanto, não há unanimidade entre os adeptos da microanálise. Existem, pelo menos, duas posições sobre as abordagens microanalítica. A primeira, “relativista” considera que a variação de escalas possibilita construir objetos, tendo em vista que nenhuma escala
tem privilégio sobre outra, pois é a confrontação das mesmas que
traz benefícios analíticos. A segunda, “fundamentalista”, sustenta um
privilégio do “micro”, na medida em que este engendra o “macro”
(REVEL, 1998, p. 14). Neste texto experimental alternamos, a partir
de um ponto de vista narrativo, as duas posições. Porém, do ponto de
vista teórico, nossa postura frente a Micro-História está relativamente próxima a de Ronaldo Vainfas que afirma:
não chegaria ao ponto de dizer que a microanálise é a mais
esclarecedora, preferindo ‘apostar’ nas possibilidades de
compatibilização – embora elas sejam restritas – e reconhecendo, antes de tudo, uma diferença que não implica hierarquia sobre qual escala se sai melhor na tarefa de reconstruir a história (2002, p. 67).
39
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
40
Nossa escala: Divinópolis, Minas Gerais, Brasil
Divinópolis situa-se na Região Centro-Oeste do Estado de Minas
Gerais e se apresenta hoje como importante pólo para o desenvolvimento na Região do Alto São Francisco. A facilidade de deslocamento para a capital, Belo Horizonte e São Paulo, além de sua privilegiada situação geográfica, influenciam em seu crescimento. Segundo o último senso realizado, ela apresenta uma população de aproximadamente 200 mil habitantes. Com uma economia antes voltada
para o setor siderúrgico e metalúrgico, apresenta, a partir da década
de 1980, um aumento significativo no setor confeccionista – atacadista e varejista. Devido ao desenvolvimento econômico Divinópolis
é vista como um lugar de oportunidades empregatícias; o que explica
a presença de uma população flutuante.
A cidade é centro de referência das outras cidades da região por
oferecer diversos serviços públicos, bancários, judiciários, educacionais e uma ampla rede de serviços de saúde. Estas características
somadas às visitas diárias das chamadas “sacoleiras” aos vários centros de compras, trazem para a cidade um grande fluxo de visitantes
que, consequentemente, contribui para o comércio em geral e os
serviços de transportes. A maioria da população é de baixa renda,
assalariados que trabalham direta ou indiretamente com o setor de
confecções.
Esse crescimento econômico já fazia parte do surto desenvolvimentista da primeira metade do século XX. Em 1939 foi publicado
em uma revista local um artigo que retrata as alguns aspectos sócioculturais da cidade no início da 2ª Guerra Mundial:
A nenhum espírito dotado do censo de justiça passa despercebido o impressionante surto de progresso que penetrou em Divinópolis. A administração pública, a indústria, o comércio, a iniciativa particular, tudo se canalizando para um objetivo único: para a grandeza de Divinópolis. (...) A população atual as cidade é de 16.000 habitantes. A cidade possue (sic) um traçado moderno, com
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
amplas ruas e avenidas, conta com ótimos prédios residenciais e tem um comércio e uma indústria dos mais desenvolvidos do oeste (Revista Itapecerica. Apud CORGOZINHO,
2003, p. 96-97).
A sociedade divinopolitana das décadas de 1930 e 1940 convivia,
desse modo, com novas idéias de progresso e desenvolvimento. Não
era mais uma sociedade estritamente rural e tradicional. O Divinópolis Jornal, por exemplo, afirma: “povo que trabalha incansavelmente, erguendo nas vias públicas prédios de apuro arquitetônico,
movimentando o comércio e a indústria. Divinópolis caminha sempre, com desenvoltura e arrojo” (Divinópolis Jornal, 1942, s/pág.).
Com a chegada da estrada de ferro e da mão de obra industrial, a
população passou a conviver com um novo modo de vida (CORGOZINHO, 2003). Para Lázaro Barreto, a Rede Ferroviária transforma
os trabalhadores da cidade em “homens de direitos assegurados em
contratos coletivos de trabalho, promovendo-o, por assim dizer, de
roceiro a operário” (BARRETO, 1992, p. 63)
Nos trilhos da RMV foram transportados novos valores sócioculturais, novos conceitos e novas esperanças de desenvolvimento
individual e da coletividade. Este “novo” homem não poderia viver
alheio ao que acontecia, era preciso discutir e participar do que ocorria pelo mundo. A população divinopolitana da época protagonizou o
surgimento e o desenvolvimento de uma “nova era”. A cidade estava em marcha, rumo ao progresso, bem como o Brasil. O Divinópolis Jornal de 1942 afirma, a esse respeito que
Há quem afirme ser Divinópolis uma cidade eminentemente
operária. Na realidade, Divinópolis tem a sua indústria bem
desenvolvida. Possue (sic) florescente fábrica de tecidos,
diversas fábricas de manteiga, banha e macarrão, máquinas de beneficiar café e arroz; possue (sic) várias oficinas
mecânicas, duas fundições de ferro, aço e bronze (estas –
das maiores da zona oeste de Minas).
41
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
Além de ser sede de uma das maiores oficinas ferroviárias da
América do sul, a cidade se tornava também sede de novas siderúrgicas. Era cidade de morada de médicos, advogados, engenheiros e
professores, e primava pela intelectualização de seu povo. Na década de 1940 é fundado o Ginásio São Geraldo. Contando com um
diretor estimado e valorizado pela população, Martin Cyprien, um
francês, o novo ginásio iria ser,
O ponto alto na garantia do nosso progresso, porque permitirá ensanchas ao desenvolvimento intelectual da nossa
gente, conciliando os interesses dos que buscam alcançar
este grande objetivo – o trabalho material aliado ao trabalho mental (Divinópolis Jornal, 1942, s/pág.).
42
Em Divinópolis, os primeiros jornais surgiram após sua emancipação política no início do século XX, em 1912. O perfil dos jornais
apresentava características de panfletos e se destinavam, em sua
maioria, à divulgação política em épocas de eleições. Houve um aparecimento de diversos pequenos jornais com duração variável (CORGOZINHO, 2003). Eles serviam aos propósitos de determinados períodos, como em épocas de eleições, já serviam como meio de
expressão das idéias e ideais políticos. Essa imprensa local influenciou de forma significativa o desenvolvimento da cidade, compondo
seu processo de modernização e a conseqüente formação e debate
de idéias na população.
Os dois jornais que utilizamos surgiram nas décadas de 1930 e
1940. O Divinópolis Jornal foi criado em 1939 e resistiu até os
finais da década de 1940. No período de sua existência, passou por
diversas transformações em sua aparência. O formato A4 foi adotado em sua origem, no ano de 1939; evoluiu para um tamanho mais
próximos dos jornais que conhecemos hoje medindo 30 cm de largura por 45 cm de altura. Sua tipografia também sofreu mudanças
ocasionando transformações em sua aparência. As notícias eram
apresentadas na forma de colunas e, além das notícias locais, divul-
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
gava notícias internacionais, reservando uma página para publicidade. O jornal A Semana surgiu, no mesmo período, como Órgão oficial das Paróquias de Divinópolis e Círculo Operário e Educandários.
Foi criado pelos franciscanos da cidade, tendo assim, o caráter religioso. Este jornal apresentava em sua estrutura várias colunas que
alertavam os católicos para acontecimentos locais, regionais e também internacionais, como a Guerra em questão.
O envio das tropas brasileiras à 2ª Guerra Mundial
Em artigo apresentado no Divinópolis Jornal, percebe-se um
tipo de sentimento que a 2ª Guerra Mundial causou naquela cidade
eminentemente católica:
Guerra! Palavra sinistra que enche de terror a todos! Palavra que a humanidade vem repetindo, através dos séculos, e
sentindo seus efeitos desastrosos como o peso de uma maldição. Tudo isso porque o homem, na sua eterna ignorância
esquece a sua condição humilde para guindar-se as asas
negras do orgulho, apagando com a tinta rubra de seus
crimes o Quinto Mandamento da lei Divina, inscrito no granito do cristianismo (Divinópolis Jornal, 1943, nº 20, s/pág.).
De forma literária, religiosa e até poética o artigo reflete o espanto ante a atitude irracional humana. Percebe-se a condenação, com
devotismo religioso, à morte de crianças e civis, assim como a destruição de monumentos históricos, hospitais, igrejas e até cidades
inteiras pelas bombas lançadas.
Em 1943 é divulgado o sacrilégio cometido pelo Terceiro Reich
que rodeou a Praça de São Pedro e o Vaticano, a população católica
assiste, perplexa a quebra do trato de respeito à neutralidade do Estado pontifício:
O mundo católico experimenta um ansioso momento de super-agitação. O Vaticano está sob as garras da Gestapo. A
43
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
guarda alemã circunda a praça de S. Pedro. O Papa achase em poder do fuehrer. Cristo está diante de Califas. Pio XII
é prisioneiro de Hitler. A situação do sumo sacerdote é demais perigosa. Mentiram os covardes camisas-negras ao
mundo, afirmando que respeitariam a neutralidade do Estado pontifício. Os Bárbaros germanos não respeitam nada.
São vandálicos em suas façanhas. Os bandoleiros do velho
continente rasgam os tratados e as concordatas do mesmo
jeito que apunhalam pelas costas as suas infelizes e desgraçadas vítimas. Não há nem jamais póde (sic) haver harmonia entre os escravos da cruz gamada e os servos da cruz
divina. (Divinópolis Jornal, 03/10/1943, nº 53).
44
O Papa enquanto representação do amor entre os homens, do
respeito e da prática das Escrituras bíblicas, prega o “amai-vos uns
aos outros como a vós mesmos” e o fuehrer, Hitler, visto como símbolo da maldade e da crueldade em relação ao próximo. Assim, o
Papa é visto na época como o mensageiro do amor em contraposição a imagem “demoníaca” de Hitler. Os textos presentes na imprensa registram a composição no imaginário popular da personificação do bem e mal.
Os problemas ocasionados pela guerra em Divinópolis, como o
encarecimento do custo de vida, é motivo de debate: “A guerra trouxe, para todas as nações, uma infinidade de problemas novos”. “Dentre
os problemas que nos trouxe a conflagração, nenhum é mais complexo e premente de solução como o do encarecimento do custo de
vida” (A Semana, 12/12/1943, nº 63).
Naquela época a imprensa se constituiu num veículo de divulgação do desenvolvimento do conflito, das questões relacionadas ao
comunismo e ao fascismo que definiam prática políticas que interferiam no cotidiano e nos conflitos bélicos de diversas nações; o
período foi marcado pelo temor e a produção de um imaginário de
insegurança. Pretende-se explicar didaticamente os dois sistemas
políticos:
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
O Comunismo ou Bolchevismo nasceu na Rússia, em 1917
(...) O fascismo surgiu na Itália, trazendo como principal
escopo a restauração do antigo império romano. Seu criador, o ex-socialista Benito Mussolini, realizando em 1922 a
celebre “Marcha sobre Roma”, toma em seus pulsos o destino amargo do povo italiano. Se o mito do Comunismo é a
classe, o do Fascismo é a Nação. Para o indivíduo nada,
por ela e para ela tudo. Absorvente como o Comunismo,
totalitário como o Fascismo, nasceu na Alemanha o Nazismo, partido político de Adolf Hitler, ex-combatente da Grande Guerra. Seu mito é a supremacia da raça germânica sobre tudo e sobre todos; sua moral, a força; seu Deus, o próprio Hitler (Divinópolis Jornal, 24/01/1943, nº 18, s/pág.).
Percebe-se também, em 1943, a esperança da vitória pelas “forças do bem” identificadas aos aliados: “A guerra será vencida pelas
forças do Bem. Todos os povos terão o direito de viver no gôzo(sic)
da Liberdade e da Justiça. Façamos a guerra, a guerra da morte dos
que se insurgem contra a confraternização dos povos” (Divinópolis
Jornal, 03/01/1943, nº 15, s/pág.). Os Aliados buscam justiça, pois
são cristãos, e não vingança, que é própria de bárbaros e carrascos
insanos, dos gananciosos que matam que torturam que aniquilam em
busca do poder máximo sobre os povos frágeis.
Ao totalitarismo, marcante na guerra, é atribuída a responsabilidade pela morte de povos pacíficos, pela irracionalidade humana:
Esta guerra está escrevendo páginas épicas na história dos
povos. Os fatos que se precipitam no tempo, são os capítulos
formidáveis e horripilantes de uma epopéia, onde o homem
parece ter perdido por completo a senso exato de civilização. (...) O totalitarismo invadiu e levou a morte a muitos
povos pacíficos. Os seus exércitos continuando as suas ações
devastadoras e façanhas criminosas ainda sacrificam milhares de pessoas. (...) O homem tornou-se fera, parece, é um
45
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
ser inconsciente. Creanças (sic) de ontem, jovens de hoje,
embrutecidos pela guerra, fanatizados por uma ideologia
exótica são estirados nos campos de luta sem vida. O espetáculo de sangue não póde (sic) ser contemplado por olhos
humanos. É um inferno de fogo e sangue (Divinópolis Jornal,
22/11/1942, nº 09, s/pág.).
46
Esse artigo se refere à batalha de Stalingrado e afirma que de
todas as batalhas que se tem notícia na história do mundo a de Stalingrado demonstra que ainda existem “verdadeiros heróis, e o poder
da vontade de vencer como da razão e do direito ainda são armas
vitoriosas sobre o crime e o extremismo. Stalingrado que se defende
é a maior refutação ás ideologias totalitárias” (Divinópolis Jornal,
22/11/1942, nº 09, s/pág.). Esta batalha teve conseqüências decisivas
na guerra entre os nazistas e os soviéticos. Foi a partir desta vitória
que a URSS deu início à sua trajetória para se tornar uma superpotência. Foi, também um sinal de que o projeto de Hitler de submeter
a Europa à ordem imposta pela Alemanha nazista, teria seu fim. Neste
momento, o Brasil nem cogitava a participação na guerra, mantinhase ainda neutro. Como Pregava Getúlio Vargas, era mais fácil a cobra fumar. O ponto de vista o de quem se mantêm afastado do conflito e do perigo. No entanto, quando se decidiu pelo apoio aos aliados, o discurso da imprensa muda, e há o constante estímulo à participação, pela honra e dignidade brasileiras, mesmo que haja o derramamento do sangue dos jovens soldados, e o escárnio por aqueles
que desejam se omitir da convocação. Em 1944, os pracinhas brasileiros não se tornam feras na defesa dos ideais de sua Pátria, são
bravos heróis que defendem a honra do Brasil: “A hora presente
reclama a união dos brasileiros! Devemos, antes de tudo, ter o nosso
pensamento voltado para os que, na Europa, estão defendendo as
nossas tradições de honra e bravura” (Divinópolis Jornal, 26/11/
1944, nº 109, s/pág.)
Em 1943, as Forças Armadas Brasileiras, apesar de não possuírem
equipamentos bélicos modernos, prontificaram ao desempenho do com-
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
bate no exterior figurados na Força Expedicionária Brasileira. A imprensa também atua como agente estimulador do espírito cooperativista entre os países. A ideologia presente no discurso dos editores
jornalísticos e seu empenho em apoiar a solidariedade brasileira pelos países em guerra, podem ser observadas nos artigos publicados
nos jornais.
Por ocasião do envio dos pracinhas, a posição dos editores dos
jornais divinopolitanos era de admiração e respeito pela atitude do
governo brasileiro, e também pelo heroísmo daqueles que partiram em
apoio aos aliados. O Divinópolis Jornal divulga solenemente o fato
como o mais importante da semana e afirma: “cumpre a Brasil, assim,
com sua palavra, com seu compromisso de honra, porque a história do
Brasil nunca teve a mácula da traição e da covardia” (23/07/1944, nº
94, s/pág.). Percebe-se aqui que o jornal se afasta do discurso cristão
aludido, pois já não se condena todas as formas de guerra.
Esse ponto fica mais claro se analisarmos como o jornal trata a
recusa brasileira em participar da Guerra. A população de Divinópolis via os pracinhas, 28 no total, como “heróis”, embora houvesse
constatação de certa relutância às chamadas de convocação. Isso
fez com que parte dos divinopolitanos expressassem um sentimento
de desprezo e desejo de mau agouro em relação aqueles que não de
dispunham a servir. A condenação é categórica na afirmativa de que
a guerra tem seus horrores, porém ela “trará, por uma fatalidade,
benéfica experiência. E, depois da guerra, saberemos medir a idoneidade de muita gente. Um castigo implacável cairá na cabeça dos
que não souberem amar a terra em que nasceram. O crime de desamôr (sic) á Pátria é o maior dos crimes” (Divinópolis Jornal, 23/
07/1944, nº 94, s/pág.).
O heroísmo dos soldados da FEB, como representantes da dignidade e honra brasileira, merece constante destaque no Divinópolis
Jornal: “O soldado brasileiro, na Europa, com seu sangue, escreve
mais uma epopéia que dignifica o povo do Brasil” (Divinópolis Jornal, 22/10/1944, nº104, s/pág.). Os espíritos de honra e dignidade são
exacerbados constantemente pelos editores. O jornal se torna veícu-
47
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
lo de divulgação e de estímulo à aceitação da participação brasileira
na guerra: “O general Gaspar Dutra, na inspeção que fez ao front
europeu, pôde constatar que os nossos soldados sabem que a vida
vale muito pouco para aqueles que não se divorciam do ideal de
liberdade” (Divinópolis Jornal, 05/11/1944, nº 106, s/pág.).
O jornal A Semana também traz estampado em suas páginas artigos que demonstram o caráter religioso contido em seu discurso e
conclama à população que tenha fé para que as tropas retornem sãs
e salvas. Segundo artigo publicado em suas páginas,
48
São muitas as pessoas preocupadas com a vida dos soldados
Brasileiros nas Fôrças (sic) Expedicionárias. De fato, os perigos serão grandes mas...também para Roma o perigo era
incalculável e se salvou. Quando toda a cristandade rezou
Deus Nosso Senhor nos deu esta graça. Agora pedindo por
nossos soldados, nossos patrícios, irmãos, Êle (sic) protegerá também as nossas tropas (A Semana, 11/06/1944, s/pág.).
O artigo pede que se reze com devoção e que, se as orações por
ventura forem imperfeitas, Santo Antonio será um mediador pela salvação dos soldados, pois, ele também é um oficial do exército nacional.
No período da guerra, juntamente com os soldados brasileiros, foram
padres católicos, designados para a função de aliviar a consciência do
pecado de matar um irmão nos campos de batalha; e também para a
realização de missas pelas almas daqueles que lá faleciam.
Ainda em maio de 1945, os líderes dos aliados, responsáveis pelo
sucesso na defesa da causa do bem, evitando o avanço do nazismo
são exaltados e juntamente com eles, Getúlio Vargas, que proporcionou ao Brasil a glória de estar, sem medir esforços entre os países
que lutaram pelo ideal de progresso no mundo. A seguir, parte da
reportagem:
E hoje, abaixo de Deus, graças a Churchill, Stalin, Truman,
Chiang-Kai-Sheik, DeGaulle e Getúlio Dorneles Vargas (o
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
presidente que tem sabido honrar, elevar e dirigir os destinos
do nosso sempre querido e invencível Brasil) todos símbolos
da ainda moça e extinta 2ª grande guerra e, sob a luz radiosa
e abençoada de uma nova aurora, o Mundo renasce feliz em
venturosa Paz (Divinópolis Jornal, 20/05/1945, nº 132)
Mesmo com a vitória dos aliados, um ano após o término da guerra que se travou no mundo, matando milhões de inocentes, o repúdio
aos resultados proporcionados é demonstrado, destacando a religião
e a fé como conforto para aqueles que acompanharam e principalmente para aqueles que participaram dela:
E a religião acompanhou nos sofrimentos da guerra os escolhidos da Pátria. E como nos dias venturosos de paz, o
conforto da fé não faltou aos combatentes, em todas as situações e fases da peleja. Sempre ao seu lado e expondo-se
aos mesmos perigos, ai estavam os ministros de Deus, em
sua sagrada e voluntária missão de prestar ao Soldado da
Pátria, não só assistência espiritual, como também o socorro material (A Semana, 18/08/1946).
Portanto, os bravos representantes do povo brasileiro enviados
para as frentes de batalha são fortemente reconhecidos e constantemente exaltados em sua imensurável bravura. As preces são sempre
oferecidas em proteção àqueles que barram o avanço nazista, afim
de que ele não se alastre pelo globo, atingindo as terras pacíficas de
sua terra natal. O discurso católico é, assim, utilizado para condenar
a guerra, buscar a vitória aliada e manter a vida do soldados brasileiro. No entanto, como foi mostrado, não existe a mesma compaixão
por aqueles que se recusaram a servir a Pátria brasileira em guerra.
Considerações finais
Sem dúvida, a guerra marcou a vida de milhões de pessoas, foi
um conflito que envolveu diferentes objetivos políticos, religiosos,
49
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
50
sociais e o racismo desencadeado nas mentes dos arianos que acreditavam ser a matriz de uma raça pura, eliminando todos aqueles
vistos como diferentes e inferiores. A guerra deixou suas seqüelas
nos corpos, nas mentes e na vida de todas as pessoas que viveram e
a acompanharam mesmo que a distancia.
Os divinopolitanos, como demonstram as reportagens apresentadas nos jornais analisados, não só discutiam os embates da guerra,
como também foram envolvidos nela pelo envio de pracinhas para a
composição da FEB. Sentiram o medo da carestia, da falta de alimentos e do aumento do custo de vida. Viveram as expectativas pelo
fim da guerra. Acompanharam o desenrolar dos acontecimentos por
ocasião do sítio dos alemães ao Vaticano e ao Papa. Esperaram pela
derrota de Mussolini e de Hitler. Segundo os jornais, notoriamente
católicos, a população assistiu o envio das tropas da FEB à Itália e
rezou por seus conterrâneos. Cada batalha, como o ataque à Pearl
Harbor, a tomada do porto de Cherburgo, a esperança pela paz e
pela queda dos diabólicos mestres da guerra, bateram às portas da
sociedade divinopolitana.
Uma das características básicas da modernidade é a separação
entre tempo e espaço. Nas sociedades pré-modernas, espaço e tempo coincidem, pois as dimensões espaciais da vida social são dominadas pelas relações face a face e atividades localizadas. A modernidade fomenta relações com “ausentes”, através de livros, jornais,
almanaques, telefone, TV, dentre outros. O lugar, assim, torna-se
cada vez mais “fantasmagórico”, afinal ele é influenciado por diversos outros lugares (GIDDENS, 1991). Os acontecimentos locais vividos em Divinópolis, por exemplo, foram e são modelados por eventos ocorrendo a milhares de quilômetros de distância e vice-versa. A
modernidade é, dessa forma, inerentemente globalizante. Sendo assim, a globalização diz respeito à interseção entre presença e ausência, ao entrelaçamento de eventos e relações sociais à distância com
contextualidades locais: “por globalização entendemos o fato de vivermos cada vez mais num ‘único mundo’, pois os indivíduos, os
grupos e as nações tornaram-se mais interdependentes” (GIDDENS,
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
2004, p. 52). Desse modo, os sentidos do acontecimento global e
traumático, que foi a 2ª Guerra, são constituídos e indissociáveis da
pluralidade de narrativas que reorganizam e ressignificam ao longo
do tempo o evento.
Pode-se perceber, desse modo, a partir de Revel (1998) e de nossa
análise, que a escolha de uma “realidade histórica” que seja “micro”
ou “macro” não é mais ou menos “verdadeira”. Na medida em que, o
acontecimento 2ª Guerra Mundial, pensada a partir do olhar que a
impressa de Divinópolis deu ao envio das tropas brasileiras, é feito de
uma pluralidade e complexidade de níveis. Desse modo, a análise empreendida visou reconstruir e recriar partes dessas camadas.
REFERÊNCIAS
FONTES
Jornal A Semana
Divinópolis Jornal
LIVROS E ARTIGOS
BARRETO, Lázaro. Memorial de Divinópolis: história do município. Divinópolis: Prefeitura Municipal de Divinópolis, 1992.
CORGOZINHO, Batistina Maria de Souza. Nas Linhas da Modernidade:
continuidade e ruptura. Divinópolis, MG, 2003.
GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. São Paulo: UNESP,
1991.
REVEL, Jaques (Org.). Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Rio
de Janeiro: FGV, 1998.
REVEL, Jaques. Apresentação In: REVEL, Jaques (Org.). Jogos de escalas:
a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: FGV, 1998.
RICOEUR, Paul. La mémoire, l’histoire, l’oubli. Paris: Seuil, 2000.
VAINFAS, Ronaldo. Micro-História. Rio de Janeiro: CAMPUS, 2002.
51
O TRABALHO DOCENTE NA
CONTEMPORANEIDADE:
MUDANÇAS, REPERCUSSÕES NA
SAÚDE E POSSÍVEIS INTERVENÇÕES
RENATA CRISTINE DE OLIVEIRA
Mestranda em Educação, Cultura e Organizações Sociais
pela FUNEDI/UEMG
52
Resumo: Discute-se nesse artigo a
profissão docente, sob um breve enfoque histórico, buscando esclarecer que, embora no princípio do século XX, tenha se observado o período de ouro do modelo escolar e da
profissão docente, ela não é feita somente de conquistas, mas, também,
de muitas mudanças, principalmente
no que diz respeito à organização do
trabalho. Observa-se que, para além
da enorme insatisfação manifestada
pelos docentes, frente a essas mudanças muitos estão adoecendo. É
aberto no artigo um espaço de reflexões sobre quais ações de promoção
de saúde podem ser adotadas com o
objetivo de auxiliar os docentes em
seu trabalho.
Palavras-chave: profissão docente;
trabalho docente; docentes; contemporaneidade; mudanças; repercussões; saúde; adoecimento; intervenções.
Abstract: It discusses the educational profession in this article, on a
brief historical focus, attempting to
clarify it, although in the beginning
of the century XX, have observed the
golden period of the school model
and of the educational docent, it is
not only done of conquests, but also,
of a lot of changes, mainly, to what
concerns the working organization.
It is observed that, far beyond the
huge dissatisfaction manifested by
the teachers, facing those changes,
many are getting sick. It is open a
space for reflections on which actions produce health can be adopted
with the objective of aiding the teachers in their job.
Keywords: educational profession;
educational work; educational;
contemporariness; changes; repercussions; health; sickness; interventions.
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº
- 6 – p. 52 a 66 – outubro de 2007
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
Introdução
s mudanças ocorridas no contexto social e econômico mun
dial têm tido impacto direto na escola. Elas têm produzido
efeitos perversos e repercussões negativas na vida dos docentes, que se vêem pressionados pela sociedade a cumprir papéis
que, de acordo com Esteve (1999), não correspondem à realidade.
O atual estado em que se encontra o trabalho na escola e, em
particular, o trabalho dos docentes, tem chamado a atenção de muitos pesquisadores devido ao aumento de adoecimento e afastamento
desses profissionais. Emerge a necessidade de se estabelecer ações
de promoção de saúde com o objetivo de auxiliar os docentes em seu
trabalho. Tentar-se-á, nesse artigo, abrir um espaço de reflexões no
qual todas essas questões serão abordadas.
A
Breve histórico sobre a profissão docente
Considera-se importante afirmar que, na história da educação e
da profissão docente, a segunda metade do século XVIII representa
um período-chave. Buscava-se esboçar, por toda a Europa, um perfil
do docente ideal. Indagava-se, dentre outras coisas, quem pagaria o
seu trabalho (JULIA, 1981). Essa indagação fazia parte de um movimento de secularização e estatização do ensino.
De acordo com Nóvoa (1991), o processo de constituição dos
sistemas de ensino nos diversos estados-nações encontra-se estreitamente vinculado ao desenvolvimento dos modos de produção no
sistema capitalista.
Vale mencionar que a escola, ao constituir-se, tem como papel
principal atuar na construção de uma unidade nacional, buscada através de um controle mais rigoroso dos processos educativos, dos processos de produção e reprodução, da forma como os homens concebem o mundo. Esse controle é adquirido pelo processo de estatização do ensino, que acontecia de modo disperso e vinculado às Igrejas. “A estratégia adotada prolongou as formas e os modelos escolares elaborados sob a tutela da Igreja, dinamizados agora por [um corpo
docente] recrutado pelas autoridades estatais” (NÓVOA 1991, p. 15).
53
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
54
Segundo Julia (1981), o processo de estatização do ensino consiste na troca de um corpo docente sob o controle da Igreja por um
corpo docente sob o controle do Estado, sem que transformações
significativas tenham ocorrido nas motivações, nas normas ou nos
valores originais da profissão docente. A origem da profissão docente tem lugar no seio de algumas congregações religiosas que, mais
tarde, transformaram-se em verdadeiras congregações docentes
(NÓVOA, 1991).
Os jesuítas e os oratorianos, ao longo dos séculos XVII e XVIII,
progressivamente, foram configurando um corpo de saberes e de técnicas, bem como um conjunto de normas e de valores específicos, que
contribuíram para a profissionalização dos docentes (NÓVOA, 1991).
A partir do século XVIII, não é permitido ensinar sem uma licença ou autorização do Estado. Essa licença ou autorização é concedida após a realização de um exame no qual os solicitantes devem
preencher algumas condições, tais como: habilitações, idade, comportamento moral, etc.
Na medida em que colabora para a delimitação do campo profissional de ensino e para a atribuição ao professorado do direito exclusivo de intervenção nessa área, a licença ou autorização pode ser
vista como um suporte legal ao exercício da atividade docente (NÓVOA, 1991).
No século XIX, a expansão escolar é acentuada sob a pressão de
uma grande busca social. Vê-se, nesse século, graças à conjugação
de vários interesses advindos do Estado e dos docentes, a criação de
instituições de formação. Além disso, ocorre a feminização do professorado que, segundo Nóvoa (1991), é um fenômeno bem visível
na virada do século.
No princípio do século XX, “a época de glória do modelo escolar
é também o período de ouro da profissão docente” (NÓVOA, 1991,
p. 19). Entretanto, a profissão docente não é feita somente de conquistas e progressos, mas, também, de lutas e conflitos, aproximações e distanciamentos e muitas mudanças, principalmente no que
diz respeito à organização do trabalho.
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
Significativas mudanças no trabalho docente
Percebe-se que:
[...] na medida em que os docentes vão se atrelando ao Estado empregador e tornando-se assalariados, acabam por
distanciarem-se das comunidades e tendo uma ação cada
vez mais direcionada para a consolidação do Estado e para
o atendimento das necessidades políticas, ideológicas, pedagógicas e culturais do capitalismo emergente (GONÇALVES, 2003, p. 24).
Conseqüentemente,
as formas de desenvolvimento da organização escolar assumem cada vez mais um modelo racional de organização análogo às formas de organização do trabalho em outros setores da produção, particularmente o fabril. Vão absorvendo,
assim, com o tempo, a lógica gerencial-capitalista do trabalho [...] (HYPÓLITO, 1997, p. 34)
Pode-se dizer que, desde os primórdios da escolarização moderna, a organização racional do trabalho docente está presente, podendo ser vista em obras de didática e métodos de ensino que acompanharam os movimentos educacionais. Esse tipo de organização trouxe algumas implicações para o trabalho docente e foram analisadas
por Sacristán (1991).
Sacristán (1991) afirma que a burocratização1 existente no modo
de organização do trabalho escolar condiciona as práticas dos docentes a prestar mais contas às exigências institucionais que a seus
alunos. Essa postura contribui para inibir a autonomia e a criatividade profissional dos docentes.
Salienta Enguita (1991) que, se por um lado, há um movimento de
profissionalização docente2 com o aumento das demandas e das competências exigidas, a proletarização é o seu contraponto.
55
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
56
Enguita (1991) acredita que o trabalho docente está passando por
um profundo processo de proletarização3, entendido como a perda
gradativa do controle do processo de trabalho e de autonomia das
ações, em função da centralização das decisões sobre os resultados
do mesmo, além do aspecto relativo à venda da força de trabalho
como mercadoria4.
Os docentes vendem a sua força de trabalho para suprirem suas
necessidades materiais e afetivas, mas o saldo dessa equação nem
sempre é positivo. Nem sempre “o valor da força de trabalho é o
valor dos meios de subsistência necessários para a conservação de
seu possuidor” (MARX, 1975, p. 31).
Vasconcellos (1995) enfatiza que, na contemporaneidade, falta
clareza aos docentes quanto à finalidade daquilo que fazem. Para
ele, os docentes vivenciam uma situação de alienação, expropriação
do seu saber. Tudo isso os deixa à mercê de pressões, de ingerências, “[...] de modelos que são impostos, como ‘receitas prontas’, impossibilitando um trabalho significativo e transformador [...]” (VASCONCELLOS, 1995, p. 23). E, conseqüentemente, leva-os “[...] do
sofrimento ao desgaste, ao desânimo, ao descrédito na educação, à
acomodação, à desconfiança, chegando mesmo à falta de companheirismo e de engajamento em lutas políticas e até sindicais” (VASCONCELLOS, 1995, p. 23).
Gonçalves (2003) comenta que uma outra mudança visível no
trabalho docente é a sua intensificação. Essa intensificação, muitas
vezes, concretiza-se através da imposição e sobrecarga de atividades e tarefas, presença de mecanismos de cobrança e pressão por
certos resultados e a perda do poder aquisitivo, a falta de tempo para
investir no próprio trabalho e o isolamento do trabalho docente na
escola.
A intensificação do trabalho docente também pode acontecer como
uma conseqüência da complexificação, ao trazer para os docentes
novas demandas para as quais não receberam preparação e nem
tampouco as condições de trabalho foram adequadas.
Constata-se que o trabalho docente já não é mais definido somen-
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
te como atividade em sala de aula. Compreende, agora, a gestão da
escola no que diz respeito à dedicação dos docentes às atividades de
planejamento, elaboração de projetos, discussão coletiva do currículo e da avaliação. Por força da legislação e dos programas, os docentes passam a dominar práticas e saberes antes desnecessários
ao exercício de suas funções (OLIVEIRA, 2003).
Os programas de reforma implementados nos anos 1990 e na
atual década, no Brasil, tiveram como eixo principal a educação para
a eqüidade social5. Formar os indivíduos para a empregabilidade passou a ser um imperativo dos sistemas escolares (OLIVEIRA, 2004).
Nesse contexto, espera-se da escola e, principalmente dos docentes,
a formação de um profissional flexível, polivalente, de acordo com os
novos padrões de qualificação. Os docentes, insatisfeitos, se convencem de que devem responder a essas exigências.
