A indesejada - O outro lado do muro
Transcrição
A indesejada - O outro lado do muro
A indesejada Com agulhas de tricô, remédios proibidos na internet ou em clinicas de luxo, cerca de 1 milhão de mulheres no Brasil interrompem por ano a gravidez não planejada Fernanda Campagnucci e Jamila Venturini para a Revista Babel Colocar a camisinha, naquela hora, poderia estragar tudo. Era a primeira vez dele – não a dela – e Joana* queria que fosse perfeita. Mas a inexperiência de seu namorado não fez a coisa parecer para valer. Era como se fosse uma tentativa, mas deu mais que certo: ela ficou grávida naquela noite. Joana estava no primeiro ano da faculdade. Ela tinha 20 anos e um mês de namoro. Ele, 19. Com R$ 80 reais, ela resolveu se livrar de um futuro que não queria, e pensou que tudo fosse dar errado quando o sangramento ficou forte demais: "a maneira de resolver essa situação indesejada é inserindo coisas dentro do você. Você se sente violentando seu corpo. Aí você vê como sua vida está ligada diretamente a ele. Você começa a ver sua vida como um todo, que as coisas não são separadas, que é sua própria carne", disse, cinco anos depois. Há uma semana Luisa* não encontrava seu namorado que morava em outra cidade. Como de costume, o rapaz foi a São Paulo e os dois passaram a noite a juntos. Ela sabe que foi nessa noite que aconteceu. Estamos no final de 2007 e a garota tem 18 anos. Tomava pílula desde os 13, mas ultimamente vinha esquecendo de tomar todos os dias, no mesmo horário. Um mês depois, Luisa foi viajar com os pais para o Reveillon. Durante a viagem, ela começou a se sentir diferente – "eu estava muito chata nessa viagem, foi muito estranho". E estranha foi a festa "2017" (onde todos tinham que se imaginar dez anos depois). Enquanto outros se vestiam de "galáxia", ela era uma "mãe de vários filhos, com um barrigão de grávida". Com o tempo começou a notar os sintomas ("todos aqueles sintomas ridículos de grávida") e, desconfiada, foi a seu médico e pediu os exames. O mesmo médico que, contrariado, indicou o endereço da clínica de luxo na zona sul de São Paulo onde ela faria o aborto. Só um espermatozóide Marília* não se arrepende de sua decisão. "Só uma mulher sabe as conseqüências que uma gravidez tem no seu corpo e na sua vida." Ela tinha 23 anos e estava na faculdade. Na época, seu namorado morava no Rio de Janeiro. Foi em 2005 e tudo aconteceu muito rápido, Marília estava decidida. Segundo o médico de seu namorado, ele não poderia ter filhos – tinha baixa contagem de esperma. A notícia deixou mais fácil a decisão de usar camisinha ou pílula. "O homem não gosta de usar camisinha quando há uma relação estável, é comum que o casal não use", diz. "Apenas um espermatozóide é suficiente para engravidar uma mulher", foi o que ouviu de seu médico quando descobriu que, sim, estava grávida."Quando recebi o exame, a enfermeira sorriu e me deu os parabéns, eu peguei o envelope e saí, já sabia o que iria fazer." Foi o (agora ex) namorado de Marília quem encontrou uma clínica onde ela poderia fazer o aborto. A maior dificuldade então foi conseguir o dinheiro, já que não poderia pedir ajuda para os pais que até hoje não sabem da historia. Foram R$ 1.200 mais R$ 200 para uma injeção. Ela só conseguiu bancar a operação com o empréstimo de uma amiga. Era uma clínica luxosa no Rio de Janeiro, só funcionava de manhã e estava lotada. "É como em qualquer outro médico, você fica na sala de espera, lê uma revista... A diferença é que de repente sai uma menina chorando, outra meio grogue..." Marília estava com um mês de gravidez quando fez o aborto. "Não me sinto culpada, pode acontecer com qualquer um, é uma coisa muito natural." Clínica muito chique "...Meu médico passou o telefone desse cara, porque ele já sabe quem faz. Mas ele nem falou nada, só passou o telefone", conta Luisa. Como Marília, ela se espantou com o padrão do prédio, já que sua única referência sobre aborto era o mundo-cão do Crime de Padre Amaro, de Eça de Queiroz. "Era uma clínica muito linda, muito chique. É tipo uma clinica de estética, você marca a consulta com as secretárias normalmente, pelo convênio, sem falar nada". Mas a intervenção acontece numa sala escondida da clínica. Deram-lhe uma injeção e calmante. Sua mãe e seu namorado estavam do seu lado, ele segurava sua mão. "Deitei na maca, me