as naturezas do pescador

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as naturezas do pescador
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AS NATUREZAS DO PESCADOR
JACQUES
LABERGE
Psicólogo, Fundação Josué de Castro, Recife
FERRENHA F I D E L I D A D E
à pesca, saborosa gargalhada, gosto pela v i da e por u m gole de cachaça, cabe ao v e l h o
pescador Bambão, de Itapissuma-PE, iniciar estas anotações. A i n compreensível p e r g u n t a sobre a p s i c o l o g i a d o p e s c a d o r ,
ele
respondeu à altura com a enigmática frase: "pescado num tá com
muitas natureza". Feliz p o r causar perplexidade, fez esperar pela
explicação; "num
tá com muitas
^^tureza diferente
do agriculto,
natureza,
do operário".
porque
num
tem
A t e n t a t i v a de
delinear u m perfil do pescador, o do Nordeste em particular, esbarra
sua recusa de ser considerado u m bicho raro. "Há os violentos e
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os calmos em toda classe de gente", afirma sabiamente L u i z , colego
em conversas c o m pescadores artesanais do Nordeste, outra parte
de Bambão, afirmação que poderia endossar Lévi-Strauss e m su^i
em relatórios e boletins da Pastoral dos Pescadores, u m dos poucos
c o n c e p ç ã o e s t r u t u r a l i s t a : a v i o l ê n c i a e a c a l m a , c o m o p a r do
apoios para sua luta durante os 22 anos de regime militar no Brasil.
oposições, sustentam a h u m a n i d a d e .
Uma terceira fonte de informações f o i a leitura de textos sobre os
Perguntar ao pescador artesanal do Nordeste sobre sua psicologia
pescadores do Nordeste; Lendas vivas do mar, de Hélio Albuquerque
pode ser sentido p o r ele como tentativa de enquadramento. Para
Melo (Recife, Imprensa Oficial, 1963); Jangada de Luís Câmara Cas-
que ser objeto de curiosidade se o nível de v i d a não melhora ?
cudo (Rio
Os psicólogos f a l a m de psicologia da infância, da adolescência,
Janeiro, Letras e Artes, 1964).
Uma quarta contribuição foi fornecida por três grandes romances
sobre a pesca e o pescador: u m brasileiro e dois americanos: Mar
d o h o m e m , da m u l h e r .
Os psicanalistas desconfiam destas sínteses abrangentes e acham
Morto, escrito e m 1936 p o r Jorge A m a d o (Rio de Janeiro, Record,
mais próximo à verdade destacar traços característicos das diversas
1982); O Velho e o Mar, de H e m m i n g w a y {The Old Man and the Sea,
"doenças psíquicas" partilhadas pelos seres humanos:
London, Jonathan Cape, 1952); e o clássico de setecentas páginas
editado pela A b r i l e m 1972, obra-prima de H e r m a n M e l v i l l e , p u -
•
protelamento de decisões, rituais de o r d e m e limpeza para
aplacar a culpa frente ao próprio desejo assassino, na neurose
blicada nos Estados U n i d o s da América e m \%5\:Mohy Dick.
A s referências psicanalíticas provêem das Obras Completas
de
obsessiva;
Sigmund Freud nos seusXXIII volumes publicados na Edição Standard
•
recusa da sexualidade que se converte e m doenças físicas,
Brasileira (Rio de Janeiro, Imago Editora).
•
na histeria;
mania de grandeza e de perseguição, na paranóia;
Retrato e Auto-Retrato
•
desligamento do m u n d o , desorganização do discurso, na
•
esquizofrenia;
Se, n u m p r i m e i r o momento, os pescadores do Nordeste são levados
fetichismo, sadismo, masoquismo, homossexualismo, op
a negar suas diferenças c o m outros grupos, n u m segundo momento,
ções variáveis daqueles que querem manter como certa, a
eles destacam suas características próprias. A s mais repetidas p o r
percepção de que a mãe também t e m pênis.
eles p o d e m delinear u m certo retrato sócio-psicológico do pescador:
A psicanálise fala também de fixações orais determinantes para
•
não t e m essa agitação que outra pessoa tem;
oradores e cantadores, e sua falta de sublimação no alcoolismo; dc
•
v i v e incerto quanto ao fruto de seu trabalho;
fixações anais fortes, apimentadas de sadismo, para médicos, cirur-
•
giões, educadores, dentistas, banqueiros e bancários, fixações cujo
sadismo é mais exaltado e m geral nos policiais e nos representantes
•
de seus impulsos descontrolados e sem freios que são os criminosos
•
Poder-se-á falar de alguma ''psicologia do pescador", o u de certos
traços psíquicos típicos?
40
não t e m horário para nada: os planetas são seu relógio;
v i d a mais perigosa e a v e n t u r e i r a (tempestades,
peixes
ameaçadores);
•
Parte das anotações que possibilitaram este trabalho se inspirou
é mais individualista que o agricultor, t e m u m olhão e, no
mar, engana até o próprio p a i ;
o sol causticante e seu reflexo na água e a salinidade fazemno envelhecer mais depressa e causam cegueira;
41
•
é mais livre e d o n o de si, enquanto o operário é vigiado;
•
ele é mais artista, mais sabido, faz trabalhar os " m i o l o s , mais
que o agricultor".
