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Uma Decisão DELICADA GALENO PROCÓPIO M. ALVARENGA www.galenoalvarenga.com.br Esse livro faz parte do acervo de publicações do Psiquiatra e Psicólogo Galeno Alvarenga. Disponibilizamos também a versão impressa, que pode ser adquirida através do site do autor. Visite www.galenoalvarenga.com.br e saiba mais sobre: Publicações do Autor Transtornos Mentais Testes Psicológicos Medicamentos Galeria de Pinturas de Pacientes Vídeos / Programas de TV com participação de Galeno Alvarenga Copyright © by GALENO PROCÓPIO M. ALVARENGA Supervisão Gráfica Sofia Lopes Imagens capa e contracapa Galeno Procópio M. Alvarenga Diagramação Marcos de Oliveira Lara Capa Max Guedes Revisão Maria Isabel da Silva Lopes Impressão Sografe Contato c/ o Autor [email protected] www.galenoalvarenga.com.br A473 Alvarenga, Galeno Procópio de Mendonça Uma decisão delicada / Galeno Procópio de Mendonça Alvarenga. – Belo Horizonte: Ed. do autor, 2009. 178p. ISBN: 978-85-907543-8-1 1.Literatura brasileira – Romance. I.Título. CDD: B869.35 CDU: 869.0(81)-31 Elaborado por: Maria Aparecida Costa Duarte CRB/6-1047 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 4 23/12/2009 15:34:09 Amoedo, Você foi embora e levou consigo o encantamento da Fazenda do Pau-D’Alho. DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 5 23/12/2009 15:34:09 SUMÁRIO 1º Capítulo Donana perde a filha: nasce Clara ................................... 9 2º Capítulo Desenvolvimento de Clara: um susto............................. 27 3º Capítulo Crescimento de Clara: Mozart e a Academia.................. 53 4º Capítulo Os diferentes irmãos: Pedro e Gabriel............................ 63 5º Capítulo O isolamento de Clara e José Alencar............................ 71 6º Capítulo José Alencar faz uma proposta a Mozart ....................... 75 7º Capítulo O casamento: José Alencar faz visitas a Clara................. 93 8º Capítulo Primeiros desencontros do casal..................................... 99 9º Capítulo Uma Vida Inútil: Dr. Milton....................................... 105 10º Capítulo Nascimento de Plínio ................................................. 117 11º Capítulo Aparece Piquira, pai de Clara....................................... 121 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 7 23/12/2009 15:34:10 12º Capítulo A caçada de Piquira..................................................... 135 13º Capítulo O tempo passa: decifrando o mistério.......................... 145 14º Capítulo A revelação: suspeita e confirmação............................. 151 15º Capítulo Encontro do pai e do filho: a confissão........................ 159 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 8 23/12/2009 15:34:10 1º Capítulo Donana perde a filha: nasce Clara O sonho de Donana, mulher do fazendeiro José de Alencar e mãe de Gabriel e Pedro, era ter uma filha. Donana, após procurar diversos tratamentos médicos para engravidar, quando já estava quase desistindo de tentar ter uma filha, percebeu, com imensa alegria, que estava grávida. José de Alencar, menos emocionado com a novidade, tinha por hábito tratar os filhos e a mulher com os mesmos cuidados e dedicação com que tratava seus animais de estimação. Lamentavelmente, contrariando os sonhos e planos de Donana, durante o sexto mês de gravidez, após ter sido acometida por uma grave infecção urinária causadora de repercussões em todo o organismo, ela perdeu a futura criança que estava sendo gerada, apesar dos cuidados tomados: repouso e superalimentação, visando proteger sua saúde e a do futuro bebê. Donana abortou aquela que seria sua primeira filha e perdeu também seu útero. 9 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 9 23/12/2009 15:34:10 Foi um período difícil para toda a família. Donana, frustrada, passava a maior parte do tempo chorando em seu quarto. Ela, após a esperada e sofrida gravidez, não foi mais a mesma: tornou-se irritadiça, lenta para falar e agir e também cada vez mais indiferente aos acontecimentos existentes à sua volta. Para amenizar o sofrimento que não tinha fim, seu obstetra, um grande conhecedor do comportamento de suas clientes, após fazer um parto normal do qual nascera uma bela e saudável menina, ofereceu ao casal a adoção da criança recém-nascida. A mãe biológica da menina nem a desejava e nem tinha condições de criá-la. Esta mãe não queria ter mais um filho homem, e também, receava ter que criar uma menina, pois estas, segundo seus conhecimentos, dão muito mais trabalho que os homens. Dominada pelas pressões do marido, Donana, ainda muito abatida com a perda da filha, contrariada acabou por aceitar a oferta do médico. Foi assim que a menina Clara, cinco dias após nascer, foi morar com a família do poderoso fazendeiro da cidade de Cachoeira do Assento. Clara tornou-se a primeira menina do casal, a nova irmã de Pedro e Gabriel. Clara encontrou o que sua mãe biológica desejava: morar com uma família que pudesse dar-lhe uma boa assistência e educação. O médico que ofereceu a adoção não teve mais notícias da mãe e do pai da menina e também evitou falar acerca de sua história. Clara, por sua vez, foi informada ainda muito cedo que era uma filha criada pelo casal, que não nasceu deles. 10 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 10 23/12/2009 15:34:10 Ela também não ficou sabendo e nem se interessou em conhecer como e os motivos da adoção. A origem verdadeira da menina Clara era incerta. Constava na cidade que o pai da criança recém-nascida desaparecera e fugira com outra mulher, logo após sua esposa ter ficado grávida. A mãe verdadeira, ou biológica, que não residia na cidade, somente era conhecida do médico que fez o parto e que tornou possível a adoção. Por tudo isso ninguém soube, e nem mesmo se interessou em descobrir, quem era o pai e a mãe da criança. Apesar de todos os fatos mostrarem claramente que a Clara era uma filha adotiva, para não fugirem dos hábitos existentes na cidade, de desconfiarem dos relatos, e da necessidade de darem outras interpretações aos acontecimentos, alguns dos residentes de Cachoeira do Assento fizeram seus comentários e interpretações singulares e maliciosas. O boato mais divulgado entre os moradores foi o de que a menina seria fruto das relações extraconjugais de José Alencar com uma moça muito nova, bonita mas abobada, que morava nas proximidades de sua fazenda. Acontece que essa moça que ficou grávida vivia com os pais num casebre, nas terras da fazenda de um vizinho de José Alencar. Além disso, ela, após o nascimento de sua filha, doou a criança para ser criada por um casal sem filhos residente em outra cidade. Na realidade José Alencar mal conhecia os pais e muito menos a moça, de modo que quando os maledicentes insinuavam ser ele o pai de Clara, ria debochada e tranquilamente, não gastando tempo para fazer sua defesa. 11 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 11 23/12/2009 15:34:10 Como seu irmão Domingos, José Alencar sempre tivera fama de ser um contumaz conquistador. Contavam-se muitos casos acerca de suas conquistas em Cachoeira do Assento. Na cidade, frequentemente, quando uma mulher se separava do marido, o nome de José Alencar sempre era imaginado como sendo um dos possíveis provocadores da separação. Verdade ou não, com o passar dos anos as histórias a seu respeito relacionadas a conquistas foram diminuindo. Seria devido à idade? Ou haveria outros motivos? O certo é que José Alencar, mesmo envelhecendo, trabalhava cada vez mais e suportava bem sua solidão. Ele era visto na cidade quando necessitava ir a um banco ou a alguma loja fazer compras e nessas ocasiões raramente parava, por poucos instantes, com um ou outro. Desse modo seu fama de conquistador foi declinando, praticamente desaparecendo das conversas próprias dos mexericos. Clara e seu pai Logo que foi adotada pela família, José de Alencar não demonstrou maior entusiasmo pela menina, pois esta passava grande parte do tempo dormindo, chorando e quando estava acordada, era carregada para um lado ou outro pela mãe, pelos irmãos ou pelos amigos destes. Só muito lentamente o pai foi se aproximando e acostumando com a nova habitante da fazenda. Quando ele entrava no quarto onde a menina estava num berço antigo, instintivamente eles se olhavam e sorriam. 12 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 12 23/12/2009 15:34:10 Tendo já criado dois filhos e principalmente treinado a lidar com animais, não foi difícil para o fazendeiro trocar mensagens amistosas através de gestos com a pequena Clara. Ora era um movimento de olhos, ora um som que fazia com as mãos ou boca, às vezes o balançar de um brinquedo, a mudança de expressão facial, tudo isso provocava a atenção da menina e ao mesmo tempo a alegria do pai pelo seu êxito com sua estratégia. Desse modo José Alencar foi observando o desenvolvimento da filha, passo a passo, acostumado que era a observar o crescimento de uma ave, boi, cavalo ou de um pé de café ou de cana. Treinado desde criança a perceber as minúcias do desenvolvimento dos animais ou das plantas, após a chegada de Clara sua curiosidade foi se concentrando, cada dia mais, no crescimento da filha. Devido a essa sua peculiaridade, aumentava seu desejo de ver a filha brincar, andar, falar, comer e outras coisas mais. Assim o pai passou a passear com a menina em seus braços, procurando constantemente estimulá-la, enquanto observava suas mudanças em relação a ele e aos acontecimentos existentes em seu redor. Calmamente, mostrava para a filha os animais que transitavam em volta da casa da fazenda. Clara, curiosa, fitava ora um ora outro bezerro correndo de um lado, alguns mamando no peito da vaca, as galinhas ciscando e procurando algum alimento, o galo cantando, os cachorros dormindo ou latindo para algum estranho que chegava. 13 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 13 23/12/2009 15:34:10 O pai, carinhosamente, mostrava e chamava a atenção de Clara para cada fato existente: o berro de algum animal, o canto do pássaro, o vôo dos pombos, a chuva que caía e a beleza da tempestade com seus raios, relâmpagos e trovoadas. José de Alencar ia descrevendo a tempestade com raios e trovões com uma voz doce e calma. Ele focalizava a beleza da chuva, o movimento da água e não os perigos possíveis de existirem. José de Alencar, aos poucos, foi incentivandoa a deixar que alguns pingos de chuva caíssem em suas pequenas mãos e se deliciasse com isto. Às vezes caminhava com Clara até ao fogão de lenha, onde se viam labaredas vermelhas no fundo das panelas de ferro. Deixava que ela sentisse o calor provocado pelo fogo, visse as batatas fritas na panela de gordura fervendo e, depois de mornas, fossem provadas por ela. Ao passar no terreiro diante da galinha seguida por inúmeros pintinhos, ou da cadela com seus filhotes, ainda muito pequenos, José Alencar pegava um ou outro desses animais ainda muito fracos e incentivava a filha para que ela sentisse o prazer do contato com suas penas ou pelos e não que fugisse deles com medo. O fazendeiro, sendo um homem que vivia naquele meio e que amava o que fazia, ia progressivamente passando para a filha seus conhecimentos, seus valores, alegrias e prazeres. Ele procurava entusiasmá-la a gostar dos animais e dos vegetais e, ao mesmo tempo, gostar dela mesma, ao estar carregada de prazeres diante do mostrado. Junto ao pai, Clara sentia prazer vendo o fogo, a água, a terra cultivada, os animais que nela viviam e que dela dependiam: tudo isso estimulava a mente da filha. 14 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 14 23/12/2009 15:34:10 O contato do pai com Clara tinha, talvez sem sua consciência, o objetivo de agradá-la, fazê-la feliz diante da vida na fazenda. Clara e sua mãe Diante de Clara, Donana exibia uma conduta carregada de uma mistura de afetos positivos - muita alegria e carinho - mas ao mesmo tempo demonstrava, de quando em quando, tristeza e mesmo raiva. Essa dupla emoção, positiva e negativa, talvez possa ser compreendida pelas recordações dolorosas que a presença de Clara lhe trazia constantemente ao compará-la com a filha que não teve. Os sentimentos contraditórios de Donana emergiam quando olhava, ouvia ou carregava o corpo da filha adotiva. Assim as duas se relacionavam: a presença bela e alegre da criança de um lado, e a raiva e tristeza misturadas à satisfação do contato, de outro. Os encontros entre mãe e filha provocavam em Donana crises, às vezes passageiras, às vezes demoradas, de mal-estar, desânimo, inquietação, bem como o de afastá-la de seus olhos. Donana, às vezes, parecia não enxergar Clara diante dela, via a filha morta após seis meses de vida intra-uterina. Era frequente observar Clara, com seus pequenos olhos claros e vivos, sorrir para a mãe. Demonstrando uma grande necessidade de carinho e amor, muitas vezes Clara caminhava em direção a Donana, tentando se aconchegar no colo da mãe, entretanto, nesse instante, terríveis recordações acerca da gravidez e do aborto apareciam intensamente. 15 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 15 23/12/2009 15:34:10 Diante dessas imagens incômodas que atingiam a consciência da mãe quando era abraçada pela filha, Donana afastava a menina de seu corpo, sentindo-se como se estivesse diante de algo repulsivo. Nesses instantes, frustrada sem compreender a conduta da mãe, Clara se afastava confusa. Em seguida Donana, arrependida do que fizera, tinha sua mente invadida por uma penetrante culpa. Tentando compensar seu ato irracional, virava-se para Clara, a agarrava com força e a abraçava exageradamente de um modo estranho e não-natural, consequência de seu amor e raiva. Donana não conseguia dar-lhe um abraço calmo e terno, ao contrário, o contato físico era tenso e nervoso, como se estivesse cumprindo uma obrigação desagradável. O corpinho de Clara, capaz de detectar a ambivalência da mãe, não respondia ao abraço como um carinho calmo, relaxante e protetor. A menina notava, intuitiva e corporalmente, que diante da mãe ela não estava protegida, pois aquele não era um colo amigo incondicional. Era assim que a filha que morrera ainda no útero, portanto, antes de nascer, perseguia e dominava para sempre a mente de Donana, fazendo-a escrava dessa imagem trágica e dolorosa. Por tudo isso, a filha adotada e escolhida para preencher a vida de Donana e também combater o sofrimento e a tristeza que abateram a mãe, capaz de dar origem a uma possível ligação afetuosa, poderosa e duradoura, transformou-se em símbolo da desgraça e da dor que habitavam a memória da gravidez, da infecção e da perda da filha. O que era para ser um remédio, tornou-se um veneno lento e devastador. 16 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 16 23/12/2009 15:34:10 Com o passar do tempo, a presença da menina despertava cada vez mais na mente da mãe as tristes memórias da filha que não nasceu. Dezenas, centenas ou milhares de vezes, essas lembranças automaticamente, indo contra seus desejos conscientes, invadiam sua cabeça, carregando lembranças antes neutras ou até agradáveis, mas que aos poucos foram contaminadas por recordações e imagens ligadas ao sofrimento e à tristeza, emoções negativas ligadas à perda. Desse modo, com o tempo, todos os cômodos da casa, os móveis, os alimentos, e até a cor da parede foram adquirindo tonalidades afetivas relacionadas à dor e desesperança. Assim é que o quarto onde Clara dormia, as roupas que a menina ou a própria Donana vestiam, tomavam ou adquiriam novas colorações negativas, passavam a ser estímulos desagradáveis. Se por acaso Clara vestisse um vestido azul e Donana fosse abraçá-la e nesse mesmo instante se sentisse mal por lembrar-se da morte da filha, o vestido azul de Clara adquiria uma tonalidade emocional negativa ou desagradável, pois a emoção ruim de Donana surgira associada ao vestido usado. Se no dia seguinte o vestido fosse colocado para ser lavado, Donana voltava a se sentir mal, pois a visão da vestimenta azul provocava a entrada em sua consciência das mesmas emoções sentidas durante o abraço ambivalente. Da mesma forma Donana sofria ao ouvir Clara cantarolar e dançar ao som de uma música infantil qualquer. Ao ouvir Clara cantar uma música, nesse momento era frequente Donana sentir a tristeza e raiva da perda e então a música ficaria eternamente ligada a um sentimento 17 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 17 23/12/2009 15:34:10 ruim. Para completar, a música que Donana gostava, mudava a tonalidade afetiva, passando a lhe causar mal-estar: tristeza, raiva, bem como outras emoções desagradáveis. Assim a presença de Clara foi contaminando negativamente cada um dos objetos da casa, as músicas, as roupas, diversões e tudo o mais. Donana passou a morar no próprio inferno, pois cada estímulo que antes era neutro ou mesmo agradável, metamorfoseou-se em percepções de sofrimento e desespero. Como era de se esperar, Clara, sem saber e sem querer, tornou-se um potente desencadeador dos sofrimentos de Donana. Donana percebia, sem entender, por que tinha aversão e fobia à filha. Algumas vezes colocava a culpa de seus sofrimentos em Clara, outras vezes se vigiava e tentava, quase sempre sem sucesso, não demonstrar hostilidade à menina, quando essa não tinha a menor participação direta na infelicidade da mãe. Quando Donana se preparava para dar um abraço à filha e se nesse instante ela se sentisse irritada e tensa, lutava entre duas forças antagônicas: ser agradável e carinhosa ou ao contrário, hostil e desagradável. Disfarçadamente, quase sempre evitava aproximar-se da filha, a responsável, sem o desejar, pelos conflitos da mãe. Mas algumas vezes, sem controle sobre seus próprios sentimentos, Donana inventava inconscientemente algum motivo irrisório para acusar e agredir a filha durante um abraço: — Ai! Você está me apertando. Tá doendo! Além disso, sua boca tá cheia de cuspe, sujando minha cara toda. Clara, confusa, sem saber o que fazer, se afastava envergonhada, tentando compreender o que fizera de errado, 18 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 18 23/12/2009 15:34:10 pois a mãe que a criticava, havia aberto os braços para que ela se aproximasse e desse o abraço e o beijo. Aproximar-se ou afastar-se, gostar ou não gostar, eis a questão que Clara enfrentava diante de Donana, que ora a tratava com carinho, ora de forma agressiva. Aos poucos, a tensão existente dentro do organismo de Donana ia sendo inoculada e transferida para a mente ainda mole e plástica de Clara, dominando-a mais fortemente quando a mãe estava diante de seus olhos, ou quando a voz dela era ouvida. Aos poucos, Clara foi aprendendo, através dos contatos com a mãe e também de suas condutas negativas (nervosismo, tristeza, inferioridade, impotência) na comparação que fazia de si perante os outros. A menina estava sendo treinada pela mãe não só a se valorizar negativamente, como também para rejeitar as outras pessoas. Enquanto Donana adoecia, iam piorando também as relações entre ela e a filha que, consequentemente, adoecia também, pois Clara estava mergulhado até a alma vinte e quatro horas por dia nas suas relações com a mãe. Portanto, enquanto com a mãe Clara sentia medo e desprazer, com o pai ocorria o oposto. Desenvolvimento de Clara: dois grupos se formam As ideias transmitidas pela mãe e pelo pai invadiram, habitaram e dominaram a mente de Clara. A mãe mostrando as desgraças da vida, o sofrimento e desânimo e o pai, por sua vez, estimulando-a a viver, agir, a relacionar-se com o meio ambiente externo. Esses dois mundos, 19 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 19 23/12/2009 15:34:10 ora agiam de forma cooperativa, ora entravam em atrito, fornecendo orientações diferentes e mesmo antagônicas, com respeito à realidade vivida e também aos planos e às decisões a serem tomadas. Cada dia mais próximo da filha e mais entusiasmado com seu desenvolvimento, o pai formulava naturalmente planos para o futuro da menina. Usando o mesmo modelo empregado para uma nova vaca de raça comprada com carinho e esforço, ele imaginava como seria a filha daqui a dois, cinco ou vinte anos. Aprisionado ao modelo formador de seus planos - o mesmo padrão que lhe permitia pensar e raciocinar - José Alencar fazia projeções da filha para a vida adulta: - Uma boa fazendeira, semelhante ao que sou e vai arrumar um rapaz bonito e rico para casarse. Nesses momentos enxergava os netos rodeando-o, um pouco mais velho, mas sempre ativo e forte. José de Alencar, ao criar fantasias acerca do futuro da menina Clara, quanto mais imaginava acontecimentos futuros distante no tempo - um mês, um ano, dez - mais fácil e simples se tornava sua projeção e construção futura idealizada: ser uma fazendeira, formar-se para professora, casar-se com um belo e rico fazendeiro, ter filhos bonitos. Era possível imaginar o que quisesse, pois não existiam ainda fatos e detalhes chatos que dificultassem ou impedissem a concretização do sonhado. Cada vez mais ligado e entusiasmado com a filha, José Alencar somente construía planos positivos e de longa duração para a filha, ainda uma criança. Quanto mais ele imaginava situações muito distantes no tempo, mais 20 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 20 23/12/2009 15:34:10 ele era forçado a inventar eventos pouco ou nada prováveis de serem realizados num futuro distante. Ele idealizava situações muito simplificadas, com poucos aspectos reais ou concretos. Examinava apenas a essência ou superfície dos fatos imaginados. José Alencar tinha sua mente inundada por sonhos e planos para a filha. Donana, ao contrário, a via como produtora de sofrimentos e de lembranças tristes. Ao contrário de sua mulher, sentia pela filha um grande amor, carinho e proteção. José Alencar estava cada dia mais preso à filha, sua companhia inseparável. Por outro lado, Donana estava cada dia mais distante dos acontecimentos relacionados à filha, e, consequentemente, mais afastada do marido. Ao levantar-se, José Alencar esperava aflito a filha sair do quarto dela e correr em sua direção para receber o abraço amigo. Em seguida, tomando o café da manhã juntos, ela fazia perguntas e mais perguntas ao pai, quase sempre o provocando para uma brincadeira. O prazer de ter a filha bem perto foi crescendo. Ao sair para seu trabalho diário na fazenda, José de Alencar frequentemente levava a filha em sua companhia, sempre alegre e entusiasmada com os passeios. Mesmo sendo um homem atarefado e trabalhador, cujos afazeres com os problemas da fazenda lhe tomavam muito tempo e o preocupavam, por outro lado, a alegria e prazer pela presença de Clara compensavam os eventos negativos, a menor concentração nas decisões no campo. Ainda que fosse por poucas horas, José de Alencar sentia a falta de Clara cada vez mais. Se por um motivo 21 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 21 23/12/2009 15:34:10 qualquer saísse da casa da fazenda para ir trabalhar sem a companhia dela, ou sem ter-se despedido dela, ele sentia um vazio dentro de si e geralmente chegava mais cedo em casa para vê-la, ouvi-la e brincar com ela. Quando saía para trabalhar, José de Alencar sabia que Clara, ainda muito nova, estava na varanda do casarão da fazenda, esperando seu retorno. Andando de um lado para o outro, atenta a qualquer movimento, Clara esperava impaciente o retorno do pai a casa, olhando fixamente através das peças de madeira azul que cercava toda a extensão da grande varanda. Algumas vezes durante sua vigília, ficava horas e horas brincando na varanda, sempre procurando a chegada de alguém. De vez em quando descia as escadas e se misturava aos bezerros, galos, galinhas e lagartixas, recebendo cotas diárias de sol. Mais afastados nas árvores que rodeavam o terreiro da entrada da casa, podia-se ouvir e ver canários, curiós, papa-arrozes, gaudérios, pombas, bem-tevis e outros pássaros que ficavam à procura de um resto de canjiquinha deixada pelas galinhas. Clara, que esperava ansiosa a chegada do pai, sorria alegre e feliz quando, de longe, ouvia o barulho do jipe que se aproximava. Quase sempre José Alencar, após abraçá-la demoradamente, procurava dentro do auto algo trazido de alguma parte da fazenda para presenteá-la. Os presentes, que ela amava e ficava curiosa de ver, eram simples, escolhidos no mato com muito amor: flores, frutas ou animais da própria fazenda. Ora era uma bela e 22 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 22 23/12/2009 15:34:10 diferente orquídea, ora uma lima enorme, às vezes jabuticabas doces e apanhadas naquela hora. Outras vezes José de Alencar trazia um coelhinho, um filhote de papagaio e mesmo um macaquinho perdido e sem a mãe, encontrado durante suas andanças pela fazenda. Acontece que os lavradores, seus subordinados, percebendo o amor que o patrão nutria pela menina, passaram, eles mesmos, a descobrir os presentes para serem dados para Clara. Desse modo não era raro ver um ou outro trabalhador aparecer diante do patrão tendo nas mãos uma flor diferente, um bicho mais raro ou uma fruta difícil de ser encontrada nas quitandas da cidade. A presença de Clara, cada dia mais ligada ao pai adotivo, não só afastava Donana do marido mas também dos dois filhos. Enciumados com a ligação do pai com a filha adotiva, estes foram progressivamente diminuindo os contatos com o pai. Todos na família perceberam que o pai mudara totalmente seus hábitos. José de Alencar passou a reservar, sem achar ruim, muito do seu tempo para brincar e sair com Clara. Consequentemente diminuiu o tempo gasto com os filhos e com a esposa. Clara foi ocupando pouco a pouco o centro da vida de Alencar. Assim, se por um lado aumentavam os elos entre Clara e José de Alencar, por outro diminuía aos poucos o contato dele com os filhos e sua mulher. Um clima de competição de duas frentes inimigas foi se formando. Muitas e muitas vezes, a alegria e entusiasmo de José Alencar provocavam aborrecimentos e ciúmes em Donana e nos outros filhos. 23 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 23 23/12/2009 15:34:10 Algumas vezes Clara chorava, alegando medo de ficar sozinha em seu quarto. De fato, ela procurava estar mais perto do pai e, de certo modo, afastá-lo mais da mãe. Quando José Alencar permitia a ida de Clara para o quarto do casal, Donana ficava contrariada e emburrada por horas ou dias e muitas vezes, mais irritada com a invasão da indesejada, ela abandonava o quarto e ia dormir em outro, tal era o ódio surgido com o que presenciava. Aumenta a separação entre os grupos familiares Numa manhã de abril nasceu um belo potro na fazenda, um filho da égua preferida de José de Alencar. Mesmo antes de nascer, José Alencar mostrava e comentava com Clara que ia nascer um cavalinho na fazenda. A menina, como era de se esperar, ficou encantada e apaixonada pelo cavalinho recém-nascido e com imensa satisfação o pai, não resistindo ao pedido e ao desejo de agradá-la, imediatamente lhe falou que o potro seria dela: um presente cobiçado pelos outros filhos. Uma bezerrinha malhada e mansa nascida logo depois, também passou a ser de propriedade de Clara, causando inveja e mais raiva ainda nos outros filhos. À medida que Clara crescia, ao fazer três, quatro e cinco anos, seu pai passou a levá-la quase todos os dias para os diversos locais da fazenda, onde ele ia fiscalizar e coordenar os serviços. Enquanto alguns passeios eram realizados a cavalo, outros, entretanto, eram feitos no jipe dirigido pelo pai. Durante essas andanças pela fazenda, a cada viagem que fazia 24 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 24 23/12/2009 15:34:10 junto à filha, José de Alencar mostrava à filha cada detalhe interessante cada novidade, cada lugar atraente, exibindo no olhar e no tom de voz o entusiasmo que sentia por estar criando um tipo de mente diferente, modelando um modo de pensar específico quanto à fazenda, ao trabalho e disciplina. Muitas vezes comparava seus sentimentos atuais e sua relação com Clara com o acontecido com ele mesmo e os outros filhos. Não se sabe por que jamais teve com eles esse imenso prazer de cuidar e de ensinar alguém. Sentiase um pouco culpado de não ter sido assim com os outros filhos e mesmo com sua mulher. Mas como sua euforia era grande, esta ofuscava as críticas que fazia a si mesmo e cada vez mais com mais entusiasmo continuava a trabalhar e a educar sua filha preferida. Muito ligado a Clara, sabia que deixava muitas vezes coisas importantes de lado, mas isso não lhe importava, pois achava que tinha o direito de viver conforme seus objetivos mais agradáveis. Ele ensinava-lhe, com toda a calma possível, tudo que amava e isso compensava o atraso ou prejuízo por não ter tempo suficiente para administrar tudo o que se esperava dele. Era mais importante o prazer intenso sentido no contato com a filha que as outras obrigações antes realizadas. Agora estes afazeres começaram a ter menos importância para ele. José de Alencar estava radiante e feliz ao exercer seu papel de pai, mesmo diminuindo seu papel de fazendeiro. . Donana, irritada, mas também temerosa das repreensões do marido, esforçava-se por tratar bem a filha, embora não conseguisse esconder sua aversão por tudo que dizia respeito à menina. Na verdade, ela sentia-se cada vez mais arrependida de ter aceitado receber Clara como sua filha. 