Revista Mestrado
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Revista Mestrado
2007 Reitora da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) – Janete Gomes Barreto Paiva Presidente da Fundação Educacional de Divinópolis (FUNEDI) – Gilson Soares Coordenador do Centro de Pós-Graduação da FUNEDI/UEMG – Alexandre Simões Ribeiro Apoio Técnico do Centro de Pós-Graduação da FUNEDI/UEMG – Mônica Diniz, Rosimeire de Freitas Santos Peixoto, Fernanda Stephaine Fernandes (estagiária), Kellen Danielle Pedroso (estagiária) e Tatiane da Costa Souza (estagiária) Cadernos da Pós-Graduação – Contemporaneum Comitê Editorial Prof. Dr. Alexandre Simões Ribeiro (Presidente do Comitê – FUNEDI/UEMG), Prof. Dr. Alysson Rodrigo Fonseca (Coordenador do Centro de Pesquisa e Docente do Mestrado FUNEDI/UEMG), Profª Drª Ana Mónica Henriques Lopes (Docente do Mestrado FUNEDI/UEMG), Profª Drª Batistina Maria de Sousa Corgozinho (Coordenadora do Centro de Memória e Docente do Mestrado da FUNEDI/UEMG), Prof. Ms. Cláudio Gonçalves Silva (Universidade Federal do Maranhão), Prof. Ms. Daniel Silva Gontijo Penha (Docente do Mestrado FUNEDI/UEMG), Prof. Dr. Eduardo Sérgio da Silva (Universidade Federal de São João del-Rei), Profª Ms. Eliete Albano de Azevedo Guimarães (Docente do Mestrado FUNEDI/UEMG), Profª Drª Francis Paulina da Silva (Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora), Prof. Dr. Francisco de Assis Braga (Docente do Mestrado FUNEDI/UEMG), Prof. Dr. Gil Sevalho (Universidade Federal de Minas Gerais), Profa. Dra. Helena Alvim Ameno (Docente do Mestrado FUNEDI/UEMG), Prof. Dr. Ivan Domingues (Membro do Comitê Diretor do Instituto de Estudos Avançados sobre Transdisciplinaridade – IEAT/ UFMG), Prof. Dr. José Geraldo Pedrosa (CEFET/MG), Prof. Dr. José Raimundo Batista Bechelaine (Docente do Mestrado FUNEDI/UEMG), Prof. Dr. Leandro Pena Catão (Docente do Mestrado FUNEDI/UEMG), Profª. Ms. Márcia Helena B. Corrêa (Docente do INESP), Prof. Ms. Marcos de Morais Tavares (Coordenador Geral da FACIG), Prof. Ms. Maria Desidéria Duarte (Coordenadora Geral do ISED), Prof. Dr. Mateus Henrique de Faria Pereira (Docente do Mestrado FUNEDI/ UEMG), Prof. Maura Silva Soares (Coordenadora Geral do ISEC), Prof. Dr. Natanael Atilas Aleva (Pró-Reitor de Pós-Graduação da UNINCOR), Profª. Ms. Neide Wood Almeida (Pró-Reitora de Pesquisa e Extensão da UEMG), Prof. Dr. Paulo Sérgio Carneiro Miranda (Universidade Federal de Minas Gerais), Prof. Dr. Pedro Pires Bessa (Docente do Mestrado FUNEDI/UEMG), Prof. Dr. Otávio Dulci (Universidade Federal de Minas Gerais), Prof. Dr. Raul Francisco Magalhães (Membro da Câmara de Assessoramento de Ciências Sociais, Humanas, Letras e Artes da FAPEMIG), Profª. Drª Suely Maria de Paula e Silva Lobo (Pontifícia Universidade Católica – PUC Minas) e Profª Drª Vilma Botrel Coutinho de Melo (Docente do Mestrado da FUNEDI/UEMG) Consultores ad hoc deste número – Ana Mónica Henriques Lopes (Doutora em História pela UFMG), Francisco de Assis Braga (Doutor em Ciência Florestal pela UFV) e Helena Alvim Ameno (Doutora em Literaturas da Língua Portuguesa pela PUC Minas) Projeto gráfico – Arnaldo Pires Bessa e Elvis Gomes (Assessoria de Comunicação da FUNEDI/UEMG) Diagramação – Elvis Gomes Revisão – Prof. Dr. Alexandre Simões Ribeiro Capa – Pablo do Prado e Saulo Rafael Contatos da revista – www.divinopolis.uemg.br / [email protected] ISSN – 1517-7890 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO Alexandre Simões Ribeiro 5 CULTURA ALIMENTAR, SAÚDE E MUNDIALIZAÇÃO: UM OLHAR SOBRE A COZINHA BRASILEIRA Leandro Pena Catão Sheila Avelar Fumam 7 CIDADE E CONVERGÊNCIA DE MÍDIA: NOVOS CENÁRIOS DA GLOBALIZAÇÃO Renata Alencar Tailze Melo 28 JOGOS DE ESCALA: A 2ª GUERRA MUNDIAL (1939-1945) VISTA PELOS JORNAIS DE DIVINÓPOLIS (MINAS GERAIS, BRASIL) Ana Mónica Henriques Lopes Mateus Henrique de Faria Pereira Heloisa Helena Corgozinho 37 O TRABALHO DOCENTE NA CONTEMPORANEIDADE: MUDANÇAS, REPERCUSSÕES NA SAÚDE E POSSÍVEIS INTERVENÇÕES Renata Cristine de Oliveira 52 IMAGENS E SUBJETIVAÇÕES TRAÇADAS PELOS GRAFFITI NAS CIDADES CONTEMPORÂNEAS Gesianni Amaral Gonçalves 67 INDÚSTRIA CULTURAL, TRABALHO HIPOSTASIADO E VIDA DANIFICADA José Geraldo Pedrosa 91 CONSIDERAÇÕES SOBRE MITO E GLOBALIZAÇÃO Batistina Maria de Sousa Corgozinho 107 HOJE, AGORA E... TRANSDISCIPLINARIDADE E MODERNIDADE? Cristina Silva Gontijo 123 OCIDENTE VERSUS ORIENTE, DEMOCRACIA VERSUS DESPOTISMO: HERÓDOTO NO CINEMA CONTEMPORÂNEO Flávia Lemos Mota de Azevedo Thiago Eustáquio de Araújo 133 EM BUSCA DE UM MÉTODO PARA LIDAR COM O ACONTECIMENTO CONTEMPORÂNEO GLOBALIZADO Alexandre Simões Ribeiro 147 BIOÉTICA PARA EDUCAÇÃO AMBIENTAL: UM PARADIGMA NECESSÁRIO Sérvio Túlio Portela 163 PACTO PELA VIDA: A INCLUSÃO DO IDOSO NAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE Eliete Albano de Azevedo Guimarães Linda Maira dos Santos Nunes 174 Resenha: Filosofia e psicologia, o pensamento fenomenológico existencial de Karl Jaspers. José Maurício de Carvalho (Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2006, 256 p.) Por Antonio Paim 186 ORIENTAÇÕES PARAA APRESENTAÇÃO DE TEXTOS PARA A PUBLICAÇÃO 191 APRESENTAÇÃO A globalização entre nós P ropositadamente, escolhemos um tema amplo, multifacetado e acolhedor de teorias e campos bem diversificados para este número da Revista Contemporaneum. Um tema, portanto, sem uma morada única ou exclusiva. Todavia, esta escolha também se fez a partir dos planejamentos e dos resultados das pesquisas desenvolvidas na FUNEDI/UEMG, sob o impulso promovido por seu Mestrado em Educação, Cultura e Organizações Sociais. Ao longo do primeiro semestre de 2007, tivemos a oportunidade de organizar uma série de encontros nos quais os professores do Mestrado, pesquisadores de outras instituições, a comunidade acadêmica e o público em geral puderam se debruçar sobre temas que propunham interrogar os meandros da globalização. Chamamos esta série de encontros de Seminários Avançados Transdisciplinares. Nossos percursos, juntamente com o adensamento das investigações que já estavam sediadas em nossas linhas de pesquisa (Cultura e Linguagem, Espaço e Sociedade, Saúde Coletiva), nos levaram a verificar que, para-além das controvérsias envolvidas, a globalização é múltipla e porta as marcas da complexidade. Em outras palavras, as globalizações nos convocam para um exame, uma crítica, uma vivência que desestabilizam nossas certezas e instrumentos disciplinares. Desta forma, o conteúdo que se segue não é exatamente o espelho dos Seminários Avançados Transdisciplinares, porém aquilo que os mesmos puderam fomentar no Mestrado, nas graduações, nas atividades extensionistas e de pesquisa de nossa instituição, bem como nas nossas relações inter-institucionais. A reflexão que se quer contemporânea (não só no que se refere ao seu tempo mas, principalmente, à sua forma de ver as problemáticas de nossa sociedade) não deve ser demasiadamente territorializada. Daí, a Revista Contemporaneum ser um veículo de pesquisa e debate, uma espécie de work in progress, que se dá a partir do Mestrado e, sobretudo, para-além do mesmo. Bem-vindos às globalizações: entre nós e com seus nós. Prof. Dr. Alexandre Simões Ribeiro Coordenador do Mestrado em Educação, Cultura e Organizações Sociais da FUNEDI/UEMG CULTURA ALIMENTAR, SAÚDE E MUNDIALIZAÇÃO: UM OLHAR SOBRE A COZINHA BRASILEIRA LEANDRO PENA CATÃO Doutor em História Social e da Cultura pela UFMG e professor do curso de graduação em História e do Mestrado em Educação, Cultura e Organizações Sociais da FUNEDI/UEMG SHEILLA AVELAR FUMAM Graduada em Comunicação Social pela PUC Minas e graduada em Gastronomia e pós-graduada em Alimentação e Saúde pela Estácio de Sá (BH) Resumo: O artigo trata da formação da cultura alimentar brasileira ao longo dos períodos colonial, imperial e republicano a partir de suas três matrizes: a portuguesa, a indígena e a africana. Discutem-se as implicações da alimentação sobre a saúde igualmente nos três períodos da História do Brasil. Analisamse as bases da cozinha indígena, sobretudo o papel contundente exercido pelo milho e pela mandioca, ainda hoje fundamentais à cozinha brasileira. Outra matriz fundamental da cozinha brasileira tem suas raízes na culinária portuguesa, responsável pela introdução de um universo de novas espécies vegetais e animais assim como novas técnicas. O texto analisa o papel exercido pelas grandes navegações quanto à difusão de ingredientes e técnicas culinárias, o que viria a revolucionar as culturas alimentares na Ásia, África, América e Europa. Também é discutido o papel dos africanos nas fundações da cultura alimentar brasileira. Palavras-chave: cultura alimentar; Mundialização; Cozinha brasileira. Abstract: This paperwork is about the formation of the Brazilian alimentary culture along the colonial, imperial and republican periods parting from its three matrices: the Portuguese, the Indigene and the African one. We discuss the implications of alimentation over health in these three periods of Brazilian History. We also analyze the bases of the indigene cooking; above all, we analyze the strong role played by corn and cassava, also fundamental to the Brazilian cooking nowadays. Another fundamental die of Brazilian cooking has its roots in the Portuguese cooking tradition, responsible for the introduction of a large universe of new vegetable and animal species such as new cooking techniques. The text analyzes the importance of the Great Navigations in order of diffusion of ingredients and cooking techniques, what would make a revolution in the alimentary cultures in Asia, Africa, America and Europe. We also discuss the importance of the African people in the foundations of Brazilian alimentary culture. Key-words: alimentary culture; Worldwide; Brazilian cooking. Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº - 6 – p. 7 a 27 – outubro de 2007 7 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 E 8 ste artigo trata da cultura alimentar brasileira na perspectiva da longa duração e suas implicações para a saúde e doenças dos brasileiros desde os tempos coloniais aos nossos dias. O principal intento desta pesquisa é chamar a atenção para a vinculação entre cultura, alimentação e saúde, numa perspectiva transdisciplinar. Os hábitos alimentares são um dos mais importantes traços culturais de uma sociedade e pode-se dizer muito a respeito de uma sociedade a partir da análise de sua cultura alimentar. Naturalmente, a alimentação vem sofrendo alterações desde o surgimento das primeiras civilizações, que dizem respeito aos ingredientes, técnicas de preparo, comensalidade e outros aspectos relacionados a esse universo. O início das primeiras civilizações está intimamente relacionado à uma revolução alimentar que se deu a aproximadamente 12000 anos atrás, quando a humanidade descobriu a agricultura, desenvolveu uma gama de rituais e costumes relacionados a seu cultivo e preparação. Aliás, para os Gregos Antigos, fabricar seu próprio pão e vinho era um dos traços que distinguia a civilização da barbárie.1 Os hábitos alimentares de uma nação não são meramente reação instintiva à sobrevivência. São expressão de sua história, cultura, condições climáticas e geográficas, condições social e religiosa. Nesse sentido, o gosto alimentar pode diferir profundamente de uma sociedade para outra. A cultura alimentar tem raízes profundas na identidade social de seus indivíduos.2 Os homens comem como sua sociedade os “ensinou”. Segundo Gilberto Freire: “nossas preferências de paladar são condicionadas, nas suas expressões específicas, pelas sociedades a que pertencemos, pelas culturas de que participamos, pelas ecologias em que vivemos os anos decisivos de nossa existência”.3 No Brasil, a cultura e a alimentação, entendidas como uma expressão da cultura, carregam as marcas e peculiaridades dos grupos étnicos que as formaram: índios, portugueses e africanos. No início, a culinária indígena se impõe. As populações indígenas eram em geral mais bem nutridas dos que a maioria dos marinheiros europeus que primeiro pisaram no Brasil. Aos europeus não restava outra al- Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 ternativa que não assimilar os ingredientes da terra e técnicas de preparo utilizadas pelos indígenas. À medida que a colonização se consolidava, os portugueses mais abastados procuraram reproduzir aqui a mesma alimentação que tinham no velho mundo, buscando no além-mar a praticamente todos os seus alimentos: queijos, vinho, trigo para fabrico de pão. No que se refere à História da Alimentação, os navegadores portugueses e espanhóis tiveram destacado papel praticando uma verdadeira “diáspora” alimentar, levando e trazendo alimentos de origem vegetal e animal mundo a fora. Foi no século XVI que chegou às Américas o trigo, a laranja, o limão, a manga, a banana, a canade-açúcar e animais como o porco, a galinha e boi. A mandioca e o milho formavam a base da alimentação indígena e seguiria fundamental na formação da cultura alimentar brasileira. O africano contribuiu, sobretudo com sua técnica, tempero e manejo de preparo, que viriam a influenciar o sabor do alimento brasileiro, uma vez que os negros trazidos para a América portuguesa na condição de escravos não levavam nenhuma bagagem, não tendo introduzido aqui nenhum novo alimento. Ingredientes de circulação restrita a uma região ou continente passaram a ser conhecidos em outras partes do planeta ou mesmo todo o mundo conhecido.4 O açúcar e o chocolate (à base de cacau) são dois bons exemplos. No início do século XV a produção do açúcar estava restrita a algumas regiões da Índia e o chocolate era um manjar Asteca. Poucos séculos e ambos estariam entre as principais iguarias no Velho Mundo. A mundialização de alimentos, ingredientes e técnicas culinárias antes restritas a uma ou poucas culturas foi uma das principais conseqüências das Grandes Navegações, fato que viria a repercutir decisivamente em várias culturas em todo o planeta. Nos tempos coloniais e mesmo durante o período imperial, a maior parte da população brasileira, composta de escravos e negros forros e mulatos livres pobres, vivia em meio a grande penúria alimentar, a fome era constante companheira. Naturalmente, esse fator trazia considerável prejuízo à saúde. Nos nossos dias, a alimentação, 9 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 ou a má alimentação constituem grave problema de saúde publica ao lado da fome, ainda marcante na contemporaneidade. A culinária indígena foi a base da alimentação dos habitantes da recém descoberta América portuguesa. Apesar de poucos registros gastronômicos: (...)as nações indígenas, que, embora muito distintas entre si, tinham maneiras semelhantes de alimentar-se, baseadas nas alternativas que a terra farta oferecia, marcadas, principalmente, pelo consumo de carnes de caça, peixes, répteis e mariscos, raízes e tubérculos cozidos, alem de uma infinidade de frutas e frutos silvestres.5 10 Câmara Cascudo, no clássico História da Alimentação no Brasil, enfatiza o inhame, o palmito, a mandioca e o milho como muito utilizadas na alimentação do nativo – e posteriormente de seus colonizadores – além de várias frutas, as quais apenas se colhiam e não cultivavam, como os cajus, mangabas, goiaba, maracujá, jabuticabas, ingás, guarirobas, entre outros. Alimentavam-se de muitos vegetais e frutas crus, fontes ricas em vitaminas, mas também de preparações cozidas substanciosas à base de cereais, farinhas e caldos de vegetais e carnes, constituindo os mingaus e pirões. Este último fora aprimorado pela técnica portuguesa, mas antes dela, a mistura de calda à farinha já era popular entre os indígenas. “Pirão é sinônimo da própria alimentação brasileira. Da subsistência total”.6 Era, assim, boa fonte de energia, apresentando poucos elementos maléficos a saúde como gorduras, açúcares e sódio em excesso, constituindo uma alimentação de boa qualidade. Com relação às carnes e pescados, ainda segundo Câmara Cascudo, seu processo de cocção preferencial era o assado, os índios praticamente desconheciam a fritura. Observa-se, também, o costume de se alimentar das vísceras das caças, incluindo medulas e miolos e, nesse hábito “estavam adivinhando a existência mais concentrada de proteínas, vitaminas e sais animais, valiosos”.7 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 Apesar das poucas informações acerca das porções de cada grupo de alimentos consumidos pelas populações nativas, ou seja, o quanto comiam de cada tipo8, sabe-se que estes se alimentavam não apenas com o intuito de nutrir-se mas também buscar a cura de doenças e moléstias. A chegada dos europeus representou uma revolução alimentar, tento estes introduzido açucares e gorduras em profusão. Os índios foram rapidamente seduzidos pelo sabor e aroma dos novos alimentos introduzidos pelos portugueses. Segundo Câmara Cascudo, “a presença do europeu foi um terremoto”, se bem que desde os primeiros tempos a alimentação dos colonizadores já apresentarem traços da cultura alimentar nativa, fruto do “processo de troca cultural envolvido no esforço de sobrevivência dos recém-chegados”.9 Assim, a adaptação dos colonizadores à terra desconhecida e “inimiga, inóspita” fazia ainda com que eles se alimentassem para sobreviver, principalmente. No contexto dos grandes descobrimentos, os portugueses estavam acostumados a sopas grosseiras e mingaus de cereais, carnes cozidas, defumadas, salgadas e conservadas em gordura. Eram apreciadores de doces e alimentos cozidos, consumidos e geral aquecidos. Enquanto isso, os índios alimentavam-se de alimentos em natura, assados e grelhados, cujos ingredientes e técnicas aproximavamse mais do considerado saudável na atualidade, fazendo uso de frutas, legumes, tubérculos, raízes e carnes magras; em lugar de carboidratos simples e processados, gorduras e açúcares, que eram a base da cozinha européia daquele contexto. O mel, frutas e iguarias que causariam náuseas ao homem ocidental como cérebro de primatas e larvas ou bicho de taquara, constituíam os manjares do Novo Mundo. Em geral, os nativos não ingeriam comida em excesso. Eram escassas as fontes de gordura utilizadas pelas nações indígenas. Na região amazônica, a gordura de tartaruga constituía exceção a essa regra.10 Até o início do século XIX, alimentação e saúde eram elementos intimamente vinculados tanto no Velho quanto no Novo Mundo. Se 11 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 para os nativos a alimentação estava diretamente ligada à dietética, sabe-se que os pajés conheciam profundamente a utilidade medicinal da vasta flora e fauna nativas, fato alias muito bem observado pelos padres da Companhia de Jesus.11 Concomitantemente, os europeus também reconheciam a vinculação entre alimentação e saúde. Segundo o médico grego Hipócrates, um dos pilares da medicina desde a Antiguidade, a alimentação constituía um dos alicerces da medicina. Nesse sentido, segundo o saber médico do tempo dos descobrimentos: 12 muitas coisas que não são boas para engendrar bom sangue [são] convenientes para muitas naturezas e valem mais do que as [...] [que são boas em principio para as pessoas de temperamento equilibrado] porque se, como diz Avicena, [...] o corpo do homem é saudável, quanto mais saborosos são os alimentos ao seu paladar, mais nutritivos se tornam para os seu organismo.12 Entretanto, sob a influencia do Humanismo e mais tarde das Luzes, observa-se que entre os séculos XVII e XVIII, é disseminado o “novo gosto” de gastrônomos, cozinheiros e comensais, que passam a discutir harmonia de sabores e os prazeres da mesa, enquanto o antigo caráter dietoterápico dos alimentos perde força. “(...) esse afrouxamento dos laços entre cozinha e dietética libera de alguma forma a gulodice; os refinamentos da cozinha não visam mais manter a boa saúde das pessoas, mas satisfazer o gosto dos glutões.”13 Com a necessidade progressiva de adaptação dos gostos europeus às condições do Brasil, foi-se observando algumas mudanças nos hábitos alimentares. Tanto os indivíduos se hibridavam, quanto seus hábitos de alimentação, mas não de forma uniforme: Transplantadas para uma terra distante, dividindo espaços com escravas negras e indígenas, privadas de produtos aos quais estavam acostumadas, as senhoras portuguesas se Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 viam obrigadas a reinventar praticas e costumes tradicionais do Reino, transformando suas novas casas e seus hábitos mais íntimos para adequá-los às exigências da nova vida.14 Por conta das contingências do Novo Mundo, novos ingredientes foram descobertos e substituíram os habituais dos europeus, como a gordura de porco, amendoim e a castanha de caju, utilizadas no lugar da manteiga e das nozes. Passou-se a criar porcos em maiores escalas, para que deles fossem retirada, além da carne, toda sua gordura, empregada em toda sorte de preparo; além da pele frita: a pururuca. Em afirmativas baseadas em relatos de viajantes do século XVIII e XIX, Paula Pinto e Silva expõe que do porco se extraia o toucinho, cozido com o feijão, frito como torresmo ou guardado em grandes potes para a conservação de carnes que sobrassem. Há, ainda, menções a porcos, a pururuca e gorduras empregadas em preparos de vários outros pratos. Até o século XIX, a carne de porco era de longe preferida em detrimento da carne bovina. Este último fora inicialmente utilizado como animal de trabalho e só a partir da segunda metade do século XVII ganha importância na alimentação cotidiana, sobretudo do sertanejo. Quanto à gordura utilizada na América portuguesa: (...) Se o gosto do porco evocava a memória lusitana, também recheada de carne suína, o óleo escorrido do toucinho era o que mais se assemelhava à manteiga consumida no Reino, importada da Inglaterra pelos senhores mais abastados (...). Desse modo, a gordura passou a ser item de consumo quase vital para a culinária nas terras novas, dando sabor ao feijão e refogando a serralha. (...) Os alimentos são preparados com a gordura do porco.15 Não só o português teve sua dieta modificada. Os indígenas tiveram sua culinária fortemente afetada pelos novos alimentos introdu- 13 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 zidos pelo português. O porco com todos os seus “encantos” culinários ganhou de imediato o paladar dos nativos. Aos negros cativos cabia acatar a dieta imposta por seus senhores. Segundo Câmara Cascudo, os índios aprenderam com os portugueses a empregar as gorduras na culinária com a: utilização de óleos vegetais na comida e conservação de caça, o leite da castanha-do-pará (...) no cozido e o óleo para papas, mingaus, farofa. Confeitamento nos beijus. Veio também a cana-de-açúcar, excelente para ser mastigada e bebido o sumo nos torcedores que os portugueses e mestiços improvisaram nos sertões, não para o açúcar, mas para a sedução da cachaça irresistível, e para a rapadura, democrática e fácil.16 14 A partir desse relato, subentende-se a adesão de costumes relacionados aos prazeres dos sabores por parte da população da América portuguesa, materializado em dois elementos principais: a gordura, acima citada e o açúcar. Nem por isso, os princípios hipocráticos deixaram de ser observados pelos “médicos” coloniais.17 O grande marco na referida transformação alimentar brasileira foi a produção de açúcar no nordeste e algumas regiões de São Paulo e rio de Janeiro. Para aqueles de mais posses, açúcar refinado e doces finos, para aquelas de menos posses, rapadura, melaços, entre outros subprodutos da cana. Era comum no Nordeste, região onde predominavam os Engenhos, que o melaço e a rapadura fossem dado aos escravos como parte da refeição matinal. O açúcar, produto mais fino, era reservado à casa grande, onde manipulado pelas sinhás no preparo às velhas receitas de doces portugueses e alguns manjares nascidos no Brasil, como o quindim, por exemplo. Segundo Gilberto Freire, em sua obra Açúcar, os hábitos alimentares hoje considerados prejudiciais à saúde, foram resultado quase exclusivamente da cultura monocultora e latifundiária da cana-deaçúcar. Segundo o autor, a questão extrapola o simples consumo de Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 açúcar, englobando a diminuição da produção e consumo de vegetais diversos e quase substituição do consumo das frutas em natura pelas compotas, técnica européias adaptada aos frutos da terra.18 A canade-açúcar, que exigia extensos territórios para seu cultivo, além de tempo e atenção, acabava tomando espaço das verduras e legumes, mais saudáveis mas menos rentáveis e menos produtivas que o milho e a mandioca utilizadas comumente para a subsistência. “(...) A monocultura canavieira sempre dificultou (...) a cultura de vegetais destinados à alimentação. Ainda hoje se sente o efeito na dieta do brasileiro – na do rico e especialmente na do pobre”.19 Havia produção de frutas e legumes nos pomares e hortas das casas grandes, mas em quantidade insuficiente para a alimentação de toda a população, sobretudo a formada pelos escravos e livres pobres, exceção feita aos enfermos. O caju, fruta muito rica em vitamina C era utilizada no tratamento do escorbuto. Os fatores de natureza produtiva, ligados à forte demanda de açúcar pelo mercado europeu, engendraram a uma prática considerada pouco saudável nos nossos dias: o grande consumo de açúcar. A cultura alimentar do nordeste é também chamada cultura do doce: “considerado uma especiaria universal, comido puro, misturado à água para torná-la refrescante, as frutas e flores para a fabricação de geléias, e ao álcool para a produção de licores”.20 O açúcar tanto era amplamente usado para a produção de doces finos típicos do Reino, como quindins, toucinhos do céu, como para “melhorar” as frutas locais, cuja maioria só era consumida em forma de doces bastante açucarados, cristalizados ou em caldas. Era um recurso para agradar ao “paladar excessivamente doce dos senhores e senhoras brancas”.21 Este hábito fora se ampliando no período colonial e imperial, para além dos Engenhos nordestinos, instaurando um dos contornos da cozinha brasileira: De um modo geral, a nutrição da família colonial, tanto nos engenhos como nas cidades, era de má qualidade: por um lado, pela deficiência de proteínas de origem animal, vita- 15 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 minas, cálcio e de outros sais minerais e, por outro, pela riqueza de certas toxinas.22 16 Nas Minas Gerais colonial, era outra a configuração alimentar. Nos primeiros tempos, devido à falta quase absoluta de infra-estrutura, a vida dos primeiros mineiros foi bastante dura, marcada pela fome e carestia de uma série de itens que ali não existiam. Não foi raro naquele contexto homens morrerem de fome com verdadeiras fortunas em ouro presa à cintura, ou terem que abandonar regiões riquíssimas em ouro para não morrerem de fome.23 Era um expediente do homem colonial, e das populações indígenas antes da chegada dos europeus a estas terras, a hábito de procurar na natureza selvagem parcela importante do seu sustento diário. A natureza era uma fonte praticamente inesgotável de alimentos e outros recursos indispensáveis à vida.24 Saber como extrair do meio ambiente os meios básicos para a subsistência foi uma vantagem vital para aqueles que sabiam tirar proveito de tal situação. Neste ínterim os paulistas levavam uma ligeira vantagem com relação a seus concorrentes reinóis, uma vez que seus laços com as culturas indígenas lhe legavam conhecimentos extraordinários de como viver naquele meio tão hostil àqueles que desconheciam os segredos das matas e sertões. Em determinadas circunstâncias de extrema penúria vivida pelos mineiros durante os primeiros anos de mineração nas Gerais, tais conhecimentos foram crucias para determinar aqueles que teriam sucesso naquela dura empreitada da mineração. Para sobreviver, muitos homens “se aproveitarão até dos mais imundos animais” para se alimentarem.25 O alimento era coletado na natureza das mais diversas formas. Raízes, animais de pequeno e médio porte, frutos e legumes de todo o tipo, ovos, mel, e até mesmo insetos eram utilizados como fonte de alimento por aqueles homens que se aventuravam por meses e não raro anos no coração do Continente ainda “selvagem”. Naquele contexto, a natureza, ou seja, as florestas e sertões, eram encarados como verdadeiros mananciais de alimentos e outros gê- Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 neros de extrema necessidade pelas populações luso brasileiras que habitavam a América portuguesa. Minas Gerais não foi uma região pródiga quanto à disponibilidade destes gêneros de necessidade encontrados na natureza. Certamente o grande afluxo de homens que para ali se dirigiu nos primeiros anos de sua colonização foi uma das causas de tais dificuldades, mas certamente não foi a única. Vejamos algumas fontes a este respeito: “Com esta notícia de grandezas, quis logo vir às Minas, mas não o fiz por falta de mantimentos nos caminhos e cama, de que morria muita gente....” 26 O autor destas palavras foi um “forasteiro” anônimo que partiu do Rio de Janeiro para as Minas Gerais em 1698. Ele relata neste mesmo documento que fora grande a mortandade de homens nas Minas ocasionada pela carência de alimentos. A falta de comida levou muitos mineiros “a comerem bichos de taquara, que para os comer é necessário estar um tacho no fogo bem quente, e ali os vão botando; os que estão vivos logo bolem com a quentura e são os bons, e se se come algum que esteja morto é veneno refinado.”27 Em outro relato relativo à este mesmo contexto, o autor também acentua a falta de víveres silvestres na região das Minas: por serem tudo matos e asperíssimas brenhas, e falto do mais favorável gênero de caças, como veados, antas, emas, porcos monteses e mais gêneros de animais, e mel silvestre, que pelos campos gerais eram mais abundantes do que pelos sertões de matos incultos montanhosos e penhascosos...28 Como vimos, a topografia acidentada das Minas também foi um obstáculo à obtenção de alimentos na Natureza. Em praticamente todas aquelas pioneiras incursões até as Gerais, os sertanejos, mamelucos e principalmente os indígenas cativos tiveram um papel fundamental, uma vez que dominavam as técnicas necessárias à sobrevivência naquelas matas ainda pouco conhecidas e exploradas.29 Paulatinamente a questão do abastecimento de gêneros alimentares na região mineradora foi equacionada, através da introdução da 17 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 18 agricultura em mais larga escala nos arredores das principais vilas e localidades da Capitania das Minas Gerais e com o afluxo cada vez maior de gado àquela região, proveniente principalmente dos arredores do Rio São Francisco e demais terras ao longo do caminho que ligava Salvador às Minas Gerais. As principais culturas eram o milho, o feijão e a mandioca, sendo a mandioca mais comum nos sertões do Rio São Francisco e o milho prevalecendo nas demais regiões das Minas. A principal região produtora de víveres era a Comarca do Rio das Mortes. Com o tempo também se estabeleceram nas Gerais redes de comerciantes que garantiram o abastecimento de todo gênero de mercadorias àquela região, desde gêneros de primeira necessidade, até utensílios do mais alto luxo que alcançavam ali preços muito maiores do que os observados no litoral.30 A estabilidade referente ao abastecimento e o estabelecimento administrativo da Coroa portuguesa naquela região consolidariam de vez a colonização da região mineradora. Em meados do século XVIII a população da Capitania de Minas Gerais já oscilava em torno de 450000 pessoas. Isto significou uma pressão tremenda exercida sobre a natureza, em dois aspectos. De um lado a extração do ouro propriamente dita, e de outro o desmatamento de áreas cada vez maiores destinadas ao plantio de gêneros alimentícios destinados ao abastecimento das vilas e arraiais.31 Na capitania das Minas Gerais, a gordura de porco, assim como nas demais partes da América portuguesa. O porco era presença certa nas moradas das minas colonial. a carne de porco, seus miúdos e o toucinho (...) são alimentos que faziam parte do cotidiano das famílias abastadas. O consumo elevado de toucinho, confirma-nos o seu uso não só como componente de diversos pratos das pessoas de posse e dos escravos e pobres (no feijão em ‘torresmos’, principalmente), mas como ingrediente na cocção de cereais, tubérculos e hortaliças e, também, como meio de conservação das carnes.32 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 O açúcar também era muito apreciado, mas seu alto custo restringia seu consumo aos mais abastados. As hortas, quintais e pomares existiam mesmo nas vilas, mas a produção era insuficiente para a manutenção de uma dieta saudável segundo os padrões atuais. No século XIX e início do XX o padrão alimentar brasileiro não sofreu alterações bruscas, sobretudo nas regiões interioranas. O milho, a mandioca e seus muitos derivados, o feijão e a carne-seca seguiam formando o tripé culinário brasileiro.33 A gordura e demais derivados do porco e o gosto pelos doces também eram elementos presentes em nosso gosto culinário de norte a sul no Brasil. Contudo, a combinação arroz-com-feijão tão característica da cozinha brasileira de nosso tempo nasceu ao longo do século XIX, popularizandose primeiro nas maiores cidades e posteriormente alcançando todas as partes do Brasil, mas isso não quer dizer que a farinha tenha perdido sua importância, mesmo nas regiões onde o arroz se impôs com maior veemência. Uma das possíveis causas do ganho de importância do arroz no cenário gastronômico no Brasil durante o século XIX, foi a inclusão do mesmo na alimentação dos soldados.34 No Brasil imperial, alguns eventos vieram reforçar traços de nossa culinária. Fatos como a: (...)ampliação das áreas de cultivo do café, expansão demográfica e urbana; desenvolvimento dos transportes e das comunicações; aumento gradativo da faixa de trabalho livre, (...) alta geral nos preços dos alimentos em praticamente todas as províncias do Império [entre outros] prejudicou a circulação de produtos de outras regiões. 35 Dentre as principais mudanças observadas na sociedade brasileira entre os séculos XIX e XX salientamos uma diretamente relacionada à questão alimentar. Durante todo o período colonial, o Nordeste, principal região produtora de açúcar, possuía, por conta disso, lugar de destaque no cenário político, econômico e social na sociedade brasileira. Durante o XIX, o Nordeste viu seu prestígio e influen- 19 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 20 cia diminuírem de forma considerável ao passo que o sudeste, sobretudo São Paulo (uma das regiões mais pobres durante o período colonial) crescia e ganhava espaço, por conta da introdução da cultura do café, entre outros fatores.36 Por conta da precariedade da alimentação, doenças e casos de opilações, cujos sintomas eram cansaço e hábito de comer terra, típicos de indivíduos cuja dieta é extremamente carente de vitaminas e minerais era muito comuns. Os médicos sanitaristas do Brasil imperial apontavam como possíveis causas das referidas moléstias a alimentação fundamentada na farinha de mandioca, milho e feijão, ditos pouco nutritivos e indigestos.37 O padrão alimentar brasileiro sofre uma alteração significativa a partir da década de 1930, durante a Era Vargas, início da “revolução industrial” no Brasil. É nesse contexto que nascia a indústria alimentar, ao mesmo tempo em que se acentuava o êxodo rural. É nesse contexto que os alimentos industrializados começaram a se popularizar nas grandes cidades brasileiras. Tais produtos vinham atender às necessidades da classe trabalhadora, cuja rotina tornara-se mais turbulenta e acelerada. Dados históricos confirmam que os operários se alimentavam de forma precária, enquanto as classes mais altas mostravam expansão nos excessos alimentares, numa tendência não muito diferente da observasa nos períodos anteriores.38 Nos nossos dias, o excesso de peso e obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares, hipertensão arterial (incluídas nas DCNT, Doenças Crônicas Não Transmissíveis), problemas renais, de fígado, entre tantos outros, incluindo aqueles de ordem emocional fazem centenas de milhares de vítimas a cada ano. Segundo o Ministério da Saúde, a má qualidade da dieta está diretamente associada aos riscos da pessoa desenvolver as doenças não-transmissíveis supracitadas. Ainda segundo o Ministério, essas doenças estão relacionadas às causas mais comuns de morte registradas atualmente. O governo calcula que cerca de 260 mil mortes poderiam ser evitadas todos os anos caso o brasileiro optasse ou tivesse acesso a uma alimentação saudável.39 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 Todavia, no século XX, a alimentação mostrou-se objeto de interesse da saúde pública. A inadequação da dieta nacional, pobre em leite, laticínios, ovos, verduras e frutas, passou a ser percebida a ponto de a Nutrição ser reconhecida como ciência. A composição dos alimentos, bem como a relação entre estes e as enfermidades passaram a ser estudadas com mais profundidade e profissionais da nutrição a ser requisitados no campo da saúde. Sob a influência dos avanços da bioquímica, que propiciaram uma melhor compreensão do funcionamento do organismo e a identificação de novas substâncias, como as vitaminas, o mote passa a ser investigado, abordado ou questionado por vários estudiosos em diversas áreas do conhecimento. É dentro desse contexto efervescente, entre os anos de 1930 e 1940, que Gilberto Freyre, Josué de Castro e Nelson Chaves realizaram importantes estudos sobre a alimentação brasileira, justamente num período em que a questão da fome mobilizava vários setores da sociedade brasileira em decorrência da inflação do custo de vida provocada pela crise de 1930.40 A partir desses estudos e dos outros mais que se seguiram a estes, cada vez mais embasados cientificamente, iniciou-se o desenho da situação alimentar no Brasil contemporâneo. Durante o século XX assiste-se a uma redução dos índices de subnutrição, sobretudo nos centros urbanos, mas acentuam-se distúrbios relacionados à má nutrição. A partir da década de 1960 até 1990, observa-se um marcante declínio da desnutrição em crianças (porém, ainda existente e preocupante). Mas, por outro lado, há elevação da obesidade em crianças e adultos nesse mesmo período, que chegou a triplicar em algumas regiões do Brasil nos extremos da série temporal analisada. Outro efeito do acelerado processo de industrialização e urbanização sobre as crianças é uma melhora no nível de estatura das crianças da ordem de 72% nas cidades e 54,4% no meio rural.41 Na con- 21 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 temporaneidade, outro fator que interfere diretamente na qualidade alimentar é a renda familiar. A análise dos dados do período mostram que a obesidade, antes mais relacionada as classes mais ricas da população independente da região do país, fora atingindo também aquelas populações de renda mais baixas inclusive no Nordeste. Todavia, esse quadro é paradoxal quando comparado ao nível de anemias da referida época: (...)elevada a prevalência de anemia, com uma freqüência modal entre 40 a 50% em menores de cinco anos e de 3040% em gestantes (...) A anemia representa, em termos de magnitude, o principal problema carencial do país, aparentemente sem grandes diferenciações geográficas, afetando, em proporções semelhantes, todas as macrorregiões (...).42 22 Os dados apresentados evidenciam que a obesidade, ou seja, o sobrepeso, não garante uma boa saúde. Grande quantidade de alimento não é sinônimo de qualidade. Segundo o Guia Alimentar para a População Brasileira de 2005, o desequilíbrio nutricional se caracteriza, sobretudo pela queda da ingestão de verduras, legumes, frutas – queda de 19,3% – e peixes, cujo consumo fora reduzido pela metade em detrimento do aumento de consumo de alimentos industrializados como: óleo de soja, açúcar, farinhas e mesmo o arroz e o feijão. Os dados do Guia Alimentar mostram uma tendência de aumento no consumo de carnes e leite. Carnes gordurosas, entretanto, contribuem para doenças cardiovasculares. Já o aumento do consumo de leite é positivo, mas não atingiu ainda as porções nutricionalmente consideradas ideais. O guia recomenda a restrição do consumo de sódio, gorduras – principalmente as saturadas e trans – e açúcares. As gorduras são fontes de ácidos graxos essenciais e de vitaminas lipossolúveis, entretanto, em 2003, o consumo de gorduras totais extrapolou os limites recomendados nas Regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul e em segmentos populacionais de maiores rendimentos nas demais regiões. Já o açúcar, que do ponto de vista nutricional não é Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 essencial ao organismo, uma vez que a energia que necessitamos pode ser adquirida através de carboidratos complexos e açúcares naturalmente presentes em alimentos in natura, é largamente consumido por todas as classes em todas as Regiões do Brasil, seguindo uma tradição alimentar com profundas raízes, estabelecidas no período colonial. O excesso de consumo do açúcar simples (sacarose) está diretamente associado ao aumento de peso, a ocorrência de cáries, a ocorrência de diabetes, doenças do coração, entre outras. Já o consumo de sal, que também aumentou consideravelmente no século XX, bastante presente nos produtos industrializados, está relacionado a doenças coronarianas, como a hipertensão.43 Todavia, enquanto parte da população tem sofrido com os males crescentes da obesidade, alto consumo de alimentos industrializados, ricos em gorduras e açúcares, outra tem dado cada vez mais atenção a alimentação visando melhorar a saúde, através do consumo de alimentos saudáveis, aumento da atividade física e mesmo a preocupação com a saúde mental. Tem ganhado cada vez mais espaço a alimentação macrobiótica, que exclui alimentos de origem animal, processados e congelados e afirma que os alimentos existem em dois grupos “yin e yang” e devem ser consumidos em combinação desses elementos. Outro método alternativo em expansão e o da Alimentação Viva, a qual considera que o corpo, composto por células vivas, precisa de alimentos vivos para manter a saúde (somente vegetais são consumidos, principalmente em forma crua). Estão, ainda, em destaque no país também a alimentação natural, o vegetarianismo, e as dietas não convencionais.44 Todavia, a alimentação ideal é aquela variada, equilibrada, harmônica, sendo que pode-se comer de tudo, desde que com moderação e respeitando as necessidades do corpo com relação a cada tipo de alimento.45 Na atualidade, seja no Brasil ou em qualquer país capitalista industrializado, um dos maiores obstáculos a uma saúde equilibrada consiste em promover uma ampla educação alimentar, alertando a população quanto aos riscos em se consumir em excesso gorduras trans, gorduras saturadas, açúcares e agentes químicos nocivos à 23 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 nossa saúde. Cabe também uma ação mais incisiva do Ministério da saúde e demais Órgãos relacionados à comercialização de alimentos, coibindo a venda de determinados produtos. REFERÊNCIAS 24 CASCUDO, Luis da Câmara. História da Alimentação no Brasil. 3ª edição. São Paulo: Global, 2004. FILHO, Malaquias B. e RISSIN, Anete. A transição nutricional no Brasil: tendências regionais e temporais. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 2003. FLANDRIN, Jean-Louis e MONTANARI, Massimo. História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998. FREYRE, Gilberto. Açúcar. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 50ª ed. São Paulo: Global, 2005. MAGALHAES, Sonia Maria de. Alimentação, Saúde e Doença em Goiás no Século XIX. Tese de Doutorado. Franca, SP. 2004. MENESES, Jose Newton Coelho. O Continente Rústico: abastecimento alimentar nas Minas Gerais setentistas. Diamantina MG: Maria Fumaça, 2000. Ministério da Saúde. Guia Alimentar para a População Brasileira. Brasília – DF 2005. SILVA, Paula Pinto e. Farinha, feijão e carne-seca: um tripé culinário no Brasil colônia. São Paulo: Editora Senac, 2005. NOTAS 1 FLANDRIN, Jean-Louis e MONTANARI, Massimo. História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998. 2 FRANCO, Ariovaldo. De caçador a Gourmet: uma História da Gastronomia. São Paulo: Ed Senac, 2004. pp. 23-24. 3 FREIRE, Gilberto. Açúcar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 10. 4 LEMPS, Alain Huertz. As bebidas coloniais e a rápida expansão de açúcar. In: FLANDRN, Jean-Louis; MONTANARI, Máximo. História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998. p. 611-616. Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 5 SILVA, Paula Pinto e. Farinha, feijão e carne-seca. São Paulo: SENAC, 2005, p. 26. 6 CASCUDO, Luis de Câmara. História da Alimentação no Brasil. São Paulo: Global, 2004. p. 48. 7 Idem. P. 146. 8 O Guia Alimentar Brasileiro atual recomenda que: Os cereais, de preferência, integrais, frutas, legumes e verduras, e leguminosas (“feijões”), no seu conjunto, devem fornecer mais da metade (55-75%) do total de energia diária da alimentação; Gorduras: 15-30% do valor energético total (VET) da alimentação. Proteínas: 10-15% do valor energético total (VET). 9 SILVA, Paula Pinto e. Farinha, feijão e carne-seca. São Paulo: SENAC, 2005, p. 26. 10 Idem. Ver: capítulos I e II. 11 Ver, entre outros: DEAN, Warem. A ferro e fogo: história da devastação da mata Atlântica no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 12 FLANDRN, Jean-Louis. Da dietética à gastronomia, ou a libertação da gula. In: FLANDRN, Jean-Louis; MONTANARI, Máximo. História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998. p. 676. 