^
Os pescadores insistem e m se valorizar e explicitar, c o m outras
afirmações, suas vantagens sobre o operário e o agricultor, sua vida
év[\2ás"cansada"e"perigosa". "Sabe que vai ao alto-mar, mas não sabe sc
volta, como aquele que vai à guerra, as mulheres chorando". "É uma vida
mais perigosa, mais pesada, mais complicada". "O pescador é um aven
tureiro. O agricultor tem um futuro, tem um sítio. O pescador tem em
barcação, mas écomo se não fosse dele. Tem SUDEPEÍ Superintendência do
Desenvolvimento da Pesca), a Capitania dos Portos, e tem a tempestade
Bate numa pedra e perde a vida". "Se trabalha dentro da lama, tem o anc
quim! que fura e aleja. O mutucuta, num minuto, dá vinte a trinta talho^
numa pessoa, pega, 'tora' com o dente. Tem também o muxaquim: queima.
O sujeito bota até fezes pela boca. Bota sangue pela boca. A ostra corta
pés e os braços. A arraia, quando não mata, aleija". " O pescador é mais
bravo, mais herói. Enfrenta os tubarões, os cações".
V i d a mais perigosa que faz do seu protagonista u m ser mais
Corajoso como herói de guerra, mais livre que o operário, a po\iÓà, ^ cozinheiro, o cobrador de ônibus, o garçom de restaurante,
j^iais sabido e artista que o agricultor, o pescador é o melhor. Isto é,
toda a apresentação d o mar, das águas, do peixe como ameaça e perigO/ como mistério a perscrutar, como arte à disposição d o artista
tem u m objetivo: mostrar quão valoroso é o pescador, quão interesggiite é seu trabalho. Tanto mais perigoso, quanto mais interessante.
A aproximação d o perigo, perigo de morte afinal, é algo que o pescador costuma associar à sua profissão. Se o desejo mais forte é o
desejo de morte, segundo o ensino de Sócrates, q u e m se acharia,
pelo seu trabalho, mais próximo deste desejo, poder-se-ia considerar
curiosamente, u m privilegiado.
Contrapor o retrato que o pescador faz de si c o m o retrato feito
por outros pode ser agora algo sugestivo.
A r m a n d i n o Reis, capataz da Capitania dos Portos, d e u u m a
declaração publicada no jornal O Globo de 24-12-1978 a respeito dos
pescadores de Goiana-PE: "Toda vida, o rio foi poluído. Eles não querem
estudar. Temos Mobral, mas eles não querem. Se não estudam, deviam
mudar-se para outro lugar, porque não é só em Goiana que existe peixe.
sabido, como o ilustram as seguintes declarações: " O agricultor não
Mas, esse povo é assim mesmo. Muitos deles nem conhecem o Recife, é só
faz trabalhar tanto os 'miolos' da cabeça. Planta, se o tempo é bom, tá feliz.
da porta de casa para o rio". Esta posição tão obtusa ilustra bem a
O pescador tem que pensar, estudar". "Pescador é mais grande artista. Ele
mentalidade de representante da dominação, n u m exemplo típico
tem mais experiência". "Meu pai era o melhor pescador. Ele diz sem ver:
de preconceito de classe.
quinta-feira, tem cardume de peixe aqui. Domingo, tem cardume de peixe
ali. Ele, com dez anos, ele jogava pedra e sabia onde dava peixe."
Certos pescadores i n s i s t e m m u i t o e m se caracterizar como
pessoas livres: "Operário já é marcado do Mestre e do contramestre
Pescado, ninguém vigia ele". "Mas quem pesca embarcado é operário'
"Pescada não tem espião e operário tem espião. Pescado só tem Deus prii
Outro ponto de vista nos v e m da Pastoral dos Pescadores que
reconhece (ver a Assembleia de 01 a 04 de abril de 1978) não escapar
à mentalidade d o m i n a d o r a , o que já demonstra capacidade de autocrítica. E m seus relatórios de experiências entre pescadores, a Pastoral sublinha assim suas características: fatalismo e indolência, des-
confiança e desilusão, alcoolismo, i n d i v i d u a l i s m o , liberdade d u v i espia. Dono de usina diz ao operário: pago cem mil ao advogado e quinhentc- *^osa, persistência no trabalho.
cruzeiros a você".
"Em todas as praias do nosso imenso //íoríí/",afirma-se no Boletim
"Deixei de ser polícia, deixei de ser cozinheiro, deixei de ser cobrado^
^cnte de j u n h o de 1977, destacam-se "desvalorização,
desilusão,
de ônibus, deixei de ser garçom de restaurante, me sinto muito feliz porqisou livre, individual; não tenho fiscalização".
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^^^^odação, exploração". Por isso, o objetivo da Pastoral é "despertar o
^^^orda pessoa humana", "colocar o pescador de pé",
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"torná-logente.
responsável
e sem merfo".Seoobjetivo não deixa deesconder seu lado
Essa Agitação
não T e m
" d o m i n a ç ã o " , ele parte de u m a constatação que denuncia: é a mar
ginalização, opressão d o pescador que o m u t i l o u . Estes relatórios
5e os pescadores encontram, e m reação narcísica, m o t i v o s para elo-
também insistem e m cobrar que todos os programas do governo pam
giar uma profissão mais livre, mais perigosa e mais sabida, eles des-
a pesca sejam elaborados a partir da sabedoria, experiência e inte
tacam uma característica questionada por alguns, porém considerada
resses dos próprios pescadores, fazendo deles agentes de sua pró^
pela maioria como a mais diferenciadora: "essa agitação não tem".
p r i a promoção.