25 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 25 23/12/2009 15:34:10 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 26 23/12/2009 15:34:10 2º Capítulo Desenvolvimento de Clara: um susto O amor de José Alencar por Clara aumentava. Ela se tornava cada vez mais, para tudo e em tudo, sua companhia constante. O tempo passava. Num fim de tarde de dezembro, José Alencar brincava com a filha na varanda da sede da fazenda, quando ouviu o chamado de um vaqueiro, informando-o que uma vaca havia parido e o bezerro havia caído numa vala e não conseguia sair do lugar onde estava, apesar dele ter tentado retirá-lo. José Alencar, com calma, decidiu ir ver o que poderia fazer. Acostumado a solucionar problemas frequentes na fazenda, sabia que isso não seria difícil, pois fatos como o narrado aconteciam a todo o momento e ele conhecia-os bem. Decidiu ir ver o ocorrido na companhia do vaqueiro que veio avisá-lo, para verificar o modo de salvar o bezerro. 27 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 27 23/12/2009 15:34:10 Antes de entrar no jipe ordenou ao vaqueiro que separasse duas enxadas e algumas cordas e, em seguida, tomasse lugar no jipe para que os dois fossem ao ponto indicado. Clara observava tudo com o máximo de atenção. Fez uma e outra pergunta, até que decidiu falar: — Paizinho... posso ir com o senhor? — Não. É muito distante, como ele disse. É um lugar ruim de ir. Vamos de jipe, mas temos que caminhar morro acima. O lugar é difícil de andar. Deixe para outra vez. Além disso o céu está escuro. Vai chover a qualquer momento. — Ah... mas eu quero ver. Eu gosto de chuva. — Mas a chuva vai lhe molhar e você pode ficar doente. — Eu vou buscar a capa que me deu. Volto logo. Não vai embora, não. O coração de José Alencar bateu mais forte. O desejo da menina, o prazer dele pela sua companhia fez com que sua razão fosse dominada pela emoção. O prazer determinou sua conduta, por mais que tentasse ir contra a lógica. Nem ele mesmo acreditou em si quando tentou demover a intenção da filha. — Deixe para outro dia. Eu te levo para ver uma outra vaca parida, num lugar mais fácil de se chegar. — Deixa, pai. Eu gosto tanto de ir com o senhor. José Alencar não resistiu aos encantos daquela criança simples e permitiu que ela entrasse no jipe, bem ao seu lado, enquanto o vaqueiro se sentou na parte de trás. 28 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 28 23/12/2009 15:34:10 Orientado pelo vaqueiro, José Alencar foi dirigindo o jipe pela estrada barrenta e escorregadia. Chegando a um ponto, o vaqueiro falou: — É lá em cima. Temos que ir caminhando. O bezerro está bem para trás daquela grota. Nesse momento ele apontou para um ponto não muito distante de onde estavam, mas de difícil acesso devido à subida íngreme e do mato e terra molhada. — Quer ficar aqui no jipe, Clara? É melhor para você. É muito difícil ir lá em cima. Além do mais parece que vai chover e aqui, pelo menos, tem uma coberta. Não tampa muito, mas é alguma coisa. — Ah não. Eu aguento andar e quero ver o bezerrinho. Coitado! Não houve meios de José Alencar mudar seu objetivo e, além disso, ele preferia levá-la, pois assim estaria mais protegida do que se a deixasse sozinha no jipe. Após fecharem as cortinas do carro, retiradas as cordas e enxadas, começaram a caminhada morro acima. Clara estava feliz, pois nunca tinha ido àquele lugar e tudo era novidade. Ora escorregava e caía, mas ria de tudo junto ao seu pai, que se alegrava com sua companhia. Durante a caminhada, Clara, por estar cansada, ou fingido estar, foi carregada morro acima por ele até se aproximar da vaca que protegia o bezerro no buraco. Finalmente alcançaram o lugar indicado. Felizmente não estavam diante de uma vaca brava, assim foi relativamente fácil, com a ajuda das enxadas, abrir um pequeno trilho até o fundo do buraco, e depois, uma vez o bezerro amarrado, ser puxado pelo vaqueiro para o alto, enquanto José Alencar ia empurrando como podia o bezerro. 29 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 29 23/12/2009 15:34:10 O salvamento não durou mais que uma hora e, para alegria da vaca, o bezerro, ao chegar à parte alta do buraco, foi bem recebido pela sua mãe e em seguida faminto, começou a sugar o leite de suas tetas. Entretanto, quando já estava quase tudo resolvido, o tempo, que ameaçava tempestade, ficou mais escuro. Logo caiu uma pesada chuva que molhou a todos, inclusive Clara, que usava uma capa de chuva. O grupo desceu escorregando e caindo morro abaixo, enquanto durante todo o trajeto a chuva continuava forte. Chegaram à estrada onde estava o jipe uns quinze minutos após terem salvo o bezerro, molhados como pintos na chuva e enlameados, pois os três levaram diversos tombos durante a descida, embora esta não fosse cansativa como a subida. Entraram no jipe e partiram em direção à fazenda. Todos estavam alegres com o dever cumprido. A estrada completamente barrenta, tendo em vários lugares poças grandes cheios de água, fazia o jipe dançar indo de um lado a outro e, às vezes, ficava por momentos preso numa vala. Prontamente José Alencar punha uma outra marcha reduzida e o velho jipe escapava daquele atoleiro e caía em outro. O dia tinha acabado e já era noite quando eles se aproximaram da casa da fazenda. Clara tremia de frio e, de quando em quando, espirrava. Diante do balanço do jipe ela se agarrava ao pai o quanto podia, muito mais para se proteger contra o medo, que das sacudidelas e constantemente perguntava ao pai: 30 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 30 23/12/2009 15:34:10 — Ainda falta muito para chegar? Estou com saudade da mamãe. — Sim, falta um pouco. Daqui a pouco chegaremos e você vai, em primeiro lugar, tomar um banho bem quente e tirar toda essa roupa molhada. A conversa não ia além disso, pois José Alencar também já estava preocupado com a menina, que durante um longo período ficou molhada e com frio. Para alegria de Clara e do pai, de longe avistaram a luz da fazenda acesa, indicando estarem chegando. Clara e o pai, logo que desceram e entraram em casa, receberam os xingamentos de Donana aproveitando sua raiva crônica da ligação dos dois: — Quer matar sua filha? — Como? — Sair com ela pelo mato com um tempo destes. — Deu azar e choveu. Mas ela gostou... — Veja como está! Molhada e suja. Além disso, está espirrando e tremendo de frio. Olhando para Clara com raiva continuou: — Anda. Tire sua roupa já. Vai para o banheiro. A água está quente. Estava te esperando e preocupada com o que tinha acontecido. Além disso, eu nem fui avisada que vocês iriam sair. Ande, ande! Desse jeito vai adoecer, já está espirrando, pode ter uma gripe forte. Rapidamente Clara tirou as roupas e entrou no banheiro, acompanhada pela mãe sob os olhares preocupados do pai quanto a possível gripe dela. José Alencar, refletindo, mostrava-se arrependido do que fez e imaginava que devia ter mantido sua proibição inicial. 31 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 31 23/12/2009 15:34:10 Depois do banho, após vestir uma roupa limpa e quente, Clara, cansada e abatida, ainda jantou demonstrando bastante apetite. Os espirros continuaram por toda a noite, apesar dos cuidados da mãe e do pai que estavam apreensivos. No dia seguinte ela levantou-se um pouco quente e pouco se alimentou, mas mesmo assim queria sair com o pai para as terras da fazenda. Imediatamente, tanto Donana como o próprio Jose Alencar não atenderam seu pedido. Abatida e triste ela foi até a escada da varanda para abraçar e se despedir dele. Mas nesse mesmo dia após seus trabalhos normais, ao voltar para o almoço José Alencar percebeu que Clara não estava na varanda, esperando-o como acontecia sempre. Emoldurando a varanda, entre a madeira pintada de azul, faltava, naquele dia, a carinha bonita e simpática da menina, observando o pai colocar o jipe na garagem embaixo da casa e, em seguida, subir as escadas em sua direção para abraçá-la e carregá-la nos braços pela casa adentro. Era assim que Clara fazia: bastava ouvir o barulho distante do jipe para largar o que estava fazendo e correr em direção à varanda e como era ainda pequena só podia vê-lo através dos espaços entre uma peça de madeira e outra. Naquela manhã Clara não estava lá como sempre. O que terá acontecido, perguntou José Alencar a si mesmo? Terá piorado? Subiu quase correndo as escadas em busca de noticias. Estava angustiado. Rapidamente, nervoso, ele entrou em casa, tendo ido direto ao quarto de Clara. Abatida, deitada em sua cama, ela sorriu com dificuldade para o pai. 32 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 32 23/12/2009 15:34:10 Estava vermelha e suando. Sua mulher, muito séria e preocupada, num tom de voz bem baixa disse-lhe: — Ela não está bem! À noite, você viu, espirrou e tossiu um pouco. Agora a tosse aumentou. Estou preocupada. Também, com aquela chuva que ela tomou. A culpa é sua! — Não é hora de culpar ninguém. Vamos pensar no que fazer. — Ela não quis comer nada. Levantou-se, mas ficou tonta. Achei melhor voltar com ela para a cama. Dei-lhe um pouco de limonada Foi a única coisa que quis. Estava esperando você chegar para decidir o que fazer. —Vou levá-la ao médico. Agora mesmo! comentou José de Alencar, bastante preocupado. — Não sei se será preciso. Ela estava pior. Há pouco dei para ela um chá com aspirina. Ela tomou quase tudo, melhorou um pouco. Agora a febre diminuiu, mas ainda está quente, comentou Donana. Sem trocar de roupa, José de Alencar abraçou Clara e pediu a Zaia, babá de Clara, para ajudá-lo a levá-la ao médico. Sentindo-se culpado, queria fazer o possível para vêla saudável novamente. Talvez ela não estivesse tão doente como imaginava, mas o melhor era tomar as providências antes que piorasse. O corpinho inerte de Clara, enrolado no cobertor da própria cama onde estava, foi colocado pelo pai e Zaia na parte traseira do jipe sem banco, onde foram colocados cobertores e travesseiros para que ela pudesse ficar deitada. Seus olhos estavam espantados e abatidos. Zaia, sentada nas laterais do jipe, foi segurando o corpo inerte de Clara, ao mesmo tempo que a distraía. 33 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 33 23/12/2009 15:34:10 Bastante nervoso, José Alencar ligou o jipe. Antes de dar a partida, olhou desolado para ela, relembrando a Clara alegre, animada e falante que era, a menina que ele conhecia e com quem se relacionava. Agora ela era outra, estendida no fundo do jipe Clara permanecia imóvel, seu olhar indiferente e sem vida. José Alencar sentiu o calor intenso que saía do corpo da menina, colocou mais uma vez a palma da mão na testa de Carla, mas ela continuou na mesma posição em que estava, nem os olhos mexeu. — Quer um pouco de água? Perguntou José Alencar preocupado. Com muita dificuldade e demonstrando um grande cansaço, ela respondeu com uma voz difícil de ser ouvida: — Não. Não estou com vontade, depois eu tomo. José de Alencar apesar de ser um homem forte e experimentado, era uma pessoa muito preocupada com as situações de risco. Por isso mesmo, nas conversas consigo mesmo, como naquele instante, imaginou: — “Eu sei que eu exagero os perigos. Só fico imaginando Clara morrer. Se isso acontecer, não sei como irei viver, pois minha vida tem sido em torno dela. Mas deve ser o medo que tenho de doenças que me faz aumentar a doença dela”. Deu partida no jipe e em poucos minutos estava chegando ao hospital da cidade. Por sorte o pediatra ainda não tinha ido almoçar e trabalhava normalmente. Poucos minutos depois Clara era atendida. Dr. Francisco brincou ligeiramente com Clara. Enquanto isso, sua auxiliar foi tirando parte da roupa da me- 34 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 34 23/12/2009 15:34:11 nina. Em seguida, cuidadosamente, deitou Clara na maca para que o exame pudesse ser realizado. O médico inicialmente deu uma olhada breve por todo o corpo de Clara, começando pelo rosto e toda a cabeça, inclusive pela parte de trás do pescoço. Em seguida apalpou diversas regiões do seu frágil organismo, auxiliado por alguns instrumentos que batiam levemente em seus músculos ou riscavam a pele. Clara não chorava e não se mexia. Ela estava sonolenta, indiferente ao exame. Naquele instante era uma outra pessoa. O médico, sempre sério e em silêncio, observava e prestava atenção a cada fato de importância. É... está quente. Muito quieta. Desde quando está assim? - A voz do médico demonstrava preocupação. — Até ontem ela estava bem. Tudo aconteceu após a chuva de ontem à tarde. Nesse instante José Alencar começou a contar a ida ao pasto. Entretanto Dr. Francisco, sem ligar para a história, pediu a enfermeira que colocasse Clara sentada, segurando-a por trás. Nessa posição ele iniciou parte do exame clínico. Em seguida, após deitá-la, começou a auscultá-la, concentrando sua atenção na parte da frente do tórax e nas costas. Depois pediu a Clara que movimentasse os braços e as pernas e, logo em seguida, que abrisse a boca e mostrasse a língua. Levantando um pouco as pálpebras da menina, que nesse momento tinha os olhos quase fechados, o médico examinou a parte branca dos olhos e também a dilatação da pupila. Feito isso, sem nada falar ou perguntar, utilizando-se de um pequeno aparelho que abre as narinas clareando seu interior, ele examinou a parte interna do nariz. Finalmente, 35 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 35 23/12/2009 15:34:11 após deitá-la de lado, observou, também usando a luz do aparelho, o canal do ouvido e tornou a colocá-la deitada de costas como antes. Sério, Dr. Francisco ia examinando parte por parte do organismo da menina. Dentro do consultório imperava um terrível silêncio, interrompido, de quando em quando, por uma tosse fraca de Clara e, bem longe dali, pelo canto rouco de um galo e pelos latidos de um cachorro. José Alencar, enquanto esperava o resultado das observações do médico, o terrível veredicto, sentia as pernas fracas e, por mais que se esforçasse, sentiu-se obrigado a abandonar por minutos o consultório abafado para respirar e enxugar as lágrimas que desciam pelos seus olhos. No jardim abandonado na frente do hospital, respirou o mais que pôde e passou suas mãos em torno dos olhos, enquanto olhava para longe, imaginando poder sair daquele lugar o mais depressa possível. Zaia, mais calma dentro do consultório, tentava brincar, sem resultado, com Clara. A enfermeira, treinada para lidar com os sofrimentos alheios, permanecia estática, obediente e atenta a cada gesto do médico e da paciente. Demonstrando calma, segurando delicadamente as mãos de Clara, esperava as ordens do médico para tomar as providências necessárias. Apesar de o médico nada falar até aquele momento, não era difícil deduzir, com boa margem de acerto, que ele detectou alguma coisa de gravidade e de preocupação. A vida de Clara, sem dúvida, estava em perigo. Após alguns minutos onde se ouvia apenas o barulho de duas moscas que pousavam, ora na face de um, ora na face de ou- 36 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 36 23/12/2009 15:34:11 tro, o Dr. Francisco interrompeu seu silêncio. Antes de começar a falar, impostou naturalmente sua voz para adequá-la à gravidade que queria dar ao resultado do exame minucioso que fizera. Ele começou sua fala muito lentamente: — A febre está alta, o pulmão cheio, sua respiração está difícil. Depois de algum tempo sem nada dizer, como se estivesse pensando o que falar, e olhando fixamente para José Alencar quebrou o prolongado silêncio e completou seu pensamento: — Parece ser uma pneumonia. Vou lhe dar as instruções acerca do que fazer e também dos medicamentos que deverá tomar. — É grave, doutor? Perguntou apressadamente José Alencar sem coisa melhor para dizer. — Não sei. Pode ser uma coisa simples... pode ser grave. Em Medicina a gente nunca sabe. Às vezes ficamos preocupados com o nada, outras vezes somos pegos de surpresa. Uma coisa que parece à-toa, transforma-se numa grave doença, mesmo em óbito. José de Alencar tremeu ao ouvir a palavra ”óbito”. Após limpar a garganta para conseguir falar, tentando disfarçar o desespero que o dominava, perguntou engasgado: — Mas tem tratamento... não tem? — Claro! Sempre tem! Ou melhor, nem sempre. Dr. Francisco consertou sua frase ao se lembrar de alguns pacientes cuidados por ele que faleceram, apesar de todo esforço para salvá-los. Nesses casos cabe ao médico ajudar o paciente a morrer de modo digno e com o menor sofrimento possível. 37 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 37 23/12/2009 15:34:11 Zaia, que assistia a tudo postada mais afastada da maca, automaticamente se aproximou da para vestir Clara. O médico, após se sentar na cadeira de ferro colocada diante da mesinha, tirou uma caneta do bolso e segurou a ficha médica para anotar alguns dados acerca da paciente. Em seguida, pegando o bloco-receituário, escreveu o nome da paciente e os nomes dos medicamentos indicados bem como a forma de tomá-los. Ao mesmo tempo ia passando para a ficha médica os nomes dos medicamentos receitados, os exames a serem pedidos e alguns fatos observados e ainda não anotados. No pé da ficha o médico anotou suas conjeturas acerca do estado físico de Clara. O silêncio, naquela sala abafada, continuava perturbador. Ouvia-se, às vezes, o som provocado pela ponta da caneta do Dr. Francisco ao receitar ou anotar dados na ficha médica, bem como o barulho das folhas do bloco receituário quando destacadas. José de Alencar olhava para Clara quase chorando. Ela, por sua vez, indefesa e impotente, mostrava-se desolada e confusa. Não entendia aquele teatro jamais presenciado. José Alencar, uma vez dominado pela realidade perversa, sem forças e habilidade para ir contra o que ele não conhecia e não tinha a menor experiência, sentia que estava sendo derrotado por aquele evento indesejável. Tudo indicava que ele, e talvez o médico, não pudesse fazer nada para mudar o rumo da situação. Ele era incapaz de proteger e ajudar o que ele atualmente mais queria: fazer sua filha voltar ao que era, uma menina viva, sorridente e feliz. O médico, ao levantar-se, prendeu por segundos a respiração e a fala e depois voltou a dizer pausadamente: 38 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 38 23/12/2009 15:34:11 — Tem!... Parou bruscamente sua frase e continuou construindo um novo raciocínio: — Precisamos ser cautelosos. Dê esses remédios, como escrevi. Ela precisa tomar o máximo de líquidos: água, limonada, laranjadas etc. Essas gotas de 4/4 horas e uma injeção dessas duas vezes ao dia. Vai doer um pouco. Deverá tomá-la por dez dias. É um antibiótico mais potente para esses casos. Não sabemos que tipo de infecção ela tem. É melhor tomar um que tenha um efeito mais amplo. — Precisa tomar injeção? - perguntou aterrorizado José de Alencar. — Sim! É fundamental para ela. - E sem discutir continuou: — Antes passe pelo laboratório clínico, aqui mesmo. A enfermeira vai levá-lo lá. Será feito um exame de escarro para saber que tipo de bactéria está sendo responsável pelo quadro clínico e também um antibiograma. É através dele que saberemos se a bactéria é ou não sensível ao medicamento que está tomando. — O quê? - Perguntou espantado José Alencar. - E se o remédio tomado de nada valer? Quase implorando, imaginando o sofrimento da filha e dele mesmo, resmungou com pouca fé: — Não pode usar algum outro remédio, por exemplo, um dado pela boca... — Não! A não ser que você não se importa com o estado grave dela. Receitei um antibiótico a que suponho 39 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 39 23/12/2009 15:34:11 não haver resistência, ou seja, que o gérmen seja sensível a ele, por ser mais moderno e, logicamente, menos usado e consequentemente mais capaz de atuar com eficiência. Entendeu? Se não... Após esperar algum sinal de José Alencar, o médico terminou sua frase: — Irei lhe explicar novamente. José Alencar permaneceu calado. Percebia que estava nas mãos do médico e, portanto, decidiu cumprir o prescrito pelo Dr. Francisco. A conduta do médico, segundo suas observações, lhe deu confiança e esperança. Seu nome era respeitado e além disso sabia que não tinha outra coisa a fazer naquela situação, a não ser acreditar em alguém de quem precisava como nunca. De qualquer forma José Alencar saiu dali seguro de que o médico sabia o que falara. Acompanhado pela enfermeira foi imediatamente até ao laboratório onde foi colhida, com bastante facilidade, uma quantidade de escarro para o exame e, em seguida, caminhou até à farmácia para comprar os medicamentos receitados, pedindo ao farmacêutico para dar a primeira injeção em Clara. Aproveitou o encontro para combinar a ida dele até a fazenda para fazer as outras aplicações. Entretanto, José Alencar, apesar de desejar ficar perto de Clara dando-lhe segurança, não suportou assistir à aplicação da injeção. Pediu a Zaia que acompanhasse sua filha, após sair de dentro do local onde seria dada a injeção. Aproveitou a ocasião para orientar a babá para segurá-la firmemente e com carinho, para que Clara ficasse quieta e sofresse o mínimo possível. 40 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 40 23/12/2009 15:34:11 Tendo sua consciência dominada pelos continuados sentimentos de culpa por tê-la levado ao pasto naquela tarde, preferiu se afastar da cena da injeção. Caminhou até a porta de entrada da farmácia e lá permaneceu até que se fez silêncio dentro da farmácia, pois durante a aplicação do antibiótico Clara berrou, como era esperado, com sua voz fraca e triste, enquanto era segurada por Zaia e uma ajudante que varria a farmácia. Felizmente as duas se mantiveram calmas durante todo o tempo. Disfarçando os movimentos das mãos para limpar os olhos cheios de lágrimas, pigarreando e tossindo, José Alencar ia engolindo as secreções que desciam pela sua garganta e dificultava sua respiração e fala. Após pagar os medicamentos, saiu rápido daquele lugar tétrico, louco para voltar à fazenda. Trêmulo, carregou sua filha doente e fraca até o jipe estacionado do outro lado da rua. Chegando em casa, antes de tudo mandou dar um banho em Clara e trocar as roupas, tentando evitar desse modo alguma possível infecção hospitalar e do ambiente da cidade. Após o banho, já na cama, Donana ofereceu, sem resultado, uma sopa a Clara. Esta, talvez cansada de tudo, preferiu dormir. José Alencar não arredou os pés do seu leito adiando todos seus compromissos. Naquele dia e nos seguintes, não mais saiu para trabalhar, não era capaz de pensar em outra coisa. Passava grande parte do tempo caminhando de um lado ao outro do leito de Clara, porém evitando olhar para a menina doente. Quando assim o fazia, ao observar o corpo dela cada dia mais magro, chorava sozinho junto a ela sem que ela percebesse. 41 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 41 23/12/2009 15:34:11 A febre, apesar dos remédios, continuou oscilando: ora subia, o que desesperava a todos, ora descia quando menos se esperava, retornando à quase normalidade. Nesses momentos crescia a esperança do retorno dela à vida normal, despontando uma imensa alegria nos olhos de José de Alencar, de Donana e de todos os outros filhos e empregados da casa. Donana, diante da gravidade do estado de Clara, tomou por ela um grande amor e, naquele momento, estava apreensiva quando imaginava perdê-la. Infelizmente não houve melhoras significativas durante os três primeiros dias de tratamento: a doença de Clara piorava. José Alencar, desolado, lembrava com imensa saudade a ausência dos passeios, seu sorriso terno entre as tábuas da varanda esperando sua chegada, os abraços de Clara, a sua presença junto aos pais durante o jantar, fazendo perguntas acerca do cavalinho. Tudo isso lhe provocava uma sensação de estar sozinho, perdido, sem lugar. Durante esses dias de grande sofrimento aconteceu uma grande mudança nas relações entre José Alencar e Donana: os dois ficaram mais próximos. Os pais de Clara, tendo um objetivo comum - cuidar de Clara, impedir sua morte, comungando um mesmo sentimento - se uniram na dor, tornaram-se amigos. Toda a família, José de Alencar, Donana e os dois filhos do casal enfrentavam um mesmo problema indesejável: a doença da menina e o medo de sua morte. Durante a doença, enquanto Clara dormia ou descansava em sua cama acompanhada por Zaia, os pais muitas 42 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 42 23/12/2009 15:34:11 vezes se assentavam na varanda da fazenda e conversavam entre si, uma relação que havia se acabado há muitos anos e piorou após a adoção da menina. Suas conversas eram principalmente acerca da possibilidade ou não dela se recuperar. Só muito raramente eles conversavam sobre o período anterior à enfermidade, aos fatos ocorridos antes de Clara ser adotada. Quando José de Alencar se lembrava do período em que Clara estava bem, durante o relato ficava alegre e falante e esquecia por instantes a gravidade agora existente. Animado, contava para Donana os passeios que fazia com ela pelas terras da fazenda, sua curiosidade a respeito dos trabalhadores, dos animais, do cultivo do café e cana. Relatava, minuciosamente e animado, as perguntas e medos dela. Tudo acerca da menina foi revelado entre os dois, assuntos que eles nunca tinham discutido. Tudo parecia muito calmo. Crescia a união do casal, pois José Alencar contava sorridente seus passeios com a filha. Enquanto o casal conversava sobre a simpatia e beleza de Clara, Zaia permanecia vigilante no quarto ao lado da menina, observando cada mudança que pudesse aparecer. De repente ouviu-se um grito estridente de Zaia chamando Donana e José Alencar. Clara começou a passar muito mal. Assustados, os dois correram em direção ao quarto e presenciaram uma cena terrível e difícil de suportar: o corpo de Clara estava se contorcendo. Seus olhos abertos não fitavam ninguém. Todos os músculos da menina, durante segundos que pareceram horas, se contraíram, ora 43 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 43 23/12/2009 15:34:11 flexionando-se, ora distendendo-se. Clara, contorcendo-se, não respondia aos apelos e gritos desesperados dos presentes. Os três, impotentes e sem saber o que fazer, assistiam imobilizados a uma cena pavorosa: os músculos de Clara se contorciam, seus braços e pernas davam arrancos involuntários e sem controle. — Clara! Clara! Desesperados, ora um ora outro gritava seu nome, paralisados e impotentes diante do fato inexplicável que presenciavam. Ninguém conseguia nem mesmo esboçar alguma ação efetiva. Imaginavam, através do grito, interromper o ataque convulsivo que nela se instalou. Como era de se esperar, Clara, dominada pela doença, nada respondeu. O corpo de Clara se transformou em contrações violentas por uns dois minutos e, após esse tempo, as convulsões corporais se tornaram mais brandas e lentas e por fim terminaram. O quadro observado pelos pais e por Zaia foi aterrador. A respiração de Clara havia parado desde o início das contrações musculares. A cor de sua pele tornou-se muito branca e pálida, de um branco quase leitoso, mostrando uma pele sem sangue Seus olhos fixados num mesmo ponto, pareciam olhar para o teto. Seu corpo, após as convulsões, estava completamente flácido, totalmente relaxado. Os três, no quarto, em desespero diante do que viram, imaginaram o desesperador: - que Clara havia morrido. Um grito lancinante saíu dos lábios de Zaia. Donana e José de Alencar se abraçaram, por instantes, quietos, sem nada fazer. 