13 FLANDRN, Jean-Louis. Tempos Modernos. In: FLANDRN, Jean-Louis; MONTANARI, Máximo. História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998. p. 549. 14 SILVA, Paula Pinto e. Farinha, feijão e carne-seca. São Paulo: SENAC, 2005, p. 39. 15 Idem. p. 44. 16 CASCUDO, Luis de Câmara. História da Alimentação no Brasil. São Paulo: Global, 2004. p. 147. 17 Ver, entre outros: FERREIRA, Luís Gomes: Erário Mineral. (org) FURTADO, Júnia Ferreira. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 2002. 18 FREIRE, Gilberto. Açúcar. São Paulo: Companhia das letras, 1988. 19 FREIRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. São Paulo: Global, 2005. p. 149. 20 SILVA, Paula Pinto e. Farinha, feijão e carne-seca. São Paulo: SENAC, 2005, p 38. 21 Idem. p. 38. 25 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 22 26 MAGALHAES, Sonia Maria de. Alimentação, Saúde e Doença em Goiás no Século XIX. Tese de Doutorado. Franca, SP. 2004. p. 36-37. 23 BOXER, Charles R. pp. 71-72. ANTONIL, André João. pp. 164-168 e 181-186. 24 Para maiores informações a este respeito ver: HOLANDA, Sergio Buarque de. Caminhos e Fronteiras. 25 Idem. p. 56. 26 “NOTÍCIAS do descobrimento das minas de ouro e dos governos políticos nelas havidos.” In: Códice Costa Matoso. Vol. 1 p. 245. 27 Idem. p. 245. 28 NOTÍCIAS dos primeiros descobridores das primeiras minas do ouro e estas Minas Gerais, pessoas mais assinaladas nestes empregos e dos mais memoráveis casos acontecidos desde os seus princípios. In: Códice Costa Matoso. Vol.I pp. 170-171. 29 Acerca das habilidades e técnicas de indígenas e mamelucos com relação à obtenção de alimentos e outros do meio ambiente ver: HOLANDA, Sergio Buarque de. Caminhos e Fronteiras. 30 BOXER, Charles R. A Idade de Ouro do Brasil. pp. 70-80. 31 DEAN, Warren. op. cit. pp. 108-109. 32 MENESES, José Newton. O continente rústico: abastecimento alimentar nas Minas Gerais setecentistas. Diamantina: Maria Fumaça: 2000. p. 114. 33 Ver: SILVA, Paula Pinto e. Farinha, feijão e carne-seca. São Paulo: SENAC, 2005. 34 MACIEL, Maria Elnice. Uma cozinha à brasileira. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, nº 33, 2004. p. 8-9. 35 MAGALHAES, Sonia Maria de. Alimentação, Saúde e Doença em Goiás no Século XIX. Tese de Doutorado. Franca, SP. 2004. p. 29. 36 Ver: Parte II: IGLESIS, Francisco. Trajetória política do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 37 Idem. p. 29. 38 Ver: LEAL, Maria Leonor de Macedo Soares. História da Gastronomia. São Paulo: Senac, 2004. pp. 63-91. 39 MINISTÉRIO da Saúde. Guia Alimentar para a População Brasileira. Brasília – DF 2005. 40 Idem. p. 36. Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 41 FILHO, Malaquias B. e RISSIN, Anete. A transição nutricional no Brasil: tendências regionais e temporais. Rio de Janeiro: Cad. Saúde Pública: 2003. 42 Idem. 43 MINISTÉRIO da Saúde. Guia Alimentar para a População Brasileira. Brasília – DF 2005. 44 Ver: GONZALEZ, Alberto Peribanez. Lugar de Médico é na Cozinha. Rio de Janeiro: Editara Estácio de Sá, 2006. 45 Ver: FLANDRIN, Jean-Louis; TEUTEBERG, Hans Jurgen. Transformações do consumo alimentar. In: FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Máximo. História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998. 27 CIDADE E CONVERGÊNCIA DE MÍDIA: NOVOS CENÁRIOS DA GLOBALIZAÇÃO RENATA ALENCAR Professora do Departamento de Comunicação Social da FUNEDI/UEMG e coordenadora do curso de pós-graduação lato sensu Processos criativos em palavra e imagem, do IEC-PUC Minas e-mail: [email protected] TAILZE MELO Professora do Departamento de Comunicação Social da Faculdade Estácio de Sá (BH) e coordenadora do curso de pós-graduação lato sensu Processos Criativos em palavra e imagem, do IEC-PUC Minas e-mail: [email protected] 28 Resumo: O artigo propõe discutir a cidade como espaço catalisador de trocas e de um tipo particular de produção simbólica atravessada pela chamada convergência de mídia, no cenário do conjunto de mudanças que pode ser sintetizado no termo globalização. O projeto Canal Motoboy, de autoria do artista catalão Antoni Abad, se apresenta como contexto analítico, por incorporar a dinâmica da cidade contemporânea que se revela em signos fugazes, cartografando novos territórios estéticos. Dessa forma, a mobilidade, inerente ao processo de globalização, constitui-se como operador de leitura para a compreensão das trocas urbanas, da permanente reciclagem simbólica e das paisagens citadinas, bem como das tecnologias nômades. Palavras-chave: cidade; mobilidade; globalização; produção simbólica. Abstract: This article approachs the city as catalytic space of exchanges and a particular type of symbolic production crossed by the call media convergence. In this context, the set of changes can do examined in the scene of globalization. The project “Canal Motoboy”, of the Catalan artist Antoni Abad, to introduce oneself how an analytical context because it incorporates dynamics of the city contemporary, mapping a new aesthetic territories. Of this form, mobility, inherent to the globalization process, consists as operator of reading for the understanding of the urban exchanges, the permanent symbolic recycling and the landscapes city, as well as of the nomadic technologies. Key-words: globalization; media convergence; city. Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº - 6 – p. 28 a 36 – outubro de 2007 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 M otoboys circulam freneticamente pela cidade de São Paulo. Costuram cartografias urbanas fixadas em cenas capturadas por potentes celulares utilizados como suportes de narrativas que se deslocam pelas mais variadas enunciações textuais: fotografia, produções audiovisuais, mensagens de texto e gravações sonoras. O registro é exibido, instantaneamente, em um site1, gerando uma recepção quase da ordem do tempo real. Em suas motos, assumem o papel de cronistas da cidade ao recortar flashes do cotidiano urbano, registrando impressões de um olhar em movimento constante e que, portanto, não se fixa em nada. São apenas rasgos de cenas de uma cidade inquieta, marcada por suas tensões e encantos. Guardadas as devidas diferenças contextuais2, não seria impróprio afirmar que a atividade parece configurar um tipo de flânerie contemporânea, pois tal qual o flâneur da Modernidade, os motoqueiros criam uma singular poética da observação. No delírio da cidade, o caleidoscópio da vida se apresenta apenas como um volúvel espetáculo registrado por um grupo situado fora do circuito da mídia hegemônica. O grupo de motoboys faz parte do projeto Canal Motoboy, coordenado por Antoni Abad. O artista catalão possui experiências anteriores da mesma linhagem em outros países, sempre trabalhando com grupos alijados da produção exibida no cenário midiático contemporâneo. Não que os protagonistas dos projetos de Abad – prostitutas, taxistas, ciganos e motoboys – não apareçam como pauta na mídia, mas não é comum encontrar, nesse espaço enunciativo, produções discursivas de autoria desses segmentos sociais. Trata-se, pois, de uma iniciativa com importância política, já que algumas produções artísticas propiciam visibilidade a manifestações culturais construídas por realidades outras e, por conseqüência, podem fomentar o debate público acerca das tensões que envolvem o cotidiano de certos grupos sociais. Apesar do engajamento do projeto de Abad ser de real importância, neste artigo, será feito outro recorte de discussão, qual seja, a cidade como espaço catalisador de trocas e de um tipo particular de 29 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 produção simbólica atravessada pela chamada convergência de mídia. Esse recorte tem como ponto fundamental a compreensão do espaço-tempo na chamada globalização. 30 Itinerâncias urbanas: a cidade e a globalização O projeto Canal Motoboy parece ser emblemático para se tecer uma reflexão sobre a via de mão dupla estabelecida entre o que Steven Johnson (2001) chamou de mundo da cultura e mundo-objeto da tecnologia. Para o autor, ao tempo que o mundo da cultura alimenta o mundo-objeto da tecnologia com suas dúvidas, necessidades e construtos, o mundo-objeto da tecnologia inova o mundo da cultura na medida em que oferece condições para que novas formas de pensar e perceber o mundo se ergam. Assim, o contexto cultural e o contexto tecnológico dialogam em um exercício constante de retroalimentação. Nesse sentido, há que se pensar que o mundo contemporâneo engendra-se sob as lógicas da aceleração, do deslocamento e do hibridismo de linguagens, atravessando fronteiras nacionais e tornando nossa experiência de mundo mais interconectada. Essa complexa trama de relações tem sido denominada de globalização. David Harvey, citado por Stuart Hall (2000, p.70), enfatiza que: À medida que o espaço se encolhe para se tornar uma aldeia “global” de telecomunicações e uma “espaçonave planetária” de interdependências econômicas e ecológicas – para usar apenas duas das imagens familiares e cotidianas – e à medida em que os horizontes temporais se encurtam até ao ponto em que o presente é tudo que existe, temos que aprender a lidar com um sentimento avassalador de compressão de nossos mundos espaciais e temporais. Nota-se, pois, que a cada contexto cultural e tecnológico, há uma sensibilidade própria que se impõe. Sensibilidade esta que diz respei- Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 to tanto aos processos de enunciação quanto aos atos de recepção que a esfera midiática suscita. Vale dizer que a experiência com os meios, atravessada pela dimensão sensível do tempo presente, é capaz de atualizar as linguagens e seus agenciamentos semióticos. Segundo Plaza (1987, p.10), (...) as formas da linguagem atual, junto com as formas técnicas produtivas, contaminam e semantizam a leitura da história assim como determinam a recepção, ao mesmo tempo em que elas definem sua própria historicidade. Passadopresente-futuro estão atravessados pelas antigas e novas formas tecnológicas. As tecnologias digitais não apenas transformam nossa forma de ação e percepção sobre o mundo – a maneira como construímos nossos signos da realidade – como também transformam as linguagens e as técnicas pré-existentes. Trata-se de uma configuração cultural cumulativa que remodela, à sua maneira, dispositivos e linguagens anteriores. Quando pensamos em cultura como o modo pelo qual uma determinada sociedade constrói seus códigos simbólicos e padrões sociais, não há como ignorar o intercâmbio entre a produção de tais códigos e padrões com a cidade, pois o espaço urbano talvez seja o mais importante operador de leitura de um determinado tempo histórico/cultural. Obviamente, a cidade é um grande texto em que é possível detectar todas as nuances de uma época. Nesse sentido, a cultura se dá em consonância com a modelagem urbana de um determinado tempo e, por isso, torna-se importante pensar na rede semântica que, hoje, cerca o significante cidade. A tarefa não é fácil, pois nosso tempo, a pós-modernidade, parece mesmo ser avesso a definições engessadas, por isso mesmo a palavra itinerante pode ser tomada como paradigma no qual orbita uma rede semântica3 formada por outros significantes como: globalização, nomadismo simbólico, híbrido, convergência de mídia, etc. Por 31 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 32 sua vez, tal rede semântica, está intrincada às enunciações espaciais próprias da cidade contemporânea cujas tessituras simbólicas estão engendradas sob a ordem do híbrido. A política urbanística da chamada Modernidade, cujo planejamento urbano foi norteado por uma organização racional das políticas espaciais ao lado de mecanismos de controle, valeu-se de princípios como o do progresso e da ordem para atuar como instrumento que permite conservar um modelo de dominação política, social, econômica e cultural segregacionista (GOMES, 1999). Nesse sentido, a tentativa de projetar a cidade nos moldes de um cartão-postal foi amplamente exercida com vistas a conformar um imaginário citadino baseado no controle dos dejetos que assume inclusive uma conotação social4. No entanto, o mencionado projeto da Modernidade falhou. A cidade contemporânea não pode mais ser vislumbrada sob a égide de uma falsa assepsia. Ao contrário, o espaço urbano se revela nas fissuras, nas contaminações, formando uma trama que pode ser visualizada como um novelo que, no entanto, não se encerra em um ponto de origem e chegada. Pelo novelo da cidade coexistem fios de densidade e texturas diversas que, por vezes, se encontram em nós, gerando curta-circuitos de significação. É a cidade-dispositivo5 que se apresenta. Cidade, esta, cujas linhas de força regulam padrões de interação. No entanto, para além das instâncias reguladoras de trocas, há linhas de fuga que a fazem espaço também de deslocamentos e rupturas. É nesse âmbito que a cidade se apresenta como terreno da permanência, da gestão de uma memória coletiva, mas também como desencadeadora de mudanças, migrações e não-fixação: características próprias da globalização. Nessa perspectiva, a cidade se revela em camadas em que o avesso do cartão postal se desloca para a ordem do visível. Basta um vaguear pela cidade para observar as impressões da diversidade em seus vários domínios: simbólico, social, político. A questão das construções simbólicas emergentes do referido contexto urbano ganha centralidade na discussão aqui apresentada, uma vez que criam cartografias de territórios estéticos pautados por Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 circuitos nômades e pela ubiqüidade das trocas. Nesse âmbito, a mídia não pode ser abordada apenas como um aparato técnico, mas como espaço no qual circulam produtos simbólicos condicionadores de práticas interacionais6, modelando imaginários coletivos. Dessa forma, a mídia se apresenta para além de seu aspecto transmissivo, visto que se constitui como espaço social capaz de encarnar em si mesma a retro-alimentação, mencionada por Johnson, entre mundo da cultura e mundo objeto da tecnologia. O espaço midiático digital, particularmente, constitui-se como importante veículo para mensagens e, inclusive, veículo para outras mídias, mas suas especificidades o fazem ser, sobretudo, produtor de linguagem. Nesse sentido, pode-se mencionar o projeto Canal Motoboy como expressão tradutora de um tipo de vivência urbana marcada pelo trânsito. Interessante pensar na figura do motoboy como um representante genuíno dessa cidade contemporânea. Há uma lógica da eficácia que atravessa o nosso tempo; nesse contexto, o motoboy transita para que outros não precisem transitar. De forma paradoxal, a cidade apresenta uma dialética entre o movimento e a clausura, sintoma de um mundo em que as experiências se fazem cada vez mais mediadas pela tecnologia e suas globalizações. Nesse contexto, os motoboys, no projeto de Abad, assumem a autoria de signos fugazes tradutores de uma dinâmica também volátil, criando uma topologia eletrônica a partir de seu trânsito no espaço urbano. O ponto de encontro agora não mais é a cidade, mas a tela eletrônica que a revela. No entanto, essa tela não se constitui como ruptura das vivências pessoais, tal como coloca Virilio (1993). A tela pode ser abordada como um novo espaço interacional, capaz de conectar experiências individuais e, assim, atuar na ordem da coletividade. As mídias móveis, no caso celulares, se oferecem para construir signos da mobilidade a partir de olhares em permanente itinerância no espaço citadino. Dessa forma, pode-se inferir uma reduplicação da mobilidade entre a experiência de um sujeito, a configuração urbana e a mediação tecnológica de que se vale esse sujeito para singularizar seu estar no mundo. 33 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 34 Considerações finais As reflexões aqui apresentadas constroem um prefácio de um tema que não se esgota facilmente, pois abriga em sua própria existência a dimensão processual e a construção cotidiana de seu horizonte de possibilidades. Interessante apontar alguns caminhos possíveis para uma abordagem dos novos territórios estéticos que se evidenciam com produções simbólicas realizadas a partir de situações de não-permanência que a natureza de mobilidade de alguns dispositivos midiáticos permitem capturar. Tal natureza dialoga efetivamente com o contexto de globalização no qual se encontra a sociedade contemporânea. Caminhos apontam possibilidades. No entanto, há um ponto de convergência capaz de costurar as várias ramificações que eclodem dessas travessias. Aqui a cidade é o ponto. A cidade parece encarnar em uma espacialidade singular, ao mesmo tempo catalisadora e acolhedora, construções simbólicas genuinamente contemporâneas em torno das quais se desenham novos territórios estéticos. Esses territórios se caracterizam, em um primeiro momento, pela produção de signos fugazes, escrituras de um homem ordinário, em trânsito pelo espaço urbano. Exercita-se, pois, uma nova poética da observação pautada na superfície pela qual o olhar vagueia inquieto e, paradoxalmente, acomodado pela velocidade do tempo real. Por sua vez, a singularização desses olhares acontece mediada por dispositivos portáteis que assumem aspectos multifuncionais, dentre os quais se inclui a produção de diversas enunciações: a palavra, a imagem fixa, a imagem em movimento, o som. Enunciações essas que também projetam sobre a cidade um imaginário que possui como significante primordial a mobilidade. A cidade é em si mesma objetos e representações nas migrações do mundo contemporâneo. REFERÊNCIAS BASTOS, Marcus. Samplertropofagia: cultura da reciclagem. Belo Horizonte: XXVI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação (Intercom), 2003. Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 BEIGUELMAN, Giselle. Admirável mundo cíbrido. In: BRASIL, André et. al. (Orgs.) Cultura em fluxo: novas mediações na rede. Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2004. p.264-281. BRAGA, Jose Luiz. Constituição do campo da Comunicação. In: FAUSTO NETO, Antonio; PRADO, Jose Luiz Aidar e PORTO, Sergio Dayrrel (Org.). Campo da Comunicação. João Pessoa: Editora Universitária, 2001. CANAL MOTOBOY. Projeto desenvolvido por Antoni Abad, 2007. Disponível em: http://www.zexe.net/saopaulo. Acesso em: mai. 2002. CARRASCOZA, João Anzanello. A rede semântica. In: ______. 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No Brasil, durante a chamada Belle Époque carioca, o hábito de flanar definiu o modo de ser de alguns de nossos escritores, dentre eles João do Rio, para quem o verbo Flanar pode ser definido como: “A distinção de perambular com inteligência” (RIO, 1997, p.51). Nesse âmbito, obviamente, quando aproximamos os motoboys do projeto de Abad do flâneur, é apenas no sentido de capturar a cidade por meio do olhar em constante movimento, já que seria improvável uma analogia entre esses transeuntes urbanos por meio do critério de ritmos de percepção. 3 João Anzanello Carrascoza (1999) define paradigma como uma palavra geradora de um campo associativo em que outras palavras orbitam, construindo uma determinada rede semântica. 4 No Brasil, o processo de afastamento do “lixo social” de áreas valorizadas aconteceu de forma significativa durante a chamada Belle Époque carioca. O Rio de Janeiro, sob o comando do prefeito Pereira Passos, sofreu um processo de remodelação urbana que ficou conhecido como operação “Botaabaixo”. Nesse contexto, a modernização carioca não se limitou ao espaço geográfico, antes se ampliou para o social e o existencial, afetando bruscamente as socialidades e os hábitos da população de baixa renda. Cortiços e casas simples que se situavam próximos ao centro foram simplesmente demolidos, obrigando os pobres a migrarem para os subúrbios e para os espaços que ficaram conhecidos como favelas. 5 Sobre o conceito de dispositivo: Cf. DELEUZE, 1990. 6 Sobre as interações comunicacionais: Cf. BRAGA, 2001. 2 36 JOGOS DE ESCALA: A 2ª GUERRA MUNDIAL (1939-1945) VISTA PELOS JORNAIS DE DIVINÓPOLIS (MINAS GERAIS, BRASIL) Este texto é dedicado à Batistina Corgozinho ANA MÓNICA HENRIQUES LOPES Doutora em História pela UFMG e professora do Mestrado em Educação, Cultura e Organizações Sociais da FUNEDI/UEMG E-mail: [email protected] MATEUS HENRIQUE DE FARIA PEREIRA Doutor em História pela UFMG e professor do Mestrado em Educação, Cultura e Organizações Sociais da FUNEDI/UEMG E-mail: [email protected] HELOISA HELENA CORGOZINHO Licenciada em História pela FUNEDI/UEMG Resumo: Considerando-se que o acontecimento ganhou, a partir de meados do século passado, uma nova legitimidade como objeto, pretende-se refletir sobre sua construção através do olhar do jornalista de Divinópolis no período da 2ª Guerra Mundial (1939-1945), levando em conta o fato de tropas brasileiras terem sido enviadas à Itália durante o conflito. Por meio deste objeto pretendemos pensar a relação entre os conceitos de globalização e acontecimento como articuladores que possibilitam a compreensão e explicação dos sentidos, traços e apropriações de que um “acontecimento global e traumático”, a 2ª Guerra Mundial, recebeu em Divinópolis (Minas Gerais). Palavras-chave: Acontecimento; Globalização; Jornalismo e Divinópolis. Resume: En se considérant que l’événement a gagné, à partir de milieux du siècle passé, une nouvelle légitimité comme objet, se prétend refléter sur sa construction à travers le regard du journaliste de Divinópolis dans la période de la 2ª Guerre Mondiale (1939-1945), dans le moment que les troupes brésiliennes avoir été envoyé à l’Italie pendant le conflit. Au moyen de cet objet nous prétendons penser la relation entre les concepts de globalisation et l’événement comme articuladores qui rendent possible la compréhension et l’explication des sens, traces et appropriations dont une “événement global et traumatique”, la 2ª Guerre Mondiale, a reçu dans Divinópolis (Minas Gerais). Mots-clef: Événement, Globalisation, Journalisme et Divinópolis. Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº - 6 – p. 37 a 51 – outubro de 2007 37 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 (...) porque raciocinar sobre as causas e sobre os efeitos é coisa muito difícil, creio que o único juiz possível é Deus. Já temos a maior dificuldade em apreender uma relação entre um efeito tão evidente como um árvore queimada e o raio que a incendiou: assim, remontar encadeamentos às vezes muito longos de causas e efeitos parece-me tão louco quanto procurar construir uma torre que vá até o céu (Umberto Eco. O Nome da Rosa) E 38 nfocar a Segunda Guerra Mundial como um acontecimento significa tentar apreender o olhar dos indivíduos no momento o que o mesmo se desenvolvia. Trata-se de buscar nos registros deixados – em nossa abordagem textos jornalísticos – as expectativas, esperanças e leituras produzidas de um processo em desenvolvimento. Considerando-se que o acontecimento ganhou, a partir de meados do século passado, uma nova legitimidade como objeto, pretende-se refletir sobre sua construção através do olhar do jornalista de Divinópolis no período da 2ª Guerra Mundial (1939-1945), levando em conta o fato de tropas brasileiras terem sido enviadas à Itália durante o conflito. Por meio deste objeto pretendemos pensar a relação entre os conceitos de globalização e acontecimento como articuladores que possibilitam a compreensão e explicação dos sentidos, traços e apropriações de que um “acontecimento global e traumático”, a 2ª Guerra Mundial, recebeu em Divinópolis (Minas Gerais). Nossa reflexão insere-se no que Paul Ricouer (2000) denomina de grande conquista ou liberdade metodológica: o jogo de escalas, pois indica um caminho de saída para a falsa alternativa entre os partidários do acontecimento e os da longa duração. O princípio de variação não opera com a escolha de uma escala particular, mas com a mutação intrínseca sem, no entanto, ter a pretensão de passagem da microanálise à macroanálise. A transposição das conclusões de uma micro para a macro escala deve ser feita com o cuidado necessário para evitar o decalque ou o mero encaixe por correspon- Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 dência direta de elementos comuns. Em cada escala vêem-se aspectos que não são vistos em outra e cada olhar tem a sua legitimidade (RICOUER, 2000, p. 276-277). Para Jacques Revel, “variar a objetiva não significa apenas aumentar (ou diminuir) o tamanho do objeto no visor, significa modificar sua forma e trama” (1998, p. 20). Não existe, assim, oposição entre a história do particular ou história local e história global: O que a experiência de um indivíduo, de um grupo, de um espaço permite perceber é uma modulação particular da história global. Particular e original, pois o que o ponto de vista micro-histórico oferece à observação não é a versão atenuada, ou parcial, ou mutilada, de realidades microssociais: é, (...), uma versão diferente (REVEL, 1998, p. 27-28). No entanto, não há unanimidade entre os adeptos da microanálise. Existem, pelo menos, duas posições sobre as abordagens microanalítica. A primeira, “relativista” considera que a variação de escalas possibilita construir objetos, tendo em vista que nenhuma escala tem privilégio sobre outra, pois é a confrontação das mesmas que traz benefícios analíticos. A segunda, “fundamentalista”, sustenta um privilégio do “micro”, na medida em que este engendra o “macro” (REVEL, 1998, p. 14). Neste texto experimental alternamos, a partir de um ponto de vista narrativo, as duas posições. Porém, do ponto de vista teórico, nossa postura frente a Micro-História está relativamente próxima a de Ronaldo Vainfas que afirma: não chegaria ao ponto de dizer que a microanálise é a mais esclarecedora, preferindo ‘apostar’ nas possibilidades de compatibilização – embora elas sejam restritas – e reconhecendo, antes de tudo, uma diferença que não implica hierarquia sobre qual escala se sai melhor na tarefa de reconstruir a história (2002, p. 67). 39 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 40 Nossa escala: Divinópolis, Minas Gerais, Brasil Divinópolis situa-se na Região Centro-Oeste do Estado de Minas Gerais e se apresenta hoje como importante pólo para o desenvolvimento na Região do Alto São Francisco. A facilidade de deslocamento para a capital, Belo Horizonte e São Paulo, além de sua privilegiada situação geográfica, influenciam em seu crescimento. Segundo o último senso realizado, ela apresenta uma população de aproximadamente 200 mil habitantes. Com uma economia antes voltada para o setor siderúrgico e metalúrgico, apresenta, a partir da década de 1980, um aumento significativo no setor confeccionista – atacadista e varejista. Devido ao desenvolvimento econômico Divinópolis é vista como um lugar de oportunidades empregatícias; o que explica a presença de uma população flutuante. A cidade é centro de referência das outras cidades da região por oferecer diversos serviços públicos, bancários, judiciários, educacionais e uma ampla rede de serviços de saúde. Estas características somadas às visitas diárias das chamadas “sacoleiras” aos vários centros de compras, trazem para a cidade um grande fluxo de visitantes que, consequentemente, contribui para o comércio em geral e os serviços de transportes. A maioria da população é de baixa renda, assalariados que trabalham direta ou indiretamente com o setor de confecções. Esse crescimento econômico já fazia parte do surto desenvolvimentista da primeira metade do século XX. Em 1939 foi publicado em uma revista local um artigo que retrata as alguns aspectos sócioculturais da cidade no início da 2ª Guerra Mundial: A nenhum espírito dotado do censo de justiça passa despercebido o impressionante surto de progresso que penetrou em Divinópolis. A administração pública, a indústria, o comércio, a iniciativa particular, tudo se canalizando para um objetivo único: para a grandeza de Divinópolis. (...) A população atual as cidade é de 16.000 habitantes. A cidade possue (sic) um traçado moderno, com Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 amplas ruas e avenidas, conta com ótimos prédios residenciais e tem um comércio e uma indústria dos mais desenvolvidos do oeste (Revista Itapecerica. Apud CORGOZINHO, 2003, p. 96-97). A sociedade divinopolitana das décadas de 1930 e 1940 convivia, desse modo, com novas idéias de progresso e desenvolvimento. Não era mais uma sociedade estritamente rural e tradicional. O Divinópolis Jornal, por exemplo, afirma: “povo que trabalha incansavelmente, erguendo nas vias públicas prédios de apuro arquitetônico, movimentando o comércio e a indústria. Divinópolis caminha sempre, com desenvoltura e arrojo” (Divinópolis Jornal, 1942, s/pág.). Com a chegada da estrada de ferro e da mão de obra industrial, a população passou a conviver com um novo modo de vida (CORGOZINHO, 2003). Para Lázaro Barreto, a Rede Ferroviária transforma os trabalhadores da cidade em “homens de direitos assegurados em contratos coletivos de trabalho, promovendo-o, por assim dizer, de roceiro a operário” (BARRETO, 1992, p. 63) Nos trilhos da RMV foram transportados novos valores sócioculturais, novos conceitos e novas esperanças de desenvolvimento individual e da coletividade. Este “novo” homem não poderia viver alheio ao que acontecia, era preciso discutir e participar do que ocorria pelo mundo. A população divinopolitana da época protagonizou o surgimento e o desenvolvimento de uma “nova era”. A cidade estava em marcha, rumo ao progresso, bem como o Brasil. O Divinópolis Jornal de 1942 afirma, a esse respeito que Há quem afirme ser Divinópolis uma cidade eminentemente operária. Na realidade, Divinópolis tem a sua indústria bem desenvolvida. Possue (sic) florescente fábrica de tecidos, diversas fábricas de manteiga, banha e macarrão, máquinas de beneficiar café e arroz; possue (sic) várias oficinas mecânicas, duas fundições de ferro, aço e bronze (estas – das maiores da zona oeste de Minas). 41 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 Além de ser sede de uma das maiores oficinas ferroviárias da América do sul, a cidade se tornava também sede de novas siderúrgicas. Era cidade de morada de médicos, advogados, engenheiros e professores, e primava pela intelectualização de seu povo. Na década de 1940 é fundado o Ginásio São Geraldo. Contando com um diretor estimado e valorizado pela população, Martin Cyprien, um francês, o novo ginásio iria ser, O ponto alto na garantia do nosso progresso, porque permitirá ensanchas ao desenvolvimento intelectual da nossa gente, conciliando os interesses dos que buscam alcançar este grande objetivo – o trabalho material aliado ao trabalho mental (Divinópolis Jornal, 1942, s/pág.). 42 Em Divinópolis, os primeiros jornais surgiram após sua emancipação política no início do século XX, em 1912. O perfil dos jornais apresentava características de panfletos e se destinavam, em sua maioria, à divulgação política em épocas de eleições. Houve um aparecimento de diversos pequenos jornais com duração variável (CORGOZINHO, 2003). Eles serviam aos propósitos de determinados períodos, como em épocas de eleições, já serviam como meio de expressão das idéias e ideais políticos. Essa imprensa local influenciou de forma significativa o desenvolvimento da cidade, compondo seu processo de modernização e a conseqüente formação e debate de idéias na população. Os dois jornais que utilizamos surgiram nas décadas de 1930 e 1940. O Divinópolis Jornal foi criado em 1939 e resistiu até os finais da década de 1940. No período de sua existência, passou por diversas transformações em sua aparência. O formato A4 foi adotado em sua origem, no ano de 1939; evoluiu para um tamanho mais próximos dos jornais que conhecemos hoje medindo 30 cm de largura por 45 cm de altura. Sua tipografia também sofreu mudanças ocasionando transformações em sua aparência. As notícias eram apresentadas na forma de colunas e, além das notícias locais, divul- Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 gava notícias internacionais, reservando uma página para publicidade. O jornal A Semana surgiu, no mesmo período, como Órgão oficial das Paróquias de Divinópolis e Círculo Operário e Educandários. Foi criado pelos franciscanos da cidade, tendo assim, o caráter religioso. Este jornal apresentava em sua estrutura várias colunas que alertavam os católicos para acontecimentos locais, regionais e também internacionais, como a Guerra em questão. O envio das tropas brasileiras à 2ª Guerra Mundial Em artigo apresentado no Divinópolis Jornal, percebe-se um tipo de sentimento que a 2ª Guerra Mundial causou naquela cidade eminentemente católica: Guerra! Palavra sinistra que enche de terror a todos! Palavra que a humanidade vem repetindo, através dos séculos, e sentindo seus efeitos desastrosos como o peso de uma maldição. Tudo isso porque o homem, na sua eterna ignorância esquece a sua condição humilde para guindar-se as asas negras do orgulho, apagando com a tinta rubra de seus crimes o Quinto Mandamento da lei Divina, inscrito no granito do cristianismo (Divinópolis Jornal, 1943, nº 20, s/pág.). De forma literária, religiosa e até poética o artigo reflete o espanto ante a atitude irracional humana. Percebe-se a condenação, com devotismo religioso, à morte de crianças e civis, assim como a destruição de monumentos históricos, hospitais, igrejas e até cidades inteiras pelas bombas lançadas. Em 1943 é divulgado o sacrilégio cometido pelo Terceiro Reich que rodeou a Praça de São Pedro e o Vaticano, a população católica assiste, perplexa a quebra do trato de respeito à neutralidade do Estado pontifício: O mundo católico experimenta um ansioso momento de super-agitação. O Vaticano está sob as garras da Gestapo. A 43 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 guarda alemã circunda a praça de S. Pedro. O Papa achase em poder do fuehrer. Cristo está diante de Califas. Pio XII é prisioneiro de Hitler. A situação do sumo sacerdote é demais perigosa. Mentiram os covardes camisas-negras ao mundo, afirmando que respeitariam a neutralidade do Estado pontifício. Os Bárbaros germanos não respeitam nada. São vandálicos em suas façanhas. Os bandoleiros do velho continente rasgam os tratados e as concordatas do mesmo jeito que apunhalam pelas costas as suas infelizes e desgraçadas vítimas. Não há nem jamais póde (sic) haver harmonia entre os escravos da cruz gamada e os servos da cruz divina. (Divinópolis Jornal, 03/10/1943, nº 53). 44 O Papa enquanto representação do amor entre os homens, do respeito e da prática das Escrituras bíblicas, prega o “amai-vos uns aos outros como a vós mesmos” e o fuehrer, Hitler, visto como símbolo da maldade e da crueldade em relação ao próximo. Assim, o Papa é visto na época como o mensageiro do amor em contraposição a imagem “demoníaca” de Hitler. Os textos presentes na imprensa registram a composição no imaginário popular da personificação do bem e mal. Os problemas ocasionados pela guerra em Divinópolis, como o encarecimento do custo de vida, é motivo de debate: “A guerra trouxe, para todas as nações, uma infinidade de problemas novos”. “Dentre os problemas que nos trouxe a conflagração, nenhum é mais complexo e premente de solução como o do encarecimento do custo de vida” (A Semana, 12/12/1943, nº 63). Naquela época a imprensa se constituiu num veículo de divulgação do desenvolvimento do conflito, das questões relacionadas ao comunismo e ao fascismo que definiam prática políticas que interferiam no cotidiano e nos conflitos bélicos de diversas nações; o período foi marcado pelo temor e a produção de um imaginário de insegurança. Pretende-se explicar didaticamente os dois sistemas políticos: Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 O Comunismo ou Bolchevismo nasceu na Rússia, em 1917 (...) O fascismo surgiu na Itália, trazendo como principal escopo a restauração do antigo império romano. Seu criador, o ex-socialista Benito Mussolini, realizando em 1922 a celebre “Marcha sobre Roma”, toma em seus pulsos o destino amargo do povo italiano. Se o mito do Comunismo é a classe, o do Fascismo é a Nação. Para o indivíduo nada, por ela e para ela tudo. Absorvente como o Comunismo, totalitário como o Fascismo, nasceu na Alemanha o Nazismo, partido político de Adolf Hitler, ex-combatente da Grande Guerra. Seu mito é a supremacia da raça germânica sobre tudo e sobre todos; sua moral, a força; seu Deus, o próprio Hitler (Divinópolis Jornal, 24/01/1943, nº 18, s/pág.). Percebe-se também, em 1943, a esperança da vitória pelas “forças do bem” identificadas aos aliados: “A guerra será vencida pelas forças do Bem. Todos os povos terão o direito de viver no gôzo(sic) da Liberdade e da Justiça. Façamos a guerra, a guerra da morte dos que se insurgem contra a confraternização dos povos” (Divinópolis Jornal, 03/01/1943, nº 15, s/pág.). Os Aliados buscam justiça, pois são cristãos, e não vingança, que é própria de bárbaros e carrascos insanos, dos gananciosos que matam que torturam que aniquilam em busca do poder máximo sobre os povos frágeis. Ao totalitarismo, marcante na guerra, é atribuída a responsabilidade pela morte de povos pacíficos, pela irracionalidade humana: Esta guerra está escrevendo páginas épicas na história dos povos. Os fatos que se precipitam no tempo, são os capítulos formidáveis e horripilantes de uma epopéia, onde o homem parece ter perdido por completo a senso exato de civilização. (...) O totalitarismo invadiu e levou a morte a muitos povos pacíficos. Os seus exércitos continuando as suas ações devastadoras e façanhas criminosas ainda sacrificam milhares de pessoas. (...) O homem tornou-se fera, parece, é um 45 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 ser inconsciente. Creanças (sic) de ontem, jovens de hoje, embrutecidos pela guerra, fanatizados por uma ideologia exótica são estirados nos campos de luta sem vida. O espetáculo de sangue não póde (sic) ser contemplado por olhos humanos. É um inferno de fogo e sangue (Divinópolis Jornal, 22/11/1942, nº 09, s/pág.). 46 Esse artigo se refere à batalha de Stalingrado e afirma que de todas as batalhas que se tem notícia na história do mundo a de Stalingrado demonstra que ainda existem “verdadeiros heróis, e o poder da vontade de vencer como da razão e do direito ainda são armas vitoriosas sobre o crime e o extremismo. Stalingrado que se defende é a maior refutação ás ideologias totalitárias” (Divinópolis Jornal, 22/11/1942, nº 09, s/pág.). Esta batalha teve conseqüências decisivas na guerra entre os nazistas e os soviéticos. Foi a partir desta vitória que a URSS deu início à sua trajetória para se tornar uma superpotência. Foi, também um sinal de que o projeto de Hitler de submeter a Europa à ordem imposta pela Alemanha nazista, teria seu fim. Neste momento, o Brasil nem cogitava a participação na guerra, mantinhase ainda neutro. Como Pregava Getúlio Vargas, era mais fácil a cobra fumar. O ponto de vista o de quem se mantêm afastado do conflito e do perigo. No entanto, quando se decidiu pelo apoio aos aliados, o discurso da imprensa muda, e há o constante estímulo à participação, pela honra e dignidade brasileiras, mesmo que haja o derramamento do sangue dos jovens soldados, e o escárnio por aqueles que desejam se omitir da convocação. Em 1944, os pracinhas brasileiros não se tornam feras na defesa dos ideais de sua Pátria, são bravos heróis que defendem a honra do Brasil: “A hora presente reclama a união dos brasileiros! Devemos, antes de tudo, ter o nosso pensamento voltado para os que, na Europa, estão defendendo as nossas tradições de honra e bravura” (Divinópolis Jornal, 26/11/ 1944, nº 109, s/pág.) Em 1943, as Forças Armadas Brasileiras, apesar de não possuírem equipamentos bélicos modernos, prontificaram ao desempenho do com- Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 bate no exterior figurados na Força Expedicionária Brasileira. A imprensa também atua como agente estimulador do espírito cooperativista entre os países. A ideologia presente no discurso dos editores jornalísticos e seu empenho em apoiar a solidariedade brasileira pelos países em guerra, podem ser observadas nos artigos publicados nos jornais. Por ocasião do envio dos pracinhas, a posição dos editores dos jornais divinopolitanos era de admiração e respeito pela atitude do governo brasileiro, e também pelo heroísmo daqueles que partiram em apoio aos aliados. O Divinópolis Jornal divulga solenemente o fato como o mais importante da semana e afirma: “cumpre a Brasil, assim, com sua palavra, com seu compromisso de honra, porque a história do Brasil nunca teve a mácula da traição e da covardia” (23/07/1944, nº 94, s/pág.). Percebe-se aqui que o jornal se afasta do discurso cristão aludido, pois já não se condena todas as formas de guerra. Esse ponto fica mais claro se analisarmos como o jornal trata a recusa brasileira em participar da Guerra. A população de Divinópolis via os pracinhas, 28 no total, como “heróis”, embora houvesse constatação de certa relutância às chamadas de convocação. Isso fez com que parte dos divinopolitanos expressassem um sentimento de desprezo e desejo de mau agouro em relação aqueles que não de dispunham a servir. A condenação é categórica na afirmativa de que a guerra tem seus horrores, porém ela “trará, por uma fatalidade, benéfica experiência. E, depois da guerra, saberemos medir a idoneidade de muita gente. Um castigo implacável cairá na cabeça dos que não souberem amar a terra em que nasceram. O crime de desamôr (sic) á Pátria é o maior dos crimes” (Divinópolis Jornal, 23/ 07/1944, nº 94, s/pág.). O heroísmo dos soldados da FEB, como representantes da dignidade e honra brasileira, merece constante destaque no Divinópolis Jornal: “O soldado brasileiro, na Europa, com seu sangue, escreve mais uma epopéia que dignifica o povo do Brasil” (Divinópolis Jornal, 22/10/1944, nº104, s/pág.). Os espíritos de honra e dignidade são exacerbados constantemente pelos editores. O jornal se torna veícu- 47 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 lo de divulgação e de estímulo à aceitação da participação brasileira na guerra: “O general Gaspar Dutra, na inspeção que fez ao front europeu, pôde constatar que os nossos soldados sabem que a vida vale muito pouco para aqueles que não se divorciam do ideal de liberdade” (Divinópolis Jornal, 05/11/1944, nº 106, s/pág.). O jornal A Semana também traz estampado em suas páginas artigos que demonstram o caráter religioso contido em seu discurso e conclama à população que tenha fé para que as tropas retornem sãs e salvas. Segundo artigo publicado em suas páginas, 48 São muitas as pessoas preocupadas com a vida dos soldados Brasileiros nas Fôrças (sic) Expedicionárias. De fato, os perigos serão grandes mas...também para Roma o perigo era incalculável e se salvou. Quando toda a cristandade rezou Deus Nosso Senhor nos deu esta graça. Agora pedindo por nossos soldados, nossos patrícios, irmãos, Êle (sic) protegerá também as nossas tropas (A Semana, 11/06/1944, s/pág.). O artigo pede que se reze com devoção e que, se as orações por ventura forem imperfeitas, Santo Antonio será um mediador pela salvação dos soldados, pois, ele também é um oficial do exército nacional. No período da guerra, juntamente com os soldados brasileiros, foram padres católicos, designados para a função de aliviar a consciência do pecado de matar um irmão nos campos de batalha; e também para a realização de missas pelas almas daqueles que lá faleciam. Ainda em maio de 1945, os líderes dos aliados, responsáveis pelo sucesso na defesa da causa do bem, evitando o avanço do nazismo são exaltados e juntamente com eles, Getúlio Vargas, que proporcionou ao Brasil a glória de estar, sem medir esforços entre os países que lutaram pelo ideal de progresso no mundo. A seguir, parte da reportagem: E hoje, abaixo de Deus, graças a Churchill, Stalin, Truman, Chiang-Kai-Sheik, DeGaulle e Getúlio Dorneles Vargas (o Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 presidente que tem sabido honrar, elevar e dirigir os destinos do nosso sempre querido e invencível Brasil) todos símbolos da ainda moça e extinta 2ª grande guerra e, sob a luz radiosa e abençoada de uma nova aurora, o Mundo renasce feliz em venturosa Paz (Divinópolis Jornal, 20/05/1945, nº 132) Mesmo com a vitória dos aliados, um ano após o término da guerra que se travou no mundo, matando milhões de inocentes, o repúdio aos resultados proporcionados é demonstrado, destacando a religião e a fé como conforto para aqueles que acompanharam e principalmente para aqueles que participaram dela: E a religião acompanhou nos sofrimentos da guerra os escolhidos da Pátria. E como nos dias venturosos de paz, o conforto da fé não faltou aos combatentes, em todas as situações e fases da peleja. Sempre ao seu lado e expondo-se aos mesmos perigos, ai estavam os ministros de Deus, em sua sagrada e voluntária missão de prestar ao Soldado da Pátria, não só assistência espiritual, como também o socorro material (A Semana, 18/08/1946). Portanto, os bravos representantes do povo brasileiro enviados para as frentes de batalha são fortemente reconhecidos e constantemente exaltados em sua imensurável bravura. As preces são sempre oferecidas em proteção àqueles que barram o avanço nazista, afim de que ele não se alastre pelo globo, atingindo as terras pacíficas de sua terra natal. O discurso católico é, assim, utilizado para condenar a guerra, buscar a vitória aliada e manter a vida do soldados brasileiro. No entanto, como foi mostrado, não existe a mesma compaixão por aqueles que se recusaram a servir a Pátria brasileira em guerra. Considerações finais Sem dúvida, a guerra marcou a vida de milhões de pessoas, foi um conflito que envolveu diferentes objetivos políticos, religiosos, 49 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 50 sociais e o racismo desencadeado nas mentes dos arianos que acreditavam ser a matriz de uma raça pura, eliminando todos aqueles vistos como diferentes e inferiores. A guerra deixou suas seqüelas nos corpos, nas mentes e na vida de todas as pessoas que viveram e a acompanharam mesmo que a distancia. Os divinopolitanos, como demonstram as reportagens apresentadas nos jornais analisados, não só discutiam os embates da guerra, como também foram envolvidos nela pelo envio de pracinhas para a composição da FEB. Sentiram o medo da carestia, da falta de alimentos e do aumento do custo de vida. Viveram as expectativas pelo fim da guerra. Acompanharam o desenrolar dos acontecimentos por ocasião do sítio dos alemães ao Vaticano e ao Papa. Esperaram pela derrota de Mussolini e de Hitler. Segundo os jornais, notoriamente católicos, a população assistiu o envio das tropas da FEB à Itália e rezou por seus conterrâneos. Cada batalha, como o ataque à Pearl Harbor, a tomada do porto de Cherburgo, a esperança pela paz e pela queda dos diabólicos mestres da guerra, bateram às portas da sociedade divinopolitana. Uma das características básicas da modernidade é a separação entre tempo e espaço. Nas sociedades pré-modernas, espaço e tempo coincidem, pois as dimensões espaciais da vida social são dominadas pelas relações face a face e atividades localizadas. A modernidade fomenta relações com “ausentes”, através de livros, jornais, almanaques, telefone, TV, dentre outros. O lugar, assim, torna-se cada vez mais “fantasmagórico”, afinal ele é influenciado por diversos outros lugares (GIDDENS, 1991). Os acontecimentos locais vividos em Divinópolis, por exemplo, foram e são modelados por eventos ocorrendo a milhares de quilômetros de distância e vice-versa. A modernidade é, dessa forma, inerentemente globalizante. Sendo assim, a globalização diz respeito à interseção entre presença e ausência, ao entrelaçamento de eventos e relações sociais à distância com contextualidades locais: “por globalização entendemos o fato de vivermos cada vez mais num ‘único mundo’, pois os indivíduos, os grupos e as nações tornaram-se mais interdependentes” (GIDDENS, Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 2004, p. 52). Desse modo, os sentidos do acontecimento global e traumático, que foi a 2ª Guerra, são constituídos e indissociáveis da pluralidade de narrativas que reorganizam e ressignificam ao longo do tempo o evento. Pode-se perceber, desse modo, a partir de Revel (1998) e de nossa análise, que a escolha de uma “realidade histórica” que seja “micro” ou “macro” não é mais ou menos “verdadeira”. Na medida em que, o acontecimento 2ª Guerra Mundial, pensada a partir do olhar que a impressa de Divinópolis deu ao envio das tropas brasileiras, é feito de uma pluralidade e complexidade de níveis. Desse modo, a análise empreendida visou reconstruir e recriar partes dessas camadas. REFERÊNCIAS FONTES Jornal A Semana Divinópolis Jornal LIVROS E ARTIGOS BARRETO, Lázaro. Memorial de Divinópolis: história do município. Divinópolis: Prefeitura Municipal de Divinópolis, 1992. CORGOZINHO, Batistina Maria de Souza. Nas Linhas da Modernidade: continuidade e ruptura. Divinópolis, MG, 2003. GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. São Paulo: UNESP, 1991. REVEL, Jaques (Org.). Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: FGV, 1998. REVEL, Jaques. Apresentação In: REVEL, Jaques (Org.). 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É aberto no artigo um espaço de reflexões sobre quais ações de promoção de saúde podem ser adotadas com o objetivo de auxiliar os docentes em seu trabalho. Palavras-chave: profissão docente; trabalho docente; docentes; contemporaneidade; mudanças; repercussões; saúde; adoecimento; intervenções. Abstract: It discusses the educational profession in this article, on a brief historical focus, attempting to clarify it, although in the beginning of the century XX, have observed the golden period of the school model and of the educational docent, it is not only done of conquests, but also, of a lot of changes, mainly, to what concerns the working organization. It is observed that, far beyond the huge dissatisfaction manifested by the teachers, facing those changes, many are getting sick. It is open a space for reflections on which actions produce health can be adopted with the objective of aiding the teachers in their job. Keywords: educational profession; educational work; educational; contemporariness; changes; repercussions; health; sickness; interventions. Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº - 6 – p. 52 a 66 – outubro de 2007 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 Introdução s mudanças ocorridas no contexto social e econômico mun dial têm tido impacto direto na escola. Elas têm produzido efeitos perversos e repercussões negativas na vida dos docentes, que se vêem pressionados pela sociedade a cumprir papéis que, de acordo com Esteve (1999), não correspondem à realidade. O atual estado em que se encontra o trabalho na escola e, em particular, o trabalho dos docentes, tem chamado a atenção de muitos pesquisadores devido ao aumento de adoecimento e afastamento desses profissionais. Emerge a necessidade de se estabelecer ações de promoção de saúde com o objetivo de auxiliar os docentes em seu trabalho. Tentar-se-á, nesse artigo, abrir um espaço de reflexões no qual todas essas questões serão abordadas. A Breve histórico sobre a profissão docente Considera-se importante afirmar que, na história da educação e da profissão docente, a segunda metade do século XVIII representa um período-chave. Buscava-se esboçar, por toda a Europa, um perfil do docente ideal. Indagava-se, dentre outras coisas, quem pagaria o seu trabalho (JULIA, 1981). Essa indagação fazia parte de um movimento de secularização e estatização do ensino. De acordo com Nóvoa (1991), o processo de constituição dos sistemas de ensino nos diversos estados-nações encontra-se estreitamente vinculado ao desenvolvimento dos modos de produção no sistema capitalista. Vale mencionar que a escola, ao constituir-se, tem como papel principal atuar na construção de uma unidade nacional, buscada através de um controle mais rigoroso dos processos educativos, dos processos de produção e reprodução, da forma como os homens concebem o mundo. Esse controle é adquirido pelo processo de estatização do ensino, que acontecia de modo disperso e vinculado às Igrejas. “A estratégia adotada prolongou as formas e os modelos escolares elaborados sob a tutela da Igreja, dinamizados agora por [um corpo docente] recrutado pelas autoridades estatais” (NÓVOA 1991, p. 15). 53 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 54 Segundo Julia (1981), o processo de estatização do ensino consiste na troca de um corpo docente sob o controle da Igreja por um corpo docente sob o controle do Estado, sem que transformações significativas tenham ocorrido nas motivações, nas normas ou nos valores originais da profissão docente. A origem da profissão docente tem lugar no seio de algumas congregações religiosas que, mais tarde, transformaram-se em verdadeiras congregações docentes (NÓVOA, 1991). Os jesuítas e os oratorianos, ao longo dos séculos XVII e XVIII, progressivamente, foram configurando um corpo de saberes e de técnicas, bem como um conjunto de normas e de valores específicos, que contribuíram para a profissionalização dos docentes (NÓVOA, 1991). A partir do século XVIII, não é permitido ensinar sem uma licença ou autorização do Estado. Essa licença ou autorização é concedida após a realização de um exame no qual os solicitantes devem preencher algumas condições, tais como: habilitações, idade, comportamento moral, etc. Na medida em que colabora para a delimitação do campo profissional de ensino e para a atribuição ao professorado do direito exclusivo de intervenção nessa área, a licença ou autorização pode ser vista como um suporte legal ao exercício da atividade docente (NÓVOA, 1991). No século XIX, a expansão escolar é acentuada sob a pressão de uma grande busca social. Vê-se, nesse século, graças à conjugação de vários interesses advindos do Estado e dos docentes, a criação de instituições de formação. Além disso, ocorre a feminização do professorado que, segundo Nóvoa (1991), é um fenômeno bem visível na virada do século. No princípio do século XX, “a época de glória do modelo escolar é também o período de ouro da profissão docente” (NÓVOA, 1991, p. 19). Entretanto, a profissão docente não é feita somente de conquistas e progressos, mas, também, de lutas e conflitos, aproximações e distanciamentos e muitas mudanças, principalmente no que diz respeito à organização do trabalho. Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 Significativas mudanças no trabalho docente Percebe-se que: [...] na medida em que os docentes vão se atrelando ao Estado empregador e tornando-se assalariados, acabam por distanciarem-se das comunidades e tendo uma ação cada vez mais direcionada para a consolidação do Estado e para o atendimento das necessidades políticas, ideológicas, pedagógicas e culturais do capitalismo emergente (GONÇALVES, 2003, p. 24). Conseqüentemente, as formas de desenvolvimento da organização escolar assumem cada vez mais um modelo racional de organização análogo às formas de organização do trabalho em outros setores da produção, particularmente o fabril. Vão absorvendo, assim, com o tempo, a lógica gerencial-capitalista do trabalho [...] (HYPÓLITO, 1997, p. 34) Pode-se dizer que, desde os primórdios da escolarização moderna, a organização racional do trabalho docente está presente, podendo ser vista em obras de didática e métodos de ensino que acompanharam os movimentos educacionais. Esse tipo de organização trouxe algumas implicações para o trabalho docente e foram analisadas por Sacristán (1991). Sacristán (1991) afirma que a burocratização1 existente no modo de organização do trabalho escolar condiciona as práticas dos docentes a prestar mais contas às exigências institucionais que a seus alunos. Essa postura contribui para inibir a autonomia e a criatividade profissional dos docentes. Salienta Enguita (1991) que, se por um lado, há um movimento de profissionalização docente2 com o aumento das demandas e das competências exigidas, a proletarização é o seu contraponto. 55 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 56 Enguita (1991) acredita que o trabalho docente está passando por um profundo processo de proletarização3, entendido como a perda gradativa do controle do processo de trabalho e de autonomia das ações, em função da centralização das decisões sobre os resultados do mesmo, além do aspecto relativo à venda da força de trabalho como mercadoria4. Os docentes vendem a sua força de trabalho para suprirem suas necessidades materiais e afetivas, mas o saldo dessa equação nem sempre é positivo. Nem sempre “o valor da força de trabalho é o valor dos meios de subsistência necessários para a conservação de seu possuidor” (MARX, 1975, p. 31). Vasconcellos (1995) enfatiza que, na contemporaneidade, falta clareza aos docentes quanto à finalidade daquilo que fazem. Para ele, os docentes vivenciam uma situação de alienação, expropriação do seu saber. Tudo isso os deixa à mercê de pressões, de ingerências, “[...] de modelos que são impostos, como ‘receitas prontas’, impossibilitando um trabalho significativo e transformador [...]” (VASCONCELLOS, 1995, p. 23). E, conseqüentemente, leva-os “[...] do sofrimento ao desgaste, ao desânimo, ao descrédito na educação, à acomodação, à desconfiança, chegando mesmo à falta de companheirismo e de engajamento em lutas políticas e até sindicais” (VASCONCELLOS, 1995, p. 23). Gonçalves (2003) comenta que uma outra mudança visível no trabalho docente é a sua intensificação. Essa intensificação, muitas vezes, concretiza-se através da imposição e sobrecarga de atividades e tarefas, presença de mecanismos de cobrança e pressão por certos resultados e a perda do poder aquisitivo, a falta de tempo para investir no próprio trabalho e o isolamento do trabalho docente na escola. A intensificação do trabalho docente também pode acontecer como uma conseqüência da complexificação, ao trazer para os docentes novas demandas para as quais não receberam preparação e nem tampouco as condições de trabalho foram adequadas. Constata-se que o trabalho docente já não é mais definido somen- Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 te como atividade em sala de aula. Compreende, agora, a gestão da escola no que diz respeito à dedicação dos docentes às atividades de planejamento, elaboração de projetos, discussão coletiva do currículo e da avaliação. Por força da legislação e dos programas, os docentes passam a dominar práticas e saberes antes desnecessários ao exercício de suas funções (OLIVEIRA, 2003). Os programas de reforma implementados nos anos 1990 e na atual década, no Brasil, tiveram como eixo principal a educação para a eqüidade social5. Formar os indivíduos para a empregabilidade passou a ser um imperativo dos sistemas escolares (OLIVEIRA, 2004). Nesse contexto, espera-se da escola e, principalmente dos docentes, a formação de um profissional flexível, polivalente, de acordo com os novos padrões de qualificação. Os docentes, insatisfeitos, se convencem de que devem responder a essas exigências. E os docentes adoecem Para além da enorme insatisfação dos docentes, deve-se ressaltar que muitos estão adoecendo. O caráter quase redentor atribuído à educação, como se somente a partir dela fosse possível iniciar a construção de novos paradigmas de convivência na sociedade, está recaindo de forma pesada sobre os ombros dos docentes. Oliveira (2004) afirma que os docentes, de um modo geral, são vistos como os principais responsáveis pelo desempenho dos alunos, da escola e do sistema. Atribui-se aos docentes toda a responsabilidade do fracasso escolar, deixando de perceber que o que ocorre na sala é reflexo do conjunto de determinações a que a escola está submetida. É importante ressaltar que, além do ambiente altamente competitivo, do aumento da sofisticação tecnológica e do processo de globalização da economia, a responsabilização dos docentes também se apresenta como uma fonte importante de sofrimento psíquico para os mesmos. Se os docentes não percebem o reconhecimento de seu trabalho, a responsabilidade exigida passa a ser percebida como uma sobre- 57 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 carga experimentada, geralmente, como um conflito, cuja repercussão é negativa em sua saúde. Recordemo-nos, nesse momento, de que trabalhar pode ser fonte de satisfação, mas também, em determinadas situações, pode produzir efeitos negativos sobre a saúde e o bem-estar. Em se tratando da docência, Dejours (1992) afirma ser essa uma profissão de sofrimento. Codo (1999), através de seus estudos sobre a saúde mental dos docentes em todo o país, revelou que 48%, praticamente a metade deles, apresentavam algum sintoma de burnout. 58 Burnout foi o nome escolhido, em português, algo como “perder o fogo”, “perder a energia” ou “queimar (para fora) completamente” (numa tradução mais direta). É uma síndrome através da qual o trabalhador perde o sentido da sua relação com o trabalho, de forma que as coisas já não o importam mais e qualquer esforço lhe parece ser inútil (CODO, 1999, p. 238). Também se constatou, no estudo de Codo (1999), que um em cada quatro docentes tinha exaustão emocional. Codo (1999) encontrou correlação positiva entre maior exaustão emocional e o tipo de gestão denominada de tradicional. Um outro estudioso do assunto é Esteve (1999). O termo “malestar docente” é usado por ele para designar os efeitos permanentes de caráter negativo que afetam a personalidade dos docentes, como resultado das condições psicológicas e sociais em que a docência é exercida. Esse termo pode ser caracterizado pela morte do prazer de educar, que se manifesta no estado de saúde e doença dos docentes. Na pesquisa de Esteve (1999), os problemas de saúde dos docentes foram estudados de forma exaustiva no período de 1982 a 1984 e as causas de licença mais importantes foram os diagnósticos de traumatologia, geniturinários e obstétricos e os neuropsiquiátricos. Esteve (1999) aponta como indicadores do mal-estar docente: Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 fatores secundários (contextuais), tais como: a modificação no papel dos docentes e dos agentes tradicionais de socialização; a função dos docentes (contestação e contradições); a modificação do contexto social; os objetivos do sistema de ensino e o avanço do conhecimento; a imagem dos docentes. Ainda de acordo com Esteve (1999), dentre as principais conseqüências do mal-estar docente, pode-se citar o absenteísmo trabalhista, o abandono da profissão docente e o adoecimento. A investigação de Vasconcellos (1996) também nos fornece dados importantes relativos à saúde dos docentes. Vasconcellos (1996) diz que a neurose e a depressão têm afastado, em média, 33 docentes por dia letivo, das salas de aula no Estado de São Paulo. Através de sua investigação, verificou-se que: [...] a nível mundial, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) aponta que, em termos de doença ocupacional – doença adquirida em decorrência do exercício da profissão –, [...] os docentes só perdem para os mineiros, enquanto categoria profissional, incluindo aí desde alergia a giz, calos nas cordas vocais, varizes, gastrite, labirintite, reumatismo e até esquizofrenia (VASCONCELLOS, 1996, p. 104). Interessa enfatizar que, na maioria dos estudos realizados, no Brasil e no exterior, sobre a saúde dos docentes, há um consenso quanto ao caráter altamente estressor desta profissão. Os estudos apontam a importante contribuição dos aspectos relacionados ao ambiente escolar e à organização do processo de trabalho na produção de diferentes formas de adoecimento. As condições de trabalho, ou seja, as circunstâncias sob as quais os docentes mobilizam as suas capacidades físicas, cognitivas e afetivas para atingir os objetivos da produção escolar podem gerar sobreesforço ou hipersolicitação de suas funções psicofisiológicas. Se não há tempo para a re- 59 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 cuperação, são desencadeados ou precipitados os sintomas clínicos que explicariam os índices de afastamento do trabalho por transtornos mentais (GASPARINI; BARRETO; ASSUNÇÃO, 2005, p. 192). 60 Possíveis intervenções Frente aos fatos expostos, pergunta-se: O que pode ser feito? Há saída? Através do adoecimento, de uma forma implícita, os docentes estão dizendo: “socorro”, “me ajude”, “estou aqui”. Torna-se salutar refletir sobre quais ações de promoção de saúde podem ser adotadas com o objetivo de auxiliar os docentes em seu trabalho. Na visão de Machado e Porto (2003), a principal base para a elaboração de novas práticas de promoção de saúde é a compreensão dos processos, no que se refere aos determinantes e condicionantes da saúde. Gonçalves (2003) comenta que sensibilizar os alunos, [os pais e a sociedade como um todo], para os problemas relacionados à saúde dos docentes é uma ação que pode facilitar a concretização de estratégias de autopreservação dessa categoria profissional. Por Gonçalves (2003) é sugerido que se discuta nas escolas questões referentes à saúde no trabalho. Ele acredita que, embora a escola seja um local onde acontece a formação da classe trabalhadora, campanhas de prevenção às doenças no trabalho não são desenvolvidas nela. Devido à sua abrangência, o setor educacional revela-se como: [...] um aliado importante para a concretização de ações de promoção da saúde voltadas para o fortalecimento das capacidades dos indivíduos, para a tomada de decisões favoráveis à sua saúde e à da comunidade, para a criação de ambientes saudáveis e para a consolidação de uma política intersetorial voltada para a qualidade de vida, pautada no respeito ao indivíduo e tendo como foco a construção de Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 uma nova cultura da saúde (MINISTÉRIO DA SAÚDE. SECRETARIA DE POLÍTICAS DE SAÚDE, 2002, p. 533). Não obstante, a escola, enquanto promotora de saúde, precisa incluir, também, o bem-estar dos docentes. Convém dizer o quanto é interessante que os docentes: se convertam em modelos de trabalhadores que respeitam os limites do próprio corpo e fazem respeitar seu direito a um ambiente de trabalho saudável, pois se constituem em importante referência de profissional para seus alunos. O seu oposto, [...] pode contribuir para configurar a naturalização dessa situação [...] naturalização da doença ocupacional de um modo geral, que poderia passar a ser tomada pelos alunos como algo inerente à escolha de uma ocupação. Nessa perspectiva, promover a saúde docente pode contribuir na promoção da saúde de futuros trabalhadores e por isso tem sua importância multiplicada (GONÇALVES, 2003, p. 168-169). Entende-se que o bem-estar dos docentes na contemporaneidade depende de múltiplos fatores externos, mas também, e muito, deles próprios, visto que os mesmos podem dar vários passos para melhorar a sua situação e caminhar no sentido do seu bem-estar profissional. Uma alteração radical da organização do trabalho visando à implementação de um trabalho mais coletivo e a quebra da rigidez disciplinar, tendo por fim a saúde [dos docentes] e a melhoria na qualidade da educação exige uma participação autônoma e ativa do coletivo [dos docentes]. No caso da saúde, soluções individuais são limitadas em sua eficácia, geralmente não perduram e freqüentemente geram sobrecarga e culpa. A relação saúde e trabalho [dos docentes] diz respeito ao coletivo [...], pois os riscos são 61 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 comuns [...], logo as soluções para os problemas advindos desta relação devem, igualmente, ser construídas coletivamente, facilitando assim a promoção das condições para que as mudanças necessárias se viabilizem (GONÇALVES, 2003, p. 170). 62 Observa-se que as estratégias de intervenção de maior eficácia são as que partem dos docentes. Eles possuem um conhecimento mais aprofundado de suas atividades. Avançando um pouco mais, pode-se citar a estratégia criada por Montero (2003) para privilegiar a saúde e qualidade de vida dos docentes. Segundo ele, uma estratégia positiva que traz benefícios significativos aos docentes é propiciar o fortalecimento (empowerment) pessoal e coletivo, desenvolvendo capacidades de lidar com o estresse, valorização pessoal e grupal, controle das situações de conflito, modificando o contexto e canalizando as necessidades e aspirações. A sensibilização dos gestores/administradores para a questão da situação das escolas e da produção de saúde/doença, através de reuniões com representantes das Secretarias de Educação e das Secretarias de Saúde dos Municípios, a formação de um grupo de trabalho que vise construir propostas para uma política de saúde para os docentes, bem como a criação de um fórum de debates sobre a instituição das Comissões de Saúde para os docentes, seja da rede municipal ou da rede estadual de ensino, também são estratégias que podem ser adotadas. Considerações finais Partindo da concepção de Machado e Porto (2003, p. 124) de que “vigilância é informação para ação, pressupondo que as ações pertençam ao campo da vigilância”, esse artigo não teve a pretensão de esgotar o assunto, mas sim, de abrir um espaço para reflexões que não devem parar por aqui, pois há muito que se fazer no campo da saúde dos docentes. Saúde e Qualidade de Vida são dois conceitos contemporâneos, Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 presentes em todos os contextos vitais: família, escola, trabalho, mídia. E, especificamente no âmbito escolar, constitui-se em prioridades almejadas frente ao quadro de mal-estar e adoecimento apresentado por muitos docentes. Por último, destaca-se que a transdisciplinaridade pode contribuir para que a relação saúde-trabalho dos docentes seja, em sua complexidade, entendida. Pois, [...] a transdisciplinaridade é complementar à aproximação disciplinar: faz emergir da confrontação das disciplinas dados novos que as articulam entre si; oferece-nos uma nova visão da natureza e da realidade. A transdisciplinaridade não procura o domínio sobre as várias outras disciplinas, mas a abertura de todas elas àquilo que as atravessa e as ultrapassa (FREITAS; MORIN; NICOLESCU, 1994, p. 2). 63 A transdisciplinaridade pode facilitar o delineamento de novos serviços e a elaboração de ações eficazes em Saúde Coletiva direcionadas aos docentes. “A transdisciplinaridade comparece como uma abordagem alternativa para a produção de conhecimento” (ALMEIDA FILHO, 2000, p. 13). REFERÊNCIAS ALMEIDA FILHO, Naomar. Intersetorialidade, transdisciplinaridade e saúde coletiva: atualizando um debate em aberto. Revista de Administração Pública, v. 34, n. 6, nov./dez. 2000. CODO, Wanderley (Coord.). Educação: carinho e trabalho. 3ª ed. Petrópolis/RJ: Vozes/ Brasília: CNTE: UNB. Laboratório de Psicologia do trabalho, 1999. DEJOURS, Christophe. A Loucura do Trabalho: estudo de Psicopatologia do Trabalho. 5ª ed. São Paulo: Cortez-Oboré, 1992. ENGUITA, Mariano Fernández. 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Refere-se à inserção em um determinado tipo de relações sociais de produção e de processo de trabalho. Na opinião de Enguita (1991), os profissionais docentes, diferentemente de outras categorias de trabalhadores, são autônomos. Não se submetem à regulação. 3 No que se refere ao processo de proletarização, pode-se dizer que Enguita 65 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 (1991) emprega essa expressão exatamente no sentido oposto ao que correntemente é dado à profissionalização. A proletarização pode ser caracterizada pela perda de controle do processo de trabalho pelos docentes. 4 Deve-se salientar que, nos Estados capitalistas modernos, as pessoas buscavam para si os bens que julgavam necessários para a sua sobrevivência. Esses bens eram alcançados, de forma única, pela compra e venda de mercadorias. Neste sentido, para Marx (1975, p. 24), a mercadoria, inicialmente, “é vista como um objeto externo, uma coisa que satisfaz uma necessidade qualquer”. 5 Pode-se dizer que a educação geral revela-se como um requisito essencial ao emprego formal e regulamentado. Para Oliveira (2004, p. 1129), “[...] ela deveria desempenhar papel preponderante na condução de políticas sociais de cunho compensatório, que visem à contenção da pobreza”. 66 IMAGENS E SUBJETIVAÇÕES TRAÇADAS PELOS GRAFFITI NAS CIDADES CONTEMPORÂNEAS GESIANNI AMARAL GONÇALVES Designer, especialista em Arte e Educação, mestre em Psicologia, docente da FUNEDI/UEMG e da PUC Minas E-mail: [email protected] Resumo: O presente trabalho apresenta uma investigação acerca das correlações estabelecidas entre os processos de subjetivação e as imagens produzidas por determinados tipos de graffiti presentes na cidade de Belo Horizonte. O quadro teórico que serviu de fundamentação para a análise desenvolvida foi constituído por conceitos oriundos da Filosofia da Diferença proposta por Gilles Deleuze em consonância com Félix Guattari e compartilhada por Suely Rolnik. Como método, optamos pela cartografia dos processos de subjetivação envolvidos nos graffiti originários do estudo de caso efetuado, a partir das linhas de ação que perpassam esse movimento e possibilitam registrar a ação dos graffiti que conduzem tanto a movimentos de subordinação quanto a movimentos de resistência à produção em série de subjetividades. Palavras-chave: processos de subjetivação; imagens; graffiti; cartografia; filosofia da diferença. Abstract: The present work presents an inquiry concerning the correlations established between the processes of subjectivity and the images produced for determined types of graffiti in the city of Belo Horizonte. The theoretical picture that served of recital for the developed analysis was constituted by deriving concepts of the Philosophy of the Difference proposal for Gilles Deleuze in accord with Félix Guattari and shared by Suely Rolnik. As method, we opt to the cartography of the involved processes of subjectivity in graffiti originary of the study of effected case, from the action lines that crossing this movement and make possible to register the action of graffiti that the movements of resistance to the production in series of subjectivities lead the subordination movements in such a way how much. Key-words: processes of subjectivity; images, graffiti; cartography; philosophy of the difference. Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº - 6 – p. 67 a 90 – outubro de 2007 67 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 “O desejo é o sistema de signos a-significantes com os quais se produz fluxos de inconsciente no campo social [...] o desejo é revolucionário, porque sempre quer mais conexões, mais agenciamentos.” (DELEUZE) O 68 mundo contemporâneo está cada vez mais povoado de imagens, signos e sinais – lembremos que já no século passado, poetas e escritores viam as cidades como uma floresta de símbolos. No entanto, de lá para cá, os signos foram se multiplicando ainda mais no espaço urbano, tais como sinais de trânsito, outdoors, luminosos, fachadas, cartazes comerciais, manifestações sociais e políticas, monumentos históricos e uma profusão de imagens. Tal diversidade imagética é maior nos grandes centros urbanos onde os espaços pelos quais circulamos cotidianamente se apresentam cada vez mais marcados por inscrições das mais variadas ordens: imagens poéticas, pornográficas, andróginas, fluídas, efêmeras, imagens eletrônicas, comerciais, parietais, contestatórias, coloridas, cinzas, pretas ou brancas, enfim, imagens que formam uma a uma as condições de representação imagética das cidades contemporâneas. Múltiplas imagens que podem apontar para um tipo de organização social, para uma apropriação estratégica do espaço, para a política ou para a economia dominante de um local e principalmente, para os processos de subjetivação presentes nas sociedades em que essas imagens se apresentam. Este vasto campo de atuação no qual as imagens se inserem, se multiplicam e se diversificam resulta em uma complexidade do olhar no contemporâneo e nas implicações que esse ato carrega. Face a esse quadro, Barros (2006) estabelece um tríplice significado do olhar: o olhar como sensibilidade e sentido, o olhar como constituinte do indivíduo e como configurador da cultura. O autor nos diz que: “o olhar funda o ser e a cultura, o eu e o outro.” (2006, p.93) Isto posto, este artigo pretende, partindo da lógica da sensação deleuziana, refletir sobre a existência de signos a-significantes nas imagens dos graffiti e em seus movimentos maquínicos de produção Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 de subjetividades; principalmente, naquelas que escapam às homogeneizações sem que isso impeça, neste texto, o pensamento sobre a constituição de modos de ser subordinados ao sistema de produção dominante. Não se trata, portanto, de idealizar a capacidade de resistência desse fenômeno na contemporaneidade, mas de propor tarefa mais realista, porém também complexa, em que se busca esclarecer e cartografar os movimentos e as linhas de subjetividade que compõem essa manifestação estética. É necessário pontuar que os graffiti, objeto de nosso estudo, referem-se àqueles que estão diretamente relacionados com o campo das artes visuais. Aquelas expressões que utilizam imagens, cores e composições oriundas da pintura em detrimento daquelas que somente usam a escrita e os tags. Portanto, os graffiti, por nós pesquisados são praticados por pessoas que são consideradas autodidatas ou possuem vínculo com escolas de arte ou almejam cursar um itinerário artístico1. Por isso, optamos por manter o termo em italiano, com a finalidade de interrogar, com mais propriedade, um estilo que também é conhecido como Aerosol Art, bem como, preservar a intensidade significativa com a qual se apresenta dentro de um contexto que busca aproximação estética com as demais formas de manifestação artística. Esclarecemos que, do nosso referencial teórico, utilizamos da filosofia da diferença o conceito de processos de subjetivação optando por pensá-lo em termos de linhas. Isso porque Deleuze afirma que “indivíduos ou grupos, somos feitos de linhas” (1998, p.145) e analisa um agenciamento ou uma situação qualquer, mediante uma diferenciação do conceito de linha, oposto ao sistema de pontos e proposições. Deleuze e Guattari (1996) dizem que somos seres segmentados, em todos os lados e todas as direções, espacial e socialmente. Toda sociedade e todo indivíduo, são atravessados por duas segmentaridades ao mesmo tempo, uma molar e outra molecular. A esse respeito os autores comentam: Em suma, tudo é político, mas toda política é ao mesmo tempo macropolítica e micropolítica. Consideremos con- 69 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 juntos do tipo percepção ou sentimento: sua organização molar, sua segmentaridade dura, não impede todo um mundo de microperceptos inconscientes, de afectos inconscientes, de segmentações finas, que não captam ou não sentem as mesmas coisas, que se distribuem de outro modo, que operam de outro modo. Uma micropolítica da percepção, da afecção, da conversa, etc. (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p.90) 70 Os segmentos são diferentes e remetem a diferentes grupos ou indivíduos que passam continuamente de um segmento a outro, assim, as figuras de segmentaridade, binária, linear e circular, são coexistentes e passam umas nas outras, formando um emaranhado de linhas. Desse modo, pensamos que a filosofia de Deleuze e Guattari busca mapear as linhas que são capazes de agir na diferença, ou seja, liberar a diferença de sua subordinação à identidade, uma vez que as linhas são fluxos em constante estado de experimentação, processos em construção contínua. Nessa perspectiva a subjetividade pode ser pensada como a coexistência de três tipos de linhas que a compõe e que definem inúmeras relações com o espaço e com o tempo. Portanto, somos feitos de linhas duras, de linhas flexíveis e de linhas de fuga que coexistem e constituem um campo de forças. As linhas duras trazem o segmento molar que quer determinar “quem somos”, as flexíveis são desvios das linhas duras que buscam modificar o estrato que nos identifica e as linhas de fuga são aquelas que propiciam agenciamentos, novas relações e conexões que conduzem a processos de subjetivação inventivos. Um olhar diferente às subjetividades Pensar a subjetividade a partir da atuação dessas linhas de ação é pensar a subjetividade pelo viés da imanência e por um sistema complexo e heterogêneo que não designa um “quem somos” de essência imútavel. Ter em mente a singularização para além da individuação é compreender que a subjetividade não se caracteriza como algo que Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 diz respeito apenas ao sujeito e suas formas de representação. Experimentar uma subjetividade processual e transversal é estar aberto também à conexões com o inumano, com signos a-significantes, com a capacidade de afetar e ser afetado por linhas de invenção, por linhas de subjetivação. O homem tem se configurado de diversas maneiras pelas histórias, pelas geografias, pelos tempos e pelos espaços. Mutável, versátil, plástico, cambiante, aberto e inacabado, é assim que pensamos o ser humano. As formações sociais baseadas na economia capitalista, desenvolvidas nos últimos três séculos no ocidente, inventaram novas tecnologias que contribuíram para a moldagem de corpos e subjetividades. Nesse conjunto de processos contínuos instigados e alimentados pelo capitalismo, novas redes de relações são formadas mantendo um jogo de forças constantes em que a singularização e a homogeneização se produzem e se reproduzem concomitantemente. Tal fenômeno aponta para a criação de novos modos de subjetivação, capazes de produzir os modos das relações humanas, as suas condutas e os seus valores. Novas formas de viver, de sentir, de pensar, de desejar, enfim, novos modos de ser. A análise do modo como cada indivíduo se relaciona com os regimes de signos próprios à sua época, da maneira como cada vida experimenta o conjunto de regras que define sua sociedade nos fornecem dados para a compreensão dos processos de subjetivação. Deste modo, a subjetivação, ou seja, a produção de subjetividade pode ser considerada como um conjunto de condições que torna possível que instâncias individuais ou coletivas, corporais ou incorporais, estejam aptas a emergir como território existencial. Utilizamos as idéias de Guattari (1992) quando pensamos a subjetivação como um processo de agrupamento, de composição, de agenciamentos heterogêneos de corpos, práticas, juízos e técnicas. Nesse sentido, a subjetividade escapa à forma tradicional de sujeito da consciência. Sendo assim, podemos dizer que há diversas formas de existir que se instauram fora da consciência e, ao se pensar nos processos de subjetivação, devemos considerar também os diversos componentes que 71 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 não passam diretamente pelo sujeito. Tais como, a indústria da mídia, os componentes semiológicos (de produção de sentidos) significantes e a-significantes e as máquinas tecnológicas de informação e comunicação. Pensar a subjetividade como uma dobra do exterior implica em despojar o sujeito de uma identidade essencialista e de uma interioridade absolutista, ampliando o caráter aberto, inacabado e múltiplo do sujeito que pode escapar criando linhas de fuga aos saberes e poderes que o subjetivam. Deleuze (1992) a partir de idéias de Foucault, assim define os processos de subjetivação: 72 Um processo de subjetivação, isto é, uma produção de modo de existência, não pode se confundir com um sujeito, a menos que se destitua este de toda interioridade e mesmo de toda identidade. A subjetivação sequer tem a ver com a pessoa: é uma individuação, particular ou coletiva, que caracteriza um acontecimento (uma hora do dia, um rio, um vento, uma vida...) É um modo intensivo e não um sujeito pessoal. É uma dimensão específica sem a qual não se poderia ultrapassar o saber nem resistir ao poder (DELEUZE, 1992, pp.123-124). É a partir dessas considerações acerca da subjetividade e dos componentes capazes de constituí-la que analisamos o graffiti, com o intuito de cartografar os processos de subjetivação que possam estar envolvidos nesse fenômeno. Pensamos o graffiti como um agenciamento de enunciação capaz de subverter a decodificação de códigos lingüísticos e culturais e promover a recodificação de culturas locais e signos semióticos. Exercendo essa função, consideramos que possam ser apresentados como componente de um processo de subjetivação. Sibilia (2002) em análise à obra de Foucault, nos lembra que é na passagem para a era pós-industrial que observamos uma transição do “produtor disciplinado”, ou seja, o sujeito das fábricas, para o “con- Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 sumidor controlado”, o sujeito das empresas. Nessa mudança, a produção econômica assumiu novas feições liberando novas forças com o esvaziamento das antigas categorias de proletariado de classe e de esquerda. Pensamos que as forças liberadas com essa transição, são forças capazes de atuar nas linhas que nos constitui, o que faz com que reflexões acerca desse momento em que vivemos, não possam ser efetuadas de maneiras isoladas. O que queremos dizer é que instâncias que em outros tempos eram destinadas a outras funções, como as atividades relacionadas à criação e ao entretenimento, adquiriram outra dimensão na atualidade. E com isso tornam-se objetos de análise a fim de se pensar novos modos de resistência à produção capitalista dominante. A atualidade nos apresenta um cenário em mutação, em que as práticas de resistência características das sociedades disciplinares, como ações sindicais, greves e passeatas, perderam efetividade. Nessa nova fase da economia capitalista, novos controles regem os corpos e as subjetividades, novos mecanismos de poder surgem e, por conseguinte, novas práticas de resistência, novas modalidades de contrapoder entram em cena. A predominância do trabalho imaterial em que a inteligência, a criatividade e a imaginação são solicitadas do trabalhador, em detrimento de sua força física e seus músculos, nos mostra que o que antes era do domínio privado do sonho e das artes foi solicitado a trabalhar no circuito econômico e com eles o capitalismo passou a mobilizar a subjetividade numa dimensão jamais vista. É nesse novo cenário sócio-econômico que analisamos em que medida a criação cultural – entendida aqui como a invenção de sentido, de linguagens e valores por intermédio das expressões estéticas do graffiti – e a criação subjetiva se conjugam e são apropriadas por dispositivos de expropriação. Ou, ao contrário, instauram processos positivos e singularizantes capazes de funcionar como resistência num cenário de homogeneização. Nesse contexto apontamos o graffiti como expressão estética capaz de subverter certos códigos por intermédio de seu jogo de signos e sentidos e observamos os traçados das linhas que perpas- 73 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 sam não somente as ações dos graffiteiros, mas que se prolongam na relação entre as pessoas e as imagens inscritas nas ruas. Interessam-nos os fluxos, os encontros resultantes do poder de afetar e ser afetado que conduzem essas subjetividades a processos complexos em que diversos fatores entram em jogo e produzem novas maneiras de pensar e agir na atualidade. 74 Criação cultural & criação subjetiva: cartografias possíveis? As relações entre política e cultura foram redesenhadas a partir das transformações ocorridas no capitalismo pós-fordista. Rolnik et al (2002) afirmam que a dimensão cultural ganhou uma centralidade inédita no quadro de um capitalismo dito “cultural” ou “pós-moderno” em que a subjetividade surge no cerne de uma economia imaterial. Segundo essa lógica, a maioria das atividades relacionadas à cultura foi esvaziada de sua função de problematização para se tornar alvo de interesses estritamente mercadológicos. Uma vez que o graffiti surge como a expressão de uma cultura que visa expressar o coletivo urbano em sua diversidade e desigualdade, destacamos nosso interesse pelo papel da cultura no quadro contemporâneo do capitalismo. No nosso entender, a cultura veiculada por esse movimento é marcada por um tipo de manifestação na qual a problematização retoma seu papel no âmbito da criação. Isso ocorre quando, por exemplo, as imagens do graffiti são capazes de desestabilizar a coesão social imposta pelo status quo que oculta e reprime as diferenças em prol da homogeneização das subjetividades. A coesão social pode ser exemplificada, nesse contexto, pela divisão dos espaços no ambiente urbano, onde vemos um espaço oficial, projetado pelas instituições e construído sem considerar o uso que os cidadãos dariam a ele e um outro que pode ser considerado como o espaço da diferença, uma vez que ele é usado e inventado na medida em que o cidadão o nomeia ou o inscreve. Ao inscrever suas imagens nos espaços urbanos, os graffiteiros transitam entre fronteiras tensas, negociando com outras imagens da cidade como a pichação, a publicidade e os escritos revolucionários. Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 Por intermédio das imagens nômades que circulam pela cidade, a manifestação do graffiti traz à tona novamente a problematização na dimensão cultural, uma vez que nomeia e inventa novas funções para os espaços oficiais da cidade. Agindo assim, percebemos que suas imagens podem funcionar como estratégia de enunciação que articulam elementos presentes mais nas relações afetuais e menos nos acordos sociais. Nesse contexto, a relação entre cultura e subjetividade deve ser pensada no interior da revolução tecnológica e produtiva, considerando seus efeitos sociais, afetivos e as linhas de força que essa reconfiguração libera. Nas novas formas de produção capitalista, em que o desenvolvimento tecnológico evolui constantemente, o tema recorrente é a predominância do trabalho imaterial. Um tipo de trabalho que solicita do trabalhador não mais seus músculos ou força física, mas sua inteligência, sua força mental, sua criatividade e sua imaginação. Tudo que antes era do domínio privado, do sonho, das artes e das imagens foi posto a trabalhar no circuito econômico. O resultado dessa nova configuração faz com que o capitalismo mobilize a subjetividade numa escala jamais vista. Com isto, a força de invenção se tornou a principal fonte de valor e se disseminou por toda a parte, não se restringindo mais somente aos espaços consagrados à produção. Tal centralidade da invenção no domínio da produção trouxe consigo a tendência hegemônica de uma serialização nos mais diversos âmbitos: das formas de socialização, de entretenimento, de circulação cultural e de informação. No atual contexto da relação entre capital e subjetividade, Pelbart (2003) diz que o capital mobiliza e faz trabalhar a seu favor as instâncias mais íntimas de nossa existência. Para tanto, ele utiliza, como dispositivo de homegeneização das subjetividades, as novas tecnologias da informação, nas quais consideramos a imagem o elemento central. As imagens apropriadas por esse sistema podem agir na captura de forças inventivas objetivando a instauração de territórios em que a palavra de ordem é a padronização das subjetividades. Mas, essas mesmas imagens que se encontram amplamente disponí- 75 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 veis nas mais diversas esferas sociais, utilizando como vetor principal a cultura das mídias e a cultura digital, são também capazes de operar a força irruptora dos desejos. Agindo de forma a estimular novas maneiras de viver e se constituir, uma vez que podem intensificar as potências individuais. Rolnik et al (2002) falam da dimensão semiótica do capitalismo, em que a velocidade da digitalização generalizada ressemiotiza todos os âmbitos da vida. Desta forma, dizemos que o excesso de imagens que vemos hoje nas mais variadas instâncias, apresenta uma face da semiotização na qual a cultura tende em submeter-se à lógica da sociedade do espetáculo. Seguindo essa linha de raciocínio, Rolnik et al (2002) colocam a seguinte questão: 76 Se tomamos a capacidade da arte [...] fundamental para as sociedades contemporâneas, de socializar as próprias sensações, fazendo comunicar num comum sensível a diferença dos indivíduos, não estaríamos na contracorrente da narrativa por demais unilateral da sociedade de espetáculo, ou mesmo da sociedade de controle, reabrindo o campo para outras cartografias? (ROLNIK et al, 2002, p.8) Parafraseando os autores indagamos se as imagens e as cores dos graffiti possuem a capacidade de provocar sensações capazes de agenciar novos modos de ser. Será que a manifestação de uma cultura popular que nasce no seio do cotidiano urbano, que possui como berço as ruas que abrigam a rotina da vida citadina e que, normalmente, utilizam como suporte os espaços mal cuidados, feios e sujos da cidade, possuem condições para subverter as imagens produzidas pelas novas tecnologias da informação, que visam à homogeneização dos espaços, das cidades, dos indivíduos e, o que é pior, dos desejos? É sabido que a atualidade exibe o fim dos suportes e das esferas de atuação em vários domínios. Não se produz mais somente nas fábricas, não se cria só na arte e não se resiste só na política. Neste Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 sentido, Deleuze nos propõe que “o moderno traz a revelação da falência da superfície, assiste ao transtorno das relações tradicionais entre a superfície e a profundidade, entre o fundo e a forma, o sentido e o sem sentido” (1969, p.10, tradução nossa)2. Nessa nova configuração, as artes plásticas extrapolam seus suportes tradicionais como a pintura e a escultura e se expande para além das esferas tradicionais de sua atuação como o museu e o circuito tradicional da arte. As imagens não se apresentam mais somente nos suportes tradicionais como parede, pintura, gravura, escultura, arquitetura, fotografia, vídeo e cinema. Surge a era da Lógica Paradoxal da Imagem que de acordo com Virilio3(2002) corresponde àquela iniciada com a invenção da holografia e da infografia. Diante de tanta alteração, Rolnik et al (2002) dizem que também a subjetividade passou por mudanças. Ela extrapolou seu suporte egóico e identitário para ser vista por uma perspectiva de transversalidade, por um processo complexo e heterogêneo que não designa uma “coisa em si” de caráter imutável. Diante deste panorama de mudanças, transformações e misturas que a atualidade nos fornece, torna-se relevante pensar em que medida a resistência e a criação são coextensivas? Em que circunstâncias as imagens, a cultura e as artes se constituem criação como potência de singularização? Será que as imagens dos graffiti são capazes de inventar novos sentidos ao produzir sensações que possam se articular à criação, à individuação em processo? Vivenciamos uma época marcada pelo controle do Capitalismo Mundial Integrado que perpassa a todas as atividades humanas, moldando modos de existência. Tal sistema se utiliza de fluxos como operadores que a tudo codificam em prol de uma lógica reprodutiva dominante. Nesse sentido, a sociedade é composta por códigos e fluxos e as pessoas que compõe esse corpo social são capazes de provocar ou receber fluxos vindos do campo do desejo e, por conseguinte, são suscetíveis de escapar ao código, ou seja, às normalizações institucionais e territoriais impostas por esse sistema. 77 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 78 Cartografia imagética: mapeando sensações colorantes produtoras de novos sentidos Interessam-nos as realidades e sentidos que são construídos por sujeitos históricos de formações socioculturais específicas como a que estamos inseridos hoje. Nesse contexto, privilegiamos certos registros imagéticos de graffiti inscritos na cidade de Belo Horizonte (Minas Gerais, Brasil), que consideramos como produtores de sensações que concorrem para o engendramento da subjetividade. Partimos do pressuposto de que quando alguém é afetado por uma sensação, por exemplo, através de uma imagem, esta sensação está diretamente relacionado à produção de sentido e ao fluxo do desejo que ativa sua subjetividade, seja reproduzindo ou transformando-a. Assim sendo, os sentidos que obtemos não são simplesmente préfabricados e transmitidos pelas formas das imagens que conteriam as intenções de seus autores, mas são produzidos por encontros entre forças capazes de desencadear um processo de significação que está constantemente sujeito as novas reestruturações e a novos sentidos. Desta forma, justificamos a relevância de serem estudados e discutidos os processos de subjetivação que emergem a partir da produção de sentidos originários de dimensões semiológicas imagéticas presentes nos muros da cidade. Como método, optamos pela realização de uma cartografia a fim de mapear as linhas que atravessam o fenômeno: os pontos de homogeneização aí presentes, mas, sobretudo, registrando os mecanismos de resistência que escapam à produção em massa das subjetividades. Entendemos a resistência, nesse contexto, para além de uma relação de forças contra algo visível, mas como invenção e como criatividade capaz de inventar novos modos de ser e estar no mundo. Analisar o fenômeno do graffiti é fruir uma paisagem na qual os afetos e os perceptos funcionam como operados de sua lógica, devendo ir além de uma simples contemplação que almeja descobrir significados transcendentes à sua existência. Considerando nosso objeto de estudo, como elementos que compõem as paisagens urbanas em constante formação acompanhamos as idéias de Rolnik, acerca Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 da cartografia: “é um desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo que os movimentos de transformação da paisagem” (1989, p.15). Portanto, ao se ter como meta a realização de uma cartografia, não se pode desconsiderar as mudanças e os movimentos inerentes ao objeto e à própria essência da subjetividade que, em constante processo, necessita desmanchar territórios a fim de criar outros. A autora ilustra bem esse recorte quando fala que a cartografia: [...] acompanha e se faz, ao mesmo tempo que o desmanchamento de certos mundos – sua perda de sentido – e a formação de outros: mundos que se criam para expressar afetos contemporâneos, em relação aos quais os universos vigentes tornaram-se obsoletos. (ROLNIK, 1989, p.15) Nessa acepção, a cartografia se apresenta como um método cuja atividade busca registrar a coexistência das linhas que constituem os nossos mundos e os processos que procuram as correspondências entre os fenômenos, mais do que suas verdades absolutas. No nosso entender, o desafio dessa atividade é descobrir o poder de afetar e ser afetado pelos universos que rodeiam os indivíduos e também, de mapear sensações capazes de criar novas subjetividades. Hardt (1996) nos lembra que para Deleuze, o poder de ser afetado corresponde à potência do ser de agir e de existir. A potência de ser afetado revela duas ordens distintas: afecções ativas e passivas, sendo que essa última pode ser de dois tipos: afecções passivas alegres e afecções passivas tristes. Segundo o filósofo, a grande maioria de nossas afecções é triste e a constatação desse pessimismo, que tem sua origem na filosofia espinosista, se apresenta como o ponto de partida para uma prática da alegria. Portanto, entendemos que a cartografia se apresenta como meio capaz de nos possibilitar uma abordagem do desejo, que, por sua vez, é entendido no nosso trabalho, como o elemento fundamental de uma microanálise. Analisamos o desejo como elemento desencadeador de microprocessos revolucionários, isto é, processos de percepção e 79 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 sensibilidade inventivos e capazes de produzir novas subjetividades. No nosso entender, os modos de expressão a-significantes (como certas imagens de graffiti) são elementos privilegiados para o desencadeamento de processos de subjetivação e a cartografia a forma ideal para registrá-los. 80 Por uma micropolítica: o desejo como sistema de signos asignificante O desejo na dimensão dos processos de subjetivação, analisados pelo olhar da filosofia da diferença de Deleuze e Guattari, não é entendido como a representação de um objeto ausente ou faltante, mas como uma atividade de produção, como um processo, como uma experimentação incessante. Desejo como algo que nasce fora, nasce de um encontro (dos indivíduos com as imagens dos graffiti, por exemplo) ou de um acoplamento e, que não é dado previamente nem é um movimento que surge de dentro para fora. Deleuze (1993) aponta sua primeira diferença em relação à Foucault quando, juntamente com Guattari, fala em agenciamento de desejo e questiona se os microdispositivos podem ser descritos em termos de poder. Para o autor, os agenciamentos de desejo é que disseminariam formações de poder, sendo, portanto, o desejo, o elemento fundamental de uma microanálise. O elemento desencadeador dos microprocessos revolucionários, como na micropolítica, por exemplo, que se situa um processo de percepção e sensibilidade inteiramente novo e capaz de produzir novas subjetividades. Como diriam Guattari e Rolnik, o investimento “desejante” é capaz de instaurar práticas políticas que pleiteiam a “subversão da subjetividade de modo a permitir um agenciamento de singularidades desejantes” (2000, p.30). Os autores afirmam que todos os fenômenos da atualidade envolvem dimensões do desejo e da subjetividade, portanto, a problemática da micropolítica não se situa no nível da representação, mas no nível da produção de subjetividade: “ela se refere aos modos de expressão que passam não só pela linguagem, mas também por níveis semióticos heterogêneos.” (2000, p. 28). Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 Nesse sentido, percebemos que o desejo se movimenta, se expande e é capaz de impulsionar movimentos nos quais a fantasia, a alegria, o colorido e o lúdico, possam ser um abalo ao primado do poder. Nesses movimentos, consideramos as imagens dos graffiti capazes de atuarem no campo do desejo e, por conseguinte, em uma micropolítica. Assim sendo, a filosofia da diferença de Deleuze e Guattari pode ser pensada pelo viés de uma micropolítica, uma vez que a diferença não está relacionada ao sentido identitário, ou seja, da representação das características particulares de um indivíduo ou grupo. Mas o oposto disso: diferença é o que nos arranca de nós mesmos e nos faz devir outro. É o abalo de identidades vigentes e pré-moldadas em prol da criação de novas combinações de forças, novas figuras, novos modos de ser e estar no mundo. Diferença como produção de um coletivo, uma vez que a própria diferença é o resultado de composições das forças que constituem determinado contexto sociocultural. A filosofia da diferença trata de uma atitude micropolítica que ultrapassa o respeito e o reconhecimento com o outro, que vai além de respeitar ao próximo e preocupar com as conseqüências que nossa conduta possa ter sobre ele, mas trata de assumir as conseqüências de sermos permanentemente atravessados pelo outro. Pensando assim, consideramos as imagens dos graffitis como agenciamentos geradores de novos modos de existência, principalmente quando são capazes de produzir regimes de signos diferentes daqueles estabelecidos pela lingüística. Esse é, segundo Zourabichvili (2004), o interesse principal do conceito de agenciamento: “enriquecer a concepção do desejo como uma problemática do enunciado” (2004, p.23). Surge daí a proposta da Lógica do Sentido iniciada por Deleuze em 1969 e cuja seqüência se deu em parceria com Guattari na obra Mil Platôs (1995). Em linhas gerais podemos dizer que Deleuze (1969) pressupõem um nexo interno entre um enunciado e o ato incorpóreo que necessariamente o envolve, o que implica um questionamento dos modelos da lingüística (informação/comunicação). O autor considera os incorpóreos como condição extrínseca, porém necessária da linguagem, sendo simultaneamente o expresso de 81 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 82 uma proposição e o atributo de um estado de coisas. Para ele, os incorpóreos não existem fora das proposições, mas também não se reduzem, em absoluto, à sua natureza lingüística. Nessa acepção, pensamos os graffiti como agenciamentos coletivos de enunciação enquanto transformações incorporais da ordem mais do sensível (sensação) do que da percepção (cognição). Deleuze e Guattari (1995) falam que a forma de expressão não é simplesmente linguageira, há, por exemplo, agenciamentos musicais, agenciamentos olfativos, mímicos, colorantes, enfim, agenciamentos que agem alterando sentidos pela via da sensação (característica que destacamos nas expressões dos graffiti). Tal condição nos faz perguntar: qual a lógica que rege o conteúdo e a expressão em sua origem? Os autores nos responderiam que esse é o pólo “máquina abstrata” entre os quais estão incluídos os agenciamentos artísticos. Sabemos que uma relação complexa se tece entre conteúdo (o agenciamento maquínico) e expressão (agenciamento coletivo de enunciação), redefinidos, de acordo com os autores, como duas formas independentes, mas tomadas numa relação de recíprocidade e relançando-se uma à outra. A gênese recíproca das duas formas remete à instância do “diagrama” ou da “máquina abstrata”. Ao contrário da relação significante/significado, no diagrama, a expressão refere-se ao conteúdo sem, contudo, descrevê-lo nem representá-lo, simplesmente ela intervém nele. O resultado é uma concepção de linguagem que se opõe à linguística, assinalando-se pelo primado do enunciado sobre a proposição, nela a forma de expressão (o regime de signos) não é necessariamente linguageira. Daí exclui-se a idéia do agenciamento poder ser explicado pelo significante, ou pelo sujeito, conforme Deleuze e Guattari nos dizem: “é a significância ou a subjetivação que supõem um agenciamento, não o inverso” (1995, p.97). Por conseguinte, encontramos transformações incorpóreas, como algumas manifestações do graffiti, procedentes de um segmento de expressão capaz de conduzir a decodificações, em outros termos, a pontos de desterritorialização. Ou seja, agenciamentos que conduzem Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 a um plano em que o vir a ser do indivíduo (que só se constitui como tal ao se agenciar) promove disjunções (linhas de fuga) que ele cria como alternativa contra o funcionamento reprodutor da identidade fixa (linha de segmentaridade dura). Podemos ilustrar essa transformação com dados empíricos de nossa pesquisa, quando o graffiteiro informante4 do estudo de caso que realizamos, nos narra sua entrada para o universo dos graffiti. Essa passagem nos permite registrar a ação de uma linha de subjetividade, dentre as muitas que registramos em nossa cartografia que, pela natureza deste texto, não poderemos apresentar de forma completa. Contudo, apresentamos o registro de um momento em que pudemos detectar a ação de uma linha de fuga: Esse tanto de cor, eu fiquei louco e comecei a desenhar na mesma hora. Deixei de ser pichador e comecei a graffitar. (G3, 27/02/2006) Esse relato nos mostra que as cores do graffiti provocaram agenciamentos no informante que o fizeram “deixar de ser” uma coisa para se tornar outra: “[...] deixei de ser pichador e comecei a graffitar”. Tal fala indica-nos a ação de uma linha de fuga que convergiu em um processo que o arrastou para o novo, o arrastou para um processo de subjetivação que resultou na configuração de uma nova práxis e um novo modo de ser. Valendo-nos das idéias de Guattari (1992) podemos dizer que essa mudança ocorrida com o informante ocorreu pelo viés da “lógica das intensidades”, na qual novos “universos de referência” e novos ‘territórios existenciais” foram enunciados. Essa manifestação (enunciação), foi feita por (agenciada) intermédio das sensações, conforme Rolnik (2001) denomina, ou, utilizando linguagem guattariana, pela “relação pática”, que as cores provocaram. Guattari nos diz que: “o que atravessa os diferentes componentes semióticos não é mais uma articulação formal, mas máquinas abstratas que se manifestam ontologicamente em registros heterogêneos e não-discursivos.” (1992, p.75) Ele está se referindo à aglomeração de componentes heterogêneos de expressão e 83 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 de conteúdo, ou seja, à concepção polifônica dos componentes que concorrem para a produção de subjetividades. Ao falar da heterogeneidade dos componentes semiológicos que compõem os processos de subjetivação, Guattari (1992) traz à tona a semiótica a-significante, que ele descreve da seguinte maneira: São figuras de expressão que se concatenam diretamente com o referente, e “tomam o poder” sobre o conjunto dos outros componentes semióticos; ao passo que, na semiologia linguística, são, ao contrário, redundâncias de conteúdo que vão reenquadrar o conjunto dos componentes de expressão, quer sejam fonológicos, gestuais, prosódicos...” (GUATTARI, 1992, p.75-76). 84 Destas considerações do autor, compreendemos que, nessa situação específica cartografada, o que contribuiu para que as cores do graffiti desencadeassem processos de subjetivação foi a capacidade das cores agirem como figuras de expressão (signo de ruptura ou signo sensível) que se articulam ao indivíduo atuando pela lógica da sensação e provocando a construção de novos sentidos, novas modos existir. Por todas essas considerações, concluímos que as imagens dos graffiti podem funcionar como agenciamento coletivo de enunciação quando for capaz de proporcionar novas formas de estar no mundo, novas subjetividades. Contudo, há de se lembrar que os agenciamentos podem também funcionar como arranjos para comportamentos pré-concebidos, como as instituições sociais, por exemplo. Trata-se nesses casos de agenciamentos sociais, definidos por códigos específicos que se caracterizam por uma forma relativamente estável e por um funcionamento reprodutor que tende a reduzir o campo da experimentação do desejo a uma visão preestabelecida. Graffiti: imagens híbridas de fronteiras urbanas Ao nos depararmos com a realidade de nossa problemática, percebemos que a heterogeneidade do graffiti contemporaneamente, o co- Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 loca como uma expressão híbrida, mestiça e fronteiriça em diversos momentos e circunstâncias. Ora ele se apresenta como cultura erudita, ora como expressão de uma cultura popular, ao mesmo tempo em que se configura, em certos aspectos, como expressão de uma cultura de massas, de uma cultura da mídia e até de uma cibercultura. Por sua fluidez, concluímos que o fenômeno graffiti se insere, de maneira importante, como reflexo e análise de novas formações subjetivas. Suas expressões, talvez sejam as que melhor apresentam as transformações que estão ocorrendo no modo de vida da cultura popular urbana, uma vez que os graffiti representam, na América Latina, a mestiçagem da iconografia popular com o imaginário político dos universitários. Caracterizando-se por ser uma expressão em que a denúncia política se abre à poética popular, em que diversos modos de protestos se encontram e se misturam. Sua manifestação participa da disputa cotidiana que estabelece a construção sociocultural dos espaços urbanos. Por esse aspecto, é que podemos dizer que o graffiti refere-se a uma redefinição do público e do privado, alterando a noção de que a cidade é dada somente ao não uso, à desigualdade e à frieza. Suas cores, seus desenhos e sua alegria, despertam idéias (ou seriam ideais?) de que a cidade é marcada também por uma sociabilidade e por uma positividade reveladas em expressões que visam à humanização desse espaço. Avistamos nessas imagens, um caráter ativista que sutilmente propõe uma nova lógica política sobre os direitos civis ao ultrapassar a sensibilidade à miséria e ao sofrimento alheio, se relacionando com eles através de sua poética. Nos trabalhos que acompanhamos é contundente a busca por lugares caóticos e inesperados para intervir. É essa busca que confere à ação desses jovens uma postura estética e ética que traz consigo a tomada de posição frente aos problemas políticos, sociais e étnicos que emergem da realidade. A partir de nossas observações, concluímos que o graffiti surge como uma forma de resposta cidadã, como um movimento plástico com razões sociais, políticas e contra-ideológicas que acabam por demonstrar uma tendência dessas expressões nos dias atuais: desli- 85 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 86 gar as inscrições dos graffiti das antigas formas panfletárias e recorrer a novos subterfúgios formais: introduzir a imagem, a forma de arte, a figura e não somente a palavra. Introduzir através de um projeto estético o afeto, introduzir a partir de suas cores e formas, a alegria e a humanização da cidade. Atuando assim, os graffiti questionam as formas de organização dominante e suas formas de legitimação que operam por mecanismos de dominação cultural. Dessa forma, algo criativo pode acontecer quando a dimensão de uma cultura popular expressa pelas imagens dos graffiti, assinala a percepção de dimensões inéditas do conflito social, da formação de novos modos de ser regionais, religiosos, sexuais e das formas de rebeldia e resistência. No nosso entendimento, essas manifestações propõem a reconceitualização da cultura ao nos confrontar com essa outra experiência cultural que é a popular, em sua existência múltipla e ativa que age na conflitividade do espaço público. Pudemos perceber que em alguns momentos suas imagens carregam uma espécie de mensagem cifrada, operando um jogo de sentidos que dificulta decifrar seus códigos. Quando assim apresentado, ele se caracteriza como um signo icônico que visa embaralhar seus possíveis significados. Nessa perspectiva, os graffiti estabelecem uma relação entre o observador e suas imagens a fim de que se efetue a ruptura do sentido que possibilita que cada imagem apresente um conjunto de correspondências a serem decodificadas. Essa acepção possibilita ver (ou sentir) aquilo que pertence a outros domínios, ou seja, a imagem nos dá a face do invisível ao provocar o rearranjo de forças apreendidas pela sensação. Assim, podemos dizer que a partir da falência de significados, a potência de criação é convocada, deste modo, as imagens de alguns graffiti são um convite à crítica do instituído, à problematização de questões do cotidiano, à produção de novos modos de pensar e à liberação do desejo. Suas imagens mantêm vivo o poder de afetar e ser afetado pelos universos incorporais que no rodeiam e de produzir novos mapas de sensações capazes de contornar novas subjetividades. Nossa pesquisa nos permitiu analisar os processos de subjetivação Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 envolvidos em alguns graffiti da cidade de Belo Horizonte e discutir as várias linhas de ação que o percorrem. Ao propor realizar uma cartografia dessas linhas, nossa intenção era destacar o caráter dinâmico desse movimento, registrando a hibridez de sua expressão que o possibilita transitar entre diversas fronteiras, ora reiventando e resingularizando modos de ser e jeitos de viver, ora reproduzindo padrões dominantes. No entanto, para além de cartografar esses movimentos fronteiriços do graffiti, pretendíamos responder a nossa hipótese fundamental: seriam os graffiti aptos de desencadear processos de subjetivação por meio das sensações que suas imagens provocam? Chegamos à conclusão que nossa hipótese é válida, que realmente os graffiti são capazes de desencadear processos de subjetivação por meio das sensações que suas imagens despertam. Consideramos que isso ocorre de maneiras variadas, ou seja, que em cada indivíduo essa afecção ocorre em graus diferentes, resultando em subjetividades também diversas. Contudo, descobrimos que as cores são os elementos dos graffiti que mais despertam sensações nos transeuntes, seguidos da surpresa do suporte (do local) em que se encontram as imagens. Esse processo de afecção que se desencadeia a partir da sensação que as cores provocam, nomeamos, em consonância com os conceitos teóricos que utilizamos, de microprocessos revolucionários. O resultado de nossa pesquisa nos mostra que os movimentos moleculares do graffiti se alternam com momentos e situações em que ele se apresenta subordinado às segmentaridades molares, como por exemplo, quando ele está nas galerias, quando participa de projetos patrocinados por instituições que ditam o quê e como será feito, quando assina produtos da moda e do design, quando permite ser tomado por forças de hierarquização do saber e do poder. No entanto, podemos concluir que mesmo agindo como subordinação em alguns momentos, o graffiti tende a ser mais a expressão de um movimento de resistência à homogeneização das subjetividades. Consideramos que a característica de hibridez, entre o popular, a poética e o político, marca como força motriz do graffiti a resistência, operada segundo uma poética visual e uma vivência do espaço 87 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 88 urbano que enfrenta a racionalização pós-industrial. É uma contraracionalidade que se inscreve em oposição ao tempo de produção mundializado e às tecnologias que tentam subjugar as culturas locais. Entretanto, sua resistência não é feita de oposições dramáticas ou radicais, ela é porosa, fluída, flexível e se dá em meio a um emaranhado de linhas de força que a tudo perpassam. Considerando a complexidade das diversas linhas que atravessam o graffiti, percebemos que os traços dos graffiti que delineiam movimentos de resistência são percebidos em instâncias moleculares, cotidianas, agindo como microrevoluções não panfletárias ou agressivas. Resistindo à homogeneização do saber, do poder, aos espaços assépticos, ao não uso dos espaços públicos, resistindo à indiferença com as desigualdades sociais, à falta de liberdade de expressão, à desumanização e frieza da cidade, à falta de sensibilidade. Cores que resistem ao conformismo com a degradação e segregação do espaço público, à falta de afeto e à capacidade de ser afetado. Enfim, ainda vemos certos graffiti de Belo Horizonte como um apelo à humanização e a singularização, pela via da sensação que suas cores despertam. Agindo desse modo, o graffiti trabalha o coletivo fora dos lugares consagrados e inventa constantemente a arte na prática cotidiana, buscando promover o descanso visual, interrompendo a aceleração da vida cotidiana e propiciando a humanização do ambiente urbano. Por intermédio de seu colorido, os graffiti nos convidam à experimentar uma subjetividade processual que esteja aberta também à conexões com o inumano, com o a-significante, com a capacidade de afetar e ser afetado por linhas de invenção, por linhas de subjetivação e por imagens que formam as paisagens urbanas da contemporaneidade. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARROS, José Márcio. Olhar a cidade, obscena. In: PINTO, Julio; SERELLE, Márcio (orgs.) Interações midiáticas. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. p. 91-102. Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Micropolítica e segmentaridade In: DELEUZE, Gilles ; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. 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Rio de Janeiro: J.Olympio, 2002. 89 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 ZOURABICHVILI, François. O vocabulário de Deleuze. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004. NOTAS 1 90 Essas especificações são características observadas nos graffiteiros que participaram de nosso estudo de caso: dois autodidatas, uma aluna da Escola de Belas Artes-EBA/UFMG e um informante que à época da pesquisa estava se preparando para o vestibular da Escola de Design da UEMG. 2 Le moderne a la révélation de la faillite de la surface et l’on assiste au bouleversement des relations traditionnelles entre la surface et la profondeur, le fond et la forme, le sens et le non-sens. 3 Esse autor apresenta uma logística da imagem à luz da qual são estabelecidos três regimes das máquinas de visão: Era da Lógica Formal da Imagem (inscrições rupestres, pintura, gravura, escultura e arquitetura), Era da Lógica Dialética da Imagem (fotografia, vídeo e cinema) e Era da Lógica Paradoxal da Imagem (já citada). 4 Optamos por preservar a identidade de nosso informante e por manter o registro da fala oral objetivando ser o mais fiel possível ao conteúdo dos mesmos, sendo assim, o identificaremos apenas como GP. INDÚSTRIA CULTURAL, TRABALHO HIPOSTASIADO E VIDA DANIFICADA JOSÉ GERALDO PEDROSA Licenciado em Ciências Sociais (INESP), mestre em Educação (UFMG), doutor em Educação: História, Política, Sociedade (PUC/SP) e professor no Mestrado em Educação Tecnológica do CEFET/MG E-mail: [email protected] Resumo: Esse artigo reflete sobre a heteronomia, a monotonia e o tédio que definem a (ausência de) vida no capitalismo tardio. A análise busca uma aproximação entre os primeiros textos de Marx ou dele e Engels e os ensaios nos quais Adorno reflete sobre a indústria cultural, o tempo livre, a música popular e a vida danificada na sociedade da produção e do consumo. Busca-se pensar na relação entre a hipostasia do trabalho, a indústria cultural e a vida danificada: isso que eqüivale a uma “involução da consciência”, a uma “regressão do homem” ou a uma decomposição do “cerne da individuação”. Palavras-chave: Trabalho; Capitalismo; Indústria Cultural. Abstract: This article reflects about the heteronomy, the monotony and the tedium that define the (absence of) life in late capitalism. The analysis aims to approach Marx’s or Marx and Engels’ first texts to the essays in which Adorno reflects about cultural industry, free time, popular music and the damaged life in the society of production and consumption. The purpose is to think about the relation between hypostasis of work, cultural industry and damaged life: what is equivalent to an “involution of conscience”, to a “human beings’ regression” or to a decomposition of “the core of the individuation”. Key-words: Work; Capitalism; Cultural Industry. Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº - 6 – p. 91 a 106 – outubro de 2007 91 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 O tempo é o campo do desenvolvimento humano. O homem que não dispõe de tempo livre (...) é uma (...) máquina, fisicamente destroçada e espiritualmente animalizada para produzir riqueza alheia. (Marx) A idéia de uma vida alienada e danificada, de uma vida que se reduz a meio de vida ou de uma vida marcada pela heteronomia, foi um dos motivos mais fortes da crítica marxiana da sociedade regida pela lógica da produção e do consumo. Já nos “Manuscritos” de 1844, Marx (1918-1883) identificava o fenômeno da exteriorização como uma situação na qual o homem se reduz à condição de trabalhador, perdendo, com isso, a sua condição de sujeito: “O trabalhador põe sua vida no objeto; porém agora ela já não lhe pertence, mas sim ao objeto” (Marx, 2001, p.112). Assim é que os criadores se curvam diante de suas criaturas e isso eqüivale à coisificação: 92 A alienação do trabalhador no seu produto significa não só que o trabalho se transforma em objeto, assume uma existência externa, mas que existe independentemente, fora dele e a ele estranho, e se torna um poder autônomo em oposição a ele; que a vida que deu ao objeto se torna uma força hostil e antagônica (Marx, 2001, p.112). Isso é que danifica a vida, pois o trabalhador torna-se um “escravo do objeto”. Nessa condição é que a propriedade privada aparece como aquilo que aliena o homem de sua natureza, de sua própria humanidade: “...quanto mais o trabalhador se esgota a si mesmo, mais poderoso se torna o mundo dos objetos, que ele cria diante de si, mais pobre fica a sua vida interior, menos pertence a si próprio” (Marx, 2001, p.112). Ao definir dessa forma a alienação, Marx compreende a lógica da sociedade burguesa e seus efeitos negativos sobre o homem. Trata-se da alienação da genericidade humana e, portanto, do afastamento do homem do próprio homem. Por isso tam- Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 bém é que quanto mais refinado é o produto do trabalho ou quanto mais o trabalhador se apropria, pelo trabalho, do mundo exterior, tanto mais desfigurado fica o trabalhador: “quanto mais civilizado o produto, mais desumano o trabalhador; quanto mais poderoso o trabalho, mais o trabalhador diminui em inteligência e se torna escravo da natureza” (Marx, 2001, p.113). Nos textos de 1844, a idéia de uma vida prejudicada aparece para Marx como o resultado do condicionamento do trabalho pela propriedade burguesa, portanto, por aquilo que Adorno caracterizaria, mais tarde, como coerção funcional: uma circunstância em que o membro particular da espécie humana se vê condicionado por uma rede funcional ou uma circunstância de descolamento entre o progresso da cultura material e o progresso no campo da sua liberdade e da sua felicidade. O que Marx afirmou ainda na primeira metade do século XIX é que: ...o trabalho, a atividade vital, a vida produtiva, aparece agora para o homem como o único meio que satisfaz uma necessidade, a de manter a existência física. A vida produtiva, entretanto, é a vida genérica. É a vida criando vida. No tipo de atividade vital está todo o caráter de uma espécie, o seu caráter genérico; e a atividade livre, consciente, constitui o caráter genérico do homem. A vida revela-se simplesmente como meio de vida (Marx, 2001, p.116). Para Marx, o momento mais elevado desse poder da propriedade burguesa sobre a vida do homem pode ser demonstrado pelo poder adquirido pelo dinheiro, a forma mais sublime da propriedade. O poder do dinheiro expressa o poder que o homem não tem mais sobre sua própria vida: “O dinheiro é a capacidade alienada da humanidade” (Marx, 1987, p. 196). Desta forma é que ter, no sentido egoísta de ter para si ou de ter de forma privada, torna-se mais importante do que ser e o dinheiro, expressão da propriedade, torna-se um fim em si mesmo, torna-se o poder que substitui o poder que o homem não mais tem sobre si: “Eu, que mediante o dinheiro posso tudo a que 93 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 94 o coração humano aspira, não possuo todas as capacidades humanas? Não transforma meu dinheiro, então, todas as minhas incapacidades em seu contrário?” (Marx, 1987, p. 196). Neste sentido é que o dinheiro torna-se a “química da sociedade”, o que “me liga à vida humana, que liga a sociedade a mim, que me liga com a natureza e com o homem”, mas, ao mesmo tempo, é o “meio geral da separação”: “É a verdadeira marca divisória, assim como o verdadeiro meio de união” (Marx, 1987, p. 196). Pretende-se aqui avançar no entendimento dessa “vida danificada” a partir de outras referências que Theodor Wiesengrund Adorno acrescentaria à crítica marxiana da sociedade burguesa, tendo como objeto da reflexão as condições da existência social no contexto do capitalismo tardio. Pensa-se, pois, a partir da síntese que aparece no texto de Benjamin Franklin: tempo é dinheiro1. É isso que remete ao problema adorniano do tempo livre e do tempo condicionado. O tempo é referência fundamental de organização da vida; é com base nessa categoria que se pode, pois, entender a relação entre o tempo de trabalho e a vida danificada. Mais especificamente, o que se busca é pensar na relação entre a hipostasia do trabalho, a coerção funcional e a vida danificada: isso que é próprio do capitalismo tardio e que eqüivale a uma “involução da consciência”, a uma “regressão do homem” ou a uma decomposição do “cerne da individuação”. Trata-se, pois, de entender o que Adorno define como “capitalismo tardio”, para, em seguida, pensar sobre a relação entre a hipostasia do trabalho e a vida danificada. O que Adorno nomeia como “capitalismo tardio” é uma situação na qual “as relações de produção se revelaram mais elásticas do que Marx imaginara”, desenvolvendo, assim, mecanismos que permitem a permanência da ideologia da produtividade, num contexto em que as contradições sociais se tornam cada vez mais agudas. Neste ensaio publicado em 1972, Adorno faz a crítica da tese segundo a qual Marx estaria ultrapassado, isto é, crítica do entendimento de que o mundo que se forma a partir dos anos 1960 se encontra de tal maneira determinado pela técnica – cujo desenvolvimento supera todas as Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 expectativas – que, se comparado com outras épocas de sua história, pode-se ver que “a relação social que outrora definia o capitalismo, a metamorfose do trabalho vivo em mercadoria e, desse modo, a contradição de classes, perdeu a relevância...” (Adorno, 1994, p. 63). Adorno refuta esta tese. Para ele, fatos como o da inexistência de uma consciência de classe nos países capitalistas dominantes ou o avolumamento do progresso técnico e o declínio da participação do trabalho vivo nas atividades industriais “só de um modo muito forçado e arbitrário são ainda interpretáveis sem utilizar o conceito-chave ‘capitalismo’. A dominação sobre seres humanos continua a ser exercida através do processo econômico” (Adorno, 1994, p. 67). Para o frankfurtiano, a ausência de uma consciência proletária nos países dominantes não é suficiente para refutar a existência de classes: “...a classe é definida pela posição quanto aos meios de produção e não pela consciência de seus membros” (Adorno, 1994, p. 65). Além disso: “A existência social não gera, de modo imediato, consciência social” (Adorno, 1994, p. 66). Este é, pois, o conteúdo do capitalismo tardio. A despeito de todo o progresso no domínio da técnica e do crescimento da produção, “...a atual sociedade revela aspectos estáticos”. Eles fazem parte das relações de produção: aqui não há progresso desde que o capitalismo existe. Relações de produção que “...não são apenas as de propriedade, mas também as de administração, abrangendo até o papel do Estado como o capitalista total” (Adorno, 1994, p. 69). O resultado desse triunfo da lógica da produção e do consumo é a criação de uma aparência: “de que o interesse universal seria ainda o interesse pelo status quo, e o ideal seria a plena ocupação e não o interesse em libertar-se do trabalho heterônomo” (sic) (Adorno, 1994, p. 69). Mas em que sentido estas relações de produção se estagnaram, a despeito de todo o progresso das forças produtivas? A reflexão adorniana sobre esse ponto remete ao descolamento entre o interesse objetivo e a espontaneidade subjetiva. Isso seria decorrente de dois fatores. De um lado a: “organização da sociedade impede, de um modo automático ou planejado, pela indústria cultural e da consciên- 95 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 96 cia e pelos monopólios de opinião, o conhecimento e a experiência dos mais ameaçadores eventos” (Adorno, 1994, p. 70). De outro lado e “muito além disso”, a socialização radical: “paralisa a simples capacidade de imaginar concretamente o mundo de um modo diverso de como ele dominadoramente se apresenta àqueles pelos quais ele é construído...” (Adorno, 1994, p. 70). Nessa circunstância, escreve Adorno: “...o estado de espírito fixado e manipulado torna-se tanto um poder real – um poder de repressão – quanto outrora o oposto da repressão, o espírito livre, quis eliminá-lo” (Adorno, 1994, p. 70). Com o apoio de Adorno, pode-se pensar que uma vida danificada é aquela que se define a partir de uma determinada relação entre a vida e a produção, uma relação que, de fato, é de sujeição da vida ao processo produtivo, isso que: “impõe de maneira humilhante a cada um algo do isolamento e da solidão que somos tentados a considerar como objeto de nossa superior escolha” (Adorno, 1993, p.21). Num dos aforismos de “Minima Morália”, Adorno (1993) reflete sobre a separação burguesa entre o trabalho e a vida privada e, nesta reflexão, dá pistas para o entendimento dessa sujeição da vida à lógica da produção e do consumo. Antes, afirma Adorno: “...olhava-se com desconfiança e como um intruso sem modos quem perseguisse fins na esfera privada” (Adorno, 1993, p.07). Na “sociedade unidimensional” (Marcuse, 1982) o que acontece é diferente, pois quando a vida torna-se um apêndice do sistema produtivo, “...parece arrogante, estranho e deslocado quem se entrega a algo privado sem que nele se possa notar uma orientação para algum fim. É quase suspeito quem nada ‘quer’: ninguém acredita que ele, sem se justificar com a exigência de uma contrapartida, possa ajudar alguém a abocanhar sua parte...” (Adorno, 1993, p.07). É que na sociedade regida pela lógica da produção e do consumo, “A relação (...) entre a vida e a produção (...) rebaixa realmente aquela a uma efêmera manifestação desta” (Adorno, 1993, p.07). Assim: “As ordenações práticas da vida, que se apresentam como se favorecessem ao homem, concorrem, na economia do lucro, para atrofiar o que é humano” (Adorno, 1993, p.34). Assim também, desde já, pode-se pensar na relação Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 entre a hipostasia do trabalho e a vida danificada. A hipostasia do trabalho se caracteriza, primeiro, pela separação entre meios e fins da atividade e, segundo, pela aquisição de autonomia da atividade em relação aos seus fins. Por outro lado, o que danifica a vida é que “meios e fins se vêem confundidos”, ou melhor, a vida se reduz a meio de vida: seu telos torna-se o trabalho sem telos. É por força deste rebaixamento da vida à produção que visa o lucro que Adorno foi enfático: “não há mais vida” à medida que essa se tornou um “apêndice” do sistema produtivo, “sem autonomia e sem substância própria”. É por isso também que Adorno afirmou que no capitalismo tardio “...a vida transformou-se na ideologia de sua própria ausência” (Adorno, 1993, p.166). Assim é que se pode pensar na relação entre a vida danificada e a dissolução do sujeito individual, sua cristalização na condição de mônada, sem poros pelos quais possam entrar ou sair alguma coisa: “na condição do antigo sujeito, historicamente condenado, que ainda é para si, mas não é mais em si” (Adorno, 1993, p.08). É por isso que se tem cada vez mais sociocracia: “Na sociedade individualista (...) a sociedade é essencialmente a substância do indivíduo” (Adorno, 1993: 09). Esse é, pois, um dos paradoxos do capitalismo tardio que desqualifica a vida: de um lado socialização sem limites, de outro atomização: “A atomização não está em progresso apenas entre os seres humanos, mas também no interior de cada indivíduo, entre as esferas de sua vida” (Adorno, 1993: 114). Isso remete para idéias que já se faziam presentes nos textos sobre educação que Adorno produziu na década de 1960. Em “Educação após Auschwitz” (Adorno, 1995) o frankfurtiano define uma outra característica dessa vida danificada no mundo administrado, a claustrofobia: “...um sentimento de encontrar-se enclausurado numa situação cada vez mais socializada, como uma rede densamente interconectada” (Adorno, 1995: 122). A conseqüência dessa pressão civilizatória é inevitável e isso é confirmado pela crescente violência que marca a vida nos grandes centros urbanos da contemporaneidade: “Quanto mais densa é a rede, mais se procura escapar, ao mesmo tempo em que a sua densidade 97 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 impede a saída. Isso aumenta a raiva contra a civilização. Esta se torna alvo de uma rebelião violenta e irracional” (Adorno, 1995: 122). Essa coerção funcional tem suas conseqüências para a vida dos indivíduos: para o tempo de vida, para o tempo de realização de experiências e para o pensamento: “Nenhuma realização pode estar ligada ao trabalho, que perderia assim sua modéstia funcional na totalidade dos fins; nenhuma centelha da reflexão pode invadir as horas de lazer, pois ela poderia saltar daí para a esfera do trabalho e incendiá-la” (Adorno, 1993: 14). Isso significa também a antecipação de uma questão que voltaria a ser abordada em “Tempo livre” (1995), qual seja, a da diferenciação entre tempo ocupado pelo trabalho e tempo condicionado pelo trabalho: 98 Enquanto em sua estrutura trabalho e divertimento se tornam cada vez mais semelhantes, as pessoas passam a separálos de um modo cada vez mais rígido com invisíveis linhas de demarcação. De ambos foram expulsos, na mesma proporção, o prazer e o espírito. Lá como cá imperam a seriedade sem humor e a pseudo-atividade (Adorno, 1993: 14). Em “A ideologia da Sociedade Industrial”, Marcuse (1982) refere-se a essa vida tendo por base a idéia de satisfação de necessidades falsas e verdadeiras. As necessidades falsas são “aquelas superimpostas ao indivíduo por interesses sociais particulares ao reprimilo”. Nesse caso, quem poderia definir quais necessidades são falsas ou verdadeiras é o próprio indivíduo: “isto é, quando eles estiverem livres para dar a sua própria resposta” (Marcuse, 1982). Essas falsas necessidades são aquelas que “perpetuam a labuta, a agressividade, a miséria e a injustiça” (Marcuse, 1982). Isso também seria uma vida falsa, pois o que sucede, com sua satisfação, não é a felicidade, mas a euforia: uma “euforia na infelicidade”, diria Marcuse. Nesse sentido é que a produção e o consumo “reivindicam o indivíduo inteiro”. O resultado disso não é: “o ajustamento, mas a mimese: uma identificação imediata do indivíduo com a sua sociedade...” Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 (Marcuse, 1982: 31). Isso caracteriza uma pseudoindividuação: “...o envolvimento da produção cultural de massa com a auréola da livreescolha ou do mercado aberto, na base da própria estandardização” (Adorno e Sinpson, 1994: 123). Em “Tempo livre” e em “Sobre música popular” Adorno faz reflexões que permitem uma crítica às teses do sociólogo do lazer Joffre Dumazedier2 (1994), que identificam tempo de lazer com tempo livre. As questões postas por Adorno remetem para o conceito de tempo livre, não no sentido formal, mas do telos do tempo livre e também de seu conteúdo. O ponto de partida é o entendimento daquilo que é o oposto de tempo livre, isto é, tempo não-livre, o que, para Adorno, é o tempo preenchido pelo trabalho, é o tempo da heteronomia. Tempo preenchido pelo trabalho tem dois sentidos: pode ser tempo ocupado pelo trabalho ou tempo condicionado pelo trabalho. Para Dumazedier (1994) – que não faz essa separação porque lhe falta o entendimento da indústria cultural – o fato social mais relevante, já observado em 1962, era o crescimento do tempo não ocupado pelo trabalho e seu conseqüente preenchimento por atividades de lazer voluntárias. O que Adorno pensa é que na sociedade regida pela lógica da produção e do consumo o tempo livre é “acorrentado ao seu oposto”, é condicionado pelo trabalho: “O tempo livre continua a ser o reflexo de um ritmo de produção imposto de modo heterônomo (sic) ao sujeito, ritmo que é mantido forçosamente mesmo nas pausas cansadas” (Adorno, 1993: 154). Essa é também a crítica que Horkheimer e Adorno (1985) fazem aos sociólogos que se preocupavam com as conseqüências que a perda de apoio da religião, a dissolução da comunidade, a “diferenciação técnica e social e a extrema especialização” provocavam, no sentido da generalização de um “caos cultural”. Para os frankfurtianos essa preocupação dos sociólogos é refutada constantemente já que a indústria cultural “confere a tudo um ar de semelhança”. Isso é decisivo para se pensar na possibilidade de tempo livre na sociedade capitalista: “Numa época de integração social sem precedentes, fica difícil estabelecer, de forma geral, o que resta nas pessoas, além do determinado 99 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 100 pelas funções” (Adorno, 1995: 71). Isso significa que nas férias, nos fins de semana, nos feriados ou nas horas diárias não ocupadas diretamente pelo trabalho, “prolongam-se as formas de vida social organizada segundo o regime do lucro”. É por isso também que, no tempo não ocupado diretamente pelo trabalho, “se prolonga a não-liberdade, tão conhecida da maioria das pessoas não-livres como sua não-liberdade em si mesma” (Adorno, 1995: 71). É isso também que permite pensar na idéia de um tempo livre danificado, que contribui na caracterização de uma vida danificada ou de uma falsa felicidade, de uma falsa sensação de liberdade: isso que se identifica com a euforia. Em “Sobre música popular”, Adorno faz uma abordagem sobre o tempo de lazer na vida das pessoas, especificamente sobre o tipo de música que se ouve nesse tempo em que o trabalho aparentemente se ausenta. Essa reflexão é exemplar sobre a relação entre o trabalho e a desqualificação da vida; sobre a coerção funcional e suas conseqüências para a não-liberdade do indivíduo. Nela, Adorno reflete sobre o tipo de diversão que as pessoas praticam em seu tempo não diretamente ocupado pelo trabalho: elas reforçam “simultaneamente uma estrutura de distração e desatenção”. Esse, segundo Adorno, é o esquema de conduta do “caráter burguês”: “Por um lado, deve-se estar concentrado no trabalho, não se distrair, não cometer disparates; (...) Por outro lado, deve o tempo livre, provavelmente para que depois se possa trabalhar melhor, não lembrar em nada o trabalho” (Adorno, 1995: 73). É nesse sentido que o trabalho condiciona o que poderia restar de tempo livre na vida das pessoas. A hipostasia do trabalho: “...é a razão da imbecilidade de muitas ocupações do tempo livre. Por baixo do pano, porém são introduzidas, de contrabando, formas de comportamento próprias do trabalho, o qual não dá folgas às pessoas” (Adorno, 1995: 73). Sobre essa vida danificada, Marx, ainda no século XIX, já havia escrito: O tempo é o campo do desenvolvimento humano. O homem que não dispõe de nenhum tempo livre, cuja vida afora as Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 interrupções puramente físicas do sono, das refeições, etc., está toda ela absorvida pelo seu trabalho para o capitalista, é menos que uma besta de carga. É uma simples máquina, fisicamente destroçada e espiritualmente animalizada, para produzir riqueza alheia (Marx, 1988: 121). Na era da indústria cultural, pelos veículos de comunicação de massa, “Os ouvintes são distraídos das exigências da realidade por ‘distrações’ que tampouco exigem atenção” (Adorno e Sinpson, 1994: 136). Mas que relação pode existir entre essa distração própria do lazer e a atenção necessária ao trabalho? Segundo Adorno, a distração, na situação social em que ela se encontra, “está ligada ao atual modo de produção, ao racionalizado e mecanizado processo de trabalho a que as massas estão direta ou indiretamente sujeitas” (Adorno e Sinpson, 1994: 136). Na origem desse condicionamento do lazer está a permanência extemporânea de um modo de produção que “engendra temores e ansiedades”: quanto ao desemprego e à perda de salário, medo da instabilidade, da banalização da violência ou da guerra. Como contraponto, é importante que as pessoas disponham de um tempo para o relaxamento, para “aquilo que não envolva nenhum esforço de concentração” (Adorno e Sinpson, 1994: 136). Isso também define o conteúdo de uma vida danificada: o tédio e a monotonia que já se faziam presentes no tempo diretamente ocupado pelo trabalho agora invadem também o pseudo tempo livre: “O tédio existe em função da vida sob a coação do trabalho e sob a rigorosa divisão do trabalho. Não teria que existir” (Adorno, 1995: 76). Isso também denuncia a não realização de uma promessa da sociedade burguesa, a individuação: “Se as pessoas pudessem decidir sobre si mesmas e sobre suas vidas, se não estivessem encerradas no sempre-igual, então não se entediariam” (Adorno, 1995: 76). O que determina o tédio é a falta de liberdade que impera no pseudo tempo livre: “Sempre que a conduta no tempo livre é (...) determinada pelas próprias pessoas enquanto seres livres, é difícil que se instale o tédio; tampouco ali onde elas perseguem seu anseio de felicidade, ou onde a sua atividade no tempo 101 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 102 livre é racional em si mesma, como algo em si pleno de sentido” (Adorno, 1995: 76). Isso significa que o tédio tanto pressupõe quanto reforça a heteronomia, uma vez que ele emana de um outro sentimento, a impotência, justificada ou neurótica: “...tédio é o desespero objetivo. Mas, ao mesmo tempo, também a expressão de deformações que a constituição global da sociedade produz nas pessoas” (Adorno, 1995: 76). Assim, a ausência de conteúdo de uma vida danificada é definida pela falta de liberdade e de criatividade, pela realização de pseudoatividades, pelo medo, pelo tédio e também pela monotonia. O que define uma vida monótona é a predisposição de se evitar esforço no tempo não ocupado diretamente pelo trabalho e onde não há esforço é que se instala a monotonia. O trabalho é uma atividade que sempre demandou dispêndio de energias físicas e mentais e, agora, em ambientes cada vez mais flexíveis e integrados e pressionados pelo enxugamento do número de postos, é também cada vez mais marcado pela tensão e pelo medo. É por isso que as pessoas buscam novidades em seu tempo não ocupado diretamente pelo trabalho: “Como um substitutivo, elas imploram por um estimulante. A música popular vem oferecê-lo. Os seus estímulos são respondidos com a inabilidade de se investir esforços no sempre-idêntico. Isso significa mais monotonia” (Adorno e Sinpson, 1994: 137). O que as pessoas querem nesse tempo é diversão: é por isso que nele torna-se impossível a realização de atividades ou de experiências formativas. Isso caracteriza outro contraponto entre Dumazedier e Adorno e também define outra característica da vida danificada no capitalismo tardio, isto é, a ausência de experiências formativas no tempo que na vida das pessoas seria o tempo livre e a preponderância das pseudo-atividades, isso que resulta da falta de espontaneidade e compromete a criatividade. Para o frankfurtiano: Pseudo-atividades são ficções e paródias daquela produtividade que a sociedade, por um lado, reclama incessantemente e, por outro lado, refreia e não quer muito dos indivíduos. Tempo livre produtivo só seria possível para pessoas Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 emancipadas, não para aquelas que, sob a heteronomia, tornaram-se heterônomas (sic) também para si próprias (Adorno, 1995: 78). É por isso que nesse tempo a arte é impossível: “Uma experiência plenamente concentrada e consciente de arte só é possível para aqueles cujas vidas não colocam um tal stress, não impõem tanta solicitação, a ponto de, em seu esforço livre, eles só quererem alívio simultaneamente do tédio e do esforço” (Adorno e Sinpson, 1994: 136). No mundo administrado, onde as melhores energias são absorvidas pelo trabalho, é: “...inoportuno e insensato esperar ou exigir das pessoas que realizem algo produtivo em seu tempo livre, uma vez que se destruiu nelas justamente a produtividade, a capacidade criativa” (Adorno, 1995: 77). Esse é o condicionamento que o trabalho exerce sobre o tempo que seria livre. No capitalismo tardio, 103 O tempo de lazer (...) serve apenas para repor a sua capacidade de trabalho. É um meio ao invés de ser um fim. Nesse sentido é que o lazer é uma fuga do trabalho e é isso que o prejudica: ao mesmo tempo, é moldado segundo aquelas atitudes psicológicas que o seu dia-a-dia no trabalho os habitua de modo exclusivo. Música popular é, para as massas, como Domingo que se tem que trabalhar (Adorno e Sinpson, 1994: 137). É isso também que fornece pistas para o entendimento do que seria o trabalho numa sociedade emancipada ou numa sociedade verdadeira, como diria Adorno: Talvez a verdadeira sociedade se farte do desenvolvimento e deixe, por pura liberdade, possibilidades sem utilizar, ao invés de se precipitar, com uma louca compulsão, rumo a estrelas distantes. Uma humanidade que não conheça mais a necessi- Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 dade começará a compreender um pouco o caráter ilusório e vão de todos os empreendimentos realizados até então para se escapar da necessidade e que, com a riqueza, reproduziram a necessidade numa escala ampliada (Adorno, 1993: 138). 104 Sobre isso, tanto Marx, nos “Manuscritos” de 1844, quanto ele e Engels na “Ideologia Alemã”, de 1845/46, fizeram diferentes reflexões e todas elas apontam a superação da propriedade privada e a abolição do trabalho como condições do reencontro do homem consigo próprio, com a natureza e com a sociedade. Somente numa sociedade emancipada é possível uma vida emancipada, pois um “...ser só se considera autônomo, quando é senhor de si mesmo, e só é senhor de si quando deve a si mesmo seu modo de existência. Um homem que vive graças a outro, se considera a si mesmo um ser dependente” (Marx, 1987: 175). Na sociedade regida pela lógica da produção e do consumo, a divisão do trabalho orientada pelo mercado e a caracterização da totalidade social como algo exterior ao indivíduo faz com que cada um tenha uma “...esfera de atividade exclusiva e determinada, que lhe é imposta e da qual ele não pode fugir; ele é caçador, pescador, pastor ou crítico, e deverá permanecer assim se não quiser perder seus meios de sobrevivência...” (Marx e Engels, 2001: 28). Na associação de indivíduos livres é a sociedade emancipada e não o mercado que regulamenta a produção geral. Com isso, embora cada indivíduo possa se “aperfeiçoar no ramo que lhe agradar” não haverá coerção no sentido de que cada um tenha uma esfera de atividade exclusiva. É isso que cria condições para que cada qual possa organizar sua vida livremente, de forma a “...hoje fazer uma coisa, amanhã outra, caçar de manhã, pescar na parte da tarde, cuidar do gado ao anoitecer, fazer crítica após as refeições, a (...) belprazer, sem nunca (...) tornar caçador, pescador ou crítico” (Marx e Engels, 2001: 28). É somente neste estágio: ...que a manifestação da atividade individual livre coincide com a vida material, o que corresponde à transformação Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 dos indivíduos em indivíduos completos e ao despojamento de todo o caráter imposto originariamente pela natureza; a esse estágio correspondem a transformação do trabalho em atividade livre e a transformação dos intercâmbios condicionados existentes num intercâmbio dos indivíduos como tais. Com a apropriação da totalidade das forças produtivas pelos indivíduos associados, a propriedade privada é abolida (Marx e Engels, 2001: 84). É isso também que permite tocar no problema da relação entre o indivíduo, a sociedade e a natureza. É a superação da propriedade privada e a abolição do trabalho que criam condições para uma relação de comunicação e de paz entre esses três sujeitos: A essência humana da natureza não existe senão para o homem social, pois apenas assim existe para ele como vínculo com o homem, como modo de existência sua para o outro e modo de existência do outro para ele, como elemento vital da efetividade humana; só assim existe como fundamento de seu próprio modo de existência humano. Só então se converte para ele seu modo de existência natural em seu modo de existência humano, e a natureza torna-se para ele o homem. A sociedade é pois a plena unidade essencial do homem com a natureza, a verdadeira ressurreição da natureza, o naturalismo acabado do homem e o humanismo acabado da natureza (Marx, 1987: 175). REFERÊNCIAS ADORNO, Theodor W.. 1993. Mínima Moralia – Reflexões a partir da vida danificada. Tradutor: Luiz Eduardo Bicca. São Paulo: Ática. _________. 1994. Capitalismo tardio ou sociedade industrial? In: COHN, Gabriel (Org.) Theodor Adorno. São Paulo: Editora Ática, 2ª ed., nº 54. Coleção Grandes Cientistas Sociais. p. 62-75 105 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 106 _________. 1995. Tempo livre. In: ADORNO, Theodor W.. Palavras e Sinais – modelos críticos 2. Tradutora: Maria Helena Ruschel. Petrópolis: Vozes. _________. 1995. Educação após Auschwitz. In: ADORNO, Theodor W.. Educação e Emancipação. São Paulo: Paz e terra. Tradutor: Wolfgang Leo Maar. ADORNO, Theodor W.. SINPSON G.. 1994. Sobre a música popular. In: Cohn, Gabriel (Org.) Theodor Adorno. São Paulo: Editora Ática, 2ª ed., nº 54. Coleção Grandes Cientistas Sociais. p. 115-146. DUMAZEDIER, Jofre. 1994. A revolução cultural do tempo livre. Tradutores: Luiz Octávio de Lima Camargo & Marília Ansarah. São Paulo: SESC/ Studio Nobel. HORKEIMER, Max. ADORNO, Theodor. 1985. A Indústria Cultural: O Esclarecimento como Mistificação das Massa. In: HORKHEIMER, Max, ADORNO, Theodor W.. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução de Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. p. 19-52. MARCUSE, Herbert. 1982. A ideologia da sociedade industrial: o homem unidimensional. Tradutor: Giasone Rebuá. Rio de Janeiro: Zahar. 6ª edição. MARX, Karl. 1987. Manuscritos econômico-filosóficos. Tradução de José Carlos Bruni et al. Lisboa: Edições 70. MARX, Karl. 2001. Manuscritos econômico-filosóficos. Tradução de Alex Marins. São Paulo: Martin Claret. MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. 2001. A Ideologia Alemã. Tradutor: Luiz Cláudio de Castro e Costa. São Paulo: Martins Fontes. WEBER, Max. 1992. A ética protestante e o espirito do capitalismo. Tradutores: M Irene Q. F. Szmrecsányi & Tomás J. M. K. szmrecsányi. 7ª edição. São Paulo: Livraria Pioneira Editora. NOTAS 1 Trata-se do texto de Benjamin Franklin, analisado por Max Weber no capítulo dois de sua “Ética Protestante” e que caracteriza um retrato da cultura norteamericana, o espírito do capitalismo: “uma (...) confissão de fé do yankee”. 2 Jofre Dumazedier é o sociólogo contemporâneo francês que estuda a problemática do lazer na sociedade contemporânea. CONSIDERAÇÕES SOBRE MITO E GLOBALIZAÇÃO BATISTINA MARIA DE SOUSA CORGOZINHO Doutora em Educação, membro do NRD do Mestrado em Educação, Cultura e Organizações Sociais da FUNEDI e coordenadora do Centro de Memória da FUNEDI/UEMG e-mail: [email protected] Resumo: Definições de mito, conhecimento científico e mítico, mitos modernos e análise sobre aspectos dos impactos do processo de globalização cultural sobre mitos tradicionais, que fazem parte da cultura brasileira. A situação de alguns mitos tradicionais na atualidade e o processo de mitificação de determinados objetos ou situações significativas existentes no cenário contemporâneo brasileiro. Abstract: Myth definitions, scientific and mythical knowledge, modern myths and analysis on aspects of the cultural globalization process impacts on traditional myths, which are part of the Brazilian culture. The situation of some traditional myths in the present time and the transforming process of determined existing objects or significant situations in the Brazilian contemporary scene, in myths. Palavras-chaves: cultura; mito; globalização; ciência; atualidade. Key-words: culture; myth; globalization process; science; the present time. Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº - 6 – p. 107 a 122 – outubro de 2007 107 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 N 108 este texto serão analisados alguns aspectos dos impactos do processo de globalização cultural sobre mitos tradicionais, que fazem parte da cultura brasileira. Inicialmente serão apresentadas algumas definições de mito e a seguir alguns mitos serão situados na atualidade, mas o cerne dessa reflexão é a mitificação de determinados objetos ou situações significativas existentes no cenário contemporâneo brasileiro. As leituras realizadas e a observação da realidade estimularam os questionamentos que orientam a argumentação a seguir. Ian Watt escreveu que o Oxford English Dictionary define mito como “uma narrativa puramente fictícia, envolvendo geralmente personagens, ações ou acontecimentos sobrenaturais, e encarnando alguma idéia popular relacionada com um fenômeno natural ou histórico”. (WATT, 1997, p. 228). GILES (1993, p. 104) explicou a expressão mito dizendo que ele apresenta uma história não científica do pensamento de um povo. Os mitos explicam, de forma antropomórfica e animista, fenômenos como a criação do universo ou cosmogonia e sua estrutura ou cosmologia. Expressam a fonte e natureza dos fenômenos humanos e naturais como o orgulho, a inveja, os eventos sociais significantes de um povo, sua consciência social e todas as coisas. Giles considera, ainda, que os mitos não são verdadeiros ou falsos e reforçam por ritos os costumes de um povo e suas relações sociais. No dicionário mito é explicado como uma “narrativa fantasista de origem popular, exposição doutrinária sob forma de relato alegórico (...) representação ideal do futuro” (MACHADO FILHO, 1977, p. 727), ou ainda, “tradição que, sob forma alegórica, deixa entrever um fato natural, histórico ou filosófico. Exposição simbólica de um fato”. (DICIONÁRIO BRASILEIRO, 1989, p. 1.153). Os mitos são apresentados também como uma história de cunho sagrado, relatando acontecimentos num tempo inicial e primordial, narrando como as coisas começaram a existir. Todos os povos têm seus mitos de criação do mundo e da humanidade, procurando explicar a vida passada e presente como os índios do Brasil, assim como o Gênesis, no Anti- Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 go Testamento, com o mito da criação do Universo. As lendas, ao contrário, são definidas como estórias de conteúdo moral e muitas vezes se baseiam em fatos históricos. A expressão lenda vem do latim legenda. Mitificar é transformar coisas ou acontecimentos em mitos por meio de uma narrativa simbólica. Para o bacharel em matemática, Cláudio W. Abramo, a história da humanidade, pode ser contada na forma da guerra entre o misticismo e a racionalidade. Para ele: Todo o contingente de crenças mistificadoras constituem o sucedâneo ao exercício da racionalidade, considerada o único instrumento de que o ser humano dispõe para avaliar os dados da realidade, montar estratégias para enfrentálos e exercer as ações correspondentes. Renunciar à racionalidade equivale a desistir de pensar sobre o mundo e agir de acordo (...) O misticismo é o mais clássico dos inimigos da consciência. (ABRAMO, 2.001, p. 3) A perspectiva comtiana opõe radicalmente o mito à razão, além de inferiorizá-lo enquanto forma de explicação da realidade. O filósofo francês Comte, no séc. XIX, explicou a evolução da humanidade a partir do que considerou a lei dos três estados: ... todas as ciências e o espírito humano como um todo desenvolvem-se através de três fases distintas: a teológica, a metafísica e a positiva”. (...) No estado teológico (...) a imaginação desempenha papel de primeiro plano. Diante da diversidade da natureza, o homem só consegue explicá-la mediante a crença na intervenção de seres pessoais e sobrenaturais. O mundo torna-se compreensível somente através das idéias dos deuses e espíritos. (GIANNOTTI, 1978, p. IX, X) Comte considerou que o espírito humano torna-se maduro à medida que supera as formas míticas e religiosas de compreensão do mun- 109 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 110 do. (...) “O estado positivo caracteriza-se pela subordinação da imaginação e da argumentação à observação”. (GIANNOTTI, 1978, p. IX, X) Entretanto, o procedimento científico não é o único existente e muitas vezes nem é capaz de explicar determinados acontecimentos. O cientificismo que exalta a ciência como a forma verdadeira e única de explicar a realidade transformou-se em dos mais nocivos mitos na sociedade moderna, estimulando também a crença em seus desdobramentos: mitos do progresso, da objetividade e da neutralidade. O significado dos mitos e sua relação com a explicação científica são questões que estão presentes na sociedade contemporânea. Existem outras formas de pensar a relação entre ciência e mito. “Existem pontos de contato entre os objetivos míticos e os científicos. O estudo da cosmologia quer saber sobre a origem do universo do mesmo modo que os povos criam mitos para explicar-lhes a origem. A diferença está no modo de obter essas informações. O mito, ao contrário da ciência, utiliza seres sobrenaturais a quem atribui a função criadora. O discurso científico não possui deuses ou heróis. Os mitos e a verdade científica não são imutáveis, pois há uma busca constante de conhecimentos e descobertas”. (CÂMARA, 1987, p. 63-64) O físico Marcelo Gleiser disse que a cosmologia atende a curiosidade humana de saber de onde viemos e para onde vamos. São indagações permanentes que aparecem em todas as sociedades humanas. A cosmologia responde hoje às necessidades que os mitos atendiam anteriormente. Ele considera Albert Einstein como membro do grupo moderno de criadores de mitos pela discussão que ele lançou sobre o tempo e o espaço, tocando fundo nos anseios místicos das pessoas. Daí considerar Einstein como um fenômeno semi-religioso, de quase profeta. Os modelos científicos têm sempre equivalência entre os mitos da criação do universo. O modelo da grande explosão, o big bang, tem seu equivalente aos mitos religiosos. Para ele, a religião tem importância no processo criativo da cosmologia. Com outras metáforas, é como se estivéssemos “passeando com a ciência em áreas já visitadas pela religião”. (GLEISER, 1994, p. 7-8). Em relação ao Brasil, CHAUÍ (2000, p. 7-9) considera, que ex- Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 perimentamos no cotidiano a presença de uma representação homogênea e mítica que os brasileiros possuem do país e si mesmos e nos fala da crença generalizada que o brasileiro possui de que o Brasil: 1. É “um dom de Deus e da Natureza”. 2. Tem um povo pacífico, ordeiro, generoso, alegre e sensual, mesmo quando sofredor. 3. É um país sem preconceitos e que pratica a mestiçagem como padrão fortificador da raça. 4. É um país acolhedor para todos os que nele desejam trabalhar. 5. É um país dos contrastes regionais destinado por isso à pluralidade econômica e cultural. A força persuasiva dessa representação aparece ao tentar resolver imaginariamente uma tensão real e produz ao mesmo tempo uma contradição que é a de tolerar milhões de crianças sem infância, a prática do apartheid social e ter de si mesma a imagem positiva de uma sociedade fraterna. Para essa autora, essas representações têm a ver com o mito fundador do Brasil. Chauí está empregando a expressão “mito” no sentido antropológico, significa “a solução imaginária para tensões, conflitos e contradições que não encontram caminhos para serem resolvidos no nível da realidade”. A partir de meados do séc. XX , com a vitória na copa do mundo, o tripé da imagem da excelência brasileira era o café, carnaval e futebol. A bandeira brasileira foi incorporada hegemonicamente às comemorações e as vitórias na copa do mundo são identificadas com a ação do Estado, transformando-se numa festa cívica. O verdeamarelismo foi elaborado ao longo do tempo pela classe dominante brasileira e sua construção coincide com a idéia de nação que foi ao mesmo tempo construída e que é cuidadosamente analisada por essa autora. Por outro lado, a literatura também construiu seus mitos. Fausto é um personagem literário, inspirado em acontecimentos históricos; é um dos símbolos do individualismo moderno. Significa “afortunado” em latim e “punho” em alemão (WATT, 1997, p. 21,26). Individualista impenitente, capaz de abrir seu próprio caminho ...encarnação das forças novas que impulsionavam a mudança ...” O mito do Fausto desponta no momento em que o 111 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 cristianismo, no seu desenvolvimento, pensa ter polarizado os mundos do humano e do sobrenatural em um conflito entre o mal e o bem, conferindo à luta entre as duas partes uma nova intensidade e um novo rigor. Isso inevitavelmente proporcionou ao Diabo e sua hierarquia uma importância teológica e psicológica sem precedentes”. (WATT, 1997, p. 27) O personagem Dom Quixote, em seu permanente conflito com o mundo externo, fixou-se com uma: 112 Forma que reflete importantes valores e conflitos da nossa moderna civilização ocidental ... Estamos assim em um mundo que perpetua suas próprias ilusões., tornando-as indestrutíveis por qualquer espécie de realidade... “investir contra moinhos de vento” ... um empreendimento cuja total impraticabilidade deriva da disparidade ridícula entre certo propósito criado pela imaginação de um indivíduo e a poderosa insensibilidade do seu objeto... o indivíduo não está buscando qualquer vantagem; é inspirado por uma nobre mas ilusória idéia de ajudar a humanidade. A distância entre os desejos do indivíduo, de um lado, e a realidade, de outro, não é decerto, uma exclusividade do Quixote; a confusão dos desejos românticos com a verdade histórica é uma tendência universal. Se o mundo atual vive em uma situação de degenerescência, então é claro que temos de recuperar todos os valores do passado. (WATT, 1997, p. 60, 75, 76, 77). Dom Juan é um homem que quer tornar-se uma lenda em vida: Ser amado é uma idéia tão distante dos pensamentos de Dom Juan quanto a de amar... quando fala de morrer de amor, isso significa apenas que a excitação de sua carne exige alívio imediato. Nesse ponto, seu desejo difere pouco do apetite sexual mais ou menos constante que se pode ob- Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 servar como característico de um certo tipo de jovem de classe alta, sem outra coisa para fazer... Dom Juan habita um mundo no qual, como em quase todos os outros, a aceitação dos códigos morais, sociais e religiosos é puro fingimento... ambígua atitude do mundo secular, que publicamente condena, mas secretamente admira ... as vitórias do fornicador amoral. (WATT , 1997, p. 107/110) Robinson Crusoe é um personagem que vive um longo tempo sozinho em uma ilha deserta. A história de Crusoe mostra como um homem comum, ao ver-se completamente só, revela-se capaz de submeter a natureza aos seus próprios objetivos materiais, triunfando assim sobre o meio físico... racionalidade ecológica e trabalho econômico podem ser vistos como as bases morais que sublinham o seu caráter... Assim como a razão é substância e matéria-prima da matemática, assim também é possível a todo homem, mediante a razão e o mais radical estabelecimento dos fatos, dominar, com o correr do tempo, qualquer arte mecânica...” embora não seja cem por cento o homo economicus, Crusoe vive em função de um motivo econômico, ou talvez seja mesmo governando por ele. Sua sensibilidade está conectada às coisas materiais; ele é metódico, trabalhador, e sabe como fazer uma acurada avaliação dos resultados... Robison Crusoe planta em nossa vida imaginativa a noção de que o trabalho infatigável é algo capaz de nos redimir... a idéia da dignidade do trabalho... é uma obra em que não há lugar para a expressão do coletivo... dedicada ao egocentrismo imune à crítica; uma obra sobre alguém capaz de florescer magnificamente em uma ilha deserta. (WATT , 1997, p. 157, 158, 162, 171, 176) WATT (1997, p. 228-240) distingue sete aspectos de interpreta- 113 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 114 ção do mito: 1. O mito procura dar respostas às questões mais ou menos factuais ou racionais. 2. São projeções da realidade humana. Não podem ser interpretados de modo literal. Cassirer escreveu, “é um modo de estruturar simbolicamente o mundo”. 3. Significados simbólicos do mito transferindo-os para processos análogos da vida inconsciente do ser humano, como visto por Freud e Jung. 4. Ênfase dada à sociedade: a função do mito seria manter e reforçar a solidariedade social, como visto por Durkheim e Malinowski. 5. O mito tem função social e relaciona-se com o ritual como defendido por Lord Raglan. 6. Mito e ritual são igualmente simbólicos e de seus conteúdos fazem parte declarações enigmáticas sobre as estruturas sociais como defendido por Edmundo Leach. 7. Claude Lévi-Strauss encontrou regularidades estruturais nas representações coletivas das sociedades primitivas. Para Schorer o mito é uma imagem capaz de dar rumo e sentido filosófico aos fatos da vida comum. Para Ian Watt os quatro personagens analisados podem ser interpretados como representações das origens e das transformações da atitude individualista moderna. Eles refletem a nova ênfase de sua época na primazia social e política do indivíduo. A ciência, mesmo com todo o poder de persuasão que possui, convive com outras formas de explicação da realidade, onde se proliferam constantemente novas crenças e mitos. Ela própria é permeada por novos ou antigos mitos e crenças que ao longo do tempo foram sendo re-fundados ou incorporados. Portanto, as nuances da expressão “mito” permitem que seja abordado sem referir-se necessariamente às explicações sobre a criação do mundo, de forma menos abrangente. (...) precisamos recuperar o mito, hoje, (...) Ele é a primeira leitura do mundo, e o advento de outras abordagens do real não retira do homem aquilo que constitui a raiz da sua inteligibilidade. (...) Tudo o que pensamos e queremos se situa inicialmente no horizonte da imaginação, nos pressupostos míticos. (...) a função fabuladora persiste não só nos Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 contos populares, no folclore, como também na vida diária do homem ao proferir certas palavras ricas de ressonâncias míticas: casa, lar, amor, pai, mãe, paz, liberdade, morte, cuja definição objetiva não esgota os significados subjacentes”. (...) (ARANHA e MARTINS, 1993, p. 59) Os meios de comunicação transformam pessoas e atividades em imagens exemplares, que no imaginário representam todos os tipos de anseios: sucesso, poder, liderança, sexualidade etc. É a partir dessa perspectiva que está sendo situado o processo de mitificação, que está ocorrendo na atualidade em relação a determinadas coisas ou situações criadas ou importadas por influência dos processos de globalização cultural: a televisão que atua, também, como uma fábrica de criação e morte de novos mitos para satisfazerem a voracidade da sociedade de consumo, os mitos culturais presentes na alimentação moderna como o “fast food e o hambúrguer”, que podem ser também designados como a macdonização da alimentação. Nesse mesmo sentido, podemos considerar como situações míticas o ideário construído coletivamente em torno de uma peça do vestuário contemporâneo representado pela “calça jeans” e a exportação da figura do “cowboy” norte americano. A calça jeans, originariamente uma vestimenta grosseira capaz de suportar os impactos do trabalho dos vaqueiros estado-unidenses, foi transformada em um verdadeiro “uniforme” da juventude roqueira, desde os anos sessenta do séc. XX, se espalhando pelo mundo ocidental, numa velocidade compatível com o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa. Transformou-se numa peça mítica rodeada por um imaginário atraente pela cor anil e detalhes modernos e criativos. Associada sistematicamente à juventude tornou-se sinônimo de liberdade, como divulgado pelos meios de comunicação nos anos oitenta no Brasil; moldou comportamentos e hábitos culturais e atingiu um glamour que permite ser coroada como um dos principais ícones do processo de globalização cultural. A cada dia ela se transforma e ao mesmo tempo permanece e hoje ganhou espaço até mesmo na alta 115 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 116 costura, apesar de seu uso já ter sido denunciado como gerador de problemas de saúde nos órgãos genitais, especialmente na mulher. A mitificação também está presente na alimentação, que “está mais vinculada a fatores espirituais e tradicionais do que às necessidades fisiológicas” (FREITAS, 2006, p. 6) do ser humano. A Bíblia relata que Adão e Eva foram condenados a sair do paraíso e ter que produzir seus alimentos através do trabalho, por terem comido da árvore do conhecimento, representado pela maçã. Jesus Cristo disse “aquele que come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna”. Todos os povos possuem mitos diversos em relação à alimentação, que os levam a preferir determinados alimentos e abominar outros. Entretanto, o que vamos enfatizar em relação à alimentação contemporânea, difundida pelo processo de globalização cultural é a presença dos enlatados, fast food, delivery etc. que cada vez mais penetram em nossos hábitos alimentares, atrelados ao modo de vida atual sedentário e estressante nos centros urbanos, menores, maiores ou gigantescos. Com isso as receitas tradicionais, típicas de cada povo vão se transformando, aos poucos, em modismos e hábitos excêntricos próprios para serem vendidos para turistas. É a espetacularização da comida, mas o comemorar continua. O sanduíche, ou mais especificamente, o “Mac Donalds” transformou-se em outro mito associado à vida moderna marcada pela correria, falta de tempo e individualismo. A exportação para o Brasil da figura do “cowboy” norte americano é um outro fenômeno que ganhou maior visibilidade a partir dos anos oitenta associado às influências da globalização cultural. A figura do “jeca-tatu” com seu chapéu de caipira, cigarro de palha e botina foi sendo esquecida, ao mesmo tempo em que foi disseminado pela música e pelas exposições agro-pecuárias nos ambientes urbano/rurais do interior do Brasil o imaginário do “cowboy”: calça jeans apertada, botas, cinto extravagante, uma camisa de abotoar axadrezada com franjas e o chapéu. É a moda country oferecendo produtos de altos preços, mas que, no entanto, não deixam de ser consumidos. Os Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 espetáculos agro-pecuários atraem um significativo público, com uma grande presença de pessoas fantasiadas, para participarem como expectadores da grande festa. O design atrativo do chapéu do “cowboy” é bastante diferente do chapéu do caipira do interior brasileiro, figura existente hoje muito mais no imaginário do que na realidade. O costume dos homens urbanos usarem chapéu foi sendo esquecido no Brasil desde os anos sessenta e a juventude incorporou o uso do boné. Sem maiores preocupações conceituais, vamos pensar como estão vivendo, hoje, sob o impacto dos processos de globalização cultural, alguns seres imaginários, que ainda povoam os ambientes tradicionais, mas que são ressuscitados pela mídia, de forma ressignificada na moderna vida urbana como produtos de consumo: o lobisomem, a “mula sem cabeça”, o “saci Pererê”, o “bicho papão”, a “luz da chapada”. Este último ainda não foi descoberto pela mídia. Criaturas aterrorizantes como “a luz da chapada”: a bola de fogo que vagueia pelos caminhos e matos de nossa região centro-oeste mineira e que pode, de repente, acompanhar ou surgir à frente de um transeunte. Esse é um mito muito disseminado na área rural, sempre lembrado nos “causos” contados pelos adultos que juram ter passado por essa experiência ou dela ter ficado sabendo com segurança. A noite, com suas sombras, oferece perigos para quem está sozinho e a possibilidade da presença da bola de fogo e queimaduras funcionam como um antídoto, estimulando reações imaginárias prontas para serem executadas no momento necessário. O lobisomem, metade homem metade lobo, é um ser imaginário que veio de países europeus. Esse imaginário se espalhou pelo interior do Brasil e considera que ele aparece em noites de lua cheia, procurando sangue e matando tudo que encontra pelo caminho, crianças, mulheres, homens. Não tem o charme e sedução do vampiro, mas é o mais aterrorizante de todos os seres imaginários da cultura popular brasileira. Esse é o lobisomem, um ser metade homem, metade lobo, capaz de assustar homens, mulheres, e crianças e campeão 117 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 de uma eleição realizada pelo Instituto Cultural Aletria, especializado na arte de contar histórias. Os votos dos internautas não deixaram dúvidas: (site WWW.aletria.com.br) ele é a criatura mais assustadora das histórias infantis e da cultura popular em 2007. (Hoje em Dia, 25/02/2007, Caderno Programinha, p. 4-7) 118 O lobo mau também aparece em nosso imaginário seduzindo vovós e crianças, salvas pela valentia do “homem caçador”, protetor e provedor da família. Ele só não devora a “mamãe”, talvez porque ela já esteja sob seu controle. O “bicho Papão”, o “homem do saco” e o politicamente incorreto “boi-da-cara-preta” também enriquecem nosso universo de seres imaginários, alguns deles utilizados pela mídia e outros caindo no esquecimento. A “mula-sem-cabeça” é uma mulher que foi amaldiçoada por ter se envolvido amorosamente com um padre, aparecendo em noites de lua cheia, nas quintas ou sextas-feiras em alguma encruzilhada, onde ataca sua vítima, chupa seus olhos, dentes e unhas. Sua cabeça é uma tocha de fogo, seus cascos são ferros, seu coice é violento, além de relinchar chorosamente. É essa mulher endoidecida pelo pecado, que resultaria do relacionamento amoroso com um padre, impedido pelo voto de castidade, ou por comodidade, de se envolver com alguém e constituir família. Esse mito quis controlar, nem sempre de modo eficaz, o comportamento de mulheres e padres no ambiente religioso. Considerando os fortes estímulos ao individualismo e ao sexo na sociedade contemporânea, talvez estejamos precisando, hoje, de um mito mais persuasivo, capaz de inibir ações libidinosas de religiosos com crianças e adolescentes, como tem sido denunciado pelos meios de comunicação ou a revogação da exigência da castidade, pela Igreja católica. Já o Saci Pererê foi contemplado com um aumento de seu status ao receber, na atualidade, a responsabilidade de ser o duende-guardião-protetor da cultura popular, frente ao avanço das bruxas estado-unidenses. Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 Com o objetivo de diminuir a influência da comemoração do Halloween (...) e, ao mesmo tempo, valorizar o folclore nacional, foi criado no Brasil, desde 2005, o Dia do Saci comemorado, também em 31 de outubro.(...) duende protetor de nossas matas. Criado pelos indígenas, a princípio era um curumim perneta, de cabelos avermelhados, encantador de crianças e adultos. Em contato com o elemento africano e a superstição dos brancos, recebeu o cognome de Taperê, estendendo-se para Pererê Sá Pereira e tornouse negro. Depois disso, ganhou um gorro vermelho e um cachimbo na boca”. (Hoje em Dia, 25/02/2007, Caderno Programinha, p. 7) A comemoração do dia das bruxas ou Halloween, importada em decorrência do processo de globalização cultural, ocorre no dia 31 de outubro. Na última década, essa festa passou a ser realizada, cada vez mais, em clubes e escolas brasileiras. Os adultos se fantasiam, as crianças se transformam em bruxinhas-boas e graciosas e ainda persiste em nosso imaginário a dona-de-casa, feiticeira-Samantha, veiculada pela televisão nos anos setenta do séc. XX, com seus poderes extraordinários e divertidos. Não será uma tarefa fácil para o Saci-Pererê, pois o mercado financeiro já transformou o “dia das bruxas” em uma mercadoria sedutora e fácil de ser comercializada. O “dia do Saci” foi criado para valorizar a cultura popular brasileira, entretanto, sua permanência nesse posto vai depender, infelizmente, da capacidade e desejo do mercado em transformá-lo em uma mercadoria rentável. Um impedimento é o fato de sua figura ser associada ao uso do cachimbo. Em alguns lugares o saci se apresenta como um demônio rural, com personalidade de um menino travesso, que não faz grandes maldades, mas é matreiro, gosta de enganar e atormentar as pessoas e animais com procedimentos ingênuos. Quem for esperto pode capturá-lo e assim realizar algum desejo. Não resta dúvida que é necessário dar ênfase à cultura brasileira, 119 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 120 frente à importação de mitos desvinculados de nossas raízes, mas as estratégias para isso terão que ser muito criativas para garantir; ao Saci-Pererê, a posição de guardião da cultura popular. As bruxas amedrontam, mas foram transformadas pela mídia em mercadorias facilmente vendidas mostrando seu poder de transformação em boas e más e sua alquimia. Apesar de sua diversidade, todas essas criaturas simbolizam perigos reais que ao longo da vida todos nós estamos sujeitos a enfrentar. Estimulam nossa criatividade e, ao mesmo tempo, o instinto de sobrevivência ao produzir um medo saudável em nossa mente. Dessa forma, nos protegem contra os perigos, na medida em que funcionam como vacinas. São “estórias” que fazem parte de tradições literárias e artísticas locais e preservar essa memória coletiva, popular oral e estudá-la é um caminho que permite conhecer melhor a própria sociedade. As novelas veiculadas pela televisão têm um grande poder de persuasão e de aglutinação dos mais diferentes segmentos sociais em torno de suas histórias. No entanto, elas têm geralmente uma mesma estrutura que é o arquétipo da luta entre o bem e o mal, como dois pólos bem distintos e puros, senão não conseguem a audiência necessária do ponto de vista do mercado. Caracterizar o lado do bem e o lado do mal como separados e absolutos em si mesmos é também uma forma mitificadora de expressar a dinâmica das relações interpessoais, pois o bem e o mal estão juntos e interelacionados e não separados nos indivíduos reais. Podemos também encarar como situações mitificadoras os rituais dos encontros para comemoração de datas ou acontecimentos, bem como a adesão a partidos políticos ou ideologias. “(...) o homem se move em direção a um valor que o apaixona e que só posteriormente busca explicitar pela razão. Mito e razão se complementam mutuamente”. (ARANHA & MARTINS, 1993, p. 59) Na atualidade, o mito da felicidade contaminou toda a sociedade. Como analisou CERTEAU: “Uma sociedade inteira aprende que a felicidade não se identifica com o desenvolvimento. Ela o confessa, Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 ao atribuir um lugar cada vez maior aos lazeres (...) cultivando o sonho das férias ou das aposentadorias. (...)” (CERTEAU, 1995, p. 42). Por outro lado, a indústria do turismo, com muita eficiência sabe explorar esse mito da busca da felicidade, transformando o turista no herói contemporâneo, desenraizado e transnacional. Isso é bastante diferente da busca pela felicidade, que orientou a procura pelo santo graal no medievalismo. CERTEAU critica a ficção que é oferecida ao olhar mostrando o ser humano como participante de uma história ausente, daquilo que “não se faz”. O imaginário está no “ver”. (...) O tédio do trabalho ou a impossibilidade de fazer tem como compensação o acréscimo daquilo que se vê fazer. (...) As mitologias revelam aquilo que não se ousa mais acreditar e que por isso se busca “em imagem, e muitas vezes aquilo que somente a ficção oferece. (CERTEAU, 1995, p. 42-44). Os mitos não desapareceram perante a racionalização: Exibem em catálogos de imagens os sonhos e a repressão de uma sociedade” e invadem a publicidade. Colocados no jardim fechado do cartaz, os frutos da felicidade estão ao alcance das mãos. O discurso imaginário do comércio ocupa os muros e “a cidade contemporânea torna-se um labirinto de imagens (...) com o repertório das suas felicidades próximas. (...) uma festa dos sentidos. (CERTEAU,1995, p. 45-47) Esse é o texto da felicidade escrito pelas mídias e dado ao ser humano contemporâneo pelo olhar. Contraditoriamente, ao mesmo tempo em que os usos e costumes da vida moderna prometem prazeres, também desencadeiam enfermidades e o ser humano não quer o sofrimento e, na atualidade, tem a crença de que a ciência vai conseguir remediar tudo garantindo o estado de felicidade. 