Frente às demais pessoas obrigadas ao corre-corre, à gritaria, à pressa,
Sugestiva é a diferença entre o auto-retrato e o retrato pelos outros. Inevitável enquanto, de u m lado, o narcisismo encoraja a exaltação própria e, por outro lado, a rivalidade alimenta a desvalorizaçãí >
à confusão, ao trânsito, eles se contrapõem c o m u m trabalho e u m
jeito de ser, fora da agitação.
Em Jangada, Câmara Cascudo faz u m a observação importante
d o outro. De qualquer maneira, o olhar sobre si diverge do olhar do
sobre a questão, chamando o pescador de "profissional do silêncio": "o
o u t r o sobre si, tendo cada u m sua subjetividade. Além d o mais, o
jangadeiro deve ser silencioso no meio da musicalidade selvagem do mar. É
olhar sobre si se distancia também do falar sobre si. O olhar quer ver
o único trabalhador que não pode conversar, nem cantar enquanto leva sua
certas coisas e não outras, além de se enganar constantemente, pois
tarefa" (op.cit. p.l8). "O ressoar da voz humana afugenta o peixe" (op.cit.
o ser h u m a n o não é transparente, m u i t o menos seu psiquismo. A
p.l9). O pescador reflete o silêncio das águas. Mas, além dos i m p e -
verdade acaba ficando escondida, deslizante, e m grande parte, aliás,
rativos do trabalho, u m a cumplicidade silenciosa perpassa o ser do
inconsciente. Quanto ao falar sobre si, caracteriza-se habitualmente
pescador e o murmúrio calado das águas.
p o r u m a conotação publicitária, como que para exaltar as qualidades
Sublinhando u m o u t r o aspecto, no im'cio d o seu Moby
Dick,
irresistíveis de u m p r o d u t o cujos efeitos colaterais n e m são men-
Melville fala do mar como remédio para a agressividade, para "pistola
cionados evidentemente. E certo que a fala-propaganda, n u m dado
carregada", inclusive quando esta pistola é d i r i g i d a contra si próprio
m o m e n t o de crise, chega a seu l i m i t e e se esvazia: surge o momento
na hipocondria e vontade de morrer (op.cit. p.25).
da verdade. Estoura a bolha alimentada pelo narcisimo e pela luta
de prestígio. Por outro lado, n e m sempre é fácil discernir a respeito
d o narcisismo como dado f u n d a m e n t a l de todo ser h u m a n o , até que
ponto seu objeto de amor é o que a própria pessoa é, o u foi, o u gostaria
de ser. (Ver: Introdução ao narcisismo de Freud, no volumeXIVde suas
Obras Completas, op.cit., p.l07). O pescador fala de si como é, como
f o i , o u como gostaria de ser? Por outro lado, não se pode esquecer a
importância do narcisismo como i n s t r u m e n t o de defesa contra
agressividade desvalorizadora dos outros.
Chuva e água, sol e água, noite e água. Pode faltar o peixe, pode
romper a rede, mas nunca este contato direto c o m a natureza: sol chuva - noite - água. A água, sempre a água. Que influência t e m
sobre uma pessoa dez, vinte, trinta, quarenta anos de sol causticante,
implacável, de silêncio da noite, de contato constante c o m esta água
n^teriosa, detentora de sua sobrevivência? Para u m a pessoa agitada,
iiervosa, recomenda-se u m remédio tranquilizador: as águas, o mar.
^ niistura do sol e da água p r o d u z u m a descontração, u m repouso,
^ com algumas horas, u m a confortável moleza. Que dizer então dos
^^itos de anos e mais anos deste tratamento e m dose excessiva?
dizer do balanço rítmico das ondas d o m a r e de seu efeito supo^ífico? Condições mais do que suficientes para causar esta "não agi^o
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que Qg outros chamam de indolência, quando não de passivi45
dade o u preguiça. Remédio para perturbação, descontrole para agres
%
^gsim terrível porque ela é mãe e esposa. Aquelas águas nasceram-lhe no
sividade e, quando esta erra o alvo, para depressão, as águas apazi-
^ia em que seu filho a possuiu" (op.cit. p.71). Jorge A m a d o lembra que
g u a m , amolecem. Por isso, o r i v a l desta classe conclui que o pesca
de Aganju, deus da terra f i r m e , Iemanjá teve u m filho, Orungá, deus
d o r é preguiçoso, enquanto ele mesmo vivência estas condições para
dosares.
chegar à conclusão de "tem muito mais tranquilidade", característic^i
que o destaca e o coloca superior aos demais.
Tranquilidade, silêncio, não-agitação diferenciam o pescador e
o afastam dos outros seres humanos. Esta identificação c o m o silêncio
das águas o retrai da convivência quando volta a terra. Augusto,
pescador d o Pina-Recife, afirma:
"O pescador é desconfiado como o índio. Por isso, fica muito difícil oprimeiros contatos. Ele é diferente porque o mar, o horário, o tipo de trabalho o
afasta muito das pessoas."
"O pensamento de Orungá não se desligava da imagem da mãe, aquela
bela rainha das águas. Ela era mais bonita que todas, e os desejos dele eram
todos para ela. E um dia, não resistiu e a violentou. Iemanjá fugiu, e na fuga,
seus seios se romperam e assim, surgiram as águas, e também essa Bahia de
todos os Santos. E do seu ventre fecundado pelo filho, nasceram os Orixás
mais temidos, aqueles que mandam nos raios, nas tempestades e nos trovões.