44 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 44 23/12/2009 15:34:11 Confusos, em pânico diante daquele quadro nunca imaginado, eles seguraram e levantaram o corpo inerte de Clara, tentando lhe dar vida através dos abraços e do amor. Ora por um, ora por outro, o corpo de Clara era estimulado como podiam. Procuravam impedir que sua vida, uma vida que parecia estar sumindo, se fosse definitivamente. Quando as esperanças de sobrevivência estavam se esgotando, pois sua pele começava a ficar arroxeada, de repente, Clara voltou a respirar, ainda que sem estar consciente, pois ela não respondia a nenhum chamado ou qualquer outro estímulo. Seu corpinho, que agora parecia menor ainda, ardia em febre, seu pescoço estava ainda um pouco endurecido, puxando a cabeça um pouco para trás. Nos braços de Donana ela vomitou uma água rala amarelada: não havia mais nada no seu estômago. Desesperados, tendo Clara desmaiado com os olhos fixos voltados para o lado esquerdo e para cima, ela foi levada às pressas ao hospital. O Dr. Francisco não foi encontrado no momento, pois estava atendendo uma criança na residência desta, devendo demorar um pouco. José Alencar, após descobrir no próprio hospital um médico de adultos para dar uma assistência emergencial a Clara, saiu à procura do Dr. Francisco e com alguma dificuldade, dada a sua confusão, conseguiu descobrir a casa onde o pediatra estava. Depois de lhe contar rapidamente o acontecido levou-o até o hospital. José Alencar respirou aliviado quando ele e o Dr. Francisco chegaram, percebendo que Clara ainda estava viva. Quando Dr. Francisco chegou perto do leito, a menina respirava melhor e mais compassadamente. Sua consci- 45 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 45 23/12/2009 15:34:11 ência parecia estar, aos poucos, voltando, pois já era capaz de virar os olhos para um e outro lado. Entretanto, apesar da melhora aparente, parece que não reconhecia ninguém, por mais que seu pai, enlouquecido pela possibilidade da perda, a chamasse sem parar, dizendo que ele, Donana e Zaia estavam ali juntos dela. O médico pediu a todos que se retirassem, pois o desespero deles atrapalhava o exame que exigia um ambiente tranquilo. Chamou uma enfermeira para ajudá-lo e esta, após despi-la completamente, colocou-a inicialmente deitada de costas e em seguida ao contrário, deitada de barriga para baixo, enquanto o médico a ia examinando detalhadamente. O médico pôde notar a temperatura alta da menina, apesar dos medicamentos que estava tomando e, além disso, certa rigidez no corpo, mais localizado no pescoço. Diante do que observou na paciente durante o exame e também baseado na sua experiência anterior e nos casos que não eram raros na cidade, levantou a hipótese de se tratar, talvez, de uma pneumonia seguida de meningite. Encerrados os exames, chamou os pais ao seu consultório, dando-lhes a notícia de que Clara estava viva e relativamente bem. Entretanto, propôs-lhes a eles a internação de Clara no hospital, pois seu estado apresentava gravidade e exigia cuidados continuados e muitas vezes rápidos. Além disso, pediu mais um exame: era preciso que naquele momento fosse retirado líquor de sua espinha para confirmar ou não o imaginado, isto é, alguma infecção no cérebro ou nas meninges. 46 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 46 23/12/2009 15:34:11 Paralelamente, o laboratório iria detectar qual o tipo de bactéria causadora da infecção e se ela existia também no cérebro além dos pulmões, brônquios, laringe, etc. Os dois, assustados, tentaram desanimados e timidamente adiar as orientações do médico, mas diante da gravidade do caso, decidiram concordar com o prescrito pelo Dr. Francisco. O próprio Dr. Francisco retirou com perícia o líquor da espinha de Clara, que imediatamente foi enviado ao laboratório para análise. Além disso, Dr. Francisco receitou um medicamento para impedir outra convulsão e uma maior quantidade de antitérmico para debelar a febre ou mesmo outra convulsão. O resultado sairia somente no dia seguinte. No hospital, Clara foi colocada no soro para ser hidratada, pois havia vomitado muito e não comeu, nem bebeu quase nada nos três últimos dias. Além disso, através do soro, diversos outros medicamentos necessários e às vezes urgentes eram introduzidos no organismo da paciente. Apesar de todos esses cuidados tomados ainda no primeiro dia de internação, quando já era noite a febre de Clara aumentou. José Alencar, alertado pelos movimentos incessantes para um lado e outro do seu corpo, além de quase não responder ao perguntado e estar com o pescoço mais rígido, decidiu chamar a enfermeira. Quando ela entrou no quarto, um pouco aborrecida por imaginar estar sendo chamada devido ao nervosismo dos pais, Clara apresentou o mesmo quadro ocorrido na fazenda: começou a ter uma nova convulsão. Todos entraram em pânico. 47 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 47 23/12/2009 15:34:11 Clara, a princípio, endureceu por uns trinta segundos todo o corpo. Seus músculos ficaram tesos, sua respiração foi interrompida temporariamente. Em seguida ao período inicial de endurecimento muscular, apareceram fortes contrações provocando flexões nos antebraços, sobre seus braços, as coxas e sobre o tronco. José de Alencar e a enfermeira seguraram levemente as pernas e os braços da menina, para que eles não quebrassem impelidos pelas violentas contrações. Durante mais de trinta segundos, ainda sem respirar, totalmente molhada pelo suor e com o rosto avermelhado pelos movimentos violentos e pela febre, Clara era só contrações musculares que foram, pouco a pouco, diminuindo até terminar. A menina, que suava mais ainda com as contrações, após o término delas ficava branca como cera, desmaiada, parecia morta. José de Alencar e mesmo a enfermeira que estava a seu lado, esperavam angustiados o que iria acontecer: Clara voltaria a respirar ou sua respiração acabaria definitivamente. Uma massagem sem técnica foi feita pela enfermeira no seu tronco. Felizmente, para tranquilidade de todos, após mais alguns segundos, a respiração voltou. Inspirações profundas e lentas começaram a aparecer. Também aos poucos a cor avermelhada e ligeiramente morena de sua pele retornou ao que era antes do aparecimento da convulsão. José Alencar e a enfermeira olharam um para o outro, aliviados com o desfecho feliz. O suor que escorria da face de Clara foi enxugado pela enfermeira com uma toalha úmida. Respirando agora 48 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 48 23/12/2009 15:34:11 normalmente, seu coração retornou a bater fortemente. O clima tétrico existente no quarto onde ela estava internada, ficou tranquilo. O médico foi avisado do ocorrido e poucos minutos depois estava examinando-a e revendo o que havia determinado. Sempre aparentando calma e seriedade, Dr. Francisco deu instruções à enfermeira para o uso de novas medicações. Estando tudo em ordem, o médico despediu-se, mas antes avisou José Alencar que passaria no hospital no início da noite para fazer um novo exame e também que estaria à disposição para qualquer emergência, ou seja, deveria ser chamado a qualquer hora, caso ela passasse mal outra vez. José Alencar, sozinho agora no quarto com Clara, estava aflito pela chegada de sua mulher que lhe faria companhia no hospital naquela noite. Logo chegou Donana e imediatamente José Alencar lhe contou, emocionado, a outra convulsão de Clara. Ao contar para a esposa a nova convulsão sofrida pela filha, José Alencar não conseguiu terminar o relato, pois sua fala foi interrompida pela voz embargada pela emoção e o choro convulsivo. Donana, por sua vez, diante do relato e da emoção do marido não resistiu e chorou, como há muito não fazia, no ombro protetor e forte de José Alencar, que a abraçou carinhosamente. O novo diagnóstico, realizado com a ajuda do exame de líquor, levantou a suspeita de infecção cerebral, além da pulmonar. Apesar da gravidade da doença, os familiares e corpo clínico do hospital, aos poucos ficaram mais esperan- 49 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 49 23/12/2009 15:34:11 çosos. Clara começou a melhorar: e não mais teve as terríveis convulsões. Ao mesmo tempo em que a febre elevada do início foi desaparecendo, Clara começou a pedir alimentos e líquidos. Por fim passou a sair de seu leito e andar amparada. Dias depois já era capaz de perambular sem auxílio pelo quarto do hospital. Finalmente sua febre foi debelada, seu peso aumentou ligeiramente. Por tudo isso, retornou a alegria e tranquilidade dos pais, irmãos e médico. Muito magra, pois emagrecera cinco quilos em pouquíssimo tempo, Clara recebeu alta e voltou à fazenda. Nesta, ela foi recebida com uma pequena festa onde se reuniram os pais, os irmãos e um pequeno grupo de amigos e parentes. No período da doença, José de Alencar e Donana voltaram a viver como um casal bem adaptado. As conversas entre eles, que quase haviam terminado, reacenderam-se. Os dois se tornaram amigos e companheiros, confidenciando as alegrias e tristezas da vida. Lamentavelmente a religação entre os dois não durou muito tempo: à medida que Clara foi melhorando, voltando a viver como antes, Donana e José Alencar foram se afastando um do outro, sem que eles mesmos percebessem. Aconteceu que José Alencar, ao retornar à sua antiga rotina, passou a trabalhar mais e ainda preocupado com a filha, usava grande parte de seu tempo dedicado a Clara. Por sua vez, Donana, também retornando às suas atividades de “dona de casa” e dedicando seu tempo aos outros filhos e aos deveres de mãe e patroa, deixou de lado os encontros com o marido. Além do mais, o assunto fundamen- 50 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 50 23/12/2009 15:34:11 tal e que emocionava a ambos acabou, pois Clara não mais precisava de ajuda: sua saúde voltara e junto as preocupações dos pais, a razão da conversas e emoções interligadas entre o casal acabaram. Agora, estando tudo resolvido, os dois não encontravam motivos ou desejos para estarem juntos. Eles não tinham mais temas comuns para discutir e assim cada um retornou ao seu canto, à sua solidão a dois, onde José Alencar trabalhava e cuidava de Clara e Donana trabalhava em casa e cuidava dos outros filhos. Desse modo, o aumento da união de Alencar com Clara produziu uma diminuição da ligação de José Alencar com a esposa. Nos piores dias, os dois chegavam a passar um pelo outro, nos corredores ou varanda da fazenda, sem mesmo se cumprimentarem. Nas conversas durante o lanche ou as refeições principais, raramente um comentava ou acrescentava qualquer ponto de vista desenvolvido pelo outro. Como consequência de tudo isso, as ligações de Clara com Donana também foram diminuindo. Uma união e desunião que para os outros filhos, talvez para os próprios pais, não era percebida. 51 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 51 23/12/2009 15:34:11 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 52 23/12/2009 15:34:11 3º Capítulo Crescimento de Clara: Mozart e a Academia Clara crescia cada vez mais presa ao pai adotivo. Era com José Alencar que ela discutia os assuntos mais íntimos, com o pai também ela saía para fazer as compras de armazém na cidade de Cachoeira do Assento. Também iam juntos ao médico ou ao dentista e era ele que conversava com ela acerca dos estudos, notas escolares e futura profissão. Clara tentava se ligar a Donana com grande dificuldade: ajudava-a nas arrumações da casa, na cozinha e só raramente discutia problemas simples e superficiais com ela, pois os assuntos mais sérios e íntimos não eram ventilados entre as duas. Devido ao estreitamento da relação entre filha e pai, maior ficou a distância entre Clara e Donana. Além disso, ela foi se afastando cada vez mais dos irmãos. 53 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 53 23/12/2009 15:34:11 Em casa havia dois grupos: um formado por José Alencar e Clara, o outro por Donana, Gabriel e Pedro. Quando chegou o momento de Clara começar a frequentar a escola, era José Alencar que a levava e buscava todos os dias, apesar da fazenda ficar apenas a um quilômetro do centro da cidade, onde se localizava a escola. Depois de alguns meses de aulas, ela própria lhe pediu que não mais a levasse, nem a buscasse. Clara estava sendo criticada pelos colegas por precisar de alguém para levá-la e buscá-la antes e após as aulas. Ele, lamentando a perda do convívio amistoso e carinhoso que tinha com ela naqueles momentos, como era seu costume aceitou o pedido e a partir desse instante Clara passou não só a ir à escola sem a companhia do pai, como também começou a ir algumas vezes à cidade para fazer uma coisa ou outra, desacompanhada do pai. Com o passar do tempo, Clara, mais crescida e independente, informou ao pai que desejava, além de ir sozinha à escola, ficar mais tempo na cidade junto aos colegas e amigos, participando de jogos, festas e brincadeiras. Ela percebia que só assim não ficaria tão desatualizada como estava dos acontecimentos e sentimentos dos jovens e de outras pessoas da cidade. Dessa maneira, quando Clara completou quatorze anos, José Alencar conseguiu, a pedido da filha, um lugar para ela trabalhar meio horário como vendedora de uma loja de material escolar, cujo proprietário, além de ser seu amigo, era também seu primo. O serviço ali era fácil, com pouco movimento, a loja permanecia a maior parte do tempo sem fregueses. 54 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 54 23/12/2009 15:34:11 Esse trabalho, que exigia pouco dela, permitia a Clara não só ter algum tempo para estudar e fazer seus deveres escolares, como também conversar com os amigos jovens como ela, o que cada vez mais a entusiasmava. Durante essas conversas, Clara conheceu um rapaz bonito de nome Mozart, que morava com a mãe viúva em frente à loja em que trabalhava. A mãe de Mozart, D. Marta, que vivia da pensão do marido, para aumentar um pouco sua miserável renda fazia biscoitos de polvilho, de araruta, pão de queijo e ela mesma os vendia para os passageiros dos ônibus que estacionavam alguns minutos na acanhada rodoviária da cidade, para que seus condutores e passageiros pudessem descansar as pernas, fazer um lanche rápido, tomar algum líquido e, caso necessitassem, ir ao banheiro. Os fregueses eram poucos, por vezes ela não conseguia vender nem um pacote de biscoitos. Mozart, 5 anos mais velho que Clara, apaixonou-se por ela logo que a viu trabalhar na loja. D. Marta teve seu marido assassinado barbaramente em frente à sua casa, devido a pequenas brigas por causa de limites de terras. Nessa época, Mozart, que tinha apenas oito anos, presenciou a discussão inicial do pai com o criminoso e, em seguida, o assassinato. D. Marta afirmou que a partir desse fato funesto, Mozart se tornou um menino introvertido, mais ainda do que sempre fora. Filho único, após a morte do pai tornou-se mais preso e dependente da mãe, o que parecia agradar ao egoísmo 55 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 55 23/12/2009 15:34:11 maternal. Ela era uma mulher que parecia passar a maior parte do tempo mal-humorada. Ainda adolescente, quando cursava a sétima série, Mozart começou a se interessar pelas artes, principalmente pela poesia e pintura. Nessa ocasião ele foi incentivado pela mãe orgulhosa das prendas do filho e pelo professor de português. Foi nessa época que Mozart escreveu suas primeiras poesias. Estas, uma vez prontas, foram repetidas para si mesmo e para mãe dezenas de vezes. Ainda jovem, Mozart foi levado pelo professor de português à Academia de Letras de Cachoeira do Assento, para conhecê-la. Mozart ficou encantado com o ambiente chique e frequentado pelos grandes intelectuais da cidade e, durante a visita, decidiu que um dia ele iria fazer parte da Academia, frequentar aquele grupo seleto, criar poesias e quadros, ser conhecido não só em Cachoeira do Assento, mas também em todo o Brasil, quiçá em todo o mundo. Com quatorze anos, Clara já era uma mocinha alta e atraente e por onde passava chamava a atenção dos jovens pela sua beleza, simpatia, educação e alegria. José Alencar, ao contrário de sua mulher, Donana, continuava extremamente dedicado e cuidadoso com Clara, visitando-a na loja onde estava trabalhando sob qualquer pretexto, quando era obrigado a ir até a cidade para resolver seus problemas. Nessas ocasiões sempre procurava seu amigo Dedé, dono da papelaria, procurando se informar do trabalho de Clara. Ficava orgulhoso da filha, comentando depois com ela quanto era elogiada pelo patrão. 56 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 56 23/12/2009 15:34:11 Durante o tempo em que Clara estudou e trabalhou na cidade, Mozart foi-se aproximando de Clara apesar de sua timidez. Os dois, por diversas ocasiões, saíam juntos para assistirem às Cavalgadas, Congados, Folia de Reis, procissões da Semana Santa, o carnaval de rua e também festas de aniversário e casamentos. Apesar de não serem namorados, os dois, quando se encontravam num e noutro lugar, quase sempre ficavam juntos durante o desenrolar da festividade ou cerimônia. Essa amizade, inclusive, fez com que Clara fosse a casa de Mozart, quando recebia dele lições de português, a matéria em que ela tinha mais dificuldade. Ele tendo um bom conhecimento de português, preparou-a com sucesso para as provas. Não foi difícil para José Alencar perceber a ligação entre os dois, pois muitas das vezes em que ele foi visitá-la na loja, lá estava Mozart conversando com Clara, algumas vezes recitando suas poesias feitas somente para ela. A princípio ele não deu maior importância ao que via, imaginou que seria uma amizade passageira, sem consequências futuras, pois não via nele um bom partido para a filha. José Alencar tinha por ele mais dó que admiração, não o percebia como um homem segundo o seu modelo, ou seja, Mozart não era valente, trabalhador, corajoso e forte, era, na verdade, fraco, tímido demais, medroso, indolente, sem objetivos práticos: - era um homem que não abandonava seus sonhos, vivendo mais deles que da realidade. Mozart, na ótica de José Alencar, era o oposto do que ele desejava para sua filha. À medida que notou que a cada dia eles estavam mais próximos e que daqueles encontros juvenis e ingênuos po- 57 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 57 23/12/2009 15:34:11 deria nascer uma relação mais séria, José Alencar elaborou um plano para dificultar esses encontros, que podiam levar Clara para um caminho que não era o desejado. Algumas vezes, em rodeios, conversava com Clara diretamente sobre o relacionamento dela com o poeta. Ela parecia não demonstrar nenhum grande envolvimento por ele, dava a impressão, nessas conversas, que via nele um amigo, somente isso e nada mais que isso. Decidiu, após pensar muito, esperar um pouco mais na esperança de que aquela amizade se desfizesse por si mesma, sem ação sua. Possivelmente, após certo tempo, um estaria enjoado do outro. Além disso, como ele pretendia estudar fora de Cachoeira do Assento, o contato diário entre eles acabaria. Ainda nessa época, Mozart, atraído pelos poetas e escritores de Cachoeira do Assento, passou a frequentar a “Academia de Letras” da cidade, uma agremiação artística dedicada à poesia, música e letras de música, fotografia, crônicas, romances e outras formas de arte. Durante as reuniões, Mozart e outros amigos discutiam seus projetos e criações artísticas, declamavam as últimas poesias por eles produzidas e no final das apresentações aplaudiam o apresentador da produção. Alguns dos participantes desse grupo levavam violões, outros flautas, gaitas, bem como diversos outros instrumentos para exibir suas novas melodias. Outros ainda, orgulhosos, mostravam as fotografias recém-tiradas ou quando faltavam essas, as antigas eram apresentadas, comentadas e selecionadas para concorrer a concursos. 58 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 58 23/12/2009 15:34:11 Também eram lidos contos e crônicas, expostos os últimos quadros pintados, às vezes vendidos para os assistentes amigos e parentes do artista plástico. Hermeticamente fechado, o grupo de intelectuais, orgulhoso de seu status, vivia dos elogios que cada um dos componentes fazia ao outro ou a eles mesmos. Envaideciam-se com as apresentações e palmas que ecoavam após a leitura de um conto, da mostra de um quadro recém-pintado ou da última fotografia tirada. Entretanto, para tristeza dos elementos do grupo, jamais um deles conquistara um lugar de destaque em qualquer área artística concorrida e de renome. O sucesso dos artistas permanecia ali mesmo em Cachoeira do Assento, não alcançava a cidade mais próxima. Os elogios feitos acerca das obras produzidas ficavam encerradas na cidade, entre os representantes da “inteligência” local, de uns para os outros. A população não-artística, incapaz de avaliar a capacidade criadora de seus conterrâneos e também indiferente às suas produções, repetia entre si as frases escutadas e criadas pelos elementos do próprio grupo dos intelectuais: — Mozart é muito inteligente: escreve poesias lindíssimas. — Gosto mais das crônicas de Mauro. — Nunca tive o prazer de lê-las. Há pouco tempo, no bar do Nhonhô, ouvi uma poesia de Herbert, declamada por ele mesmo... Uma beleza de peça literária. — Sobre o que versava a poesia? — Ah... isso eu não lembro. Acho que sobre o amor. Não sei! 59 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 59 23/12/2009 15:34:11 Mozart era um dos sócios mais atuantes da “Academia de Letras”, apesar de sua terrível timidez, chegando a tremer e suar profusamente quanto tinha que falar em público. O grupo, entre eles mesmos, chamava a academia onde se reunia de “Arcádia”. Mozart sempre apresentava uma ou outra poesia, recitada com invulgar orgulho, num tom de voz rouco e quase inaudível, sempre com uma contração facial de satisfação orgulhosa devido à sua brilhante criação. Ao terminar sua declamação, Mozart sempre dava um sorriso de vitorioso para a plateia e, em seguida, ficava esperando as palmas efusivas por um longo tempo. Ficava furioso quando elas duravam pouco tempo. Durante os intervalos entre uma e outra apresentação, os intelectuais e artistas da cidade reuniam-se em pequenos grupos para saborear o chá ou suco de maracujá acompanhado das quitandas fabricadas por D. Marta: biscoitos de polvilho, bolo de fubá, quebra-quebra e rosca. Nesses momentos usavam solenemente palavras apropriadas, de preferência quase nunca usadas entre o povo e até mesmo entre eles, que simbolizavam muito abstratamente temas ou eventos poéticos. Entretanto, para um neófito, a conversa entre eles era inteiramente incompreensível, pois as palavras usadas não possuíam uma relação com a realidade sensorial – olhos, ouvidos, gosto, tato ou olfato – desse modo, o ouvinte jamais conseguia formar alguma ideia ou representação do que estava sendo falado. As palavras pronunciadas pelos intelectuais eruditos voavam livres pelo espaço, sem se ligar a nada, a não ser nelas mesma, produzindo um vazio total da realidade descrita. 60 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 60 23/12/2009 15:34:11 Mas todos, sem exceção, comentavam com um entusiasmo poético seus novos feitos, seus planos atuais e futuros. Mozart, há muitos meses, talvez anos, tinha idealizado um projeto, ainda não concretizado: o lançamento de um livro de poesias de grande porte, enfeitado com reproduções de suas pinturas. Ele acreditava que seu livro seria um sucesso nacional, não só pela qualidade excepcional das poesias, mas também pela beleza das pinturas que selecionou para serem mostradas. Clara, algumas vezes convidada, ou melhor, forçada por Mozart, comparecia às reuniões da “Academia de Letras”. De fato ela jamais se interessou pela arte ali mostrada. Ela pôde confirmar o que já observara: cada um dos componentes do grupo se esmerava como podia para expressar os pensamentos da maneira mais complexa possível. Clara, muito simples, talvez ingênua, não compreendia a razão de agir daquela forma, usar frases complicadas quando as simples poderiam ser mais bem compreendidas e podiam atingir a mais pessoas. Quando ela assistiu às reuniões solenes, como a posse de novos intelectuais da “Academia”, quase sempre, por mais que prestasse atenção e se esforçasse, não entendia o que a maioria deles dizia. Às vezes pensava: - “Será que para ser membro desse grupo, todos são obrigados pelo estatuto a usar esse tipo de linguagem? Mas, nesse caso, por que será?” 61 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 61 23/12/2009 15:34:12 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 62 23/12/2009 15:34:12 4º Capítulo Os diferentes irmãos: Pedro e Gabriel Nas pequenas cidades do interior, geralmente os moradores eram conhecidos uns pelos outros. Assim, um dos amigos fraternos de Mozart era Pedro, filho de José Alencar. Pedro, desde cedo, ao contrário do amigo, era muito simples e humilde, tanto na maneira de falar quanto aos seus planos. Gostava da vida da fazenda, detestava ler livros e mesmos jornais. Ele se alegrava com o contato com a natureza, com o estímulo dos órgãos sensoriais e não do intelecto. Excitava-se com o que via, ouvia e sentia de maneira geral. Sentia-se feliz e realizado ao cuidar do gado da fazenda, em ver um bezerro nascer e crescer, curar uma vaca estropiada, fazer o queijo com o leite que ele mesmo tirou. Ficava feliz vendo o corte das canas de açúcar do canavial, da sua moedura no velho e cansado engenho puxado por um burro, horas e horas a fio, levando o caldo de cana diretamente a um enorme tacho de cobre, colocado em cima de um fogão a lenha, onde seria fervido por ho- 63 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 63 23/12/2009 15:34:12 ras, até engrossar e queimar um pouco, quando então era transferido ainda líquido para as formas de madeira apropriadas para fabricação artesanal de rapaduras. Todos esses processos, desde a colocação do gado no curral para começar a tirar o leite, até a feitura do queijo, e desde o corte pela manhã da cana, até a fabricação final da rapadura, alegravam e animavam muito mais Pedro do que as reuniões aborrecidas da Academia. Pedro, algumas vezes presente nas reuniões de Mozart pressionado pelos convites do amigo poeta, com pesar lembrava-se que, numa hora daquelas, poderia estar tirando leite de Formosa, para depois soltar seu bezerro que alegremente, balançando o rabo para um lado e outro, corria rápido para o peito de sua mãe para sugar o restante do leite que foi deixado para ele se alimentar. Tudo aquilo que Pedro vivia era considerado por ele como mais atraente e mais belo do que os discursos vazios de conteúdos dos membros da “Academia”. A vida para Pedro era, além de presenciar e sentir o espetáculo da tirada do leite e da fabricação da rapadura, também se diluir no barulho continuado da moenda triturando o milho jogado na enorme peça de madeira afunilada que, tempos em tempos, deixava cair, na sua parte mais fina, alguns poucos grãos de milho. Estes, uma vez triturados, transformavam-se num fino pó de fubá, de pequenos pedaços do milho quebrado e de farelos que esvoaçavam diante do vento, olhados por uma fresta do sol. Lá dentro do cubículo podia-se se sentir o balanço da tosca construção, um movimento provocado pela força da 64 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 64 23/12/2009 15:34:12 água que girava a engrenagem provocando o movimento da pedra moedora dos grãos de milho. Enquanto ouvia as poesias recitadas com invulgar entusiasmo, Pedro lembrava-se da fazenda, dos cafezais floridos, do amadurecimento e da beleza dos frutos avermelhados e adocicados antes de amadurecerem totalmente e ser apanhados. As dezenas de “apanhadoras” de café, belas, graciosas e sedutoras, seu canto melódico e nostálgico contando as coisas da vida do campo, das paixões e desgraças do homem pobre, sem teto e apaixonado, sonhador e sem amor. Assentado e preso nas cadeiras do salão solene onde se realizava a sessão da Academia, Pedro lembrava-se, com saudade, da secagem no enorme terreiro de café, preparado durante os meses de junho e julho. Era nessa ocasião que era realizada na fazenda uma grande fogueira de São Pedro e São Paulo, por coincidência dia de seu aniversário. Enxergava o toldo colocado no terreiro onde, antes, o café tinha sido secado. Observava os trabalhadores, agora metamorfoseados por algumas horas em dançarinos e cantores, homens e mulheres jovens e fortes, que dançavam e cantavam suas melódicas canções durante toda a madrugada. Ao lado, uma enorme fogueira queimava durante a noite, esquentando os prazeres dos assistentes mais desanimados ou cansados. Ao ver o orador interromper sua declamação para tomar um pouco de água, Pedro lembrou-se da pinga servida, dos licores de jabuticaba e de uva, do bolo de fubá com queijo assado na hora no forno dentro da fazenda, dos cobus e de- 65 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 65 23/12/2009 15:34:12 pois de tudo isso, do doce de cidra, de laranja e de leite e de um continuado café cheiroso que era servido sem parar. A festa só acabava quando o Sol nascia no horizonte e fazia desaparecer vagarosamente a neblina que encobria todas as coisas. Perplexo com o que assistia, vendo o amigo dileto entusiasmado, Pedro se perguntava: “O que leva uma pessoa a abandonar uma realidade experimentada e sentida diretamente, bela por si mesma e larga tudo isso, passando a procurar viver de ideias inventadas, a maioria delas que não se referem à realidade percebida com nossos órgãos dos sentidos? Seria algum defeito no seu cérebro? Um cérebro que não capta os belos estímulos fornecidos pela cana de açúcar, pelos cafezais, pela vaca com o bezerro e o moinho e fabricação da rapadura. — Ou, quem sabe, eu sou um bobo que não é capaz de apreciar a imensa “beleza” dos versos e das pinturas que olho e nada vejo?” Pedro retornou ao mundo de Mozart quando este se aproximou e lhe disse entusiasmado: — Pedro, um homem precisa ler, conhecer a si e aos outros. A partir daí ele deve criar, para deixar para seus descendentes e para a sociedade, a sabedoria que conseguir acumular. Nós, intelectuais, temos uma dívida para com os não-intelectuais. Precisamos ajudá-los a ter acesso às letras, transmitir-lhes um pouco, pelo menos um pouco, da sabedoria que acumulamos com o passar dos anos. Pedro achava tudo aquilo muito esquisito. Ele vivia outra vida. Desse modo, sem compreender o amigo, o perdoava. 