levaram para a sala de cirurgia, eu fiquei grogue e apaguei. Acordei na cama do quarto, uma ou duas horas depois." Pronto. Ou melhor, ainda não: o dinheiro, R$2.500 à vista, com "desconto", sua mãe entregou para a enfermeira, na hora. "Meu pai é executivo, para ele não faz diferença esse dinheiro..." "Quem não tem dinheiro, passa por situações terríveis, como introduzir agulha de tricô ou outros materiais dentro do útero. Isso tem um impacto muito grande na saúde pública, porque essas mulheres vêm para o hospital com as complicações de abortos mal feitos", conta Carolina Carvalho, ginecologista do Ambulatório do Climatério da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Joana descobriu que estava grávida quando foi a um médico na faculdade. Vendo seu desespero, ele mesmo lhe indicou quem poderia fazer o aborto, apesar de se posicionar contra. Quando procurou o médico, já estava com dois meses de gravidez. "Foi uma experiência super ruim: o lugar era meio estranho, a atendente me tratava de um jeito meio estranho... Ele me examinou e falou que era muito difícil o meu caso, me tratou mal e disse que não iria fazer. Além disso, o valor cobrado por ele era absurdo, algo em torno de 2 mil reais, eu nunca teria como pagar". Cytotec Joana foi a vários médicos de Sorocaba, mas nenhum aceitou fazer o aborto ou indicar algum medicamento abortivo. Com ajuda de amigos de amigos, conseguiu o Cytotec, que hoje é comercializado pela internet, na forma de verdadeiros kits de aborto (ouça reportagem neste blog). O Cytotec custou R$ 80. Era para tomar um e introduzir um na vagina. "Depois que você coloca o remédio, tem que ficar esperando. Dói muito, dá uma cólica do tamanho do mundo. Começou a sangrar um pouco e minha família cogitou me levar ao médico, estava dando medo. Aí teve uma hora que deu um 'estalo' e eu senti que soltou alguma coisa. Parou de doer, mas começou um sangramento muito, muito forte. Aí eu fiz a curetagem, correu tudo bem, só tive um pouco de cólica depois.", conta Joana. "Depois que o Cytotec entrou no mercado paralelo, as pacientes chegam com um índice menor de infecção. Pelo menos não é uma coisa infectada que esta sendo colocada dentro do útero para ser abortivo. Mas não é 100% dos casos que aborta. Nos casos em que não aborta, há risco de má formação", explica a médica Carolina Carvalho. "Só uma mulher sabe as conseqüências que uma gravidez tem no seu corpo e na sua vida", diz Marília, que já era feminista quando fez o aborto. Ela defende a autonomia da mulher sobre seu corpo: "sua sexualidade tem que estar a seu favor e não a serviço do seu namorado, marido ou da sociedade". Para ela, a sociedade ainda exige que a mulher veja os filhos como um complemento. "Nem sempre é assim, a mulher não nasce só para procriar", afirma. As mulheres que defendem a interrupção da gravidez evocam a noção de direitos reprodutivos. A exemplo do que já acontece em diversos países – como a França, a maioria dos estados dos EUA, Canadá, China, Rússia e, agora, Portugal –, o movimento feminista defende o aborto por qualquer motivo, desde que a gravidez não esteja muito avançada. "Direitos reprodutivos é a mulher poder escolher o que é melhor para ela em termos de reprodução", explica Carolina – desde o anticoncepcional que quer usar, até a decisão de interromper a gravidez quando entender que um filho não é conveniente em sua vida. No dia 7 de maio, a Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara rejeitou dois projetos de lei que tramitavam na Câmara. Os textos autorizavam o aborto até 90 dias de gestação e retiravam do código penal o artigo que classifica o aborto como crime. Outros quatro grupos de projetos ainda tramitam na Casa. No ano passado, 17 textos existentes foram agrupados em cinco – desde projetos que flexibilizam a lei até os que retiram qualquer possibilidade de aborto, mesmo em casos de estupro e risco para a mãe. Sexo ilegal, aborto legal A legislação brasileira determina que o aborto pode ser realizado legalmente caso a gravidez resulte de estupro ou se puder causar risco de vida para a gestante. "É muito estranho [o conservadorismo no Brasil] porque em casos como estupro o aborto é permitido. Não se está tirando uma vida, como eles dizem, da mesma forma? Afinal, o bebê que esta ali dentro não tem culpa de nada. Por que uma vida