Assim Iemanjá é mãe e esposa. Ela ama os homens do mar como mãe, enquanto
eles vivem e sofrem. Mas no dia em que morrem, é como se eles fossem seu filho
Orungã, cheio de desejos, querendo seu corpo." (op.cit. p.7)
Esta lenda de Iemanjá destaca a personificação da água na figura
Este afastamento feito de u m a não-agitação diferenciadora u l -
da mãe amada e temida. A s próprias águas são o p r o d u t o da relação
trapassa a compreensão d o comportamento. C o m efeito, as águas
incestuosa, o f i l h o não resistindo ao encanto da beleza materna. É
não são simplesmente as águas, tanto elas quanto seus habitantes
interessante notar que G u m a , herói de Mar Morto, ao se encontrar
são perpassados p o r constantes e complexos simbolismos e perso-
com a mãe desconhecida e esquecida, a deseja mais como m u l h e r do
nificações.
que a reconhece como mãe. Confunde-a com as mulheres do cais. E
é nesse contexto que t o m a todo seu valor o refrão de Dorival C a y m m i :
Umas Simbologias
"Opescador tem dois amores, um bem na terra, um bem no mar".
Várias tradições e m mitos e lendas, histórias e poesias v e i c u l a m as
águas. Efetivamente, cada sujeito pescador pode projetar sobre elas
Poder-se-ia perguntar que tipo de mãe seria posta e m relevo pelas
fantasias, imagens, conforme sua singularidade e vivência. Mãe fá-
Simbologias das águas.
A tradição afro-brasíleira dá sua interpretação própria. Ma\
lica, "mulher-macho s i m senhor", mãe dominadora que impõe seu
Morto, o romance de Jorge A m a d o sobre a v i d a do pescador, lembra
*^esejo a todo custo, mãe anal sempre de plantão, controladora da
que "dificilmente um homem da terra entende o coração dos marinheiros"
ordem e limpeza, mãe oral, boa, amamentadora, que alimenta c o m
(op.cit. p.9), que nascem e m o r r e m no mar. O título: Mar Morto a\u^
seus frutos do mar.
mar e morte, tema que inicia, percorre e termina o romance c o m
A simbologia das lendas, dos mitos, do folclore, dos sonhos, e v i -
"tempestade que derrubava os navios e matava os homens" (op.cit. p.l31
*^encia u m outro aspecto da mãe. O mar, as águas põem e m relevo a
" Iemanjá é a mãe d'água"," é a dona do mar", "epor isso todos os homen-
^ 6 da gravidez e do parto. C o m o o mar, a mãe guarda nas " á g u a s "
que vivem em cima das ondas a temem e a amam". "Para ver a mãe d'ágiu''
seu ventre, seu precioso tesouro. A mãe deixa cair na praia da
muitos já se jogaram no mar sorrindo e não mais apareceram. Será que
^ida, seu filho nascendo. Fantasias e sonhos sobre água e peixe re-
dorme com todos eles no fundo das águas ?" (op.cit. p.21). "Iemanjá
^ ^ e m à gravidez, ao útero, ao parto. E m seu texto Sonhos e telepatia,
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F r e u d lembra que as ondas d o m a r c o m suas arremetidas e sen,
^pj.QXÍmar da m ã e que julga exclusivamente sua. Defendendo seu
recuos são o símbolo das dores intermitentes do parto e que resgatar
ar junto à mãe, ele identifica o peixe ora consigo mesmo, ora c o m
das águas é associado ao nascimento {op.cit. XIII, p.256). A filha d(
rival. Identificado ao peixe, ele revive inconscientemente sua
Faraó colhendo Moisés n u m a cesta no r i o revela assim ser m ã e delo
y ação uterina com a mãe. Identificando seu r i v a l ao peixe, ele tenta
u m tipo especial de escolha de objeto {op.cit. XI, p.l57). Q u a n d o Akk;
tirá-lo do ventre das águas, isto é, a exacerbação da r i v a l i d a d e do
recolhe também n u m a cesta no r i o , o recém-nascido Sargão, qu^
pecador seria u m a antecipação. O destaque dos significantes útero,
será f u n d a d o r da Babilónia, declara assim sua posição de p a i . R^^,
ravidez, parto, presentes inconscientemente, reforçaria a
rivalidade
presentação inequívoca do nascimento, a f i r m a Freud e m seuMo/S(>. que o ventre a v o l u m a d o da m ã e desperta no f i l h o ameaçado pela
e o Monoteísmo: "o cesto é o útero, e a água é o líquido amniótico" (op.at
chegada próxima d o n o v o caçula.
XXIII, p.23). Esta simbologia, p o r inconsciente que seja, por desconhtícida que seja para o pescador, não deixa de atravessar, de sustentar
Feixe — Innão
sua v i d a do dia-a-dia. Desejos, motivações e fantasias inconscientes,
mesmo que negadas, são absolutamente determinantes d o ser e agir
O peixe m e u irmão é u m dos temas principais de Henrmiingway.
humanos.
SeulivroO Velho eoMar{The
old man and the Sea,London,Jonatham
A p a r t i r desta mãe-água, m ã e da g r a v i d e z e d o p a r t o , duas
Cape, 1952-54) conta a história da tenacidade e persistência d o pes-
características do pescador t o m a m sentido n o v o : o silêncio e o indi-
cador Santiago, que passou oitenta e quatro dias sem pegar u m peixe.
vidualismo - rivalidade. Se o pescador é silencioso, não é somente
Após os primeiros quarenta dias infrutíferos, seu ajudante, u m me-
pelo costume de não afugentar os peixes, mas pela convivência con^
nino, foi chamado pelos pais que, desanimados, o transferiram para
a mãe - água que entende e m silenciosa empatia. Esta comunicação
embarcação menos azarenta. "Tudo nopescador estava velho", "menos
silenciosa revive e relembra a sintonia corporal c o m a mãe, sem a
seus olhos cor do mar", "nunca vencidos" {op.cit. p.06). Esta qualidade
fala, da v i d a uterina.