66 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 66 23/12/2009 15:34:12 Não se importava com as exortações de Mozart, ele tinha outros planos, menos elevados, muito mais simples, continuaria com eles. Ele duvidava de tudo aquilo que ouvia do amigo e que também não desejava, não acreditando possuir o potencial dos seus companheiros e amigos frequentadores da “Academia” da cidade. Após ir a umas poucas reuniões e sem falar com ninguém, por achar tudo aquilo uma chatice, Pedro decidiu parar de frequentar as reuniões patrocinadas pelo grupo do amigo. Gabriel, diferente do irmão de Pedro, jamais foi um apreciador da vida no campo. Ele falava sempre com seu pai que gostaria de procurar um outro tipo de vida, num lugar grande, com muitas pessoas, casas, carros e movimento, isto é, longe de onde morava. Foi pensando assim que, logo que completou seus dezoito anos, José Alencar concordou que o melhor para ele seria se preparar para a vida adulta e, para isso, estava na hora de arrumar um trabalho numa outra cidade, de preferência bem longe da proteção dos pais. De forma mais simples e direta, José Alencar lhe disse que era chegado o momento dele partir e viver por conta própria, depois arrumar uma companheira para constituir sua família, já que não dava para morar em fazenda. Prontamente Gabriel concordou, ficando animado com a perspectiva de sair de Cachoeira do Assento. Pensando de modo diverso do irmão, que era um apaixonado pelo cultivo da terra, pela criação dos animais, pela poesia e lirismo da natureza onde vivia, Gabriel gostava de gente, conversa, movimento. 67 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 67 23/12/2009 15:34:12 José Alencar lembrou-se de que, há alguns meses, um primo de Cachoeira do Assento havia lhe perguntado se algum dos filhos ou alguma outra pessoa do lugar, não estaria interessado em trabalhar na sua farmácia, na capital do país, Brasília, pois ele estava precisando de um balconista de confiança. Desse modo, José Alencar decidiu telefonar para o primo, perguntando-lhe se ainda tinha o emprego. Prontamente o primo confirmou sua necessidade, o que apressou a ida de Gabriel para trabalhar fora do que ele sempre havia feito, o trabalho do campo. Foi assim que Gabriel partiu para o Distrito Federal onde, através de um primo, dono de uma farmácia, passou a morar e acabou, inclusive, se casando por lá mesmo. O primeiro emprego de Gabriel foi o de simples balconista de farmácia. Sem lugar para residir, aceitou, através do convite do patrão e primo, dormir num cômodo existente nos fundos da farmácia. Além de vigiar a farmácia à noite, durante a madrugada muitas vezes atendia algum cliente mais necessitado de um remédio. Mas esses fregueses da noite geralmente eram pessoas que buscavam medicamentos simples, como para dor de cabeça ou de dente, um xarope para tosse, fazer um curativo de emergência devido a pequenos acidentes, brigas de rua. Outros ainda batiam em sua porta à procura de um preservativo, ou ainda algum medicamento para vômitos, cólicas ou qualquer desarranjo inesperado do intestino. Os atendimentos, na maioria das vezes, eram feitos através de uma portinhola de grade inserida na própria porta de aço que cobria toda a frente da farmácia. 68 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 68 23/12/2009 15:34:12 Uma vez aberta a portinhola, Pedro via apenas uma parte do rosto do freguês que lhe pedia o medicamento. Este era buscado e antes de ser entregue, o preço era estipulado anteriormente e o dinheiro recebido, de preferência já trocado. No caso de curativos, Pedro não os fazia, mas através da portinha e após receber o dinheiro, ia orientando o indivíduo machucado sobre a maneira dele mesmo fazer o curativo. Assim acontecia, à medida que ele ia entregando o pedaço de algodão molhado na água oxigenada para limpar a ferida, o mercúrio cromo ou pomada para colocar em cima da ferida, a gaze e finalmente o esparadrapo para tampar o lugar. Ordeiro, disciplinado e ainda sem grandes sonhos naquela atividade que cumpria devido a não conseguir outra melhor, Gabriel foi ganhando a confiança do primo. Após algum tempo, conseguiu entrar como sócio da farmácia, com as economias que fez e com ajuda do pai. José Alencar estava contente com a independência e maturidade do filho. Adaptando-se a Brasília, Gabriel voltava pouco a Cachoeira do Assento. Os contatos raros eram feitos através telefonemas ocasionais devido a aniversários ou notícias diversas. No fim do ano, geralmente Gabriel ia até Cachoeira do Assento ou, caso não conseguisse, não só telefonava, como também mandava algum presente – um tipo de pintos raros comprados numa feira de galinhas, cães de raça desconhecida pelos seus pais e outros animais. Quando Gabriel vinha à sua cidade natal visitar seus familiares, poucas vezes procurava outras pessoas na ci- 69 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 69 23/12/2009 15:34:12 dade e assim afastava-se cada vez mais da vida da pequena cidade. Pouco a pouco, o contato de Gabriel com outras pessoas na cidade foi diminuindo, criando uma vida diferente da vivida em Cachoeira do Assento não só por seus ex-amigos, como também por seus pais. 70 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 70 23/12/2009 15:34:12 5º Capítulo O isolamento de Clara e José Alencar Cada vez mais poeta, Mozart não conseguiu, por mais que tentasse, arrumar nenhuma profissão que pudesse lhe dar alguma renda para se sustentar. Como sempre, continuava vivendo com parte do dinheiro que sua mãe recebia da pensão do pai e do pouco que ela ganhava com a venda de biscoitos para passageiros de ônibus. Apesar da falta de dinheiro, Mozart continuou seus estudos, sempre imaginando ter um futuro brilhante. Desejoso de se tornar um grande poeta, entrou para um curso de Letras à noite, na cidade vizinha. Um curso que pouco exigia do aluno quanto ao estudo e também quanto à disciplina. Para ser aprovado nesse curso não era preciso estudar muito, nem mesmo comparecer assiduamente às aulas. Desse modo não foi difícil Mozart terminar seu curso com notas razoáveis para grande alegria, principalmente, de sua mãe, que não mais precisou pagar a faculdade para o filho. 71 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 71 23/12/2009 15:34:12 Terminado o curso, Mozart continuou agindo do mesmo modo que sempre viveu: pintando quadros sem expressão e fazendo e declamando suas poesias insossas. Mas ele continuava a se auto-elogiar como sendo um grande pintor e poeta. Para ele suas obras ainda seriam reconhecidas pelos grandes artistas do Brasil. Não conseguia quase nenhuma renda com a venda, raríssima por sinal, de algum quadro, sendo que seus livros, editados no computador, não lhe rendiam nada. Portanto ele não produziu nada de valor pecuniário ou artístico e quase passando fome, morava e vivia à custa de sua mãe viúva. Mozart continuava indiferente à realidade que enfrentava, pois para ele tudo corria bem, nada precisava ser mudado. Clara, tendo completado 21 anos, estava cada vez mais atraente e bonita. Após terminar seus estudos no Colégio Tiago Patrocínio e largar o emprego que tinha na cidade, retornou ao trabalho da fazenda. Como sempre, acompanhando o pai em suas andanças pelos pastos e plantações de cana e café da fazenda, passava grande parte do tempo ou cavalgando, ou dirigindo o jipe para José Alencar. Enquanto Donana ficava cada dia mais isolada, José de Alencar trabalhava ou passava o dia com Clara, cuidando da fazenda. Para fugir do vazio, Donana aproveitava todas as ocasiões possíveis para afastar-se da fazenda. Alguns dias ela passava com Gabriel em Brasília. Outras vezes ela viajava para visitar sua mãe que estava muito doente. Sua mãe, D. Ernestina, muito velha, tinha há anos pressão alta. Além disso ela foi durante toda a vida uma fumante inveterada. Recentemente havia sofrido um derrame cerebral. 72 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 72 23/12/2009 15:34:12 Acamada, piorava a cada dia. A doença da mãe era sempre um bom motivo para que Donana se afastasse da fazenda sem ter que dar maiores explicações, geralmente por diversas semanas ou meses. Nessas ocasiões, poucas vezes ela dava ou recebia um telefonema do marido. Pedro, pouco mais velho que Clara, apesar de trabalhar na fazenda executava atividades diferentes da irmã, assim eles pouco se encontravam, a não ser num raro momento ou outro, por exemplo num almoço especial quando se reuniam Donana, José Alencar, Pedro, Clara e algum outro convidado. Pedro passava mais tempo no campo que em casa. Vivendo uma vida muito diferente da vivida pela mãe, ele quase não tinha nada para conversar com ela. Apesar de trabalhar na fazenda, muitas vezes dormia fora da sede, numa casa simples, aconchegante e agradável, que ficava situada junto a um curral de bois e de um paiol de milho. Essa pequena casa, construída numa grota, distanciava-se seis quilômetros da sede da fazenda. Ali Pedro tinha sua cama, banheiro, luz elétrica, rádio e som, fogão e uma geladeira velha. Era nessa casa que Pedro preparava suas refeições, sem precisar de ajuda de ninguém, como era sua vontade. Devido a todos esses fatos, Clara e José Alencar passaram a ser, grande parte do tempo, os únicos moradores e administradores da fazenda. Ela, sempre ligada ao pai adotivo, aprendera com ele a detectar com agudeza todos os problemas e também as soluções para o dia-a-dia da fazenda: contratava e dispensava lavradores, vaqueiros e outros empregados que ali iam trabalhar. 73 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 73 23/12/2009 15:34:12 Tomava decisões, mesmo na ausência de José de Alencar, e raramente era criticada por ele por suas ações. Levantando-se cedo, antes de José Alencar, preparava o café da manhã para os dois: um desjejum suculento e atraente, que era saboreado com prazer e alegria pelos dois moradores da fazenda durante as longas ausências do resto da família. Durante esses dias, ainda bem cedo, Clara e José Alencar trocavam ideias e faziam planos com respeito às ações distribuídas para a administração dos negócios deles. Estando quase sempre ocupada na fazenda, Clara a cada dia se afastava mais também da cidade, indo ali apenas para executar rápidas tarefas: ir a um banco, comprar uma ração ou vacina, consultar o veterinário etc. Durante as idas à cidade, os dois, frequentemente, eram vistos juntos no jipe dirigido por um deles. Foi assim que os contatos entre Mozart e Clara, iniciados quando ela trabalhara na loja, apesar de continuarem, foram enfraquecendo. Portanto, durante os três últimos anos que ela passou a ficar quase que exclusivamente na fazenda, eles quase não se encontraram. Uma vez ou outra, na missa domingueira, a que nem sempre ela ia, os dois se viam, trocavam cumprimentos e, algumas vezes, conversavam mais tempo quando Clara aproveitava um momento no qual José Alencar a deixava para conversar com um ou outro amigo ou parente que por ali passava. 74 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 74 23/12/2009 15:34:12 6º Capítulo José Alencar faz uma proposta a Mozart Numa manhã de fevereiro, quando o sol mal despontava, D. Marta, mãe de Mozart, lavava as louças antes de coar o café. Neste instante ela voltou sua atenção para uma voz de homem gritando o nome de Mozart no alpendre da residência. O filho dela, àquela hora, como sempre, ainda dormia, provavelmente sonhava com suas poesias. Calmamente, após enxugar a xícara e o bule no pano de prato, D. Marta caminhou até a porta para avisar ao visitante madrugador que seu filho dormia. Demonstrando inquietação e nervosismo, o fazendeiro José Alencar, após cumprimentar delicadamente D. Marta, perguntou: — Bom dia. Não sei se vim muito cedo. Como me levanto cedo, antes das seis, esqueço que nem todos são assim. — A senhora me desculpe. Estou procurando o Mozart. Ele está? 75 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 75 23/12/2009 15:34:12 — Ah... ele levanta-se tarde. Depois das nove ou dez horas. — Mas preciso muito falar com ele. Tenho certa urgência. Poderia, por favor, chamá-lo? — Ele não gosta. Vai me xingar. — É um recado e proposta para ele. Acho que ele vai gostar. — Está bem. Vou tentar. José Alencar estava, nesse instante, aflito, receoso de ter perdido seu tempo e todo seu plano ir por água abaixo. Dada a insistência do fazendeiro, que parecia muito preocupado e desejoso de encontrar Mozart de qualquer modo, pois parecia precisar muito de conversar com ele, D. Marta foi até o quarto e após ter batido várias vezes sem obter resposta, resolveu entrar no quarto para acordá-lo. — Mozart! Mozart! Tem visita aí querendo falar com você. Mozart acordou assustado e com raiva de estar sendo acordado a uma hora daquelas. — Quem é? O que ela quer? Já falei que não gosto de ser acordado de madrugada! — Já são sete horas. Não queria te chamar. Mas como ele insistiu, vim te acordar. — Quem? — Pai de Clara. José Alencar. — José Alencar? O que ele está querendo? Ainda mais a uma hora destas. — Não sei, não. Também não perguntei e se perguntasse não sei se ele ia falar. Vai lá ver o que ele quer. 76 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 76 23/12/2009 15:34:12 — Mande entrar. Vou me levantar. O que será? Mozart levantou-se assustado. Preocupado com a visita de José Alencar àquela hora, ele imaginou que só podia ser alguma coisa séria, pois isso jamais acontecera. Após molhar a cara na água fria para espantar o sono, Mozart se vestiu rapidamente e em seguida bebeu um pouco de café puro e foi atender o visitante sempre questionando: “O que ele está querendo de mim?” Não encontrou nenhuma resposta para sua pergunta. Intrigado com a visita fora de hora e sem aviso, Mozart caminhou sério e tenso até a sala onde José Alencar, andando de um lado a outro da sala, o esperava. Com dificuldade, o fazendeiro, esforçando-se em se mostrar calmo e natural após dar um aperto de mão a Mozart e um sorriso sem expressão, sentou-se e manteve-se preso à cadeira após ser convidado para isso. Começou a conversa com dificuldade e aos borbotões e sem se dirigir prontamente ao assunto desejado. Desviando o olhar da face de Mozart, José Alencar inicialmente procurou agradar ao rapaz fazendo uso, propositalmente, do que ele mais gostava: — E as poesias? Tem produzido muito? Eu não tenho jeito para isso. Nunca fiz um verso, mas admiro os poetas: são homens muito inteligentes, não um atrasado como eu. Se estivesse em seu lugar, fazendo poesias, seria um homem feliz. Ao contrário de você, sou um homem bruto, um grosseiro do campo. Nunca fui capaz de fazer essas coisas delicadas e bonitas. Acho que deve ser muito bom criar belos versos, principalmente os relacionados ao amor. 77 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 77 23/12/2009 15:34:12 — Que nada, Sô José Alencar. Faço uns versinhos de nada. Mas Deus é grande, acredito que ainda serei um grande poeta e pintor, gosto muito de pintura também. — Não sabia! Deve ser muito agradável poder pintar uma paisagem. Quando você quiser, vá nos visitar, dê uma volta na fazenda e pinte um quadro lá. Será um prazer para nós. Na fazenda há muitos lugares bonitos. Você já esteve lá algumas vezes, eu sei disso, entretanto os lugares para serem pintados ficam mais escondidos. — Uma hora irei, se o senhor me convidar. — Está convidado desde já. Não deixe de levar os pincéis, tintas e a tela. Vai dar um quadro bonito. Já estou vendo ele aqui. Após dar uma parada, apontando para a testa, continuou: — Aqui dentro na minha cabeça. A conversa continuou por algum tempo nesse pé, com rodeios e mais rodeios, agrados e mais agrados do visitante José Alencar para o visitado Mozart. Este continuava sem saber os motivos da visita, imaginava uma e outra coisa, mas prontamente criticava sua própria imaginação. Depois de alegrar bastante Mozart com seus elogios, José Alencar imaginou que o momento havia chegado. Estava na hora de entrar no assunto sério e complicado que o levou até ali. — Você é um rapaz bonito, elegante e, além disso, intelectual, admirado por todos na cidade. — Que isso, Sô José... faço uns versinhos, apenas isso. — Ora, que modéstia. Grandes versos, todos falam isso a seu respeito. 78 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 78 23/12/2009 15:34:12 Eu não entendo, já disse. Mas, voltando ao assunto: acho que se seu pai estivesse vivo – que Deus o guarde em bom lugar – ele teria um grande orgulho de você, por seu grande talento. Sua mãe, eu sei, te elogia muito, gosta muito de você. José Alencar não falava conforme pensava. De fato, ele não concordava com a vida de boêmio que Mozart levava. Para ele o poeta era a antítese do homem que ele valorizava. Entretanto, naquele momento, era importante conquistá-lo conforme o plano elaborado que ele começava a tentar pôr para funcionar. Sabendo com clareza o que desejava, José Alencar continuou seu discurso: — Mozart, temos poucas pessoas em Cachoeira do Assento tão cultas e sábias como você. Mozart, após encher os pulmões de um ar orgulhoso, sorriu sem jeito e timidamente e conforme seu estilo, abaixou o rosto carregado de vergonha. Ele sentia estar num ambiente estranho: recebia um excesso de elogios de um fazendeiro, até agora julgado por ele como uma pessoa que jamais apreciou sua maneira de viver, de suas poesias e de sua vida bastante despreocupada. Mas para manter a conversa no nível em que estava, continuou no mesmo tom: — Sou apenas um aprendiz, faço o que posso. Esforço-me. O que sei transmito para os companheiros da “Academia”. Como fui convidado pelo senhor para visitar a fazenda e lá pintar um quadro, também humildemente retribuo o convite: convido-o para dar um pulo, quando tiver um tempinho, e ir à minha “fazenda”, ou seja, ir assistir a uma reunião da “Arcádia”. 79 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 79 23/12/2009 15:34:12 — Lá não tem boiada, nem cafezal e canavial, tem apenas leituras, declamações e mostras de pinturas. Mas isso também tem seus encantos, como a natureza viva e sensível. — Sim, preciso aprender alguma coisa. Só sei mexer com bichos e plantas. Sou inexperiente com gente. Irei aprender muito. — Na próxima semana teremos nossa reunião e nesta irei declamar a última poesia que fiz, “Nuvens e Ventos”; será terça-feira, às 8 horas da noite. — Pode me esperar. Irei com muito prazer, disse rápido José Alencar, imaginando a perda de tempo que seria ouvir a declamação de “Nuvens e Ventos”. Para ele, olhar e sentir as nuvens e os ventos era mais agradável que ouvir versos sobre o que ele sentiu durante toda sua vida. Percebia que era necessário que ele saísse daquele caminho pelo qual a conversa, contrário aos seus desejos, enveredou. Enquanto imaginava com repugnância a sessão de poesia, preparava-se mentalmente para expor o mais importante, o que ele foi, na verdade, fazer ali. Foi assim que retomando o assunto-guia, José Alencar continuou agora num tom mais solene e tenso: — Por falar em convite, tenho uma proposta interessante para você. Chegara o momento: agora ele iria falar o motivo desejado e temido. Nesse instante José Alencar pigarreou, limpou a garganta, tirou um lenço branco do bolso de trás da calça de brim para enxugar o suor que, apesar do frio da manhã, escorria na sua testa. 80 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 80 23/12/2009 15:34:12 Parou de falar por um instante. Mozart, quieto e em silncio, olhava-o, esperando o resto de seu pensamento que não saía. Depois de uma pausa terrível para José Alencar, decidido e firmando o tom da voz o máximo possível, soltou pouco a pouco a ideia que escondia. Não podia assustar o seu interlocutor com tudo de uma só vez. — Você ainda não quis se casar, não é? — Sim... é... ainda não. - Respondeu Mozart encabulado e sem entender a razão da pergunta. — Já arrumou algum emprego? Sei que se formou, terminou o curso de Letras. Não entendo, como lhe falei, nada de sua área. Mas, dando meu palpite: talvez o salário de professor não lhe dê oportunidade de constituir uma família com algum conforto. Acredito, repito, e peço desculpas, nesse assunto não sou bom: não se ganha muito dinheiro com poesias e pinturas. — Quase nada! Só quando se é muito famoso, espero chegar a isso. Ainda não consegui um emprego no Colégio, mas de qualquer forma o salário é pequeno e, além disso, toma muito tempo da pessoa. Se conseguisse e aceitasse o emprego de professor no colégio, eu teria que diminuir minha produção literária. Isso seria uma lástima! — É claro! Compreendo. Isso não pode ocorrer! Você deixar de pintar seus quadros e de produzir suas poesias. José Alencar sentiu que estava na hora de falar a essência do desejado. Aproveitou a ocasião, ao sentir-se mais seguro. Faltava pouco para que seu plano pudesse ser exposto e já imaginava, antes de expressá-lo, que ele tinha tudo para dar certo. 81 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 81 23/12/2009 15:34:12 — Não quero um emprego que vai me pagar mal e me impedir de fazer o que gosto. Na verdade, sinto falta de dinheiro e o pouco que tenho vem de minha mãe. Ela recebe pensão de meu pai e vende muito pouco, diga-se de passagem, biscoitos e outras quitandas para os passageiros dos ônibus que têm um ponto de parada aqui na cidade. Vivemos em constante dificuldade financeira. José Alencar respirou fundo. Mozart, sem querer, ia preparando o ninho para que ele pousasse com tranquilidade: a dificuldade financeira, a exigência de um trabalho para o qual ele não era qualificado e a sua grande paixão pela poesia e pela boa vida. Mais seguro, até um pouco irado com tanta indolência, afirmou, procurando terminar sua estratégia elaborada na véspera de comum acordo com Clara. — Tenho um grande apreço por Clara. Quero um futuro muito bom para ela, apesar de ser apenas filha adotiva. Com o passar do tempo eu sinto que fiquei muito preso a ela. Mais ligado a ela do que aos outros filhos, Pedro e Gabriel. Você sabe! O pai se apega mais a filha mulher, os homens têm sua própria vida, são mais independentes e nem ligam para a gente. Não tenho nada contra meus filhos, gosto muito deles. Entretanto tenho pouco contato com eles. Com Clara é diferente. Você, por exemplo, sei que você e Pedro foram e são amigos. Ele fala acerca de você com muito carinho, entretanto quase não se encontram. — Sim, gosto muito dele. Ele gosta muito do campo, dos encantos da fazenda: gado e plantações. Ele gosta de viver junto à natureza e de discutir os fatos do campo. As- 82 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 82 23/12/2009 15:34:12 sim, vivendo vidas diferentes, fomos perdendo um pouco de nosso contato. Ele está bem, não está? — Sim! Eu mesmo passo dias sem vê-lo, dorme muitas semanas enfiado numa casa que tenho no meio de minhas terras. Ele gosta da solidão... José Alencar percebeu que novamente ia se perdendo numa conversa que não lhe interessava. Precisava retomar sua ideia-chave. Mas antes que voltasse ao assunto principal, Mozart, lembrando-se de Gabriel, voltou a falar: — Eu e Gabriel também somos bons amigos. — Sei disso. José Alencar imaginava: “Preciso terminar e falar rapidamente o que vim fazer aqui”. Retomando a direção da conversa continuou decidido a resolver logo tudo o que precisava. Não aguentava mais continuar aquela complicada e difícil proposta: — Mas... você e Clara também são bons amigos, quando ela trabalhou na loja, vocês se encontravam muito. — Sim, ela é uma moça inteligente, fomos bons amigos. Agora ela está sumida. Tenho tido poucas notícias dela. — É... ela tem por você uma grande amizade. Penso até que vocês já andaram namorando, um namorico escondido, quando ela trabalhou ali em frente... — Não, não chegou a isso. Conversava muito com ela quando ela era minha vizinha. Convidava-a e ela foi comigo a algumas reuniões da “Academia”. Mas não passou disso. Nunca houve namoro. José de Alencar estava prestes a falar tudo de uma só vez. Entretanto segurava sua ansiedade para dar o bote 83 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 83 23/12/2009 15:34:12 com cautela, como a onça para pegar sua presa, que poderia fugir e escapar caso ela demonstrasse que ia atacá-la. Parece que sua caça estava começando a ficar distraída. Estaria ou não na hora do ataque fatal? - Perguntava para si mesmo José Alencar, ao decidir investir mais a fundo. — Ora, você está escondendo o jogo. E continuou: — Penso que ela tem uma grande paixão por você. — Nunca notei. Penso que ela gosta de outro, entretanto nunca me falou sobre isso. Bem que tentei. Ela é muito discreta. — Quem sabe o grande amor dela é você? Como sabe, ela fala muito sobre você, está constantemente te elogiando, não só quanto à parte física, mas principalmente quanto à sua inteligência, sabedoria e cultura. — Clara? Comigo? O senhor está brincando. Nunca notei isso. - Falou com tristeza, espantado com o que ouvia. — Sim. Fala sobre você. Ela, como você, é tímida. Não fala diretamente com o interessado o que pensa. Entretanto, como ela tem liberdade comigo, nós somos íntimos, não escondemos nada um do outro, conta-me tudo e contoume, em segredo, que gosta muito de você. José Alencar não mais aguentava rodear o assunto. Chegara a hora de mostrar o que veio fazer naquela manhã. Em seguida, postando a