E os docentes adoecem
Para além da enorme insatisfação dos docentes, deve-se ressaltar que muitos estão adoecendo. O caráter quase redentor atribuído
à educação, como se somente a partir dela fosse possível iniciar a
construção de novos paradigmas de convivência na sociedade, está
recaindo de forma pesada sobre os ombros dos docentes.
Oliveira (2004) afirma que os docentes, de um modo geral, são
vistos como os principais responsáveis pelo desempenho dos alunos,
da escola e do sistema. Atribui-se aos docentes toda a responsabilidade do fracasso escolar, deixando de perceber que o que ocorre na
sala é reflexo do conjunto de determinações a que a escola está
submetida.
É importante ressaltar que, além do ambiente altamente competitivo, do aumento da sofisticação tecnológica e do processo de globalização da economia, a responsabilização dos docentes também se
apresenta como uma fonte importante de sofrimento psíquico para
os mesmos.
Se os docentes não percebem o reconhecimento de seu trabalho,
a responsabilidade exigida passa a ser percebida como uma sobre-
57
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
carga experimentada, geralmente, como um conflito, cuja repercussão é negativa em sua saúde.
Recordemo-nos, nesse momento, de que trabalhar pode ser fonte
de satisfação, mas também, em determinadas situações, pode produzir efeitos negativos sobre a saúde e o bem-estar. Em se tratando da
docência, Dejours (1992) afirma ser essa uma profissão de sofrimento.
Codo (1999), através de seus estudos sobre a saúde mental dos
docentes em todo o país, revelou que 48%, praticamente a metade
deles, apresentavam algum sintoma de burnout.
58
Burnout foi o nome escolhido, em português, algo como “perder o fogo”, “perder a energia” ou “queimar (para fora)
completamente” (numa tradução mais direta). É uma síndrome através da qual o trabalhador perde o sentido da
sua relação com o trabalho, de forma que as coisas já não o
importam mais e qualquer esforço lhe parece ser inútil
(CODO, 1999, p. 238).
Também se constatou, no estudo de Codo (1999), que um em
cada quatro docentes tinha exaustão emocional. Codo (1999) encontrou correlação positiva entre maior exaustão emocional e o tipo de
gestão denominada de tradicional.
Um outro estudioso do assunto é Esteve (1999). O termo “malestar docente” é usado por ele para designar os efeitos permanentes
de caráter negativo que afetam a personalidade dos docentes, como
resultado das condições psicológicas e sociais em que a docência é
exercida. Esse termo pode ser caracterizado pela morte do prazer de
educar, que se manifesta no estado de saúde e doença dos docentes.
Na pesquisa de Esteve (1999), os problemas de saúde dos docentes foram estudados de forma exaustiva no período de 1982 a 1984 e
as causas de licença mais importantes foram os diagnósticos de traumatologia, geniturinários e obstétricos e os neuropsiquiátricos.
Esteve (1999) aponta como indicadores do mal-estar docente:
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
fatores secundários (contextuais), tais como: a modificação no papel
dos docentes e dos agentes tradicionais de socialização; a função
dos docentes (contestação e contradições); a modificação do contexto social; os objetivos do sistema de ensino e o avanço do conhecimento; a imagem dos docentes.
Ainda de acordo com Esteve (1999), dentre as principais conseqüências do mal-estar docente, pode-se citar o absenteísmo trabalhista, o abandono da profissão docente e o adoecimento.
A investigação de Vasconcellos (1996) também nos fornece dados importantes relativos à saúde dos docentes.
Vasconcellos (1996) diz que a neurose e a depressão têm afastado, em média, 33 docentes por dia letivo, das salas de aula no Estado
de São Paulo. Através de sua investigação, verificou-se que:
[...] a nível mundial, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) aponta que, em termos de doença ocupacional
– doença adquirida em decorrência do exercício da profissão –, [...] os docentes só perdem para os mineiros, enquanto categoria profissional, incluindo aí desde alergia a giz,
calos nas cordas vocais, varizes, gastrite, labirintite, reumatismo e até esquizofrenia (VASCONCELLOS, 1996, p. 104).
Interessa enfatizar que, na maioria dos estudos realizados, no Brasil
e no exterior, sobre a saúde dos docentes, há um consenso quanto ao
caráter altamente estressor desta profissão. Os estudos apontam a
importante contribuição dos aspectos relacionados ao ambiente escolar e à organização do processo de trabalho na produção de diferentes formas de adoecimento.
As condições de trabalho, ou seja, as circunstâncias sob as
quais os docentes mobilizam as suas capacidades físicas,
cognitivas e afetivas para atingir os objetivos da produção
escolar podem gerar sobreesforço ou hipersolicitação de
suas funções psicofisiológicas. Se não há tempo para a re-
59
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
cuperação, são desencadeados ou precipitados os sintomas clínicos que explicariam os índices de afastamento do
trabalho por transtornos mentais (GASPARINI; BARRETO;
ASSUNÇÃO, 2005, p. 192).
60
Possíveis intervenções
Frente aos fatos expostos, pergunta-se: O que pode ser feito? Há
saída?
Através do adoecimento, de uma forma implícita, os docentes
estão dizendo: “socorro”, “me ajude”, “estou aqui”.
Torna-se salutar refletir sobre quais ações de promoção de saúde
podem ser adotadas com o objetivo de auxiliar os docentes em seu
trabalho. Na visão de Machado e Porto (2003), a principal base para
a elaboração de novas práticas de promoção de saúde é a compreensão dos processos, no que se refere aos determinantes e condicionantes da saúde.
Gonçalves (2003) comenta que sensibilizar os alunos, [os pais e a
sociedade como um todo], para os problemas relacionados à saúde
dos docentes é uma ação que pode facilitar a concretização de estratégias de autopreservação dessa categoria profissional.
Por Gonçalves (2003) é sugerido que se discuta nas escolas questões referentes à saúde no trabalho. Ele acredita que, embora a escola seja um local onde acontece a formação da classe trabalhadora,
campanhas de prevenção às doenças no trabalho não são desenvolvidas nela.
Devido à sua abrangência, o setor educacional revela-se como:
[...] um aliado importante para a concretização de ações de
promoção da saúde voltadas para o fortalecimento das capacidades dos indivíduos, para a tomada de decisões favoráveis à sua saúde e à da comunidade, para a criação de
ambientes saudáveis e para a consolidação de uma política
intersetorial voltada para a qualidade de vida, pautada no
respeito ao indivíduo e tendo como foco a construção de
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
uma nova cultura da saúde (MINISTÉRIO DA SAÚDE. SECRETARIA DE POLÍTICAS DE SAÚDE, 2002, p. 533).
Não obstante, a escola, enquanto promotora de saúde, precisa
incluir, também, o bem-estar dos docentes. Convém dizer o quanto é
interessante que os docentes:
se convertam em modelos de trabalhadores que respeitam
os limites do próprio corpo e fazem respeitar seu direito a
um ambiente de trabalho saudável, pois se constituem em
importante referência de profissional para seus alunos. O
seu oposto, [...] pode contribuir para configurar a naturalização dessa situação [...] naturalização da doença ocupacional de um modo geral, que poderia passar a ser tomada
pelos alunos como algo inerente à escolha de uma ocupação. Nessa perspectiva, promover a saúde docente pode
contribuir na promoção da saúde de futuros trabalhadores
e por isso tem sua importância multiplicada (GONÇALVES,
2003, p. 168-169).
Entende-se que o bem-estar dos docentes na contemporaneidade
depende de múltiplos fatores externos, mas também, e muito, deles
próprios, visto que os mesmos podem dar vários passos para melhorar
a sua situação e caminhar no sentido do seu bem-estar profissional.
Uma alteração radical da organização do trabalho visando à implementação de um trabalho mais coletivo e a quebra da rigidez disciplinar, tendo por fim a saúde [dos docentes] e a melhoria na qualidade da educação exige uma
participação autônoma e ativa do coletivo [dos docentes].
No caso da saúde, soluções individuais são limitadas em
sua eficácia, geralmente não perduram e freqüentemente
geram sobrecarga e culpa. A relação saúde e trabalho [dos
docentes] diz respeito ao coletivo [...], pois os riscos são
61
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
comuns [...], logo as soluções para os problemas advindos
desta relação devem, igualmente, ser construídas coletivamente, facilitando assim a promoção das condições para
que as mudanças necessárias se viabilizem (GONÇALVES,
2003, p. 170).
62
Observa-se que as estratégias de intervenção de maior eficácia
são as que partem dos docentes. Eles possuem um conhecimento
mais aprofundado de suas atividades.
Avançando um pouco mais, pode-se citar a estratégia criada por
Montero (2003) para privilegiar a saúde e qualidade de vida dos docentes. Segundo ele, uma estratégia positiva que traz benefícios significativos aos docentes é propiciar o fortalecimento (empowerment)
pessoal e coletivo, desenvolvendo capacidades de lidar com o estresse, valorização pessoal e grupal, controle das situações de conflito,
modificando o contexto e canalizando as necessidades e aspirações.
A sensibilização dos gestores/administradores para a questão da
situação das escolas e da produção de saúde/doença, através de
reuniões com representantes das Secretarias de Educação e das
Secretarias de Saúde dos Municípios, a formação de um grupo de
trabalho que vise construir propostas para uma política de saúde para
os docentes, bem como a criação de um fórum de debates sobre a
instituição das Comissões de Saúde para os docentes, seja da rede
municipal ou da rede estadual de ensino, também são estratégias que
podem ser adotadas.
Considerações finais
Partindo da concepção de Machado e Porto (2003, p. 124) de que
“vigilância é informação para ação, pressupondo que as ações pertençam ao campo da vigilância”, esse artigo não teve a pretensão de
esgotar o assunto, mas sim, de abrir um espaço para reflexões que
não devem parar por aqui, pois há muito que se fazer no campo da
saúde dos docentes.
Saúde e Qualidade de Vida são dois conceitos contemporâneos,
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
presentes em todos os contextos vitais: família, escola, trabalho, mídia. E, especificamente no âmbito escolar, constitui-se em prioridades almejadas frente ao quadro de mal-estar e adoecimento apresentado por muitos docentes.
Por último, destaca-se que a transdisciplinaridade pode contribuir
para que a relação saúde-trabalho dos docentes seja, em sua complexidade, entendida.
Pois,
[...] a transdisciplinaridade é complementar à aproximação
disciplinar: faz emergir da confrontação das disciplinas dados novos que as articulam entre si; oferece-nos uma nova
visão da natureza e da realidade. A transdisciplinaridade
não procura o domínio sobre as várias outras disciplinas,
mas a abertura de todas elas àquilo que as atravessa e as
ultrapassa (FREITAS; MORIN; NICOLESCU, 1994, p. 2).
63
A transdisciplinaridade pode facilitar o delineamento de novos serviços e a elaboração de ações eficazes em Saúde Coletiva direcionadas aos docentes. “A transdisciplinaridade comparece como uma
abordagem alternativa para a produção de conhecimento” (ALMEIDA FILHO, 2000, p. 13).
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NOTAS
1
O termo burocratização é usado por Sacristán (1991) no intuito de mostrar
que, em sua opinião, o desenvolvimento das ações pedagógicas e administrativas das escolas está cada vez mais vinculado às demandas e exigências
institucionais. Há um excesso de normas e regulamentos a serem seguidos
pelos docentes. O conteúdo técnico dos currículos e a sua elaboração prévia por especialistas, bem como uma maior regulamentação da atividade
pedagógica seriam, segundo Gonçalves (2003), fatores de desqualificação
dos docentes.
2
A profissionalização, para Enguita (1991), não deve ser entendida como
sinônimo de capacitação, qualificação, conhecimento, formação. Enguita
(1991) diz que a profissionalização refere-se a uma posição social e ocupacional. Refere-se à inserção em um determinado tipo de relações sociais de
produção e de processo de trabalho. Na opinião de Enguita (1991), os profissionais docentes, diferentemente de outras categorias de trabalhadores,
são autônomos. Não se submetem à regulação.
3
No que se refere ao processo de proletarização, pode-se dizer que Enguita
65
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
(1991) emprega essa expressão exatamente no sentido oposto ao que correntemente é dado à profissionalização. A proletarização pode ser caracterizada pela perda de controle do processo de trabalho pelos docentes.
4
Deve-se salientar que, nos Estados capitalistas modernos, as pessoas
buscavam para si os bens que julgavam necessários para a sua sobrevivência. Esses bens eram alcançados, de forma única, pela compra e venda de
mercadorias. Neste sentido, para Marx (1975, p. 24), a mercadoria, inicialmente, “é vista como um objeto externo, uma coisa que satisfaz uma necessidade qualquer”.
5
Pode-se dizer que a educação geral revela-se como um requisito essencial
ao emprego formal e regulamentado. Para Oliveira (2004, p. 1129), “[...] ela
deveria desempenhar papel preponderante na condução de políticas sociais de cunho compensatório, que visem à contenção da pobreza”.
66
IMAGENS E SUBJETIVAÇÕES
TRAÇADAS PELOS GRAFFITI NAS
CIDADES CONTEMPORÂNEAS
GESIANNI AMARAL GONÇALVES
Designer, especialista em Arte e Educação, mestre em Psicologia,
docente da FUNEDI/UEMG e da PUC Minas
E-mail: [email protected]
Resumo: O presente trabalho apresenta uma investigação acerca das
correlações estabelecidas entre os
processos de subjetivação e as imagens produzidas por determinados
tipos de graffiti presentes na cidade
de Belo Horizonte. O quadro teórico
que serviu de fundamentação para a
análise desenvolvida foi constituído
por conceitos oriundos da Filosofia
da Diferença proposta por Gilles Deleuze em consonância com Félix Guattari e compartilhada por Suely Rolnik. Como método, optamos pela cartografia dos processos de subjetivação envolvidos nos graffiti originários do estudo de caso efetuado, a
partir das linhas de ação que perpassam esse movimento e possibilitam
registrar a ação dos graffiti que conduzem tanto a movimentos de subordinação quanto a movimentos de resistência à produção em série de subjetividades.
Palavras-chave: processos de subjetivação; imagens; graffiti; cartografia; filosofia da diferença.
Abstract: The present work presents
an inquiry concerning the correlations established between the processes of subjectivity and the images
produced for determined types of
graffiti in the city of Belo Horizonte.
The theoretical picture that served
of recital for the developed analysis
was constituted by deriving concepts of the Philosophy of the Difference proposal for Gilles Deleuze in
accord with Félix Guattari and shared by Suely Rolnik. As method, we
opt to the cartography of the involved processes of subjectivity in graffiti originary of the study of effected
case, from the action lines that crossing this movement and make possible to register the action of graffiti
that the movements of resistance to
the production in series of subjectivities lead the subordination movements in such a way how much.
Key-words: processes of subjectivity; images, graffiti; cartography;
philosophy of the difference.
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº
- 6 – p. 67 a 90 – outubro de 2007
67
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
“O desejo é o sistema de signos a-significantes com os quais
se produz fluxos de inconsciente no campo social [...] o
desejo é revolucionário, porque sempre quer mais conexões,
mais agenciamentos.” (DELEUZE)
O
68
mundo contemporâneo está cada vez mais povoado de imagens, signos e sinais – lembremos que já no século passado,
poetas e escritores viam as cidades como uma floresta de
símbolos. No entanto, de lá para cá, os signos foram se multiplicando
ainda mais no espaço urbano, tais como sinais de trânsito, outdoors,
luminosos, fachadas, cartazes comerciais, manifestações sociais e
políticas, monumentos históricos e uma profusão de imagens.
Tal diversidade imagética é maior nos grandes centros urbanos
onde os espaços pelos quais circulamos cotidianamente se apresentam cada vez mais marcados por inscrições das mais variadas ordens: imagens poéticas, pornográficas, andróginas, fluídas, efêmeras, imagens eletrônicas, comerciais, parietais, contestatórias, coloridas, cinzas, pretas ou brancas, enfim, imagens que formam uma a
uma as condições de representação imagética das cidades contemporâneas. Múltiplas imagens que podem apontar para um tipo de
organização social, para uma apropriação estratégica do espaço, para
a política ou para a economia dominante de um local e principalmente, para os processos de subjetivação presentes nas sociedades em
que essas imagens se apresentam.
Este vasto campo de atuação no qual as imagens se inserem, se
multiplicam e se diversificam resulta em uma complexidade do olhar
no contemporâneo e nas implicações que esse ato carrega. Face a
esse quadro, Barros (2006) estabelece um tríplice significado do olhar:
o olhar como sensibilidade e sentido, o olhar como constituinte do
indivíduo e como configurador da cultura. O autor nos diz que: “o
olhar funda o ser e a cultura, o eu e o outro.” (2006, p.93)
Isto posto, este artigo pretende, partindo da lógica da sensação
deleuziana, refletir sobre a existência de signos a-significantes nas
imagens dos graffiti e em seus movimentos maquínicos de produção
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
de subjetividades; principalmente, naquelas que escapam às homogeneizações sem que isso impeça, neste texto, o pensamento sobre a
constituição de modos de ser subordinados ao sistema de produção
dominante. Não se trata, portanto, de idealizar a capacidade de resistência desse fenômeno na contemporaneidade, mas de propor tarefa mais realista, porém também complexa, em que se busca esclarecer e cartografar os movimentos e as linhas de subjetividade que
compõem essa manifestação estética.
É necessário pontuar que os graffiti, objeto de nosso estudo, referem-se àqueles que estão diretamente relacionados com o campo das
artes visuais. Aquelas expressões que utilizam imagens, cores e composições oriundas da pintura em detrimento daquelas que somente usam
a escrita e os tags. Portanto, os graffiti, por nós pesquisados são
praticados por pessoas que são consideradas autodidatas ou possuem
vínculo com escolas de arte ou almejam cursar um itinerário artístico1.
Por isso, optamos por manter o termo em italiano, com a finalidade de
interrogar, com mais propriedade, um estilo que também é conhecido
como Aerosol Art, bem como, preservar a intensidade significativa
com a qual se apresenta dentro de um contexto que busca aproximação estética com as demais formas de manifestação artística.
Esclarecemos que, do nosso referencial teórico, utilizamos da filosofia da diferença o conceito de processos de subjetivação optando por pensá-lo em termos de linhas. Isso porque Deleuze afirma
que “indivíduos ou grupos, somos feitos de linhas” (1998, p.145) e
analisa um agenciamento ou uma situação qualquer, mediante uma
diferenciação do conceito de linha, oposto ao sistema de pontos e
proposições. Deleuze e Guattari (1996) dizem que somos seres segmentados, em todos os lados e todas as direções, espacial e socialmente. Toda sociedade e todo indivíduo, são atravessados por duas
segmentaridades ao mesmo tempo, uma molar e outra molecular. A
esse respeito os autores comentam:
Em suma, tudo é político, mas toda política é ao mesmo
tempo macropolítica e micropolítica. Consideremos con-
69
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
juntos do tipo percepção ou sentimento: sua organização
molar, sua segmentaridade dura, não impede todo um mundo de microperceptos inconscientes, de afectos inconscientes, de segmentações finas, que não captam ou não sentem
as mesmas coisas, que se distribuem de outro modo, que operam de outro modo. Uma micropolítica da percepção, da afecção, da conversa, etc. (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p.90)
70
Os segmentos são diferentes e remetem a diferentes grupos ou
indivíduos que passam continuamente de um segmento a outro, assim, as figuras de segmentaridade, binária, linear e circular, são coexistentes e passam umas nas outras, formando um emaranhado de
linhas. Desse modo, pensamos que a filosofia de Deleuze e Guattari
busca mapear as linhas que são capazes de agir na diferença, ou
seja, liberar a diferença de sua subordinação à identidade, uma vez
que as linhas são fluxos em constante estado de experimentação,
processos em construção contínua.
Nessa perspectiva a subjetividade pode ser pensada como a coexistência de três tipos de linhas que a compõe e que definem inúmeras relações com o espaço e com o tempo. Portanto, somos feitos de
linhas duras, de linhas flexíveis e de linhas de fuga que coexistem e
constituem um campo de forças. As linhas duras trazem o segmento
molar que quer determinar “quem somos”, as flexíveis são desvios
das linhas duras que buscam modificar o estrato que nos identifica e
as linhas de fuga são aquelas que propiciam agenciamentos, novas
relações e conexões que conduzem a processos de subjetivação inventivos.
Um olhar diferente às subjetividades
Pensar a subjetividade a partir da atuação dessas linhas de ação é
pensar a subjetividade pelo viés da imanência e por um sistema complexo e heterogêneo que não designa um “quem somos” de essência
imútavel. Ter em mente a singularização para além da individuação é
compreender que a subjetividade não se caracteriza como algo que
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
diz respeito apenas ao sujeito e suas formas de representação. Experimentar uma subjetividade processual e transversal é estar aberto
também à conexões com o inumano, com signos a-significantes, com
a capacidade de afetar e ser afetado por linhas de invenção, por
linhas de subjetivação.
O homem tem se configurado de diversas maneiras pelas histórias, pelas geografias, pelos tempos e pelos espaços. Mutável, versátil,
plástico, cambiante, aberto e inacabado, é assim que pensamos o ser
humano. As formações sociais baseadas na economia capitalista,
desenvolvidas nos últimos três séculos no ocidente, inventaram novas tecnologias que contribuíram para a moldagem de corpos e subjetividades. Nesse conjunto de processos contínuos instigados e alimentados pelo capitalismo, novas redes de relações são formadas
mantendo um jogo de forças constantes em que a singularização e a
homogeneização se produzem e se reproduzem concomitantemente.
Tal fenômeno aponta para a criação de novos modos de subjetivação, capazes de produzir os modos das relações humanas, as suas
condutas e os seus valores. Novas formas de viver, de sentir, de
pensar, de desejar, enfim, novos modos de ser.
A análise do modo como cada indivíduo se relaciona com os regimes de signos próprios à sua época, da maneira como cada vida
experimenta o conjunto de regras que define sua sociedade nos fornecem dados para a compreensão dos processos de subjetivação.
Deste modo, a subjetivação, ou seja, a produção de subjetividade
pode ser considerada como um conjunto de condições que torna possível que instâncias individuais ou coletivas, corporais ou incorporais,
estejam aptas a emergir como território existencial. Utilizamos as
idéias de Guattari (1992) quando pensamos a subjetivação como um
processo de agrupamento, de composição, de agenciamentos heterogêneos de corpos, práticas, juízos e técnicas. Nesse sentido, a subjetividade escapa à forma tradicional de sujeito da consciência. Sendo assim, podemos dizer que há diversas formas de existir que se
instauram fora da consciência e, ao se pensar nos processos de subjetivação, devemos considerar também os diversos componentes que
71
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
não passam diretamente pelo sujeito. Tais como, a indústria da mídia,
os componentes semiológicos (de produção de sentidos) significantes e a-significantes e as máquinas tecnológicas de informação e
comunicação.
Pensar a subjetividade como uma dobra do exterior implica em
despojar o sujeito de uma identidade essencialista e de uma interioridade absolutista, ampliando o caráter aberto, inacabado e múltiplo do
sujeito que pode escapar criando linhas de fuga aos saberes e poderes que o subjetivam. Deleuze (1992) a partir de idéias de Foucault,
assim define os processos de subjetivação:
72
Um processo de subjetivação, isto é, uma produção de modo
de existência, não pode se confundir com um sujeito, a menos que se destitua este de toda interioridade e mesmo de
toda identidade. A subjetivação sequer tem a ver com a pessoa: é uma individuação, particular ou coletiva, que caracteriza um acontecimento (uma hora do dia, um rio, um vento, uma vida...) É um modo intensivo e não um sujeito pessoal. É uma dimensão específica sem a qual não se poderia
ultrapassar o saber nem resistir ao poder (DELEUZE, 1992,
pp.123-124).
É a partir dessas considerações acerca da subjetividade e dos
componentes capazes de constituí-la que analisamos o graffiti, com
o intuito de cartografar os processos de subjetivação que possam
estar envolvidos nesse fenômeno. Pensamos o graffiti como um
agenciamento de enunciação capaz de subverter a decodificação de
códigos lingüísticos e culturais e promover a recodificação de culturas locais e signos semióticos. Exercendo essa função, consideramos que possam ser apresentados como componente de um processo de subjetivação.
Sibilia (2002) em análise à obra de Foucault, nos lembra que é na
passagem para a era pós-industrial que observamos uma transição
do “produtor disciplinado”, ou seja, o sujeito das fábricas, para o “con-
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
sumidor controlado”, o sujeito das empresas. Nessa mudança, a produção econômica assumiu novas feições liberando novas forças com
o esvaziamento das antigas categorias de proletariado de classe e de
esquerda. Pensamos que as forças liberadas com essa transição,
são forças capazes de atuar nas linhas que nos constitui, o que faz
com que reflexões acerca desse momento em que vivemos, não possam ser efetuadas de maneiras isoladas. O que queremos dizer é
que instâncias que em outros tempos eram destinadas a outras funções, como as atividades relacionadas à criação e ao entretenimento, adquiriram outra dimensão na atualidade. E com isso tornam-se
objetos de análise a fim de se pensar novos modos de resistência à
produção capitalista dominante.
A atualidade nos apresenta um cenário em mutação, em que as
práticas de resistência características das sociedades disciplinares,
como ações sindicais, greves e passeatas, perderam efetividade. Nessa
nova fase da economia capitalista, novos controles regem os corpos
e as subjetividades, novos mecanismos de poder surgem e, por conseguinte, novas práticas de resistência, novas modalidades de contrapoder entram em cena. A predominância do trabalho imaterial em
que a inteligência, a criatividade e a imaginação são solicitadas do
trabalhador, em detrimento de sua força física e seus músculos, nos
mostra que o que antes era do domínio privado do sonho e das artes
foi solicitado a trabalhar no circuito econômico e com eles o capitalismo passou a mobilizar a subjetividade numa dimensão jamais vista.
É nesse novo cenário sócio-econômico que analisamos em que
medida a criação cultural – entendida aqui como a invenção de sentido, de linguagens e valores por intermédio das expressões estéticas
do graffiti – e a criação subjetiva se conjugam e são apropriadas por
dispositivos de expropriação. Ou, ao contrário, instauram processos
positivos e singularizantes capazes de funcionar como resistência
num cenário de homogeneização.
Nesse contexto apontamos o graffiti como expressão estética
capaz de subverter certos códigos por intermédio de seu jogo de
signos e sentidos e observamos os traçados das linhas que perpas-
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Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
sam não somente as ações dos graffiteiros, mas que se prolongam
na relação entre as pessoas e as imagens inscritas nas ruas. Interessam-nos os fluxos, os encontros resultantes do poder de afetar e ser
afetado que conduzem essas subjetividades a processos complexos
em que diversos fatores entram em jogo e produzem novas maneiras
de pensar e agir na atualidade.
74
Criação cultural & criação subjetiva: cartografias possíveis?
As relações entre política e cultura foram redesenhadas a partir
das transformações ocorridas no capitalismo pós-fordista. Rolnik et
al (2002) afirmam que a dimensão cultural ganhou uma centralidade
inédita no quadro de um capitalismo dito “cultural” ou “pós-moderno” em que a subjetividade surge no cerne de uma economia imaterial. Segundo essa lógica, a maioria das atividades relacionadas à
cultura foi esvaziada de sua função de problematização para se tornar alvo de interesses estritamente mercadológicos.
Uma vez que o graffiti surge como a expressão de uma cultura
que visa expressar o coletivo urbano em sua diversidade e desigualdade, destacamos nosso interesse pelo papel da cultura no quadro
contemporâneo do capitalismo. No nosso entender, a cultura veiculada por esse movimento é marcada por um tipo de manifestação na
qual a problematização retoma seu papel no âmbito da criação. Isso
ocorre quando, por exemplo, as imagens do graffiti são capazes de
desestabilizar a coesão social imposta pelo status quo que oculta e
reprime as diferenças em prol da homogeneização das subjetividades. A coesão social pode ser exemplificada, nesse contexto, pela
divisão dos espaços no ambiente urbano, onde vemos um espaço
oficial, projetado pelas instituições e construído sem considerar o uso
que os cidadãos dariam a ele e um outro que pode ser considerado
como o espaço da diferença, uma vez que ele é usado e inventado na
medida em que o cidadão o nomeia ou o inscreve.
Ao inscrever suas imagens nos espaços urbanos, os graffiteiros
transitam entre fronteiras tensas, negociando com outras imagens da
cidade como a pichação, a publicidade e os escritos revolucionários.
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
Por intermédio das imagens nômades que circulam pela cidade, a
manifestação do graffiti traz à tona novamente a problematização
na dimensão cultural, uma vez que nomeia e inventa novas funções
para os espaços oficiais da cidade. Agindo assim, percebemos que
suas imagens podem funcionar como estratégia de enunciação que
articulam elementos presentes mais nas relações afetuais e menos
nos acordos sociais.
Nesse contexto, a relação entre cultura e subjetividade deve ser
pensada no interior da revolução tecnológica e produtiva, considerando seus efeitos sociais, afetivos e as linhas de força que essa
reconfiguração libera. Nas novas formas de produção capitalista,
em que o desenvolvimento tecnológico evolui constantemente, o tema
recorrente é a predominância do trabalho imaterial. Um tipo de trabalho que solicita do trabalhador não mais seus músculos ou força
física, mas sua inteligência, sua força mental, sua criatividade e sua
imaginação. Tudo que antes era do domínio privado, do sonho, das
artes e das imagens foi posto a trabalhar no circuito econômico.
O resultado dessa nova configuração faz com que o capitalismo
mobilize a subjetividade numa escala jamais vista. Com isto, a força
de invenção se tornou a principal fonte de valor e se disseminou por
toda a parte, não se restringindo mais somente aos espaços consagrados à produção. Tal centralidade da invenção no domínio da produção trouxe consigo a tendência hegemônica de uma serialização
nos mais diversos âmbitos: das formas de socialização, de entretenimento, de circulação cultural e de informação.
No atual contexto da relação entre capital e subjetividade, Pelbart
(2003) diz que o capital mobiliza e faz trabalhar a seu favor as instâncias mais íntimas de nossa existência. Para tanto, ele utiliza, como
dispositivo de homegeneização das subjetividades, as novas tecnologias da informação, nas quais consideramos a imagem o elemento
central. As imagens apropriadas por esse sistema podem agir na
captura de forças inventivas objetivando a instauração de territórios
em que a palavra de ordem é a padronização das subjetividades.
Mas, essas mesmas imagens que se encontram amplamente disponí-
75
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
veis nas mais diversas esferas sociais, utilizando como vetor principal a cultura das mídias e a cultura digital, são também capazes de
operar a força irruptora dos desejos. Agindo de forma a estimular
novas maneiras de viver e se constituir, uma vez que podem intensificar as potências individuais.
Rolnik et al (2002) falam da dimensão semiótica do capitalismo,
em que a velocidade da digitalização generalizada ressemiotiza todos
os âmbitos da vida. Desta forma, dizemos que o excesso de imagens
que vemos hoje nas mais variadas instâncias, apresenta uma face da
semiotização na qual a cultura tende em submeter-se à lógica da
sociedade do espetáculo. Seguindo essa linha de raciocínio, Rolnik et
al (2002) colocam a seguinte questão:
76
Se tomamos a capacidade da arte [...] fundamental para as
sociedades contemporâneas, de socializar as próprias sensações, fazendo comunicar num comum sensível a diferença
dos indivíduos, não estaríamos na contracorrente da narrativa por demais unilateral da sociedade de espetáculo,
ou mesmo da sociedade de controle, reabrindo o campo
para outras cartografias? (ROLNIK et al, 2002, p.8)
Parafraseando os autores indagamos se as imagens e as cores
dos graffiti possuem a capacidade de provocar sensações capazes
de agenciar novos modos de ser. Será que a manifestação de uma
cultura popular que nasce no seio do cotidiano urbano, que possui
como berço as ruas que abrigam a rotina da vida citadina e que,
normalmente, utilizam como suporte os espaços mal cuidados, feios
e sujos da cidade, possuem condições para subverter as imagens
produzidas pelas novas tecnologias da informação, que visam à homogeneização dos espaços, das cidades, dos indivíduos e, o que é
pior, dos desejos?
É sabido que a atualidade exibe o fim dos suportes e das esferas
de atuação em vários domínios. Não se produz mais somente nas
fábricas, não se cria só na arte e não se resiste só na política. Neste
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
sentido, Deleuze nos propõe que “o moderno traz a revelação da
falência da superfície, assiste ao transtorno das relações tradicionais
entre a superfície e a profundidade, entre o fundo e a forma, o sentido e o sem sentido” (1969, p.10, tradução nossa)2.
Nessa nova configuração, as artes plásticas extrapolam seus
suportes tradicionais como a pintura e a escultura e se expande
para além das esferas tradicionais de sua atuação como o museu e
o circuito tradicional da arte. As imagens não se apresentam mais
somente nos suportes tradicionais como parede, pintura, gravura,
escultura, arquitetura, fotografia, vídeo e cinema. Surge a era da
Lógica Paradoxal da Imagem que de acordo com Virilio3(2002)
corresponde àquela iniciada com a invenção da holografia e da
infografia.
Diante de tanta alteração, Rolnik et al (2002) dizem que também
a subjetividade passou por mudanças. Ela extrapolou seu suporte
egóico e identitário para ser vista por uma perspectiva de transversalidade, por um processo complexo e heterogêneo que não designa
uma “coisa em si” de caráter imutável. Diante deste panorama de
mudanças, transformações e misturas que a atualidade nos fornece,
torna-se relevante pensar em que medida a resistência e a criação
são coextensivas? Em que circunstâncias as imagens, a cultura e as
artes se constituem criação como potência de singularização? Será
que as imagens dos graffiti são capazes de inventar novos sentidos
ao produzir sensações que possam se articular à criação, à individuação em processo?
Vivenciamos uma época marcada pelo controle do Capitalismo
Mundial Integrado que perpassa a todas as atividades humanas,
moldando modos de existência. Tal sistema se utiliza de fluxos como
operadores que a tudo codificam em prol de uma lógica reprodutiva
dominante. Nesse sentido, a sociedade é composta por códigos e
fluxos e as pessoas que compõe esse corpo social são capazes de
provocar ou receber fluxos vindos do campo do desejo e, por conseguinte, são suscetíveis de escapar ao código, ou seja, às normalizações institucionais e territoriais impostas por esse sistema.
77
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
78
Cartografia imagética: mapeando sensações colorantes produtoras de novos sentidos
Interessam-nos as realidades e sentidos que são construídos por
sujeitos históricos de formações socioculturais específicas como a
que estamos inseridos hoje. Nesse contexto, privilegiamos certos
registros imagéticos de graffiti inscritos na cidade de Belo Horizonte (Minas Gerais, Brasil), que consideramos como produtores de sensações que concorrem para o engendramento da subjetividade. Partimos do pressuposto de que quando alguém é afetado por uma sensação, por exemplo, através de uma imagem, esta sensação está
diretamente relacionado à produção de sentido e ao fluxo do desejo
que ativa sua subjetividade, seja reproduzindo ou transformando-a.