Esta simbologia é universal e não particular ao pescador. É a
de persistência é salientada pelos comentários sobre as conversas
dos pescadores do Nordeste.
convivência c o m as á^uas que destaca estes símbolos para ele, e
Persistência quanto mais notável que a história de H e m m i n g w a y ,
assim o privilegia. O mesmo está e m confronto diário c o m eles, em
representativa da d o pescador e m geral, é u m a história de perda. O
bora a história, a vivência de cada sujeito, diferencia u m pescador
velho lamenta, e m refrão saudoso, a perda do menino: "se o menino
de seu colega.
estivesse aquil" A falta d o m e n i n o é consequência da própria falta do
Quanto à questão i n d i v i d u a l i s m o - r i v a l i d a d e , qualquer criança
nos ensina que basta u m objeto pertencer a seu irmão para cobiçá-K
peixe. N a volta da esgotante viagem, seu troféu ilustra a própria
perda.
e b r i g a r p o r ele. Receber objeto semelhante n ã o resolve neco-
Santiago coloca seu ideal e m Joe D i M a g g i o e sonha c o m o cam-
sariamente o problema; deseja-se o objeto do outro. Os pescadoro-
peonato de beisebol para seu time, os Yankees de N e w York. Quando
reconhecem como exacerbado seu i n d i v i d u a l i s m o e excessiva s U '
J^aliza façanhas e m suas pescas, ele pensa merecer a admiração de D i
rivalidade c o m os demais. Poucas ocupações representam tanto est^
^Sgio, cujo p a i teria sido u m pobre pescador {op.cit. p . l 3 ; 18 e 97).
contato direto com a mãe simbolizada nas águas. A proximidac^^
^ "^^r não é personagem principal do romance, mas s i m o pes-
diária c o m a mãe-água levaria u m pescador a não deixar ninguén
^ e o peixe. Se os jovens pescadores falam d o m a r como i n i m i g o ,
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ele fala dele como feminino: "o mar éafetado pela Lua como a mulher"
j^as/ para que capturar o irmão, vencê-lo, matá-lo ? Para eliminar
fival na posse da mãe.
{op.cit. p.26).
U m belo d i a , Santiago pega u m peixe tão grande que arrasta scu
barco mar adentro. Trava-se então u m a luta de v i d a e morte entrt^
j^le-Mulher
peixe e pescador, luta de persistência atravessada de amor, admiração
e respeito pelo peixe identificado a u m irmão.
O mito de Iemanjá trazido p o r Jorge A m a d o destaca que Iemanjá é
j^ãe e mulher d o f i l h o . A s águas d o m a r surgiram d o seu peito n o
"Peixe, eu te amo e respeito muito" {op.cit. p.52). "Os peixes não são fa,
dia da consumação d o incesto. Mais bonita d o que todas as mulheres,
inteligentes quanto nós que os matamos: embora sejam mais nobres e mai
ela atrai todos os desejos de seu f i l h o . A s s i m é mãe dos pescadores
capazes"{op.cit. p.61). "O peixe é meu irmão também... mas devo matáAo. /;
enquanto v i v e m e m u l h e r q u a n d o m o r r e m , associando incesto e
bom que não tenha que tentar matar o Sole a Lua ou as estrelas. É bastam,
morte.
viver no mar e matar nossos verdadeiros irmãos" {op.cit.\>.74). "Peixe, voltem que morrer de qualquer jeito. Você têm também que me matar ?" {op.cit
O mito de Iemanjá retoma o m i t o universal d o incesto. A mãe,
p.91). "Você está me matando, peixe... Nunca tinha visto uma coisa maiorprimeira escolha como objeto de amor. Se a psicanálise f o r m a l i z o u o
mais bonita, mais calma, ou mais nobre do que você, meu irmão. Venha,
complexo de Édipo, ela não o i n v e n t o u mas o recolheu da tragédia
mate-me. Não me preocupo com quem mata quem"{op.cit.p.92). "Então, i
antiga. É Sófocles que conta como Édipo, sem saber, mata o p a i e
peixe veio vivo, com toda sua morte em si, levantou-sefora da água mostranà
casando com a mãe. Otto Rank lembra que a literatura, o teatro,
toda sua largura e todo seu comprimento e todo seu poder e sua beleza "acaba
{op.cit
p.93). "Sou um homem cansado. Mas eu matei o peixe que é meu irmão a poesia de todos os tempos, c o m inúmeras variações e disfarces,
{op.cit. p.94). "Com sua boca fechada e sua cauda oscilando rígida, navegamos
centraliza seu interesse e m t o m o d o tema d o incesto. O enciclopedista
como irmãos." {op.cit. p.99)
Diderot, m u i t o antes de Freud, escreve e m seu romance O sobrinho
C o m a morte d o peixe-irmão, surge a culpa: "Talvez tivesse sidc
de
pecado matar o peixe". "Você o amou vivo e agora o ama depois. Se o avu^
não é pecado matá-lo. Ou é mais ainda ?" {op.cit. p.l05).