voz, afirmou, para impedir que Mozart entrasse novamente na conversa e o interrompesse antes de terminar o que queria: — Vim aqui para isso: vim lhe oferecer a mão de minha filha querida. Acho que está na hora de ela arrumar um marido. Pensei em você por dois motivos: um, porque ela 84 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 84 23/12/2009 15:34:12 gosta de você, o outro, porque penso que você também a aprecia. Ela é uma moça excelente, bonita e inteligente, trabalhadeira. Ela será uma ótima esposa e melhor ainda uma excelente mãe para seus filhos que, com certeza, nascerão. Desse jeito José de Alencar terminou de desabafar o levou até ali. Só agora conseguiu falar o que durante a noite toda, após uma conversa desesperadora com Clara, os dois decidiram fazer para buscar uma solução nobre para o grande problema que enfrentavam. — Está me arrumando um casamento? - Perguntou Mozart assustado, sem demonstrar repúdio à proposta. — É e não é. - Apressou-se José Alencar e retomou: — Estou querendo colocar juntas duas pessoas pelas quais tenho grande simpatia, e que o destino, temporariamente, separou. — Você me pegou de surpresa. Não tinha pensado nisso, nem imaginava me casar, pois minha vida é boa, falta dinheiro, é certo, mas esse eu irei ganhar com a venda de minhas obras. Você sabe como é a vida de um artista. A gente se entusiasma mais com a arte que com a construção de uma família. José Alencar estava ficando irritado, notava que precisava se acalmar. Estava se forçando a agradar a uma pessoa pela qual ele não nutria nenhuma simpatia, entregando sua filha querida a esse indivíduo indolente, dependente e fraco. Precisava voltar a ser delicado e terminar de completar seu plano: — Mas Clara é muito dedicada, irá te ajudar fazendo sua comida, lavando suas roupas, arrumando sua casa e, bem 85 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 85 23/12/2009 15:34:12 sabe, mais outras coisinhas que ela poderá aprender a fazer, coisas que eu sei que te farão muito feliz. Todo homem precisa de uma mulher, de constituir uma família, de ter filhos... José de Alencar, focalizando e examinando a expressão facial de Mozart, começou a acreditar que seu plano daria os resultados esperados. Mozart estava fascinado por suas palavras. O fraco e indolente Mozart, que tanto acreditava nas emoções produzidas pelas palavras de sua poesia, não percebia que estava sendo encurralado também por termos carregados de emoções, frases expressas por um fazendeiro simples. José Alencar, mais sagaz, levava seu inimigo para onde desejava. Mozart ia mordendo a isca lançada pelo fazendeiro, que o cercava com argumentos impiedosos. José Alencar, mais bem treinado e maduro, sabiamente usava, para alcançar seus objetivos, suprir as necessidades, o orgulho e as metas imaginárias do sonhador. Como num “conto do vigário”, o fazendeiro, aparentando estar ajudando o poeta conforme os princípios organizadores da vida deste, sutilmente conduzia Mozart para dar solução aos seus problemas pessoais. — Como sabe? - Retrucou já enfraquecido o poeta, que quase cedendo, continuou: — Clara pode não gostar disso, do meu modo, pode não simpatizar comigo... — É, bem... A voz de José Alencar saiu com dificuldade, seu rosto ficou avermelhando, respirou fundo e falou depressa, doido para acabar com a difícil conversa. — Eu conheço minha filha, sei que toda mulher com a saúde que ela tem, com a alegria e felicidade que ela traz 86 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 86 23/12/2009 15:34:12 dentro do corpo, gostará dessas coisas também. Eu sei que você gostará da companhia dela. — É... vou pensar. José Alencar sentiu que ganhara a batalha. Precisava agora apressar a execução dos pormenores, pois já tinha pensado, muito antes de Mozart, em tudo. — Não precisa pensar. Sei que, como homem inteligente que é, está preocupado, principalmente, com os gastos com as despesas para montar uma casa, os móveis, e depois, caso venham os filhos, como arcar com todos esses gastos. O principal eu sei: que você gosta dela e, além disso, o amor vai crescendo com o contato. Não precisa se preocupar. Você não escolheu sua mãe e no entanto à medida que vive com ela, gosta dela cada vez mais. — Claro! Pensei em tudo isso, nos aspectos relativos aos gastos. Não tenho condições para me casar agora, preciso de tempo para montar uma casa e depois cuidar de uma pessoa. Você bem sabe: não tenho dinheiro para isso. — Não se preocupe com isso, falou prontamente José Alencar. Ele já esperava essa resposta desde ontem à noite. Agora já tinha certeza que seu plano iria se concretizar: o coelho estava preso na armadilha. A raposa apenas esperava o momento propício para devorá-lo. Aproveitou o sucesso para completar: — Tenho casas aqui na rua, vocês poderão morar numa delas e, além disso, você sabe como é uma fazenda. Lá eu tenho leite, verduras, arroz e feijão, carne, tudo enfim do que vai precisar para morar e comer. Não se preocupe. Isso fica por minha conta. Além disso, mais tarde, quando 87 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 87 23/12/2009 15:34:12 ficar famoso como artista, ficará encarregado de cuidar financeiramente de sua família. Por enquanto eu faço isto. Quero seu bem e o dela, na vida nós devemos ser solidários com as pessoas, pois só assim alcançaremos o reino de Jesus. Faço tudo que posso para Clara viver feliz. — Se é assim, penso que aceito vê-la e começar o namoro. — Não! Falou angustiado José Alencar. — Um gosta do outro. Não precisam mais namorar. O casamento deverá ser realizado já! O mais rápido possível! Adiar, nunca! Ele queria marcar já o casamento e assim apressou-se a dizer, quase sem respirar: — Para quê esperar? Vocês se conhecem desde a infância, você gosta dela e ela de você. Além disso, eu irei ajudar. É minha palavra, não irá faltar nada para vocês dois e para os filhos que nascerem. Você terá o que precisar. Vamos marcar o casamento para o fim do mês. — No fim do mês? Isso será daqui a quinze dias. É muito perto. Melhor seria daqui a dois meses. Assim teríamos tempo para nos aproximar, examinar se um gosta do outro e nos preparar. — Não! Para quê? O fazendeiro sabia o que queria. O casamento não podia ser adiado, esse aspecto era importantíssimo para José Alencar. Estava fora do que planejara. O casamento teria que ser realizado o mais rápido possível. Imaginando que toda a difícil conversa pudesse dar errado, ele repetiu, quase como uma ordem, seus desejos: 88 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 88 23/12/2009 15:34:13 — Vou começar a providenciar. Eu cuido de tudo: os papeis, festas, convites. Vamos fazer um casamento com poucos convidados. — Mas tão rápido assim... Pode dar o que falar. Você sabe o povo da cidade. — Ora, um intelectual como você não pode se importar com mexericos de idiotas, preocupados com uma moral antiquada, costumes que já estão enterrados. E, além disso, de querer dar ordem às decisões das pessoas. — De fato você tem razão. Não temos nada que ouvir os outros, devemos ouvir nossa própria consciência, decidir por nós e não pelos outros. Mozart percebia que sua vida poderia mudar: não mais precisar pensar em dinheiro, ter sua própria casa, ter uma mulher e, principalmente, ter sossego e tempo para poder pintar seus quadros e criar suas poesias como desejava. — Lógico! Nesse instante, e o mais rápido possível, José Alencar foi se levantando, preparando-se para sair. Não queria dar tempo a Mozart para refletir sobre a proposta indecente. Era preciso decidir levado pelas emoções. Ele tinha medo de Mozart desistir do compromisso assumido como dois homens livres e inteligentes que eram. Entretanto, tinha quase certeza que o poeta estava satisfeito com o oferecido. — É... não sei bem. Tá certo. Pode ir tomando as medidas. O casamento será no fim do mês, não é? — Sim! No fim desse mês. Aparece hoje à noite na fazenda para jantar comigo e Clara. Estamos sós, Donana está 89 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 89 23/12/2009 15:34:13 viajando. Já conversamos sobre isso. Seremos apenas nós: eu, você e ela. Seu amigo Pedro está no rancho dele, quase não aparece, somente um dia ou outro. Iremos juntos comunicar a decisão à Clara. Ela ficará muito alegre. Até mais tarde. — Até à noite. Estarei lá conforme o combinado A cabeça de Mozart estava fervendo de planos: podia agora criar mais poesias e pinturas, fazer o que ele sempre quis, sem a intromissão de sua mãe que, constantemente, reclamava de sua passividade e sonhos. Por outro lado, José Alencar saiu aliviado: conseguira o que desejava, arrumar um marido adequado para Clara. O jantar do noivado À noite, conforme o combinado, reuniram-se os três na fazenda. Sem demonstrar ansiedade, Clara recebeu a notícia naturalmente, aceitando o determinado por José Alencar, não só o casamento, como também a data de sua realização, além dos padrinhos e os demais convidados. O jantar, canjiquinha com costelinha de porco com couve, preparado pela própria Clara, foi degustado com prazer e rapidamente pelo grupo. Os três participantes do jantar pouco conversaram. José Alencar evitou durante todo o jantar conversar com Mozart sobre o discutido durante a manhã, fugindo assim de outras explicações que pudessem atrapalhar a estratégia usada e que até aquele momento estava dando certo. Discutiram apenas como seria realizado o casamento, 90 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 90 23/12/2009 15:34:13 pois tudo já estava sacramentado, principalmente a concordância dos interessados, Clara e Mozart. Nesse encontro íntimo, Donana e os filhos não compareceram e nem foram avisados do apressado noivado. José Alencar deixou as explicações para serem dadas num momento mais apropriado, de preferência bem próximo do dia do casamento. Um brinde à felicidade dos nubentes foi levantado por José Alencar no final da noite, antes da despedida, após os acertos finais da data do casamento, bem como a casa na cidade onde os dois iriam morar. Todas as despesas correriam por conta de José Alencar. Mozart não precisava se responsabilizar por nada. Ele se sentia feliz por encontrar, nessa altura da vida, o pai que não teve, tão bondoso como aquele, pois perdera o seu ainda criança. Mozart saiu alegre do encontro e enquanto caminhava pelo estreito caminho que tomou para chegar a casa, meditava sobre a possibilidade que teria, a partir do casamento, para dedicar-se e criar melhor suas obras. Como consequência da euforia, começou a fantasiar, durante a caminhada, o sucesso que poderia ter nas reuniões da Academia. Previa inclusive, a inveja dos seus companheiros de arte. Dominado por esses pensamentos, despreocupado, Mozart esqueceu, por instantes, o casamento. Chegou a casa feliz. Em seguida retirou de uma gaveta algumas folhas escritas à mão. Aproximou-se de uma lâmpada mais clara e leu para si mesmo, entusiasmado, alguns versos que havia feito logo após a visita de José Alencar. 91 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 91 23/12/2009 15:34:13 Olhando seu rosto através do espelho rachado do guarda-roupa do quarto onde dormia, sorriu para sua imagem. Naquela noite Mozart foi dormir orgulhoso do convite que recebera, um verdadeiro prêmio merecido em virtude de suas grandes qualidades de artista. DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 92 23/12/2009 15:34:13 7º Capítulo O casamento: José Alencar faz visitas a Clara O casamento foi realizado como imaginado e determinado por José Alencar. Os amigos e conhecidos convidados e que compareceram, como não podia deixar de ser, acharam estranha a realização rápida daquele casamento, pois Mozart e Clara, apesar de velhos conhecidos, raramente se encontravam. Surgiram comentários carregados de suposições, como sempre acontece nas cidades onde todos conhecem todos. Seguiram-se julgamentos favoráveis e desfavoráveis acerca das causas do apressado casório. Como tudo na vida, com o passar do tempo tudo é esquecido e torna-se sem importância. O casamento dos dois também seguiu essa regra e, aos poucos, após as primeiras semanas ou meses, as conversas acerca do casamento foram desaparecendo. 93 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 93 23/12/2009 15:34:13 Depois de algum tempo, ninguém mais comentava o ocorrido. O antes comentado e criticado, tornou-se o conhecido, usual e normal. A vida de casado dos dois amigos começou tranquila. Clara, disciplinada e obediente, manteve na sua vida a dois com Mozart uma conduta semelhante à que tinha com José Alencar. Levantava-se muito cedo, como na fazenda. Logo depois recebia o leite fresco enviado pelo pai adotivo. Geralmente o leite não vinha só, mas sim acompanhado de outros alimentos como arroz, feijão, fubá, canjiquinha, ovos, verduras, carne de porco, galinha ainda viva, e também de frutas: laranjas, mangas, goiabas, pêssegos, uvas, etc., conforme a estação. Após receber os presentes, muitas vezes trazidos pessoalmente pelo próprio José Alencar, Clara e o pai conversavam animados e descontraidamente por um longo tempo, assentados no alpendre da casa. Quando José Alencar passava mais cedo, com frequência era convidado, e aceitava com prazer o convite para entrar e tomar seu segundo lanche, não só mais rico, como contando com a alegria de Clara. Como a cozinha ficava bastante afastada do quarto onde Mozart dormia, o barulho provocado pelo bater das vasilhas e da conversa, animado pelo tom de voz alto, não atrapalhava o sono pesado do poeta. Desse modo os dois podiam falar e rir à vontade sem perturbar Mozart, que detestava acordar cedo. Nessas manhãs tranquilas e alegres, Clara, após cumprimentar com um sorriso doce José Alencar, dava-lhe um abraço terno e prolongado. 94 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 94 23/12/2009 15:34:13 Em seguida, sempre acompanhada por ele, dirigia-se à cozinha. José Alencar e Clara, como acontecia na fazenda, assentavam-se nas cadeiras colocadas diante da mesa. Logo depois ela levantava-se para fazer na frigideira ovos mexidos com queijo, que era sua iguaria preferida pela manhã. Enquanto ele saboreava os ovos mexidos, ela preparava o café, cuja água já tinha sido colocada para ferver: um café colhido na própria fazenda, torrado por Clara e feito conforme o gosto do fazendeiro, ou seja, com muito pó. Durante esses encontros, os dois contavam casos e riam descontraídos e alegremente conforme o relatado. Conhecendo bem seus hábitos, Clara sabia com antecedência quando José Alencar tornaria a vê-la. Além disso, pelo aspecto de seu rosto e também pelas roupas que vestia, ela adivinhava quando ele demoraria mais tempo em sua casa. Muitas vezes, como ele tivesse se ausentado por um ou dois dias sem visitá-la, ou sem entrar para tomar o café, ela sabia que provavelmente da próxima vez ele arrumaria mais tempo para visitá-la. Nesse caso, ela levantava-se mais cedo e algum tempo antes dele chegar já tinha preparado alguns biscoitos em seu forno de lenha, os quais eram servidos ainda quentes, juntos com um saboroso café e um pouquinho do leite fervido trazido da fazenda naquele instante. Tudo era feito para relembrar o café com leite que ela preparava para ele na fazenda durante anos. Outras vezes, antes dele chegar, Clara saía para comprar os pães de sal na nova padaria que foi aberta na cidade. 95 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 95 23/12/2009 15:34:13 Escolhia os mais bonitos e torrados, pois sabia o que o pai gostava. Enquanto esperava ansiosa a chegada de José Alencar, Clara preparava a mesa, os talheres, colocando-os bem arrumados. Todos os utensílios usados na cozinha foram presentes dele no casamento. Tudo era feito para agradar ao máximo o pai adotivo. Entristecia-se nos dias que, em lugar de sentir o cheiro de gasolina e o som do jipe de José Alencar, ouvia o barulho do burro caminhando pela calçada de pedras de ferro e a voz estridente de João Grilo, um vaqueiro antigo, gritando: — D. Clara! D. Clara! O leite chegou. Nessas manhãs Clara ficava frustrada, seu dia havia começado mal. Sempre ela o esperava e imaginava estarem juntos, como antes acontecia, tomando o reforçado lanche matinal, conversando animados e descontraídos, contando as novidades do dia anterior e os planos para o dia que se iniciava. De certo modo, ela tomava seu café muito cedo e conversava com José Alencar enquanto seu marido dormia. Não que ela não pudesse lhe contar o ocorrido de quase todos os dias, pois Mozart - ela tinha certeza disso - não se importava com esse acontecimento e com as boas relações que ela mantinha com o pai adotivo. Mas agradava-lhe, e talvez também a José Alencar, manter esse encontro às escondidas, apesar de ser mostrado para quem quisesse ver, pois seu jipe estacionava na porta da casa, o cheiro forte de gasolina exalava longe, bem como o barulho peculiar que ele fazia. 96 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 96 23/12/2009 15:34:13 Não tinha como esconder todos esses fatos disponíveis para qualquer um. Os vizinhos comentavam o grande amor que o fazendeiro tinha para com filha adotiva e admiravam a grande e terna amizade dos dois, pois não toleravam ficar um dia sem se ver. 97 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 97 23/12/2009 15:34:13 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 98 23/12/2009 15:34:13 8º Capítulo Primeiros desencontros do casal Mozart, como era hábito entre os intelectuais da cidade, levantava-se tarde e como bom marido exigia que sua esposa tomasse seu lanche matinal junto dele. Desse modo, ela, que se levantara como sempre logo após o sol nascer e fazia sua primeira refeição entre 6:30 – 7:00 horas, geralmente com José Alencar, era forçada a fazer uma segunda refeição matinal com o marido, em torno das 9:00 ou 10:00 horas. Durante esse encontro com o marido, ele obrigava-a a escutar as ideias criativas que teve durante seus sonhos e lampejos de inspiração. Com frequência, Mozart rabiscava alguns versos e em seguida recitava-os em voz alta e orgulhosa para Clara ouvir e julgar. Em seguida lia, detalhada e demoradamente, o jornal que chegara à cidade através do ônibus. Cada notícia era focalizada por ele como interessante. Depois de todo esse ritual, comentava as notícias com Clara. 99 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 99 23/12/2009 15:34:13 Nesses momentos, entusiasmado pela ouvinte disponível, Mozart dava verdadeiras aulas à sua mulher, principalmente acerca dos assuntos literários quando estes eram os escolhidos por ele. Clara escutava-o com respeito e talvez até admiração. Só muito raramente ousava fazer um ou outro comentário e estes geralmente eram prontamente criticados pelo marido como inadequados ou esdrúxulos. Clara, diante das críticas, abaixava a cabeça envergonhada dos palpites que dera. Reconhecia sua inferioridade e ignorância perante o conhecimento e sabedoria do marido intelectual. Em seguida, enquanto esperava o almoço preparado por Clara, Mozart saía de casa para dar sua tradicional caminhada pelas ruas de Cachoeira do Assento. Cumprimentava um e outro passante, parava aqui e ali, geralmente apenas com os indivíduos tidos como mais letrados e inteligentes, de preferência os que faziam parte da “Academia”. Geralmente os amigos intelectuais, quando se reuniam, conversavam entre eles. Os pontos de interesse normalmente eram as notícias acerca de literatura publicadas nos jornais, nos rádios e TVs. Fora isso, os outros assuntos preferidos eram os livros de crônicas, contos, poesias que cada um, naqueles dias, estava lendo ou escrevendo. Durante essas conversas, todos exaltavam, com invulgar entusiasmo, a beleza e a arte do texto. Muitas vezes trechos eram recitados em voz bem alta para os companheiros literários, após terem sido decorados. Os ouvintes, emocionados, ouviam atentamente o exposto. 100 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 100 23/12/2009 15:34:13 Durante o almoço, Mozart, num tom de voz irônico e azedo, reclamava do gosto insípido das iguarias feitas por Clara, comparando-as com as preparadas com arte e amor por sua querida mãe. Nesses momentos ele relembrava, com saudade, o bom tempo vivido na casa materna, comentava o carinho e os conselhos sábios dados por ela. Clara ouvia, calada e envergonhada, a reclamação do marido e, humildemente aceitava sua incompetência. Ao mesmo tempo em que demonstrava tristeza, pedia desculpas a Mozart por não cozinhar como a mãe dele e prometia melhorar o sabor das comidas preparadas por ela. Clara, diante das promessas do marido de mudar de vida e arrumar emprego, percebia que ele continuava o mesmo: em nada mudara. Por outro lado ela, apesar das promessas, continuava a ser a mesma. Não discutia e não elevava a voz, mas, por outro lado, continuava a fazer as mesmas iguarias, usava os mesmos temperos, fazendo as refeições para agradar à imagem que tinha do pai adotivo e não do marido. Pouco a pouco, Mozart, após perceber que era inútil tentar mudar a maneira de Clara agir e de responder às suas reprimendas, achou melhor, em lugar de continuar criticando-a inutilmente, passar a visitar mais a mãe, principalmente nos horários do almoço, logo após seu passeio matinal. Através dessa estratégia, além de evitar as reclamações, mantinha mais contato com o antigo ninho materno, podendo, além disso, saborear as deliciosas comidas feitas por ela: a omelete, a macarronada, o frango ao molho pardo, o pastel de angu, arroz de forno apimentado e feijão batido e grosso, uma comida que só ela sabia fazer. 101 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 101 23/12/2009 15:34:13 Na casa da mãe, após comer até se empanturrar, Mozart devorava também os saborosos fios de ovos, manjar de anjos ou o doce de abacaxi que só ela fazia. Mozart e sua mãe, durante o almoço, comentavam, num tom grave e solene, a incompetência de Clara como cozinheira e esposa. D. Marta manteve o quarto do filho intacto, como era quando solteiro. Sendo assim, frequentemente após o farto almoço, Mozart tirava uma longa soneca na mesma cama onde dormira quando solteiro. A soneca pós-almoço seguia um mesmo ritual: primeiramente sua mãe fechava todas as janelas do quarto para diminuir a claridade que o incomodava e, em seguida, Mozart tirava todas as roupas e vestia um pijama antigo que era guardado e lavado na casa da mãe para emergências. Após vesti-lo com um ritual sempre repetido, escovava os dentes e, por fim, deitava-se e dormia, por duas a três longas horas, profundamente. Após levantar-se, lavava o rosto com água bem fria. Em seguida sua mãe servia-lhe biscoitos de polvilho e de araruta, juntamente com um café coado na hora e bastante forte, apropriado para espantar o sono e a preguiça. Ela, sempre ao seu lado, oferecia-lhe, ora uma, ora outra guloseima. Ao se despedir de sua mãe, Mozart claramente mostrava seu pesar por ter que largá-la e retornar à casa da esposa. Antes de se dirigir para sua residência, fazia nova incursão pela cidade à procura de amigos para ouvi-lo. Enquanto isso Clara, em casa e sozinha, almoçava pensando na vida que tinha na fazenda. 102 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 102 23/12/2009 15:34:13 Mozart jamais conseguiu vender os quadros pintados por ele: alguns foram doados para amigos que os punham por alguns dias pendurados na parede da sala de visita, para tirá-los, poucas semanas depois, inventando motivos diversos. Posteriormente, aliviados com a retirada do quadro, esse era guardado definitivamente nas prateleiras de armários, onde ninguém mais o via. Dois de seus livros de poesias, escritos cheios de espaços em branco, foram editados no computador com economias doadas por sua mãe. Esse pequeno livro, pouco maior que um lenço, era sempre carregado no bolso de trás da calça pelo poeta e orgulhosamente retirado quando aparecia um possível interessado em poesias. Diante do amigo, Mozart, entusiasmado, declamava de cor. Às vezes lia a última poesia elaborada. No final da declamação, imaginando que o ouvinte estivesse interessado, ele comentava como e po rque criou uma e outra poesia recitada. Poucos livros de Mozart foram vendidos: apenas quando os amigos foram obrigados a comprá-los. Somente assim, após insistir com um conhecido, amigo ou parente, Mozart conseguiu vender pouquíssimos livros. Então chegava em casa orgulhoso do seu grande feito. 103 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 103 23/12/2009 15:34:13 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 104 23/12/2009 15:34:13 9º Capítulo Uma Vida Inútil: Dr. Milton Entre os frequentadores do grupo dos poetas, contistas e pintores, encontrava-se o Dr. Milton, também chamado de Mineirinho. Devido ao seu comportamento na cidade, esse escritor não era bem recebido por muitos dos frequentadores da Academia. Andando de porta em porta dos bares, Mineirinho bebia uma pinga da pior qualidade e mesmo essa quase sempre era paga pelas pequenas esmolas dadas pelos amigos. Dr. Milton, considerado bastante inteligente, respeitado e temido por ter um espírito crítico apurado e agudo, começou seus estudos superiores no seminário, quando quase se tornou padre. Procurado por uma mulher da zona boêmia da cidade, que buscava conselhos religiosos, ele se apaixonou por ela. Logo depois dos primeiros encontros desistiu de ser padre, abandonado o seminário. 105 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 105 23/12/2009 15:34:13 Sendo um curioso e interessado no comportamento humano e em ética, mais tarde ele decidiu fazer o curso de Direito numa cidade próxima. Uma vez terminada a Faculdade, montou um “escritório” de advocacia nos fundos de uma velha casa onde morava sozinho, um esconderijo onde só raramente aparecia alguém buscando sua ajuda. Ele chamava a atenção por ser, ao mesmo tempo, bastante reservado e um crítico impiedoso: acreditava que só assim poderia sobreviver naquela cidade. Dr. Milton, que fora religioso durante sua infância e adolescência, tornou-se mais tarde comunista. Depois, tornou-se anticomunista e anti-religioso. Presentemente não era nem uma coisa nem outra: não se sentia capaz de ir a favor ou contra essas ideias, pois não acreditava e nem lutava em defesa de nenhuma delas. Sabia que se defendesse uma ideia, posteriormente ele próprio a criticaria com o mesmo vigor com que a havia defendido. Mesmo quando tudo parecia certo ou verdadeiro, quando tudo parecia muito bem explicado e deduzido logicamente, Dr. Milton sabia, devido ao seu faro e saber e também por ter tido diversas experiências em sua vida, que alguém, até ele próprio, poderia pensar e argumentar de modo diferente ao anteriormente defendido. Para Mineirinho, as belas e sedutoras descrições do mundo não passavam de um sonho: não estão corretas e jamais serão verdades eternas. Ele próprio já fora enganado milhares de vezes aceitando, sem críticas, um tipo explicação, apenas um. Para ele a pergunta: “Quem é o homem?” ainda não foi respondida. 106 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 106 23/12/2009 15:34:13 Respondemos a essa e outras questões conforme a época. Todas as descrições e explicações acerca da natureza, incluindo o homem, são provisórias: para os ingênuos elas são tidas como eternas. Andando embriagado pelas ruas de Cachoeira do Assento, ele refletia e falava alto para quem quisesse ouvir: “Já caí demais nisso, espero não mais ser enganado. Quem sabe estou enganado agora? O único mundo que me é dado é o meu próprio. O único universo que posso entender, a cada momento, é o meu. Jamais penetrarei no mundo do amigo ou inimigo, do cliente, de ninguém. Todas as pessoas, com frequência - ou seria sempre? - abandonam, num certo momento, os fatos observados e sensíveis, para cair nas explicações teóricas de verborreias incompreensíveis, simples invenções ou construções humanas. Hoje, sei que também os fatos vistos e ouvidos por nossos órgãos dos sentidos são percebidos de outro modo, não só pelos órgãos dos sentidos de outros animais como de outros homens. Enxergamos o que somos, o que nosso organismo ordena, conforme nossos desejos e emoções. Pergunto-me: qual é o mundo verdadeiro, o meu, o da pulga ou o da bactéria? Dr. Milton muitas vezes imaginava parar: parar com tudo, ficar o dia inteiro numa cama, ouvindo, sozinho, músicas. “Quem sabe os sons melodiosos poderiam me transformar, animar-me, dando-me a tranquilidade necessária para tolerar o mundo esquisito, perceber as injustiças de todo o dia e as rejeições. 