121 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 Esta reflexão não contém propriamente uma conclusão a respeito do que foi abordado. Apenas a constatação de que analisar elementos da realidade sócio-cultural e individual, através de uma perspectiva mítica, pode nos ajudar a entender melhor as estruturas da sociedade contemporânea e as influências dos processos de globalização cultural. O mito possui mão dupla, ao mesmo tempo em que simboliza a realidade humana, esta por sua vez, pode ser melhor entendida se for compreendida através de categorias míticas. REFERÊNCIAS 122 ABRAMO, Cláudio Weber. In: Caderno Mais. Folha de São Paulo. São Paulo, 7 jan.2001 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda & MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo: Moderna, 1993. CÂMARA, Airton Lima. HUMANIDADES. n.14, ano IV, Brasília, Edit. da UnB, 1987. CERTEAU, Michel de. A cultura no plural. Campinas/SP : Papirus, 1995. CHAUÍ, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2000. DICIONÁRIO BRASILEIRO da Língua Portuguesa. Encyclopaedia Britannica do Brasil. 11ª ed. São Paulo: Cia. Melhoramentos, 1989. FREITAS, Jonas Lopes. Mitos culturais e aspectos contemporâneos na alimentação da família. In: Jornal Agora, 03/09/2006, Caderno Cultura e Cia. GIANNOTTI, José Arthur. (Consultoria) Comte (1798-1857) Vida e obra.. In: Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978. GILES, Thomas Ransom. Dicionário de Filosofia: termos e filósofos. São Paulo: EPU, 1993. GLEISER, Marcelo. In: VEJA, São Paulo, 14 dez. 1994. HOJE EM DIA, Belo Horizonte, domingo, 25/02/2007. Caderno Programinha. MACHADO FILHO, Aires da Mata. Novíssimo dicionário ilustrado urupês. São Paulo: Ed. AGE, 1977. WATT, Ian. Mitos do individualismo moderno. Jorge Zahar Editor: Rio de Janeiro, 1997. HOJE, AGORA E... TRANSDISCIPLINARIDADE E MODERNIDADE? CRISTINA SILVA GONTIJO Professora do curso de Psicologia da FUNEDI/UEMG, mestre em Educação pela UNISAL e integrante do Ponto de Cultura de Divinópolis E-mail: [email protected] Resumo: As temáticas da transdisciplinaridade e a globalização podem ser consideradas ponto de pauta. O texto traz em questão a condição humana, processos de subjetivação e relações sociais. A perspectiva da Psicologia Social e Sociohistórica são referências que orientam as afirmações declaradas e trazem um pulsar emergente que poderá ser socializado e buscado como uma forma possível da práxis. Abstract: The themes of Transdiscipline and Globalization may be considered the point of view. The text questions the human condition, the processes of subjectivities and social relations. The perspectives of Social and Social-Historic Psychology are the references which support the statements and bring an emergent topic that may be socialized and researched as possible form of praxis. Palavras-chave: construção; dialética; cenário. Key-words: construction; dialetics; scenary. Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº - 6 – p. 123 a 132 – outubro de 2007 123 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 Introdução abertura do texto não é inusitada. Talvez você, leitor, possa estar cansado de escutar a publicidade de venda de carros. Vamos a uma delas. Trata-se de uma conversa entre dois homens que estão na rua e um deles comenta que, à frente, a polícia está fazendo blitz e que ele está sem carteira de motorista. O outro diz para ele se acalmar, pois nem de carro eles estão. O primeiro, então, faz um comentário de alívio. Isso dá o que pensar. Será que nos encontramos assim? A proposta de discussão neste texto constitui-se a partir de fundamentos em afirmativas de vários autores, de diversas áreas do conhecimento, que podemos resumir em um consenso; o de que sem rupturas nas relações sociais sob o controle do sistema capitalista não há possibilidade de mudança profunda nos segmentos da sociedade. Um aspecto necessário para tal situação a ser vivida por nós exige a superação da lógica desumanizadora do capital. Além das idéias, comecemos a ser governados por realizações, pela concretude das relações, nos laços sociais. A 124 Modernidade e pós-modernidade Proponho a reflexão da temática a partir do livro de Pereira (2001). O termo globalização refere-se ao processo pelo qual a vida, em sociedade e cultural, nos diversos países, é cada vez mais afetada por influências internacionais nas questões políticas e econômicas. Desenvolve-se uma espécie de mercado financeiro mundial e constatam-se empresas transnacionais. A perspectiva é cosmopolita, seres humanos que habitam grandes centros urbanos. Serão considerados aspectos da cidade, condições de vidas das populações, bem como aspectos psicossociais, culturais, educacionais, políticos, econômicos, do espaço e do tempo. Assim, temos contemplados os campos socioeconômico, político, religioso, estético, a arquitetura e urbanismo, comunicação, organização do trabalho e políticas públicas. A Modernidade (século XVI – XVIII) tem influências do Ilumi- Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 nismo (século XVII), quando o homem passa a se reconhecer, predominantemente, como um ser autônomo, auto-suficiente e universal e a se mover pela crença de que, por meio da razão, pode-se atuar sobre a natureza e a sociedade. Por esse prisma, algumas referências são: mercadorias, razão, concepção dinâmica da realidade, ciência, liberdade, progresso e organização social. Partiu-se de um abandono do eixo centralizador das idéias religiosas, dos costumes para a lei, da tradição para a norma. Rompe-se com a irracionalidade do mito, da religião e da superstição. A partir de agora, regem os princípios da Revolução Francesa (1789): Fraternidade, considerada como Estado; Igualdade, considerada como Socialismo; Liberdade, considerada como Utopia. Pereira (2001) afirma que a Fraternidade irrompeu-se na criação de países e guerras entre eles. A utopia da felicidade carrega o lema: livrai-nos do desconforto do existir. Isso aproxima-se da ideologia, ou seja, algo que possa encobrir a realidade, o que facilita a dominação de uma visão da realidade sobre outra. O sentido da Modernidade é a universalidade, a liberdade, a abundância, a individualidade e a autonomia. E a sua base é a sociedade urbana industrial. A sensação geral, conforme Pereira explicita, pode ser assim manifestada: “Abriram-se as portas do mundo para que este fosse conhecido e modificado” (2001, p. 23). Em seguida, Pereira inclui o que ele denomina de xeques-mates na razão Iluminista. Comentarei o xeque-mate ocorrido no século XIX, quando temos situações que denunciam falhas no projeto da Modernidade. São exemplos das situações a desigualdade social e econômica, chegando-se à miséria. A economia do mercado apresenta longa jornada de trabalho por baixos salários. Há tensão social e concorrência entre estados capitalistas. A ciência está voltada para resultados materiais e parece subjugar o ser humano. A partir daí, instala-se a crise, e acompanhamos a chegada de uma nova nomenclatura: a Pós-Modernidade. O pós-moderno pro- 125 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 126 põe ruptura com todos os problemas da Modernidade, mas sem abandonar totalmente os seus princípios. Como subitem, o breve século XX entra em cena, quando o capitalismo revela sua natureza cruel, da exclusão social, concentração de renda e coisificação das relações humanas. Por sua vez, temos a crise do capitalismo e do socialismo, o desemprego em massa, dentre outros fatos. O capitalismo, nos anos 1960, mostra-se sob a forma de insatisfação constante, soberania do consumidor, mistura de publicidade e arte, persistência da elite como guia dos desejos da massa. Nos anos 1970, o neoliberalismo é a marca da centralidade total no mercado, privatização, da empresa estrangeira, do capital estrangeiro, enfim, da economia global. O neoliberalismo defende a absoluta liberdade de mercado e uma restrição à intervenção estatal sobre a economia. No campo do saber, Pereira escreve que: “O moderno consegue transformar os especialistas em seres sem inteligência e os hedonistas em apaixonados sem coração” (2001, p. 34). Adiante, ele cita o livro A estrutura das revoluções científicas, de Kuhn, que critica o positivismo, o evolucionismo e o determinismo na ciência e no conhecimento. Segundo o autor, A crise pode ser ainda mais profunda. Assumindo o conceito de paradigma em sentido mais amplo, como um determinado modo de pensar, de agir, capaz de explicar os dados fundamentais desse momento e de permitir prospecções de futuro, percebe-se que o paradigma criado no Ocidente a partir da Modernidade entrou em crise (2001, p. 55). Com a ciência moderna, decaiu o senso comum. O homem não é mais ativo e participativo do cotidiano, deixa isso para os experts. Aqui, Pereira cita o sociólogo Boaventura de S. Santos, dizendo de um novo saber científico. Agora, podemos dizer de um novo campo de forças. Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 Um campo de forças é a educação popular, o trabalho comunitário, que não pertence a uma única disciplina ou campo de saber. É regido pelo desejo de resistir ao domínio do status quo. Movimentos populares prezam pela mobilização de segmentos da sociedade, visando à transformação social, a novas e originais formas de subjetivação. Predomina o trabalho com classes sociais menos favorecidas. De acordo com Pereira, a educação popular é toda ação coletiva – que visa à passagem da imobilidade ou passividade à mobilidade organizativa e participativa. Implica em defender os direitos ameaçados, em conseguir os objetivos do coletivo, reeducar a sociedade com novos valores, desfazendo os padrões hegemônicos, preconceituosos e dominadores de uma determinada classe sobre outra (2001, p. 61). Alguns pontos desse paradigma podem ser ressaltados. São eles a alteridade, movimentos contra a opressão, diálogo, ética e democracia no processo de construção de relações sociais, politização na relação educador e educando, estímulo à participação e mobilização social, a história vista como construção do cotidiano, pelas pessoas, valorização da vida e produção conjunta do conhecimento. Nesses termos, “a cultura nesse contexto é entendida como trabalho produtivo do homem na transformação de um saber. É a natureza transformada e ressignificada” (PEREIRA, 2001, p. 65). “É com essa pluralidade que cada um de nós é chamado a conviver” (PEREIRA, 201, p. 72). Por outro lado, “há vários tipos de opressão: gênero, étnica, ecológica, religiosa, política, habitacional, comunicacional, psíquica” (PEREIRA, 2001, p. 54). A maior parte dos movimentos populares significativos estão voltados para a introdução da diferença. Na FUNEDI, via Departamento de Extensão, temos o Ponto de Cultura de Divinópolis, atualmente vinculado ao Ministério da Cultura (MINC), pelo Programa Cultura Viva, cujo objetivo geral é a formação de agentes culturais 127 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 128 juvenis, acolhendo várias manifestações culturais a que eles estão ligados. Há uma crescente intenção nacional de reconhecer os movimentos populares, o protagonismo de seus agentes e instigar a construção de uma rede entre os vários pontos, com expansão a outros países. Nesse aspecto, o transdisciplinar é o movimento vivo das pessoas com seus saberes e fazeres, expressos e coabitados com a alteridade. Ainda com Pereira (2001), vemos os fundamentos do trabalho transdisciplinar com movimentos populares. Ele questiona se os movimentos populares tiveram baixa ao longo da Modernidade e como estão eles hoje. A resposta é que estamos na era considerada do vazio. Se cairmos nessa falácia, nos perderemos. Se mirarmos com o olhar transdisciplinar, podemos transformar o ser humano e suas relações. Segundo Pereira, “a Educação Popular nunca poderá funcionar sem grandes esperanças e paixões, mesmo quando esses ideais são parcialmente derrotados e exatamente por isso, é possível continuar lutando” (2001, p. 76). Podemos conduzir o pensamento a algo que habita no subterfúgio do discurso, que mesmo assim se explicita na voz julgadora de que não temos mais futuro. Para que, então, criar a realidade? Deixe que assim se faça, ou seja, que se cumpra o destino. Esse é o pensamento do lugar comum. Ao longo do texto, somos convidados ao incômodo e acrescentese a isso uma importante pergunta que nos toca: como o expert se relaciona com a comunidade, em colaboração com o coletivo? Por fim, muitos pensamentos pairam em nosso imaginário. O imediatismo não suporta a lentidão dos resultados. A perspectiva sociohistórica A perspectiva sociohistórica na Psicologia entende a experiência humana como atividade realizada socialmente pelos homens, produzindo a sua existência. A atividade dos homens implica na produção de idéias e representações sobre elas, as quais refletem sobre a vida, ou seja, nas ações e relações (GONÇALVES, 2001). Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 As idéias, portanto, modificam as ações dos homens e as ações dos homens, por sua vez, modificam as idéias. Trata-se da forma dialética de visão da realidade. A noção de sujeito na Modernidade afirma que o homem é um ser individual, racional e natural, bem como é um ser social, ativo e histórico. O fundamento metodológico dessa perspectiva aponta para a base da contradição e a concepção materialista de sujeito e objeto. A superação da dicotomia entre subjetividade e objetividade está presente nesse método. Com o desenvolvimento das forças produtivas capitalistas, o indivíduo é mais focado como um ser capaz de decidir ou escolher. Sua forma prioritária de apresentar-se na sociedade é como produtor e/ ou consumidor de mercadorias. O liberalismo, com o ponto de vista burguês, enfatiza a liberdade e igualdade do homem, tal como situada na Revolução Francesa, e ainda afirma que, apesar de ser igual, o homem é um ser individual. E mais, que tal adversidade pode ser resolvida pelo caminho da fraternidade. Através da visão sociohistórica, podemos observar que as construções sociais estão em um contexto historicamente demarcado, são produções humanas. Na Psicologia, Vigotski inaugura essa visão. A Psicologia Sociohistórica vai propor, então, a partir de Vigotski, que se estudem os fenômenos psicológicos como resultado de um processo de constituição social do indivíduo, em que o plano intersubjetivo, das relações, é controvertido, no processo de desenvolvimento, em um plano intra-subjetivo. Assim, a subjetividade é constituída através de mediações sociais (GONÇALVES, 2001, p. 50). Por sua vez, e ao nosso alcance, a linguagem faz esse papel de mediação social. Também é ela que melhor representa a relação entre objetividade e subjetividade. Na linguagem, está presente tanto o signo quanto a atribuição de significados e o próprio processo de apropriação do significado social. 129 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 130 Algumas características do pós-moderno podem ser expostas. O pós-moderno declara a falência da Modernidade, em especial as versões liberal e marxista, cujas metanarrativas buscam explicações únicas para a diversidade. Pós constitui-se como a possibilidade de um novo tempo histórico, que somente nega o Moderno, não dialeticamente (GONÇALVES, 2001). O Pós afirma que as idéias de progresso e transformação da sociedade não cabem mais, assim como projetos coletivos totalizantes. Nem mesmo a consolidação da sociedade tecnológica e a análise de caráter das especificidades. O Pós declara que existe um porém; que a racionalidade e a ciência não são as únicas referências, e que a linguagem vem predominando, mas de forma arbitrária, sem ligação com as situações reais. Com tal poder da linguagem, até o sujeito desaparece, especificamente com o capital multinacional, cuja identidade das diferenças são naturalizadas, e há uma declaração da invisibilidade de resistências coletivas. Fortalecem-se noções de imediato, efêmero e local, com uma obediência máxima ao lucro e à acumulação e ao descompromisso com qualquer coisa que não seja a produção de mercadorias. Há um novo tempo-espaço e nova consciência por se construírem. Cenas, no cenário Nesse momento, evoco dois atos. O ato um consiste em uma criança que conta um fato que escutou de seu pai. O pai e seu colega, ambos fazendo serviço de ajudante de pedreiro em uma casa, viram a comida do cachorro, que continha bacon, e comentam a marca da ração e o preço da mesma, bem como o tamanho do pacote. Estando com fome, comeram a tal comida do cachorro. Nesse momento, questiono à criança se ela comeria a ração, e a resposta é afirmativa, e acrescenta que deve ser muito gostosa e com bacon (...). O ato dois apresenta dois fatos correlacionados. São duas cenas próximas no tempo e no espaço. A primeira é a de um cachorro de raça cambaleando e machucado de tanto cair. Ele estava envenenado por alguém que lhe deu o veneno. A segunda cena é a de um homem de bicicleta que caiu e machucou o seu rosto. Ele levantou- Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 se rapidamente e caiu novamente. Estava bêbado; embriaguez causada pela bebida que ele próprio se deu. Como nos posicionamos perante esses atos? Nos encontramos passivos, como quando assistimos à televisão? E, mesmo passivos quando assistimos à televisão, depois vamos repetir alguns atos que, muitas vezes, não correlacionamos como sistemas, ou seja, como um continuum. A fim de conclusão Tantas coisas estão acontecendo, em várias partes do mundo, os seres humanos revelando suas histórias, temos várias cenas e atos, cada vez mais disponibilizados pelos meios de comunicação. A partir da idéia de globalização pode-se argüir sobre a intenção de que haja uma globalização para os sentimentos, pensamentos, enfim, para o cotidiano. Por sua vez, temos o referencial teórico abordado como foco para a práxis, cuja tarefa é nossa. Nós somos seres transdisciplinares. Se o conhecimento não é, justifica-se ser ele um dos aspectos de nossa expressividade-representatividade. Quanto à subjetividade, aprendi com a Psicologia que podemos nos surpreender, estranhando-nos, mais do que aos outros, que podemos nos re(encontrar), mesmo perguntando: sou eu? Conforme relata uma mãe sobre o medo de um filho de seis anos, em que ele pergunta a ela: “Mamãe, é você mesmo?” Escrever, ou melhor, ter o desejo de escrever, mas encontrar-se em dificuldade pode ser mais um dos sinais da Modernidade: a visibilidade. Escrever, tornar-se visível, dar visibilidade a... Se passar pela comissão que seleciona os textos, ótimo! No lançamento da Revista, melhor ainda. E depois? A escrita – e seu conteúdo, no contexto aqui abordado, consome-se, ou melhor, utilizando-se de um ditado popular: não liga não, bom ou mal, logo passa! Quantas vezes esse logo passa, adia-se! Do século XVI até hoje, na História que logo passa, podem ser feitos alguns apontamentos. 131 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 REFERÊNCIAS 132 ANTÔNIO, Severino. Educação e Transdisciplinaridade: crise e reencantamento da aprendizagem. Rio de Janeiro: Ed. Lucerna, 2002. BOCK, Ana M. Bahia; GONÇALVES, M. Graça M.; FURTADO, Odair (orgs.) Psicologia sócio-histórica: uma perspectiva crítica em psicologia. São Paulo: Ed. Cortez, 2001. Cadernos da Pós-Graduação. CONTEMPORANEUM. Ano 10. Nº 05 – outubro de 2006. Caderno de Estudos Acadêmicos. III Simpósio de Psicologia da UEMG. Os desafios da Psicologia no século XXI. Nº 3 – agosto de 1998. GONTIJO, Cristina Silva. Vozes de autoria: o corpo e o nascimento da escrita. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 2005. MÉSZÁROS, István. A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2005. PEREIRA, William César Castilho. Nas trilhas do trabalho comunitário e social: teoria, método e prática. Belo Horizonte: Vozes – PUC Minas, 2001. OCIDENTE VERSUS ORIENTE, DEMOCRACIA VERSUS DESPOTISMO: HERÓDOTO NO CINEMA CONTEMPORÂNEO FLÁVIA LEMOS MOTA DE AZEVEDO Professora do curso de História da FUNEDI/UEMG E-mail: [email protected] THIAGO EUSTÁQUIO DE ARAÚJO Aluno do curso de Licenciatura em História da FUNEDI/UEMG E-mail: [email protected] Resumo: Podemos dizer que o filme “300,” um dos últimos sucessos de bilheteria, foi mais um produto da “febre épica” que assola Hollywood desde “Gladiador”. Este recuo a temas da Antiguidade, agora realizado pela industria cinematográfica, talvez se explique por uma necessidade da Ocidente contemporâneo de reencontrar suas bases formadoras, mesmo que isto se faça por meio da “fabrica de sonhos”. Uma incursão sobre o relato de Heródoto nos conduz a “febre épica” de Hollywood, especialmente ao filme “300”, e os possíveis sentidos desse grandioso investimento em momentos fundadores da cultura ocidental. Passa despercebido aos olhos do público que por detrás do filme encontra- mos o relato histórico de Heródoto. A ambição, a loucura e a incompreensão do déspota oriental, Xerxes, assim, como a bravura e a obstinação grega na defesa de sua liberdade, do seu regime democrático, foram descritas pelo ‘pai da história’.Tais pares são facilmente percebidos na cena política internacional, principalmente nas guerras contemporâneas em nome da liberdade e democracia, contra ‘bárbaros’ fundamentalistas e insanos, assim como na tentativa de levar a liberdade aos povos e nações que a desconhecem por viverem sob o jugo de tais déspotas. Palavras-chave: Heródoto; democracia; cinema; representação. Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº - 6 – p. 133 a 146 – outubro de 2007 133 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 Abstract: We can say that “300”, the last sensation in screens of world, was a production of “epical fever” who seized Hollywood since “Gladiator”. This pull back to Antiquity, now consumate by movies, maybe be explain by an ocidental coavel need to find again formation bases, even this happen in cinema´s dream. A promenade by Herodotus conduce ourselves to “epical fever” of Hollywood, especially to “300”, and the possibles reasons of this lofty investiment on moments who coperated to western culture foundation. The crowd can´t see that behind the movie hides Herodotu´s ac- 134 P count. The ambition, the madness and the incomprehension of oriental despot, Xerxes, as well as, the prowess and greek obstinacy in defense of liberty, of democracy was describe by the “History Father´s”. These couples are clear note in political modern scene, especially in coeval wars in name of democracy an liberty against insanes and radicals ‘barbarians’, just as, the try to carry on to all people an nations the idea of liberty, for all who disown it living under despot´s yoke. Key-words: Herodotus; democracy; movies; representation. odemos dizer que o filme “300,” um dos últimos sucessos de bilheteria, foi mais um produto da “febre épica” que assola Hollywood desde “Gladiador” e que gerou frutos como “Tróia” e “Alexandre” para não citar os filmes de menor alcance. Este recuo a temas da Antiguidade, agora realizado pela industria cinematográfica, talvez se explique pela própria carência de sentido que aflige nossa sociedade pós-moderna e globalizada; uma necessidade do Ocidente reencontrar suas bases formadoras, mesmo que isto se faça por meio da “fabrica de sonhos”. Esse reencontro do Ocidente com as suas bases se faz num contexto político contemporâneo extremamente interessante, pois atualmente a maior parte dos discursos políticos ocidentais evidenciam a proeminência da organização democrática, e a partir desta constatação posiciona-se como o grande arauto e defensor da civilidade modelar: a democracia deve ser implementada e garantida numa perspectiva global. Este paradigma ocidental, tão proclamado, naturalizase aos olhos dos seus cidadãos de forma que pouco se reflete sobre a sua historicidade, assim como sobre a sua real implementação, Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 mesmo que nos circunscrevamos ao mundo ocidental. Afinal, nos perguntamos o que é isso que atualmente chamamos de democracia? Quando e como é auferida a esta idéia a solenidade de paradigma de civilidade global? Primeiramente podemos destacar o significado da palavra de origem grega onde demos denota povo e krátos, poder, isto é poder do povo. No contexto cotidiano político dos cidadãos atuais assistimos a tendência na ênfase no conteúdo de um ‘poder’ de decisão dos mesmos sobre os destinos do seu país, e esse ‘poder’ efetiva-se no momento das eleições, assim como salienta-se a igualdade de direitos e liberdade de expressão. Podemos dizer que são sobre esses três elementos que se assentam as bases para a compreensão dos discursos destinados ao grande público sobre a noção de democracia contemporânea. Christian Meier inicia seu livro La naissance du politique discutindo exatamente a diferença existente entre a atual aplicação desse termo e seu significado para os gregos. O termo política designava ali tudo que dizia respeito aos negócios da pólis, o que segundo Christian Meier “era idêntico à comunidade cívica, fundada e constituída por todo o corpo político” (MEIER, 1995, p. 13). Ou seja, referia-se ao que era comum, ao que concernia a todos os cidadãos. Assim sendo, o político pode ser, primeiramente, visto pela oposição entre o público e o privado. As reflexões de Hannah Arendt esclarecem essa distinção. Para entender a distância entre as duas esferas, para os gregos, deve-se considerar que, de acordo com a filósofa, o ambiente familiar era o da necessidade, ligada ao suprimento das demandas biológicas, ao passo que a vida pública era o espaço da liberdade. Isso era tão claro que “os filósofos gregos tinham como certo, por mais que se opusessem à vida na pólis, que a liberdade situa-se exclusivamente na esfera política; que a necessidade é primordialmente um fenômeno pré-político, característico da organização do lar privado”.(ARENDT, 2000, p.40). A política ocupava, assim, na Grécia uma posição central, pois estabelecia entre os cidadãos um vínculo superior aos laços familia- 135 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 136 res. Nesse tipo de vínculo, os membros da comunidade cívica entravam como pares, pois na cidade inexistiam, em princípio, governantes e governados. Nas palavras de Christian Meier “nesta ordem artificialmente criada, relações totalmente diferentes são obtidas pelos seus membros: todos têm direitos iguais, e a maioria dos cidadãos possui a autoridade suprema” (MEIER, 1995, p.40). Mas, um cidadão só era verdadeiramente digno de ser chamado assim na medida em que participava ativamente da vida da pólis, e é nesse homem político que se concretizam as mais elevadas qualidades morais. Assim, o termo democracia designava uma realidade completamente diferente das até então experimentadas por outros povos, e até mesmo pelos gregos. A radical inovação grega da democracia residia no fato de que, na sua organização, “a política é, por outro lado, o único lugar em que se decide o poder: o que define a pólis é que, contrariamente à tribo ou às grandes monarquias, contrariamente à comunidade familiar, ali ninguém possui a priori o poder” (MEIER, 1995, p.20). A palavra política – tà politiká – além de se referir a essa experiência radicalmente diferente, designava uma constituição justa. Quer dizer que, além de indicar um tipo de experiência de vida em comunidade, também a identificava com um modelo eqüitativo. A partir dessas considerações sobre a democracia na Grécia podemos ver como a nossa experiência atual é radicalmente diferente, mesmo que sob o mesmo nome. Primeiramente devemos destacar que para os gregos a dignidade residia na participação ativa nas decisões sobre o destino da comunidade, e que só assim poderiam ser verdadeiramente cidadãos. Hoje, cada vez mais assistimos a um desencantamento da política, isto é a política é uma esfera cada vez mais distante e desinteressante aos olhos do cidadão comum. Este, na maior parte do tempo, só sofre a ação política, não participa dos debates e das decisões das medidas, estas estão sempre fora do seu âmbito de ação, principalmente pelo hiato estabelecido entre aqueles que elegem e os que são eleitos, isto é entre os governados e os governantes. Em segundo lugar devemos destacar que a ‘sensação’ de liberdade hoje faz, cada vez mais, parte do mundo privado e não Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 do público. Este último é percebido pelos cidadãos como o reino da imposição, e conseqüentemente pela esfera da necessidade. A democracia, enquanto paradigma de civilidade, é uma experiência recente, característica da segunda metade do século XX, isto considerando que estamos lidando com a noção de democracia a qual enfatiza a universalidade de cidadania, igualdade de direitos e a liberdade de expressão. Já quanto a sua difusão no imaginário ocidental faz parte do contexto da Guerra Fria, isto é uma divulgação da superioridade da experiência ocidental, capitalista e liberal em oposição ao mundo oriental, socialista e autoritário. No entanto, após a queda do Muro de Berlim esse binômio perde seu sentido. No final do século XX e início do XXI novos atores entram em cena. Podemos dizer que a Guerra do Golfo de 1991 e, dez anos mais tarde, os ataques terroristas de setembro de 2001 estabelecem os novos inimigos da democracia global: os fundamentalistas e terroristas que agem sob a bandeira islâmica, são estes os novos ‘bárbaros’ do século XXI. Inaugura-se, então, a representação e o imaginário contemporâneo desses novos personagens hostis à democracia, incapazes de compreender a experiência admirável da liberdade e do bem comum. Novamente o ‘mundo’ se vê envolvido numa cruzada contras os bárbaros, contudo é importante frisar que essa experiência não é nova, mesmo em relação aos muçulmanos, podemos destacar as Guerras empreendidas contra esses infiéis durante a Idade Média. Na verdade podemos novamente recorrer à Grécia antiga onde encontramos o mais antigo relato histórico ocidental, pelo menos conhecido, sobre essa velha oposição entre Ocidente e Oriente. Aquele elaborado no século V a.C. pelo historiador grego, Heródoto de Halicarnassos. As investigações que resultaram na composição de sua História foram motivadas pelo principal evento histórico do século V a.C.: as Guerras Médicas. Estamos falando da primeira peleja histórica, registrada, entre Ocidente e Oriente, fundamental tanto para a formação de uma identidade cultural grega quanto ocidental. Este conflito que indispôs gregos e persas imprimiu profundas mar- 137 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 138 cas na memória helênica, sendo a origem de posteriores e significativas transformações no mundo grego. Foi, por exemplo, a partir das Guerras Médicas que Atenas firmou sua soberania, tornando-se a referência artística, cultural e intelectual do Mediterrâneo. Para além de um simples enredo bélico, de um embate entre lanças e flechas, a História de Heródoto põe em evidência as diferenças que marcam a cultura grega em oposição ao universo oriental. Na medida em que Heródoto criou para seus compatriotas uma representação do “outro” do “bárbaro”, não deixa de confrontar duas culturas e ao mesmo tempo duas concepções políticas divergentes, e a questão do poder é o elemento que estrutura e perpassa toda a narrativa de Heródoto. A problemática do poder político atravessa toda a narrativa herodotiana e fornece a conexão entre as suas diversas partes. Como o centro do interesse da investigação foi a grandiosa guerra travada entre o império persa e as cidades da Hélade, o relato do historiador opõe duas formas de poder: o despotismo monárquico, característico do mundo bárbaro, e o regime isonômico da pólis, baseado na justiça e na lei. A descrição dessas formas, efetuada ao longo da narrativa, assenta na concepção grega de ordem universal (kósmos) e da condição humana. Os princípios que governam essas duas ordens, assim como as relações entre ambas, constituem ou fornecem os elementos da causalidade pela qual Heródoto buscou compreender os eventos da guerra. Como se trata de categorias e princípios de uma visão global de mundo, compartilhada pelos gregos da época, podemos reconhecê-los em outras criações culturais helênicas contemporâneas, especialmente na poesia trágica. Todas as modificações pelas quais o mundo grego passava não se restringiam às formas de pensar. Estas correlacionavam-se às transformações estruturais pelas quais passava a pólis grega. Foi na primeira metade do século V que Atenas se tornou hegemônica na Hélade e a democracia ateniense atingiu seu apogeu. Saiu do conflito com a Pérsia engrandecida, pois partiu dela a iniciativa da união dos gregos em prol da defesa contra os bárbaros. Com o fim da guerra, a pólis dos atenienses emergiu como a grande vitoriosa. A Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 política ateniense, então, mostrou, mais do que em qualquer outro momento, a vocação dessa cidade para liderar o mundo grego. Heródoto estabelece como objetivo do seu relato o registro dos grandes e maravilhosos feitos dos gregos e bárbaros, para que esses não se perdessem na memória. Contudo, deve-se ressaltar que entre essas ‘maravilhosas empresas’ a que ele se refere, acham-se incluídos não só os costumes dos vários povos envolvidos na expansão persa, como também os grandes feitos durante o conflito. Seria, mais especialmente o sistema político helênico, e em particular a democracia ateniense, passível de se incluir nessa categoria das ‘empresas maravilhosas’? Seria a forma grega de organização também uma fonte de espanto e admiração do autor? Nesse caso, o exótico, o maravilhoso e admirável residiriam no fato de os gregos terem se organizado de uma forma completamente singular, estranha a todos os outros povos conhecidos. Assim, a descrição dos nómoi, que consome tanto espaço na narrativa herodotiana, teria a função de realçar essa singularidade helênica. Por se apresentarem de uma forma completamente incomum é que os gregos confundiriam os persas com o seu comportamento nada usual. Xerxes, levando em conta apenas o seu conhecimento da conduta do seu povo e dos outros que havia submetido, não pôde acreditar que eles ousassem enfrentar seu invencível exército (Heródoto, VII, 101). Não é de se admirar que o rei, advertido pelo grego Demárato, não conseguiu alcançar o significado de suas palavras: “não me perguntes quantos são para atreverem-se a agir assim; mesmo que sejam apenas mil eles lutarão contra ti” (Heródoto, VII, 102). Essa incompreensão do comportamento alheio é dada como um dos motivos que levaram à derrota persa. Mas, também é possível dizer que a vitória dos helenos, principalmente em Salamina, deveuse à astúcia grega. Estando em enorme desvantagem numérica, o que os fez ter sucesso foi a estratégia ardilosa. Esta condiz muito bem com a capacidade grega de surpreender, de causar espanto e, até mesmo, de maravilhar os persas. A astúcia empregada na bata- 139 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 lha de Salamina, e a dificuldade persa de compreender sua conduta, são tanto mais marcantes pelo fato de que os gregos, segundo informa o próprio Heródoto, na verdade encontravam-se alarmados com a situação, sentindo-se mesmo à beira de um desastre. As coisas só se inverteram devido ao ardil arquitetado por Temístocles, que enviou aos comandantes persas uma mensagem com o seguinte recado: O comandante dos atenienses, movido por seus bons sentimentos para com a causa do Rei, e desejoso de ver triunfar vossas armas em vez das armas dos helenos, mandou-me sem ser visto pelos outros helenos para dizer-vos que os helenos, amedrontados, pretendem pôr-se em fuga, e que tendes agora a oportunidade de realizar o mais belo feito de todos se não os deixardes escapar. Eles não estão de acordo entre si e não vos resistirão mais. (Heródoto, VIII, 75). 140 A credulidade persa diante dessa mensagem é espantosa, mas confirmada por Heródoto na continuação da narrativa e nos fatos que se seguiram. Os bárbaros mostram nesse episódio que realmente não tinham compreendido nada a respeito da conduta helênica. Nem sequer por um momento desconfiaram da falsidade da mensagem enviada, apesar de já estarem bem cientes da obstinação, da resistência dos adversários. Antes, mudaram toda a estratégia, de acordo com o que estes esperavam, ficando completamente vulneráveis em pleno mar Egeu. Sua incrível ingenuidade diante do estratagema helênico sugere que o relato de Heródoto deliberadamente dramatizou a confusão do soberano persa, a fim de realçar a singularidade dos gregos e os contrastes de comportamento entre os dois povos. A mesma estranheza é notada com relação aos valores políticos. Xerxes afirma, de acordo com Heródoto, que não esperava valentia de um exército de homens livres, não comandados e conduzidos pelo chicote de um senhor. Acostumado a lidar com súditos, julgava que o esforço guerreiro decorria menos da bravura dos soldados que do Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 temor destes ao chefe. Foi incapaz de perceber que as razões dos gregos eram opostas. Eram bravos e valentes, justamente, por serem livres. E esse ponto fica claro no diálogo entre os Lacedemônios e Hidarnes, no qual os primeiros dizem ao comandante persa: “Conheces a sujeição, mas ainda não experimentastes a liberdade, e não sabes se ela é doce ou não. Se a tivesses experimentado não nos aconselharias a lutar por ela apenas com lanças, mas até com machado” (Heródoto, VII, 135). É esse o espanto, o deslumbramento que causa a constituição política grega. Os persas e os bárbaros em geral, para Heródoto, não sabiam o significado da palavra liberdade, pois mesmo que seu território não se achasse sob o domínio de outro povo, estavam sempre em sujeição a seu monarca. Ao longo de toda a narrativa herodotiana, a descrição dos nómoi dos vários povos bárbaros mostra que nenhum deles conhecia a liberdade desfrutada pelos gregos, pois todos possuíam uma constituição política monárquica ou tirânica, e, portanto, despótica. Em contraste, os helenos só se sentiam sujeitos à lei: “de fato, sendo livres, eles não são livres em tudo; eles têm um déspota – a lei – mais respeitada pelos lacedemônios que tu por teus súditos” (Heódoto, VII, 104). Embora entre os gregos se encontrassem casos de tirania ou de monarquia, a tirania sempre acabava abolida e as realezas helênicas – por exemplo a espartana – possuía um caráter diverso da monarquia bárbara, por serem os poderes dos reis limitados tanto pelas assembléias existentes quanto pelas leis. Quase todas estas, entretanto, foram abandonadas e substituídas por regimes mais livres e justos. Enfim, sendo os gregos o único caso de povo livre em toda a História, não é descabido pensar que a narrativa os apresenta como motivo de espanto, de admiração. Em vez dos bárbaros, seriam eles os exóticos. Na perspectiva grega do século V a.c, o poder bárbaro conheceu sua expressão na realeza, considerada, em conjunto com a tirania, uma forma despótica e irracional de poder. Segundo François Hartog, o discurso sobre o despotismo desenvolveu paralelamente ao da democracia na Grécia e Heródoto, por sua vez, contribuiu para a 141 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 142 construção desta imagem carregada do despotes (soberano) enquanto transgressor das normas e tradições sociais. A ambição imperialista dos monarcas e tiranos de Heródoto é representada na forma de uma loucura arrebatadora que compromete a capacidade de discernimento. Quando acometidos pela insanidade não conseguem mais prever as conseqüências de seus atos, muito menos reconhecer os limites de sua condição humana. O que para o pensamento grego da época implicava em punição. O despotes (soberano) se impõe pelo uso arbitrário da força; representado como um senhor de escravos, não hesita em fazer uso do açoite para inspirar a obediência. Seus exércitos são conduzidos à guerra sob o “estalar do chicote”, as tropas persas são comparadas aos bandos de animais gregários que seguem passivamente o condutor. Aquele se lança numa busca insensata e gratuita pelo poder que quase sempre termina num fim trágico. Uma vez afogado na própria loucura, que por sua vez é conseqüência da cobiça pelo poder, não consegue mais sair e por fim acaba arrastado a hybries (desmedida) e daí ao infortúnio. O par monarquia-tirania encontra seu inverso na democracia, considerada o símbolo da justiça e do comedimento (sophrosyne); os gregos antigos reconheciam nas leis (nomoi) e somente nestas o único soberano inconteste. Hartog questiona se no lugar do rei os gregos não estariam colocando o nómos. “De modo algum” responde ele, pois “instaurar o nómos é expulsar o tirano. A lei não mutila, sendo mesmo a negação da transgressão, é sim aquilo que substitui a hybries pela medida” (HARTOG, 1999, p.336). Na História assim como no filme “300”, o que move os gregos é o desejo irrestrito de liberdade, o que os faz entrar nas tirremes (navios) ou conduzi-los aos campos de batalha não é o constrangimento por parte de um senhor, mas a ânsia de livrar a Hélade do jugo indecoroso. Xerxes não compreende isto e subestima a coragem dos gregos; acredita não estarem à altura justamente por não possuírem um soberano capaz de conduzi-los, ou coagi-los, à vitória. Para Heródoto a incompreensão dos persas foi, justamente, o motivo de sua Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 perdição deixando-se enredar numa armadilha; a fragorosa derrota infligida ao rei Xérxes por uma força numericamente inferior, adquire assim valor simbólico, punitivo. Essa incursão sobre o relato Heródotiano nos conduz a “febre épica” de Hollywood, especialmente ao filme “300”, e os possíveis sentidos desse grandioso investimento em momentos fundadores da cultura ocidental. Passa despercebido aos olhos do público, atordoado com a sobrecarga de efeitos especiais e com a transformação “bárbara” do ator Rodrigo Santoro, que por detrás do filme encontramos o relato histórico de Heródoto. A ambição, a loucura e a incompreensão do déspota oriental, Xerxes, assim, como a bravura e a obstinação grega na defesa de sua liberdade, do seu regime democrático, foram descritas pelo ‘pai da história’. Tais pares são facilmente percebidos na cena política internacional, principalmente nas guerras contemporâneas em nome da liberdade e democracia, contra ‘bárbaros’ fundamentalistas e insanos, assim como na tentativa de levar a liberdade aos povos e nações que a desconhecem por viverem sob o jugo de tais déspotas. A oposição estabelecida entre gregos e bárbaros por Heródoto diz respeito primeiramente às diferenças culturais entre esses dois povos, assim como as diferenças contemporâneas, que culminam com as diferentes organizações políticas. Esse tipo de interferência é comum ao pensamento grego. Encontramo-la tanto em Heródoto como em Aristóteles, que assim a exprime: Cada povo recebeu da natureza certas disposições e a diferença dos caracteres é facilmente reconhecível se observarmos os mais famosos estados da Grécia e as diversas partes do mundo. (...) Os asiáticos são mais inteligentes e mais próprios para as artes, mas nem um pouco corajosos, e por isso mesmo são sujeitados por todos e estão sempre sob o domínio de algum senhor. Situados entre duas regiões, os gregos também participam 143 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 de ambas. Em sua maioria, têm espírito e coragem; conseqüentemente, conservam a sua liberdade, e são muito civilizados. Poderiam mandar no mundo inteiro se formassem um só povo e tivessem um só governo. (Aristóteles, III, 1288a). 