Para semelhante pecado, castigo. Derrotado pelos tubarões quí|
^
d e v o r a m o peixe, Santiago chega à praia c o m seu barco arrastando
uma carcaça. "Arruinei nós dois" (op.cit. p . l l 6 ) , conclui desolado ok
pescador. A perda é o único troféu desta estafante viagem. O velho f
o maré ã própria metáfora da perda. À falta de peixe dos oitenta d i.iseguidos, que marca o início da história, responde n o f i m o ganb^
maravilhoso, ilusório transformado n u m a dramática perda. N a d '
no início, nada n o f i m . A o término da estafante viagem da vida.
fica a carcaça mesmo. É somente na fantasia que se tem as coi^i"
Santiago, vencido como o peixe-irmão, volta para casa sonhan^^
c o m os leões. Se não se consegue pescar na realidade, pode-se co^^
seguir caçar e m sonhos.
50
^
Rameau,áel762:
"Se o pequeno selvagem fosse abandonado a si mesmo, mantendo toda a
sua loucura, e juntasse ao pouco de discernimento de uma criança de berço as
violentas paixões do homem de trinta anos, ele estrangularia seu pai e se deit
com sua mãe."
Quantas formas de expressão d o m i t o universal d o incesto! So-
^ o s claros o u disfarçados de relação sexual com a mãe, escolha de
^ jetos amorosos com características maternas, problemas de i m p o ^ c i a ligados a fixações incestuosas, fobias como representação de
^ ^ j o s incestuosos e de m e d o da vingança paterna. Esta revelação
^ ^ o m p l e x o de Édipo, como estruturante da psique de todo ser h u '^duh'
da
segundo afirma Freud, "recebida com ceticismo geral pelos
^ ^^^^^ pessoas normais", por ferir "os sentimentos mais sagrados
unidade", sendo a rejeição do mito uma "aversão que os seres hu51
manos sentem pelos seus primitivos desejos incestuosos hoje dominadi
a marca da morte atravessa t o d o sujeito h u m a n o conforme a
pelo recalque". (Podemos verificar nas obras de Freud da Ediç^
Standard Brasileira, op.cit., as seguintes referências: Totem e tabu, XI i
freudiana, pulsão de v i d a — pulsão de morte, haveria u m a
divisão
essão particular desta divisão na relação incestuosa-mortífera
pp.36 e l56;Leonardo da Vinci, XI, p.92; Um tipo especial de escolha d
quanto i m p e d i r i a a busca de outras relações. H a v e n d o a perpétua
objeto, XI, 152;Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do anu>, resença materna, não haveria n e m necessidade de chamá-la, e meX I , p . l 6 4 ; Conferências
Introdutórias,
XV, p.249 e 394; Um
estUil
autobiográfico, X X , p . 5 0 ; A questão da análise leiga, XX,p.243).
Para o pescador de Jorge A m a d o , a ligação mãe-mulher é direto
^os ainda de chamar outras pessoas. A l g o desta o r d e m seria reresentado pelo silêncio d o pescador, não que ele fosse realmente
0iais incestuoso d o que os demais seres humanos, porém a sua con-
Iemanjá, m ã e das águas, é a mais atraente das mulheres. E a mãe
vivência direta c o m a mãe-água seria u m a representação desta pre-
G u m a é para ele a mais sensual dentre elas.
sença que não precisa de palavra.
Ir m a r adentro é tarefa d o pescador h o m e m . Há algo macho quf
A impressão de ser o m e l h o r não é baseada simplesmente no
acompanha esta ida d o pescador, esta entrada no mar, enquanto qm
tipo de trabalho, na m a i o r esperteza, no aspecto de b r a v u r a guer-
as mulheres pescadoras são marisqueiras, isto é, colhem nos man
reando contra tempestades e peixes, na liberdade maior, mas nesta
gues, ostras e sururus, siris e caranguejos. Penetrando nas águas, (
comimicação silenciosa, nesta c u m p l i c i d a d e c o m a mãe-água, pois é
pescador rivaliza c o m seus colegas. Enfrenta todos os desafios par^
sempre diante dela que ele é o melhor, é sempre e m contato c o m ela
este encontro idealizado com as águas, de onde recolherá os melhore^
que ele p r o v a sua bravura-esperteza-liberdade. É a mãe-água, a
e maiores frutos. A s famosas histórias inverossímeis sobre o mã'm
testemunha número u m da suposta superioridade d o pescador sobre
peixe d o m u n d o i l u s t r a m a impressão de ser o u desejar ser o maior
os demais, os irmãos rivais simbolizados nesses peixes " c a ç a d o s " ,
n u m a satisfação narcísica, fálica e m relação a u m f r u t o o b t i d o eni
vencidos. Se mais d o que qualquer outro h o m e m , o pescador é pró-
seu encontro íntimo c o m a mãe-mulher-água de q u e m o pescador t
ximo da mãe-água, será mais r i v a l , mais individualista. Ele é o pre-
o companheiro p r i v i l e g i a d o . A fantasia incestuosa que perpassa i
ferido dela. Ele sabe e o manifesta. E se ele se afasta dos demais é p o r
ser h u m a n o e o marca encontra na v i d a d o pescador u m vasto campe
viver e para viver mais perto dela. M o v i m e n t o s , relacionamentos,
que a renova constantemente e a s u b l i m a , na tranquilidade, no írê-
barulhos lhes parecem sem interesse, sem sabor, comparados c o m
m i t o , o u n o reboliço das ondas.
este contato único, insubstituível c o m a mãe-mulher-água-natureza.