107 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 107 23/12/2009 15:34:13 A música talvez pudesse fazer por mim o que a religião, a família ou a ideologia política faz para a maioria das pessoas. Talvez, através da música, pudesse achar natural a ignorância, não me espantar assistindo à exploração do povo menos favorecido pelos poderosos, diante da indiferença de todos. Talvez pudesse conviver harmoniosamente, uma vez hipnotizado pela melodia, subjugado pelas humilhações sofridas por não possuir um sobrenome familiar importante, dinheiro sobrando ou poder político”. Dois dias após a morte da ex-prostituta que morava com o Dr. Milton, ele retomou, com grande esforço, seu hábito de caminhar pelas ruas da cidade. Suas caminhadas eram geralmente no meio da gente pobre da cidade. O advogado boêmio andava horas, pois assim voltava exausto para casa e não conseguia pensar mais. Sempre lamentava os rostos cansados e tristes das pessoas que encontrava durante suas caminhadas. Talvez todos os indivíduos encontrados trabalhassem o dia todo numa atividade que detestavam. Imaginava que, uma vez em casa, cada um daqueles coitados, isolados e presos dentro da família, tomaria uma sopa morna e rala. Depois, mais tarde, seria atraído e contaminado pela sedutora beleza alienante da novela das noites. Dormiria como saco pesado na cama suja e amassada. Durante suas caminhadas pelas ruas, Dr. Milton conversava consigo mesmo: “Na rua posso andar sem a presença de ninguém ao meu lado, livre para escolher qualquer caminho desejado e também não preciso explicar os motivos da minha escolha, uma escolha que muitas vezes nem mesmo eu sei. Gosto dessa liberdade. 108 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 108 23/12/2009 15:34:13 Durante minhas caminhadas olho, invariavelmente, a face de um e de outro. As expressões faciais revelam o que está acontecendo com os homens. Nos fins de tarde tenho uma imensa amostragem para estudar o sofrimento humano e assim comparar meu sofrimento com o deles. Excito-me vendo pessoas apressadas, rostos aflitos, tristes, alegrias miúdas, olhos em busca de porto seguro que não surge nunca. Na praça, diante de todos, alguns se abraçam: imaginam estar amando“. Para cada olhar que fixava, Dr. Milton imaginava um drama diferente em andamento. Sofria com o sofrimento estampado na face de cada um, com as pequenas alegrias que durariam pouco. Lamentava a ingenuidade popular, uma vida sonhada e não vivida das pessoas que passavam. Todos perseguiam algo. Ninguém sabia nem onde e nem o quê estavam procurando. Mineirinho lamentava a vida vivida por cada um, inclusive a dele próprio. Ele tinha pena de todos: dos tristes por estarem sofrendo devido a algo desagradável, dos alegres por eles não saberem que a alegria duraria pouco tempo e também por estarem sorridentes por falta de consciência da vida. Observava, durante o término do trabalho de cada dia, olhares lânguidos, mocinhas pobres correndo em direção à escola noturna, sonhando aprender ali alguma coisa útil. Estavam enganadas. Elas aprenderiam, se aprendessem, com as decepções do dia-a-dia. Andando e refletindo, adiante ele disse para si mesmo:“Senti vontade de conversar com um desconhecido qualquer. 109 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 109 23/12/2009 15:34:13 — Tive receio de chegar perto de um jovem, pois minha presença poderia impedi-lo de realizar o padrão diário de sua vida, a correria em busca do nada. Aproximei-me, então, de um velho. Mais tarde fiquei sabendo que se chamava Alcides. Ele ficou emocionado com a oportunidade rara de falar de si para alguém: — Já viajei por este Brasil afora. Conheço até o Amazonas. Comecei a trabalhar aos oito anos, como ajudante de caminhão. Meu sonho era, um dia, possuir um só meu. Só consegui comprar um caminhão aos quarenta anos, ou seja, quando já era velho. Fui assaltado na estrada, roubaram meu caminhão e só não me mataram porque eu me ajoelhei no chão, como se estivesse diante de Deus. Chorei, implorei a eles por minha vida. Uma vida que depois percebi que não valia nada. Largaram-me de dó, por piedade e riram de mim. Um chegou a urinar no meu rosto. Eu nada fiz. Chorei. Hoje arrependo-me do que fiz. Pedir pelo amor de Deus a um bandido, ajoelhar aos seus pés, uma humilhação que jamais esquecerei. Sofreria menos se tivesse morrido ali mesmo. Na verdade não me libertaram. Encarceraram-me, para sempre, na pior das prisões: minha própria cabeça. Minha mente jamais esqueceu minhas ações, está sempre a me acusar de covarde e medroso. A desgraçada de minha cabeça me faz mais mal do que os bandidos. — Depois disso, não fui mais ninguém e nem podia ser. Sou um verme, um coitado que não merece viver, mas que não tem coragem nem para morrer...Você me entende, não é? Estou aposentado. Espero a morte, minha luz está fraca, quase apagando. 110 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 110 23/12/2009 15:34:13 — Aqui, nesses bancos de praça, convivo com outros iguais a mim... os que fingem viver. Desfrutamos desses joguinhos, das piadas a que nem achamos graça. Aqui vemos passar uma mulher bonita, como aquela que está ali parada... junto à banca de revistas. Para quê? Todos sabem que ela jamais olhará para qualquer um de nós, se olhar será, talvez, com asco... como fizeram os assaltantes. — Não tenho mais sonhos, projetos, nada. Sem força para fazer algo, espero o fim. Também, pudera, achar graça nessa vida. Não tenho mais energia, a não ser para defender pequenas e tolas ideias, brigar por besteiras. Como todos velhos, qualquer discussão serve. No fundo eu sei que é tolice, mas para não parar totalmente a máquina usada e já quase sucata para ser jogada ao lixo, fazemos de conta que o assunto é sério e interessante. Chegamos até a brigar, apenas de mentira. Compreende? — As tapeações não param por aí. Nós, para abrandar o nome feio – velho - que recebemos do vocabulário usado, somos denominados de “idosos”, ou pessoas da terceira idade, para dar a impressão, ou melhor, simular, para a sociedade, que ainda estamos vivos. Desse modo diminuímos o trabalho dos “ativos” e fingimos, como eles, estar ocupados. Já viu uma dessas festas feitas pelos jovens para nós? Você deve estar rindo de mim e se perguntando: será mesmo festa? Não poderíamos chamá-la de velório? Tocam-se músicas e ao som delas representamos, para os jovens, uma alegria fingida, melancólica. — Com nosso corpo duro, carregado de peles soltas, damos a impressão de que estamos dançando, mas, de fato, sentimos vergonha do papel representado... 111 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 111 23/12/2009 15:34:13 — Todos sabem que não podia ser diferente, que todo velho é, na realidade, um triste. Entretanto, espera-se dele, de fato, fingir ou representar alegria passada, antiga, do tempo da juventude, um vigor e euforia que já nos abandonou há muitos anos. Ninguém desconhece que somos, nessa idade, uns inúteis, sempre à espera de algo: esperamos a hora do almoço, a hora do jantar, de dormir e esperamos a hora...você sabe. Você me entende, não é? Tudo nos conduz à última espera, à caminhada final, à hora de sumir de vez, ao vestir o pijama de madeira. — Nossa conversa é a de sempre, isso que estou fazendo agora: repetir a mesma cantilena, que já falei, para muitos e agora para um novo espectador, que ainda suporta, ou finge tolerar, ouvir as histórias de “no meu tempo...”, “quando era um rapaz...”, que todos já ouviram muitas e muitas vezes. Mas ainda tenho um medo maior, caro amigo. Como é mesmo seu nome? — Milton. — Pois é, Miltonildo, meu medo maior é a hora de ir para um asilo, onde todas as ligações estarão terminadas. Aqui posso olhar para aquela bela jovem, aquela que lhe mostrei, vendendo livros na banca. Alegro-me, observando-a. Ela nem deve saber que existo. No asilo não mais poderei vê-la, essa ligação estará definitivamente cortada. Já visitei um parente no asilo. Sinto um calafrio ao me imaginar lá. Será o fim, a entrega do diploma do formado, a ante-sala para o outro mundo. — Eu sei que o outro lado está próximo, mas aqui eu me distraio, não presto tanta atenção à vida que levo, esqueço do real. 112 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 112 23/12/2009 15:34:13 — Lá no asilo, o fim será acelerado pelo aprisionamento junto a outros companheiros, tão velhos ou mais veque eu. Velho não precisa de iguais, uma fruta estragada deve ser afastada das sãs, o podre propaga-se, provocando o apodrecimento de outras. Do asilo à morte será um salto, um caminho sem direito a volta. Aqui ainda posso ficar mais um pouco ou ir mais cedo, isso eu não sei. Até consigo, como último esforço, me aproximar dos que estão tentando viver. Lá haverá horários para tudo: levantar, comer, deitar, jogar, como nos colégios de crianças. No asilo terei a companhia dos que desejam a morte rapidamente, dos que já morreram para seus familiares e para parte do mundo dos atarefados. Lá no asilo a separação entre homens, crianças, jovens e adultos, que aqui existe, quebrando um pouco a monotonia, não mais existirá. Já foi a um asilo? Todos lá são iguais, os sem família, sem ninguém, são os viúvos de todos os vivos, com os mesmos direitos, ou, se quiser, quase nenhum, com a mesma tristeza e desesperança e, por fim, todos com os mesmos planos: morrer, melhor se for o mais depressa possível. Lá todos estão definitivamente excluídos para sempre. Não há mais esperança de cura, nem através da milagrosa religião. Silenciosamente, Dr. Milton seguiu seu caminho sem se despedir do velho Alcides. Este continuou jogando damas, enquanto esperava um outro ouvinte sem pressa, capaz de ouvir sua história, suas ideias, suas desgraças e seu temor do último destino. Dr. Milton também gostava de caminhar pela madrugada nas ruas sem uma única pessoa. 113 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 113 23/12/2009 15:34:13 Quando saía, numa noite silenciosa, sem o barulho dos carros, das vozes ou lamentos, tomava consciência melhor da solidão humana, de como estamos sós. No meio do barulho, imaginamos estarmos ligados - como falou o Alcides - às pessoas apenas por vê-las, por cumprimentálas ou por viverem na mesma casa. Mas basta um afastamento, como andar à noite pelas ruas desertas, ou numa noite de insônia chegar à janela, fingindo estar olhando a rua, quando, de fato, estamos olhando dentro de nós mesmos. Nesse instante descobrimos que estamos ligados aos nossos pensamentos e sentimentos, apenas estes, que estamos afastados da natureza que nos rodeia e que nos invade apenas através de nossos órgãos dos sentidos e ideias. Somos ligados ao mundo somente através de nosso intelecto, o mesmo nos fornece a ideia da separação... Dr. Milton de certa forma estava ligado a Mozart, pois era considerado pelos amigos, talvez apenas conhecidos, como fazendo parte da “Inteligência” da cidade. Apesar de ter sido convidado diversas vezes a fazer parte da “Academia”, ele fingia aceitar. Geralmente inventava desculpas diversas para escapar das reuniões. Frequentava uma ou outra reunião da “Academia”, não para ouvir poesias ou contos, mas muito mais por razões econômicas, melhor dizendo, para participar dos chás que ali se realizavam após as sessões literárias. Nessas ocasiões comia o máximo que podia e, se possível fosse, ainda carregava nos bolsos pedaços de bolos, pães, queijo e outros comestíveis que ali eram servidos com fartura. Ele sabia que era rejeitado pela maioria dos frequentadores da Academia. 114 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 114 23/12/2009 15:34:13 Quando lá comparecia ia geralmente embriagado, como fazia em outros lugares, inclusive nos velórios e casamentos. Dr. Milton gostava de escrever peças de teatro e estas geralmente eram bem recebidas pelos seus companheiros intelectuais, mas rejeitadas por ele próprio. Vestia-se descuidadamente, suas roupas mostravam manchas de café e bebidas. Com uma renda mínima, sem receber e nem pedir ajuda de ninguém, vivia como um pobre desnutrido. Decadente, como advogado era desprezado e criticado, muitas vezes grosseiramente, pela elite e a juventude da cidade. Apesar de tudo isso, Dr. Milton mostrava que tinha uma boa capacidade para perceber e avaliar o ser humano. Crítico ferino, abominava o vazio e a presunção da maioria dos membros da Academia, a necessidade e orgulho que eles tinham de demonstrar um conhecimento que jamais possuíram. Vizinho e da mesma idade de Mozart, convivia quase que diariamente com ele, tendo também um bom relacionamento com Pedro, amigo de ambos. Devido à amizade que existia entre Mozart e Mineirinho, este último tolerava a incompetência e imaturidade do amigo, por isso evitava, sempre que possível, criticá-lo. Para ele, Mozart estava sempre tentando escapar da feia realidade que o cercava, protegia-se através de um manto de mentiras. Vivia num mundo de fantasias que nunca foram realizadas. 115 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 115 23/12/2009 15:34:13 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 116 23/12/2009 15:34:13 10º Capítulo Nascimento de Plínio Dois ou três meses após o casamento, Clara, desanimada após adiar ao máximo a informação que guardava em segredo, comunicou ao marido que estava esperando um filho. A comunicação, ao contrário do esperado por ela, não emocionou, nem negativa, nem positivamente seu marido. — É... Quer dizer que serei pai. Vou fazer uma poesia para comemorar o acontecimento. — comentou Mozart. — Você está alegre? - Perguntou Clara. — Sim. Respondeu Mozart, num tom de voz desanimado, prosseguindo: — Não tenho atração por crianças, mas sempre é bom e bonito ser pai. Acho que ficarei mais inspirado para criar. Mas muito mais animado com o nascimento do filho de Clara ficou José Alencar. 117 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 117 23/12/2009 15:34:13 Demonstrando enorme alegria, ele e Clara discutiram a gravidez inúmeras vezes, os cuidados que precisavam ser tomados e ao mesmo tempo tentavam adivinhar se seria um menino ou menina, bem como tudo o que se relacionava com os imprevistos frequentes durante e após a gravidez. — Você deseja um menino ou menina? Perguntou Clara, um pouco envergonhada. — Ah! Quer minha opinião verdadeira? Gostaria mais de um menino, de um macho. — Para mim tanto faz. Sempre desejei ter um filho, um filho meu, que nascesse de mim, criado por mim. Estou muito feliz. — Que bom, continue assim. Quando a notícia do nascimento do filho se espalhou, José Alencar fez uma visita formal, à noite, ao casal. Mozart, demonstrando indiferença, a princípio não fez comentários sobre a nova vida que enfrentaria. Como sempre, discursou sobre os versos que estava criando, mas, em seguida, se queixou dos gastos que teria: — Minha preocupação é com os custos de tudo isso: irei gastar muito dinheiro com o nascimento de um bebê. Não só agora, mas também depois com as doenças, os médicos e remédios, roupas e alimentos e mais tarde escola, livros e cadernos. Serei obrigado a economizar... — Não se preocupe. Não se preocupe, repetiu José Alencar, entrando na conversa, tentando acalmar Mozart. E continuou: — Eu o ajudarei. Faz parte da nossa conversa do primeiro dia. 118 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 118 23/12/2009 15:34:14 — As coisas andam bem para mim, portanto eu mesmo me encarregarei de comprar o que for necessário para o bem-estar da criança que vai nascer. Ele é de Clara, minha filha querida, logo, é como se fosse meu filho. Farei tudo que puder para o bem estar dele e de vocês. — Fico envergonhado - falou pigarreando Mozart mas é bom ouvir isso, pois me faz sentir mais calmo, bastante aliviado. A conversa, em seguida, mudou de rumo e terminou. José Alencar, após tomar um café e comer um pedaço de bolo de fubá, se despediu do casal. Bastante tranquilo, deixou a casa alegre, pois conforme desejara e previra, tudo estava dando certo. “Ainda bem”, comentou, respirando aliviado para si mesmo. A gravidez, devido à excelente saúde, alimentação e cuidados de Clara, correu sem problemas. Ela procurou o médico poucas vezes e este sempre lhe afirmou que tudo estava dentro do esperado e, portanto, não precisava ficar preocupada. O médico obstetra era o mesmo que havia feito o parto da mãe de Clara e foi o intermediário da doação dela para Donana e José Alencar. Sendo amigo dele desde essa época, era quase sempre o pai adotivo, às vezes acompanhado de Donana, não do Mozart, quem a levava para fazer os exames de rotina nas poucas vezes que ela o consultou. Mozart, quando convidado para levá-la ao médico, alegava falta de tempo e também não ir por não gostar de médicos. Um menino sadio nasceu um pouco antes do esperado, no final de outubro, cerca de oito meses após a conversa de José Alencar com Mozart. 119 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 119 23/12/2009 15:34:14 Como nasceu normal e sadio, foi logo para casa sem problemas e para alegria dos familiares, pois a saúde da mãe e do filho, segundo o médico obstetra e o pediatra, estava excelente. Evitando atrapalhar o sossego de Mozart, a partir desse evento Clara passou a dormir num quarto separado do marido junto com o filho Plínio, um nome comum na região e que era como o pai de José Alencar se chamava. Essa homenagem, que não magoou Mozart, irritou a mãe dele e também Donana. Esta só decidiu visitar o menino dias após ele ter saído da maternidade. A visita da avó, muito formal, quase sem comentários, não durou mais que meia hora. José Alencar, ao contrário, mais parecia o pai do garoto, carregava-o, abraçava-o, brincava com ele e estava radiante com sua saúde e beleza. A criança cresceu e desenvolveu-se mais ligada a José Alencar que a Mozart. O poeta, cada dia mais animado com seus dotes literários, mostrava-se muito mais interessado em ser um grande artista, vivendo para a criação. Desse modo ele continuou afastado de outras preocupações que não fossem seu trabalho artístico. Assim Plínio não só foi criado sem a presença do pai, como Mozart, após se casar e se tornar pai, continuou vivendo a mesma vida que levava quando era solteiro e, de certa forma, ele trocou apenas de mãe. Agora, na maior parte do tempo, quem cuidava dele era Clara, que dividia seu tempo nos cuidados entre o filho, Plínio, e o marido, Mozart. Apesar de cuidar e amamentar o filho, administrava a casa e os negócios do casal, sendo que a maioria das despesas era financiada por José Alencar. O menino cresceu neste meio ambiente. 120 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 120 23/12/2009 15:34:14 11º Capítulo Aparece Piquira, pai de Clara Numa manhã calma e silenciosa de uma quarta-feira, quando não havia nenhum movimento na cidade, Zilah, a nova babá contratada por Clara há poucos dias atrás para cuidar de Plínio e ajudar na limpeza da casa, ouviu alguém bater palmas e em seguida bater na porta timidamente, mas ao mesmo tempo demonstrando certa insistência. Zilah, após ter largado no chão do corredor o pano úmido com o qual ela limpava a casa, bem como o balde de água que carregava preguiçosamente, caminhou até a entrada da residência para atender o visitante. Deparou-se com um homem franzino de pouca altura, meio torto. Ele segurava uma bengala com a mão direita, dando a impressão de possuir uma perna mais curta que a outra. O desconhecido vestia um paletó escuro, sujo, esgarçado e desabotoado, que disfarçava o tórax esquelético e estufado. 121 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 121 23/12/2009 15:34:14 Suas calças, amarrotadas e manchadas, eram largas demais para as pernas finas que encobriam. Ele olhou espantado para Zilah, sem saber quem ela era e sem saber como começaria a conversa, motivo de sua ida até ali. Seu rosto magro, marcado por rugas, principalmente em torno da boca e dos olhos, era envolto por uma pele acinzentada escura coberta por pelos ralos. Olhando sempre para os pés de Zilah ao cumprimentá-la, notava-se sua boca quase sem dentes, distinguindo-se apenas um ou dois, grandes e isolados. Carregava na mão esquerda um saco cheio e encardido, deixado no chão do alpendre, por instantes, quando começou a falar: — Bom dia, minha dona, desculpe-me. Me informaram que aqui mora uma dona de nome Clara. É a senhora? — Não! Não sou eu. D. Clara é minha patroa, trabalho para ela. O que deseja dela? Perguntou Zilah, imaginando tratar-se de um pedinte e talvez ela mesma pudesse resolver o problema sem importuná-la. — Eu queria vê-la. Informaram-me que ela casou e tem um filho. — Vê-la? Para quê? — Queria ver meu neto. Sou o pai dela. Zilah a princípio não acreditou no que ouvia. Aquele homem, parecendo um mendigo, ser pai de sua patroa, uma mulher chique e rica. Entretanto, o homem maltrapilho que estava à sua frente parecia falar sério e esperava alguma ação dela. — O senhor é pai dela? Mas ela não tem pai. Eu sei, isso é, conheço o pai de criação dela, Sô José Alencar. 122 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 122 23/12/2009 15:34:14 — Ele é um fazendeiro daqui de perto. Trabalho aqui há poucos meses e nunca vi o senhor aqui. — Sei disso, minha dona, estou morando ultimamente em Carneirinhos, que não fica longe daqui. Há muitos anos, nem sei mais há quanto tempo, arrumei uma nova mulher e saí de casa. Quando deixei minha dona, ela ainda não tinha ganho Clara. A barriga estava começando a ficar grande, uns três meses. Sumi e nunca mais voltei. Nem sabia o nome de minha filha, só fiquei sabendo aqui. — Logo que abandonei minha dona, fui morar no meio do mato. Para não passar fome e morrer, comecei a caçar pequenos bichos do mato: rato, gambá, tatu, às vezes uma seriema, uma galinha perdida, cobra e outros bichos. Além disso, colhia alimentos do mato, frutas e raízes. — Por muitos anos morei com Marina. Esse é o nome da mulher que fugiu comigo. Às vezes, ela saía comigo pelos matos, para me ajudar a colher frutos e raízes. Caçar, ela não caçava, não. Eu matava os bichos com uma espingarda velha que tinha — até hoje tenho — está aqui comigo, dentro desse saco. — Quer ver? Quando ia à cidade, e isso só acontecia muito raramente, eu vendia raízes, às vezes alguns filhotes de papagaio, de macaco, maritaca e na venda eu comprava pólvora, chumbinho, pinga e toucinho. Tudo isso eu sempre tive em casa. Para economizar a pólvora e o chumbinho, muitas vezes eu matava os bichos com o facão e o porrete que carrego até hoje. Tá tudo aqui comigo no saco. Quer ver? Arma boa. Sem elas eu teria morrido. Gosto muito de matar os bichos. Tive dois filhos com Marina. 123 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 123 23/12/2009 15:34:14 — Eles morreram de diarreia, magrinhos, poucos dias após nascerem. — Há pouco tempo fui castigado! Marina, como eu, fugiu com outro. Tudo na surdina, sem me falar nada. Não sei por que ela fugiu de casa com Ratinho, um rapaz que encontrei perdido no mato, passando fome, quase morrendo. Leveio para minha casa e dei de tudo para ele, enquanto melhorava para seguir viagem. Mas lá foi ficando, adiando sempre sua ida. Agora acho que ele e Marina já estavam tramando alguma coisa. Depois de muito tempo, sumiu e fiquei sozinho. Zilah escutava a história, simples e direta, espantada. Imaginava sair de perto daquele homem estranho e esquisito o mais depressa possível. Ele foi contando seus casos, um após o outro, quase sem respirar. Num certo momento, ele deu uma pequena parada para respirar melhor e recomeçar. Foi nesse instante que Zilah aproveitou para largálo e entrar, prontificando-se a verificar se D. Clara estava e se podia recebê-lo. —Vou ver se D. Clara está — disse Zilah rápido e já entrando dentro de casa. Neste instante continuou a falar: — Espere um momento, volto já. Zilah, ao entrar em casa, amedrontada trancou cuidadosamente e sem fazer barulho a porta de entrada. Estava assustada com aquele homem misterioso que apareceu inesperadamente. Muito nervosa e sem saber o que fazer, automaticamente caminhou para dentro de casa em direção a Clara. Um pouco mais segura ao se afastar mais da porta de entrada da casa, ela não sabia se falava ou não com Clara o que ouvira, pois imaginava tratar-se de um louco. 124 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 124 23/12/2009 15:34:14 Ao chegar mais perto do quarto onde Plínio acabara de acordar, ela pôde ver Clara brincando calmamente com o filho. Sem muito pensar, decidiu liberar suas emoções, agora com mais coragem. Após respirar fundo e pedir a Deus que a ajudasse, Zilah começou a falar: — D. Clara, tem um homem aí fora procurando pela senhora... — Quem é? — É... é um homem meio esquisito: sujo, carregando um saco imundo. Traz ainda em uma das mãos um porrete. Acho que ele manca e não olha para a gente quando fala. Ele está muito magro, veste um paletó escuro ou sujo, não sei, velho e rasgado. — Ora, Zilah. É um pedinte que tá querendo uma comida ou algum dinherinho, como todos os outros. Vê se tem alguma comida de ontem guardada, se tiver dê a ele e pronto. Assim ele vai embora e não vai nos amolar mais. Além do mais, você ficará calma e vai cuidar de sua limpeza que está atrasada. Não deve ser gente daqui. Não se vê pessoas pedintes em Cachoeira do Assento. Se fosse gente daqui você o conheceria e também ele saberia quem é você. — Não, D. Clara. É... eu nunca o vi. De fato conheço os pobres da cidade, pois faço parte deles e moro no meio deles. Como disse, em Cachoeira do Assento todos trabalham, ninguém pede esmola. — Então quem é? O que ele quer? Não perguntou a ele? — Perguntar não perguntei. — Então pergunte logo. É o que devia ter feito para acabar com tudo isso. 125 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 125 23/12/2009 15:34:14 — Não perguntei, porque antes de perguntar ele me disse que queria ver a senhora. — Eu? - Perguntou espantada e continuou: — Falou meu nome? E por quê eu? — Aí é que tá... nem sei como dizer. — Ora! Fale logo! Desembuche! Por que não sabe como dizer? — D. Clara, vou dizer o que ele falou, tá certo? A senhora me desculpe. — Não entendi. Pode falar, não precisa esconder nada. — Ele disse que quer vê-la, pois não a conhece ainda. — Não entendi nada! Como quer me ver e não me conhece ainda? É lógico que não me conhece. Como iria conhecê-lo? Quer me conhecer? Para quê? — Bem, vou falar, já que a senhora falou que eu devia falar. Ele disse que é seu pai... — O quê? — Seu pai. Achei esquisito, mas ele repetiu isso mesmo. Que é seu pai. — Meu pai? Espantada, Clara quase gritou dirigindose a Zilah: —Não tenho pai. Nunca ninguém me falou acerca de meu pai. Onde ele está? — Lá fora, na varanda, assentado nos beirais. — Vou ver quem é! Fica aqui com Plínio! Amedrontada e confusa, Clara caminhou apoiandose nas paredes ao se dirigir à porta que dava para o alpendre. Girou com dificuldade a chave da porta. As pernas estavam bambas e suas mãos tremiam. 