Assim sendo, os sentidos que obtemos não são simplesmente préfabricados e transmitidos pelas formas das imagens que conteriam
as intenções de seus autores, mas são produzidos por encontros entre forças capazes de desencadear um processo de significação que
está constantemente sujeito as novas reestruturações e a novos sentidos. Desta forma, justificamos a relevância de serem estudados e
discutidos os processos de subjetivação que emergem a partir da
produção de sentidos originários de dimensões semiológicas imagéticas presentes nos muros da cidade.
Como método, optamos pela realização de uma cartografia a fim
de mapear as linhas que atravessam o fenômeno: os pontos de homogeneização aí presentes, mas, sobretudo, registrando os mecanismos de resistência que escapam à produção em massa das subjetividades. Entendemos a resistência, nesse contexto, para além de uma
relação de forças contra algo visível, mas como invenção e como
criatividade capaz de inventar novos modos de ser e estar no mundo.
Analisar o fenômeno do graffiti é fruir uma paisagem na qual os
afetos e os perceptos funcionam como operados de sua lógica, devendo ir além de uma simples contemplação que almeja descobrir
significados transcendentes à sua existência. Considerando nosso
objeto de estudo, como elementos que compõem as paisagens urbanas em constante formação acompanhamos as idéias de Rolnik, acerca
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
da cartografia: “é um desenho que acompanha e se faz ao mesmo
tempo que os movimentos de transformação da paisagem” (1989,
p.15). Portanto, ao se ter como meta a realização de uma cartografia, não se pode desconsiderar as mudanças e os movimentos inerentes ao objeto e à própria essência da subjetividade que, em constante processo, necessita desmanchar territórios a fim de criar outros. A autora ilustra bem esse recorte quando fala que a cartografia:
[...] acompanha e se faz, ao mesmo tempo que o desmanchamento de certos mundos – sua perda de sentido – e a formação de outros: mundos que se criam para expressar afetos
contemporâneos, em relação aos quais os universos vigentes tornaram-se obsoletos. (ROLNIK, 1989, p.15)
Nessa acepção, a cartografia se apresenta como um método cuja
atividade busca registrar a coexistência das linhas que constituem os
nossos mundos e os processos que procuram as correspondências
entre os fenômenos, mais do que suas verdades absolutas. No nosso
entender, o desafio dessa atividade é descobrir o poder de afetar e
ser afetado pelos universos que rodeiam os indivíduos e também, de
mapear sensações capazes de criar novas subjetividades. Hardt (1996)
nos lembra que para Deleuze, o poder de ser afetado corresponde à
potência do ser de agir e de existir. A potência de ser afetado revela
duas ordens distintas: afecções ativas e passivas, sendo que essa
última pode ser de dois tipos: afecções passivas alegres e afecções
passivas tristes. Segundo o filósofo, a grande maioria de nossas afecções é triste e a constatação desse pessimismo, que tem sua origem
na filosofia espinosista, se apresenta como o ponto de partida para
uma prática da alegria.
Portanto, entendemos que a cartografia se apresenta como meio
capaz de nos possibilitar uma abordagem do desejo, que, por sua vez,
é entendido no nosso trabalho, como o elemento fundamental de uma
microanálise. Analisamos o desejo como elemento desencadeador
de microprocessos revolucionários, isto é, processos de percepção e
79
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
sensibilidade inventivos e capazes de produzir novas subjetividades.
No nosso entender, os modos de expressão a-significantes (como
certas imagens de graffiti) são elementos privilegiados para o desencadeamento de processos de subjetivação e a cartografia a forma ideal para registrá-los.
80
Por uma micropolítica: o desejo como sistema de signos asignificante
O desejo na dimensão dos processos de subjetivação, analisados
pelo olhar da filosofia da diferença de Deleuze e Guattari, não é
entendido como a representação de um objeto ausente ou faltante,
mas como uma atividade de produção, como um processo, como
uma experimentação incessante. Desejo como algo que nasce fora,
nasce de um encontro (dos indivíduos com as imagens dos graffiti,
por exemplo) ou de um acoplamento e, que não é dado previamente
nem é um movimento que surge de dentro para fora.
Deleuze (1993) aponta sua primeira diferença em relação à Foucault quando, juntamente com Guattari, fala em agenciamento de
desejo e questiona se os microdispositivos podem ser descritos em
termos de poder. Para o autor, os agenciamentos de desejo é que
disseminariam formações de poder, sendo, portanto, o desejo, o elemento fundamental de uma microanálise. O elemento desencadeador dos microprocessos revolucionários, como na micropolítica, por
exemplo, que se situa um processo de percepção e sensibilidade inteiramente novo e capaz de produzir novas subjetividades. Como
diriam Guattari e Rolnik, o investimento “desejante” é capaz de instaurar práticas políticas que pleiteiam a “subversão da subjetividade
de modo a permitir um agenciamento de singularidades desejantes”
(2000, p.30). Os autores afirmam que todos os fenômenos da atualidade envolvem dimensões do desejo e da subjetividade, portanto, a
problemática da micropolítica não se situa no nível da representação,
mas no nível da produção de subjetividade: “ela se refere aos modos
de expressão que passam não só pela linguagem, mas também por
níveis semióticos heterogêneos.” (2000, p. 28).
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
Nesse sentido, percebemos que o desejo se movimenta, se expande e é capaz de impulsionar movimentos nos quais a fantasia, a alegria,
o colorido e o lúdico, possam ser um abalo ao primado do poder. Nesses movimentos, consideramos as imagens dos graffiti capazes de atuarem no campo do desejo e, por conseguinte, em uma micropolítica.
Assim sendo, a filosofia da diferença de Deleuze e Guattari pode
ser pensada pelo viés de uma micropolítica, uma vez que a diferença
não está relacionada ao sentido identitário, ou seja, da representação
das características particulares de um indivíduo ou grupo. Mas o
oposto disso: diferença é o que nos arranca de nós mesmos e nos faz
devir outro. É o abalo de identidades vigentes e pré-moldadas em
prol da criação de novas combinações de forças, novas figuras, novos modos de ser e estar no mundo. Diferença como produção de
um coletivo, uma vez que a própria diferença é o resultado de composições das forças que constituem determinado contexto sociocultural. A filosofia da diferença trata de uma atitude micropolítica que
ultrapassa o respeito e o reconhecimento com o outro, que vai além
de respeitar ao próximo e preocupar com as conseqüências que nossa conduta possa ter sobre ele, mas trata de assumir as conseqüências de sermos permanentemente atravessados pelo outro.
Pensando assim, consideramos as imagens dos graffitis como
agenciamentos geradores de novos modos de existência, principalmente quando são capazes de produzir regimes de signos diferentes
daqueles estabelecidos pela lingüística. Esse é, segundo Zourabichvili
(2004), o interesse principal do conceito de agenciamento: “enriquecer a concepção do desejo como uma problemática do enunciado”
(2004, p.23). Surge daí a proposta da Lógica do Sentido iniciada
por Deleuze em 1969 e cuja seqüência se deu em parceria com Guattari na obra Mil Platôs (1995). Em linhas gerais podemos dizer que
Deleuze (1969) pressupõem um nexo interno entre um enunciado e o
ato incorpóreo que necessariamente o envolve, o que implica um questionamento dos modelos da lingüística (informação/comunicação).
O autor considera os incorpóreos como condição extrínseca, porém necessária da linguagem, sendo simultaneamente o expresso de
81
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
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uma proposição e o atributo de um estado de coisas. Para ele, os
incorpóreos não existem fora das proposições, mas também não se
reduzem, em absoluto, à sua natureza lingüística. Nessa acepção,
pensamos os graffiti como agenciamentos coletivos de enunciação
enquanto transformações incorporais da ordem mais do sensível (sensação) do que da percepção (cognição). Deleuze e Guattari (1995)
falam que a forma de expressão não é simplesmente linguageira, há,
por exemplo, agenciamentos musicais, agenciamentos olfativos, mímicos, colorantes, enfim, agenciamentos que agem alterando sentidos pela via da sensação (característica que destacamos nas expressões dos graffiti). Tal condição nos faz perguntar: qual a lógica
que rege o conteúdo e a expressão em sua origem?
Os autores nos responderiam que esse é o pólo “máquina abstrata” entre os quais estão incluídos os agenciamentos artísticos. Sabemos que uma relação complexa se tece entre conteúdo (o agenciamento maquínico) e expressão (agenciamento coletivo de enunciação), redefinidos, de acordo com os autores, como duas formas independentes, mas tomadas numa relação de recíprocidade e relançando-se uma à outra. A gênese recíproca das duas formas remete à
instância do “diagrama” ou da “máquina abstrata”.
Ao contrário da relação significante/significado, no diagrama, a
expressão refere-se ao conteúdo sem, contudo, descrevê-lo nem representá-lo, simplesmente ela intervém nele. O resultado é uma concepção de linguagem que se opõe à linguística, assinalando-se pelo
primado do enunciado sobre a proposição, nela a forma de expressão (o regime de signos) não é necessariamente linguageira. Daí
exclui-se a idéia do agenciamento poder ser explicado pelo significante, ou pelo sujeito, conforme Deleuze e Guattari nos dizem: “é a
significância ou a subjetivação que supõem um agenciamento, não o
inverso” (1995, p.97).
Por conseguinte, encontramos transformações incorpóreas, como
algumas manifestações do graffiti, procedentes de um segmento de
expressão capaz de conduzir a decodificações, em outros termos, a
pontos de desterritorialização. Ou seja, agenciamentos que conduzem
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
a um plano em que o vir a ser do indivíduo (que só se constitui como tal
ao se agenciar) promove disjunções (linhas de fuga) que ele cria como
alternativa contra o funcionamento reprodutor da identidade fixa (linha
de segmentaridade dura). Podemos ilustrar essa transformação com
dados empíricos de nossa pesquisa, quando o graffiteiro informante4
do estudo de caso que realizamos, nos narra sua entrada para o universo dos graffiti. Essa passagem nos permite registrar a ação de uma
linha de subjetividade, dentre as muitas que registramos em nossa cartografia que, pela natureza deste texto, não poderemos apresentar de
forma completa. Contudo, apresentamos o registro de um momento
em que pudemos detectar a ação de uma linha de fuga:
Esse tanto de cor, eu fiquei louco e comecei a desenhar na
mesma hora. Deixei de ser pichador e comecei a graffitar.
(G3, 27/02/2006)
Esse relato nos mostra que as cores do graffiti provocaram agenciamentos no informante que o fizeram “deixar de ser” uma coisa
para se tornar outra: “[...] deixei de ser pichador e comecei a graffitar”. Tal fala indica-nos a ação de uma linha de fuga que convergiu
em um processo que o arrastou para o novo, o arrastou para um
processo de subjetivação que resultou na configuração de uma nova
práxis e um novo modo de ser. Valendo-nos das idéias de Guattari
(1992) podemos dizer que essa mudança ocorrida com o informante
ocorreu pelo viés da “lógica das intensidades”, na qual novos “universos de referência” e novos ‘territórios existenciais” foram enunciados. Essa manifestação (enunciação), foi feita por (agenciada)
intermédio das sensações, conforme Rolnik (2001) denomina, ou,
utilizando linguagem guattariana, pela “relação pática”, que as cores
provocaram. Guattari nos diz que: “o que atravessa os diferentes
componentes semióticos não é mais uma articulação formal, mas
máquinas abstratas que se manifestam ontologicamente em registros heterogêneos e não-discursivos.” (1992, p.75) Ele está se referindo à aglomeração de componentes heterogêneos de expressão e
83
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
de conteúdo, ou seja, à concepção polifônica dos componentes que
concorrem para a produção de subjetividades. Ao falar da heterogeneidade dos componentes semiológicos que compõem os processos
de subjetivação, Guattari (1992) traz à tona a semiótica a-significante, que ele descreve da seguinte maneira:
São figuras de expressão que se concatenam diretamente
com o referente, e “tomam o poder” sobre o conjunto dos
outros componentes semióticos; ao passo que, na semiologia linguística, são, ao contrário, redundâncias de conteúdo que vão reenquadrar o conjunto dos componentes de
expressão, quer sejam fonológicos, gestuais, prosódicos...”
(GUATTARI, 1992, p.75-76).
84
Destas considerações do autor, compreendemos que, nessa situação específica cartografada, o que contribuiu para que as cores do
graffiti desencadeassem processos de subjetivação foi a capacidade das cores agirem como figuras de expressão (signo de ruptura ou
signo sensível) que se articulam ao indivíduo atuando pela lógica da
sensação e provocando a construção de novos sentidos, novas modos existir. Por todas essas considerações, concluímos que as imagens dos graffiti podem funcionar como agenciamento coletivo de
enunciação quando for capaz de proporcionar novas formas de estar
no mundo, novas subjetividades. Contudo, há de se lembrar que os
agenciamentos podem também funcionar como arranjos para comportamentos pré-concebidos, como as instituições sociais, por exemplo. Trata-se nesses casos de agenciamentos sociais, definidos por
códigos específicos que se caracterizam por uma forma relativamente
estável e por um funcionamento reprodutor que tende a reduzir o
campo da experimentação do desejo a uma visão preestabelecida.
Graffiti: imagens híbridas de fronteiras urbanas
Ao nos depararmos com a realidade de nossa problemática, percebemos que a heterogeneidade do graffiti contemporaneamente, o co-
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
loca como uma expressão híbrida, mestiça e fronteiriça em diversos
momentos e circunstâncias. Ora ele se apresenta como cultura erudita, ora como expressão de uma cultura popular, ao mesmo tempo em
que se configura, em certos aspectos, como expressão de uma cultura
de massas, de uma cultura da mídia e até de uma cibercultura.
Por sua fluidez, concluímos que o fenômeno graffiti se insere, de
maneira importante, como reflexo e análise de novas formações subjetivas. Suas expressões, talvez sejam as que melhor apresentam as
transformações que estão ocorrendo no modo de vida da cultura
popular urbana, uma vez que os graffiti representam, na América
Latina, a mestiçagem da iconografia popular com o imaginário político dos universitários. Caracterizando-se por ser uma expressão em
que a denúncia política se abre à poética popular, em que diversos
modos de protestos se encontram e se misturam.
Sua manifestação participa da disputa cotidiana que estabelece a
construção sociocultural dos espaços urbanos. Por esse aspecto, é
que podemos dizer que o graffiti refere-se a uma redefinição do
público e do privado, alterando a noção de que a cidade é dada somente ao não uso, à desigualdade e à frieza. Suas cores, seus desenhos e sua alegria, despertam idéias (ou seriam ideais?) de que a cidade é marcada também por uma sociabilidade e por uma positividade
reveladas em expressões que visam à humanização desse espaço.
Avistamos nessas imagens, um caráter ativista que sutilmente
propõe uma nova lógica política sobre os direitos civis ao ultrapassar
a sensibilidade à miséria e ao sofrimento alheio, se relacionando com
eles através de sua poética. Nos trabalhos que acompanhamos é
contundente a busca por lugares caóticos e inesperados para intervir. É essa busca que confere à ação desses jovens uma postura
estética e ética que traz consigo a tomada de posição frente aos
problemas políticos, sociais e étnicos que emergem da realidade.
A partir de nossas observações, concluímos que o graffiti surge
como uma forma de resposta cidadã, como um movimento plástico
com razões sociais, políticas e contra-ideológicas que acabam por
demonstrar uma tendência dessas expressões nos dias atuais: desli-
85
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
86
gar as inscrições dos graffiti das antigas formas panfletárias e recorrer a novos subterfúgios formais: introduzir a imagem, a forma de
arte, a figura e não somente a palavra. Introduzir através de um
projeto estético o afeto, introduzir a partir de suas cores e formas, a
alegria e a humanização da cidade. Atuando assim, os graffiti questionam as formas de organização dominante e suas formas de legitimação que operam por mecanismos de dominação cultural. Dessa
forma, algo criativo pode acontecer quando a dimensão de uma cultura popular expressa pelas imagens dos graffiti, assinala a percepção de dimensões inéditas do conflito social, da formação de novos
modos de ser regionais, religiosos, sexuais e das formas de rebeldia e
resistência. No nosso entendimento, essas manifestações propõem a
reconceitualização da cultura ao nos confrontar com essa outra experiência cultural que é a popular, em sua existência múltipla e ativa
que age na conflitividade do espaço público.
Pudemos perceber que em alguns momentos suas imagens carregam uma espécie de mensagem cifrada, operando um jogo de sentidos que dificulta decifrar seus códigos. Quando assim apresentado,
ele se caracteriza como um signo icônico que visa embaralhar seus
possíveis significados. Nessa perspectiva, os graffiti estabelecem
uma relação entre o observador e suas imagens a fim de que se
efetue a ruptura do sentido que possibilita que cada imagem apresente um conjunto de correspondências a serem decodificadas. Essa
acepção possibilita ver (ou sentir) aquilo que pertence a outros domínios, ou seja, a imagem nos dá a face do invisível ao provocar o
rearranjo de forças apreendidas pela sensação. Assim, podemos dizer que a partir da falência de significados, a potência de criação é
convocada, deste modo, as imagens de alguns graffiti são um convite à crítica do instituído, à problematização de questões do cotidiano,
à produção de novos modos de pensar e à liberação do desejo. Suas
imagens mantêm vivo o poder de afetar e ser afetado pelos universos incorporais que no rodeiam e de produzir novos mapas de sensações capazes de contornar novas subjetividades.
Nossa pesquisa nos permitiu analisar os processos de subjetivação
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
envolvidos em alguns graffiti da cidade de Belo Horizonte e discutir
as várias linhas de ação que o percorrem. Ao propor realizar uma
cartografia dessas linhas, nossa intenção era destacar o caráter dinâmico desse movimento, registrando a hibridez de sua expressão que o
possibilita transitar entre diversas fronteiras, ora reiventando e resingularizando modos de ser e jeitos de viver, ora reproduzindo padrões
dominantes. No entanto, para além de cartografar esses movimentos
fronteiriços do graffiti, pretendíamos responder a nossa hipótese fundamental: seriam os graffiti aptos de desencadear processos de subjetivação por meio das sensações que suas imagens provocam?
Chegamos à conclusão que nossa hipótese é válida, que realmente os graffiti são capazes de desencadear processos de subjetivação
por meio das sensações que suas imagens despertam. Consideramos
que isso ocorre de maneiras variadas, ou seja, que em cada indivíduo
essa afecção ocorre em graus diferentes, resultando em subjetividades também diversas. Contudo, descobrimos que as cores são os
elementos dos graffiti que mais despertam sensações nos transeuntes, seguidos da surpresa do suporte (do local) em que se encontram
as imagens. Esse processo de afecção que se desencadeia a partir da
sensação que as cores provocam, nomeamos, em consonância com os
conceitos teóricos que utilizamos, de microprocessos revolucionários.
O resultado de nossa pesquisa nos mostra que os movimentos
moleculares do graffiti se alternam com momentos e situações em
que ele se apresenta subordinado às segmentaridades molares, como
por exemplo, quando ele está nas galerias, quando participa de projetos patrocinados por instituições que ditam o quê e como será feito,
quando assina produtos da moda e do design, quando permite ser
tomado por forças de hierarquização do saber e do poder.
No entanto, podemos concluir que mesmo agindo como subordinação em alguns momentos, o graffiti tende a ser mais a expressão
de um movimento de resistência à homogeneização das subjetividades. Consideramos que a característica de hibridez, entre o popular,
a poética e o político, marca como força motriz do graffiti a resistência, operada segundo uma poética visual e uma vivência do espaço
87
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
88
urbano que enfrenta a racionalização pós-industrial. É uma contraracionalidade que se inscreve em oposição ao tempo de produção
mundializado e às tecnologias que tentam subjugar as culturas locais.
Entretanto, sua resistência não é feita de oposições dramáticas ou
radicais, ela é porosa, fluída, flexível e se dá em meio a um emaranhado de linhas de força que a tudo perpassam.
Considerando a complexidade das diversas linhas que atravessam o graffiti, percebemos que os traços dos graffiti que delineiam
movimentos de resistência são percebidos em instâncias moleculares, cotidianas, agindo como microrevoluções não panfletárias ou
agressivas. Resistindo à homogeneização do saber, do poder, aos
espaços assépticos, ao não uso dos espaços públicos, resistindo à
indiferença com as desigualdades sociais, à falta de liberdade de
expressão, à desumanização e frieza da cidade, à falta de sensibilidade. Cores que resistem ao conformismo com a degradação e segregação do espaço público, à falta de afeto e à capacidade de ser
afetado. Enfim, ainda vemos certos graffiti de Belo Horizonte como
um apelo à humanização e a singularização, pela via da sensação
que suas cores despertam. Agindo desse modo, o graffiti trabalha o
coletivo fora dos lugares consagrados e inventa constantemente a
arte na prática cotidiana, buscando promover o descanso visual, interrompendo a aceleração da vida cotidiana e propiciando a humanização do ambiente urbano. Por intermédio de seu colorido, os graffiti nos convidam à experimentar uma subjetividade processual que
esteja aberta também à conexões com o inumano, com o a-significante, com a capacidade de afetar e ser afetado por linhas de invenção, por linhas de subjetivação e por imagens que formam as paisagens urbanas da contemporaneidade.
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89
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ZOURABICHVILI, François. O vocabulário de Deleuze. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 2004.
NOTAS
1
90
Essas especificações são características observadas nos graffiteiros que
participaram de nosso estudo de caso: dois autodidatas, uma aluna da Escola de Belas Artes-EBA/UFMG e um informante que à época da pesquisa
estava se preparando para o vestibular da Escola de Design da UEMG.
2
Le moderne a la révélation de la faillite de la surface et l’on assiste au
bouleversement des relations traditionnelles entre la surface et la profondeur, le fond et la forme, le sens et le non-sens.
3
Esse autor apresenta uma logística da imagem à luz da qual são estabelecidos três regimes das máquinas de visão: Era da Lógica Formal da Imagem
(inscrições rupestres, pintura, gravura, escultura e arquitetura), Era da Lógica Dialética da Imagem (fotografia, vídeo e cinema) e Era da Lógica Paradoxal da Imagem (já citada).
4
Optamos por preservar a identidade de nosso informante e por manter o
registro da fala oral objetivando ser o mais fiel possível ao conteúdo dos
mesmos, sendo assim, o identificaremos apenas como GP.
INDÚSTRIA CULTURAL, TRABALHO
HIPOSTASIADO E VIDA DANIFICADA
JOSÉ GERALDO PEDROSA
Licenciado em Ciências Sociais (INESP), mestre em Educação (UFMG),
doutor em Educação: História, Política, Sociedade (PUC/SP) e
professor no Mestrado em Educação Tecnológica do CEFET/MG
E-mail: [email protected]
Resumo: Esse artigo reflete sobre a
heteronomia, a monotonia e o tédio
que definem a (ausência de) vida no
capitalismo tardio. A análise busca
uma aproximação entre os primeiros
textos de Marx ou dele e Engels e os
ensaios nos quais Adorno reflete
sobre a indústria cultural, o tempo
livre, a música popular e a vida danificada na sociedade da produção e
do consumo. Busca-se pensar na relação entre a hipostasia do trabalho,
a indústria cultural e a vida danificada: isso que eqüivale a uma “involução da consciência”, a uma “regressão do homem” ou a uma decomposição do “cerne da individuação”.
Palavras-chave: Trabalho; Capitalismo; Indústria Cultural.
Abstract: This article reflects about
the heteronomy, the monotony and
the tedium that define the (absence
of) life in late capitalism. The analysis aims to approach Marx’s or Marx
and Engels’ first texts to the essays
in which Adorno reflects about cultural industry, free time, popular music and the damaged life in the society of production and consumption.
The purpose is to think about the
relation between hypostasis of work,
cultural industry and damaged life:
what is equivalent to an “involution of conscience”, to a “human beings’ regression” or to a decomposition of “the core of the individuation”.
Key-words: Work; Capitalism; Cultural Industry.
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº
- 6 – p. 91 a 106 – outubro de 2007
91
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
O tempo é o campo do desenvolvimento humano. O homem
que não dispõe de tempo livre (...) é uma (...) máquina, fisicamente destroçada e espiritualmente animalizada para
produzir riqueza alheia. (Marx)
A
idéia de uma vida alienada e danificada, de uma vida que se
reduz a meio de vida ou de uma vida marcada pela heteronomia, foi um dos motivos mais fortes da crítica marxiana
da sociedade regida pela lógica da produção e do consumo. Já nos
“Manuscritos” de 1844, Marx (1918-1883) identificava o fenômeno
da exteriorização como uma situação na qual o homem se reduz à
condição de trabalhador, perdendo, com isso, a sua condição de sujeito: “O trabalhador põe sua vida no objeto; porém agora ela já não
lhe pertence, mas sim ao objeto” (Marx, 2001, p.112). Assim é que
os criadores se curvam diante de suas criaturas e isso eqüivale à
coisificação:
92
A alienação do trabalhador no seu produto significa não
só que o trabalho se transforma em objeto, assume uma existência externa, mas que existe independentemente, fora dele
e a ele estranho, e se torna um poder autônomo em oposição
a ele; que a vida que deu ao objeto se torna uma força hostil
e antagônica (Marx, 2001, p.112).
Isso é que danifica a vida, pois o trabalhador torna-se um “escravo do objeto”. Nessa condição é que a propriedade privada aparece
como aquilo que aliena o homem de sua natureza, de sua própria
humanidade: “...quanto mais o trabalhador se esgota a si mesmo,
mais poderoso se torna o mundo dos objetos, que ele cria diante de si,
mais pobre fica a sua vida interior, menos pertence a si próprio”
(Marx, 2001, p.112). Ao definir dessa forma a alienação, Marx compreende a lógica da sociedade burguesa e seus efeitos negativos
sobre o homem. Trata-se da alienação da genericidade humana e,
portanto, do afastamento do homem do próprio homem. Por isso tam-
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
bém é que quanto mais refinado é o produto do trabalho ou quanto
mais o trabalhador se apropria, pelo trabalho, do mundo exterior, tanto mais desfigurado fica o trabalhador: “quanto mais civilizado o produto, mais desumano o trabalhador; quanto mais poderoso o trabalho, mais o trabalhador diminui em inteligência e se torna escravo da
natureza” (Marx, 2001, p.113).
Nos textos de 1844, a idéia de uma vida prejudicada aparece para
Marx como o resultado do condicionamento do trabalho pela propriedade burguesa, portanto, por aquilo que Adorno caracterizaria, mais
tarde, como coerção funcional: uma circunstância em que o membro
particular da espécie humana se vê condicionado por uma rede funcional ou uma circunstância de descolamento entre o progresso da cultura
material e o progresso no campo da sua liberdade e da sua felicidade. O
que Marx afirmou ainda na primeira metade do século XIX é que:
...o trabalho, a atividade vital, a vida produtiva, aparece
agora para o homem como o único meio que satisfaz uma
necessidade, a de manter a existência física. A vida produtiva, entretanto, é a vida genérica. É a vida criando vida. No
tipo de atividade vital está todo o caráter de uma espécie, o
seu caráter genérico; e a atividade livre, consciente, constitui o caráter genérico do homem. A vida revela-se simplesmente como meio de vida (Marx, 2001, p.116).
Para Marx, o momento mais elevado desse poder da propriedade
burguesa sobre a vida do homem pode ser demonstrado pelo poder
adquirido pelo dinheiro, a forma mais sublime da propriedade. O poder do dinheiro expressa o poder que o homem não tem mais sobre
sua própria vida: “O dinheiro é a capacidade alienada da humanidade” (Marx, 1987, p. 196). Desta forma é que ter, no sentido egoísta
de ter para si ou de ter de forma privada, torna-se mais importante
do que ser e o dinheiro, expressão da propriedade, torna-se um fim
em si mesmo, torna-se o poder que substitui o poder que o homem
não mais tem sobre si: “Eu, que mediante o dinheiro posso tudo a que
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o coração humano aspira, não possuo todas as capacidades humanas? Não transforma meu dinheiro, então, todas as minhas incapacidades em seu contrário?” (Marx, 1987, p. 196). Neste sentido é que
o dinheiro torna-se a “química da sociedade”, o que “me liga à vida
humana, que liga a sociedade a mim, que me liga com a natureza e
com o homem”, mas, ao mesmo tempo, é o “meio geral da separação”: “É a verdadeira marca divisória, assim como o verdadeiro meio
de união” (Marx, 1987, p. 196).
Pretende-se aqui avançar no entendimento dessa “vida danificada” a partir de outras referências que Theodor Wiesengrund Adorno
acrescentaria à crítica marxiana da sociedade burguesa, tendo como
objeto da reflexão as condições da existência social no contexto do
capitalismo tardio. Pensa-se, pois, a partir da síntese que aparece no
texto de Benjamin Franklin: tempo é dinheiro1. É isso que remete ao
problema adorniano do tempo livre e do tempo condicionado. O tempo é referência fundamental de organização da vida; é com base
nessa categoria que se pode, pois, entender a relação entre o tempo
de trabalho e a vida danificada. Mais especificamente, o que se busca é pensar na relação entre a hipostasia do trabalho, a coerção
funcional e a vida danificada: isso que é próprio do capitalismo tardio
e que eqüivale a uma “involução da consciência”, a uma “regressão
do homem” ou a uma decomposição do “cerne da individuação”.
Trata-se, pois, de entender o que Adorno define como “capitalismo
tardio”, para, em seguida, pensar sobre a relação entre a hipostasia
do trabalho e a vida danificada.
O que Adorno nomeia como “capitalismo tardio” é uma situação
na qual “as relações de produção se revelaram mais elásticas do que
Marx imaginara”, desenvolvendo, assim, mecanismos que permitem
a permanência da ideologia da produtividade, num contexto em que
as contradições sociais se tornam cada vez mais agudas. Neste ensaio publicado em 1972, Adorno faz a crítica da tese segundo a qual
Marx estaria ultrapassado, isto é, crítica do entendimento de que o
mundo que se forma a partir dos anos 1960 se encontra de tal maneira determinado pela técnica – cujo desenvolvimento supera todas as
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expectativas – que, se comparado com outras épocas de sua história,
pode-se ver que “a relação social que outrora definia o capitalismo, a
metamorfose do trabalho vivo em mercadoria e, desse modo, a contradição de classes, perdeu a relevância...” (Adorno, 1994, p. 63).
Adorno refuta esta tese. Para ele, fatos como o da inexistência
de uma consciência de classe nos países capitalistas dominantes ou
o avolumamento do progresso técnico e o declínio da participação do
trabalho vivo nas atividades industriais “só de um modo muito forçado e arbitrário são ainda interpretáveis sem utilizar o conceito-chave
‘capitalismo’. A dominação sobre seres humanos continua a ser exercida através do processo econômico” (Adorno, 1994, p. 67). Para o
frankfurtiano, a ausência de uma consciência proletária nos países
dominantes não é suficiente para refutar a existência de classes:
“...a classe é definida pela posição quanto aos meios de produção e
não pela consciência de seus membros” (Adorno, 1994, p. 65). Além
disso: “A existência social não gera, de modo imediato, consciência
social” (Adorno, 1994, p. 66).
Este é, pois, o conteúdo do capitalismo tardio. A despeito de todo
o progresso no domínio da técnica e do crescimento da produção,
“...a atual sociedade revela aspectos estáticos”. Eles fazem parte
das relações de produção: aqui não há progresso desde que o capitalismo existe. Relações de produção que “...não são apenas as de
propriedade, mas também as de administração, abrangendo até o papel do Estado como o capitalista total” (Adorno, 1994, p. 69). O resultado desse triunfo da lógica da produção e do consumo é a criação de
uma aparência: “de que o interesse universal seria ainda o interesse
pelo status quo, e o ideal seria a plena ocupação e não o interesse em
libertar-se do trabalho heterônomo” (sic) (Adorno, 1994, p. 69).
Mas em que sentido estas relações de produção se estagnaram, a
despeito de todo o progresso das forças produtivas? A reflexão adorniana sobre esse ponto remete ao descolamento entre o interesse
objetivo e a espontaneidade subjetiva. Isso seria decorrente de dois
fatores. De um lado a: “organização da sociedade impede, de um
modo automático ou planejado, pela indústria cultural e da consciên-
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cia e pelos monopólios de opinião, o conhecimento e a experiência
dos mais ameaçadores eventos” (Adorno, 1994, p. 70). De outro
lado e “muito além disso”, a socialização radical: “paralisa a simples
capacidade de imaginar concretamente o mundo de um modo diverso
de como ele dominadoramente se apresenta àqueles pelos quais ele é
construído...” (Adorno, 1994, p. 70). Nessa circunstância, escreve
Adorno: “...o estado de espírito fixado e manipulado torna-se tanto um
poder real – um poder de repressão – quanto outrora o oposto da
repressão, o espírito livre, quis eliminá-lo” (Adorno, 1994, p. 70).
Com o apoio de Adorno, pode-se pensar que uma vida danificada
é aquela que se define a partir de uma determinada relação entre a
vida e a produção, uma relação que, de fato, é de sujeição da vida ao
processo produtivo, isso que: “impõe de maneira humilhante a cada
um algo do isolamento e da solidão que somos tentados a considerar
como objeto de nossa superior escolha” (Adorno, 1993, p.21). Num
dos aforismos de “Minima Morália”, Adorno (1993) reflete sobre a
separação burguesa entre o trabalho e a vida privada e, nesta reflexão, dá pistas para o entendimento dessa sujeição da vida à lógica da
produção e do consumo. Antes, afirma Adorno: “...olhava-se com
desconfiança e como um intruso sem modos quem perseguisse fins
na esfera privada” (Adorno, 1993, p.07). Na “sociedade unidimensional” (Marcuse, 1982) o que acontece é diferente, pois quando a
vida torna-se um apêndice do sistema produtivo, “...parece arrogante, estranho e deslocado quem se entrega a algo privado sem que
nele se possa notar uma orientação para algum fim. É quase suspeito
quem nada ‘quer’: ninguém acredita que ele, sem se justificar com a
exigência de uma contrapartida, possa ajudar alguém a abocanhar
sua parte...” (Adorno, 1993, p.07). É que na sociedade regida pela
lógica da produção e do consumo, “A relação (...) entre a vida e a
produção (...) rebaixa realmente aquela a uma efêmera manifestação desta” (Adorno, 1993, p.07). Assim: “As ordenações práticas da
vida, que se apresentam como se favorecessem ao homem, concorrem, na economia do lucro, para atrofiar o que é humano” (Adorno,
1993, p.34). Assim também, desde já, pode-se pensar na relação
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entre a hipostasia do trabalho e a vida danificada. A hipostasia do
trabalho se caracteriza, primeiro, pela separação entre meios e fins
da atividade e, segundo, pela aquisição de autonomia da atividade em
relação aos seus fins. Por outro lado, o que danifica a vida é que
“meios e fins se vêem confundidos”, ou melhor, a vida se reduz a
meio de vida: seu telos torna-se o trabalho sem telos. É por força
deste rebaixamento da vida à produção que visa o lucro que Adorno
foi enfático: “não há mais vida” à medida que essa se tornou um
“apêndice” do sistema produtivo, “sem autonomia e sem substância
própria”. É por isso também que Adorno afirmou que no capitalismo
tardio “...a vida transformou-se na ideologia de sua própria ausência” (Adorno, 1993, p.166).