A impressão de ser o melhor seria ligada fundamentalmente a
Aspecto Mortífero
esta aproximação-comunicação singular c o m a mãe-água, e c o m o
Pengo de morte que ela representa. E m suas conversas, os pescadores
O m i t o de Iemanjá destaca algo que a psicanálise lembra: o aspcctu
se valorizam pela convivência c o m o perigo de morte, Jorge A m a d o
mortífero d o incesto. Iemanjá é m ã e na v i d a d o pescador e m u l i n '
uma estreita ligação entre o mar e a morte, já a partir d o título
^orto, e mostra como o destino d o canoeiro é "virar no mar"
na sua morte. O incesto é mortífero enquanto não leva à vida, ^i^'
f u t u r o , mas ao passado associado ao possuir a mãe, a não se deslig'^'
dela. V i v e r só de passado, isto é, só da mãe, é não acreditar na vid'i
" A n t i g a m e n t e " não era assim, repetem os mundanos d o passada'
Isto é, no passado, quando se possuía a mãe, t u d o era melhor.
52
.
• P-27), u m mar que mata, destino que seu herói G u m a segue a
' ^^pulsionado por seus desejos incestuosos,
tífer °
M e l v i l l e , Moby Dick, que dá a este aspecto m o r -
do mar u m a conotação especialmente carregada. Este l i v r o
53
conta a história d o cachalote branco que personificava "todos ossut,
^^Imigo até um retiro oceânico, para matá-lo com maior segurança ali"
demónios da vida e do pensamento, todo o mal" (op.cit. p.229) J á derruba \
cU' p-621), mas no f i m de três dias de luta, M o b y D i c k sepultou
botes e até conseguira, "com clara premeditação, rebentar, destruir con,
io e tripulação, deixando Ismael como único sobrevivente para
pletamente e afundar um grande navio" (op.cit. p.255). Representa p^^
^ontar a história. N o f i m , "tudo se fecha e a grande mortalha das águas
feitamente o m a r que t e m c o l h i d o indiscriminadamente "dezenas
^gjjtinuou a ondular como já ondulava cinco mil anos antes" (op.cit. p.667).
centenas de milhares de pessoas em suas embarcações" e que "até a cou
C o m esta história de pescador, M e l v i l l e visa contestar o p u r i t a -
sumação dos séculos", "matará" (op.cit. p.336). O capitão Acab passoi
nismo ianque e o o t i m i s m o ingénuo da era vitoriana, mostrando " o
quarenta anos de sua v i d a (op.cit. p.631) e m função deste "monsfr
triunfo d o m a l " que desloca o h o m e m d o centro dos acontecimentos,
que lhe a m p u t o u u m a perna. Jurandi
substituindo-o pelas forças misteriosas e traiçoeiras d o mar. Este des-
"violência e vingança" (op.cit. p.222), perseguiu o animal enfrentandí
locamento anuncia Freud que, c o m a descoberta d o inconsciente,
os maiores perigos. O f u r o r da perseguição ao "grande demónio dc^.
desloca o eu de sua pretensa posição central na psique h u m a n a .
assassino"
(op.cit. p.lll),
lizante dos mares da vida" (op.cit. p.232), de "tamanho e malignidiui,
invulgares que tem inesgotável sede de sangue humano" (op.cit. p.222j
Não se sabe se o m a r é p i o r d o que o cachalote. Sabemos que o
monstro representa o próprio m a r traiçoeiro e mortífero.
acaba identificando Acab à sua caça: "Mais um demónio do que li)}:
homem" (op.cit. p.&M).
.
.
O cachalote desperta admiração. A fragmentação de seu imenso
corpo dissecado pelas minuciosas análises d o autor provoca elogios:
O a n i m a l é significante d o próprio mar, esta "perene terra incógnita". "O mar não é apenas um tremendo inimigo do homem", "ma-
"a bolsa de âmbar gris" serve para perfumaria (op.cit. p.486), "o óleo e
sua eficiência na limpeza" (op.cit. p.506), "a maravilhosa cisterna na vasta
um demónio para sua própria prole, pior do que o anfitrião persa qm
cabeça", "prodígio de sua queixada sem dobradiça"..."Milagre de sua cauda
assassinou seus próprios convidados". "Insídia do mar, cujas mais temidih simétrica" (op.cit. p.497). Maxilas, costelas, vértebras, completam o
criaturas se movem debaixo da água, geralmente invisíveis, traiçoeiramenU quadro admirativo, enquanto u m estudo comparativo e exaustivo
ocultas sob os mais encantadores matizes do azul...". "Como este pavoros das duas cabeças, d o cachalote e da baleia verdadeira (op.cit. p.400)
oceano rodeia a terra verdejante, assim também na alma do homem jaz um:.favorecem novas exaltações literárias. Só falta endeusar a família
Taiti insular, cheia de paz e de alegria, mas cercada por todos os horrores iU desses animais; cabe à seita dos Shakers se encarregar desta tarefa,
existência semi-conhecida.—Deus te guardei Não desatraques dessa ilhn transformando o cachalote no deus encarnado (op.cit. p.381). É aliás
não podes voltar mais !" (op.cit. p.337). "Contemplando a tranquila bekz" praticamente eterno, semelhante a u m Deus imortal; "nflíífliífl nos mae magnificência da pele do oceano, a gente esquece o coração de tigre ijupalpita debaixo dele..." (op.cit. p.595). O autor associa de imcio "sonlio
muito tempo antes que os continentes surgissem das águas (...), nadou
outrora sobre o sítio onde se encontram as Tulherias, o castelo de Windsor
e m a r " , "meditação e á g u a " , dizendo também que toda andança ti i
kremlin" (op.cit.p.545).
m i n a infalivelmente na água, e lembra Narciso que nela se afogou
Porém, o m o t i v o m a i o r para se a d m i r a r o cachalote é seu poder.