126 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 126 23/12/2009 15:34:14 Segurando a maçaneta, abriu a porta e, ao abri-la, procurou com o olhar espantado o homem que dizia ser seu pai. — Bom dia. - cumprimentou Clara com dificuldade, enquanto examinava com asco aquele homem que olhava para baixo, postado bem à sua frente. — Bom dia, minha dona. Falo assim, pois não tenho intimidade com a senhora. A senhora é D. Clara? — Sim. Meu nome é Clara. Quem é o senhor e o que quer? Falou bruscamente, tentando esclarecer tudo aquilo o mais rápido possível. — Pelo que sei, sou seu pai. Não conheci a senhora quando nasceu, pois quando Maria, sua mãe, ficou esperando você, eu saí de casa e fui morar com Marina. Contei tudo para essa moça que veio me atender antes. Agora foi Marina quem me largou e fugiu com Ratinho. Há muitos dias caminho por essas bandas, estou vindo de longe, passei num lugar e noutro, sempre procurando um lugar para dormir e comer em troca de algum trabalho. Não consegui. Por acaso cheguei a Cachoeira do Assento. Aqui, sem querer, descobri que a senhora é minha filha. — Não entendi. Como descobriu que eu sou sua filha? — Tive com sua mãe outros filhos, uns onze ou doze. Não me lembro mais, quase todos morreram. Sei que só três vingaram: dois meninos e uma menina. Essa menina é você, a filha que não conheci, pois quando larguei sua mãe você estava na barriga dela. Os meninos eu vi nascer, cheguei a viver uns anos junto a eles. Tinha muito amor por eles. — Mas o que me acaba de contar não mostra que você é meu pai. 127 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 127 23/12/2009 15:34:14 — Eu vou contar, espere um pouco. Aqui nessa cidade e também em outras, conversando ora com um, ora com outro, descobri que a última filha de Maria, logo que nasceu foi dada a um casal daqui da região, um fazendeiro rico de nome José Alencar, casado com D. Donana. Segundo me contaram, D. Donana, pouco antes de você nascer, teve uma febre brava e durante o parto, que foi fora do tempo, perdeu a filha que gerou. Ela nasceu morta. Além disso, os médicos retiraram o útero e assim não podia ter mais filhos. — Então sou sua filha? E minha mãe? Onde está? Perguntou Clara, espantada com o que ouvia e nunca imaginara. Queria saber tudo acerca de seu passado, um passado que jamais foi contado a ela. — Sua mãe ficou morando no mesmo lugar. Os dois filhos, quando viraram homens feitos, sumiram no mundo, cada um para um lugar diferente. Maria, segundo ouvi, sozinha e sem os filhos, passou a morar com um homem. Tanto ela, como ele passavam grande parte do dia bebendo em casa ou mesmo nos bares na cidade onde moravam. Vivendo desse modo, quase sem se alimentar, só sei que ela teve barriga d’água. Foi internada em um hospital e melhorou, mas voltou a beber do mesmo modo que antes. Assim, quando piorava muito, era internada no hospital e melhorava. Isso aconteceu muitas e muitas vezes. Quando voltava para casa, retornava à bebida e ao cigarro de fumo de rolo, um fumo dos mais fortes. Acabou morrendo no dia do aniversário dela. Morreu quando ela e o homem dela cantavam “Feliz Aniversário”, um “feliz aniversário” brindado com pinga. 128 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 128 23/12/2009 15:34:14 Maria foi enterrada no cemitério de Jacutinga do Sertão, o arraial onde morava. Você já foi lá? perguntou o visitante. — Não! Nunca! — Qual é o seu nome? - Perguntou Clara ao visitante estranho. — Eles me chamam de Piquira. Todos me conhecem como Piquira, tornou a responder e prosseguiu— Mas meu nome mesmo é Plínio. — Plínio? O mesmo nome do meu filho! Constrangida, cada vez mais embaraçada, Clara não sabia o que fazer. Ao mesmo tempo em que desconfiava daquele estranho, acreditava em parte no que dizia, pois achava impossível, ou muito difícil, inventar uma história como a contada por ele. Sem coisa melhor a fazer, convidou-o a entrar. Prontamente Piquira entrou e, uma vez dentro de casa, Clara pediu a Zilah que preparasse alguma coisa para ele comer. Como Mozart havia saído naquele instante, Clara decidiu ir até a fazenda. Desejava esclarecer tudo aquilo com Donana e José Alencar, pois os dois podiam saber, ou talvez tivessem algo diferente para contar. Ela saiu disposta a obter uma história final e verdadeira acerca de sua origem. Jamais eles lhe tinham contado detalhes de sua adoção: como e por que ela foi escolhida, quem eram seus pais e onde moravam. Após aprontar-se rapidamente, ela deixou Piquira assentado desajeitadamente na sala de visitas. Antes Clara orientou Zilah para não só vigiá-lo, como também cuidar de Plínio, seu filho, durante a rápida ausência: 129 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 129 23/12/2009 15:34:14 — Não tire o olho dele! Clara gritou, dirigindo-se a Zilah. Ofegante e caminhando rapidamente, Clara subiu o morro que separava a rua principal da cidade da entrada da porteira da fazenda. Da varanda da fazenda, enquanto José Alencar amolava seu canivete Rogers predileto, notou alguém que se dirigia à fazenda. Estranhou quando percebeu que quem estava se aproximando, andando muito depressa, ao contrário do que sempre fazia, era Clara. Preocupado, largou o canivete aberto perto da pedra de amolar e desceu as escadas da varanda, esperando para recebê-la. Ao vê-la, notando a fisionomia tensa de Clara, percebeu que alguma coisa mais séria tinha acontecido. Como sempre fazia, José Alencar tentou amenizar a tensão da filha e para isso deu-lhe um abraço, que saiu desajeitado, como se não tivesse percebido nada no seu semblante. Sem nada perguntar, antevendo que algo havia acontecido, tentando camuflar sua própria preocupação com o que iria escutar, José de Alencar convidou Clara para entrar e assentar-se nos bancos de madeira da varanda, a qual se estendia por toda a frente da grande casa da fazenda. Após os cumprimentos, uma vez assentados e antes de Clara começar a falar, José Alencar, perturbado pelo silêncio, perguntou: — Alguma coisa aconteceu? Está tudo bem? José Alencar perguntou, já sabendo que acontecera algo preocupante, que algo havia ocorrido e devia ser grave, não só pela fisionomia de Clara, como pelo horário da visita, 10 horas da manhã, ainda mais numa Sexta-Feira Santa. 130 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 130 23/12/2009 15:34:14 Nesse horário ela nunca ia à fazenda, além disso os dois já tinham se encontrado mais cedo, pois tomaram o café da manhã juntos, durante o qual riram e brincaram mostrando que, até aquele encontro, nada havia acontecido, tudo estava bem. — Sim! Muito estranho! — Quer um copo de água? Tem um suco de laranja, quer um pouco? Vou buscar para você. Voltou rápido com dois copos e a bilha com água. Antes de assentar-se, preparou dois copos de água para ambos. — Conta. Conta tudo. Pediu José Alencar à sua filha, enquanto descia pela sua garganta a água fria da bilha. — Não sei como começar... estou tão nervosa. Vou falar tudo o que quero de uma só vez. — Pode e deve falar. Não temos segredos entre nós. — Pois bem... Clara tomou mais um pouco da água do copo e enchendo o tórax de ar, continuou sua fala, agora mais firme e forte: — Quem são meus pais verdadeiros? — Verdadeiros? Eu e Donana. Uai! Por quê? Que pergunta estranha, a uma hora dessas. — Não, eu sei. Pode falar o que sabe. Falo “verdadeiros”, você sabe o que quero dizer, os que me geraram. Vocês não. Vocês me criaram. De onde eu vim? — É... é uma história antiga, leva tempo para contar, mas se quiser... — Quero e preciso ouvir. Aconteceu um fato novo. — O quê? — Um homem, que se diz meu pai, apareceu hoje cedo em minha casa, pouco tempo depois que você saiu. 131 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 131 23/12/2009 15:34:14 Ele está lá. Vim aqui para saber o que fazer. Também descobrir se é ou não verdade o que ele me contou. Estou muito nervosa, mas quero saber de tudo. — Se você me pediu, eu vou contar. Não contei antes por julgar desnecessário você saber dos pormenores desse assunto. O que interessa mais, no meu ponto de vista, é o nosso amor por você. Mas agora, diante do ocorrido, da presença desse homem, que de fato pode ser seu pai, eu vou lhe contar. Clara gelou e ficou branca, tomando mais um pouco de água. José Alencar, antes de começar a contar a história de seu aparecimento em sua casa, trouxe-lhe um pouco de café. Chamou Donana para tomar conhecimento do ocorrido e também ajudá-lo na narração da história. Após Donana cumprimentar Clara e se assentar ao lado do marido, os dois esperaram que Clara bebesse o café. Em seguida José Alencar tomou a palavra e foi, passo a passo, contando a história de como ela, Clara, foi parar nas mãos do casal e posteriormente criada por ele e Donana. De tempos em tempos, Donana contava alguns fatos que José Alencar havia omitido, sem que houvesse, em momento algum, desacordo entre os relatos de um e de outro. Contou-se, com minúcias, a febre que apareceu. Donana já estava nas últimas semanas de gravidez, a perda da menina que nasceu morta após a cesariana e também a retirada do útero. A história ouvida agora, através dos dois, foi a mesma que Piquira havia contado a Clara, por ouvir dizer. De tempos em tempos José de Alencar fazia uma pausa, tecia alguns comentários, falava sobre outro assunto ou era interrompido por algumas palavras da esposa. 132 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 132 23/12/2009 15:34:14 Aos poucos, parecia que Clara foi ficando mais calma, apesar de sempre estar muito atenta e com os olhos presos no pai ou na mãe. José Alencar continuou: — Ao perder a filha, Donana, nós dois, ficamos muito tristes. Não foi? disse, virando-se para Donana. — E como sofri. Esperava tanto o nascimento de uma filha. — Além de tudo, — José Alencar continuou: —ela não poderia mais ter outros filhos. Nessa ocasião, o médico dela, Dr. Cegonha, esqueci o nome dele, era assim que era e é chamado, o mesmo que fez o parto de Plínio, fez um parto de uma mulher — cujo marido havia fugido com outra — que já tinha tido vários filhos, a maioria dos quais havia morrido, mas tinha ainda dois meninos vivos. Ela não queria mais filhos, muito menos uma menina. Conversando com Dr. Cegonha, ela confirmou que desejava doar a criança para adoção por alguma família que pudesse criá-la com carinho. Não foi assim, Donana? — Sim, isso mesmo. A história contada por José Alencar e Donana coincidiu em tudo com a relatada por Piquira, o homem que afirmou ser o pai biológico de Clara. Transtornada, naquele instante Clara começou a buscar e a descobrir semelhanças físicas entre o homem que havia aparecido em sua casa e falava ser seu pai, e ela, bem como entre ele e Plínio. 133 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 133 23/12/2009 15:34:14 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 134 23/12/2009 15:34:14 12º Capítulo A caçada de Piquira Sem ter para onde ir, sem lugar para morar e comer, Clara, de comum acordo com Mozart, convidou seu pai a morar com sua família, o que foi prontamente aceito. Assim, a partir dessa visita inesperada, Piquira passou a morar na casa com Mozart e Clara. Como a casa era pequena, mal cabendo o casal, o filho e a babá, foi necessário criar um lugar para Piquira morar. Para isso, ajudado como sempre por José Alencar, operários contratados por ele construíram em poucos dias, no espaçoso terreno existente nos fundos da casa, um barracão formado de um quarto e banheiro. Em seguida, para alívio de Clara, Piquira foi alojado, feliz da vida, na sua nova residência, levando para dentro da mesma todas as suas tralhas. Logo que o barracão foi inaugurado, não se sabe por que, ele se tornou um habitat de ratos, lagartixas, pombos, gambás, morcegos, borboletas, bruxas, sapos, rãs, escor- 135 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 135 23/12/2009 15:34:14 piões, baratas e vários outros insetos, répteis, aracnídeos, aves e mamíferos. Essa circunstância negativa que se instalou nos fundos da residência da família, por outro lado transformouse, para o hóspede do barracão, em continuada alegria e divertimento. Piquira, como ele próprio havia dito, viveu um longo tempo de sua vida no meio do mato, junto a vários animais. Sua atividade constante era caçar aves, mamíferos, répteis, batráquios, ovos e mesmo alguns insetos que serviam de alimento para ele e a mulher. Nas suas andanças, acompanhado de Marina, colhia também frutos e raízes alimentícias e curativas. Os animais mortos, bem como os capturados, além dos vegetais colhidos, eram utilizados como alimento para o casal ou como curativos para sua saúde. Os que sobravam, que não eram ingeridos nem usados, eram vendidos na cidade mais próxima de onde estavam. Agora, morando no barracão sozinho, e como este se transformou num criador de pequenos animais, Piquira, acostumado a caçar e a colher, sem outra coisa melhor a fazer, retornou às suas antigas atividades. Passava boa parte do tempo sempre animado, perseguindo e caçando os bichos que compartilhavam com ele da mesma moradia. Para realizar suas caçadas, Piquira usava ora sua velha espingarda, ora seu facão enferrujado, ou o porrete construído por ele mesmo de braúna e uma bengala de jacarandá. A caça aos bichos seguia um ritual próprio, ou seja, não era realizada em qualquer dia, a qualquer hora ou de qualquer modo. 136 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 136 23/12/2009 15:34:14 Tudo era preparado com antecedência, como um acontecimento importante e extraordinário e, para isso, necessitava ter dia e hora marcados previamente, devendo também seguir um roteiro determinado e que precisava ser cumprido como foi prescrito pela cerimônia. Geralmente o espetáculo da caçada aos bichos era realizado durante o alvorecer, isto é, minutos antes do sol aparecer no horizonte. Às vezes no lusco-fusco do anoitecer, logo que o sol começava a se pôr atrás dos montes que ficavam atrás da casa. Mas como todo espetáculo, a “caçada” de Piquira exigia também, além do roteiro rígido, vestimentas e adornos especiais para aquela memorável manhã ou anoitecer. Para isso, algumas horas antes da encenação do teatro do absurdo, Piquira solenemente tirava do saco encardido, que fora guardado dentro de uma velha canastra, calças especiais fabricadas por ele mesmo feitas de couro de raposas caçadas há muito tempo. Um odor nauseabundo e insuportável exalava das calças imundas fabricadas por ele com o couro. As calças, guardadas de qualquer modo e uma vez retiradas do saco de tralhas, eram esfregadas por Piquira fazendo uso do pano usado para limpar o chão da casa. Em seguida enfiava as calças de couro, perna por perna, em cima das calças que estava vestindo, amarrando-as com cordões de couro em volta de sua pequena barriga. Uma vez vestidas as calças fedorentas, revirava seus pertences, retirando de dentro do saco um par de botas também imundas. 137 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 137 23/12/2009 15:34:14 Estas, uma vez limpas com o pano de chão, eram solenemente calçadas com esmero, enfiando a parte distal das calças de couro dentro do cano das botas. Mas a fantasia necessária para a caçada não acabava aí. Para caçar era também necessário o uso de um chapéu: este nada mais era do que uma longa tira de couro esverdeada, dando algumas voltas em torno do couro cabeludo do caçador. As tiras se afinavam dos dois lados distais, formando cordões finos que serviam para amarrar as tiras e assim prendê-las na cabeça de Piquira. No chapéu improvisado construído na hora, prendiam-se enormes penas pretas guardadas também no saco, que foram removidas de urubus mortos pelo caçador. Para complementar esses ornamentos ou enfeites indispensáveis usados nos momentos solenes e importantes da vida, Piquira, como todos nós, esmerava-se com respeito à beleza e ao simbolismo da face e do tronco desnudo e, para isso, se enfeitava de listras: as vermelhas, confeccionadas com urucum, as escuras, fabricadas com tinta preta usada para tingir roupas e por último as listras brancas, produzidas com alvaiade. O conjunto de condutas solenes exigidas precisava ser seguido conforme regras estritas, adequadas e próprias para cada fim desejado. Desse modo, uma vez estando o caçador enfeitado adequadamente, tornava-se necessário prepará-lo com as armas poderosas, para que o mesmo pudesse sair vitorioso do grande embate que travaria em seguida, pois os inimigos já estavam à espreita e prontos para a luta. 138 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 138 23/12/2009 15:34:14 Piquira retirava do saco a pólvora e o chumbinho, que eram colocados no local apropriado da velha, cansada e enferrujada espingarda. O facão, uma vez retirado do saco e após ser lavado, era amolado na pedra de ferro. Finalmente retirava do saco o porrete escuro de braúna e um outro menor, também escuro, de jacarandá, que lhe serviria de bengala. Uma vez vestido a caráter e bem armado, nosso herói se sentia preparado e pronto para a luta de vida ou morte. Era assim que Piquira, de armas nas mãos, dava profundas respiradas, provocando um barulho estranho e ameaçador que podia ser ouvido muito longe, simbolizando que, a partir daquele instante, espíritos protetores e poderosos estavam se alojando e defendendo sua alma contra os inimigos que encontraria daqui a pouco. A cerimônia inicial, exibida como prenúncio da caçada, estava chegando ao fim. Sob o olhar desconfiado dos ratos, sapos, lagartixas e outros animais, Piquira, após beber alguns goles de cachaça, dançava no terreiro da casa por minutos, às vezes por horas. Nesses momentos ele cantava melodias ininteligíveis, acompanhadas por sons produzidos por ele mesmo através de batidas de palmas ou de pedaços de madeira uns contra os outros. Através desse ritual, Piquira recebia mais forças exteriores, poderosas o bastante para fazê-lo vencer os inimigos ferozes e temíveis que seriam enfrentados dentro em pouco. Num copo sem lavar e encardido, mais uma vez uma pequena quantidade de cachaça era colocada e imediatamente ingerida em quase sua totalidade. 139 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 139 23/12/2009 15:34:14 O restante, deixado no fundo do copo, era jogado no chão do quarto para os deuses vigilantes e protetores. Quando tudo já estava preparado, antes de entrar na arena onde seria realizada a caça, um local que de fato nada mais era que, nos outros dias, seu quarto de dormir, Piquira fazia várias flexões do tronco. Nessa ocasião ele chegava quase a encostar a cabeça no chão, dando as costas para o Sol que nascia ou se punha no horizonte distante. Ao entrar no campo de batalha ele dava gritos e berros e após executar movimentos corporais rítmicos, deixava o porrete maior encostado atrás da porta. Desse modo, armado com a espingarda na mão esquerda e o porrete pequeno na mão direita, Piquira entrava no barracão iniciando a terrível batalha que durava toda a noite ou todo o dia. Examinando cuidadosamente cada sinal do inimigo, nem sempre escondido, Piquira sabia que agora estava pronto para atacar ou fugir do feroz animal que habitava aquela selva perigosa. De tempos em tempos ele escondia-se atrás da cama onde dormia e ali ficava, por minutos, quieto, na tocaia, preparando-se para atacar o inimigo de surpresa. A caçada, se realizada à noite, só terminava quando o dia amanhecia. Neste caso, sem acender a luz, ele usava uma vela ou uma lanterna para focalizar o perigoso inimigo. Para atrair o animal, muitas vezes ele não só imitava os “chamados” de acasalamento, como também deitava-se no chão, agindo como se estivesse morto, prendendo a respiração ou respirando muito suavemente, permitindo assim que ratos e gambás se aproximassem e pudessem ser pegos com suas próprias mãos. 140 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 140 23/12/2009 15:34:14 Também armava arapucas e outras armadilhas e nestas prendia ratos, mariposas, rãs, pintos e galinhas que haviam entrado no barracão em busca de algum alimento. O porrete e a espingarda pouco eram usadas. Piquira tinha preferência por pegar o bicho “às unhas”, fingindo-se de morto ou preso através das armadilhas. Quando conseguia pegar algum animal usando apenas suas mãos, seu grande prazer era esmagá-lo, esganando-o, até perceber que ele estava completamente dominado e morto. Piquira, nesses momentos, dava urros, tinha todo o corpo contorcido à medida que percebia que o bicho estava preso e estrebuchando, diante do poder de sua mente e enviado às suas poderosas e potentes mãos. Às vezes, durante essas matanças, ele chegava a ter orgasmos altamente prazerosos. Depois de estrangular o animal com as mãos, este era jogado ao chão já morto e só nesses momentos Piquira usava o porrete ou a espingarda: as armas serviam muito mais como rituais simbólicos de sua força e poder. Uma vez terminada a matança de ratos, sapos, lagartixas, bruxas, morcegos, escorpiões, isto é, de todos os animais caçados e mortos, estes eram colocados dentro de uma panela existente no terreiro da casa. A panela ficava dependurada no meio de uma barra de ferro comprida, barra essa que se apoiava, em cada extremidade, em duas forquilhas que sustentavam a barra e a panela. Em baixo da panela dependurada, era acesa uma fogueira improvisada. Os animais mortos, todos eles misturados, eram então cozidos na panela colocada na fogueira, sempre temperados com sal e limão capeta, este último colhido no próprio quintal da casa de Clara. 141 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 141 23/12/2009 15:34:14 A panelada cheia de iguarias indigestas e repugnantes, após preparada era ingerida com inusitado prazer. Após se fartar da estranha comida, composta de carne, ossos, penas, peles, intestinos, asas de insetos, etc., Piquira improvisava uma cama ao lado da fogueira após beber sua última dose de cachaça. Permanecendo ali deitado, dormia feliz e bêbado até quando o sol já estava alto. Nesse momento, ele penetrava no seu barracão para continuar o seu sono e sonhos reparadores. Quando Piquira caçava seus animais com todos os rituais descritos, todos em casa, bem como os vizinhos, espantavam-se com esse estranho comportamento. Mas aos poucos, como tudo na vida, ninguém mais se importava com seus urros, suas roupas de guerra, seu fogão para assar ratos ou gambás. Ele, que quase não saía à rua, passava parte de seu tempo deitado no chão em cima de um colchão velho e sujo, ou caçando animais que eram vistos por ele como perigosos inimigos, prontos e capazes de matá-lo, caso ele não fosse bastante esperto e também um excelente caçador de feras perigosas. A princípio, Clara espantou-se com a conduta do pai, mas também se acostumou. Seu filho, ainda muito novo, inocentemente se aproximou do avô, que o tratava bem e conversava muito com ele. Entretanto Zilah, que estava sempre por perto e vigilante, tinha muito medo de Piquira. Certa vez, quando ela estava no terreiro da casa arrumando um varal para colocar as roupas para secar, pediu a ajuda de Piquira para espichar uma das cordas. 142 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 142 23/12/2009 15:34:14 Num certo momento, as mãos de Zilah, sem que ela quisesse, ao fazer certa força escorregou e tocou levemente a mão de Piquira. Este, repentinamente, tornou-se um outro homem: segurou de uma só vez a mão de Zilah que, sem ela querer, havia esbarrado nele. Sem maiores explicações, ele começou a apertar cada vez mais a mão de Zilah com suas poderosas mãos, as mesmas com que estrangulava os animais. Inicialmente, sem imaginar quais eram suas intenções, ela apenas lhe pediu que a largasse. Possesso, transformado em outra pessoa, foi apertando cada vez mais a mão da moça. Ela fez um enorme esforço para escapar e, por sorte, a mão de Zilah estava molhada de sabão e acabou se soltando das garras de Piquira. Em seguida ele nada fez, ficou parado como estava antes dela tocá-lo, como ocorre quando se toma um choque e de repente ele acaba. Tudo parecia normal, como se nada tivesse acontecido. Piquira havia retornado à sua normalidade costumeira, uma pessoa inofensiva desde que não tocassem o seu corpo. A partir dessa experiência desagradável, Zilah procurou manter-se afastada dele, imaginando que ele queria agarrá-la no sentido de conquistá-la, para aproveitar-se dela sexualmente. Dias depois o mesmo fato aconteceu, só que dessa vez a vítima foi o menino Plínio. O menino estava brincando no terreiro junto com Zilah. Num certo momento, a pequena bola com que brincava, rolou um pouco mais longe entrando no quarto onde Piquira estava deitado. Plínio pegou a bola que rolara no chão e vendo o avô deitado e olhando para ele, decidiu mostrar-lhe a bola que tinha entrado ali. 143 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 143 23/12/2009 15:34:14 Para isso, chegou bem perto dele. Ao mostrar a bola, explicando para o avô como ela tinha ido parar ali no quarto, o corpo da criança roçou o corpo do avô. Nesse instante, como que possuído por alguma força misteriosa, agarrou o pescoço do menino, apertando-o para estrangulá-lo. Plínio, apavorado, ainda teve tempo de iniciar um grito de dor e desespero, à medida que estava sendo enforcado pelas duas mãos de Piquira. Zilah, que estava perto, ouvindo os berros imediatamente entrou no quarto e com ódio e força pegou o porrete de braúna que estava visível e lhe deu uma violenta porretada na cabeça. Piquira soltou um grito lancinante de dor, largando imediatamente o pescoço do menino que estava sendo esganado. Plínio, quase desmaiando, correu em direção à sua salvadora. Após dar o terrível grito de dor, Piquira retornou ao seu estado normal e a todo o momento passava as mãos na cabeça. Pensativo, olhou para Zilah com indiferença, em seguida virou-se na cama, dando as costas para a moça, como se fosse dormir. Zilah correu com o menino nos braços em direção a Clara. Plínio continuava a gritar de desespero. Só com muito custo conseguiram acalmá-lo. A partir desse fato os cuidados com o filho foram aumentados e todos tinham pavor de encostar-se em Piquira. Tempos depois, José Alencar, que se inteirou do ocorrido, obteve outras informações a respeito da conduta de Piquira. Os boatos diziam que ele já teria matado, esganando, não apenas animais, mas também pessoas, inclusive a mulher com quem vivera e que, segundo ele contou, fugira com Ratinho. 144 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 144 23/12/2009 15:34:14 13º Capítulo O tempo passa: decifrando o mistério Os dias, meses e anos foram se passando. Mozart continuava a viver de sonhos que nunca se realizavam. Clara dirigia a casa, cuidava do filho e das finanças vendendo doces feitos por ela mesma: goiabada, doce de leite e de manga, com as frutas e o leite que vinham da fazenda. Parte do dinheiro recebido era dado ao marido, que ainda não arrumara um emprego. Este, apesar de ser formado em letras, jamais conseguiu dar aulas de português nos colégios da cidade por mais de dois ou três meses. Não tolerava a ignorância dos alunos e dos professores. Piquira, cada vez mais decadente, continuava sua vida de caçador semanal ou mensal. Pouco incomodando, cada dia mais sozinho, por sua vez não mais perturbava ninguém. Plínio, filho de Clara, já tinha completado dezesseis anos: era um rapaz estudioso, bem-educado e sensível aos problemas dos outros, mas que tinha pouca participação nas brincadeiras e jogos dos colegas e vizinhos. 145 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 145 23/12/2009 15:34:15 Como sua mãe, levado por José Alencar ele preferia passear na fazenda que frequentar as festas da cidade ou a casa dos parentes. Mais preso à mãe, ele ficava a cada dia mais distante de Mozart. José Alencar continuava visitando constantemente a filha adotiva, levando para ela os suprimentos da fazenda, pagando as dívidas do casal e ao mesmo tempo orientando-a quanto à maneira de viver e de educar o filho Plínio. Como sabia que Donana não gostava dela, Clara evitava ir à fazenda quando ela estava lá. Entretanto bastava Donana viajar, para que Clara imediatamente para lá se dirigisse, sendo que muitas vezes por lá ficava por dois ou mais dias com o pai adotivo. Mozart não se importava com suas idas, talvez até achasse bom, pois ficava mais à vontade em casa e na rua. Para tristeza de Clara, Donana viajava cada vez menos. A mãe dela morrera após permanecer acamada por um longo tempo em virtude de um derrame. Agora as viagens de Donana eram mais raras, apenas quando ia visitar o filho e os netos que moravam em Brasília. Pedro era o único filho do casal José Alencar e Donana que vivia com os pais e mesmo assim continuava a morar na casinha/rancho existente a seis quilômetros da sede da fazenda. Morando longe e sem o que conversar com os pais, raramente vinha visitá-los e quando aparecia, permanecia pouco tempo na sede. Ele ali ia sempre com algum fim determinado: comunicar ao pai sobre uma vaca doente, um barranco caído impedindo a passagem pela estrada, uma sugestão para plantar ou deixar de plantar uma coisa ou outra. 