Assim é que se pode pensar na relação entre a vida danificada e
a dissolução do sujeito individual, sua cristalização na condição de
mônada, sem poros pelos quais possam entrar ou sair alguma coisa:
“na condição do antigo sujeito, historicamente condenado, que ainda
é para si, mas não é mais em si” (Adorno, 1993, p.08). É por isso que
se tem cada vez mais sociocracia: “Na sociedade individualista (...)
a sociedade é essencialmente a substância do indivíduo” (Adorno,
1993: 09). Esse é, pois, um dos paradoxos do capitalismo tardio que
desqualifica a vida: de um lado socialização sem limites, de outro
atomização: “A atomização não está em progresso apenas entre os
seres humanos, mas também no interior de cada indivíduo, entre as
esferas de sua vida” (Adorno, 1993: 114). Isso remete para idéias
que já se faziam presentes nos textos sobre educação que Adorno
produziu na década de 1960. Em “Educação após Auschwitz” (Adorno, 1995) o frankfurtiano define uma outra característica dessa vida
danificada no mundo administrado, a claustrofobia: “...um sentimento de encontrar-se enclausurado numa situação cada vez mais socializada, como uma rede densamente interconectada” (Adorno, 1995:
122). A conseqüência dessa pressão civilizatória é inevitável e isso é
confirmado pela crescente violência que marca a vida nos grandes
centros urbanos da contemporaneidade: “Quanto mais densa é a rede,
mais se procura escapar, ao mesmo tempo em que a sua densidade
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impede a saída. Isso aumenta a raiva contra a civilização. Esta se
torna alvo de uma rebelião violenta e irracional” (Adorno, 1995: 122).
Essa coerção funcional tem suas conseqüências para a vida dos
indivíduos: para o tempo de vida, para o tempo de realização de experiências e para o pensamento: “Nenhuma realização pode estar
ligada ao trabalho, que perderia assim sua modéstia funcional na totalidade dos fins; nenhuma centelha da reflexão pode invadir as horas de lazer, pois ela poderia saltar daí para a esfera do trabalho e
incendiá-la” (Adorno, 1993: 14). Isso significa também a antecipação de uma questão que voltaria a ser abordada em “Tempo livre”
(1995), qual seja, a da diferenciação entre tempo ocupado pelo trabalho e tempo condicionado pelo trabalho:
98
Enquanto em sua estrutura trabalho e divertimento se tornam cada vez mais semelhantes, as pessoas passam a separálos de um modo cada vez mais rígido com invisíveis linhas de
demarcação. De ambos foram expulsos, na mesma proporção, o prazer e o espírito. Lá como cá imperam a seriedade
sem humor e a pseudo-atividade (Adorno, 1993: 14).
Em “A ideologia da Sociedade Industrial”, Marcuse (1982) refere-se a essa vida tendo por base a idéia de satisfação de necessidades falsas e verdadeiras. As necessidades falsas são “aquelas superimpostas ao indivíduo por interesses sociais particulares ao reprimilo”. Nesse caso, quem poderia definir quais necessidades são falsas
ou verdadeiras é o próprio indivíduo: “isto é, quando eles estiverem
livres para dar a sua própria resposta” (Marcuse, 1982). Essas falsas necessidades são aquelas que “perpetuam a labuta, a agressividade, a miséria e a injustiça” (Marcuse, 1982). Isso também seria
uma vida falsa, pois o que sucede, com sua satisfação, não é a felicidade, mas a euforia: uma “euforia na infelicidade”, diria Marcuse.
Nesse sentido é que a produção e o consumo “reivindicam o indivíduo inteiro”. O resultado disso não é: “o ajustamento, mas a mimese:
uma identificação imediata do indivíduo com a sua sociedade...”
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(Marcuse, 1982: 31). Isso caracteriza uma pseudoindividuação: “...o
envolvimento da produção cultural de massa com a auréola da livreescolha ou do mercado aberto, na base da própria estandardização”
(Adorno e Sinpson, 1994: 123).
Em “Tempo livre” e em “Sobre música popular” Adorno faz reflexões que permitem uma crítica às teses do sociólogo do lazer Joffre Dumazedier2 (1994), que identificam tempo de lazer com tempo
livre. As questões postas por Adorno remetem para o conceito de
tempo livre, não no sentido formal, mas do telos do tempo livre e
também de seu conteúdo. O ponto de partida é o entendimento daquilo que é o oposto de tempo livre, isto é, tempo não-livre, o que,
para Adorno, é o tempo preenchido pelo trabalho, é o tempo da heteronomia. Tempo preenchido pelo trabalho tem dois sentidos: pode
ser tempo ocupado pelo trabalho ou tempo condicionado pelo trabalho. Para Dumazedier (1994) – que não faz essa separação porque
lhe falta o entendimento da indústria cultural – o fato social mais
relevante, já observado em 1962, era o crescimento do tempo não
ocupado pelo trabalho e seu conseqüente preenchimento por atividades de lazer voluntárias. O que Adorno pensa é que na sociedade
regida pela lógica da produção e do consumo o tempo livre é “acorrentado ao seu oposto”, é condicionado pelo trabalho: “O tempo livre
continua a ser o reflexo de um ritmo de produção imposto de modo
heterônomo (sic) ao sujeito, ritmo que é mantido forçosamente mesmo nas pausas cansadas” (Adorno, 1993: 154).
Essa é também a crítica que Horkheimer e Adorno (1985) fazem
aos sociólogos que se preocupavam com as conseqüências que a perda de apoio da religião, a dissolução da comunidade, a “diferenciação
técnica e social e a extrema especialização” provocavam, no sentido
da generalização de um “caos cultural”. Para os frankfurtianos essa
preocupação dos sociólogos é refutada constantemente já que a indústria cultural “confere a tudo um ar de semelhança”. Isso é decisivo
para se pensar na possibilidade de tempo livre na sociedade capitalista:
“Numa época de integração social sem precedentes, fica difícil estabelecer, de forma geral, o que resta nas pessoas, além do determinado
99
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pelas funções” (Adorno, 1995: 71). Isso significa que nas férias, nos
fins de semana, nos feriados ou nas horas diárias não ocupadas diretamente pelo trabalho, “prolongam-se as formas de vida social organizada segundo o regime do lucro”. É por isso também que, no tempo
não ocupado diretamente pelo trabalho, “se prolonga a não-liberdade,
tão conhecida da maioria das pessoas não-livres como sua não-liberdade em si mesma” (Adorno, 1995: 71). É isso também que permite
pensar na idéia de um tempo livre danificado, que contribui na caracterização de uma vida danificada ou de uma falsa felicidade, de uma
falsa sensação de liberdade: isso que se identifica com a euforia.
Em “Sobre música popular”, Adorno faz uma abordagem sobre o
tempo de lazer na vida das pessoas, especificamente sobre o tipo de
música que se ouve nesse tempo em que o trabalho aparentemente
se ausenta. Essa reflexão é exemplar sobre a relação entre o trabalho e a desqualificação da vida; sobre a coerção funcional e suas
conseqüências para a não-liberdade do indivíduo. Nela, Adorno reflete sobre o tipo de diversão que as pessoas praticam em seu tempo
não diretamente ocupado pelo trabalho: elas reforçam “simultaneamente uma estrutura de distração e desatenção”. Esse, segundo
Adorno, é o esquema de conduta do “caráter burguês”: “Por um
lado, deve-se estar concentrado no trabalho, não se distrair, não cometer disparates; (...) Por outro lado, deve o tempo livre, provavelmente para que depois se possa trabalhar melhor, não lembrar em
nada o trabalho” (Adorno, 1995: 73).
É nesse sentido que o trabalho condiciona o que poderia restar de
tempo livre na vida das pessoas. A hipostasia do trabalho: “...é a
razão da imbecilidade de muitas ocupações do tempo livre. Por baixo
do pano, porém são introduzidas, de contrabando, formas de comportamento próprias do trabalho, o qual não dá folgas às pessoas”
(Adorno, 1995: 73). Sobre essa vida danificada, Marx, ainda no século XIX, já havia escrito:
O tempo é o campo do desenvolvimento humano. O homem
que não dispõe de nenhum tempo livre, cuja vida afora as
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interrupções puramente físicas do sono, das refeições, etc.,
está toda ela absorvida pelo seu trabalho para o capitalista, é menos que uma besta de carga. É uma simples máquina, fisicamente destroçada e espiritualmente animalizada,
para produzir riqueza alheia (Marx, 1988: 121).
Na era da indústria cultural, pelos veículos de comunicação de
massa, “Os ouvintes são distraídos das exigências da realidade por
‘distrações’ que tampouco exigem atenção” (Adorno e Sinpson, 1994:
136). Mas que relação pode existir entre essa distração própria do
lazer e a atenção necessária ao trabalho? Segundo Adorno, a distração, na situação social em que ela se encontra, “está ligada ao atual
modo de produção, ao racionalizado e mecanizado processo de trabalho a que as massas estão direta ou indiretamente sujeitas” (Adorno e
Sinpson, 1994: 136). Na origem desse condicionamento do lazer está a
permanência extemporânea de um modo de produção que “engendra
temores e ansiedades”: quanto ao desemprego e à perda de salário,
medo da instabilidade, da banalização da violência ou da guerra. Como
contraponto, é importante que as pessoas disponham de um tempo
para o relaxamento, para “aquilo que não envolva nenhum esforço de
concentração” (Adorno e Sinpson, 1994: 136). Isso também define o
conteúdo de uma vida danificada: o tédio e a monotonia que já se
faziam presentes no tempo diretamente ocupado pelo trabalho agora
invadem também o pseudo tempo livre: “O tédio existe em função da
vida sob a coação do trabalho e sob a rigorosa divisão do trabalho.
Não teria que existir” (Adorno, 1995: 76). Isso também denuncia a
não realização de uma promessa da sociedade burguesa, a individuação: “Se as pessoas pudessem decidir sobre si mesmas e sobre suas
vidas, se não estivessem encerradas no sempre-igual, então não se
entediariam” (Adorno, 1995: 76). O que determina o tédio é a falta de
liberdade que impera no pseudo tempo livre: “Sempre que a conduta
no tempo livre é (...) determinada pelas próprias pessoas enquanto
seres livres, é difícil que se instale o tédio; tampouco ali onde elas
perseguem seu anseio de felicidade, ou onde a sua atividade no tempo
101
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livre é racional em si mesma, como algo em si pleno de sentido” (Adorno,
1995: 76). Isso significa que o tédio tanto pressupõe quanto reforça a
heteronomia, uma vez que ele emana de um outro sentimento, a impotência, justificada ou neurótica: “...tédio é o desespero objetivo. Mas,
ao mesmo tempo, também a expressão de deformações que a constituição global da sociedade produz nas pessoas” (Adorno, 1995: 76).
Assim, a ausência de conteúdo de uma vida danificada é definida
pela falta de liberdade e de criatividade, pela realização de pseudoatividades, pelo medo, pelo tédio e também pela monotonia. O que
define uma vida monótona é a predisposição de se evitar esforço no
tempo não ocupado diretamente pelo trabalho e onde não há esforço
é que se instala a monotonia. O trabalho é uma atividade que sempre
demandou dispêndio de energias físicas e mentais e, agora, em ambientes cada vez mais flexíveis e integrados e pressionados pelo enxugamento do número de postos, é também cada vez mais marcado
pela tensão e pelo medo. É por isso que as pessoas buscam novidades em seu tempo não ocupado diretamente pelo trabalho: “Como
um substitutivo, elas imploram por um estimulante. A música popular
vem oferecê-lo. Os seus estímulos são respondidos com a inabilidade de se investir esforços no sempre-idêntico. Isso significa mais
monotonia” (Adorno e Sinpson, 1994: 137).
O que as pessoas querem nesse tempo é diversão: é por isso que
nele torna-se impossível a realização de atividades ou de experiências formativas. Isso caracteriza outro contraponto entre Dumazedier
e Adorno e também define outra característica da vida danificada no
capitalismo tardio, isto é, a ausência de experiências formativas no
tempo que na vida das pessoas seria o tempo livre e a preponderância das pseudo-atividades, isso que resulta da falta de espontaneidade e compromete a criatividade. Para o frankfurtiano:
Pseudo-atividades são ficções e paródias daquela produtividade que a sociedade, por um lado, reclama incessantemente e, por outro lado, refreia e não quer muito dos indivíduos. Tempo livre produtivo só seria possível para pessoas
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emancipadas, não para aquelas que, sob a heteronomia,
tornaram-se heterônomas (sic) também para si próprias
(Adorno, 1995: 78).
É por isso que nesse tempo a arte é impossível: “Uma experiência
plenamente concentrada e consciente de arte só é possível para aqueles cujas vidas não colocam um tal stress, não impõem tanta solicitação, a ponto de, em seu esforço livre, eles só quererem alívio simultaneamente do tédio e do esforço” (Adorno e Sinpson, 1994: 136).
No mundo administrado, onde as melhores energias são absorvidas
pelo trabalho, é: “...inoportuno e insensato esperar ou exigir das pessoas que realizem algo produtivo em seu tempo livre, uma vez que se
destruiu nelas justamente a produtividade, a capacidade criativa”
(Adorno, 1995: 77).
Esse é o condicionamento que o trabalho exerce sobre o tempo
que seria livre. No capitalismo tardio,
103
O tempo de lazer (...) serve apenas para repor a sua capacidade de trabalho. É um meio ao invés de ser um fim. Nesse
sentido é que o lazer é uma fuga do trabalho e é isso que o
prejudica: ao mesmo tempo, é moldado segundo aquelas
atitudes psicológicas que o seu dia-a-dia no trabalho os
habitua de modo exclusivo. Música popular é, para as massas, como Domingo que se tem que trabalhar (Adorno e
Sinpson, 1994: 137).
É isso também que fornece pistas para o entendimento do que
seria o trabalho numa sociedade emancipada ou numa sociedade
verdadeira, como diria Adorno:
Talvez a verdadeira sociedade se farte do desenvolvimento e
deixe, por pura liberdade, possibilidades sem utilizar, ao invés de se precipitar, com uma louca compulsão, rumo a estrelas
distantes. Uma humanidade que não conheça mais a necessi-
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dade começará a compreender um pouco o caráter ilusório e
vão de todos os empreendimentos realizados até então para se
escapar da necessidade e que, com a riqueza, reproduziram a
necessidade numa escala ampliada (Adorno, 1993: 138).
104
Sobre isso, tanto Marx, nos “Manuscritos” de 1844, quanto ele e
Engels na “Ideologia Alemã”, de 1845/46, fizeram diferentes reflexões
e todas elas apontam a superação da propriedade privada e a abolição
do trabalho como condições do reencontro do homem consigo próprio,
com a natureza e com a sociedade. Somente numa sociedade emancipada é possível uma vida emancipada, pois um “...ser só se considera
autônomo, quando é senhor de si mesmo, e só é senhor de si quando
deve a si mesmo seu modo de existência. Um homem que vive graças
a outro, se considera a si mesmo um ser dependente” (Marx, 1987:
175). Na sociedade regida pela lógica da produção e do consumo, a
divisão do trabalho orientada pelo mercado e a caracterização da totalidade social como algo exterior ao indivíduo faz com que cada um
tenha uma “...esfera de atividade exclusiva e determinada, que lhe é
imposta e da qual ele não pode fugir; ele é caçador, pescador, pastor
ou crítico, e deverá permanecer assim se não quiser perder seus meios
de sobrevivência...” (Marx e Engels, 2001: 28).
Na associação de indivíduos livres é a sociedade emancipada e
não o mercado que regulamenta a produção geral. Com isso, embora
cada indivíduo possa se “aperfeiçoar no ramo que lhe agradar” não
haverá coerção no sentido de que cada um tenha uma esfera de
atividade exclusiva. É isso que cria condições para que cada qual
possa organizar sua vida livremente, de forma a “...hoje fazer uma
coisa, amanhã outra, caçar de manhã, pescar na parte da tarde, cuidar do gado ao anoitecer, fazer crítica após as refeições, a (...) belprazer, sem nunca (...) tornar caçador, pescador ou crítico” (Marx e
Engels, 2001: 28). É somente neste estágio:
...que a manifestação da atividade individual livre coincide
com a vida material, o que corresponde à transformação
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dos indivíduos em indivíduos completos e ao despojamento
de todo o caráter imposto originariamente pela natureza; a
esse estágio correspondem a transformação do trabalho em
atividade livre e a transformação dos intercâmbios condicionados existentes num intercâmbio dos indivíduos como
tais. Com a apropriação da totalidade das forças produtivas pelos indivíduos associados, a propriedade privada é
abolida (Marx e Engels, 2001: 84).
É isso também que permite tocar no problema da relação entre o
indivíduo, a sociedade e a natureza. É a superação da propriedade
privada e a abolição do trabalho que criam condições para uma
relação de comunicação e de paz entre esses três sujeitos:
A essência humana da natureza não existe senão para o
homem social, pois apenas assim existe para ele como vínculo com o homem, como modo de existência sua para o
outro e modo de existência do outro para ele, como elemento vital da efetividade humana; só assim existe como fundamento de seu próprio modo de existência humano. Só então
se converte para ele seu modo de existência natural em seu
modo de existência humano, e a natureza torna-se para ele
o homem. A sociedade é pois a plena unidade essencial do
homem com a natureza, a verdadeira ressurreição da natureza, o naturalismo acabado do homem e o humanismo acabado da natureza (Marx, 1987: 175).
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NOTAS
1
Trata-se do texto de Benjamin Franklin, analisado por Max Weber no capítulo
dois de sua “Ética Protestante” e que caracteriza um retrato da cultura norteamericana, o espírito do capitalismo: “uma (...) confissão de fé do yankee”.
2
Jofre Dumazedier é o sociólogo contemporâneo francês que estuda a problemática do lazer na sociedade contemporânea.
CONSIDERAÇÕES SOBRE MITO E
GLOBALIZAÇÃO
BATISTINA MARIA DE SOUSA CORGOZINHO
Doutora em Educação, membro do NRD do Mestrado em Educação,
Cultura e Organizações Sociais da FUNEDI e coordenadora do Centro
de Memória da FUNEDI/UEMG
e-mail: [email protected]
Resumo: Definições de mito, conhecimento científico e mítico, mitos
modernos e análise sobre aspectos
dos impactos do processo de globalização cultural sobre mitos tradicionais, que fazem parte da cultura brasileira. A situação de alguns mitos
tradicionais na atualidade e o processo de mitificação de determinados
objetos ou situações significativas
existentes no cenário contemporâneo
brasileiro.
Abstract: Myth definitions, scientific and mythical knowledge, modern
myths and analysis on aspects of the
cultural globalization process impacts on traditional myths, which
are part of the Brazilian culture. The
situation of some traditional myths
in the present time and the transforming process of determined existing
objects or significant situations in
the Brazilian contemporary scene,
in myths.
Palavras-chaves: cultura; mito; globalização; ciência; atualidade.
Key-words: culture; myth; globalization process; science; the present
time.
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº
- 6 – p. 107 a 122 – outubro de 2007
107
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
N
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este texto serão analisados alguns aspectos dos impactos do
processo de globalização cultural sobre mitos tradicionais,
que fazem parte da cultura brasileira. Inicialmente serão apresentadas algumas definições de mito e a seguir alguns mitos serão
situados na atualidade, mas o cerne dessa reflexão é a mitificação de
determinados objetos ou situações significativas existentes no cenário contemporâneo brasileiro. As leituras realizadas e a observação
da realidade estimularam os questionamentos que orientam a argumentação a seguir.
Ian Watt escreveu que o Oxford English Dictionary define mito
como “uma narrativa puramente fictícia, envolvendo geralmente personagens, ações ou acontecimentos sobrenaturais, e encarnando alguma idéia popular relacionada com um fenômeno natural ou histórico”. (WATT, 1997, p. 228).
GILES (1993, p. 104) explicou a expressão mito dizendo que ele
apresenta uma história não científica do pensamento de um povo. Os
mitos explicam, de forma antropomórfica e animista, fenômenos como
a criação do universo ou cosmogonia e sua estrutura ou cosmologia.
Expressam a fonte e natureza dos fenômenos humanos e naturais
como o orgulho, a inveja, os eventos sociais significantes de um povo,
sua consciência social e todas as coisas. Giles considera, ainda, que
os mitos não são verdadeiros ou falsos e reforçam por ritos os costumes de um povo e suas relações sociais.
No dicionário mito é explicado como uma “narrativa fantasista de
origem popular, exposição doutrinária sob forma de relato alegórico
(...) representação ideal do futuro” (MACHADO FILHO, 1977, p.
727), ou ainda, “tradição que, sob forma alegórica, deixa entrever um
fato natural, histórico ou filosófico. Exposição simbólica de um fato”.
(DICIONÁRIO BRASILEIRO, 1989, p. 1.153). Os mitos são apresentados também como uma história de cunho sagrado, relatando
acontecimentos num tempo inicial e primordial, narrando como as
coisas começaram a existir. Todos os povos têm seus mitos de criação do mundo e da humanidade, procurando explicar a vida passada
e presente como os índios do Brasil, assim como o Gênesis, no Anti-
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
go Testamento, com o mito da criação do Universo. As lendas, ao
contrário, são definidas como estórias de conteúdo moral e muitas
vezes se baseiam em fatos históricos. A expressão lenda vem do
latim legenda. Mitificar é transformar coisas ou acontecimentos em
mitos por meio de uma narrativa simbólica.
Para o bacharel em matemática, Cláudio W. Abramo, a história
da humanidade, pode ser contada na forma da guerra entre o misticismo e a racionalidade. Para ele:
Todo o contingente de crenças mistificadoras constituem o
sucedâneo ao exercício da racionalidade, considerada o
único instrumento de que o ser humano dispõe para avaliar
os dados da realidade, montar estratégias para enfrentálos e exercer as ações correspondentes. Renunciar à racionalidade equivale a desistir de pensar sobre o mundo e agir
de acordo (...) O misticismo é o mais clássico dos inimigos
da consciência. (ABRAMO, 2.001, p. 3)
A perspectiva comtiana opõe radicalmente o mito à razão, além
de inferiorizá-lo enquanto forma de explicação da realidade. O filósofo francês Comte, no séc. XIX, explicou a evolução da humanidade a partir do que considerou a lei dos três estados:
... todas as ciências e o espírito humano como um todo desenvolvem-se através de três fases distintas: a teológica, a metafísica e a positiva”. (...) No estado teológico (...) a imaginação desempenha papel de primeiro plano. Diante da diversidade da natureza, o homem só consegue explicá-la mediante
a crença na intervenção de seres pessoais e sobrenaturais. O
mundo torna-se compreensível somente através das idéias
dos deuses e espíritos. (GIANNOTTI, 1978, p. IX, X)
Comte considerou que o espírito humano torna-se maduro à medida que supera as formas míticas e religiosas de compreensão do mun-
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do. (...) “O estado positivo caracteriza-se pela subordinação da imaginação e da argumentação à observação”. (GIANNOTTI, 1978, p. IX, X)
Entretanto, o procedimento científico não é o único existente e muitas
vezes nem é capaz de explicar determinados acontecimentos. O cientificismo que exalta a ciência como a forma verdadeira e única de
explicar a realidade transformou-se em dos mais nocivos mitos na sociedade moderna, estimulando também a crença em seus desdobramentos: mitos do progresso, da objetividade e da neutralidade.
O significado dos mitos e sua relação com a explicação científica
são questões que estão presentes na sociedade contemporânea. Existem outras formas de pensar a relação entre ciência e mito. “Existem pontos de contato entre os objetivos míticos e os científicos. O
estudo da cosmologia quer saber sobre a origem do universo do mesmo modo que os povos criam mitos para explicar-lhes a origem. A
diferença está no modo de obter essas informações. O mito, ao contrário da ciência, utiliza seres sobrenaturais a quem atribui a função
criadora. O discurso científico não possui deuses ou heróis. Os mitos
e a verdade científica não são imutáveis, pois há uma busca constante de conhecimentos e descobertas”. (CÂMARA, 1987, p. 63-64)
O físico Marcelo Gleiser disse que a cosmologia atende a curiosidade humana de saber de onde viemos e para onde vamos. São
indagações permanentes que aparecem em todas as sociedades humanas. A cosmologia responde hoje às necessidades que os mitos
atendiam anteriormente. Ele considera Albert Einstein como membro do grupo moderno de criadores de mitos pela discussão que ele
lançou sobre o tempo e o espaço, tocando fundo nos anseios místicos
das pessoas. Daí considerar Einstein como um fenômeno semi-religioso, de quase profeta. Os modelos científicos têm sempre equivalência entre os mitos da criação do universo. O modelo da grande
explosão, o big bang, tem seu equivalente aos mitos religiosos. Para
ele, a religião tem importância no processo criativo da cosmologia.
Com outras metáforas, é como se estivéssemos “passeando com a
ciência em áreas já visitadas pela religião”. (GLEISER, 1994, p. 7-8).
Em relação ao Brasil, CHAUÍ (2000, p. 7-9) considera, que ex-
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perimentamos no cotidiano a presença de uma representação homogênea e mítica que os brasileiros possuem do país e si mesmos e nos
fala da crença generalizada que o brasileiro possui de que o Brasil: 1.
É “um dom de Deus e da Natureza”. 2. Tem um povo pacífico, ordeiro, generoso, alegre e sensual, mesmo quando sofredor. 3. É um
país sem preconceitos e que pratica a mestiçagem como padrão fortificador da raça. 4. É um país acolhedor para todos os que nele
desejam trabalhar. 5. É um país dos contrastes regionais destinado
por isso à pluralidade econômica e cultural. A força persuasiva dessa representação aparece ao tentar resolver imaginariamente uma
tensão real e produz ao mesmo tempo uma contradição que é a de
tolerar milhões de crianças sem infância, a prática do apartheid social e ter de si mesma a imagem positiva de uma sociedade fraterna.
Para essa autora, essas representações têm a ver com o mito fundador do Brasil. Chauí está empregando a expressão “mito” no sentido
antropológico, significa “a solução imaginária para tensões, conflitos
e contradições que não encontram caminhos para serem resolvidos
no nível da realidade”. A partir de meados do séc. XX , com a vitória
na copa do mundo, o tripé da imagem da excelência brasileira era o
café, carnaval e futebol. A bandeira brasileira foi incorporada hegemonicamente às comemorações e as vitórias na copa do mundo são
identificadas com a ação do Estado, transformando-se numa festa
cívica. O verdeamarelismo foi elaborado ao longo do tempo pela
classe dominante brasileira e sua construção coincide com a idéia
de nação que foi ao mesmo tempo construída e que é cuidadosamente analisada por essa autora.
Por outro lado, a literatura também construiu seus mitos. Fausto é
um personagem literário, inspirado em acontecimentos históricos; é
um dos símbolos do individualismo moderno. Significa “afortunado”
em latim e “punho” em alemão (WATT, 1997, p. 21,26).
Individualista impenitente, capaz de abrir seu próprio caminho ...encarnação das forças novas que impulsionavam a mudança ...” O mito do Fausto desponta no momento em que o
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cristianismo, no seu desenvolvimento, pensa ter polarizado
os mundos do humano e do sobrenatural em um conflito entre
o mal e o bem, conferindo à luta entre as duas partes uma
nova intensidade e um novo rigor. Isso inevitavelmente proporcionou ao Diabo e sua hierarquia uma importância teológica e psicológica sem precedentes”. (WATT, 1997, p. 27)
O personagem Dom Quixote, em seu permanente conflito com o
mundo externo, fixou-se com uma:
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Forma que reflete importantes valores e conflitos da nossa
moderna civilização ocidental ... Estamos assim em um mundo que perpetua suas próprias ilusões., tornando-as indestrutíveis por qualquer espécie de realidade... “investir contra moinhos de vento” ... um empreendimento cuja total impraticabilidade deriva da disparidade ridícula entre certo
propósito criado pela imaginação de um indivíduo e a poderosa insensibilidade do seu objeto... o indivíduo não está
buscando qualquer vantagem; é inspirado por uma nobre
mas ilusória idéia de ajudar a humanidade. A distância entre
os desejos do indivíduo, de um lado, e a realidade, de outro,
não é decerto, uma exclusividade do Quixote; a confusão
dos desejos românticos com a verdade histórica é uma tendência universal. Se o mundo atual vive em uma situação de
degenerescência, então é claro que temos de recuperar todos os valores do passado. (WATT, 1997, p. 60, 75, 76, 77).
Dom Juan é um homem que quer tornar-se uma lenda em vida:
Ser amado é uma idéia tão distante dos pensamentos de
Dom Juan quanto a de amar... quando fala de morrer de
amor, isso significa apenas que a excitação de sua carne
exige alívio imediato. Nesse ponto, seu desejo difere pouco
do apetite sexual mais ou menos constante que se pode ob-
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servar como característico de um certo tipo de jovem de
classe alta, sem outra coisa para fazer... Dom Juan habita
um mundo no qual, como em quase todos os outros, a aceitação dos códigos morais, sociais e religiosos é puro fingimento... ambígua atitude do mundo secular, que publicamente condena, mas secretamente admira ... as vitórias do
fornicador amoral. (WATT , 1997, p. 107/110)
Robinson Crusoe é um personagem que vive um longo tempo
sozinho em uma ilha deserta.
A história de Crusoe mostra como um homem comum, ao
ver-se completamente só, revela-se capaz de submeter a natureza aos seus próprios objetivos materiais, triunfando assim sobre o meio físico... racionalidade ecológica e trabalho econômico podem ser vistos como as bases morais que
sublinham o seu caráter... Assim como a razão é substância
e matéria-prima da matemática, assim também é possível a
todo homem, mediante a razão e o mais radical estabelecimento dos fatos, dominar, com o correr do tempo, qualquer
arte mecânica...” embora não seja cem por cento o homo
economicus, Crusoe vive em função de um motivo econômico, ou talvez seja mesmo governando por ele. Sua sensibilidade está conectada às coisas materiais; ele é metódico,
trabalhador, e sabe como fazer uma acurada avaliação dos
resultados... Robison Crusoe planta em nossa vida imaginativa a noção de que o trabalho infatigável é algo capaz
de nos redimir... a idéia da dignidade do trabalho... é uma
obra em que não há lugar para a expressão do coletivo...
dedicada ao egocentrismo imune à crítica; uma obra sobre
alguém capaz de florescer magnificamente em uma ilha deserta. (WATT , 1997, p. 157, 158, 162, 171, 176)
WATT (1997, p. 228-240) distingue sete aspectos de interpreta-
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ção do mito: 1. O mito procura dar respostas às questões mais ou
menos factuais ou racionais. 2. São projeções da realidade humana.
Não podem ser interpretados de modo literal. Cassirer escreveu, “é
um modo de estruturar simbolicamente o mundo”. 3. Significados
simbólicos do mito transferindo-os para processos análogos da vida
inconsciente do ser humano, como visto por Freud e Jung. 4. Ênfase
dada à sociedade: a função do mito seria manter e reforçar a solidariedade social, como visto por Durkheim e Malinowski. 5. O mito
tem função social e relaciona-se com o ritual como defendido por
Lord Raglan. 6. Mito e ritual são igualmente simbólicos e de seus
conteúdos fazem parte declarações enigmáticas sobre as estruturas
sociais como defendido por Edmundo Leach. 7. Claude Lévi-Strauss
encontrou regularidades estruturais nas representações coletivas das
sociedades primitivas. Para Schorer o mito é uma imagem capaz de
dar rumo e sentido filosófico aos fatos da vida comum. Para Ian
Watt os quatro personagens analisados podem ser interpretados como
representações das origens e das transformações da atitude individualista moderna. Eles refletem a nova ênfase de sua época na primazia social e política do indivíduo.
A ciência, mesmo com todo o poder de persuasão que possui,
convive com outras formas de explicação da realidade, onde se proliferam constantemente novas crenças e mitos. Ela própria é permeada por novos ou antigos mitos e crenças que ao longo do tempo
foram sendo re-fundados ou incorporados. Portanto, as nuances da
expressão “mito” permitem que seja abordado sem referir-se necessariamente às explicações sobre a criação do mundo, de forma menos abrangente.
(...) precisamos recuperar o mito, hoje, (...) Ele é a primeira
leitura do mundo, e o advento de outras abordagens do real
não retira do homem aquilo que constitui a raiz da sua
inteligibilidade. (...) Tudo o que pensamos e queremos se
situa inicialmente no horizonte da imaginação, nos pressupostos míticos. (...) a função fabuladora persiste não só nos
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contos populares, no folclore, como também na vida diária
do homem ao proferir certas palavras ricas de ressonâncias
míticas: casa, lar, amor, pai, mãe, paz, liberdade, morte, cuja
definição objetiva não esgota os significados subjacentes”.
(...) (ARANHA e MARTINS, 1993, p. 59)
Os meios de comunicação transformam pessoas e atividades em
imagens exemplares, que no imaginário representam todos os tipos
de anseios: sucesso, poder, liderança, sexualidade etc.
É a partir dessa perspectiva que está sendo situado o processo de
mitificação, que está ocorrendo na atualidade em relação a determinadas coisas ou situações criadas ou importadas por influência dos processos de globalização cultural: a televisão que atua, também, como
uma fábrica de criação e morte de novos mitos para satisfazerem a
voracidade da sociedade de consumo, os mitos culturais presentes na
alimentação moderna como o “fast food e o hambúrguer”, que podem
ser também designados como a macdonização da alimentação.