O ponto de partida da expedição da pesca da baleia é o estaloin
Peter C o f f i n , cujo sobrenome significa caixão. A fabricação de caix'^^'
era, aliás, u m a das atividades prediletas d o carpinteiro d o navio.
igual à sua grandeza e beleza, somente sua crueldade, sua i n ^
E somente na sétima e ú l t i m a parte deste romance de setecent''-
^'lerpadade, sua "inesgotável sede de sangue humano" (op.cit. p.222),
D ç.^ ^^^^^ indiferença com a qual Moby Dick feria seus inimigos" (op.cit.
páginas que aparece o "mor\stro assassino". "Acab parecia ter acossm^'!
54
^ onipotência é admirável e ao mesmo tempo fonte de ódio, p o r -
1
)• Eis o "demôn io branco" (op.cit. p.573) a eliminar todos os rivais
55
para permanecer único d o n o d o mar, t a l o p a i p r i m e v o , arbitrárii,
ta-se da morte causada por este terceiro elemento que se interpõe
d o n o da mãe e de todas as mulheres. É significante que M e l v i l l e ,
mar e pescador, entre mãe e filho. Se o mar é tão agressivo, é
chame "aquele velho bisavô" (op.cit, p.518), apelido bem adequado p^r,
^
este tipo de p a i p r i m e v o , que ameaça de m o r t e , de castração qutty
aceita ninguém que pretenda ser dono d o mar. O cachalote, este p a i
serve sobretudo para ser o p o r t a d o r deste "demónio"
que não
tomar conta d o mar. Mas sua própria arbitrariedade provoca contr,
rimevo, elimina os rivais. Isto é, M e l v i l l e descreve u m a morte real
ele desejos de m o r t e e Acab passa a v i d a inteira fantasiando, so.
^ cruel. Felo fato de todo o seu l i v r o girar ao redor do personagem
n h a n d o e m m a t a r a f e r a ; "três picadas naquelas peles pagãs e as farpQ
que é o cachalote, ele acaba insistindo mais na figura de u m a espécie
do cachalote branco estavam temperadas" (op.cit. p574). E, "em seu própn
de pai proibidor e consequentemente na morte simbólica que é a
sonho, seu grito retumbante atravessa o casco abobadado: todos à ré l {_ proibição do incesto, a separação entre mãe e filho, mar e pescador.
cachalote esguicha sangue espessol" (op.cit. p.568).
H e n u n i n g w a y sublinha outra perspectiva, a do mar como es-
M e l v i l l e parece desvendar o perigo de m o r t e sempre presentt
conderijo do peixe nosso irmão.
na vida da pesca e que as histórias e converses dos pescadores ilus
g E a conversa dos pescadores se diferencia das outras abordagens
tram. O pescador imagina ser d o n o do mar, mas o m a r é mais fortt
enquanto o mar, as águas servem para valorizar o narcisismo do
do que ele, e o m a r já t e m dono. E o d o n o ameaça de morte quoir
próprio pescador.
pretende se apoderar do mar, da mãe. Ousar a relação incestuosa t'
Para todos, o m a r é lugar de perda, de falta. Perda radical, risco
provocar a vingança imediata d o " b i s a v ô " . N a p r i m e i r a vez, Acat
de vida. Morte. Separação. Falta de peixe. Tanto Acab quanto G u m a ,
quis se mostrar o d o n o d o mar, e M o b y D i c k a m p u t o u - l h e a perna
tanto Santiago quanto o pescador artesanal se confrontam com a per-
N a segunda vez, f o i arrastado para as profundezas do mar. Ousou
da, com a falta. E se a profissão d o pescador é assim tão especial é
morreu.
porque o risco de v i d a aumenta pela própria falta de peixe. É a falta
J
de peixe durante oitenta dias que obriga Santiago a uma aventura
arriscada. É a falta de peixe que motiva G u m a a tentar, em vão, driblar
Mãe-Pai-Irmão-Eu
tempestades. É a falta do cachalote que leva Acab a procurá-lo até a
Para Jorge A m a d o , era a própria relação incestuosa que era mortífera
exaustão. É a própria falta de peixe que ocupa grande parte da con-
enquanto relação d u a l mar-pescador, mãe-filho, relação quase sim
versa dos pescadores artesanais d o N o r d e s t e empenhados e m
biótica. O quadro do romance é d o m i n a d o pela figura da mãe-esposa
anahsar as causas: ventos fortes, chuvas torrenciais, poluição. E esta
mar. Não existe a l i p a i p r o i b i d o r , que se interpõe entre mãe e filho E
alta se revela ser o próprio m o t o r de sua valorização.
isso é ilustrado pelo fato de que Guma, herói de M a r M o r t o , não ton
pai. Só tem mãe, a mais atraente das mulheres.
Se M e l v i l l e descreve sobretudo a agressividade mortífera do m^i
é porque seu personagem principal não é o mar-mãe como e m ]orp
A m a d o , mas é o "monstro assassino", o "bisavô" "diabólico", que
própria representação do p a i . Não se trata, e m Moby Dick, de
morte como consequência de u m a relação simbiótica mar-pescad^'
mãe-filho, como e m M a r Morto, a própria simbiose sendo mortíH''
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