144 Para além das diferenças culturais, Aristóteles reconhece a influência da natureza na determinação do caráter de cada povo. Essa ascendência dos fatores naturais sobre as instituições é essencial para entendermos a conduta dos povos, segundo o filósofo. Em função dela, os asiáticos tendiam para a adoção de regimes em que o poder se concentrava nas mãos de um senhor, enquanto os gregos eram mais propensos a adotar formas de governo onde reinava a liberdade. Mas, em Aristóteles, essa natureza, ou talvez suas características peculiares, diziam respeito tanto a fatores naturais quanto às determinações culturais e de costumes: talvez se possa exprimir melhor essa diferença a partir da definição de Darbo-Peschanski (1998, p. 60), que indica que a organização mental e psicológica dos povos, como determinante para a sua particularização, que ditava a inclinação dos povos para um ou outro regime, não era entendida somente em termos físicos. Abrangia também a sua característica constituição psíquica, como se vê na seguinte apreciação: “Como os bárbaros são naturalmente mais submissos que os helenos, e os asiáticos em geral mais que os europeus, eles suportam o poder despótico sem qualquer queixa. Estes governos monárquicos, portanto, são de natureza tirânica pelas razões apontadas.” (Aristóteles, III, 1285b). Se, para o filósofo, a forma de governo adotada pelos bárbaros decorria da própria natureza destes, o que a caracterizava era a injustiça. E a injustiça, por sua vez, resultava da ausência de leis. Novamente em relação à cena contemporânea o que percebemos é próximo desta descrição, pois os orientais, na verdade os fundamentalismos islâmicos, também são representados como povos que desconhecem as leis para o bem comum, principalmente as democráticas. Sob o comando de Xerxes e sob o seu reinado o império persa se lança ao seu mais impetuoso desafio. No relato herodotiano, esse Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 desafio, personificado pela Hélade, denota a possibilidade de transpor geograficamente o território da Ásia, o Oriente, e estabelecer pela primeira vez um império oriental na Europa, ou seja, na porção ocidental do mundo. Além disso, o consentimento de Xerxes significa o confronto entre os povos com costumes, com pressupostos culturais radicalmente diferentes, o que implica uma distinção essencial entre o conflito greco-pérsico e as guerras de conquista antes empreendidas pelos bárbaros. Pela primeira vez enfrentaram-se duas formas inconciliáveis de poder político, a soberania isonômica das cidades helênicas e a dominação irrestrita da monarquia meda. A figura de Xerxes, assim, tem um peso especial, que o destaca frente aos outros personagens que, tal como ele, encarnam o destino funesto dos homens que almejaram um poder exorbitante. Nele se manifesta, mais plenamente que em todos os outros a inconsistência intrínseca ao despotismo monárquico, decorrente do caráter aberrante dos regimes injustos e desregrados. É esse o sentido do espantoso revés sofrido por sua investida contra a Hélade. A impecável vitória dos gregos expõe, como nenhum dos insucessos experimentados pelos antecessores de Xerxes, a fragilidade verdadeira dos impérios orientais. Na verdade, a narrativa herodotiana muitas vezes nos dá a impressão de que existe um anátema, uma maldição, ou seja, que a loucura e os crimes de seus personagens despóticos provêm de uma maldição dos déspotas. Esse efeito produzido pela trama herodotiana aproxima-a do enredo trágico, pois a própria idéia de punição necessária e da ruína fatal dos que almejaram e exerceram um poder excessivo indica um parentesco do relato herodotiano com a tragédia. É oportuno lembrar, em apoio à suposição desse vínculo, que a primeira peça de Ésquilo, Os Persas, tematizou justamente o malogro da expedição de Xerxes. Isso, porém, não quer dizer que a história se originou na tragédia; significa, antes, como assinalou Hartog, que “tragédias desse tipo criam um campo de aceitação no qual se torna possível, para qualquer um, contar para seus contemporâneos as guerras” (HARTOG, 1999, p.337). 145 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 Tomando como referência a contemporaneidade, soa irônico o modo como as coisas são colocadas por Heródoto: a “frágil” Grécia, apegada aos ideais de liberdade e justiça, faz frente às hostes imperialistas de Xérxes. O jogo na modernidade, entre o ocidente democrático e os déspotas orientais, ainda parece bem próximo daquele descrito por Heródoto. E, não é fortuito o fato de os “300” ser uma super produção estadosunidense, assim como o desfecho desta “nova” e ao mesmo tempo “velha” luta pode ainda nos surpreender com o mesmo teor catártico de uma tragédia grega. Assim, como a estranheza e o espanto diante do comportamento do ‘outro’ e do ‘diferente’, fundamentais para o efeito produzido pelo relato, são partes integrantes dos desencontros contemporâneos. BIBLIOGRAFIA 146 ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. ARISTÓTELES. Política. Tradução de Mario da Gama Kury, Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1997. DARBO-PESCHANSKI, Catherine. O discurso do particular: ensaio sobre a investigação de Heródoto. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1998. HARTOG, François. O espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação do outro. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1999. HERÓDOTO. História. Tradução portuguesa de Mário da Gama Kury, 2ª ed., Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1988. MEIER, Christian. La naissance du politique. Paris: Gallimard, 1995. EM BUSCA DE UM MÉTODO PARA LIDAR COM O ACONTECIMENTO CONTEMPORÂNEO GLOBALIZADO ALEXANDRE SIMÕES RIBEIRO Psicanalista, doutor em Filosofia pela UFMG e coordenador do Mestrado em Educação, Cultura e Organizações Sociais da FUNEDI/UEMG E-mail: [email protected] Resumo: O artigo aborda as relações da contemporaneidade com a modernidade através de uma lógica espacial. Para tal, são apresentadas as propriedades e as problematizações dos processos chamados esféricos face aos processos moebianos. Daí, propõe-se elementos para um método condizente com as problematizações contemporâneas. Abstract: The article approaches the relations of the contemporary age with modernity through a space logic. For such, the properties and the problematizations of the spherical called processes are presented face to the Moebius’s processes. From there, one considers elements for a joust method with the contemporaries problematizations. Palavras-chave: esfera; dobra; problematização; método. Key-words: sphere; fold; problematizations; method. Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº - 6 – p. 147 a 162 – outubro de 2007 147 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 A Máquina do Mundo1 Carlos Drummond de Andrade 148 E como eu palmilhasse vagamente uma estrada de Minas, pedregosa, e no fecho da tarde um sino rouco se misturasse ao som de meus sapatos que era pausado e seco; e aves pairassem no céu de chumbo, e suas formas pretas lentamente se fossem diluindo na escuridão maior, vinda dos montes e de meu próprio ser desenganado, a máquina do mundo se entreabriu para quem de a romper já se esquivava e só de o ter pensado se carpia. Abriu-se majestosa e circunspecta, sem emitir um som que fosse impuro nem um clarão maior que o tolerável pelas pupilas gastas na inspeção contínua e dolorosa do deserto, e pela mente exausta de mentar toda uma realidade que transcende a própria imagem sua debuxada no rosto do mistério, nos abismos. [...] Mas, como eu relutasse em responder a tal apelo assim maravilhoso, pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio, a esperança mais mínima – esse anelo de ver desvanecida a treva espessa que entre os raios do sol inda se filtra; como defuntas crenças convocadas presto e fremente não se produzissem a de novo tingir a neutra face que vou pelos caminhos demonstrando, e como se outro ser, não mais aquele habitante de mim há tantos anos, passasse a comandar minha vontade que, já de si volúvel, se cerrava semelhante a essas flores reticentes em si mesmas abertas e fechadas; como se um dom tardio já não fora apetecível, antes despiciendo, baixei os olhos, incurioso, lasso, desdenhando colher a coisa oferta que se abria gratuita a meu engenho. A treva mais estrita já pousara sobre a estrada de Minas, pedregosa, e a máquina do mundo, repelida, se foi miudamente recompondo, enquanto eu, avaliando o que perdera, seguia vagaroso, de mãos pensas. S ob uma forma que apenas almeja salientar algumas vias a serem percorridas e sensibilidades a serem promovidas, intentaremos realizar reflexões que se mostrem atentas à demarcação de elementos imprescindíveis à edificação de um método para lidar com o acontecimento contemporâneo em um mundo, de certa forma, globalizado. Uma espacialidade contemporânea para a máquina do mundo? As performáticas discussões acerca de uma era pós-moderna que usualmente pretendem nos convencer acerca de sua genuína Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 legitimidade, de sua certeira existência, suas nítidas demarcações, bem como suas curiosas relações com o anterior e as possibilidades de seus devires mostram-se, a maior parte do tempo, infrutíferas. Aliás, quase sempre se instalam (na Universidade e também fora da mesma) como debates condenados a um hermetismo que mais parece interessar aos acadêmicos desvinculados das questões urgentes de seu tempo do que aos seus supostos agentes, envolvidos por demais que estão em sua poiesis cotidiana, sem muita preocupação com datações, estilos, filiações, escolas, etc. Todavia, são numerosas e consistentes as evidências que sinalizam e materializam – sob a forma de processos certamente complexos – um corte entre as formas de vida de nosso tempo (entenda-se: as vivências que reorganizam nosso tempo e nosso espaço) e uma certa figuração de um passado não muito distante. Caso pensemos, a título somente de demarcação sem querer aí localizar todos os mencionados processos complexos, em certos instrumentais tecnológicos largamente difundidos em e para um mundo globalizado (em especial, o triunvirato composto pela informática, telecomunicações e biotecnologias), a mencionada descontinuidade se nos impõe de maneira inexorável. Certamente, muitos de nós, a cada instante, a experienciam sob uma forma dupla, quando não declaradamente ambivalente. Ora surgem lamentos saudosistas que nos oferecem a imagem – certamente, alicerçada em um engodo – da existência de um passado mais estável, tradicional, certeiro, orientador e correto que se encontra cada vez mais desalojado pelas mudanças avassaladoras inevitáveis, portadoras que são de um indesejável índice moral: a degeneração. Esta é a base argumentativa recorrente de um essencialista, de um timoneiro-purista que deseja fundamentar, ou melhor, naturalizar sua perspectiva na imagem da estabilidade. O engodo mais acima indicado, nesta circunstância, não haverá de ter outra designação senão esta: o anseio pela origem. E com toda a emblemática polissemia que a origem comporta: biológica, religiosa, metafísica, histórica, cultural, étnica. Por outro lado, como 149 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 150 sugerimos, um distinto pathos, isto é, uma outra afetação é igualmente proposta aos nossos imaginários: aquela que aclama os grandes valores e facilitações, bem como as promessas sociais e individuais dos novos tempos. Geralmente, os admiradores de um novo mundo que, segundo eles mesmos, está ocorrendo diante de nós e em nós mesmos, podem aí ser reconhecidos. Trata-se aqui da base argumentativa dos artífices do upgrade (de tudo e de todos). O frenético, o instantâneo, o líquido que se conformam a continentes polivalentes para daí a pouco inundá-los e extravasá-los são usuais nesta paisagem. Assim, desde as vertigens causadas pelo caráter agora gelatinoso de um mundo outrora estável, ao maravilhamento de um universo inesgotável de possibilidades dadas suas aceleradas mutações, é sempre a unidade que se nos propõe: a imagem de um mundo e o mundo através de uma imagem. Esta aglutinação com vistas à síntese entre o côncavo e o convexo (que tomaremos a liberdade de designá-la e detalhá-la, em breve, como processo esférico) nos ofusca quanto à coexistência de contrários e obliqüidades que, enquanto tais, sempre resistem à unidade. Elementos oblíquos: são os esburacadores da unidade. Ao que tudo dá a entrever, a crítica (no sentido de crise que clama por exame e inteligibilidade de seus critérios) só se fará quando considerarmos seriamente a lógica dos processos de resistência. Preferencialmente, as resistências locais, difusas, incomensuráveis ao logocentrismo. Ou seja, a arquitetura e a dinâmica daqueles acontecimentos que diante da máquina do mundo2 insistem por não seguir as rotas e metabolismos que proporcionam homogeneidades, previsibilidades, seriações. Neste sentido, há de ser edificada uma crítica que considere os processos-fora-da-série. Voltemos ao corte, no caso, o corte da máquina do mundo. É plausível, quando não, prudente, insistir que um corte há. Para apreendermos tal cesura, discorramos um pouco sobre aquilo que parecia orientar as perspectivas e os fazeres em um período largo de nossa Modernidade. Caso a datação seja aqui relevante – mas não se trata, a nosso ver, de circunstâncias ligadas fixamente ao tempo que ficou para trás – delimitemos, como uma extremidade do espec- Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 tro, a Revolução Científica (século XVII/XVIII) até os instantes em que, na outra extremidade, a Revolução Industrial começou a gerar seus paradoxos mais agudos, a saber, o final do século XIX . É justo compreender que os eventos que ali se deram, eventos estes das mais diversas ordens (sociais, políticas, estéticas, culturais, etc.) arranjavam-se desde uma lógica muito peculiar que poderíamos designar de processos esféricos: Os processos ali seguiam um fluxo esférico. Eram abordados, interpelados, dados a ver e a compreender sob a lógica esférica. Eram produzidos esfericamente. Lembremo-nos que processos esféricos tendem a proporcionar tão-somente problematizações esféricas. Era assim aquela máquina, a máquina do mundo moderno. A esfera porta propriedades impressionantes que, entretanto, podem nos parecer muito banais e, até mesmo, eternas e naturais, dada a nossa familiaridade com as mesmas. Na intenção de produzir uma imagética, pensemos na esfera acima ilustrada como detentora de um diâmetro bastante generoso e, assim, vejamos ao menos três propriedades complementares que lhe são marcantes. Daí decorrem, por sua vez, as problematizações. Antes, um esclarecimento quanto à noção de problemática/problematização. À primeira vista, pode parecer que estamos nos referindo, por intermédio desta noção, àquilo que já é devidamente contemplado seja pela História das Idéias, seja pela História das Mentalidades. Contudo, gostaríamos de ressaltar que, desde uma perspectiva foucaultiana (que consideramos bem adequada em se tratando desta questão), a problemática não se reduz à análise dos sistemas 151 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 de representação (âmbito maior da História das Idéias) nem mesmo à análise das atitudes e esquemas de comportamento (campo da História das Mentalidades). Para Foucault (2006: 231) O pensamento não é o que se presentifica em uma conduta e lhe dá um sentido; é, sobretudo, aquilo que permite tomar uma distância em relação a esta maneira de fazer ou de reagir, e tomá-la como objeto de pensamento e interrogá-la sobre seu sentido, suas condições e seus fins. O pensamento é a liberdade em relação àquilo que se faz, o movimento pelo qual dele nos separamos, constituímo-lo como objeto e pensamo-lo como problema. 152 Então, vejamos as propriedades triádicas e as problematizações decorrentes dos processos esféricos. Primeiramente, os processos esféricos dividem o espaço em duas porções. Cada uma destas porções se comporta como superfícies, planos infinitos que podem ser incomunicáveis. Seria tentador, na medida em que o espaço já está, por definição e experiência, repartido em dois, engendrar um mapeamento do dentro e do fora, do perto e do longe, do familiar e do estranho, do centro e da periferia. Aliás, esta foi uma problematização proporcionada pelo espaço bilátero; uma problematização que, em todas as suas possibilidades e manifestações, seguia um fluxo, digamos, colonizador. A indagação marcante desta paisagem: como adequar o fora ao dentro? Em segundo lugar, os processos esféricos e esferóides cruzam fronteiras tidas como simples linhas tênues e demarcatórias que, ao serem ultrapassadas, fazem o contraste do dentro com o fora, do centro com o periférico. Em suma, as fronteiras são linhas-mortas, que servem apenas para delimitar espaços (e processos) naturalizados e naturalizantes. A problematização que atravessou diversos discursos e saberes aí engendrados: a problematização da conversibilidade. Sua forma usual: como converter, transformar os contrários? Terceira propriedade: só se pode passar para o dentro, estando no Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 fora (ou vice-versa) por meio de cisão, perfuração, invasão; enfim, um ato interventor. E isto nos lança para uma decorrência, talvez, a mais importante até agora discernida: os processos esféricos são orientáveis. Há um antes e um depois, a direita e a esquerda, o acima e o abaixo. Logo, teleologias, desenvolvimentos, progressos e hierarquias aí se conjugam bem. Trata-se da pedagogia do interventor. Em outros termos: a máquina esférica do mundo nos permite perceber para onde os processos estão se dirigindo, em que darão e, por conseguinte, como detê-los, reorientá-los, etc. Isto, pelo fato deles serem reversíveis e invertíveis pelas mudanças de posição naquele mesmo espaço bilátero. Daí decorre uma problematização progressista: como acelerar a marcha dos processos (uma vez que partem de x e chegam em y)? Para verificar melhor esta atraente propriedade – de ampla repercussão política – podemos fazer um experimento. Lancemos sobre a máquina esférica pequenos dispositivos que girariam sobre as suas duas superfícies em sentidos bem nítidos. No sentido horário, em uma superfície e, na outra, no sentido anti-horário: Corte interno: a orientação “dentro”: 153 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 Corte externo: a orientação “fora”: 154 Estes dispositivos continuariam sempre a percorrer toda a superfície em um único sentido. Isto faz desta figura, desta espacialidade algo orientável. Um hipotético ser que caminhasse na superfície (tanto a de dentro, quanto a de fora, já que a esfera dicotomiza o espaço) sempre acreditaria se está indo para o leste ou o oeste, para cima ou para baixo. Por outro lado, ele teria a possibilidade de, através de um corte, inverter o sentido do giro. Isto implica na conjugação das três problemáticas: a da colonização, da conversibilidade, da orientabilidade. Isto basta para prosseguirmos. Se o Moderno (em todas as suas perspectivas não-coincidentes, a saber: modernismo, modernização e modernidade) é largamente esferóide, bem como as problematizações que ele engendra, a Contemporaneidade, diferentemente, não parece sê-lo. Nada mais estranho do que ainda desejar intervir naquilo que segue e materializa a lógica do Contemporâneo (em todas as suas perspectivas heterogêneas: pós-modernismo, pós-modernização e pós-modernidade) desde a espacialidade esférica. A máquina do mundo contemporâneo, não se nos impõe como dicotômica, todavia, moebiana: Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 Esta figura, conhecida dos matemáticos que se dedicam mais especialmente à Topologia mas, igualmente, de muitos artistas, apresenta propriedades curiosas que também vão lhe proporcionar nomeações diversas: Banda de Moebius, Faixa de Moebius, Contrabanda, etc. A sua notoriedade deve-se a August Ferdinand Möbius que, em 1858, tendo em vista a obtenção de um prêmio ofertado pela Academia de Paris sobre a teoria geométrica dos poliedros, a estudou detidamente. A Contrabanda – a nomeação que consideramos mais perspicaz e positivamente irônica para a figura exibida – porta, por sua vez, propriedades e abre possibilidades para processos bem distintos aos da esfera. Primeiramente, ela não divide o espaço em duas porções bem discerníveis. Se há uma separação, esta é apenas momentânea, devida a um instante de escala reduzida em seu circuito. Imaginemos um percurso pela Contrabanda, exploremos este espaço. Iniciaremos nossa caminhada, nossa prospecção em um ponto e retornaremos ao mesmo, tendo passado por aquilo que seria um dentro e um fora. Ora, se isto foi possível, logo significa que não estávamos em outra coisa a não ser em uma única e só superfície que, por efeitos de dobras e torções, permitiu um certo percurso. Um percurso que, ao modus operandi da máquina esférica do mundo, seria mágico, pois ele permitiria entrar e sair sem cisão, furo, invasão. Em segundo lugar, percebemos que as fronteiras não são somente linhas demarcatórias, todavia, campos de passagem, fluxos de travessias. Logo, zonas nas quais processos ocorrem e não só espaços vazios que deixam certas identidades intocadas na sua travessia. Não se trata, pois, de processos mortos e bem adestrados mas aquilo que está em todos os lugares, vivamente permitindo contornos inusitados (como aquele da aparente transição entre o espaço de dentro e o de fora ...). A terceira propriedade, bem incômoda aos dicotomizadores da colonização, da conversibilidade e da orientabilidade. Voltemos aos nossos pequenos dispositivos giratórios, desta vez, sobre a superfície moebiana. Detenhamo-nos, a título de exemplo, ao dispositivo (que pode ser uma obra de arte, um movimento literário, um discurso, uma 155 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 156 ação, uma comunidade) que gira no sentido horário. Caso ele transite pelo espaço proporcionado pela Contrabanda, em um certo momento torna-se possível que ele, sobre a mesma superfície (sem a perfuração do espaço, portanto), gire em sentidos diversos! Isto se dá concomitantemente à travessia de uma fronteira. Em suma, a Contrabanda não é, diferentemente da esfera, orientável. Isto traz implicações sérias sobre o tempo, a causalidade e o devir. Em outras palavras, o dentro e o fora são impressões enganosas, prematuramente instantâneas de um olhar que ainda insiste em repartir o espaço em duas categorias primeiras. Por conseguinte, estritamente falando, não se entra nem mesmo se sai deste espaço – desta máquina do mundo – demarcando assim ontologias irredutíveis, ao menos tal como a esfera e suas problematizações davam a entender. As passagens, os trânsitos constantes são a regra. O percurso-processo-moebiano, que nos leva a verificar processos rígidos (hegemônicos) e desarticulados (resistentes) em uma mesma e só superfície, nos conduz também a constatar relações bem mais complexas com aquilo que, entre nós todos, parece nos diferenciar e, por outro lado, nos articular. Não uma era, mas uma problemática pós-moderna Desde 1989, encontra-se entre nós uma perspicaz apreensão moebiana da contemporaneidade. Esta apreensão foi levada a efeito por um argentino que pensa as dobras do espaço latino-americano: Néstor García Canclini. Suas reflexões encontram uma interessante localização em seu livro Culturas híbridas (lançado pela primeira vez no Brasil em 1997). Tal obra torna-se instigante pelo deslocamento que seu subtítulo já implica sobre a problemática pós-moderna. Ei-lo: estratégias para entrar e sair da modernidade. Trata-se, pois, de uma reflexão que se situa no campo foucaultiano da problemática. A argumentação de Canclini acerca de nosso tempo, nossas rupturas e continuidades – e tudo sito sob o prisma das especificidades latino-americanas face às metanarrativas européias – é construído Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 com zelo e rigor. Os capítulos do livro são polarizados por duas argumentações que o autor nomeia de entrada e saída. Talvez, um jogo irônico com a esfera que, ao longo da narrativa, finda por sofrer um processo de torção moebiana. Há, ainda, a partir das edições lançadas em 2001, uma introdução-maior intitulada da seguinte maneira: as culturas híbridas em tempos de globalização. Esta introdução porta um caráter autônomo face ao restante do livro. Elaborada sob a forma de artigo, se faz acompanhar por uma bibliografia destinada especialmente ao seu argumento. É assim que Canclini vai nos familiarizando com o que localizamos aqui a título de problemática pósmoderna: nossa relação com as etapas da Modernidade não é unívoca nem unilateral. Não se trata de se pensar em uma relação na qual a Modernidade nos foi apresentada como um ideal a ser seguido de forma modelar ou um métron a ser constantemente proposto como o referente seguro para as nossas diferenças com o de fora, o outro. A proposta da hibridação (termo que vem de contrabando – ou na contrabanda? – da biologia, passando por transformações, certamente, nas travessias das fronteiras com as Ciências Sociais) é, neste cenário, uma tática que nos conduz ao plano maior da estratégia. Todavia, trata-se de uma tática que, em sua irrupção, promove a reformulação de uma cena em um ponto preciso mas de larga repercussão: nos pares organizadores de conflitos: tradição-modernidade, norte-sul, local-global. Sobre a hibridação, Canclini nos propõe, dentre outras perspectivas, a que se segue: “... entendo por hibridação processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas.” (2006: XIX) E ainda ressalta: “... a hibridação não é sinônimo de fusão sem contradições” (2006: XVIII) Em suma, são as próprias idéias de pureza, de essência ou, para usar um termo importante para Canclini, de “coleção” que são postas em ponto de fusão. Tudo aquilo, em suma, que patrocina as problemáticas esféricas. 157 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 Método O percurso de Canclini pode nos indicar os elementos imprescindíveis para se estabelecer um método (via, caminho, rota) para a abordagem dos acontecimentos contemporâneos. Não se trata aí de substituição de cenários ou deslocamentos de entidades conceituais mas, sim, de processos que articulam heterogeneidades sem camuflar o conflito: “por essas razões, sustento que o objeto de estudo não é a hibridez, mas, sim, os processos de hibridação.” (CANCLINI, 2006: XXII) É nesta circunstância que ganha um relevo considerável o fio e a trama que compõem o tecido da Modernidade e nossa relação com o mesmo. Entradas e saídas, uma relação jânica3 com a Modernidade: “... resisti a considerar a pós-modernidade como uma etapa que substituiria a época moderna. Preferi concebê-la como um modo de problematizar as articulações que a modernidade estabeleceu com as tradições que tentou excluir ou superar.” (CANCLINI, 2006: XXX) 158 E aí complementa, com um jargão híbrido, entre Foucault e Deleuze: “A descoleção dos patrimônios étnicos e nacionais, assim como a desterritorialização e a reconversão dos saberes e costumes foram examinados como recursos para hibridar-se.” (CANCLINI, 2006: XXX) Tal corte se situa, certamente, entre aquilo que ainda podemos compreender tenuamente como nós e as problematizações até então esféricas do mundo: Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 Problematizações esféricas do mundo: aquilo que, apesar de ter atingido seu auge no século XIX, ainda vigora, mesmo que fracassado: a apreensão do problema (seja ele qual for) a partir da divisão do espaço e das categorias em dois níveis. Estes níveis, sempre tidos como naturais e essenciais, avalisadores, pois, de todas as espécies de dualismos. O dentro que se opõe ao fora, o perto que se opõe ao longe, a causa que se opõe ao efeito. Nota-se que esta oposição é também uma dependência estabelecida entre os antagonistas em questão. Uma figura de alcance considerável, no que tange ao nosso momento jânico encontra-se, por exemplo, na imagem do “pós-intramoderno” provocativamente engendrada por Canclini, em um de seus momentos4. Já estamos à altura de pensar acerca disto que cotidianamente nos impacta sem aguardar pelos significados estáveis que possamos lhe atribuir? Da Contrabanda ao Contrabando As problematizações pós-modernas, que parecem extrair a lógica de seus processos da espacialidade moebiana, não haverão de ser enfrentadas circunscrevendo-se em espaços disciplinares. Estes, podemos dizer que ainda são excessivamente debitários da lógica esférica. Compreendemos que é na confluência e na tensão (ou seja: na articulação daquilo que se mostra inicialmente na cena global bem como na resistência à articulação) que algo desta ordem, próximo ao que tendemos a compreender como metodologia poderia ser edificado. Para lidar com as problemáticas contemporâneas, precisamos de espaços estriados ao invés de lisos. E isto não se edificará sem a prática constante de processos fronteiriços. A abordagem oblíqua de temas e objetos é salutar, pois, para a constituição de metodologias híbridas e oblíquas. Encontramos uma imagem amparadora do que intentamos transmitir em uma situação dupla vivida por um mesmo personagem, todavia, um personagem que não permanece o mesmo. O filósofo francês Gilles Deleuze, na ocasião de participar de uma experiência uni- 159 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 versitária que, a princípio, colheria os efeitos revolucionários do maio de 68 na França, assim descreve a situação que era a de condução de um ensino de filosofia na recém inaugurada Universidade de Paris VIII – Vincennes: Em Vincennes, a situação é diferente. Um professor, digamos, de filosofia, fala de um público que inclui, com diferentes níveis de conhecimento, matemáticos, músicos (de formação clássica ou da pop music), psicólogos, historiadores, etc.[...] É, pois, por conta própria que os ouvintes vêm buscar alguma coisa num curso. O ensino da filosofia orienta-se, assim, diretamente, pela questão de saber em quê a filosofia pode servir a matemáticos, ou a músicos, etc. – mesmo, e sobretudo, quando ela não fala de música ou de matemática. (DELEUZE, citado por GALLO, 2003, p. 16) 160 O grande desafio, para tal, parece ser a demarcação de intercessores em meio à cena global. São os intercessores, muitas vezes, que possibilitam a dobra e o próprio contrabando da Contrabanda: O essencial são os intercessores. A criação são os intercessores. Sem, eles não há obra. Podem ser pessoa – para um filósofo, artistas ou cientistas; para um cientista, filósofos os artistas – mas também coisas, plantas, até animais, como em Castañeda. Fictícios ou reais, animados ou inanimados, é preciso fabricar seus próprios intercessores. É uma série. Se não formamos uma série, mesmo que completamente imaginária, estamos perdidos. Eu preciso de meus intercessores para me exprimir, e eles jamais se exprimiriam sem mim: sempre se trabalha em vários, mesmo quando isso não se vê. (DELEUZE, 1992, p.156) Desta forma, podemos propor que a Contemporaneidade não é sem intercessores, quando o que está em questão é, em alguns ins- Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 tantes e circunstâncias, a primazia dos processos moebianos sobre os processos esféricos. A metodologia consiste, por conseguinte, em abrir as problematizações a estes intercessores. BIBLIOGRAFIA CANCLINI, Nestor García. Culturas híbridas; estratégias para entrar e sair da modernidade. 4.ed. São Paulo: EDUSP, 2006. CLIFFORD, James. Culturas viajantes. In: ARANTES, Antonio A. (org.) O espaço da diferença. São Paulo: Papirus, 2000. DARMON, Marc. Ensaios sobre a topologia lacaniana. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994. DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: 1992, Editora 34, 1992. FOUCAULT, Michel. Polêmica, política e problematizações. In: Idem. Ditos e escritos, vol V; ética, sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense, 2006. GALLO, Sílvio. Deleuze & a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. GUPTA, Akhil, FERGUNSON, James. Mais além da “cultura”: espaço, identidade e política da diferença. In: ARANTES, Antonio A. (org.) O espaço da diferença. São Paulo: Papirus, 2000. NOTAS 1 Este poema foi escolhido como o melhor poema brasileiro de todos os tempos por um grupo considerável de escritores e críticos, a pedido do caderno “Mais!” do jornal Folha de São Paulo (edição de 02-01-2000). Drummond o publicou originalmente no livro Claro enigma (de 1951). Para este artigo, o extraímos parcialmente de seu outro livro Nova reunião, publicado pela José Olympio, Rio de Janeiro, 1985, pág. 300. 2 Máquina, aqui, sem nenhum voto a uma reacionária reedição dos mecanicismos ou determinismos oitocentistas que tinham nos instrumentos artificiais (o relógio, o autômato) a chave para o mundo (ou uma boa parte do mesmo). Intentamos conceber a máquina como aquilo que é composto por elementos heterogêneos, por processos sem centro, daí, a possível e interessante desmontagem de uma máquina. 161 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 3 Referimo-nos aqui ao deus romano Jano (Janus), o porteiro celestial de duas faces, indicando os términos e os começos, o passado e o futuro. Jano nos faz lembrar que uma porta é, sempre, aquilo que se volta para dois lados aparentemente diferentes. Daí, a origem do nome janeiro e, por extensão, janela. 4 Cf. CANCLINI, 2006: 356. 162 BIOÉTICA PARA EDUCAÇÃO AMBIENTAL: UM PARADIGMA NECESSÁRIO SÉRVIO TÚLIO PORTELA Aluno do curso de Mestrado em Educação, Cultura e Organizações Sociais da FUNEDI/UEMG E-mail: [email protected] Resumo: O pensar e o fazer em educação ambiental não podem prescindir de um referencial bioético que a ressignifique e que assegure a preservação das dimensões biopsicossociais que lhe são intrínsecas, sob pena de se esvaziar de seu sentido crítico-reflexivo e de seu potencial transformador. Sem um paradigma bioético claro e presente nas suas múltiplas abordagens, a educação ambiental pode se reduzir ao ensino sobre o meio ambiente, numa perspectiva transmissiva e conteudista que em nada se compromete com a vida social. Dessa forma, afastar-seia da cena contemporânea, descontextualizando-se e comprometendo sobremaneira a possibilidade de sua condução sob a ótica transdisciplinar, indispensável para a desejável complexificação desse objeto. Palavras-chave: educação ambiental; bioética; contemporaneidade; transdisciplinaridade. Abstract: The thought and action in environmental education cannot dispense a bioethic reference as ressignification that assure it to the preservation of the biopsicossocial dimensions that are inherent to it, under penalty of deflation of it’s criticreflexive sense and transforming potential. Without a bioethic paradigm that is clear and present in it’s multiple approaches, the environmental education is able to itself reduce to the teaching about the environment, in a transmisive and content perspective that in nothing compromises the social life. That way it would move away from the contemporary scene, descontextualizing and compromising excessively the possibility of it’s conduction under the transdisciplinar point of view, indispensable for the desirable complexification of that object. Key-words: environmental education; bioethics; contemporary nature; transdisciplinarity. Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº - 6 – p. 163 a 173 – outubro de 2007 163 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 Introdução ste artigo, revisitando o tema bioética, busca articular tal objeto com o mister de se empreender a educação ambiental na sociedade hodierna, sob o entendimento de que o meio ambiente implica dimensões que extrapolam a circunscrição própria da biologia, para incorporar componentes antropológicos, de forma a lhe preservar o caráter biopsicossocial. Por ser a educação ambiental um processo que redunda em (inter)ações comprometidas com a (re)construção conceitual e axiológica da parte do sujeito social, esta não se pode dar de forma meramente intuitiva e assistemática. Há de se processar, antes, como um movimento eivado de intencionalidade, portanto norteado por referenciais históricos, filosóficos e temáticos que a bioética suscita por sua própria natureza conceitual. Assim, para levar a efeito a articulação pretendida entre bioética e educação ambiental, será oportuno situar ambos os objetos temáticos quanto aos seus contornos históricos e conceituais, preservando a perspectiva contemporânea e recorrendo à concepção transdisciplinar que possibilite a complexificação e conseqüente abrangência que tais objetos suscitam. Para tanto, serão apropriados subsídios de textos temáticos em diálogo permanente com as contribuições conceituais e as teses de ALBAGLI (1998), FERNANDES (1992), FLOR (2004), dentre outros, de forma a consubstanciar o presente estudo. Em síntese, esse exercício adota como objetivo evidenciar a imprescindibilidade da adoção de um paradigma bioético como norteador do pensar e do fazer em Educação Ambiental; paradigma este que, espera-se, não seja definitivo e imutável, já que não o é a própria vida social; mas consonante com a cena contemporânea que o ato educativo ajuda a compor. E 164 1. Educação ambiental e (bio)ética A educação ambiental enquanto possibilidade de construção axiológica e de potencialização dos ideais e das ações transformadoras Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 é historicamente antecedida da preocupação com o meio ambiente, sobretudo em virtude do reconhecimento de que há uma gama de recursos naturais vitais para a existência humana que não têm caráter renovável. Essa preocupação suscita por si mesma a preocupação com os atores que integram a cena social e que se relacionam no e com o meio ambiente natural e social que compõem. Sendo assim, a preocupação em tela perpassa valores e responsabilidades individuais e coletivas, imbricadas inevitavelmente com referenciais (bio)éticos explícitos ou subjacentes às ações (e omissões) na vida social. 1.1. Educação ambiental – Dimensões históricas e conceituais Não seria razoável falar em educação ambiental sem a articular com a consciência ambiental, ainda que em grau de incipiência. Assim é que a adoção da perspectiva histórica da educação ambiental nos remete ao século XIX, quando, em 1863, Thomas Huxley já procede à abordagem das relações entre o homem e os demais seres vivos em seu ensaio “Evidências sobre o lugar do homem na natureza”, ao qual sucede o livro “O homem e a natureza: ou geografia modificada pela ação do homem”, cuja abordagem se identifica com a preocupação com a possibilidade de esgotamento dos recursos do planeta face a ação do homem. Num movimento crescente, a temática ambiental extrapola então seus contornos tradicionais para ganhar novas dimensões. Como observa ALBAGLI (1998, p.44) “a questão ambiental deixou de ser vista como problema restrito ao meio técnico-científico, abrindo espaço na agenda política dos países, tanto internamente, quanto nas negociações por eles travadas na arena internacional”. O curso da história revela-nos, então, o mundo com crescente preocupação (e iniciativas) na esfera da preservação ambiental, que ganham relevo em fóruns como a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente em Estocolmo (1972); Conferência de Belgrado (1975); a Primeira Conferência Intergovernamental sobre Educação Ambiental (Tibilisi, 1977); o Seminário sobre Educação Ambi- 165 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 166 ental (Costa Rica, 1979); o Congresso Internacional sobre Educação e Formação Ambientais (Moscou, 1987); o Seminário Latino-Americano de Educação Ambiental (Argentina, 1988) e a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (Brasil, 1992). No Brasil, no entanto, o movimento não se dá historicamente na mesma direção; aliás, o que se tem, em particular no período da Ditadura Militar, é a expressão do ufanismo traduzido na edificação de grandes obras (usinas, ferrovias, rodovias etc.), levadas a efeito freqüentemente em detrimento da preservação do meio ambiente. Os eventos de caráter internacional, aos quais o Brasil efetivamente se incorporou somente nas últimas décadas, sintetizam, vale dizer, o grande debate multinacional sobre os temas meio ambiente e educação ambiental, que suscitam a necessidade de uma visão menos fragmentária e mais integradora desses objetos. Nas palavras de DIAS (2004, p.254), “a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade, longe de uma utopia, surgem como uma grande meta, uma exigência natural para a sobrevivência da espécie humana, se ela quiser continuar sua escalada”. 1.2. Educação ambiental e (re)construção axiológica Enquanto atividade humana socialmente construída, a Educação Ambiental se compromete com diferentes ambientes históricos, políticos, sociais e econômicos, que tratam o binômio natureza X cultura, a partir de diferentes referenciais éticos, filosóficos, conceituais e didático-pedagógicos. Tais ambientes possibilitam reconhecer, no mínimo, três contornos do pensar e do fazer em educação ambiental: formal, informal e não-formal. Há de se ressaltar, no entanto, que os contornos de cada instância do pensar e do fazer pedagógico em educação ambiental não configuram ambientes estanques, mas circunscrições com recorrentes interfaces e alto grau de interlocução e complementaridade. Em qualquer instância, todavia, vale a percepção de BRANCO (2003, p.3), para quem “a Educação Ambiental deve preocupar-se, inicialmente, com a ação do homem e suas causas, reflexo de seu Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 conhecimento de mundo; portanto, trata de mudança de valores, de costumes”. Nessa perspectiva, a despeito de envolver diferentes atores, métodos e processos, em tempos e espaços também diversos mas dotados de nexos articuladores; a educação ambiental há de ter presente orientação ética clara, visão holística e compromisso com a construção de sujeitos sociais autônomos e responsáveis. Ademais, há de considerar que sua efetividade só se verifica se se comprometer com a revisão de conceitos, representações, costumes e conduta individual e coletiva, caracterizados por visão conseqüente e coerente, traduzindo-se, em última análise, como possibilidade de (re)construção axiológica e conceitual. 2. Ética e bioética O pressuposto de que a Educação Ambiental implica a (re)construção conceitual e axiológica da parte do educando enquanto sujeito-aprendente, remete à necessidade de proceder a algumas considerações acerca dos componentes (bio)éticos que lhe são intrínsecos e que se explicitam em seu âmbito ou lhe são subjacentes. Dessa forma, proceder a considerações sobre (bio)ética e responsabilidade individual e coletiva historicamente consubstanciadas e presentes na cena contemporânea faz-se eludicativo no sentido de compreender sua importância para o pensar o e fazer em educação ambiental. 2.1. Ética e vida social Perpassando o universo da inquietude humana, a ética sempre se fez presente na vida social e, como observa FERNANDES (1992, p.67), “o homem sempre se interrogou sobre os princípios do seu agir moral e de suas conseqüência”. Assim é que a expressão, ora subliminar, ora explícita de um padrão ético, é uma constante na ação (e omissão) do homem, consonante (ou em conflito) com os referenciais de seu tempo-espaço. A compreensão das dimensões éticas da (con)vivência humana 167 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 impõe a necessidade de visão transdisciplinar, que incorpore percepções da história, da geografia, da antropologia, da psicologia e, em particular, da sociologia, de modo que possamos imprimir potencial crítico-reflexivo ao conhecimento individual e coletivo da dimensão humana. Nessa perspectiva, aliás, ressalta GIDDENS (2005, p.24) que “a maioria de nós vê o mundo a partir de características familiares a nossas próprias vidas. A sociologia mostra a necessidade de assumir uma visão mais ampla sobre por que somos como somos e por que agimos como agimos”. Afinal, procedendo a indagações e respondendo-as pelo viés complexificador da construção do conhecimento é que nos permitiremos identificar e explicitar os referenciais éticos (e bioéticos) que orientam o nosso pensar e fazer na cena social. 168 2.2. Bioética: recortes históricos, filosóficos e temáticos Se a ética é tão antiga quanto à existência humana, perpassando a vida social e se fazendo presente como forma de expressão da inquietude humana, a bioética por sua vez assume contorno mais específico, que ganha relevo a partir de 1971 com a publicação da obra Bioética: “uma Ponte para o Futuro, de Van Rensselaer Potter, a qual constitui marco histórico relativamente ao tema, a despeito de algumas controvérsias sobre a paternidade do termo”, conforme observa DINIZ E GUILHEM (2005, p.10). A dimensão semântica que ganha o termo torna-se flagrante nas palavras de Potter, consignadas por FLOR (2004, p.166). O biólogo e oncologista diz adotar o termo com o intuito de “representar o conhecimento dos sistemas viventes”, assim como “representar o conhecimento dos sistemas dos valores humanos”. Essa acepção de bioética descola o termo de sua conotação inicial identificada com a ética em medicina, que invocava recorrentemente as questões da conduta médica, como transplantar órgãos ou não, praticar a eutanásia ou não, proceder a pesquisas em corpos vivos ou não etc.; para lhe conferir abrangência mais ampla. Dada a complexidade que o tema assume, no entanto, não se Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 pode reduzi-lo ao contorno monodisciplinar, sobretudo por envolver, em diálogo com os “sistemas viventes”, os valores humanos. Essa perspectiva encontra eco em FERNANDES, que observa: Na área da Bioética, a comunicação não pode ser vista como um dado natural, mas se apresenta como uma tarefa de toda a comunidade científica, pois o diálogo interdisciplinar da Bioética comporta a participação de diferentes disciplinas com seus diferentes estatutos epistemológicos. (FERNANDES, 1992, p.71), Assim é que soa pertinente a assertiva de FLOR, para quem A Bioética, inicialmente um movimento social que lutava pela ética nas ciências biológicas e áreas correlatas, hoje é também uma disciplina norteadora de teorias para o Biodireito e para a legislação, com a finalidade de assegurar mais humanismo nas ações do cotidiano das práticas médicas e nas experimentações científicas que utilizam seres humanos. (FLOR, 2004, p.166). 