Nesse mesmo sentido, podemos considerar como situações míticas o ideário construído coletivamente em torno de uma peça do
vestuário contemporâneo representado pela “calça jeans” e a exportação da figura do “cowboy” norte americano. A calça jeans, originariamente uma vestimenta grosseira capaz de suportar os impactos do trabalho dos vaqueiros estado-unidenses, foi transformada em
um verdadeiro “uniforme” da juventude roqueira, desde os anos sessenta do séc. XX, se espalhando pelo mundo ocidental, numa velocidade compatível com o desenvolvimento dos meios de comunicação
de massa. Transformou-se numa peça mítica rodeada por um imaginário atraente pela cor anil e detalhes modernos e criativos. Associada sistematicamente à juventude tornou-se sinônimo de liberdade,
como divulgado pelos meios de comunicação nos anos oitenta no
Brasil; moldou comportamentos e hábitos culturais e atingiu um glamour que permite ser coroada como um dos principais ícones do
processo de globalização cultural. A cada dia ela se transforma e ao
mesmo tempo permanece e hoje ganhou espaço até mesmo na alta
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costura, apesar de seu uso já ter sido denunciado como gerador de
problemas de saúde nos órgãos genitais, especialmente na mulher.
A mitificação também está presente na alimentação, que “está
mais vinculada a fatores espirituais e tradicionais do que às necessidades fisiológicas” (FREITAS, 2006, p. 6) do ser humano. A Bíblia
relata que Adão e Eva foram condenados a sair do paraíso e ter que
produzir seus alimentos através do trabalho, por terem comido da
árvore do conhecimento, representado pela maçã. Jesus Cristo disse
“aquele que come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida
eterna”. Todos os povos possuem mitos diversos em relação à alimentação, que os levam a preferir determinados alimentos e abominar outros.
Entretanto, o que vamos enfatizar em relação à alimentação contemporânea, difundida pelo processo de globalização cultural é a presença dos enlatados, fast food, delivery etc. que cada vez mais penetram em nossos hábitos alimentares, atrelados ao modo de vida atual
sedentário e estressante nos centros urbanos, menores, maiores ou
gigantescos. Com isso as receitas tradicionais, típicas de cada povo
vão se transformando, aos poucos, em modismos e hábitos excêntricos próprios para serem vendidos para turistas. É a espetacularização da comida, mas o comemorar continua. O sanduíche, ou mais
especificamente, o “Mac Donalds” transformou-se em outro mito
associado à vida moderna marcada pela correria, falta de tempo e
individualismo.
A exportação para o Brasil da figura do “cowboy” norte americano é um outro fenômeno que ganhou maior visibilidade a partir dos
anos oitenta associado às influências da globalização cultural. A figura do “jeca-tatu” com seu chapéu de caipira, cigarro de palha e botina
foi sendo esquecida, ao mesmo tempo em que foi disseminado pela
música e pelas exposições agro-pecuárias nos ambientes urbano/rurais do interior do Brasil o imaginário do “cowboy”: calça jeans apertada, botas, cinto extravagante, uma camisa de abotoar axadrezada com
franjas e o chapéu. É a moda country oferecendo produtos de altos
preços, mas que, no entanto, não deixam de ser consumidos. Os
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
espetáculos agro-pecuários atraem um significativo público, com uma
grande presença de pessoas fantasiadas, para participarem como expectadores da grande festa. O design atrativo do chapéu do “cowboy” é bastante diferente do chapéu do caipira do interior brasileiro,
figura existente hoje muito mais no imaginário do que na realidade. O
costume dos homens urbanos usarem chapéu foi sendo esquecido no
Brasil desde os anos sessenta e a juventude incorporou o uso do boné.
Sem maiores preocupações conceituais, vamos pensar como estão vivendo, hoje, sob o impacto dos processos de globalização cultural, alguns seres imaginários, que ainda povoam os ambientes tradicionais, mas que são ressuscitados pela mídia, de forma ressignificada
na moderna vida urbana como produtos de consumo: o lobisomem, a
“mula sem cabeça”, o “saci Pererê”, o “bicho papão”, a “luz da
chapada”. Este último ainda não foi descoberto pela mídia.
Criaturas aterrorizantes como “a luz da chapada”: a bola de fogo
que vagueia pelos caminhos e matos de nossa região centro-oeste
mineira e que pode, de repente, acompanhar ou surgir à frente de um
transeunte. Esse é um mito muito disseminado na área rural, sempre
lembrado nos “causos” contados pelos adultos que juram ter passado por essa experiência ou dela ter ficado sabendo com segurança.
A noite, com suas sombras, oferece perigos para quem está sozinho
e a possibilidade da presença da bola de fogo e queimaduras funcionam como um antídoto, estimulando reações imaginárias prontas para
serem executadas no momento necessário.
O lobisomem, metade homem metade lobo, é um ser imaginário
que veio de países europeus. Esse imaginário se espalhou pelo interior do Brasil e considera que ele aparece em noites de lua cheia,
procurando sangue e matando tudo que encontra pelo caminho, crianças, mulheres, homens. Não tem o charme e sedução do vampiro,
mas é o mais aterrorizante de todos os seres imaginários da cultura
popular brasileira.
Esse é o lobisomem, um ser metade homem, metade lobo,
capaz de assustar homens, mulheres, e crianças e campeão
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de uma eleição realizada pelo Instituto Cultural Aletria,
especializado na arte de contar histórias. Os votos dos internautas não deixaram dúvidas: (site WWW.aletria.com.br)
ele é a criatura mais assustadora das histórias infantis e da
cultura popular em 2007. (Hoje em Dia, 25/02/2007, Caderno Programinha, p. 4-7)
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O lobo mau também aparece em nosso imaginário seduzindo vovós e crianças, salvas pela valentia do “homem caçador”, protetor e
provedor da família. Ele só não devora a “mamãe”, talvez porque ela
já esteja sob seu controle. O “bicho Papão”, o “homem do saco” e o
politicamente incorreto “boi-da-cara-preta” também enriquecem nosso
universo de seres imaginários, alguns deles utilizados pela mídia e
outros caindo no esquecimento.
A “mula-sem-cabeça” é uma mulher que foi amaldiçoada por ter
se envolvido amorosamente com um padre, aparecendo em noites
de lua cheia, nas quintas ou sextas-feiras em alguma encruzilhada,
onde ataca sua vítima, chupa seus olhos, dentes e unhas. Sua cabeça
é uma tocha de fogo, seus cascos são ferros, seu coice é violento,
além de relinchar chorosamente. É essa mulher endoidecida pelo
pecado, que resultaria do relacionamento amoroso com um padre,
impedido pelo voto de castidade, ou por comodidade, de se envolver
com alguém e constituir família. Esse mito quis controlar, nem sempre de modo eficaz, o comportamento de mulheres e padres no ambiente religioso. Considerando os fortes estímulos ao individualismo
e ao sexo na sociedade contemporânea, talvez estejamos precisando, hoje, de um mito mais persuasivo, capaz de inibir ações libidinosas de religiosos com crianças e adolescentes, como tem sido denunciado pelos meios de comunicação ou a revogação da exigência da
castidade, pela Igreja católica.
Já o Saci Pererê foi contemplado com um aumento de seu status
ao receber, na atualidade, a responsabilidade de ser o duende-guardião-protetor da cultura popular, frente ao avanço das bruxas estado-unidenses.
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Com o objetivo de diminuir a influência da comemoração
do Halloween (...) e, ao mesmo tempo, valorizar o folclore
nacional, foi criado no Brasil, desde 2005, o Dia do Saci
comemorado, também em 31 de outubro.(...) duende protetor de nossas matas. Criado pelos indígenas, a princípio
era um curumim perneta, de cabelos avermelhados, encantador de crianças e adultos. Em contato com o elemento
africano e a superstição dos brancos, recebeu o cognome
de Taperê, estendendo-se para Pererê Sá Pereira e tornouse negro. Depois disso, ganhou um gorro vermelho e um
cachimbo na boca”. (Hoje em Dia, 25/02/2007, Caderno
Programinha, p. 7)
A comemoração do dia das bruxas ou Halloween, importada em
decorrência do processo de globalização cultural, ocorre no dia 31 de
outubro. Na última década, essa festa passou a ser realizada, cada
vez mais, em clubes e escolas brasileiras. Os adultos se fantasiam,
as crianças se transformam em bruxinhas-boas e graciosas e ainda
persiste em nosso imaginário a dona-de-casa, feiticeira-Samantha,
veiculada pela televisão nos anos setenta do séc. XX, com seus poderes extraordinários e divertidos.
Não será uma tarefa fácil para o Saci-Pererê, pois o mercado
financeiro já transformou o “dia das bruxas” em uma mercadoria
sedutora e fácil de ser comercializada. O “dia do Saci” foi criado
para valorizar a cultura popular brasileira, entretanto, sua permanência nesse posto vai depender, infelizmente, da capacidade e desejo
do mercado em transformá-lo em uma mercadoria rentável. Um
impedimento é o fato de sua figura ser associada ao uso do cachimbo. Em alguns lugares o saci se apresenta como um demônio rural,
com personalidade de um menino travesso, que não faz grandes
maldades, mas é matreiro, gosta de enganar e atormentar as pessoas
e animais com procedimentos ingênuos. Quem for esperto pode capturá-lo e assim realizar algum desejo.
Não resta dúvida que é necessário dar ênfase à cultura brasileira,
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frente à importação de mitos desvinculados de nossas raízes, mas as
estratégias para isso terão que ser muito criativas para garantir; ao
Saci-Pererê, a posição de guardião da cultura popular. As bruxas
amedrontam, mas foram transformadas pela mídia em mercadorias
facilmente vendidas mostrando seu poder de transformação em boas
e más e sua alquimia.
Apesar de sua diversidade, todas essas criaturas simbolizam perigos reais que ao longo da vida todos nós estamos sujeitos a enfrentar. Estimulam nossa criatividade e, ao mesmo tempo, o instinto de
sobrevivência ao produzir um medo saudável em nossa mente. Dessa forma, nos protegem contra os perigos, na medida em que funcionam como vacinas. São “estórias” que fazem parte de tradições
literárias e artísticas locais e preservar essa memória coletiva, popular oral e estudá-la é um caminho que permite conhecer melhor a
própria sociedade.
As novelas veiculadas pela televisão têm um grande poder de
persuasão e de aglutinação dos mais diferentes segmentos sociais
em torno de suas histórias. No entanto, elas têm geralmente uma
mesma estrutura que é o arquétipo da luta entre o bem e o mal, como
dois pólos bem distintos e puros, senão não conseguem a audiência
necessária do ponto de vista do mercado. Caracterizar o lado do
bem e o lado do mal como separados e absolutos em si mesmos é
também uma forma mitificadora de expressar a dinâmica das relações interpessoais, pois o bem e o mal estão juntos e interelacionados e não separados nos indivíduos reais.
Podemos também encarar como situações mitificadoras os rituais
dos encontros para comemoração de datas ou acontecimentos, bem
como a adesão a partidos políticos ou ideologias. “(...) o homem se
move em direção a um valor que o apaixona e que só posteriormente
busca explicitar pela razão. Mito e razão se complementam mutuamente”. (ARANHA & MARTINS, 1993, p. 59)
Na atualidade, o mito da felicidade contaminou toda a sociedade.
Como analisou CERTEAU: “Uma sociedade inteira aprende que a
felicidade não se identifica com o desenvolvimento. Ela o confessa,
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
ao atribuir um lugar cada vez maior aos lazeres (...) cultivando o
sonho das férias ou das aposentadorias. (...)” (CERTEAU, 1995, p.
42). Por outro lado, a indústria do turismo, com muita eficiência sabe
explorar esse mito da busca da felicidade, transformando o turista no
herói contemporâneo, desenraizado e transnacional. Isso é bastante
diferente da busca pela felicidade, que orientou a procura pelo santo
graal no medievalismo.
CERTEAU critica a ficção que é oferecida ao olhar mostrando o
ser humano como participante de uma história ausente, daquilo que
“não se faz”.
O imaginário está no “ver”. (...) O tédio do trabalho ou a
impossibilidade de fazer tem como compensação o acréscimo daquilo que se vê fazer. (...) As mitologias revelam aquilo que não se ousa mais acreditar e que por isso se busca
“em imagem, e muitas vezes aquilo que somente a ficção
oferece. (CERTEAU, 1995, p. 42-44).
Os mitos não desapareceram perante a racionalização:
Exibem em catálogos de imagens os sonhos e a repressão de
uma sociedade” e invadem a publicidade. Colocados no jardim fechado do cartaz, os frutos da felicidade estão ao alcance das mãos. O discurso imaginário do comércio ocupa os
muros e “a cidade contemporânea torna-se um labirinto de
imagens (...) com o repertório das suas felicidades próximas.
(...) uma festa dos sentidos. (CERTEAU,1995, p. 45-47)
Esse é o texto da felicidade escrito pelas mídias e dado ao ser
humano contemporâneo pelo olhar. Contraditoriamente, ao mesmo
tempo em que os usos e costumes da vida moderna prometem prazeres, também desencadeiam enfermidades e o ser humano não quer
o sofrimento e, na atualidade, tem a crença de que a ciência vai
conseguir remediar tudo garantindo o estado de felicidade.
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Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
Esta reflexão não contém propriamente uma conclusão a respeito
do que foi abordado. Apenas a constatação de que analisar elementos da realidade sócio-cultural e individual, através de uma perspectiva mítica, pode nos ajudar a entender melhor as estruturas da sociedade contemporânea e as influências dos processos de globalização
cultural. O mito possui mão dupla, ao mesmo tempo em que simboliza a realidade humana, esta por sua vez, pode ser melhor entendida
se for compreendida através de categorias míticas.
REFERÊNCIAS
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WATT, Ian. Mitos do individualismo moderno. Jorge Zahar Editor: Rio de
Janeiro, 1997.
HOJE, AGORA E...
TRANSDISCIPLINARIDADE
E MODERNIDADE?
CRISTINA SILVA GONTIJO
Professora do curso de Psicologia da FUNEDI/UEMG, mestre em
Educação pela UNISAL e integrante do Ponto de Cultura de Divinópolis
E-mail: [email protected]
Resumo: As temáticas da transdisciplinaridade e a globalização podem
ser consideradas ponto de pauta. O
texto traz em questão a condição humana, processos de subjetivação e
relações sociais. A perspectiva da
Psicologia Social e Sociohistórica são
referências que orientam as afirmações declaradas e trazem um pulsar
emergente que poderá ser socializado e buscado como uma forma possível da práxis.
Abstract: The themes of Transdiscipline and Globalization may be considered the point of view. The text
questions the human condition, the
processes of subjectivities and social relations. The perspectives of Social and Social-Historic Psychology are the references which support
the statements and bring an emergent topic that may be socialized
and researched as possible form of
praxis.
Palavras-chave: construção; dialética; cenário.
Key-words: construction; dialetics;
scenary.
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº
- 6 – p. 123 a 132 – outubro de 2007
123
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
Introdução
abertura do texto não é inusitada. Talvez você, leitor, possa
estar cansado de escutar a publicidade de venda de carros.
Vamos a uma delas. Trata-se de uma conversa entre dois
homens que estão na rua e um deles comenta que, à frente, a polícia
está fazendo blitz e que ele está sem carteira de motorista. O outro
diz para ele se acalmar, pois nem de carro eles estão. O primeiro,
então, faz um comentário de alívio. Isso dá o que pensar.
Será que nos encontramos assim?
A proposta de discussão neste texto constitui-se a partir de fundamentos em afirmativas de vários autores, de diversas áreas do conhecimento, que podemos resumir em um consenso; o de que sem rupturas nas relações sociais sob o controle do sistema capitalista não há
possibilidade de mudança profunda nos segmentos da sociedade.
Um aspecto necessário para tal situação a ser vivida por nós
exige a superação da lógica desumanizadora do capital. Além das
idéias, comecemos a ser governados por realizações, pela concretude das relações, nos laços sociais.
A
124
Modernidade e pós-modernidade
Proponho a reflexão da temática a partir do livro de Pereira (2001).
O termo globalização refere-se ao processo pelo qual a vida, em
sociedade e cultural, nos diversos países, é cada vez mais afetada
por influências internacionais nas questões políticas e econômicas.
Desenvolve-se uma espécie de mercado financeiro mundial e constatam-se empresas transnacionais.
A perspectiva é cosmopolita, seres humanos que habitam grandes
centros urbanos. Serão considerados aspectos da cidade, condições
de vidas das populações, bem como aspectos psicossociais, culturais, educacionais, políticos, econômicos, do espaço e do tempo. Assim, temos contemplados os campos socioeconômico, político, religioso, estético, a arquitetura e urbanismo, comunicação, organização
do trabalho e políticas públicas.
A Modernidade (século XVI – XVIII) tem influências do Ilumi-
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
nismo (século XVII), quando o homem passa a se reconhecer, predominantemente, como um ser autônomo, auto-suficiente e universal
e a se mover pela crença de que, por meio da razão, pode-se atuar
sobre a natureza e a sociedade.
Por esse prisma, algumas referências são: mercadorias, razão,
concepção dinâmica da realidade, ciência, liberdade, progresso e organização social.
Partiu-se de um abandono do eixo centralizador das idéias religiosas, dos costumes para a lei, da tradição para a norma. Rompe-se
com a irracionalidade do mito, da religião e da superstição.
A partir de agora, regem os princípios da Revolução Francesa
(1789): Fraternidade, considerada como Estado; Igualdade, considerada como Socialismo; Liberdade, considerada como Utopia.
Pereira (2001) afirma que a Fraternidade irrompeu-se na criação
de países e guerras entre eles. A utopia da felicidade carrega o lema:
livrai-nos do desconforto do existir. Isso aproxima-se da ideologia, ou
seja, algo que possa encobrir a realidade, o que facilita a dominação
de uma visão da realidade sobre outra.
O sentido da Modernidade é a universalidade, a liberdade, a abundância, a individualidade e a autonomia. E a sua base é a sociedade
urbana industrial.
A sensação geral, conforme Pereira explicita, pode ser assim
manifestada: “Abriram-se as portas do mundo para que este fosse
conhecido e modificado” (2001, p. 23).
Em seguida, Pereira inclui o que ele denomina de xeques-mates
na razão Iluminista. Comentarei o xeque-mate ocorrido no século
XIX, quando temos situações que denunciam falhas no projeto da
Modernidade. São exemplos das situações a desigualdade social e
econômica, chegando-se à miséria. A economia do mercado apresenta longa jornada de trabalho por baixos salários. Há tensão social
e concorrência entre estados capitalistas. A ciência está voltada para
resultados materiais e parece subjugar o ser humano.
A partir daí, instala-se a crise, e acompanhamos a chegada de
uma nova nomenclatura: a Pós-Modernidade. O pós-moderno pro-
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Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
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põe ruptura com todos os problemas da Modernidade, mas sem abandonar totalmente os seus princípios.
Como subitem, o breve século XX entra em cena, quando o capitalismo revela sua natureza cruel, da exclusão social, concentração
de renda e coisificação das relações humanas. Por sua vez, temos a
crise do capitalismo e do socialismo, o desemprego em massa, dentre outros fatos.
O capitalismo, nos anos 1960, mostra-se sob a forma de insatisfação constante, soberania do consumidor, mistura de publicidade e
arte, persistência da elite como guia dos desejos da massa.
Nos anos 1970, o neoliberalismo é a marca da centralidade total
no mercado, privatização, da empresa estrangeira, do capital estrangeiro, enfim, da economia global. O neoliberalismo defende a absoluta liberdade de mercado e uma restrição à intervenção estatal sobre
a economia.
No campo do saber, Pereira escreve que: “O moderno consegue
transformar os especialistas em seres sem inteligência e os hedonistas em apaixonados sem coração” (2001, p. 34). Adiante, ele cita o
livro A estrutura das revoluções científicas, de Kuhn, que critica o
positivismo, o evolucionismo e o determinismo na ciência e no conhecimento. Segundo o autor,
A crise pode ser ainda mais profunda. Assumindo o conceito
de paradigma em sentido mais amplo, como um determinado modo de pensar, de agir, capaz de explicar os dados
fundamentais desse momento e de permitir prospecções de
futuro, percebe-se que o paradigma criado no Ocidente a
partir da Modernidade entrou em crise (2001, p. 55).
Com a ciência moderna, decaiu o senso comum. O homem não é
mais ativo e participativo do cotidiano, deixa isso para os experts.
Aqui, Pereira cita o sociólogo Boaventura de S. Santos, dizendo de
um novo saber científico. Agora, podemos dizer de um novo campo
de forças.
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
Um campo de forças é a educação popular, o trabalho comunitário, que não pertence a uma única disciplina ou campo de saber. É
regido pelo desejo de resistir ao domínio do status quo. Movimentos
populares prezam pela mobilização de segmentos da sociedade, visando à transformação social, a novas e originais formas de subjetivação. Predomina o trabalho com classes sociais menos favorecidas. De acordo com Pereira, a educação popular
é toda ação coletiva – que visa à passagem da imobilidade
ou passividade à mobilidade organizativa e participativa.
Implica em defender os direitos ameaçados, em conseguir
os objetivos do coletivo, reeducar a sociedade com novos
valores, desfazendo os padrões hegemônicos, preconceituosos e dominadores de uma determinada classe sobre outra
(2001, p. 61).
Alguns pontos desse paradigma podem ser ressaltados. São eles
a alteridade, movimentos contra a opressão, diálogo, ética e democracia no processo de construção de relações sociais, politização na
relação educador e educando, estímulo à participação e mobilização
social, a história vista como construção do cotidiano, pelas pessoas,
valorização da vida e produção conjunta do conhecimento. Nesses
termos, “a cultura nesse contexto é entendida como trabalho produtivo do homem na transformação de um saber. É a natureza transformada e ressignificada” (PEREIRA, 2001, p. 65).
“É com essa pluralidade que cada um de nós é chamado a conviver” (PEREIRA, 201, p. 72). Por outro lado, “há vários tipos de
opressão: gênero, étnica, ecológica, religiosa, política, habitacional,
comunicacional, psíquica” (PEREIRA, 2001, p. 54).
A maior parte dos movimentos populares significativos estão voltados para a introdução da diferença. Na FUNEDI, via Departamento de Extensão, temos o Ponto de Cultura de Divinópolis, atualmente vinculado ao Ministério da Cultura (MINC), pelo Programa
Cultura Viva, cujo objetivo geral é a formação de agentes culturais
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Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
128
juvenis, acolhendo várias manifestações culturais a que eles estão
ligados. Há uma crescente intenção nacional de reconhecer os movimentos populares, o protagonismo de seus agentes e instigar a construção de uma rede entre os vários pontos, com expansão a outros
países. Nesse aspecto, o transdisciplinar é o movimento vivo das
pessoas com seus saberes e fazeres, expressos e coabitados com a
alteridade.
Ainda com Pereira (2001), vemos os fundamentos do trabalho
transdisciplinar com movimentos populares. Ele questiona se os movimentos populares tiveram baixa ao longo da Modernidade e como
estão eles hoje. A resposta é que estamos na era considerada do
vazio. Se cairmos nessa falácia, nos perderemos. Se mirarmos com
o olhar transdisciplinar, podemos transformar o ser humano e suas
relações. Segundo Pereira, “a Educação Popular nunca poderá funcionar sem grandes esperanças e paixões, mesmo quando esses ideais são parcialmente derrotados e exatamente por isso, é possível
continuar lutando” (2001, p. 76).
Podemos conduzir o pensamento a algo que habita no subterfúgio
do discurso, que mesmo assim se explicita na voz julgadora de que
não temos mais futuro. Para que, então, criar a realidade? Deixe que
assim se faça, ou seja, que se cumpra o destino. Esse é o pensamento do lugar comum.
Ao longo do texto, somos convidados ao incômodo e acrescentese a isso uma importante pergunta que nos toca: como o expert se
relaciona com a comunidade, em colaboração com o coletivo?
Por fim, muitos pensamentos pairam em nosso imaginário. O imediatismo não suporta a lentidão dos resultados.
A perspectiva sociohistórica
A perspectiva sociohistórica na Psicologia entende a experiência
humana como atividade realizada socialmente pelos homens, produzindo a sua existência. A atividade dos homens implica na produção
de idéias e representações sobre elas, as quais refletem sobre a vida,
ou seja, nas ações e relações (GONÇALVES, 2001).
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
As idéias, portanto, modificam as ações dos homens e as ações
dos homens, por sua vez, modificam as idéias. Trata-se da forma
dialética de visão da realidade.
A noção de sujeito na Modernidade afirma que o homem é um ser
individual, racional e natural, bem como é um ser social, ativo e histórico. O fundamento metodológico dessa perspectiva aponta para a
base da contradição e a concepção materialista de sujeito e objeto. A
superação da dicotomia entre subjetividade e objetividade está presente nesse método.
Com o desenvolvimento das forças produtivas capitalistas, o indivíduo é mais focado como um ser capaz de decidir ou escolher. Sua
forma prioritária de apresentar-se na sociedade é como produtor e/
ou consumidor de mercadorias. O liberalismo, com o ponto de vista
burguês, enfatiza a liberdade e igualdade do homem, tal como situada na Revolução Francesa, e ainda afirma que, apesar de ser igual, o
homem é um ser individual. E mais, que tal adversidade pode ser
resolvida pelo caminho da fraternidade.
Através da visão sociohistórica, podemos observar que as construções sociais estão em um contexto historicamente demarcado, são
produções humanas. Na Psicologia, Vigotski inaugura essa visão.
A Psicologia Sociohistórica vai propor, então, a partir de
Vigotski, que se estudem os fenômenos psicológicos como
resultado de um processo de constituição social do indivíduo, em que o plano intersubjetivo, das relações, é controvertido, no processo de desenvolvimento, em um plano intra-subjetivo. Assim, a subjetividade é constituída através
de mediações sociais (GONÇALVES, 2001, p. 50).
Por sua vez, e ao nosso alcance, a linguagem faz esse papel de
mediação social. Também é ela que melhor representa a relação
entre objetividade e subjetividade. Na linguagem, está presente tanto
o signo quanto a atribuição de significados e o próprio processo de
apropriação do significado social.
129
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
130
Algumas características do pós-moderno podem ser expostas. O
pós-moderno declara a falência da Modernidade, em especial as
versões liberal e marxista, cujas metanarrativas buscam explicações
únicas para a diversidade. Pós constitui-se como a possibilidade de
um novo tempo histórico, que somente nega o Moderno, não dialeticamente (GONÇALVES, 2001). O Pós afirma que as idéias de progresso e transformação da sociedade não cabem mais, assim como
projetos coletivos totalizantes. Nem mesmo a consolidação da sociedade tecnológica e a análise de caráter das especificidades. O Pós
declara que existe um porém; que a racionalidade e a ciência não
são as únicas referências, e que a linguagem vem predominando,
mas de forma arbitrária, sem ligação com as situações reais. Com tal
poder da linguagem, até o sujeito desaparece, especificamente com
o capital multinacional, cuja identidade das diferenças são naturalizadas, e há uma declaração da invisibilidade de resistências coletivas.
Fortalecem-se noções de imediato, efêmero e local, com uma obediência máxima ao lucro e à acumulação e ao descompromisso com
qualquer coisa que não seja a produção de mercadorias.
Há um novo tempo-espaço e nova consciência por se construírem.
Cenas, no cenário
Nesse momento, evoco dois atos. O ato um consiste em uma
criança que conta um fato que escutou de seu pai. O pai e seu colega, ambos fazendo serviço de ajudante de pedreiro em uma casa,
viram a comida do cachorro, que continha bacon, e comentam a
marca da ração e o preço da mesma, bem como o tamanho do pacote. Estando com fome, comeram a tal comida do cachorro. Nesse
momento, questiono à criança se ela comeria a ração, e a resposta é
afirmativa, e acrescenta que deve ser muito gostosa e com bacon (...).
O ato dois apresenta dois fatos correlacionados. São duas cenas
próximas no tempo e no espaço. A primeira é a de um cachorro de
raça cambaleando e machucado de tanto cair. Ele estava envenenado por alguém que lhe deu o veneno. A segunda cena é a de um
homem de bicicleta que caiu e machucou o seu rosto. Ele levantou-
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
se rapidamente e caiu novamente. Estava bêbado; embriaguez causada pela bebida que ele próprio se deu.
Como nos posicionamos perante esses atos? Nos encontramos
passivos, como quando assistimos à televisão? E, mesmo passivos
quando assistimos à televisão, depois vamos repetir alguns atos que,
muitas vezes, não correlacionamos como sistemas, ou seja, como um
continuum.
A fim de conclusão
Tantas coisas estão acontecendo, em várias partes do mundo, os
seres humanos revelando suas histórias, temos várias cenas e atos,
cada vez mais disponibilizados pelos meios de comunicação. A partir
da idéia de globalização pode-se argüir sobre a intenção de que haja
uma globalização para os sentimentos, pensamentos, enfim, para o
cotidiano. Por sua vez, temos o referencial teórico abordado como
foco para a práxis, cuja tarefa é nossa.
Nós somos seres transdisciplinares. Se o conhecimento não é,
justifica-se ser ele um dos aspectos de nossa expressividade-representatividade.
Quanto à subjetividade, aprendi com a Psicologia que podemos
nos surpreender, estranhando-nos, mais do que aos outros, que podemos nos re(encontrar), mesmo perguntando: sou eu?
Conforme relata uma mãe sobre o medo de um filho de seis anos,
em que ele pergunta a ela: “Mamãe, é você mesmo?”
Escrever, ou melhor, ter o desejo de escrever, mas encontrar-se
em dificuldade pode ser mais um dos sinais da Modernidade: a
visibilidade.
Escrever, tornar-se visível, dar visibilidade a... Se passar pela comissão que seleciona os textos, ótimo! No lançamento da Revista,
melhor ainda. E depois? A escrita – e seu conteúdo, no contexto aqui
abordado, consome-se, ou melhor, utilizando-se de um ditado popular: não liga não, bom ou mal, logo passa! Quantas vezes esse logo
passa, adia-se! Do século XVI até hoje, na História que logo passa,
podem ser feitos alguns apontamentos.
131
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
REFERÊNCIAS
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OCIDENTE VERSUS ORIENTE, DEMOCRACIA
VERSUS DESPOTISMO: HERÓDOTO NO
CINEMA CONTEMPORÂNEO
FLÁVIA LEMOS MOTA DE AZEVEDO
Professora do curso de História da FUNEDI/UEMG
E-mail: [email protected]
THIAGO EUSTÁQUIO DE ARAÚJO
Aluno do curso de Licenciatura em História da FUNEDI/UEMG
E-mail: [email protected]
Resumo: Podemos dizer que o filme
“300,” um dos últimos sucessos de
bilheteria, foi mais um produto da
“febre épica” que assola Hollywood
desde “Gladiador”. Este recuo a temas da Antiguidade, agora realizado pela industria cinematográfica,
talvez se explique por uma necessidade da Ocidente contemporâneo de
reencontrar suas bases formadoras,
mesmo que isto se faça por meio da
“fabrica de sonhos”. Uma incursão
sobre o relato de Heródoto nos conduz a “febre épica” de Hollywood,
especialmente ao filme “300”, e os
possíveis sentidos desse grandioso investimento em momentos fundadores da cultura ocidental. Passa
despercebido aos olhos do público
que por detrás do filme encontra-
mos o relato histórico de Heródoto.
A ambição, a loucura e a incompreensão do déspota oriental, Xerxes,
assim, como a bravura e a obstinação grega na defesa de sua liberdade, do seu regime democrático, foram descritas pelo ‘pai da
história’.Tais pares são facilmente
percebidos na cena política internacional, principalmente nas guerras
contemporâneas em nome da liberdade e democracia, contra ‘bárbaros’ fundamentalistas e insanos, assim como na tentativa de levar a liberdade aos povos e nações que a
desconhecem por viverem sob o
jugo de tais déspotas.
Palavras-chave: Heródoto; democracia; cinema; representação.
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº
- 6 – p. 133 a 146 – outubro de 2007
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Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
Abstract: We can say that “300”, the
last sensation in screens of world,
was a production of “epical fever”
who seized Hollywood since “Gladiator”. This pull back to Antiquity,
now consumate by movies, maybe be
explain by an ocidental coavel need
to find again formation bases, even
this happen in cinema´s dream. A
promenade by Herodotus conduce
ourselves to “epical fever” of Hollywood, especially to “300”, and
the possibles reasons of this lofty
investiment on moments who coperated to western culture foundation. The crowd can´t see that behind
the movie hides Herodotu´s ac-
134
P
count. The ambition, the madness
and the incomprehension of oriental despot, Xerxes, as well as, the
prowess and greek obstinacy in defense of liberty, of democracy was
describe by the “History Father´s”.
These couples are clear note in political modern scene, especially in
coeval wars in name of democracy
an liberty against insanes and radicals ‘barbarians’, just as, the try to
carry on to all people an nations
the idea of liberty, for all who disown it living under despot´s yoke.
Key-words: Herodotus; democracy;
movies; representation.
odemos dizer que o filme “300,” um dos últimos sucessos de
bilheteria, foi mais um produto da “febre épica” que assola
Hollywood desde “Gladiador” e que gerou frutos como “Tróia”
e “Alexandre” para não citar os filmes de menor alcance. Este recuo a temas da Antiguidade, agora realizado pela industria cinematográfica, talvez se explique pela própria carência de sentido que aflige
nossa sociedade pós-moderna e globalizada; uma necessidade do
Ocidente reencontrar suas bases formadoras, mesmo que isto se
faça por meio da “fabrica de sonhos”.
Esse reencontro do Ocidente com as suas bases se faz num contexto político contemporâneo extremamente interessante, pois atualmente a maior parte dos discursos políticos ocidentais evidenciam a
proeminência da organização democrática, e a partir desta constatação posiciona-se como o grande arauto e defensor da civilidade modelar: a democracia deve ser implementada e garantida numa perspectiva global. Este paradigma ocidental, tão proclamado, naturalizase aos olhos dos seus cidadãos de forma que pouco se reflete sobre
a sua historicidade, assim como sobre a sua real implementação,
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
mesmo que nos circunscrevamos ao mundo ocidental. Afinal, nos
perguntamos o que é isso que atualmente chamamos de democracia? Quando e como é auferida a esta idéia a solenidade de paradigma de civilidade global?
Primeiramente podemos destacar o significado da palavra de origem grega onde demos denota povo e krátos, poder, isto é poder do
povo. No contexto cotidiano político dos cidadãos atuais assistimos a
tendência na ênfase no conteúdo de um ‘poder’ de decisão dos mesmos sobre os destinos do seu país, e esse ‘poder’ efetiva-se no momento das eleições, assim como salienta-se a igualdade de direitos e
liberdade de expressão. Podemos dizer que são sobre esses três elementos que se assentam as bases para a compreensão dos discursos
destinados ao grande público sobre a noção de democracia contemporânea.