é melhor que a outra?", questiona Carolina. Mas os conservadores são mais coerentes do que pensa a doutora. Um projeto de lei criado pelos deputados Henrique Fontana (PT-AC) e Jusmari Oliveira (PR-BA), prevê o pagamento de uma "bolsa" de um salário mínimo às mulheres que foram vítimas de estupro para que não abortem. O beneficio seria estendido até que a criança complete 18 anos. No texto do projeto, os deputados argumentam que o aborto é "mais monstruoso" do que o próprio estupro: "será justo que a mãe faça com o bebê o que nem o estuprador ousou fazer com ela: matá-la?" Polêmico, o projeto chegou a receber parecer favorável na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados, mas foi retirado de pauta no fim do ano passado. A ginecologista Rosiane Mattar, coordenadora da Casa de Saúde da Mulher Domingos Deláscio, da Unifesp, conta que sua equipe atende em média duas vítimas de violência sexual por semana. Isso porque, graças a um convênio entre a secretaria de Segurança Pública e a secretaria de Saúde do município de São Paulo, as delegacias encaminham as mulheres que chegam para denunciar abusos para outro hospital especializado neste tipo de atendimento, o Pérola Byington. Ela estima que lá sejam atendidas de 200 a 300 casos por mês. Das mulheres que chegam ao hospital, segundo a médica, há uma grande porcentagem de casos de gravidez. "Fazemos a interrupção da gravidez se a paciente desejar, senão, fazemos a assistência pré-natal". O hospital também oferece assistência social para as que optam por encaminhar a criança para adoção. No entanto, segundo ela, na maioria das vezes as mulheres optam pelo aborto. Rosiane trabalha com mulheres vítimas de violência sexual há dez anos e lembra casos que a impressionaram. "Violência contra crianças é sempre muito chocante, pessoas com deficiência mental que são abusadas também." Ela se lembra de uma moradora de rua que foi estuprada por onze homens. "É muito difícil, alguém tem que atender, mas não é o que eu mais gosto de fazer, não", diz. "A gente tem que deixar de se colocar como indivíduo, abrir mão de nossas opiniões, para respeitar a situação que a mulher está vivendo e tentar ajuda-la, e não prosseguir a violência de outra forma." A ginecologista lamenta que os atendimentos estejam centralizados em um único hospital. Para ela, isso faz com que os residentes não tenham contato com esses casos e, conseqüentemente, não estejam sensibilizados para atender as pacientes em outros locais. "Eu aborto, tu abortas..." Luisa nunca tinha pensado sobre a questão do aborto antes de engravidar. Para ela, o aborto legal era possível, desde que fosse bem pago. Depois que engravidou, sua mãe, que já havia feito um aborto traumatizante, tentou dissuadi-la, dizendo que as coisas nunca acontecem por acaso. "Eu não queria essa herança da minha família, porque todas as mulheres, desde a minha avó, tiveram filhos muito cedo. Eu tenho uma tia que teve com 17, minha avó teve com 15, e, minha mãe, com 20", conta. Um mês depois de abortar, Luisa acompanhou uma amiga, militante do movimento feminista, na Marcha Mundial das Mulheres em comemoração ao dia 8 de março. Ainda com a roupa do colégio, Luisa pediu-lhe uma camiseta emprestada. A camiseta, preta, dizia em letras brancas: Eu aborto, tu abortas, somos todas clandestinas. "Se minha mãe tivesse visto, ela teria me matado!", brinca. De acordo com o relatório "Morte e Negação: Abortamento Inseguro e Pobreza", divulgado no ano passado pela Federação Internacional de Planejamento Familiar (IPPF, na sigla em inglês), o Brasil é responsável por 1 milhão de interrupções de gravidez de forma insegura a cada ano. Em 2006, a média foi de 686 internações no Sistema Único de Saúde (SUS) para tratamento de complicações pós-aborto. As internações representaram um custo de R$ 33 milhões para o Estado. Um outro estudo, realizado por pesquisadores da Universidade de Brasília (UnB) e divulgado no inicio de maio, traça o perfil das mulheres que abortam no país. Segundo o levantamento, a maioria dos abortos é feita por mulheres de 20 a 29 anos de idade, que trabalham, têm pelo menos um filho, usam métodos contraceptivos, são da religião católica e mantêm relacionamentos estáveis. Elas têm até oito anos de escolaridade e estão no mercado de trabalho com renda de até três salários mínimos.