3. Bioética e educação ambiental: uma articulação necessária 3.1– Paradigma bioético para uma educação ambiental resignificada Tendo em vista o conceito de educação e de educação ambiental que refuta o paradigma transmissivo do ato educativo ou, nas palavras de FREIRE (1987), a “educação bancária”, há de se ter presente a concepção sócio-construtivista de VYGOTSKY (1998), que tem por foco o sujeito-aprendente como autor de seu processo de construção cognitiva. Afinal, se a educação ambiental implica, por natureza de existência, a (re)construção axiológica e a (re)orientação atitudinal, há de implicar a incorporação, da parte do sujeito, de valores capazes de nortear o seu pensar e o seu fazer enquanto cidadão. Assim é que adoção de paradigmas (bio)éticos se faz relevante e 169 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 inevitável, e mais: sua adoção deliberada ou a ignorância de sua existência irão redundar inevitavelmente na expressão de valores, quer explícitos, quer subliminares. Afinal, como advertem PONTES e SCHRAMM a bioética não é apenas uma reflexão de segunda ordem, como qualquer outra ética prática, ou aplicada, visto que pretende dirimir concretamente os conflitos morais, ou seja, ela é ao mesmo tempo descritiva dos fatos consistentes em conflitos e dilemas morais existentes, e normativa, pois pretende prescrever e proscrever comportamentos, a partir de processos de crítica e justificação. (PONTES E SCHRAMM, 2004, p.1321). 170 Dessa forma, para que o pensar e o fazer em educação ambiental não cumpram vias fortuitas, resultantes da ausência de intencionalidade e de visão conseqüente relativamente ao ato educativo, há de se estabelecer a necessária articulação, de forma a ressignificar o mister educativo, em lugar de o comprometer com a transmissão reducionista de conceitos ou com o indesejado laissez-faire. Em última análise, a adoção deliberada e inequívoca de um paradigma bioético apontará para a ressignificação do pensar e do fazer em educação ambiental sócio-construtivista, portanto capaz de se comprometer com a construção de sujeitos crítico-reflexivos e dotados de potencial transformador no contexto do meio ambiente de que são partes integrantes. 3.2 – Bioética, contemporaneidade e transdisciplinaridade: pressupostos e desafios da educação ambiental Se, de um lado, é imprescindível a adoção de um paradigma bioético norteador do pensar e do fazer em educação ambiental, de outro, há de se ter presente que, por sua própria natureza conceitual, o paradigma não pode ser único nem imutável. Há de se adotar a perspectiva macro em diálogo com o referencial micro de percepção da Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 realidade, sob pena de esvaziar de sua identidade os atores da cena social. Nessa perspectiva, faz-se pertinente a observação de GRÜN (1996, p.112) que, discorrendo sobre o “horizonte epistemológico” atinente à educação ambiental, registra que “a dimensão ética da educação ambiental deveria ser buscada na história recalcada de nosso relacionamento com o ambiente”. O cenário das múltiplas interações nos remete à consideração do meio ambiente como um lugar determinado e/ou percebido onde estão em relações dinâmicas e em constante interação os aspectos naturais e sociais. Essas relações acarretam processos de criação cultural e tecnológica e processos históricos e políticos de transformação da natureza e da sociedade. (REIGOTA, 2001, p.21). Essa percepção impõe a necessidade do estabelecimento de nexos articuladores entre a bioética e a contemporaneidade, sobretudo por ser o ambiente – social e natural – dinâmico e mutável, portanto propulsor de mudanças de paradigmas, como forma de responder coerentemente aos apelos e possibilidades emergentes na cena social. Afinal, não podemos olvidar que, conforme explicita FLOR (2004, p.166), “Ética diz respeito a consensos possíveis e temporários entre diferentes, e mesmo divergindo na compreensão de mundo e nas perspectivas de futuro, às vezes, conseguem estabelecer normas de convivência social relativamente harmoniosas em algumas questões”. Por fim, a complexidade inerente ao objeto epistemológico da educação ambiental, bem como a necessidade de complexificar o pensar e o fazer nessa seara haverão de encontrar na transdisciplinaridade o catalisador das potencialidades e possibilidades manifestas, de forma a ensejar à educação ambiental ressignificar-se, redimensionando os atores e suas relações no ambiente natural e social, a fim de potencializá-los para assumir de forma crítico-reflexiva, autônoma, cooperativa as suas responsabilidades individuais e coletivas. 171 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 172 Considerações finais À guisa de conclusão, vale ressaltar que o presente estudo não guarda a pretensão de fixar um paradigma bioético para a educação ambiental, mas tão somente de reconhecer sua imprescindibilidade para o pensar e o fazer nessa seara. Afinal a bioética deve corresponder à expressão de um tempo e de um espaço histórico-social dinâmico por natureza de existência e não se pode olvidar que os valores são próprios de sujeitos sociais, que os devem construir dialogicamente e se fazerem seus apologistas por meio de seu pensar e de seu fazer na cena social. Assim, levar a efeito a pretensão de os fixar a priori seria ir de encontro às suas dimensões subjetivas e contextuais, subestimando o papel dos sujeitos sociais e as condicionantes e determinantes da cena contemporânea. Todavia, a construção, apropriação e instauração de referenciais bioéticos implicará preservar-lhes o caráter complexificador, do qual não se pode prescindir sob pena de se incorrer em reducionismos. Essa concepção impõe a necessidade de incorporação do foco transdisciplinar de abordagem, que redunda nas múltiplas freqüentações entre as disciplinas, como ensina DOMINGUES (2001). Em suma, a Educação ambiental que supere o caráter transmissivo de conteúdos para o pensar e o fazer nessa seara, haverá de se comprometer com referenciais bioéticos que tenham presentes os sujeitos, seu contexto biopsicosssocial contemporâneo e a abordagem transdisciplinar que assegure a complexidade que lhe é intrínseca. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALBAGLI, Sarita. Geopolítica da Biodiversidade. Brasília: Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, 1998. BRANCO, Sandra. Educação Ambiental: metodologia e prática de ensino. Rio de Janeiro: Dunya, 2003. DIAS, Genebaldo Freire. Educação Ambiental: princípios e práticas. São Paulo: Gaia, 2004. Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 DINIZ, Débora e GUILHEM, Dirce. O que é Bioética. São Paulo: Brasiliense, 2005. DOMINGUES, Ivan. Conhecimento e transdisciplinaridade. Belo Horizonte: Editora UFMG; IEAT, 2001. FERNANDES, Pe. José de Souza. Elementos para uma teoria crítica da Bioética. In: Cad. 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São Paulo: Martins Fontes, 1998. 173 PACTO PELA VIDA: A INCLUSÃO DO IDOSO NAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE ELIETE ALBANO DE AZEVEDO GUIMARÃES Enfermeira, mestre em Enfermagem pela UFMG e docente do Mestrado em Educação, Cultura e Organizações Sociais da FUNEDI/UEMG LINDA MAIRA DOS SANTOS NUNES Aluna do curso de Mestrado em Educação, Cultura e Organizações Sociais da FUNEDI/UEMG 174 Resumo: Este artigo consiste numa sistematização da evolução das políticas públicas de saúde, mostrando a inexistência das mesmas quanto à atenção à saúde do idoso, enfatizando o pacto de gestão, que é a mais recente política do governo Federal, que, pela primeira vez, inclui a assistência à pessoa idosa. O artigo perpassa pela integralidade como construção e prática social, contribuindo para o controle social na efetivação do que preconiza a política nacional de saúde da pessoa idosa. Palavras-chave: Saúde do Idoso; pacto pela vida; história das políticas públicas de saúde; integralidade. Abstract: This article consists of a systematization of the evolution of the public politics of health, showing the inexistence of the same ones as to the attention to the health of the elderly emphasizing the management pact, that is the most recent politics of federal government, which includes the assistance to the elderly for the first time. The article elapses for the completeness as social practical construction, contributing for the social control in efetivation of what it praises the national politics of health of the elderly. Key-words: Health of the Elderly; pact of the life; history public politics of health; for the completeness. Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº - 6 – p. 174 a 185 – outubro de 2007 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 Introdução Brasil é um país que envelhece, devido ao decréscimo das taxas de fecundidade e mortalidade que se observa durante as últimas décadas. No inicio do século XX, um brasileiro vivia em média 33 anos; ao passo que hoje, a expectativa de vida dos brasileiros atinge os 68 anos. O grupo etário de 60 anos ou mais é o que mais cresce proporcionalmente. Em 1991, o país tinha cerca de 11 milhões de idosos, o que representava 7,3% da população geral. As estimativas indicam que no ano de 2025 o Brasil deverá ter mais de 32 milhões de pessoas com 60 anos ou mais, o que representará 15% da sua população. Em paralelo às modificações observadas pelo crescimento populacional, modifica-se o perfil de saúde da população. Ao invés de processos agudos que “se resolvem” rapidamente através da cura ou do óbito, tornam-se predominantes as doenças crônicas e suas complicações, que implicam em décadas de utilização dos serviços de saúde. Um dos resultados desta dinâmica apresentada é uma demanda crescente por serviços de saúde mais complexos, especializados e de maior custo, sejam eles públicos ou privados. Segundo dados apresentados por pesquisa realizada pela OMS em doze países da América Latina, a situação econômica e a falta de acesso aos serviços de saúde são os principais problemas enfrentados pelos idosos. (Chaimowitz, 1998) Este estudo busca realizar um esboço histórico e uma análise crítica das políticas públicas de saúde, desde a promulgação da Constituição/88 até a recente política do governo federal, através da Portaria nº 399/ GM de 22/02/06, que estabelece as diretrizes do pacto pela saúde, que contempla o pacto pela vida, onde a saúde do idoso aparece como uma das seis prioridades pactuadas entre as três esferas do governo. O Revisão de Literatura No Brasil, o direito universal e integral de assistência à saúde 175 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 176 tornou-se direito social na Constituição de 1988 e reafirmado com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), legitimado com a Lei Orgânica da Saúde 8080/90. Por esse direito, entende-se o acesso universal e equânime a serviços e ações de promoção, proteção e recuperação da saúde, garantindo a integralidade da atenção, nas diferentes realidades e necessidades de saúde da população e dos indivíduos. Esses preceitos constitucionais encontram-se reafirmados pela Lei nº 8142/90, que dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área de saúde. As Normas Operacionais Básicas (NOB), editadas em 1991, 1993, 1996, por sua vez, regulamentam e definem estratégias e movimentos táticos que orientam a operacionalização do sistema. Concomitante à regulamentação do SUS, o Brasil organiza-se para responder às crescentes demandas de sua população que envelhece. A Política Nacional do Idoso, assegura direitos sociais à pessoa idosa, criando condições para promover sua autonomia, integração e participação efetiva na sociedade, reafirmando o direito à saúde nos diversos atendimentos do SUS (lei nº 8842/94 e decreto nº 1946/96). Em 1999, a Portaria Ministerial nº 1395 anuncia a Política Nacional de Saúde do Idoso, a qual determina que os órgãos e entidades do Ministério da Saúde relacionadas ao tema promovam a elaboração ou readequação de planos, projetos e atividades na conformidade das práticas e responsabilidades nela estabelecidas (Brasil 1999). Em 2002, propõe-se a organização e a implantação de Redes Estaduais de Assistência ao idoso (Portaria nº 702/SAS/MS de 2002), tendo como base as condições de gestão e a divisão de responsabilidades definidas pela Norma Operacional de Assistência à Saúde (NOAS). Como parte de operacionalização das redes, criam-se as normas para cadastramento de centros de referência em atenção à saúde do idoso (Portaria nº 249/SAS/MG de 2002). O Estatuto do Idoso foi elaborado em 2003, com intensa participação de entidades de defesa dos interesses dos idosos. O Estatuto Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 amplia a resposta do Estado e da sociedade às necessidades da população idosa, mas não traz consigo meios para financiar as ações propostas. O capítulo IV do Estatuto reza, especificamente, sobre o papel do SUS na garantia de atenção à saúde da pessoa idosa, de forma integral, em todos os níveis de atenção. Em fevereiro de 2006, a Portaria nº 399/GM, estabelece as diretrizes do pacto pela saúde que contempla o pacto pela vida. Nesse documento, a Saúde do idoso aparece como uma das seis prioridades pactuadas entre as três esferas de governo, sendo apresentada uma série de ações que visam, em última instância, à implementação de algumas das diretrizes da Política Nacional de Atenção à Saúde do Idoso. Percebe-se, nesse delineamento histórico sucinto, um avanço teórico/jurídico acerca das políticas públicas de saúde. Entretanto, na prática, convivemos com uma precariedade e uma defasagem de alternativas concretas frente às necessidades de instalações físicas adequadas, recursos humanos em quantidade e qualidade insuficientes e protagonismo inexistente da população idosa. A seguir, analisaremos a assistência da Saúde do Idoso, a crise que vive o sistema de saúde totalmente fragmentado, as recentes políticas do governo com o Estatuto do Idoso e o Pacto pela Vida para minimizar a situação crítica apresentada. A saúde do idoso e a crise do sistema A sociedade contemporânea valoriza as pessoas, criando certos “padrões de normalidade”. E a pessoa idosa foge a estes padrões e isto faz que os mesmos sejam estigmatizados, excluídos e discriminados, até mesmo na forma em que são atendidos nos serviços de saúde. A própria pessoa idosa se percebe em seu imaginário como uma pessoa doente, incapaz, fragilizada e dependente e isso são reforçadas pelo olhar dos familiares e da sociedade em geral. Sabe-se que os idosos utilizam mais os serviços de saúde e são afetados mais freqüentemente por problemas de longa duração (do- 177 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 178 enças crônicas), inclusive com aumento de casos com o vírus HIV, exigindo onerosas intervenções, que envolvem tecnologia complexa, internações com um maior tempo de ocupação de leitos. São necessárias ações efetivas, com pessoal qualificado, com trabalho integrado de equipes multidisciplinares, equipamentos, exames complementares e, principalmente, o envolvimento da sociedade nessa causa. Tudo isto faz com que os custos do setor saúde aumentem. Há que se considerar que os recursos financeiros são precários para, pelo menos, minimizar esta situação. Paralela a esta situação, está a posição da família que, muitas vezes, sem condições financeiras para assistir o idoso, vê como solução institucionalizar o mesmo, colocando-o em casas de repouso, clínicas de recuperação ou asilos. Estas por sua vez, não ofertam cuidados qualificados aos idosos, se preocupando em satisfazer seus interesses financeiros, abandonando os mesmos. Intervenções são necessárias para melhor supervisionar essas instituições a fazer cumprir o Estatuto do Idoso no seu artigo 3º, que reza “que é obrigação da família da comunidade da sociedade e do poder público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, efetivação do direito “...à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária; destacando, no inciso 4, a viabilização de formas alternativas de participação, ocupação e convívio do idoso com as demais gerações”. Cabe observar também que a oferta de cuidados secundários oferecidos pela rede ambulatorial também está em franco desacordo com as propostas contemporâneas em saúde, onde se buscam, ou se têm basicamente consultas realizadas por especialistas, com baixa resolubilidade dos serviços. O não monitoramento das doenças prevalentes e os escassos serviços domiciliares fazem que o primeiro atendimento ocorra em estágio avançado. Infelizmente, o sistema de saúde, hoje vivenciado, é fragmentado, e a preocupação prioritária é a cura de doenças. O conhecimento é centrado nos médicos especialistas, perdendo-se a noção do corpo como um todo. A rede é hierarquizada e a tecnologia complexa. O modelo é hospitalocêntrico ou Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 agudocêntrico, ou seja, incentiva-se a hospitalização ao invés da atenção primária de saúde que deveria ser focalizada no sentido de otimizar a saúde do idoso, tornando-o sujeito centrado. Pacto pela vida O preconceito contra a velhice e a negação da sociedade quanto a esse fenômeno colaboram para a dificuldade de se pensar políticas específicas para esse grupo. Ainda há os que pensam que se investe na infância e se gasta na velhice. Deve ser um compromisso de todo gestor em saúde colocar em prática os princípios e diretrizes do SUS e compreender que, ainda que os custos de hospitalizações e cuidados prolongados sejam elevados nos idosos, também aí está se investindo na velhice. “Quando o envelhecimento é aceito como um êxito, o aproveitamento de competência, experiência e dos recursos humanos dos grupos mais velhos é assumido com naturalidade, como uma vantagem para o crescimento de sociedades humanas maduras e plenamente integradas” (Plano de Madri, Artigo 6º). A fim de responder às demandas da população idosa diante da complexidade que é corresponder a sua assistência, apresentamos abaixo as diretrizes da política nacional de saúde da pessoa idosa: Promoção do envelhecimento ativo e saudável, atenção integral, estímulo às ações intersetoriais, provimento de recursos capazes de assegurar qualidade da atenção, estímulo à participação e fortalecimento do controle social. E ainda, formação e educação permanente dos profissionais de saúde, divulgação e informação sobre a política nacional de saúde da pessoa idosa para profissionais de saúde, gestores e usuários do SUS, promoção de cooperação nacional e internacional das experiências na atenção à saúde, apoio ao desenvolvimento de estudos e pesquisas. Em conformidade com as diretrizes básicas desta política nacional, o Pacto pela Vida, instituído em fevereiro de 2006, é um grande avanço. Prioriza o controle do câncer do colo do útero e da mama; a redução da mortalidade infantil e materna, o fortalecimento da capa- 179 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 180 cidade de respostas às doenças emergentes e endemias, com ênfase na dengue, hanseníase, tuberculose, malária e influenza; promoção da saúde; fortalecimento da atenção e regulação assistencial e inclui, pela primeira vez, a saúde do idoso nas três esferas de governo, como ação prioritária. Os objetivos prioritários à saúde do idoso no pacto pela vida, a nível estadual são: estimular a implementação da caderneta e do manual de atenção básica da saúde da pessoa idosa, apoiar os municípios para a reorganização do processo de acolhimento à pessoa idosa; implementar programa de educação permanente na área do envelhecimento e saúde do idoso voltado para profissionais da rede de atenção básica à saúde. Qualificar a dispensação e o acesso da população idosa à assistência farmacêutica; instituir avaliação geriátrica global a toda pessoa idosa internada em hospital integrante do programa de atenção domiciliar; apoiar os municípios na instituição da atenção domiciliar ao idoso. Diante destes objetivos prioritários à saúde do idoso na esfera estadual, percebe-se o mesmo, Pacto pela Vida ainda simplista incompleto, por não abarcar todas as diretrizes da política nacional, principalmente nos aspectos da integralidade, participação e fortalecimento do controle social que são fundamentais para o êxito do mesmo. Atenção integral e integrada à saúde da pessoa idosa deverá ser estruturada nos moldes de uma linha de cuidados com foco no usuário, baseado nos seus direitos, necessidades, preferências e habilidades. Tornam-se necessárias: a incorporação na atenção básica de mecanismos que promovam a melhoria da qualidade de vida e o aumento da resolubilidade da atenção à pessoa idosa, com envolvimento dos profissionais da atenção básica e das equipes da saúde da família. Deve-se incluir, ainda, a atenção domiciliar e ambulatorial, com incentivo à utilização de instrumentos técnicos validados, como de avaliação funcional e psico-social. Além disso, é importante a incorporação na atenção especializada, de mecanismos que fortaleçam a atenção à pessoa idosa, reestruturação e implementação das Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 redes estaduais de atenção à saúde da pessoa idosa, visando à integração efetiva com a atenção básica e os demais níveis de atenção. Tudo isso garante a integralidade da atenção, por meio de estabelecimento, de fluxos de referência e contra-referencias e implementando, de forma efetiva, modalidades de atendimento que correspondem às necessidades da população idosa. (Galdani, 2006). A política medicamentosa é imprescindível em todos os níveis de atenção, prioritariamente na atenção domiciliar, bem como a alocação de recursos tanto para adequação de estruturas físicas, quanto para ações de qualificação e de capacitação de recursos humanos. Também é importante a produção de material informativo sobre a política nacional de saúde da pessoa idosa, sobre normas e técnicas operacionais de saúde, para gestores e usuários do SUS. Para viabilizar a política nacional de saúde da pessoa idosa, caberá aos gestores do SUS, em todos os níveis, prover os meios para alcançar os propósitos da mesma. Na esfera estadual deverá o gestor: elaborar normas técnicas referentes à atenção à saúde da pessoa idosa no Sus; definir recursos orçamentários e financeiros discutir e pactuar, na comissão intergestores bipartite (CIB), as estratégias e metas a serem alcançadas por esta política a cada ano. implementar as diretrizes da educação permanente e qualificação em consonância com a realidade loco regional; estabelecer instrumentos e indicadores para o acompanhamento e a avaliação do impacto da implantação e implementação dessa política; manter articulação com municípios para o apoio à implantação e supervisão das ações;etc. Diante de inúmeros deveres fundamentais do Estado em prover condições para viabilização dessa política, urge a necessidade de um efetivo trabalho de fiscalização, supervisão e controle social através dos conselhos municipais e estaduais de saúde, órgãos de defesa dos direitos da pessoa idosa, entidades e toda sociedade civil na garantia do que preconiza a política nacional de saúde da pessoa idosa. Deve-se estimular a inclusão nas conferências municipais e estaduais de saúde de temas relacionados à atenção à população idosa: 181 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 de apoio ao desenvolvimento de estudos e pesquisas que avaliem a qualidade e aprimorem a atenção à saúde da pessoa idosa, através de redes de apoio às instituições formadoras, associativas e representativas, universidades e órgãos públicos. A construção social da demanda: uma saída para a crise Diante da complexidade que é envelhecer saudavelmente, a política nacional de saúde da pessoa idosa, contempla as ações, programas, projetos e atividades a serem desenvolvidos de forma descentralizada, com assistência humanizada, integral. Com qualidade. Pinheiros e Mattos, 2005, pág. 5, afirmam que: 182 (...) a integralidade é um termo polissêmico e polifônico, pois reúne diferentes significados, sentidos e vozes resultantes da interação dos sujeitos no cotidiano de suas práticas em saúde. Sua definição legal aponta para a integração de atos preventivos, curativos, individuais e coletivos, em cada caso dos níveis de complexidade. Já pela perspectiva dos usuários, a ação integral tem sido freqüentemente associada ao tratamento digno e respeitoso com qualidade, acolhimento e vínculo. Como construção e prática social, a integralidade ganha riqueza e expressão porque reúne os valores que as pessoas defendem e nos quais, ao mesmo tempo, elas imprimem sua experiência de vida. Demanda que se constrói na luta pela garantia do direito à saúde como questão de cidadania, na conformação de um trabalho em equipe com profissionais qualificados, capazes de reconhecer a alteridade dos usuários e a participação dos sujeitos com suas diferentes vozes ecoadas em distintos espaços públicos. Envolver a pessoa idosa na construção social da demanda é uma tarefa complexa, considerando que os próprios idosos não se vêem neste papel, na medida em que são percebidos e tratados pelos próprios profissionais de saúde com impaciência e descaso.Imagina-se que os velhos são desinte- Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 ressantes, exigentes, queixosos, dependentes e intrometidos. Todas as iniciativas pertinentes à promoção da saúde do idoso perpassam por mudanças culturais acerca da visão que se tem da pessoa idosa. Pickles, (2002) afirma que para que haja êxito nos programas de promoção de saúde é indispensável envolver o indivíduo ou a comunidade nos fatores que os levam a ter disposição para participar, habilitando-os a modificar seu comportamento em conseqüência dessa participação. Pinheiro e Mattos, (2005) afirmam que as necessidades em saúde ou demanda de cuidados médicos fazem parte do imaginário social e, portanto, estão permeadas de conteúdos simbólicos. Traduzir as necessidades e demandas, dar voz aos sujeitos, pode ser uma das estratégias para se organizar as práticas de integralidade em saúde nos serviços públicos. Isso significa que a ação dos sujeitos na busca de melhorias e enfrentamento dos problemas individuais e coletivos, merece atenção especial por parte dos profissionais de saúde e gestores. E quando isto não acontece ou seja, decidem implementar projetos de saúde sem um contato prévio com a população.Esses projetos tendem ao fracasso, pois se organizam a partir de representações e visões de mundo diferentes, não atendendo a real demanda do público-alvo. Para isso, é necessário haver sensibilização das equipes que atuam nos serviços de referência às unidades básicas de saúde, ou nos módulos de saúde da família, quanto ao acolhimento, o estabelecimento de vínculos e a responsabilidade para com os usuários, no sentido de possibilitar a escuta e estimular a autonomia dos usuários, seu auto-cuidado e empoderamento, contribuindo para um controle social eficaz. Algumas propostas devem ser avaliadas como importantes para um trabalho de equipe resolutivo: reuniões de equipe com discussão de casos numa perspectiva transdiciplinar, atividades de educação permanente, discussão conjunta de processos de trabalho pactuados com a equipe a clientela atendida. Não pode ser esquecida a busca de parcerias fora da esfera pública e de formação de redes. 183 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 Para Pinheiro e Mattos (2005) “rede cuidadosa” não é restrita aos serviços de saúde. Mais do que isto, pressupõe a articulação com outros recursos da sociedade, como apoio familiar, religioso, alternativas de sustentação econômica, moradias, redes de solidariedade e outros que compõem as redes sociais de apoio. 184 Considerações finais Percorrendo a trajetória histórica das políticas públicas de saúde, desde a promulgação da Constituição de 1988 que já assegurava o ampara às pessoas idosas pela família, pela sociedade e pelo Estado, defendendo sua dignidade e bem-estar, garantindo o direito à vida e sua participação na comunidade, percebe-se uma morosa caminhada na efetivação das políticas públicas de assistência ao idoso. Ela contempla basicamente todos os aspectos fundamentais à melhoria na assistência à saúde da pessoa idosa, mas muito há de se fazer entender, principalmente no tocante ao incentivo à participação da pessoa idosa na elaboração das políticas públicas de saúde e no controle social das mesmas. Torna-se necessário também a formação de equipes especializadas para criarem um movimento de desospitalização, com práticas de assistência focalizadas na atenção primária, incentivando o autocuidado do idoso e o protagonismo, no sentido dos mesmos assumirem seu papel de cidadãos e cobrarem do sistema, resolutividade dos serviços de saúde em todos os níveis, otimizando a saúde necessária e de direito. Pinheiros e Mattos, 2005, chamam de integralidade, como construção e prática social da demanda, que se constrói na luta pela garantia do direito à saúde como questão de cidadania, na conformação de um trabalho em equipe com profissionais qualificados, capazes de reconhecer a alteridade dos usuários e a participação dos sujeitos com suas diferentes vozes ecoadas em distintos espaços públicos. Enfim, o envelhecimento é um grande desafio ao mundo contemporâneo, considerando sua complexa realidade, que perpassa por Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 questões sócio-econômicas e culturais, sendo, talvez necessário, uma revitalização da sociedade quanto à valorização acerca do papel do idoso enquanto cidadão de direito. REFERÊNCIAS ALCÂNTARA, ZABAGLIA (Org.). A arte de envelhecer – Saúde, trabalho, afetividade e estatuto. Idéias e letras, UERJ. Rio de Janeiro, 2004. CHAIMOWITZ, Flávio. Os idosos brasileiros no século XXI – Demografia, saúde e sociedade. Postgraduate, Belo Horizonte, 1998. PICKLES, Barrie; COMPTON, Ann; COTT, Cheryl; et. al. Fisioterapia na 3ª idade. Livraria Editora. Santos, 2ª edição, 2000 1ª reimpressão, 2002. PINHEIRO, R.; MATTOS, R.A. (Org.); A Construção social da demandadireito à saúde – trabalho em equipe- participação e espaços públicos. IMS/UERJ – CEPESC – Abrasco – Rio de Janeiro 2005. Lei nº 8.080 de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. CRESS/7ª Região. “Assistente social: ética e direitos. Coletânea de Leis e Ações”. Ed. Lidador. Rio de Janeiro, 2000. Brasília, 1990. Lei nº 8.142, de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde – SUS – e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências. CRESS/7ª Região. “Assistente social: ética e direitos. Coletânea de Leis e Ações” Ed. Lidador. Rio de Janeiro, 2000. Brasília, 1990. GALVANI, Milton, [2006]. Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa. Disponível em: <http://www.abraz.com.br/default.aspx?pagid=DKICRLTL>, acessado em Janeiro de 2007. ESTATUTO DO IDOSO, Lei nº 10.741 de 1º de Outubro de 2003. Cartilha do Centro de Convivência do Idoso Maria Cândida da Silva. 185 RESENHA CARVALHO, José Mauricio de. Filosofia e Psicologia, o pensamento fenomenológico existencial de Karl Jaspers. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2006, 265 p. D 186 ando cumprimento à sua vocação de historiador da filosofia, José Maurício de Carvalho vem de publicar um livro dedicado ao filósofo alemão Karl Jaspers (1883/1969). A edição esteve a cargo da Imprensa Nacional de Portugal, sendo esta a referência: Filosofia e psicologia. O pensamento filosófico-existencial de Karl Jaspers (Lisboa, Imprensa Nacional, 2006, 265 p.). Precedentemente, estudara os principais filósofos brasileiros e portugueses, bem como autores de outras nacionalidades com marcada presença na filosofia luso-brasileira, a exemplo de Ortega y Gasset (1883/1955). Na época em que Jaspers forma seu espírito – nas primeiras décadas do século XX – já o neokantismo de Hermann Cohen (1842/ 1918) alcançara uma posição de destaque na filosofia alemã. O processo de formação da química e da biologia, segundo o modelo da física-matemática, na segunda metade do século XIX, dera um grande alento ao positivismo, corrente filosófica que supunha viria a ciência a ocupar todo o campo do saber, dispensando a necessidade de meditação de índole filosófica. A reação contra essa suposição simplificadora começa, na Alemanha, nos anos oitenta, sob o lema de “volta a Kant”. Caberia a Hermann Cohen dar-lhe consistência, restaurando o prestígio da filosofia nos meios acadêmicos germânicos. Contudo, a primazia do kantismo incomodava aos pensadores que entendiam devesse a filosofia ultrapassar os limites da experiência humana, a fim de ocupar-se da divindade. Não se tratava de abordar Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº - 6 – p. 186 a 189 – outubro de 2007 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 a experiência religiosa – tema que viria a florescer, entre outras coisas pela busca da especificidade da cultura, emergente como desdobramento do neokantismo. Mas de restaurar os direitos da teologia, isto é, de uma abordagem puramente conceitual acerca de Deus. O ponto do kantismo a ser enfrentado dizia respeito à interdição da intuição intelectual (para Kant a intuição é exclusivamente sensível, imediata, esporádica) e esta seria a tarefa a que se lançou Edmund (Husserl1859/1938), dando origem a uma outra corrente filosófica, a denominada fenomenologia. Como evidencia José Maurício de Carvalho, o interesse de Karl Jaspers pela fenomenologia advém de sua condição de médico psiquiatra. Muitos filósofos entenderam que o método criado por Husserl permitia estruturar uma base conceitual sólida, capaz de servir como fundamento para as ciências humanas. Os psiquiatras ressentiam-se de um tal fundamento. Alguns cuidaram de explorar a hipótese fenomenológica. Este não seria apenas o caso de Jaspers. No Brasil, Nilton Campos, que era diretor do Instituto de Psicologia da antiga Universidade do Brasil (atual UFRJ), popularizou em livro a idéia do método fenomenológico na psicologia. Aquiles Cortes Guimarães estudou o movimento por ele desencadeado (no livro Momentos do pensamento luso-brasileiro, Tempo Brasileiro, 1981), integrado por médicos e psicólogos de renome, destacando Antonio Gomes Pena, Eustáquio Portela, Élson Arruda, Nelson Pires e Isaias Paim. Entretanto, segundo Aquiles Cortes Guimarães, essa linha encontrava-se cada vez mais distanciada de preocupações filosóficas. Caberia a Creusa Capalbo retomar o tema do fundamento, abordado com a devida amplitude, inclusive comprovando a eficácia do método fenomenológico na adequada estruturação das ciências humanas. Sua obra iria situar o movimento fenomenológico como uma das vertentes expressivas da filosofia brasileira contemporânea. Assim, o “caso Jaspers”, independentemente do valor de sua contribuição à filosofia, reveste-se de particular interesse para a nossa circunstância. Convencido da relevância da meditação de Jaspers para a filoso- 187 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 188 fia contemporânea, José Maurício de Carvalho não seguiu a trajetória existencial do filósofo, por entender que “toda a reflexão filosófica que elaborou é necessária para clarear as posições que assumiu como terapeuta. Por isso, optamos por apresentá-las depois de propor suas teses filosóficas. Seguimos na exposição, o caminho inverso à história da vida do filósofo, mas clareamos como ele vê a relação entre a ciência e a filosofia”. Filosofia e psicologia subdivide-se em três capítulos. Os dois primeiros estão dedicados à posição do autor, respectivamente, nos movimentos existencialista e fenomenológico. Para José Maurício de Carvalho, Jaspers entende que o existencialismo deita raízes no próprio nascedouro da filosofia, não se limitando, portanto, ao que emergia no seu tempo. A seu ver, na obra de Jaspers “a existência humana passa a ser a perspectiva pela qual toda a filosofia do Ocidente é revista, revisada, examinada”. Repousa “na existência individual, na vida concreta de cada homem”. Contudo, o método por ele adotado provém da fenomenologia, que lhe permite estabelecer o seguinte princípio: “A reflexão sobre o real revela que, além da linguagem e do que pode ser objetivamente conhecido, isto é, a verdade científica, há uma realidade inexprimível, impensável e irredutível à experiência, que o filósofo denomina de transcendência”. Jaspers avança o conceito de englobante, que permitiria ter acesso ao transcendente e, ao mesmo tempo, assegurar a integração dos diversos planos do saber. Eis o que ele escreve o autor: “A hierarquia existente entre os englobantes aponta modos distintos de verdade. Jaspers considera que existe uma verdade imediata e pragmática. Segue-se a verdade científica, que é alcançável por todos os homens pela construção coletiva e rigorosa da evidência. Em seguida, nos deparamos com as verdades que não nascem da evidência, mas da convicção. Passamos então ao espaço da ética e da exigência absoluta que Jaspers recupera da razão prática formulada por Kant. Agimos pelo convencimento nesses casos. Finalmente, existe uma verdade mais ampla, a verdade da transcendência, que é abarcada na fé filosófica. As questões examinadas pela ciência, ética e religião se encadeiam Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 na formação do que é a realidade para o existente” (pág. 157). O título que deu ao livro está plenamente justificado pelo que contém o terceiro capítulo. Trata-se de uma análise exaustiva da obra relacionada à sua especialidade, bem como a meditação que dedicou à psicologia em obras filosóficas. Jaspers é autor de Psicopatologia geral, considerada como texto essencial à formação médica. José Maurício de Carvalho adianta que as considerações no que respeita à disciplina, em obras filosóficas, encontrar-se-iam sobretudo na Introdução ao Pensamento Filosófico e no livro Razão e Contra-Razão de nosso tempo. Transcrevo as indicações do autor, no que se refere ao seu significado, por me parecer que são suficientemente elucidativas: “Nessas obras, descobrem-se as linhas gerais que orientam o pensamento de Karl Jaspers sobre a Psicologia e a relação terapeuta paciente. De um lado, ele procura fazer, a partir da fenomenologia, a mais exata descrição possível dos fatos psicológicos e assegura o caráter de cientificidade dessa investigação; de outro, constata que a dimensão existencial afeta o comportamento tanto do terapeuta como de quem o procura para pensar o seu mundo. Se ela não é impedimento para que se construa uma ciência psicológica, é preciso assegurar que a ciência daí emergente não tenha a pretensão de ser uma ciência total, isto é, como uma palavra de explicação sobre todos os fatos da vida humana” (pág. 161). Suponho que as breves indicações precedentes servem para destacar a oportunidade da publicação. Antonio Paim Instituto Brasileiro de Filosofia 189 ORIENTAÇÕES PARA A APRESENTAÇÃO DE TEXTOS PARA A PUBLICAÇÃO 1 – Informações gerais A revista Cadernos da Pós-Graduação – Contemporaneum –, editada pela FUNEDI (unidade associada à UEMG/Universidade do Estado de Minas Gerais) propõe-se a publicar artigos que dialoguem com as linhas de pesquisa (Cultura e Linguagem, Espaço e Sociedade, Saúde Coletiva) de seu mestrado em Educação, Cultura e Organizações Sociais (área de concentração: Estudos Contemporâneos). Trata-se, pois, de artigos que remetam a reflexões sobre a contemporaneidade, sejam centrados na pesquisa e nas práticas profissionais ou sejam voltados para a reflexão crítica sobre a produção do conhecimento nos cruzamentos daquelas três grandes áreas (Educação, Cultura e Organizações Sociais), desde uma perspectiva sensível à transdisciplinaridade. 2 – Orientação editoriais Os artigos devem ser inéditos e seus originais serão submetidos a exame pelo Comitê Editorial, que, para tal, poderá fazer uso de consultores “ad hoc”, a seu critério, omitida a identidade dos autores. Estes, serão notificados da aceitação ou não dos artigos. Os originais não serão devolvidos. Pequenas modificações no texto poderão ser feitas pelo Comitê Editorial, mas as modificações substanciais serão solicitadas, a tempo, aos autores. Os artigos assinados expressarão exclusivamente o pensamento de seu autores. É permitida a reprodução parcial dos artigos desde que citada a fonte. O Comitê Editorial se encontra encarregado de delinear as estratégias e temáticas que possam aprimorar os objetivos maiores da revista, a saber, a integração entre os distintos níveis da Universidade (graduação, pósgraduação e atuações extensionistas), o cruzamento de suas possibilidades de ação (ensino e pesquisa) e participação nas complexidades cotidianas da sociedade. 191 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 O itinerário dos textos que chegam ao Comitê Editorial é o seguinte: 1) encaminhamento para parecer; 2) encaminhamento do resultado do parecer para a reunião do Comitê Editorial, para decisão final; 3) informação para o autor: se recusado, se aprovado ou se necessita de reformulações (neste caso, é definido um prazo de 30 dias, findo o qual o artigo é desconsiderado, caso o autor não o reformule); 4) encaminhamento do texto diagramado para o autor revisar (o prazo é de uma semana para retornar ao Comitê Editorial); 6) publicação. 192 3 – Apresentação dos trabalhos Os artigos devem ser direcionados ao coordenador do Mestrado em Educação, Cultura e Organizações Sociais da FUNEDI/UEMG que, na condição de presidente do Comitê Editorial, dará seqüência à tramitação do mesmo. Os artigos devem ser enviados em três vias impressas, fonte Times New Roman, corpo 12, espaço 1,5 e todas as margens de 2cm. Devem ser enviados resumo, em Português e abstract em Inglês contendo até 100 palavras, além de três ou quatro palavras chaves com as respectivas key-words. A primeira lauda do texto original deve conter o título do trabalho, nome completo do autor, vínculo institucional, e-mail e seu respectivo endereço. As demais páginas devem ser numeradas consecutivamente, a partir de 2. Também se deve apresentar uma gravação do texto em disquete, no formato “word for windows 2000” (doc.). No corpo do artigo não devem ser incluídos elementos que possibilitem identificar o(s) autor(es) do texto (ex.: papel timbrado, rodapé com o nome do autor, etc.). O material deve ser enviado à coordenação do mestrado em Educação, Cultura e Organizações Sociais da FUNEDI/UEMG com uma carta de encaminhamento assinada pelo autor (no caso de único) ou por todos os autores (no caso de coautoria) e autorizando a publicação do mesmo. A revista Cadernos da Pós-Graduação – Contemporaneum é semestral, sendo que os períodos ordinários de recebimento de trabalhos para a publicação são os seguintes: de 01 de janeiro a 30 de Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 março (para o número do primeiro semestre), de 01 de julho a 30 de setembro (para o número do segundo semestre). 4 – Tipos de Texto 1. Artigos – reflexões sobre os modos de pensar e atuar vigentes na cena contemporânea e as novas elaborações nos campos da Educação, Cultura e Organizações Sociais, privilegiando-se propostas e/ou metodologias inter e transdisciplinares (de 8 a 10 laudas); 2. Relatos de pesquisa – investigações concluídas ou em fase de adiantado desenvolvimento baseadas em dados de campo, recorrendo a metodologia quantitativa e/ou qualitativa. Nesse caso, é necessário conter introdução, metodologia, resultados e discussão (de 8 a 10 laudas); 3. Relatos de experiência – relatos de experiência profissional ou intervenções de caráter extensionista de interesse para as diferentes ações inter ou transdisciplinares (até 5 laudas); 4. Comunicações – relatos breves de pesquisas ou trabalhos apresentados em reuniões científicas/eventos culturais (até 5 laudas laudas); 5. Debates – comentários completos e réplicas a textos publicados em números anteriores da revista (até 5 laudas) 6. Resenhas – apresentações e comentários de livros e/ou produtos culturais que dialoguem com a cena contemporânea desde uma perspectiva que possibilite prospecções transdisciplinares, essencialmente aquelas que debatam com a Educação, Cultura e Organizações Sociais. 5 – Normatização acadêmico-científica 1. As formas de entrada e a realização das citações, bem como a indicação, ao final do artigo, das referências bibliográficas (convencionais ou eletrônicas), devem se basear nas normalizações indicadas por FRANÇA, Júnia Lessa & DE VASCONCELOS, Ana Cristina. Manual para normalização de publicações técnico-científicas. 9.ed. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004. 193 Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº- 6 – outubro de 2007 2. Para as situações mais recorrentes, nos casos de citações, devem ser seguidas as seguintes diretrizes 2.1. Citações curtas (de até três linhas): são inseridas no corpo do texto, sempre entre aspas, tal como o exemplo a seguir: A globalização implica em um “rearranjo das interrelações entre espaço e tempo de amplas repercussões para a relação que, doravante, se mantém com o passado e o futuro” (GIDDENS, 1997, p. 132). Verifica-se, por conseguinte, uma outra forma de se vincular e se romper com a tradição. 194 2.2. Citações longas (acima de três linhas): devem constituir um parágrafo independente, recuado (4 cm da margem esquerda), com tamanho de letra menor que o utilizado no texto e com espaçamento 1 entre linhas, dispensando as aspas. 3. No caso de utilização das notas de rodapé, as mesmas devem ser convertidas em notas de fim do texto. 4. Em especial, para os demais casos e possibilidades de normatização acadêmico-científica, deve-se observar as partes relativas às citações (capítulo 13), notas de rodapé (capítulo 14) e referências (capítulo 15) do manual indicado. Esta revista foi composta na tipologia Times New Roman e em corpo 11/13,9. O miolo foi impresso em papel apergaminhado 75g e a capa, em papel supremo 250g. Impresso na Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais em outubro de 2007.