Christian Meier inicia seu livro La naissance du politique discutindo exatamente a diferença existente entre a atual aplicação desse
termo e seu significado para os gregos. O termo política designava
ali tudo que dizia respeito aos negócios da pólis, o que segundo Christian Meier “era idêntico à comunidade cívica, fundada e constituída
por todo o corpo político” (MEIER, 1995, p. 13). Ou seja, referia-se
ao que era comum, ao que concernia a todos os cidadãos. Assim
sendo, o político pode ser, primeiramente, visto pela oposição entre o
público e o privado. As reflexões de Hannah Arendt esclarecem essa
distinção. Para entender a distância entre as duas esferas, para os
gregos, deve-se considerar que, de acordo com a filósofa, o ambiente familiar era o da necessidade, ligada ao suprimento das demandas
biológicas, ao passo que a vida pública era o espaço da liberdade.
Isso era tão claro que “os filósofos gregos tinham como certo, por
mais que se opusessem à vida na pólis, que a liberdade situa-se
exclusivamente na esfera política; que a necessidade é primordialmente um fenômeno pré-político, característico da organização do
lar privado”.(ARENDT, 2000, p.40).
A política ocupava, assim, na Grécia uma posição central, pois
estabelecia entre os cidadãos um vínculo superior aos laços familia-
135
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
136
res. Nesse tipo de vínculo, os membros da comunidade cívica entravam como pares, pois na cidade inexistiam, em princípio, governantes e governados. Nas palavras de Christian Meier “nesta ordem
artificialmente criada, relações totalmente diferentes são obtidas pelos seus membros: todos têm direitos iguais, e a maioria dos cidadãos
possui a autoridade suprema” (MEIER, 1995, p.40). Mas, um cidadão só era verdadeiramente digno de ser chamado assim na medida
em que participava ativamente da vida da pólis, e é nesse homem
político que se concretizam as mais elevadas qualidades morais.
Assim, o termo democracia designava uma realidade completamente diferente das até então experimentadas por outros povos, e
até mesmo pelos gregos. A radical inovação grega da democracia
residia no fato de que, na sua organização, “a política é, por outro
lado, o único lugar em que se decide o poder: o que define a pólis é
que, contrariamente à tribo ou às grandes monarquias, contrariamente
à comunidade familiar, ali ninguém possui a priori o poder” (MEIER,
1995, p.20). A palavra política – tà politiká – além de se referir a
essa experiência radicalmente diferente, designava uma constituição
justa. Quer dizer que, além de indicar um tipo de experiência de vida
em comunidade, também a identificava com um modelo eqüitativo.
A partir dessas considerações sobre a democracia na Grécia podemos ver como a nossa experiência atual é radicalmente diferente,
mesmo que sob o mesmo nome. Primeiramente devemos destacar
que para os gregos a dignidade residia na participação ativa nas decisões sobre o destino da comunidade, e que só assim poderiam ser
verdadeiramente cidadãos. Hoje, cada vez mais assistimos a um desencantamento da política, isto é a política é uma esfera cada vez
mais distante e desinteressante aos olhos do cidadão comum. Este,
na maior parte do tempo, só sofre a ação política, não participa dos
debates e das decisões das medidas, estas estão sempre fora do seu
âmbito de ação, principalmente pelo hiato estabelecido entre aqueles
que elegem e os que são eleitos, isto é entre os governados e os
governantes. Em segundo lugar devemos destacar que a ‘sensação’
de liberdade hoje faz, cada vez mais, parte do mundo privado e não
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
do público. Este último é percebido pelos cidadãos como o reino da
imposição, e conseqüentemente pela esfera da necessidade.
A democracia, enquanto paradigma de civilidade, é uma experiência recente, característica da segunda metade do século XX, isto
considerando que estamos lidando com a noção de democracia a
qual enfatiza a universalidade de cidadania, igualdade de direitos e a
liberdade de expressão. Já quanto a sua difusão no imaginário ocidental faz parte do contexto da Guerra Fria, isto é uma divulgação da
superioridade da experiência ocidental, capitalista e liberal em oposição ao mundo oriental, socialista e autoritário. No entanto, após a
queda do Muro de Berlim esse binômio perde seu sentido.
No final do século XX e início do XXI novos atores entram em
cena. Podemos dizer que a Guerra do Golfo de 1991 e, dez anos
mais tarde, os ataques terroristas de setembro de 2001 estabelecem
os novos inimigos da democracia global: os fundamentalistas e terroristas que agem sob a bandeira islâmica, são estes os novos ‘bárbaros’ do século XXI. Inaugura-se, então, a representação e o imaginário contemporâneo desses novos personagens hostis à democracia, incapazes de compreender a experiência admirável da liberdade
e do bem comum. Novamente o ‘mundo’ se vê envolvido numa cruzada contras os bárbaros, contudo é importante frisar que essa experiência não é nova, mesmo em relação aos muçulmanos, podemos
destacar as Guerras empreendidas contra esses infiéis durante a Idade
Média.
Na verdade podemos novamente recorrer à Grécia antiga onde
encontramos o mais antigo relato histórico ocidental, pelo menos conhecido, sobre essa velha oposição entre Ocidente e Oriente. Aquele elaborado no século V a.C. pelo historiador grego, Heródoto de
Halicarnassos. As investigações que resultaram na composição de
sua História foram motivadas pelo principal evento histórico do século V a.C.: as Guerras Médicas. Estamos falando da primeira peleja histórica, registrada, entre Ocidente e Oriente, fundamental tanto
para a formação de uma identidade cultural grega quanto ocidental.
Este conflito que indispôs gregos e persas imprimiu profundas mar-
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cas na memória helênica, sendo a origem de posteriores e significativas transformações no mundo grego. Foi, por exemplo, a partir das
Guerras Médicas que Atenas firmou sua soberania, tornando-se a
referência artística, cultural e intelectual do Mediterrâneo.
Para além de um simples enredo bélico, de um embate entre lanças e flechas, a História de Heródoto põe em evidência as diferenças que marcam a cultura grega em oposição ao universo oriental.
Na medida em que Heródoto criou para seus compatriotas uma representação do “outro” do “bárbaro”, não deixa de confrontar duas
culturas e ao mesmo tempo duas concepções políticas divergentes, e
a questão do poder é o elemento que estrutura e perpassa toda a
narrativa de Heródoto. A problemática do poder político atravessa
toda a narrativa herodotiana e fornece a conexão entre as suas diversas partes. Como o centro do interesse da investigação foi a grandiosa guerra travada entre o império persa e as cidades da Hélade, o
relato do historiador opõe duas formas de poder: o despotismo monárquico, característico do mundo bárbaro, e o regime isonômico da
pólis, baseado na justiça e na lei. A descrição dessas formas, efetuada ao longo da narrativa, assenta na concepção grega de ordem
universal (kósmos) e da condição humana. Os princípios que governam essas duas ordens, assim como as relações entre ambas, constituem ou fornecem os elementos da causalidade pela qual Heródoto
buscou compreender os eventos da guerra. Como se trata de categorias e princípios de uma visão global de mundo, compartilhada pelos gregos da época, podemos reconhecê-los em outras criações culturais helênicas contemporâneas, especialmente na poesia trágica.
Todas as modificações pelas quais o mundo grego passava não se
restringiam às formas de pensar. Estas correlacionavam-se às transformações estruturais pelas quais passava a pólis grega. Foi na primeira metade do século V que Atenas se tornou hegemônica na
Hélade e a democracia ateniense atingiu seu apogeu. Saiu do conflito com a Pérsia engrandecida, pois partiu dela a iniciativa da união
dos gregos em prol da defesa contra os bárbaros. Com o fim da
guerra, a pólis dos atenienses emergiu como a grande vitoriosa. A
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política ateniense, então, mostrou, mais do que em qualquer outro
momento, a vocação dessa cidade para liderar o mundo grego.
Heródoto estabelece como objetivo do seu relato o registro dos
grandes e maravilhosos feitos dos gregos e bárbaros, para que esses
não se perdessem na memória. Contudo, deve-se ressaltar que entre
essas ‘maravilhosas empresas’ a que ele se refere, acham-se incluídos não só os costumes dos vários povos envolvidos na expansão
persa, como também os grandes feitos durante o conflito. Seria, mais
especialmente o sistema político helênico, e em particular a democracia ateniense, passível de se incluir nessa categoria das ‘empresas maravilhosas’? Seria a forma grega de organização também uma
fonte de espanto e admiração do autor? Nesse caso, o exótico, o
maravilhoso e admirável residiriam no fato de os gregos terem se
organizado de uma forma completamente singular, estranha a todos
os outros povos conhecidos. Assim, a descrição dos nómoi, que consome tanto espaço na narrativa herodotiana, teria a função de realçar essa singularidade helênica.
Por se apresentarem de uma forma completamente incomum é
que os gregos confundiriam os persas com o seu comportamento
nada usual. Xerxes, levando em conta apenas o seu conhecimento
da conduta do seu povo e dos outros que havia submetido, não pôde
acreditar que eles ousassem enfrentar seu invencível exército (Heródoto, VII, 101). Não é de se admirar que o rei, advertido pelo
grego Demárato, não conseguiu alcançar o significado de suas palavras: “não me perguntes quantos são para atreverem-se a agir assim; mesmo que sejam apenas mil eles lutarão contra ti” (Heródoto,
VII, 102).
Essa incompreensão do comportamento alheio é dada como um
dos motivos que levaram à derrota persa. Mas, também é possível
dizer que a vitória dos helenos, principalmente em Salamina, deveuse à astúcia grega. Estando em enorme desvantagem numérica, o
que os fez ter sucesso foi a estratégia ardilosa. Esta condiz muito
bem com a capacidade grega de surpreender, de causar espanto e,
até mesmo, de maravilhar os persas. A astúcia empregada na bata-
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lha de Salamina, e a dificuldade persa de compreender sua conduta,
são tanto mais marcantes pelo fato de que os gregos, segundo informa o próprio Heródoto, na verdade encontravam-se alarmados com
a situação, sentindo-se mesmo à beira de um desastre. As coisas só
se inverteram devido ao ardil arquitetado por Temístocles, que enviou
aos comandantes persas uma mensagem com o seguinte recado:
O comandante dos atenienses, movido por seus bons sentimentos para com a causa do Rei, e desejoso de ver triunfar
vossas armas em vez das armas dos helenos, mandou-me sem
ser visto pelos outros helenos para dizer-vos que os helenos,
amedrontados, pretendem pôr-se em fuga, e que tendes agora a oportunidade de realizar o mais belo feito de todos se
não os deixardes escapar. Eles não estão de acordo entre si
e não vos resistirão mais. (Heródoto, VIII, 75).
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A credulidade persa diante dessa mensagem é espantosa, mas
confirmada por Heródoto na continuação da narrativa e nos fatos
que se seguiram. Os bárbaros mostram nesse episódio que realmente não tinham compreendido nada a respeito da conduta helênica.
Nem sequer por um momento desconfiaram da falsidade da mensagem enviada, apesar de já estarem bem cientes da obstinação, da
resistência dos adversários. Antes, mudaram toda a estratégia, de
acordo com o que estes esperavam, ficando completamente vulneráveis em pleno mar Egeu. Sua incrível ingenuidade diante do estratagema helênico sugere que o relato de Heródoto deliberadamente
dramatizou a confusão do soberano persa, a fim de realçar a singularidade dos gregos e os contrastes de comportamento entre os dois
povos.
A mesma estranheza é notada com relação aos valores políticos.
Xerxes afirma, de acordo com Heródoto, que não esperava valentia
de um exército de homens livres, não comandados e conduzidos pelo
chicote de um senhor. Acostumado a lidar com súditos, julgava que o
esforço guerreiro decorria menos da bravura dos soldados que do
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temor destes ao chefe. Foi incapaz de perceber que as razões dos
gregos eram opostas. Eram bravos e valentes, justamente, por serem livres. E esse ponto fica claro no diálogo entre os Lacedemônios
e Hidarnes, no qual os primeiros dizem ao comandante persa: “Conheces a sujeição, mas ainda não experimentastes a liberdade, e não
sabes se ela é doce ou não. Se a tivesses experimentado não nos
aconselharias a lutar por ela apenas com lanças, mas até com machado” (Heródoto, VII, 135).
É esse o espanto, o deslumbramento que causa a constituição
política grega. Os persas e os bárbaros em geral, para Heródoto, não
sabiam o significado da palavra liberdade, pois mesmo que seu território não se achasse sob o domínio de outro povo, estavam sempre
em sujeição a seu monarca. Ao longo de toda a narrativa herodotiana, a descrição dos nómoi dos vários povos bárbaros mostra que
nenhum deles conhecia a liberdade desfrutada pelos gregos, pois todos possuíam uma constituição política monárquica ou tirânica, e,
portanto, despótica. Em contraste, os helenos só se sentiam sujeitos
à lei: “de fato, sendo livres, eles não são livres em tudo; eles têm um
déspota – a lei – mais respeitada pelos lacedemônios que tu por teus
súditos” (Heódoto, VII, 104). Embora entre os gregos se encontrassem casos de tirania ou de monarquia, a tirania sempre acabava
abolida e as realezas helênicas – por exemplo a espartana – possuía
um caráter diverso da monarquia bárbara, por serem os poderes dos
reis limitados tanto pelas assembléias existentes quanto pelas leis.
Quase todas estas, entretanto, foram abandonadas e substituídas por
regimes mais livres e justos. Enfim, sendo os gregos o único caso de
povo livre em toda a História, não é descabido pensar que a narrativa os apresenta como motivo de espanto, de admiração. Em vez
dos bárbaros, seriam eles os exóticos.
Na perspectiva grega do século V a.c, o poder bárbaro conheceu
sua expressão na realeza, considerada, em conjunto com a tirania,
uma forma despótica e irracional de poder. Segundo François Hartog, o discurso sobre o despotismo desenvolveu paralelamente ao da
democracia na Grécia e Heródoto, por sua vez, contribuiu para a
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construção desta imagem carregada do despotes (soberano) enquanto
transgressor das normas e tradições sociais. A ambição imperialista
dos monarcas e tiranos de Heródoto é representada na forma de
uma loucura arrebatadora que compromete a capacidade de discernimento. Quando acometidos pela insanidade não conseguem mais
prever as conseqüências de seus atos, muito menos reconhecer os
limites de sua condição humana. O que para o pensamento grego da
época implicava em punição.
O despotes (soberano) se impõe pelo uso arbitrário da força;
representado como um senhor de escravos, não hesita em fazer uso
do açoite para inspirar a obediência. Seus exércitos são conduzidos à
guerra sob o “estalar do chicote”, as tropas persas são comparadas
aos bandos de animais gregários que seguem passivamente o condutor. Aquele se lança numa busca insensata e gratuita pelo poder que
quase sempre termina num fim trágico. Uma vez afogado na própria
loucura, que por sua vez é conseqüência da cobiça pelo poder, não
consegue mais sair e por fim acaba arrastado a hybries (desmedida)
e daí ao infortúnio.
O par monarquia-tirania encontra seu inverso na democracia,
considerada o símbolo da justiça e do comedimento (sophrosyne);
os gregos antigos reconheciam nas leis (nomoi) e somente nestas o
único soberano inconteste. Hartog questiona se no lugar do rei os
gregos não estariam colocando o nómos. “De modo algum” responde ele, pois “instaurar o nómos é expulsar o tirano. A lei não mutila,
sendo mesmo a negação da transgressão, é sim aquilo que substitui a
hybries pela medida” (HARTOG, 1999, p.336).
Na História assim como no filme “300”, o que move os gregos é
o desejo irrestrito de liberdade, o que os faz entrar nas tirremes (navios) ou conduzi-los aos campos de batalha não é o constrangimento
por parte de um senhor, mas a ânsia de livrar a Hélade do jugo indecoroso. Xerxes não compreende isto e subestima a coragem dos
gregos; acredita não estarem à altura justamente por não possuírem
um soberano capaz de conduzi-los, ou coagi-los, à vitória. Para Heródoto a incompreensão dos persas foi, justamente, o motivo de sua
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perdição deixando-se enredar numa armadilha; a fragorosa derrota
infligida ao rei Xérxes por uma força numericamente inferior, adquire assim valor simbólico, punitivo.
Essa incursão sobre o relato Heródotiano nos conduz a “febre
épica” de Hollywood, especialmente ao filme “300”, e os possíveis
sentidos desse grandioso investimento em momentos fundadores da
cultura ocidental. Passa despercebido aos olhos do público, atordoado com a sobrecarga de efeitos especiais e com a transformação
“bárbara” do ator Rodrigo Santoro, que por detrás do filme encontramos o relato histórico de Heródoto. A ambição, a loucura e a incompreensão do déspota oriental, Xerxes, assim, como a bravura e a
obstinação grega na defesa de sua liberdade, do seu regime democrático, foram descritas pelo ‘pai da história’. Tais pares são facilmente percebidos na cena política internacional, principalmente nas
guerras contemporâneas em nome da liberdade e democracia, contra ‘bárbaros’ fundamentalistas e insanos, assim como na tentativa
de levar a liberdade aos povos e nações que a desconhecem por
viverem sob o jugo de tais déspotas.
A oposição estabelecida entre gregos e bárbaros por Heródoto
diz respeito primeiramente às diferenças culturais entre esses dois
povos, assim como as diferenças contemporâneas, que culminam
com as diferentes organizações políticas. Esse tipo de interferência
é comum ao pensamento grego. Encontramo-la tanto em Heródoto
como em Aristóteles, que assim a exprime:
Cada povo recebeu da natureza certas disposições e a diferença dos caracteres é facilmente reconhecível se observarmos os mais famosos estados da Grécia e as diversas partes
do mundo.
(...) Os asiáticos são mais inteligentes e mais próprios para
as artes, mas nem um pouco corajosos, e por isso mesmo são
sujeitados por todos e estão sempre sob o domínio de algum
senhor.
Situados entre duas regiões, os gregos também participam
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de ambas. Em sua maioria, têm espírito e coragem; conseqüentemente, conservam a sua liberdade, e são muito civilizados. Poderiam mandar no mundo inteiro se formassem um
só povo e tivessem um só governo. (Aristóteles, III, 1288a).
144
Para além das diferenças culturais, Aristóteles reconhece a influência da natureza na determinação do caráter de cada povo. Essa
ascendência dos fatores naturais sobre as instituições é essencial
para entendermos a conduta dos povos, segundo o filósofo. Em função dela, os asiáticos tendiam para a adoção de regimes em que o
poder se concentrava nas mãos de um senhor, enquanto os gregos
eram mais propensos a adotar formas de governo onde reinava a
liberdade. Mas, em Aristóteles, essa natureza, ou talvez suas características peculiares, diziam respeito tanto a fatores naturais quanto
às determinações culturais e de costumes: talvez se possa exprimir
melhor essa diferença a partir da definição de Darbo-Peschanski
(1998, p. 60), que indica que a organização mental e psicológica dos
povos, como determinante para a sua particularização, que ditava a
inclinação dos povos para um ou outro regime, não era entendida
somente em termos físicos. Abrangia também a sua característica
constituição psíquica, como se vê na seguinte apreciação: “Como os
bárbaros são naturalmente mais submissos que os helenos, e os asiáticos em geral mais que os europeus, eles suportam o poder despótico sem qualquer queixa. Estes governos monárquicos, portanto, são
de natureza tirânica pelas razões apontadas.” (Aristóteles, III, 1285b).
Se, para o filósofo, a forma de governo adotada pelos bárbaros decorria da própria natureza destes, o que a caracterizava era a injustiça. E a injustiça, por sua vez, resultava da ausência de leis. Novamente em relação à cena contemporânea o que percebemos é próximo desta descrição, pois os orientais, na verdade os fundamentalismos
islâmicos, também são representados como povos que desconhecem
as leis para o bem comum, principalmente as democráticas.
Sob o comando de Xerxes e sob o seu reinado o império persa se
lança ao seu mais impetuoso desafio. No relato herodotiano, esse
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desafio, personificado pela Hélade, denota a possibilidade de transpor geograficamente o território da Ásia, o Oriente, e estabelecer
pela primeira vez um império oriental na Europa, ou seja, na porção
ocidental do mundo. Além disso, o consentimento de Xerxes significa o confronto entre os povos com costumes, com pressupostos culturais radicalmente diferentes, o que implica uma distinção essencial
entre o conflito greco-pérsico e as guerras de conquista antes empreendidas pelos bárbaros. Pela primeira vez enfrentaram-se duas
formas inconciliáveis de poder político, a soberania isonômica das
cidades helênicas e a dominação irrestrita da monarquia meda.
A figura de Xerxes, assim, tem um peso especial, que o destaca
frente aos outros personagens que, tal como ele, encarnam o destino
funesto dos homens que almejaram um poder exorbitante. Nele se
manifesta, mais plenamente que em todos os outros a inconsistência
intrínseca ao despotismo monárquico, decorrente do caráter aberrante dos regimes injustos e desregrados. É esse o sentido do espantoso revés sofrido por sua investida contra a Hélade. A impecável
vitória dos gregos expõe, como nenhum dos insucessos experimentados pelos antecessores de Xerxes, a fragilidade verdadeira dos impérios orientais.
Na verdade, a narrativa herodotiana muitas vezes nos dá a impressão de que existe um anátema, uma maldição, ou seja, que a
loucura e os crimes de seus personagens despóticos provêm de uma
maldição dos déspotas. Esse efeito produzido pela trama herodotiana aproxima-a do enredo trágico, pois a própria idéia de punição
necessária e da ruína fatal dos que almejaram e exerceram um poder excessivo indica um parentesco do relato herodotiano com a tragédia. É oportuno lembrar, em apoio à suposição desse vínculo, que a
primeira peça de Ésquilo, Os Persas, tematizou justamente o malogro da expedição de Xerxes. Isso, porém, não quer dizer que a história se originou na tragédia; significa, antes, como assinalou Hartog,
que “tragédias desse tipo criam um campo de aceitação no qual se
torna possível, para qualquer um, contar para seus contemporâneos
as guerras” (HARTOG, 1999, p.337).
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Tomando como referência a contemporaneidade, soa irônico o
modo como as coisas são colocadas por Heródoto: a “frágil” Grécia,
apegada aos ideais de liberdade e justiça, faz frente às hostes imperialistas de Xérxes. O jogo na modernidade, entre o ocidente democrático e os déspotas orientais, ainda parece bem próximo daquele
descrito por Heródoto. E, não é fortuito o fato de os “300” ser uma
super produção estadosunidense, assim como o desfecho desta “nova”
e ao mesmo tempo “velha” luta pode ainda nos surpreender com o
mesmo teor catártico de uma tragédia grega. Assim, como a estranheza e o espanto diante do comportamento do ‘outro’ e do ‘diferente’, fundamentais para o efeito produzido pelo relato, são partes integrantes dos desencontros contemporâneos.
BIBLIOGRAFIA
146
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000.
ARISTÓTELES. Política. Tradução de Mario da Gama Kury, Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1997.
DARBO-PESCHANSKI, Catherine. O discurso do particular: ensaio sobre
a investigação de Heródoto. Brasília: Editora da Universidade de Brasília,
1998.
HARTOG, François. O espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação
do outro. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1999.
HERÓDOTO. História. Tradução portuguesa de Mário da Gama Kury, 2ª
ed., Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1988.
MEIER, Christian. La naissance du politique. Paris: Gallimard, 1995.
EM BUSCA DE UM MÉTODO PARA
LIDAR COM O ACONTECIMENTO
CONTEMPORÂNEO GLOBALIZADO
ALEXANDRE SIMÕES RIBEIRO
Psicanalista, doutor em Filosofia pela UFMG e coordenador do Mestrado
em Educação, Cultura e Organizações Sociais da FUNEDI/UEMG
E-mail: [email protected]
Resumo: O artigo aborda as relações
da contemporaneidade com a modernidade através de uma lógica espacial. Para tal, são apresentadas as propriedades e as problematizações dos
processos chamados esféricos face
aos processos moebianos. Daí, propõe-se elementos para um método
condizente com as problematizações
contemporâneas.
Abstract: The article approaches
the relations of the contemporary
age with modernity through a space
logic. For such, the properties and
the problematizations of the spherical called processes are presented
face to the Moebius’s processes. From
there, one considers elements for a
joust method with the contemporaries problematizations.
Palavras-chave: esfera; dobra; problematização; método.
Key-words: sphere; fold; problematizations; method.
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- 6 – p. 147 a 162 – outubro de 2007
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A Máquina do Mundo1
Carlos Drummond de Andrade
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E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco
se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas
lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,
a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.
Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável
pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar
toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.
[...]
Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,
a esperança mais mínima – esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;
como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face
que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,
passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes
em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,
baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.
A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,
se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.
S
ob uma forma que apenas almeja salientar algumas vias a serem percorridas e sensibilidades a serem promovidas, intentaremos realizar reflexões que se mostrem atentas à demarcação de elementos imprescindíveis à edificação de um método para
lidar com o acontecimento contemporâneo em um mundo, de certa
forma, globalizado.
Uma espacialidade contemporânea para a máquina do mundo?
As performáticas discussões acerca de uma era pós-moderna
que usualmente pretendem nos convencer acerca de sua genuína
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legitimidade, de sua certeira existência, suas nítidas demarcações,
bem como suas curiosas relações com o anterior e as possibilidades
de seus devires mostram-se, a maior parte do tempo, infrutíferas.
Aliás, quase sempre se instalam (na Universidade e também fora da
mesma) como debates condenados a um hermetismo que mais parece interessar aos acadêmicos desvinculados das questões urgentes
de seu tempo do que aos seus supostos agentes, envolvidos por demais que estão em sua poiesis cotidiana, sem muita preocupação
com datações, estilos, filiações, escolas, etc.
Todavia, são numerosas e consistentes as evidências que sinalizam e materializam – sob a forma de processos certamente complexos – um corte entre as formas de vida de nosso tempo (entenda-se:
as vivências que reorganizam nosso tempo e nosso espaço) e uma
certa figuração de um passado não muito distante. Caso pensemos,
a título somente de demarcação sem querer aí localizar todos os
mencionados processos complexos, em certos instrumentais tecnológicos largamente difundidos em e para um mundo globalizado (em
especial, o triunvirato composto pela informática, telecomunicações
e biotecnologias), a mencionada descontinuidade se nos impõe de
maneira inexorável.
Certamente, muitos de nós, a cada instante, a experienciam sob
uma forma dupla, quando não declaradamente ambivalente. Ora surgem lamentos saudosistas que nos oferecem a imagem – certamente, alicerçada em um engodo – da existência de um passado mais
estável, tradicional, certeiro, orientador e correto que se encontra
cada vez mais desalojado pelas mudanças avassaladoras inevitáveis,
portadoras que são de um indesejável índice moral: a degeneração.
Esta é a base argumentativa recorrente de um essencialista, de um
timoneiro-purista que deseja fundamentar, ou melhor, naturalizar sua
perspectiva na imagem da estabilidade.
O engodo mais acima indicado, nesta circunstância, não haverá
de ter outra designação senão esta: o anseio pela origem. E com
toda a emblemática polissemia que a origem comporta: biológica,
religiosa, metafísica, histórica, cultural, étnica. Por outro lado, como
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sugerimos, um distinto pathos, isto é, uma outra afetação é igualmente proposta aos nossos imaginários: aquela que aclama os grandes
valores e facilitações, bem como as promessas sociais e individuais
dos novos tempos. Geralmente, os admiradores de um novo mundo
que, segundo eles mesmos, está ocorrendo diante de nós e em nós
mesmos, podem aí ser reconhecidos. Trata-se aqui da base argumentativa dos artífices do upgrade (de tudo e de todos). O frenético, o
instantâneo, o líquido que se conformam a continentes polivalentes para
daí a pouco inundá-los e extravasá-los são usuais nesta paisagem.
Assim, desde as vertigens causadas pelo caráter agora gelatinoso
de um mundo outrora estável, ao maravilhamento de um universo inesgotável de possibilidades dadas suas aceleradas mutações, é sempre a
unidade que se nos propõe: a imagem de um mundo e o mundo através
de uma imagem. Esta aglutinação com vistas à síntese entre o côncavo
e o convexo (que tomaremos a liberdade de designá-la e detalhá-la, em
breve, como processo esférico) nos ofusca quanto à coexistência de
contrários e obliqüidades que, enquanto tais, sempre resistem à unidade. Elementos oblíquos: são os esburacadores da unidade.
Ao que tudo dá a entrever, a crítica (no sentido de crise que clama por exame e inteligibilidade de seus critérios) só se fará quando
considerarmos seriamente a lógica dos processos de resistência.
Preferencialmente, as resistências locais, difusas, incomensuráveis
ao logocentrismo. Ou seja, a arquitetura e a dinâmica daqueles acontecimentos que diante da máquina do mundo2 insistem por não seguir as rotas e metabolismos que proporcionam homogeneidades,
previsibilidades, seriações. Neste sentido, há de ser edificada uma
crítica que considere os processos-fora-da-série.
Voltemos ao corte, no caso, o corte da máquina do mundo. É
plausível, quando não, prudente, insistir que um corte há. Para apreendermos tal cesura, discorramos um pouco sobre aquilo que parecia orientar as perspectivas e os fazeres em um período largo de
nossa Modernidade. Caso a datação seja aqui relevante – mas não
se trata, a nosso ver, de circunstâncias ligadas fixamente ao tempo
que ficou para trás – delimitemos, como uma extremidade do espec-
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tro, a Revolução Científica (século XVII/XVIII) até os instantes em
que, na outra extremidade, a Revolução Industrial começou a gerar
seus paradoxos mais agudos, a saber, o final do século XIX .
É justo compreender que os eventos que ali se deram, eventos
estes das mais diversas ordens (sociais, políticas, estéticas, culturais,
etc.) arranjavam-se desde uma lógica muito peculiar que poderíamos designar de processos esféricos:
Os processos ali seguiam um fluxo esférico. Eram abordados,
interpelados, dados a ver e a compreender sob a lógica esférica.
Eram produzidos esfericamente. Lembremo-nos que processos esféricos tendem a proporcionar tão-somente problematizações esféricas. Era assim aquela máquina, a máquina do mundo moderno.
A esfera porta propriedades impressionantes que, entretanto, podem nos parecer muito banais e, até mesmo, eternas e naturais, dada
a nossa familiaridade com as mesmas. Na intenção de produzir uma
imagética, pensemos na esfera acima ilustrada como detentora de
um diâmetro bastante generoso e, assim, vejamos ao menos três propriedades complementares que lhe são marcantes. Daí decorrem,
por sua vez, as problematizações.
Antes, um esclarecimento quanto à noção de problemática/problematização. À primeira vista, pode parecer que estamos nos referindo, por intermédio desta noção, àquilo que já é devidamente contemplado seja pela História das Idéias, seja pela História das Mentalidades. Contudo, gostaríamos de ressaltar que, desde uma perspectiva foucaultiana (que consideramos bem adequada em se tratando
desta questão), a problemática não se reduz à análise dos sistemas
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de representação (âmbito maior da História das Idéias) nem mesmo
à análise das atitudes e esquemas de comportamento (campo da
História das Mentalidades). Para Foucault (2006: 231)
O pensamento não é o que se presentifica em uma conduta e
lhe dá um sentido; é, sobretudo, aquilo que permite tomar
uma distância em relação a esta maneira de fazer ou de
reagir, e tomá-la como objeto de pensamento e interrogá-la
sobre seu sentido, suas condições e seus fins. O pensamento
é a liberdade em relação àquilo que se faz, o movimento
pelo qual dele nos separamos, constituímo-lo como objeto e
pensamo-lo como problema.
152
Então, vejamos as propriedades triádicas e as problematizações
decorrentes dos processos esféricos. Primeiramente, os processos
esféricos dividem o espaço em duas porções. Cada uma destas porções se comporta como superfícies, planos infinitos que podem ser
incomunicáveis. Seria tentador, na medida em que o espaço já está,
por definição e experiência, repartido em dois, engendrar um mapeamento do dentro e do fora, do perto e do longe, do familiar e do
estranho, do centro e da periferia. Aliás, esta foi uma problematização proporcionada pelo espaço bilátero; uma problematização que,
em todas as suas possibilidades e manifestações, seguia um fluxo,
digamos, colonizador. A indagação marcante desta paisagem: como
adequar o fora ao dentro?
Em segundo lugar, os processos esféricos e esferóides cruzam
fronteiras tidas como simples linhas tênues e demarcatórias que, ao
serem ultrapassadas, fazem o contraste do dentro com o fora, do
centro com o periférico. Em suma, as fronteiras são linhas-mortas,
que servem apenas para delimitar espaços (e processos) naturalizados e naturalizantes. A problematização que atravessou diversos discursos e saberes aí engendrados: a problematização da conversibilidade.
Sua forma usual: como converter, transformar os contrários?
Terceira propriedade: só se pode passar para o dentro, estando no
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
fora (ou vice-versa) por meio de cisão, perfuração, invasão; enfim,
um ato interventor. E isto nos lança para uma decorrência, talvez, a
mais importante até agora discernida: os processos esféricos são
orientáveis. Há um antes e um depois, a direita e a esquerda, o acima
e o abaixo. Logo, teleologias, desenvolvimentos, progressos e hierarquias aí se conjugam bem. Trata-se da pedagogia do interventor.
Em outros termos: a máquina esférica do mundo nos permite
perceber para onde os processos estão se dirigindo, em que darão e,
por conseguinte, como detê-los, reorientá-los, etc. Isto, pelo fato deles serem reversíveis e invertíveis pelas mudanças de posição naquele mesmo espaço bilátero. Daí decorre uma problematização progressista: como acelerar a marcha dos processos (uma vez que
partem de x e chegam em y)?
Para verificar melhor esta atraente propriedade – de ampla repercussão política – podemos fazer um experimento. Lancemos sobre a máquina esférica pequenos dispositivos que girariam sobre as
suas duas superfícies em sentidos bem nítidos. No sentido horário,
em uma superfície e, na outra, no sentido anti-horário:
Corte interno: a orientação “dentro”:
153
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
Corte externo: a orientação “fora”:
154
Estes dispositivos continuariam sempre a percorrer toda a superfície em um único sentido. Isto faz desta figura, desta espacialidade
algo orientável. Um hipotético ser que caminhasse na superfície (tanto
a de dentro, quanto a de fora, já que a esfera dicotomiza o espaço)
sempre acreditaria se está indo para o leste ou o oeste, para cima ou
para baixo. Por outro lado, ele teria a possibilidade de, através de um
corte, inverter o sentido do giro. Isto implica na conjugação das três
problemáticas: a da colonização, da conversibilidade, da orientabilidade. Isto basta para prosseguirmos.
Se o Moderno (em todas as suas perspectivas não-coincidentes,
a saber: modernismo, modernização e modernidade) é largamente
esferóide, bem como as problematizações que ele engendra, a Contemporaneidade, diferentemente, não parece sê-lo.
Nada mais estranho do que ainda desejar intervir naquilo que segue
e materializa a lógica do Contemporâneo (em todas as suas perspectivas heterogêneas: pós-modernismo, pós-modernização e pós-modernidade) desde a espacialidade esférica. A máquina do mundo contemporâneo, não se nos impõe como dicotômica, todavia, moebiana:
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
Esta figura, conhecida dos matemáticos que se dedicam mais especialmente à Topologia mas, igualmente, de muitos artistas, apresenta propriedades curiosas que também vão lhe proporcionar nomeações diversas: Banda de Moebius, Faixa de Moebius, Contrabanda, etc. A sua notoriedade deve-se a August Ferdinand Möbius
que, em 1858, tendo em vista a obtenção de um prêmio ofertado pela
Academia de Paris sobre a teoria geométrica dos poliedros, a estudou detidamente.
A Contrabanda – a nomeação que consideramos mais perspicaz
e positivamente irônica para a figura exibida – porta, por sua vez,
propriedades e abre possibilidades para processos bem distintos aos
da esfera. Primeiramente, ela não divide o espaço em duas porções
bem discerníveis. Se há uma separação, esta é apenas momentânea,
devida a um instante de escala reduzida em seu circuito. Imaginemos um percurso pela Contrabanda, exploremos este espaço. Iniciaremos nossa caminhada, nossa prospecção em um ponto e retornaremos ao mesmo, tendo passado por aquilo que seria um dentro e um
fora. Ora, se isto foi possível, logo significa que não estávamos em
outra coisa a não ser em uma única e só superfície que, por efeitos
de dobras e torções, permitiu um certo percurso. Um percurso que,
ao modus operandi da máquina esférica do mundo, seria mágico,
pois ele permitiria entrar e sair sem cisão, furo, invasão.
Em segundo lugar, percebemos que as fronteiras não são somente
linhas demarcatórias, todavia, campos de passagem, fluxos de travessias. Logo, zonas nas quais processos ocorrem e não só espaços vazios que deixam certas identidades intocadas na sua travessia. Não se
trata, pois, de processos mortos e bem adestrados mas aquilo que está
em todos os lugares, vivamente permitindo contornos inusitados (como
aquele da aparente transição entre o espaço de dentro e o de fora ...).
A terceira propriedade, bem incômoda aos dicotomizadores da
colonização, da conversibilidade e da orientabilidade. Voltemos aos
nossos pequenos dispositivos giratórios, desta vez, sobre a superfície
moebiana. Detenhamo-nos, a título de exemplo, ao dispositivo (que
pode ser uma obra de arte, um movimento literário, um discurso, uma
155
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
156
ação, uma comunidade) que gira no sentido horário. Caso ele transite pelo espaço proporcionado pela Contrabanda, em um certo momento torna-se possível que ele, sobre a mesma superfície (sem a
perfuração do espaço, portanto), gire em sentidos diversos! Isto se
dá concomitantemente à travessia de uma fronteira. Em suma, a
Contrabanda não é, diferentemente da esfera, orientável. Isto traz
implicações sérias sobre o tempo, a causalidade e o devir.
Em outras palavras, o dentro e o fora são impressões enganosas,
prematuramente instantâneas de um olhar que ainda insiste em repartir o espaço em duas categorias primeiras. Por conseguinte, estritamente falando, não se entra nem mesmo se sai deste espaço –
desta máquina do mundo – demarcando assim ontologias irredutíveis, ao menos tal como a esfera e suas problematizações davam a
entender. As passagens, os trânsitos constantes são a regra.
O percurso-processo-moebiano, que nos leva a verificar processos rígidos (hegemônicos) e desarticulados (resistentes) em uma
mesma e só superfície, nos conduz também a constatar relações
bem mais complexas com aquilo que, entre nós todos, parece nos
diferenciar e, por outro lado, nos articular.
Não uma era, mas uma problemática pós-moderna
Desde 1989, encontra-se entre nós uma perspicaz apreensão
moebiana da contemporaneidade. Esta apreensão foi levada a efeito
por um argentino que pensa as dobras do espaço latino-americano:
Néstor García Canclini.
Suas reflexões encontram uma interessante localização em seu
livro Culturas híbridas (lançado pela primeira vez no Brasil em 1997).
Tal obra torna-se instigante pelo deslocamento que seu subtítulo já
implica sobre a problemática pós-moderna. Ei-lo: estratégias para
entrar e sair da modernidade. Trata-se, pois, de uma reflexão que
se situa no campo foucaultiano da problemática.
A argumentação de Canclini acerca de nosso tempo, nossas rupturas e continuidades – e tudo sito sob o prisma das especificidades
latino-americanas face às metanarrativas européias – é construído
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
com zelo e rigor. Os capítulos do livro são polarizados por duas argumentações que o autor nomeia de entrada e saída. Talvez, um jogo
irônico com a esfera que, ao longo da narrativa, finda por sofrer um
processo de torção moebiana. Há, ainda, a partir das edições lançadas em 2001, uma introdução-maior intitulada da seguinte maneira:
as culturas híbridas em tempos de globalização. Esta introdução
porta um caráter autônomo face ao restante do livro. Elaborada sob
a forma de artigo, se faz acompanhar por uma bibliografia destinada
especialmente ao seu argumento. É assim que Canclini vai nos familiarizando com o que localizamos aqui a título de problemática pósmoderna: nossa relação com as etapas da Modernidade não é unívoca nem unilateral. Não se trata de se pensar em uma relação na
qual a Modernidade nos foi apresentada como um ideal a ser seguido
de forma modelar ou um métron a ser constantemente proposto como
o referente seguro para as nossas diferenças com o de fora, o outro.
A proposta da hibridação (termo que vem de contrabando – ou na
contrabanda? – da biologia, passando por transformações, certamente, nas travessias das fronteiras com as Ciências Sociais) é, neste
cenário, uma tática que nos conduz ao plano maior da estratégia.
Todavia, trata-se de uma tática que, em sua irrupção, promove a
reformulação de uma cena em um ponto preciso mas de larga repercussão: nos pares organizadores de conflitos: tradição-modernidade,
norte-sul, local-global.
Sobre a hibridação, Canclini nos propõe, dentre outras perspectivas, a que se segue: “... entendo por hibridação processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e
práticas.” (2006: XIX)
E ainda ressalta: “... a hibridação não é sinônimo de fusão sem
contradições” (2006: XVIII)
Em suma, são as próprias idéias de pureza, de essência ou, para
usar um termo importante para Canclini, de “coleção” que são postas
em ponto de fusão. Tudo aquilo, em suma, que patrocina as problemáticas esféricas.
157
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
Método
O percurso de Canclini pode nos indicar os elementos imprescindíveis para se estabelecer um método (via, caminho, rota) para a
abordagem dos acontecimentos contemporâneos. Não se trata aí de
substituição de cenários ou deslocamentos de entidades conceituais
mas, sim, de processos que articulam heterogeneidades sem camuflar o conflito: “por essas razões, sustento que o objeto de estudo não
é a hibridez, mas, sim, os processos de hibridação.” (CANCLINI,
2006: XXII)
É nesta circunstância que ganha um relevo considerável o fio e a
trama que compõem o tecido da Modernidade e nossa relação com o
mesmo. Entradas e saídas, uma relação jânica3 com a Modernidade:
“... resisti a considerar a pós-modernidade como uma etapa que substituiria a época moderna. Preferi concebê-la como um modo de problematizar as articulações que a modernidade estabeleceu com as
tradições que tentou excluir ou superar.” (CANCLINI, 2006: XXX)
158
E aí complementa, com um jargão híbrido, entre Foucault e Deleuze: “A descoleção dos patrimônios étnicos e nacionais, assim como a
desterritorialização e a reconversão dos saberes e costumes foram
examinados como recursos para hibridar-se.” (CANCLINI, 2006: XXX)
Tal corte se situa, certamente, entre aquilo que ainda podemos
compreender tenuamente como nós e as problematizações até então esféricas do mundo:
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
Problematizações esféricas do mundo: aquilo que, apesar de ter
atingido seu auge no século XIX, ainda vigora, mesmo que fracassado:
a apreensão do problema (seja ele qual for) a partir da divisão do
espaço e das categorias em dois níveis. Estes níveis, sempre tidos
como naturais e essenciais, avalisadores, pois, de todas as espécies de
dualismos. O dentro que se opõe ao fora, o perto que se opõe ao longe,
a causa que se opõe ao efeito. Nota-se que esta oposição é também
uma dependência estabelecida entre os antagonistas em questão.
Uma figura de alcance considerável, no que tange ao nosso momento jânico encontra-se, por exemplo, na imagem do “pós-intramoderno” provocativamente engendrada por Canclini, em um de seus
momentos4.
Já estamos à altura de pensar acerca disto que cotidianamente
nos impacta sem aguardar pelos significados estáveis que possamos
lhe atribuir?
Da Contrabanda ao Contrabando
As problematizações pós-modernas, que parecem extrair a lógica
de seus processos da espacialidade moebiana, não haverão de ser enfrentadas circunscrevendo-se em espaços disciplinares. Estes, podemos dizer que ainda são excessivamente debitários da lógica esférica.
Compreendemos que é na confluência e na tensão (ou seja: na
articulação daquilo que se mostra inicialmente na cena global bem
como na resistência à articulação) que algo desta ordem, próximo ao
que tendemos a compreender como metodologia poderia ser edificado. Para lidar com as problemáticas contemporâneas, precisamos
de espaços estriados ao invés de lisos. E isto não se edificará sem a
prática constante de processos fronteiriços. A abordagem oblíqua de
temas e objetos é salutar, pois, para a constituição de metodologias
híbridas e oblíquas.
Encontramos uma imagem amparadora do que intentamos transmitir em uma situação dupla vivida por um mesmo personagem, todavia, um personagem que não permanece o mesmo. O filósofo francês Gilles Deleuze, na ocasião de participar de uma experiência uni-
159
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
versitária que, a princípio, colheria os efeitos revolucionários do maio
de 68 na França, assim descreve a situação que era a de condução
de um ensino de filosofia na recém inaugurada Universidade de Paris VIII – Vincennes:
Em Vincennes, a situação é diferente. Um professor, digamos, de filosofia, fala de um público que inclui, com diferentes níveis de conhecimento, matemáticos, músicos (de formação clássica ou da pop music), psicólogos, historiadores, etc.[...] É, pois, por conta própria que os ouvintes vêm
buscar alguma coisa num curso. O ensino da filosofia orienta-se, assim, diretamente, pela questão de saber em quê a
filosofia pode servir a matemáticos, ou a músicos, etc. –
mesmo, e sobretudo, quando ela não fala de música ou de
matemática. (DELEUZE, citado por GALLO, 2003, p. 16)
160
O grande desafio, para tal, parece ser a demarcação de intercessores em meio à cena global. São os intercessores, muitas vezes,
que possibilitam a dobra e o próprio contrabando da Contrabanda:
O essencial são os intercessores. A criação são os intercessores. Sem, eles não há obra. Podem ser pessoa – para um
filósofo, artistas ou cientistas; para um cientista, filósofos
os artistas – mas também coisas, plantas, até animais, como
em Castañeda. Fictícios ou reais, animados ou inanimados,
é preciso fabricar seus próprios intercessores. É uma série.
Se não formamos uma série, mesmo que completamente imaginária, estamos perdidos. Eu preciso de meus intercessores para me exprimir, e eles jamais se exprimiriam sem mim:
sempre se trabalha em vários, mesmo quando isso não se vê.
(DELEUZE, 1992, p.156)
Desta forma, podemos propor que a Contemporaneidade não é
sem intercessores, quando o que está em questão é, em alguns ins-
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
tantes e circunstâncias, a primazia dos processos moebianos sobre
os processos esféricos. A metodologia consiste, por conseguinte, em
abrir as problematizações a estes intercessores.
BIBLIOGRAFIA
CANCLINI, Nestor García. Culturas híbridas; estratégias para entrar e sair
da modernidade. 4.ed. São Paulo: EDUSP, 2006.
CLIFFORD, James. Culturas viajantes. In: ARANTES, Antonio A. (org.) O
espaço da diferença. São Paulo: Papirus, 2000.
DARMON, Marc. Ensaios sobre a topologia lacaniana. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.
DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: 1992, Editora 34, 1992.
FOUCAULT, Michel. Polêmica, política e problematizações. In: Idem. Ditos
e escritos, vol V; ética, sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense, 2006.
GALLO, Sílvio. Deleuze & a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
GUPTA, Akhil, FERGUNSON, James. Mais além da “cultura”: espaço, identidade e política da diferença. In: ARANTES, Antonio A. (org.) O espaço da
diferença. São Paulo: Papirus, 2000.
NOTAS
1
Este poema foi escolhido como o melhor poema brasileiro de todos os
tempos por um grupo considerável de escritores e críticos, a pedido do
caderno “Mais!” do jornal Folha de São Paulo (edição de 02-01-2000). Drummond o publicou originalmente no livro Claro enigma (de 1951). Para este
artigo, o extraímos parcialmente de seu outro livro Nova reunião, publicado
pela José Olympio, Rio de Janeiro, 1985, pág. 300.
2
Máquina, aqui, sem nenhum voto a uma reacionária reedição dos mecanicismos ou determinismos oitocentistas que tinham nos instrumentos artificiais (o relógio, o autômato) a chave para o mundo (ou uma boa parte do
mesmo). Intentamos conceber a máquina como aquilo que é composto por
elementos heterogêneos, por processos sem centro, daí, a possível e interessante desmontagem de uma máquina.
161
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
3
Referimo-nos aqui ao deus romano Jano (Janus), o porteiro celestial de
duas faces, indicando os términos e os começos, o passado e o futuro. Jano
nos faz lembrar que uma porta é, sempre, aquilo que se volta para dois lados
aparentemente diferentes. Daí, a origem do nome janeiro e, por extensão,
janela.
4
Cf. CANCLINI, 2006: 356.
162
BIOÉTICA PARA EDUCAÇÃO AMBIENTAL:
UM PARADIGMA NECESSÁRIO
SÉRVIO TÚLIO PORTELA
Aluno do curso de Mestrado em Educação, Cultura
e Organizações Sociais da FUNEDI/UEMG
E-mail: [email protected]
Resumo: O pensar e o fazer em educação ambiental não podem prescindir de um referencial bioético que a
ressignifique e que assegure a preservação das dimensões biopsicossociais que lhe são intrínsecas, sob
pena de se esvaziar de seu sentido
crítico-reflexivo e de seu potencial
transformador. Sem um paradigma
bioético claro e presente nas suas
múltiplas abordagens, a educação
ambiental pode se reduzir ao ensino
sobre o meio ambiente, numa perspectiva transmissiva e conteudista
que em nada se compromete com a
vida social. Dessa forma, afastar-seia da cena contemporânea, descontextualizando-se e comprometendo
sobremaneira a possibilidade de sua
condução sob a ótica transdisciplinar, indispensável para a desejável
complexificação desse objeto.
Palavras-chave: educação ambiental;
bioética; contemporaneidade; transdisciplinaridade.
Abstract: The thought and action
in environmental education cannot
dispense a bioethic reference as ressignification that assure it to the preservation of the biopsicossocial dimensions that are inherent to it, under penalty of deflation of it’s criticreflexive sense and transforming potential. Without a bioethic paradigm
that is clear and present in it’s multiple approaches, the environmental education is able to itself reduce
to the teaching about the environment, in a transmisive and content
perspective that in nothing compromises the social life. That way it
would move away from the contemporary scene, descontextualizing
and compromising excessively the
possibility of it’s conduction under
the transdisciplinar point of view,
indispensable for the desirable complexification of that object.
Key-words: environmental education; bioethics; contemporary nature; transdisciplinarity.
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº
- 6 – p. 163 a 173 – outubro de 2007
163
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
Introdução
ste artigo, revisitando o tema bioética, busca articular tal objeto com o mister de se empreender a educação ambiental na
sociedade hodierna, sob o entendimento de que o meio ambiente implica dimensões que extrapolam a circunscrição própria da
biologia, para incorporar componentes antropológicos, de forma a
lhe preservar o caráter biopsicossocial.
Por ser a educação ambiental um processo que redunda em
(inter)ações comprometidas com a (re)construção conceitual e axiológica da parte do sujeito social, esta não se pode dar de forma meramente intuitiva e assistemática. Há de se processar, antes, como
um movimento eivado de intencionalidade, portanto norteado por referenciais históricos, filosóficos e temáticos que a bioética suscita
por sua própria natureza conceitual.
Assim, para levar a efeito a articulação pretendida entre bioética
e educação ambiental, será oportuno situar ambos os objetos temáticos quanto aos seus contornos históricos e conceituais, preservando
a perspectiva contemporânea e recorrendo à concepção transdisciplinar que possibilite a complexificação e conseqüente abrangência
que tais objetos suscitam.
Para tanto, serão apropriados subsídios de textos temáticos em
diálogo permanente com as contribuições conceituais e as teses de
ALBAGLI (1998), FERNANDES (1992), FLOR (2004), dentre outros, de forma a consubstanciar o presente estudo.
Em síntese, esse exercício adota como objetivo evidenciar a imprescindibilidade da adoção de um paradigma bioético como norteador do pensar e do fazer em Educação Ambiental; paradigma este
que, espera-se, não seja definitivo e imutável, já que não o é a própria
vida social; mas consonante com a cena contemporânea que o ato
educativo ajuda a compor.
E
164
1. Educação ambiental e (bio)ética
A educação ambiental enquanto possibilidade de construção axiológica e de potencialização dos ideais e das ações transformadoras
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
é historicamente antecedida da preocupação com o meio ambiente,
sobretudo em virtude do reconhecimento de que há uma gama de
recursos naturais vitais para a existência humana que não têm caráter renovável. Essa preocupação suscita por si mesma a preocupação com os atores que integram a cena social e que se relacionam no
e com o meio ambiente natural e social que compõem. Sendo assim,
a preocupação em tela perpassa valores e responsabilidades individuais e coletivas, imbricadas inevitavelmente com referenciais
(bio)éticos explícitos ou subjacentes às ações (e omissões) na vida
social.
1.1. Educação ambiental – Dimensões históricas e conceituais
Não seria razoável falar em educação ambiental sem a articular
com a consciência ambiental, ainda que em grau de incipiência. Assim é que a adoção da perspectiva histórica da educação ambiental
nos remete ao século XIX, quando, em 1863, Thomas Huxley já procede à abordagem das relações entre o homem e os demais seres
vivos em seu ensaio “Evidências sobre o lugar do homem na natureza”, ao qual sucede o livro “O homem e a natureza: ou geografia
modificada pela ação do homem”, cuja abordagem se identifica com
a preocupação com a possibilidade de esgotamento dos recursos do
planeta face a ação do homem.
Num movimento crescente, a temática ambiental extrapola então
seus contornos tradicionais para ganhar novas dimensões. Como
observa ALBAGLI (1998, p.44) “a questão ambiental deixou de ser
vista como problema restrito ao meio técnico-científico, abrindo espaço na agenda política dos países, tanto internamente, quanto nas
negociações por eles travadas na arena internacional”.
O curso da história revela-nos, então, o mundo com crescente
preocupação (e iniciativas) na esfera da preservação ambiental, que
ganham relevo em fóruns como a Conferência das Nações Unidas
sobre Meio Ambiente em Estocolmo (1972); Conferência de Belgrado (1975); a Primeira Conferência Intergovernamental sobre Educação Ambiental (Tibilisi, 1977); o Seminário sobre Educação Ambi-
165
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
166
ental (Costa Rica, 1979); o Congresso Internacional sobre Educação
e Formação Ambientais (Moscou, 1987); o Seminário Latino-Americano de Educação Ambiental (Argentina, 1988) e a Conferência das
Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (Brasil,
1992). No Brasil, no entanto, o movimento não se dá historicamente
na mesma direção; aliás, o que se tem, em particular no período da
Ditadura Militar, é a expressão do ufanismo traduzido na edificação
de grandes obras (usinas, ferrovias, rodovias etc.), levadas a efeito
freqüentemente em detrimento da preservação do meio ambiente.
Os eventos de caráter internacional, aos quais o Brasil efetivamente se incorporou somente nas últimas décadas, sintetizam, vale
dizer, o grande debate multinacional sobre os temas meio ambiente e
educação ambiental, que suscitam a necessidade de uma visão menos fragmentária e mais integradora desses objetos. Nas palavras de
DIAS (2004, p.254), “a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade, longe de uma utopia, surgem como uma grande meta, uma exigência natural para a sobrevivência da espécie humana, se ela quiser
continuar sua escalada”.
1.2. Educação ambiental e (re)construção axiológica
Enquanto atividade humana socialmente construída, a Educação
Ambiental se compromete com diferentes ambientes históricos, políticos, sociais e econômicos, que tratam o binômio natureza X cultura,
a partir de diferentes referenciais éticos, filosóficos, conceituais e
didático-pedagógicos.
Tais ambientes possibilitam reconhecer, no mínimo, três contornos do pensar e do fazer em educação ambiental: formal, informal e
não-formal. Há de se ressaltar, no entanto, que os contornos de cada
instância do pensar e do fazer pedagógico em educação ambiental
não configuram ambientes estanques, mas circunscrições com recorrentes interfaces e alto grau de interlocução e complementaridade. Em qualquer instância, todavia, vale a percepção de BRANCO
(2003, p.3), para quem “a Educação Ambiental deve preocupar-se,
inicialmente, com a ação do homem e suas causas, reflexo de seu
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
conhecimento de mundo; portanto, trata de mudança de valores, de
costumes”.
Nessa perspectiva, a despeito de envolver diferentes atores, métodos e processos, em tempos e espaços também diversos mas dotados de nexos articuladores; a educação ambiental há de ter presente
orientação ética clara, visão holística e compromisso com a construção de sujeitos sociais autônomos e responsáveis. Ademais, há de
considerar que sua efetividade só se verifica se se comprometer
com a revisão de conceitos, representações, costumes e conduta
individual e coletiva, caracterizados por visão conseqüente e coerente, traduzindo-se, em última análise, como possibilidade de
(re)construção axiológica e conceitual.
2. Ética e bioética
O pressuposto de que a Educação Ambiental implica a
(re)construção conceitual e axiológica da parte do educando enquanto
sujeito-aprendente, remete à necessidade de proceder a algumas
considerações acerca dos componentes (bio)éticos que lhe são intrínsecos e que se explicitam em seu âmbito ou lhe são subjacentes.
Dessa forma, proceder a considerações sobre (bio)ética e responsabilidade individual e coletiva historicamente consubstanciadas e presentes na cena contemporânea faz-se eludicativo no sentido de compreender sua importância para o pensar o e fazer em educação ambiental.
2.1. Ética e vida social
Perpassando o universo da inquietude humana, a ética sempre se
fez presente na vida social e, como observa FERNANDES (1992,
p.67), “o homem sempre se interrogou sobre os princípios do seu agir
moral e de suas conseqüência”. Assim é que a expressão, ora subliminar, ora explícita de um padrão ético, é uma constante na ação (e
omissão) do homem, consonante (ou em conflito) com os referenciais de seu tempo-espaço.
A compreensão das dimensões éticas da (con)vivência humana
167
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
impõe a necessidade de visão transdisciplinar, que incorpore percepções da história, da geografia, da antropologia, da psicologia e, em
particular, da sociologia, de modo que possamos imprimir potencial
crítico-reflexivo ao conhecimento individual e coletivo da dimensão
humana. Nessa perspectiva, aliás, ressalta GIDDENS (2005, p.24)
que “a maioria de nós vê o mundo a partir de características familiares a nossas próprias vidas. A sociologia mostra a necessidade de
assumir uma visão mais ampla sobre por que somos como somos e
por que agimos como agimos”.
Afinal, procedendo a indagações e respondendo-as pelo viés complexificador da construção do conhecimento é que nos permitiremos
identificar e explicitar os referenciais éticos (e bioéticos) que orientam o nosso pensar e fazer na cena social.
168
2.2. Bioética: recortes históricos, filosóficos e temáticos
Se a ética é tão antiga quanto à existência humana, perpassando
a vida social e se fazendo presente como forma de expressão da
inquietude humana, a bioética por sua vez assume contorno mais
específico, que ganha relevo a partir de 1971 com a publicação da
obra Bioética: “uma Ponte para o Futuro, de Van Rensselaer Potter,
a qual constitui marco histórico relativamente ao tema, a despeito de
algumas controvérsias sobre a paternidade do termo”, conforme observa DINIZ E GUILHEM (2005, p.10).
A dimensão semântica que ganha o termo torna-se flagrante nas
palavras de Potter, consignadas por FLOR (2004, p.166). O biólogo
e oncologista diz adotar o termo com o intuito de “representar o conhecimento dos sistemas viventes”, assim como “representar o conhecimento dos sistemas dos valores humanos”.
Essa acepção de bioética descola o termo de sua conotação inicial identificada com a ética em medicina, que invocava recorrentemente as questões da conduta médica, como transplantar órgãos ou
não, praticar a eutanásia ou não, proceder a pesquisas em corpos
vivos ou não etc.; para lhe conferir abrangência mais ampla.
Dada a complexidade que o tema assume, no entanto, não se
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
pode reduzi-lo ao contorno monodisciplinar, sobretudo por envolver,
em diálogo com os “sistemas viventes”, os valores humanos. Essa
perspectiva encontra eco em FERNANDES, que observa:
Na área da Bioética, a comunicação não pode ser vista
como um dado natural, mas se apresenta como uma tarefa
de toda a comunidade científica, pois o diálogo interdisciplinar da Bioética comporta a participação de diferentes
disciplinas com seus diferentes estatutos epistemológicos.
(FERNANDES, 1992, p.71),
Assim é que soa pertinente a assertiva de FLOR, para quem
A Bioética, inicialmente um movimento social que lutava
pela ética nas ciências biológicas e áreas correlatas, hoje é
também uma disciplina norteadora de teorias para o Biodireito e para a legislação, com a finalidade de assegurar
mais humanismo nas ações do cotidiano das práticas médicas e nas experimentações científicas que utilizam seres
humanos. (FLOR, 2004, p.166).
3. Bioética e educação ambiental: uma articulação necessária
3.1– Paradigma bioético para uma educação ambiental resignificada
Tendo em vista o conceito de educação e de educação ambiental
que refuta o paradigma transmissivo do ato educativo ou, nas palavras de FREIRE (1987), a “educação bancária”, há de se ter presente a concepção sócio-construtivista de VYGOTSKY (1998), que
tem por foco o sujeito-aprendente como autor de seu processo de
construção cognitiva. Afinal, se a educação ambiental implica, por
natureza de existência, a (re)construção axiológica e a (re)orientação
atitudinal, há de implicar a incorporação, da parte do sujeito, de valores capazes de nortear o seu pensar e o seu fazer enquanto cidadão.
Assim é que adoção de paradigmas (bio)éticos se faz relevante e
169
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
inevitável, e mais: sua adoção deliberada ou a ignorância de sua existência irão redundar inevitavelmente na expressão de valores, quer
explícitos, quer subliminares. Afinal, como advertem PONTES e
SCHRAMM
a bioética não é apenas uma reflexão de segunda ordem,
como qualquer outra ética prática, ou aplicada, visto que
pretende dirimir concretamente os conflitos morais, ou seja,
ela é ao mesmo tempo descritiva dos fatos consistentes em
conflitos e dilemas morais existentes, e normativa, pois pretende prescrever e proscrever comportamentos, a partir de
processos de crítica e justificação. (PONTES E SCHRAMM,
2004, p.1321).
170
Dessa forma, para que o pensar e o fazer em educação ambiental
não cumpram vias fortuitas, resultantes da ausência de intencionalidade e de visão conseqüente relativamente ao ato educativo, há de
se estabelecer a necessária articulação, de forma a ressignificar o
mister educativo, em lugar de o comprometer com a transmissão
reducionista de conceitos ou com o indesejado laissez-faire. Em última análise, a adoção deliberada e inequívoca de um paradigma bioético apontará para a ressignificação do pensar e do fazer em educação ambiental sócio-construtivista, portanto capaz de se comprometer com a construção de sujeitos crítico-reflexivos e dotados de
potencial transformador no contexto do meio ambiente de que são
partes integrantes.
3.2 – Bioética, contemporaneidade e transdisciplinaridade: pressupostos e desafios da educação ambiental
Se, de um lado, é imprescindível a adoção de um paradigma bioético norteador do pensar e do fazer em educação ambiental, de outro, há de se ter presente que, por sua própria natureza conceitual, o
paradigma não pode ser único nem imutável. Há de se adotar a perspectiva macro em diálogo com o referencial micro de percepção da
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
realidade, sob pena de esvaziar de sua identidade os atores da cena
social. Nessa perspectiva, faz-se pertinente a observação de GRÜN
(1996, p.112) que, discorrendo sobre o “horizonte epistemológico”
atinente à educação ambiental, registra que “a dimensão ética da
educação ambiental deveria ser buscada na história recalcada de
nosso relacionamento com o ambiente”.
O cenário das múltiplas interações nos remete à consideração do
meio ambiente como
um lugar determinado e/ou percebido onde estão em relações dinâmicas e em constante interação os aspectos naturais e sociais. Essas relações acarretam processos de criação cultural e tecnológica e processos históricos e políticos de transformação da natureza e da sociedade. (REIGOTA, 2001, p.21).
Essa percepção impõe a necessidade do estabelecimento de nexos articuladores entre a bioética e a contemporaneidade, sobretudo
por ser o ambiente – social e natural – dinâmico e mutável, portanto
propulsor de mudanças de paradigmas, como forma de responder
coerentemente aos apelos e possibilidades emergentes na cena social. Afinal, não podemos olvidar que, conforme explicita FLOR (2004,
p.166), “Ética diz respeito a consensos possíveis e temporários entre
diferentes, e mesmo divergindo na compreensão de mundo e nas
perspectivas de futuro, às vezes, conseguem estabelecer normas de
convivência social relativamente harmoniosas em algumas questões”.
Por fim, a complexidade inerente ao objeto epistemológico da
educação ambiental, bem como a necessidade de complexificar o
pensar e o fazer nessa seara haverão de encontrar na transdisciplinaridade o catalisador das potencialidades e possibilidades manifestas,
de forma a ensejar à educação ambiental ressignificar-se, redimensionando os atores e suas relações no ambiente natural e social, a fim de
potencializá-los para assumir de forma crítico-reflexiva, autônoma,
cooperativa as suas responsabilidades individuais e coletivas.
171
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
172
Considerações finais
À guisa de conclusão, vale ressaltar que o presente estudo não
guarda a pretensão de fixar um paradigma bioético para a educação
ambiental, mas tão somente de reconhecer sua imprescindibilidade
para o pensar e o fazer nessa seara. Afinal a bioética deve corresponder à expressão de um tempo e de um espaço histórico-social
dinâmico por natureza de existência e não se pode olvidar que os
valores são próprios de sujeitos sociais, que os devem construir dialogicamente e se fazerem seus apologistas por meio de seu pensar e
de seu fazer na cena social.
Assim, levar a efeito a pretensão de os fixar a priori seria ir de
encontro às suas dimensões subjetivas e contextuais, subestimando
o papel dos sujeitos sociais e as condicionantes e determinantes da
cena contemporânea.
Todavia, a construção, apropriação e instauração de referenciais
bioéticos implicará preservar-lhes o caráter complexificador, do qual
não se pode prescindir sob pena de se incorrer em reducionismos.
Essa concepção impõe a necessidade de incorporação do foco transdisciplinar de abordagem, que redunda nas múltiplas freqüentações
entre as disciplinas, como ensina DOMINGUES (2001).
Em suma, a Educação ambiental que supere o caráter transmissivo de conteúdos para o pensar e o fazer nessa seara, haverá de se
comprometer com referenciais bioéticos que tenham presentes os
sujeitos, seu contexto biopsicosssocial contemporâneo e a abordagem
transdisciplinar que assegure a complexidade que lhe é intrínseca.
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processos psicológicos superiores. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
173
PACTO PELA VIDA: A INCLUSÃO DO IDOSO
NAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE
ELIETE ALBANO DE AZEVEDO GUIMARÃES
Enfermeira, mestre em Enfermagem pela UFMG e docente do Mestrado
em Educação, Cultura e Organizações Sociais da FUNEDI/UEMG
LINDA MAIRA DOS SANTOS NUNES
Aluna do curso de Mestrado em Educação, Cultura
e Organizações Sociais da FUNEDI/UEMG
174
Resumo: Este artigo consiste numa
sistematização da evolução das políticas públicas de saúde, mostrando a
inexistência das mesmas quanto à
atenção à saúde do idoso, enfatizando o pacto de gestão, que é a mais
recente política do governo Federal,
que, pela primeira vez, inclui a assistência à pessoa idosa. O artigo perpassa pela integralidade como construção e prática social, contribuindo
para o controle social na efetivação
do que preconiza a política nacional
de saúde da pessoa idosa.
Palavras-chave: Saúde do Idoso; pacto pela vida; história das políticas públicas de saúde; integralidade.
Abstract: This article consists of a
systematization of the evolution of
the public politics of health, showing
the inexistence of the same ones as
to the attention to the health of the
elderly emphasizing the management pact, that is the most recent
politics of federal government, which includes the assistance to the elderly for the first time.
The article elapses for the completeness as social practical construction, contributing for the social control in efetivation of what it praises
the national politics of health of the
elderly.
Key-words: Health of the Elderly;
pact of the life; history public politics of health; for the completeness.
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº
- 6 – p. 174 a 185 – outubro de 2007
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
Introdução
Brasil é um país que envelhece, devido ao decréscimo das
taxas de fecundidade e mortalidade que se observa durante
as últimas décadas. No inicio do século XX, um brasileiro
vivia em média 33 anos; ao passo que hoje, a expectativa de vida dos
brasileiros atinge os 68 anos. O grupo etário de 60 anos ou mais é o
que mais cresce proporcionalmente.
Em 1991, o país tinha cerca de 11 milhões de idosos, o que representava 7,3% da população geral. As estimativas indicam que no ano
de 2025 o Brasil deverá ter mais de 32 milhões de pessoas com 60
anos ou mais, o que representará 15% da sua população.
Em paralelo às modificações observadas pelo crescimento populacional, modifica-se o perfil de saúde da população. Ao invés de
processos agudos que “se resolvem” rapidamente através da cura
ou do óbito, tornam-se predominantes as doenças crônicas e suas
complicações, que implicam em décadas de utilização dos serviços
de saúde.
Um dos resultados desta dinâmica apresentada é uma demanda
crescente por serviços de saúde mais complexos, especializados e
de maior custo, sejam eles públicos ou privados.
Segundo dados apresentados por pesquisa realizada pela OMS
em doze países da América Latina, a situação econômica e a falta de
acesso aos serviços de saúde são os principais problemas enfrentados pelos idosos. (Chaimowitz, 1998)
Este estudo busca realizar um esboço histórico e uma análise
crítica das políticas públicas de saúde, desde a promulgação da Constituição/88 até a recente política do governo federal, através da Portaria nº 399/ GM de 22/02/06, que estabelece as diretrizes do pacto
pela saúde, que contempla o pacto pela vida, onde a saúde do idoso
aparece como uma das seis prioridades pactuadas entre as três esferas do governo.
O
Revisão de Literatura
No Brasil, o direito universal e integral de assistência à saúde
175
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
176
tornou-se direito social na Constituição de 1988 e reafirmado com a
criação do Sistema Único de Saúde (SUS), legitimado com a Lei
Orgânica da Saúde 8080/90. Por esse direito, entende-se o acesso
universal e equânime a serviços e ações de promoção, proteção e
recuperação da saúde, garantindo a integralidade da atenção, nas
diferentes realidades e necessidades de saúde da população e dos
indivíduos. Esses preceitos constitucionais encontram-se reafirmados pela Lei nº 8142/90, que dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde e sobre as transferências
intergovernamentais de recursos financeiros na área de saúde. As
Normas Operacionais Básicas (NOB), editadas em 1991, 1993, 1996,
por sua vez, regulamentam e definem estratégias e movimentos táticos que orientam a operacionalização do sistema.
Concomitante à regulamentação do SUS, o Brasil organiza-se
para responder às crescentes demandas de sua população que envelhece. A Política Nacional do Idoso, assegura direitos sociais à pessoa idosa, criando condições para promover sua autonomia, integração e participação efetiva na sociedade, reafirmando o direito à saúde nos diversos atendimentos do SUS (lei nº 8842/94 e decreto nº
1946/96).
Em 1999, a Portaria Ministerial nº 1395 anuncia a Política Nacional de Saúde do Idoso, a qual determina que os órgãos e entidades do
Ministério da Saúde relacionadas ao tema promovam a elaboração
ou readequação de planos, projetos e atividades na conformidade
das práticas e responsabilidades nela estabelecidas (Brasil 1999).
Em 2002, propõe-se a organização e a implantação de Redes
Estaduais de Assistência ao idoso (Portaria nº 702/SAS/MS de 2002),
tendo como base as condições de gestão e a divisão de responsabilidades definidas pela Norma Operacional de Assistência à Saúde
(NOAS). Como parte de operacionalização das redes, criam-se as
normas para cadastramento de centros de referência em atenção à
saúde do idoso (Portaria nº 249/SAS/MG de 2002).
O Estatuto do Idoso foi elaborado em 2003, com intensa participação de entidades de defesa dos interesses dos idosos. O Estatuto
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
amplia a resposta do Estado e da sociedade às necessidades da população idosa, mas não traz consigo meios para financiar as ações
propostas. O capítulo IV do Estatuto reza, especificamente, sobre o
papel do SUS na garantia de atenção à saúde da pessoa idosa, de
forma integral, em todos os níveis de atenção.
Em fevereiro de 2006, a Portaria nº 399/GM, estabelece as diretrizes do pacto pela saúde que contempla o pacto pela vida. Nesse
documento, a Saúde do idoso aparece como uma das seis prioridades
pactuadas entre as três esferas de governo, sendo apresentada uma
série de ações que visam, em última instância, à implementação de
algumas das diretrizes da Política Nacional de Atenção à Saúde do
Idoso.
Percebe-se, nesse delineamento histórico sucinto, um avanço teórico/jurídico acerca das políticas públicas de saúde. Entretanto, na
prática, convivemos com uma precariedade e uma defasagem de
alternativas concretas frente às necessidades de instalações físicas
adequadas, recursos humanos em quantidade e qualidade insuficientes e protagonismo inexistente da população idosa.
A seguir, analisaremos a assistência da Saúde do Idoso, a crise
que vive o sistema de saúde totalmente fragmentado, as recentes
políticas do governo com o Estatuto do Idoso e o Pacto pela Vida
para minimizar a situação crítica apresentada.
A saúde do idoso e a crise do sistema
A sociedade contemporânea valoriza as pessoas, criando certos
“padrões de normalidade”. E a pessoa idosa foge a estes padrões e
isto faz que os mesmos sejam estigmatizados, excluídos e discriminados, até mesmo na forma em que são atendidos nos serviços de
saúde.
A própria pessoa idosa se percebe em seu imaginário como uma
pessoa doente, incapaz, fragilizada e dependente e isso são reforçadas pelo olhar dos familiares e da sociedade em geral.
Sabe-se que os idosos utilizam mais os serviços de saúde e são
afetados mais freqüentemente por problemas de longa duração (do-
177
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
178
enças crônicas), inclusive com aumento de casos com o vírus HIV,
exigindo onerosas intervenções, que envolvem tecnologia complexa,
internações com um maior tempo de ocupação de leitos.
São necessárias ações efetivas, com pessoal qualificado, com trabalho integrado de equipes multidisciplinares, equipamentos, exames
complementares e, principalmente, o envolvimento da sociedade nessa
causa. Tudo isto faz com que os custos do setor saúde aumentem.
Há que se considerar que os recursos financeiros são precários para,
pelo menos, minimizar esta situação.
Paralela a esta situação, está a posição da família que, muitas
vezes, sem condições financeiras para assistir o idoso, vê como solução institucionalizar o mesmo, colocando-o em casas de repouso,
clínicas de recuperação ou asilos. Estas por sua vez, não ofertam
cuidados qualificados aos idosos, se preocupando em satisfazer seus
interesses financeiros, abandonando os mesmos.
Intervenções são necessárias para melhor supervisionar essas
instituições a fazer cumprir o Estatuto do Idoso no seu artigo 3º, que
reza “que é obrigação da família da comunidade da sociedade e do
poder público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, efetivação do direito “...à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e
comunitária; destacando, no inciso 4, a viabilização de formas alternativas de participação, ocupação e convívio do idoso com as demais
gerações”.
Cabe observar também que a oferta de cuidados secundários oferecidos pela rede ambulatorial também está em franco desacordo
com as propostas contemporâneas em saúde, onde se buscam, ou se
têm basicamente consultas realizadas por especialistas, com baixa
resolubilidade dos serviços. O não monitoramento das doenças prevalentes e os escassos serviços domiciliares fazem que o primeiro
atendimento ocorra em estágio avançado. Infelizmente, o sistema de
saúde, hoje vivenciado, é fragmentado, e a preocupação prioritária é
a cura de doenças. O conhecimento é centrado nos médicos especialistas, perdendo-se a noção do corpo como um todo. A rede é hierarquizada e a tecnologia complexa. O modelo é hospitalocêntrico ou
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
agudocêntrico, ou seja, incentiva-se a hospitalização ao invés da atenção primária de saúde que deveria ser focalizada no sentido de otimizar a saúde do idoso, tornando-o sujeito centrado.
Pacto pela vida
O preconceito contra a velhice e a negação da sociedade quanto
a esse fenômeno colaboram para a dificuldade de se pensar políticas
específicas para esse grupo.
Ainda há os que pensam que se investe na infância e se gasta na
velhice. Deve ser um compromisso de todo gestor em saúde colocar
em prática os princípios e diretrizes do SUS e compreender que,
ainda que os custos de hospitalizações e cuidados prolongados sejam
elevados nos idosos, também aí está se investindo na velhice. “Quando
o envelhecimento é aceito como um êxito, o aproveitamento de competência, experiência e dos recursos humanos dos grupos mais velhos é assumido com naturalidade, como uma vantagem para o crescimento de sociedades humanas maduras e plenamente integradas”
(Plano de Madri, Artigo 6º).
A fim de responder às demandas da população idosa diante da
complexidade que é corresponder a sua assistência, apresentamos
abaixo as diretrizes da política nacional de saúde da pessoa idosa:
Promoção do envelhecimento ativo e saudável, atenção integral,
estímulo às ações intersetoriais, provimento de recursos capazes de
assegurar qualidade da atenção, estímulo à participação e fortalecimento do controle social. E ainda, formação e educação permanente
dos profissionais de saúde, divulgação e informação sobre a política
nacional de saúde da pessoa idosa para profissionais de saúde, gestores e usuários do SUS, promoção de cooperação nacional e internacional das experiências na atenção à saúde, apoio ao desenvolvimento de estudos e pesquisas.
Em conformidade com as diretrizes básicas desta política nacional, o Pacto pela Vida, instituído em fevereiro de 2006, é um grande
avanço. Prioriza o controle do câncer do colo do útero e da mama; a
redução da mortalidade infantil e materna, o fortalecimento da capa-
179
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
180
cidade de respostas às doenças emergentes e endemias, com ênfase
na dengue, hanseníase, tuberculose, malária e influenza; promoção
da saúde; fortalecimento da atenção e regulação assistencial e inclui,
pela primeira vez, a saúde do idoso nas três esferas de governo,
como ação prioritária.
Os objetivos prioritários à saúde do idoso no pacto pela vida, a
nível estadual são: estimular a implementação da caderneta e do
manual de atenção básica da saúde da pessoa idosa, apoiar os municípios para a reorganização do processo de acolhimento à pessoa
idosa; implementar programa de educação permanente na área do
envelhecimento e saúde do idoso voltado para profissionais da rede
de atenção básica à saúde. Qualificar a dispensação e o acesso da
população idosa à assistência farmacêutica; instituir avaliação geriátrica global a toda pessoa idosa internada em hospital integrante do
programa de atenção domiciliar; apoiar os municípios na instituição
da atenção domiciliar ao idoso.
Diante destes objetivos prioritários à saúde do idoso na esfera
estadual, percebe-se o mesmo, Pacto pela Vida ainda simplista incompleto, por não abarcar todas as diretrizes da política nacional,
principalmente nos aspectos da integralidade, participação e fortalecimento do controle social que são fundamentais para o êxito do
mesmo.
Atenção integral e integrada à saúde da pessoa idosa deverá ser
estruturada nos moldes de uma linha de cuidados com foco no usuário,
baseado nos seus direitos, necessidades, preferências e habilidades.
Tornam-se necessárias: a incorporação na atenção básica de
mecanismos que promovam a melhoria da qualidade de vida e o aumento da resolubilidade da atenção à pessoa idosa, com envolvimento dos profissionais da atenção básica e das equipes da saúde da
família. Deve-se incluir, ainda, a atenção domiciliar e ambulatorial,
com incentivo à utilização de instrumentos técnicos validados, como
de avaliação funcional e psico-social. Além disso, é importante a
incorporação na atenção especializada, de mecanismos que fortaleçam a atenção à pessoa idosa, reestruturação e implementação das
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
redes estaduais de atenção à saúde da pessoa idosa, visando à integração efetiva com a atenção básica e os demais níveis de atenção.
Tudo isso garante a integralidade da atenção, por meio de estabelecimento, de fluxos de referência e contra-referencias e implementando, de forma efetiva, modalidades de atendimento que correspondem às necessidades da população idosa. (Galdani, 2006).
A política medicamentosa é imprescindível em todos os níveis de
atenção, prioritariamente na atenção domiciliar, bem como a alocação de recursos tanto para adequação de estruturas físicas, quanto
para ações de qualificação e de capacitação de recursos humanos.
Também é importante a produção de material informativo sobre a
política nacional de saúde da pessoa idosa, sobre normas e técnicas
operacionais de saúde, para gestores e usuários do SUS.
Para viabilizar a política nacional de saúde da pessoa idosa, caberá aos gestores do SUS, em todos os níveis, prover os meios para
alcançar os propósitos da mesma.
Na esfera estadual deverá o gestor: elaborar normas técnicas
referentes à atenção à saúde da pessoa idosa no Sus; definir recursos orçamentários e financeiros discutir e pactuar, na comissão intergestores bipartite (CIB), as estratégias e metas a serem alcançadas por esta política a cada ano. implementar as diretrizes da educação permanente e qualificação em consonância com a realidade loco
regional; estabelecer instrumentos e indicadores para o acompanhamento e a avaliação do impacto da implantação e implementação
dessa política; manter articulação com municípios para o apoio à
implantação e supervisão das ações;etc.
Diante de inúmeros deveres fundamentais do Estado em prover
condições para viabilização dessa política, urge a necessidade de um
efetivo trabalho de fiscalização, supervisão e controle social através
dos conselhos municipais e estaduais de saúde, órgãos de defesa dos
direitos da pessoa idosa, entidades e toda sociedade civil na garantia
do que preconiza a política nacional de saúde da pessoa idosa.
Deve-se estimular a inclusão nas conferências municipais e estaduais de saúde de temas relacionados à atenção à população idosa:
181
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
de apoio ao desenvolvimento de estudos e pesquisas que avaliem a
qualidade e aprimorem a atenção à saúde da pessoa idosa, através
de redes de apoio às instituições formadoras, associativas e representativas, universidades e órgãos públicos.
A construção social da demanda: uma saída para a crise
Diante da complexidade que é envelhecer saudavelmente, a política nacional de saúde da pessoa idosa, contempla as ações, programas, projetos e atividades a serem desenvolvidos de forma descentralizada, com assistência humanizada, integral. Com qualidade.
Pinheiros e Mattos, 2005, pág. 5, afirmam que:
182
(...) a integralidade é um termo polissêmico e polifônico,
pois reúne diferentes significados, sentidos e vozes resultantes da interação dos sujeitos no cotidiano de suas práticas em saúde. Sua definição legal aponta para a integração de atos preventivos, curativos, individuais e coletivos,
em cada caso dos níveis de complexidade. Já pela perspectiva dos usuários, a ação integral tem sido freqüentemente
associada ao tratamento digno e respeitoso com qualidade, acolhimento e vínculo.
Como construção e prática social, a integralidade ganha riqueza e
expressão porque reúne os valores que as pessoas defendem e nos
quais, ao mesmo tempo, elas imprimem sua experiência de vida.
Demanda que se constrói na luta pela garantia do direito à saúde
como questão de cidadania, na conformação de um trabalho em equipe com profissionais qualificados, capazes de reconhecer a alteridade dos usuários e a participação dos sujeitos com suas diferentes
vozes ecoadas em distintos espaços públicos. Envolver a pessoa idosa na construção social da demanda é uma tarefa complexa, considerando que os próprios idosos não se vêem neste papel, na medida
em que são percebidos e tratados pelos próprios profissionais de saúde
com impaciência e descaso.Imagina-se que os velhos são desinte-
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ressantes, exigentes, queixosos, dependentes e intrometidos. Todas
as iniciativas pertinentes à promoção da saúde do idoso perpassam
por mudanças culturais acerca da visão que se tem da pessoa idosa.
Pickles, (2002) afirma que para que haja êxito nos programas de
promoção de saúde é indispensável envolver o indivíduo ou a comunidade nos fatores que os levam a ter disposição para participar,
habilitando-os a modificar seu comportamento em conseqüência dessa
participação.
Pinheiro e Mattos, (2005) afirmam que as necessidades em saúde ou demanda de cuidados médicos fazem parte do imaginário social e, portanto, estão permeadas de conteúdos simbólicos. Traduzir as
necessidades e demandas, dar voz aos sujeitos, pode ser uma das
estratégias para se organizar as práticas de integralidade em saúde
nos serviços públicos. Isso significa que a ação dos sujeitos na busca
de melhorias e enfrentamento dos problemas individuais e coletivos,
merece atenção especial por parte dos profissionais de saúde e gestores. E quando isto não acontece ou seja, decidem implementar projetos de saúde sem um contato prévio com a população.Esses projetos tendem ao fracasso, pois se organizam a partir de representações e visões de mundo diferentes, não atendendo a real demanda
do público-alvo.
Para isso, é necessário haver sensibilização das equipes que atuam nos serviços de referência às unidades básicas de saúde, ou nos
módulos de saúde da família, quanto ao acolhimento, o estabelecimento de vínculos e a responsabilidade para com os usuários, no
sentido de possibilitar a escuta e estimular a autonomia dos usuários,
seu auto-cuidado e empoderamento, contribuindo para um controle
social eficaz.
Algumas propostas devem ser avaliadas como importantes para
um trabalho de equipe resolutivo: reuniões de equipe com discussão
de casos numa perspectiva transdiciplinar, atividades de educação
permanente, discussão conjunta de processos de trabalho pactuados
com a equipe a clientela atendida. Não pode ser esquecida a busca
de parcerias fora da esfera pública e de formação de redes.
183
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
Para Pinheiro e Mattos (2005) “rede cuidadosa” não é restrita
aos serviços de saúde. Mais do que isto, pressupõe a articulação
com outros recursos da sociedade, como apoio familiar, religioso,
alternativas de sustentação econômica, moradias, redes de solidariedade e outros que compõem as redes sociais de apoio.
184
Considerações finais
Percorrendo a trajetória histórica das políticas públicas de saúde,
desde a promulgação da Constituição de 1988 que já assegurava o
ampara às pessoas idosas pela família, pela sociedade e pelo Estado,
defendendo sua dignidade e bem-estar, garantindo o direito à vida e
sua participação na comunidade, percebe-se uma morosa caminhada na efetivação das políticas públicas de assistência ao idoso. Ela
contempla basicamente todos os aspectos fundamentais à melhoria
na assistência à saúde da pessoa idosa, mas muito há de se fazer
entender, principalmente no tocante ao incentivo à participação da
pessoa idosa na elaboração das políticas públicas de saúde e no controle social das mesmas.
Torna-se necessário também a formação de equipes especializadas para criarem um movimento de desospitalização, com práticas
de assistência focalizadas na atenção primária, incentivando o autocuidado do idoso e o protagonismo, no sentido dos mesmos assumirem seu papel de cidadãos e cobrarem do sistema, resolutividade dos
serviços de saúde em todos os níveis, otimizando a saúde necessária
e de direito.
Pinheiros e Mattos, 2005, chamam de integralidade, como construção e prática social da demanda, que se constrói na luta pela garantia do direito à saúde como questão de cidadania, na conformação de um trabalho em equipe com profissionais qualificados, capazes de reconhecer a alteridade dos usuários e a participação dos
sujeitos com suas diferentes vozes ecoadas em distintos espaços
públicos.
Enfim, o envelhecimento é um grande desafio ao mundo contemporâneo, considerando sua complexa realidade, que perpassa por
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
questões sócio-econômicas e culturais, sendo, talvez necessário, uma
revitalização da sociedade quanto à valorização acerca do papel do
idoso enquanto cidadão de direito.
REFERÊNCIAS
ALCÂNTARA, ZABAGLIA (Org.). A arte de envelhecer – Saúde, trabalho, afetividade e estatuto. Idéias e letras, UERJ. Rio de Janeiro, 2004.
CHAIMOWITZ, Flávio. Os idosos brasileiros no século XXI – Demografia, saúde e sociedade. Postgraduate, Belo Horizonte, 1998.
PICKLES, Barrie; COMPTON, Ann; COTT, Cheryl; et. al. Fisioterapia na 3ª
idade. Livraria Editora. Santos, 2ª edição, 2000 1ª reimpressão, 2002.
PINHEIRO, R.; MATTOS, R.A. (Org.); A Construção social da demandadireito à saúde – trabalho em equipe- participação e espaços públicos.
IMS/UERJ – CEPESC – Abrasco – Rio de Janeiro 2005.
Lei nº 8.080 de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a
promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. CRESS/7ª
Região. “Assistente social: ética e direitos. Coletânea de Leis e Ações”. Ed.
Lidador. Rio de Janeiro, 2000. Brasília, 1990.
Lei nº 8.142, de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da
comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde – SUS – e sobre as
transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências. CRESS/7ª Região. “Assistente social: ética e
direitos. Coletânea de Leis e Ações” Ed. Lidador. Rio de Janeiro, 2000. Brasília, 1990.
GALVANI, Milton, [2006]. Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa. Disponível em: <http://www.abraz.com.br/default.aspx?pagid=DKICRLTL>,
acessado em Janeiro de 2007.
ESTATUTO DO IDOSO, Lei nº 10.741 de 1º de Outubro de 2003. Cartilha do
Centro de Convivência do Idoso Maria Cândida da Silva.
185
RESENHA
CARVALHO, José Mauricio de. Filosofia e
Psicologia, o pensamento fenomenológico
existencial de Karl Jaspers. Lisboa: Imprensa
Nacional – Casa da Moeda, 2006, 265 p.
D
186
ando cumprimento à sua vocação de historiador da filosofia,
José Maurício de Carvalho vem de publicar um livro dedicado ao filósofo alemão Karl Jaspers (1883/1969). A edição
esteve a cargo da Imprensa Nacional de Portugal, sendo esta a referência: Filosofia e psicologia. O pensamento filosófico-existencial de Karl Jaspers (Lisboa, Imprensa Nacional, 2006, 265 p.).
Precedentemente, estudara os principais filósofos brasileiros e portugueses, bem como autores de outras nacionalidades com marcada
presença na filosofia luso-brasileira, a exemplo de Ortega y Gasset
(1883/1955).
Na época em que Jaspers forma seu espírito – nas primeiras
décadas do século XX – já o neokantismo de Hermann Cohen (1842/
1918) alcançara uma posição de destaque na filosofia alemã. O processo de formação da química e da biologia, segundo o modelo da
física-matemática, na segunda metade do século XIX, dera um grande alento ao positivismo, corrente filosófica que supunha viria a ciência a ocupar todo o campo do saber, dispensando a necessidade de
meditação de índole filosófica. A reação contra essa suposição simplificadora começa, na Alemanha, nos anos oitenta, sob o lema de
“volta a Kant”. Caberia a Hermann Cohen dar-lhe consistência, restaurando o prestígio da filosofia nos meios acadêmicos germânicos.
Contudo, a primazia do kantismo incomodava aos pensadores que
entendiam devesse a filosofia ultrapassar os limites da experiência
humana, a fim de ocupar-se da divindade. Não se tratava de abordar
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº
- 6 – p. 186 a 189 – outubro de 2007
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
a experiência religiosa – tema que viria a florescer, entre outras coisas pela busca da especificidade da cultura, emergente como desdobramento do neokantismo. Mas de restaurar os direitos da teologia,
isto é, de uma abordagem puramente conceitual acerca de Deus. O
ponto do kantismo a ser enfrentado dizia respeito à interdição da
intuição intelectual (para Kant a intuição é exclusivamente sensível,
imediata, esporádica) e esta seria a tarefa a que se lançou Edmund
(Husserl1859/1938), dando origem a uma outra corrente filosófica, a
denominada fenomenologia.
Como evidencia José Maurício de Carvalho, o interesse de Karl
Jaspers pela fenomenologia advém de sua condição de médico psiquiatra. Muitos filósofos entenderam que o método criado por Husserl permitia estruturar uma base conceitual sólida, capaz de servir
como fundamento para as ciências humanas. Os psiquiatras ressentiam-se de um tal fundamento. Alguns cuidaram de explorar a hipótese fenomenológica. Este não seria apenas o caso de Jaspers. No
Brasil, Nilton Campos, que era diretor do Instituto de Psicologia da
antiga Universidade do Brasil (atual UFRJ), popularizou em livro a
idéia do método fenomenológico na psicologia. Aquiles Cortes Guimarães estudou o movimento por ele desencadeado (no livro Momentos do pensamento luso-brasileiro, Tempo Brasileiro, 1981),
integrado por médicos e psicólogos de renome, destacando Antonio
Gomes Pena, Eustáquio Portela, Élson Arruda, Nelson Pires e Isaias
Paim. Entretanto, segundo Aquiles Cortes Guimarães, essa linha
encontrava-se cada vez mais distanciada de preocupações filosóficas. Caberia a Creusa Capalbo retomar o tema do fundamento, abordado com a devida amplitude, inclusive comprovando a eficácia do
método fenomenológico na adequada estruturação das ciências humanas. Sua obra iria situar o movimento fenomenológico como uma
das vertentes expressivas da filosofia brasileira contemporânea. Assim, o “caso Jaspers”, independentemente do valor de sua contribuição à filosofia, reveste-se de particular interesse para a nossa circunstância.
Convencido da relevância da meditação de Jaspers para a filoso-
187
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
188
fia contemporânea, José Maurício de Carvalho não seguiu a trajetória existencial do filósofo, por entender que “toda a reflexão filosófica que elaborou é necessária para clarear as posições que assumiu
como terapeuta. Por isso, optamos por apresentá-las depois de propor suas teses filosóficas. Seguimos na exposição, o caminho inverso à história da vida do filósofo, mas clareamos como ele vê a relação entre a ciência e a filosofia”.
Filosofia e psicologia subdivide-se em três capítulos. Os dois
primeiros estão dedicados à posição do autor, respectivamente, nos
movimentos existencialista e fenomenológico. Para José Maurício
de Carvalho, Jaspers entende que o existencialismo deita raízes no
próprio nascedouro da filosofia, não se limitando, portanto, ao que
emergia no seu tempo. A seu ver, na obra de Jaspers “a existência
humana passa a ser a perspectiva pela qual toda a filosofia do Ocidente é revista, revisada, examinada”. Repousa “na existência individual, na vida concreta de cada homem”. Contudo, o método por ele
adotado provém da fenomenologia, que lhe permite estabelecer o
seguinte princípio: “A reflexão sobre o real revela que, além da linguagem e do que pode ser objetivamente conhecido, isto é, a verdade científica, há uma realidade inexprimível, impensável e irredutível
à experiência, que o filósofo denomina de transcendência”. Jaspers
avança o conceito de englobante, que permitiria ter acesso ao transcendente e, ao mesmo tempo, assegurar a integração dos diversos
planos do saber. Eis o que ele escreve o autor: “A hierarquia existente entre os englobantes aponta modos distintos de verdade. Jaspers
considera que existe uma verdade imediata e pragmática. Segue-se
a verdade científica, que é alcançável por todos os homens pela construção coletiva e rigorosa da evidência. Em seguida, nos deparamos
com as verdades que não nascem da evidência, mas da convicção.
Passamos então ao espaço da ética e da exigência absoluta que Jaspers recupera da razão prática formulada por Kant. Agimos pelo
convencimento nesses casos. Finalmente, existe uma verdade mais
ampla, a verdade da transcendência, que é abarcada na fé filosófica.
As questões examinadas pela ciência, ética e religião se encadeiam
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
na formação do que é a realidade para o existente” (pág. 157).
O título que deu ao livro está plenamente justificado pelo que
contém o terceiro capítulo. Trata-se de uma análise exaustiva da
obra relacionada à sua especialidade, bem como a meditação que
dedicou à psicologia em obras filosóficas. Jaspers é autor de Psicopatologia geral, considerada como texto essencial à formação médica. José Maurício de Carvalho adianta que as considerações no
que respeita à disciplina, em obras filosóficas, encontrar-se-iam sobretudo na Introdução ao Pensamento Filosófico e no livro Razão e Contra-Razão de nosso tempo. Transcrevo as indicações
do autor, no que se refere ao seu significado, por me parecer que são
suficientemente elucidativas: “Nessas obras, descobrem-se as linhas
gerais que orientam o pensamento de Karl Jaspers sobre a Psicologia e a relação terapeuta paciente. De um lado, ele procura fazer, a
partir da fenomenologia, a mais exata descrição possível dos fatos
psicológicos e assegura o caráter de cientificidade dessa investigação; de outro, constata que a dimensão existencial afeta o comportamento tanto do terapeuta como de quem o procura para pensar o seu
mundo. Se ela não é impedimento para que se construa uma ciência
psicológica, é preciso assegurar que a ciência daí emergente não
tenha a pretensão de ser uma ciência total, isto é, como uma palavra
de explicação sobre todos os fatos da vida humana” (pág. 161).
Suponho que as breves indicações precedentes servem para destacar a oportunidade da publicação.
Antonio Paim
Instituto Brasileiro de Filosofia
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ORIENTAÇÕES PARA A APRESENTAÇÃO
DE TEXTOS PARA A PUBLICAÇÃO
1 – Informações gerais
A revista Cadernos da Pós-Graduação – Contemporaneum –,
editada pela FUNEDI (unidade associada à UEMG/Universidade
do Estado de Minas Gerais) propõe-se a publicar artigos que dialoguem com as linhas de pesquisa (Cultura e Linguagem, Espaço e
Sociedade, Saúde Coletiva) de seu mestrado em Educação, Cultura e Organizações Sociais (área de concentração: Estudos Contemporâneos). Trata-se, pois, de artigos que remetam a reflexões
sobre a contemporaneidade, sejam centrados na pesquisa e nas práticas profissionais ou sejam voltados para a reflexão crítica sobre a
produção do conhecimento nos cruzamentos daquelas três grandes
áreas (Educação, Cultura e Organizações Sociais), desde uma perspectiva sensível à transdisciplinaridade.
2 – Orientação editoriais
Os artigos devem ser inéditos e seus originais serão submetidos a
exame pelo Comitê Editorial, que, para tal, poderá fazer uso de consultores “ad hoc”, a seu critério, omitida a identidade dos autores.
Estes, serão notificados da aceitação ou não dos artigos. Os originais
não serão devolvidos. Pequenas modificações no texto poderão ser
feitas pelo Comitê Editorial, mas as modificações substanciais serão
solicitadas, a tempo, aos autores. Os artigos assinados expressarão
exclusivamente o pensamento de seu autores. É permitida a reprodução parcial dos artigos desde que citada a fonte. O Comitê Editorial se encontra encarregado de delinear as estratégias e temáticas
que possam aprimorar os objetivos maiores da revista, a saber, a
integração entre os distintos níveis da Universidade (graduação, pósgraduação e atuações extensionistas), o cruzamento de suas possibilidades de ação (ensino e pesquisa) e participação nas complexidades cotidianas da sociedade.
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O itinerário dos textos que chegam ao Comitê Editorial é o seguinte: 1) encaminhamento para parecer; 2) encaminhamento do
resultado do parecer para a reunião do Comitê Editorial, para decisão final; 3) informação para o autor: se recusado, se aprovado ou
se necessita de reformulações (neste caso, é definido um prazo de
30 dias, findo o qual o artigo é desconsiderado, caso o autor não o
reformule); 4) encaminhamento do texto diagramado para o autor
revisar (o prazo é de uma semana para retornar ao Comitê Editorial); 6) publicação.
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3 – Apresentação dos trabalhos
Os artigos devem ser direcionados ao coordenador do Mestrado
em Educação, Cultura e Organizações Sociais da FUNEDI/UEMG
que, na condição de presidente do Comitê Editorial, dará seqüência à
tramitação do mesmo. Os artigos devem ser enviados em três vias
impressas, fonte Times New Roman, corpo 12, espaço 1,5 e todas as
margens de 2cm. Devem ser enviados resumo, em Português e abstract em Inglês contendo até 100 palavras, além de três ou quatro
palavras chaves com as respectivas key-words. A primeira lauda do
texto original deve conter o título do trabalho, nome completo do
autor, vínculo institucional, e-mail e seu respectivo endereço. As demais páginas devem ser numeradas consecutivamente, a partir de 2.
Também se deve apresentar uma gravação do texto em disquete, no
formato “word for windows 2000” (doc.).
No corpo do artigo não devem ser incluídos elementos que possibilitem identificar o(s) autor(es) do texto (ex.: papel timbrado, rodapé
com o nome do autor, etc.). O material deve ser enviado à coordenação do mestrado em Educação, Cultura e Organizações Sociais da
FUNEDI/UEMG com uma carta de encaminhamento assinada pelo
autor (no caso de único) ou por todos os autores (no caso de coautoria) e autorizando a publicação do mesmo.
A revista Cadernos da Pós-Graduação – Contemporaneum é
semestral, sendo que os períodos ordinários de recebimento de trabalhos para a publicação são os seguintes: de 01 de janeiro a 30 de
Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007
março (para o número do primeiro semestre), de 01 de julho a 30 de
setembro (para o número do segundo semestre).
4 – Tipos de Texto
1. Artigos – reflexões sobre os modos de pensar e atuar vigentes na cena contemporânea e as novas elaborações nos campos da
Educação, Cultura e Organizações Sociais, privilegiando-se propostas e/ou metodologias inter e transdisciplinares (de 8 a 10 laudas);
2. Relatos de pesquisa – investigações concluídas ou em fase
de adiantado desenvolvimento baseadas em dados de campo, recorrendo a metodologia quantitativa e/ou qualitativa. Nesse caso, é necessário conter introdução, metodologia, resultados e discussão (de
8 a 10 laudas);
3. Relatos de experiência – relatos de experiência profissional
ou intervenções de caráter extensionista de interesse para as diferentes ações inter ou transdisciplinares (até 5 laudas);
4. Comunicações – relatos breves de pesquisas ou trabalhos
apresentados em reuniões científicas/eventos culturais (até 5 laudas
laudas);
5. Debates – comentários completos e réplicas a textos publicados em números anteriores da revista (até 5 laudas)
6. Resenhas – apresentações e comentários de livros e/ou produtos culturais que dialoguem com a cena contemporânea desde uma
perspectiva que possibilite prospecções transdisciplinares, essencialmente aquelas que debatam com a Educação, Cultura e Organizações Sociais.
5 – Normatização acadêmico-científica
1. As formas de entrada e a realização das citações, bem como
a indicação, ao final do artigo, das referências bibliográficas (convencionais ou eletrônicas), devem se basear nas normalizações indicadas por FRANÇA, Júnia Lessa & DE VASCONCELOS, Ana
Cristina. Manual para normalização de publicações técnico-científicas. 9.ed. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004.
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2. Para as situações mais recorrentes, nos casos de citações,
devem ser seguidas as seguintes diretrizes
2.1. Citações curtas (de até três linhas): são inseridas no corpo do
texto, sempre entre aspas, tal como o exemplo a seguir:
A globalização implica em um “rearranjo das interrelações entre
espaço e tempo de amplas repercussões para a relação que, doravante, se mantém com o passado e o futuro” (GIDDENS, 1997, p.
132). Verifica-se, por conseguinte, uma outra forma de se vincular e
se romper com a tradição.
194
2.2. Citações longas (acima de três linhas): devem constituir um
parágrafo independente, recuado (4 cm da margem esquerda), com
tamanho de letra menor que o utilizado no texto e com espaçamento
1 entre linhas, dispensando as aspas.
3. No caso de utilização das notas de rodapé, as mesmas devem
ser convertidas em notas de fim do texto.
4. Em especial, para os demais casos e possibilidades de normatização acadêmico-científica, deve-se observar as partes relativas
às citações (capítulo 13), notas de rodapé (capítulo 14) e referências
(capítulo 15) do manual indicado.
Esta revista foi composta na tipologia Times New Roman e em
corpo 11/13,9. O miolo foi impresso em papel apergaminhado 75g e a capa, em papel supremo 250g. Impresso na Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais em outubro de 2007.