146 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 146 23/12/2009 15:34:15 Carinhosamente trazia para a mãe alguma fruta que apanhara no mato, mais rara e bonita, ou também orquídeas que eram vistas, todas lindas, com frequência, através das capoeiras da fazenda. Acostumado à vida do campo, deitando-se e levantando-se cedo com atividades continuadas durante todo o dia, Pedro, satisfeito com sua vida, quase não ia à cidade, a não ser para adquirir o necessário para sua sobrevivência, como mantimentos, remédios para o gado, ferramentas, alguma consulta com o veterinário e outras coisas parecidas. Pedro ainda não havia casado, mas frequentemente na sua casa era notada uma presença feminina, pois uma amiga ou outra iam visitá-lo, ficando horas, ou mesmo dias, em sua companhia. Mas ele só aceitava moças que gostassem de trabalhar no serviço duro e interminável da fazenda. Expulsava todas as preguiçosas ou de mau caráter, como ele categorizava as que não gostavam do serviço duro e pesado da fazenda. Nas suas idas à cidade, apesar da grande amizade que os unia desde criança, com o casamento de Mozart e Clara, sua irmã de criação, seus encontros foram diminuindo com o afastamento físico. Quando encontrava Mozart, estes eram quase sempre superficiais. Poucas vezes ia até a casa de Clara e Mozart, apesar do convite de ambos. Essas visitas eram raras e de curta duração, as conversas versavam geralmente sobre a infância, a juventude que eles passaram juntos, as namoradas, a primeira transa e os planos sempre grandiosos e sonhadores dos jovens. 147 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 147 23/12/2009 15:34:15 Como sempre, para não fugir à regra, Mozart precisava mostrar para o amigo dileto as novas e também as melhores poesias que ele produziu. — Essa aqui: olhe e leia. Não! É melhor eu ler para você. Gostei muito dela. Acho que você também irá gostar. Penso em entrar num concurso de poesias que será realizado em Brasília, as inscrições já foram abertas, talvez entre num em São Paulo, mas esse vai demorar mais. Até lá farei outras poesias e pintarei um ou dois quadros. Você vai ficar emocionado com ela. Pedro, apressado e aborrecido ao mesmo tempo, tinha dificuldade de ir contra os desejos e entusiasmos do amigo, além disso tinha dó da vida que ele levava. Por tudo isso, contrariado, Pedro ouvia a poesia declamada com entusiasmo pelo amigo. Entretanto, por mais que se esforçasse não conseguia prestar atenção a um único verso, não sentia a menor emoção durante a narração, ficando difícil para ele comentar com o poeta alguma coisa interessante. — É... essa é muito boa. Penso que você ganhará o concurso. Nesses momentos lembrava de Dr. Milton, que dizia que certas pessoas precisam da mentira para viver, pois não têm condições psicológicas para suportar a verdade. Ele jamais se emocionou com as poesias ou quadros do artista. Apesar do fanatismo de Mozart pela poesia e pela glória futura com a qual sonhava, por outro lado Pedro era bastante indiferente à literatura de modo geral, pouco ou quase nada lia, detestava ler até as notícias publicadas nos jornais e que poderiam ser de interesse para ele. 148 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 148 23/12/2009 15:34:15 Avesso à leitura, jamais lia um folheto informativo por mais interessante que fosse, mesmo os relativos a problemas que enfrentava, como a plantação de um tipo de capim para o pasto, uma doença que estava atacando seus animais e assim por diante. Parecia que, apesar de sua inteligência ser normal ou acima da normal, ele só compreendia e raciocinava com estímulos auditivos, isto é, as conversas que ouvia. Por outro lado, desacostumado de ler, quando forçado ou livremente começava a ler, os sinais das letras, palavras e frases não lhe forneciam nenhum sentido, não se relacionavam com nenhuma outra experiência sensorial ou auditiva. Sendo assim, cada vez mais Pedro evitava ler qualquer tipo de escrita, pois nada entendia do que lia. Mas Pedro interessava-se pelo bem-estar de Mozart e desejava que seu amigo realizasse seus sonhos e fosse reconhecido como um grande poeta. Pisando em terra firme, Pedro não acreditava que o imaginado por Mozart fosse se realizar. Apesar de trabalharem com planos e objetivos muito diferentes, os dois continuavam bons amigos. Pedro, mesmo torcendo honestamente para Mozart obter sucesso, não se interessava, nem achava a menor graça no que ele fazia. Eram bons, grandes e leais amigos, conservavam a amizade dos tempos de criança, mas ele fingia que gostava para não desagradar ao amigo. 149 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 149 23/12/2009 15:34:15 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 150 23/12/2009 15:34:15 14º Capítulo A revelação: suspeita e confirmação Na fazenda, curioso, Pedro às vezes perguntava a seu pai como estava o casal Mozart e Clara. Notava claramente que José Alencar evitava falar sobre eles, no máximo comentava a respeito do menino e de Clara. No feriado da Sexta-feira Santa, Pedro, após passar mais de uma semana sem visitar seus pais, no fim da tarde decidiu ir dormir na sede da fazenda. Ele dizia que de forma nenhuma trabalharia na Sexta-feira Santa. Seguindo esse princípio, nesse dia santo não tirava o leite das vacas, deixava os bezerros mamarem à vontade. Além do mais, a cooperativa onde o leite era entregue todas manhãs não funcionava naquele dia. Pedro tinha o propósito, quando retornasse da sede para seu rancho, de levar o trator do pai para consertar alguns trechos da estrada. Devido à chuva continuada que havia caído, houve queda de barrancos que obstruíram várias passagens. 151 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 151 23/12/2009 15:34:15 Ao chegar, estranhou a ausência de sua mãe na fazenda e só depois soube que Donana fora a Brasília passar a Semana Santa na casa do filho. Ao encontrar Clara na fazenda, ficou sabendo que ela decidira passar o fim de semana junto ao pai, sem ter levado Plínio e sem a companhia do marido. Apesar de não se preocupar com detalhes, nesse dia, automaticamente mais atento com os fatos observados, ele relacionou a presença da irmã na fazenda com outras situações vivenciadas semelhantes e a estreita ligação entre seu pai e Clara. Não tinha provas concretas, mas a ligação entre os dois parecia ser exagerada. A liberdade que Clara tinha com José Alencar era muito grande e diferente da conhecida por ele com respeito a pai/filha. Apesar disso, Pedro forçava seu pensamento em outra direção, tentando imaginar que tudo aquilo era uma suspeita tola de sua parte. Sua cabeça girava, ora para o lado da desconfiança, ora para o de confiança em seu pai e na irmã de criação. Estava tenso e se perguntava: — Será que meu pai e Clara estão traindo meu amigo Mozart? — O que devo fazer? Ficar quieto, ou tomar alguma atitude? Ao encontrar seu pai e Clara, Pedro conversou com os dois, fingindo naturalidade. Sem querer, imaginou que os dois se assustaram com sua presença inesperada naquele fim de tarde. Ele não sabia que eles, sem o desejar, haviam transmitido pistas para ele. 152 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 152 23/12/2009 15:34:15 Aprofundando seus pensamentos, Pedro imaginou que eles pareceram não ter gostado de sua presença. — Será que atrapalhei um encontro dos dois? Pedro continuava a martelar sua cabeça com esses pensamentos, sofrendo com suas próprias fantasias. Para refrescar a cabeça, largou os dois assentados na varanda da fazenda, desceu as escadas e foi verificar se o trator estava funcionando bem. Para isso Pedro andou uns trinta metros até chegar à garagem onde o trator ficava guardado. Ligou-o, andou para a frente e para trás, percebendo que não havia nenhum problema no seu funcionamento. Após guardar o trator na garage, decidiu observar no curral, localizado ao lado, alguns bezerrinhos recém-nascidos que ainda não conhecia. Nesse instante encontrou um vaqueiro que estava guardando as ferramentas após terminar seu trabalho do dia santo. Iniciou com Raimundo uma conversa aparentemente sem objetivos diretos, fazendo uma e outra pergunta sobre o gado, o leite e a chuva, até chegar onde queria. Através de Raimundo, Pedro soube que Clara estava dormindo na fazenda desde quarta-feira santa. Que ela dirigia todos os dias o jipe de José Alencar até a cidade, para visitar e saber como o filho estava passando. Soube ainda que o restante do dia ela o passava na fazenda com José Alencar e que os dois frequentemente saíam de jipe para as várias partes fazenda, sempre alegres, sorridentes e felizes. Nessa noite Pedro jantou sem fome a comida feita por Clara. 153 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 153 23/12/2009 15:34:15 Ele não se sentia integrado às conversas do pai com Clara. Apoiado em suas suspeitas, passou a observar pequenos comportamentos dos dois, um olhar, um tom de voz, um oferecimento, como indícios de que havia algo mais do que uma simples relação de pai e filha. Sentindo que atrapalhava o que eles tinham programado, Pedro, cada vez mais desconfiado da maneira de um tratar o outro, e sem saber o que conversar com os dois, decidiu ir se deitar mais cedo. Ele temia ser verdadeira a suspeita imaginada por ele e esforçava-se para tirá-la de sua mente. Uma vez deitado, tentando parar de pensar na relação de Clara e seu pai, por mais que se esforçasse Pedro não conseguiu dormir como queria. Transtornado, após ter tirado uma primeira soneca muito leve, acordou com o barulho de conversas e risadas contidas que vinham do lado da cozinha onde eles estavam. Os sons, tanto das conversas entre os dois, apesar de serem num tom baixo, como as risadas de Clara, contidas e nervosas, podiam ser ouvidos com nitidez no quarto onde Pedro se deitara. Todos os dormitórios da casa se situavam em torno da sala de jantar. Pedro, deitado num desses quartos, durante a noite só escutava, fora a conversa de ambos, o tic-tac do relógio dependurado na parede da sala. O calor era intenso, um mormaço abafado invadia o quarto todo fechado onde Pedro se deitara, pois só assim evitava ser picado à noite por pernilongos famintos. 154 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 154 23/12/2009 15:34:15 Tendo a boca seca, levantou-se e caminhou em direção à cozinha em busca de um pouco de água da geladeira. Seu pai e Clara, sem perceberem sua aproximação, continuaram suas conversas e brincadeiras bastante descontraídas. Para chegar até à geladeira Pedro saiu do quarto sem acender as luzes da sala, pois a luz muito clara da cozinha clareava o caminho que teria que percorrer. Caminhou em direção à cozinha onde os dois conversavam. Para isso tinha que caminhar através de um corredor comprido, ligação da sala de jantar com a cozinha, iluminado apenas pela luminosidade proveniente da cozinha. Após caminhar um pequeno trecho, quando estava quase entrando na cozinha, ainda no escuro, Pedro pôde enxergar, sem ser visto, que Clara e José Alencar estavam abraçados e se beijando. Ao escutar um possível barulho vindo do corredor, os dois rapidamente se afastaram um do outro, retornando à conversa anterior como se nada tivesse acontecido, olhando, de soslaio, em direção do corredor por onde Pedro caminhava, mas que não estava visível. Assustado diante do que viu e percebendo que os dois estavam se afastando, Pedro deu um passo rápido para trás, fugindo desse modo do ângulo no qual podia ser visto da cozinha onde o casal estava. Após alguns segundos de apreensão esperando a chegada de Pedro, a única pessoa que estava na casa além deles, e não percebendo nenhum barulho nem a presença de alguém, José Alencar e Clara reaproximaram seus corpos, voltando aos abraços e beijos, indiferentes por um longo e bom tempo. 155 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 155 23/12/2009 15:34:15 Pedro, com o coração disparado, sentindo crescer a secura na boca, transtornado e pisando devagar nas pontas dos pés, retornou ao quarto de onde viera sem fazer barulho algum. Abriu a porta e ao entrar com extremo cuidado, atrapalhado por sua tremedeira nas pontas dos dedos, fechou o quarto sem provocar suspeita. Encostando os ouvidos na porta, tentando ouvir e decifrar os sons vindos de lá, assim permaneceu por muito tempo. Escondido atrás da porta do quarto pôde se certificar que pouco depois Clara, após ir ao banheiro, se dirigiu ao quarto onde sempre, desde solteira, dormira. Em seguida seu pai, após apagar as luzes da cozinha e do resto da casa, também entrou para o quarto onde ela entrara momentos antes, um quarto que fora mantido e reservado somente para ela, mesmo após o seu casamento com Mozart. Confuso e irado, Pedro afastou-se da porta onde estava, não mais conseguindo dormir naquela noite reveladora. Seu coração batia desordenadamente, sua respiração estava ofegante, sua boca mais seca ainda. Tinha vontade de chorar de raiva e de desespero ao ver a irmã de criação dormindo com o pai dele, na ausência de sua mãe. Seu primeiro impulso foi ir até o quarto e colocá-la para fora de casa. Entretanto Pedro era uma pessoa controlada, muito raramente usava condutas dominadas por uma cabeça quente. Lembrou-se de outras ocasiões nas quais quis tomar atitudes intempestivas como a desejada agora, mas pensou melhor e uma solução apareceu menos drástica. Assim, intranquilo e sem dormir, pensou em bater na porta e pôr fim a tudo aquilo que o atormentava. 156 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 156 23/12/2009 15:34:15 Mas novamente criticou sua própria ideia. Além disso ele estava semi-paralisado, portanto incapaz de tomar qualquer decisão coerente. Depois de algum tempo desistiu de todas as ideias que lhe vieram à mente naquele momento trágico, evitando dessa forma tomar uma conduta precitada. Pensando assim, mais calmo, achou melhor esperar o dia seguinte, consultar seu “travesseiro”, pois talvez este lhe trouxesse alguma ideia melhor do que a que tivera. Pedro levantou-se, ou melhor, saiu da cama ainda muito cedo pois não dormira nada. Sabendo que seu pai se levantava antes do sol nascer, decidiu esperá-lo para assistir à saída dele do quarto de Clara. Às cinco horas da manhã ouviu os primeiros sons vindos do quarto em frente ao seu, onde os dois dormiram. Esperou com ansiedade aquele momento. Seu corpo tremia todo. Ainda não sabia o que iria fazer, pois não conseguira estabelecer um plano em virtude de seu nervosismo. Num certo momento ouviu-se um barulho maior: a taramela tinha sido virada, forçando a porta a se abrir. José Alencar, com calma, abriu a porta do quarto, procurando não fazer o menor barulho. Após sair com todo o cuidado, fechou a porta da melhor forma possível, pois Clara não saiu da cama para tornar a passar a taramela. José Alencar percebeu que Pedro estava postado na frente da porta do quarto onde dormia. Assustou-se. Em seguida, como homem experiente e decidido, encarou seu filho e demonstrando calma e falta de medo, interrogou-o: 157 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 157 23/12/2009 15:34:15 — O que está querendo? Está me esperando? Levantou-se cedo. Hoje é dia de descanso... — Agora sei de tudo, - respondeu Pedro, num tom de voz demonstrando raiva e perplexidade. — Está sabendo muito tarde, continuou José Alencar, seguro. E continuou no mesmo tom: — Quer conversar? Se desejar, lhe darei mais explicações. Nesse momento, sem demonstrar nenhum constrangimento, segurou o filho pelo braço de maneira firme mas delicada, levando-o até a cozinha. Após acender a luz, retornou à sala para certificar-se de que Clara ainda dormia. Percebendo tudo calmo no quarto onde Clara dormira com ele, convidou o filho para assentar-se e andando de um lado a outro foi preparando um café para eles beberem. José Alencar tentou negar o acontecido, explicando que fora até o quarto de Clara a chamado dela. Segundo ele, Clara havia passado mal à noite e fora ajudá-la. Agora havia entrado para saber como ela estava. Pedro, mais corajoso devido à sua irritação, após ouvir o relato e sabendo que era mentira do pai, decidiu revelar o que presenciara. Aproveitou para descrever também suas desconfianças anteriores, ou seja, tudo o que lhe veio à memória naquele instante. 158 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 158 23/12/2009 15:34:15 15º Capítulo Encontro do pai e do filho: a confissão O encontro entre José de Alencar e Pedro foi tenso. Diante das informações do filho, impossíveis de serem refutadas, José Alencar continuou tranquilo e seguro. Ele parecia não estar emocionado, mas sim aliviado com a descoberta do filho. Ficou ansioso apenas no instante que viu Pedro em pé na sala, esperando-o sair do quarto de Clara. Logo que seu filho expressou o que tinha observado, a calma do pai retornou. Dava impressão de que José Alencar expressava até certo orgulho pelo ocorrido, agora do conhecimento de Pedro. Enquanto preparava o café, a conversa continuou: — O que quer saber? - perguntou José Alencar falando duro. — O que queria saber, já sei. Não sei se tenho direito de perguntar. — Não é tão espantoso assim uma pessoa perceber, ou descobrir, como você disse, que um homem sadio ame uma mulher sadia e bonita. 159 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 159 23/12/2009 15:34:15 — Mas o senhor é casado! Clara é sua filha, além disso é também casada! Casada com meu grande amigo! Isso faz a diferença. Para mim isso não é tão comum assim. Seria certo? — Não e sim. Tudo dependerá do ângulo pelo qual você irá examinar esse fato, das ideias iniciais do seu pensamento, dos princípios que você usa, das circunstâncias atuais e passadas. Eu tenho meus modos de avaliar esse fato. Penso com minha mente, naturalmente diferente da sua. — Está tudo confuso. Para mim vocês cometeram uma falta grave. Acho tudo isso muito errado. — Por acaso seria certo eu ter relacionamentos carnais com sua mãe, não tendo nenhuma atração física por ela? Saiba você que temos, após anos juntos, aversão física. Eu não iria sentir prazer em abraçá-la, beijá-la e rolar numa cama excitado com o seu contato físico. O mesmo acontece com ela. Isto já existiu durante anos, mas acabou. Não depende de nós querer retornar ao que já morreu. A atração física ocorre ou termina independente de nossos valores aprendidos socialmente. — Se forço minha mente, tentando representar ou imaginar uma relação sexual com Donana, sabe o que sinto? Sinto-me mal, asco, nenhum prazer, apenas uma aversão terrível. Meu organismo, por mais que minha cabeça tentasse, não aceitaria isso como agradável. Repito, a atração terminou para mim e para ela. Ninguém tem culpa. Seria absurdo e indigno para ela, bem como para mim, fingir que aprecio fazer sexo com sua mãe. Sinto-me mal só de pensar. Entendeu? 160 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 160 23/12/2009 15:34:15 — Mas esteve e está ligado a ela. Já a amou e gostou de abraçá-la. Agora simplesmente não mais aceita essa ideia. — Amor e atração física não são determinadas por regras éticas, sociais ou religiosas. Elas são comandadas por regras de nossa natureza e não do nosso código de ética ou de religião. Não sei se está me entendendo. Quem ordena tudo é todo o meu organismo e não meus pensamentos aprendidos numa sociedade hipócrita. Não adianta desejar conforme as regras da sociedade isto ou aquilo, forçar uma conduta que eu me sinto mal em realizar. É como querer forçar um boi de raça a cruzar com uma égua. Os organismos de um e de outro se repelem, como o meu e o de Donana. — Nesse caso, a maioria das pessoas deveria trocar de parceiros constantemente, logo que o organismo se sentisse sem atração? — Talvez! Sei que existem outros fatores. Sei, também, que a atração que eu tinha por Donana acabou! Isso é mais fácil de saber, pois basta perguntar ao meu corpo. — Se vocês não se gostam mais, deviam se separar. — Porque perdi minha atração física por ela, não indica que eu deixei de gostar dela como pessoa, amiga, mãe dos meus filhos, que nunca me fez nada de mal. Você não entendeu! Ela nunca foi e nem é minha inimiga. Não quero lhe fazer mal! Ao contrário, gosto muito dela como pessoa, agora como uma grande, talvez a melhor amiga que tenho. Seria absurdo para mim deixá-la, se continuo a gostar dela. 161 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 161 23/12/2009 15:34:15 — Gosta? E não tem atração física? — Isso mesmo. Aproximamo-nos de uma mulher ou de qualquer outra pessoa devido a um amor tipo amizade, gostamos da maneira como a pessoa nos trata. Dessa forma gosto de vários homens. Mas há também uma outra atração, além da amizade. Trata-se de um amor carnal, do sexo, o que um homem tem geralmente por algumas mulheres e estas por alguns homens. Os homossexuais têm também essa segunda atração por alguém do mesmo sexo. Isso não vem ao caso que estamos discutindo. — Continuo discordando. Se gostamos de uma mulher, temos também desejo sexual por ela. — Nunca! Encontro-me com várias mulheres que gosto, bem como vários homens e jamais tenho desejo sexual por elas e eles. Por outro lado, já gostei carnalmente, tive atração física por muitas mulheres pelas quais, algumas delas, tinha até antipatia e mesmo raiva, isto é, não tinha a menor amizade por elas. Entendeu? O que devo fazer agora? Fingir como a maioria finge? Não sou homem para agir assim... — Isso é uma parte da história. — Pedro interrompeu a conversa e continuou: — Existe uma outra história talvez mais séria ainda. — Ainda não! Deixe-me terminar. Vamos encerrar o primeiro capítulo: eu e Donana. — Mãe sabe do que ocorre, ou está tudo escondido, como sempre aconteceu? — Mentira! Nunca escondi nada de ninguém. Você não quis ver. Estava e está tudo escancarado. 162 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 162 23/12/2009 15:34:15 Você faz parte dos que têm dificuldade de viver a verdade e dos que, para viver harmoniosamente, precisam da mentira. — Eu? De onde tirou isso? — De você e principalmente seu grande amigo Mozart. Isso é sabido por todos. Dr. Milton, que fala o que pensa afirma que seu amigo precisa, para viver, das mentiras, pois não suporta a realidade. Mozart só vive dos sonhos irrealizáveis. O que é um sonho irrealizável? Nada mais do que a mentira para se apoiar. Mas não vamos falar nele ainda. — Não sabia que o senhor me via assim. Mozart, eu notava. Sei que não gosta dele. — Sua mãe sabe de tudo! Talvez goste da maneira como administrei o meu relacionamento com ela e Clara. — Tudo? O quê? — Vamos com calma. Eu e sua mãe somos amigos; ainda gosto dela como amiga, não desejo mal a ela, já lhe disse! — Entretanto não se importa se é ou não vergonhosa a situação para ela: o marido tem uma amante diante dela. Pior ainda: na casa dela e com a filha adotiva. — Parece-me que para você não seria vergonhoso para ela e para a sociedade, caso eu saísse de casa, ou pedisse a ela para sair, deixando-a viver sozinha e abandonada, administrando mal o que ela nunca soube administrar. Mais tarde ficando na miséria e implorando a um parente uma ajuda para viver. — Porque você nunca a ensinou. — Ora, que bobagem. Aqui em Cachoeira do Assento sempre foi assim. 163 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 163 23/12/2009 15:34:15 — Existem fazendeiros, não fazendeiras mulheres. Clara talvez se torne uma delas, ela foi treinada por mim, desde cedo para isso. Assim é mais capacitada. Fui eu, desde quando ela era criança, que lhe ensinei a gostar, principalmente gostar, de mexer com a terra, plantar, cuidar de animais. — Para o senhor eram essas as duas únicas saídas: largá-la sozinha ou morar com Clara, afrontando-a. O senhor confessa que nunca viu outra saída melhor? Ou finge que nunca viu? — Não! Talvez exista. Essa me pareceu boa. É fácil falar acerca do que fazer. O difícil é se equilibrar diante de situações complicadas e difíceis. Você certamente sabe de outras soluções melhores. Uma delas é a clássica da qual nós já falamos: dos hipócritas que fingem ser santos. Largo minha mulher, abandono-a como inimiga que não é e passo a morar com a nova mulher. Esse modelo, como é muito usado, ninguém acha estranho. Para mim, além de estar me ajudando, penso que estou ajudando também sua mãe, Clara e Mozart. É um ponto de vista. Não sou o dono da verdade, do conhecimento. Sei que existem outros. Humildemente esse ponto de vista é o meu. Julgue-o como quiser. — Acredita sinceramente que está ajudando Mozart? — Por que não? — Penso o oposto: o senhor ludibriou Mozart. Desconheceu a existência de mãe e de Clara. Entregou-a para viver com um homem que para o senhor não tem nenhum valor. 164 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 164 23/12/2009 15:34:15 — Não é que não tenha nenhum valor. Talvez esse seja o erro pior que cometi. Preso às regras sociais que detesto e critico, conversando muito com Clara, resolvemos, de comum acordo, agir dessa forma. Você e eu, como todas as pessoas, sonhamos. Sofremos as pressões de dentro de nós mesmos, de nossa singularidade onde entra o sexo, idade, profissão, religião e outras crenças, além das condições atuais. Por outro lado, sofremos as pressões externas das regras de conduta que se esperam daquele indivíduo. Ora vamos para um lado, ora para o outro. Eu ajo mais segundo o princípio individual, o José Alencar mais real, o experimentado. Outros, ao contrário, seguem o social, fazem o que é esperado, a obrigação ou mesmo o imaginado lá longe, muito distante. — Quando o senhor entregou, repito, entregou Clara para Mozart, seguia as regras sociais, não as suas. — Concordo, esse foi meu grande erro. Sofri muito e ainda sofro com isso. As pressões sociais são terríveis. Poderia deixar tudo correndo ao sabor do vento, deixá-la ter o filho, criá-lo na fazenda ou ainda colocá-la para fora de casa, como inimiga, para justificar o ocorrido e continuar com Donana, fingindo um tipo de amor que não tenho mais. Muitos agem assim: expulsam a mulher de casa, abandonam-na como criminosas, safadas, sem-vergonhas ou outros termos pejorativos. Essa solução que dei não foi ótima. Mas diante do inesperado, a gravidez de Clara, não enxerguei outra melhor, uma que pudesse englobar meus desejos e os de Donana, de Clara, Mozart e do menino que ia nascer, somados às pressões da sociedade de nossa pequena cidade, cheia de preconceitos e valores arcaicos. 165 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 165 23/12/2009 15:34:15 — Não penso assim. Para mim, o senhor seguiu seus próprios desejos e não os dos outros. — Talvez tenha razão, todos nós só podemos agir conforme os conhecimentos que temos e quando esses mesmos conhecimentos aparecem, num certo momento, em nossa mente. Não posso raciocinar com sua cabeça, nem com a de sua mãe e de ninguém. Não posso resolver um problema com uma ideia, mesmo quando a tenho arquivada mas no momento de minha decisão ela não aparece em minha memória. — Nesse caso não há força de vontade ou determinação? Estamos sempre presos aos pensamentos que nos ocorrem num instante? — Claro! Mas quem gosta de palavras são os intelectuais como Mozart. Nós, mais burrinhos, vivemos da realidade, por isso vamos aos fatos, trabalhamos com o sentido, com a intuição e não com o intelecto. Mas jamais invejei um intelectual, ao contrário, tenho uma péssima ideia acerca deles. Quer saber da verdade dos fatos? Encontro-me e tenho relações íntimas com Clara desde seus quinze anos. Tentei ser bastante discreto no início, mas com o passar do tempo fomos nos acostumando. Sua mãe sabe de tudo como lhe contei. Meu casamento com Donana, no seu aspecto de atração física, já acabou há muito tempo. Devo lhe confessar: muito tempo, muito tempo mesmo, antes de minha paixão por Clara. De certa forma sua mãe, que nunca aprovou ou gostou de sexo, indiretamente me empurrou para cima de Clara — Como? 166 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 166 23/12/2009 15:34:15 — Evitando, de todos os modos possíveis, relacionar-se comigo. Ela não tem culpa nisso, foi a educação que recebeu. Para ela sexo é um ato feio, só possível após o casamento e apenas para procriar. Essas ideias foram sempre defendidas por ela. As minhas eram diferentes, sexo é uma forma de prazer. Sua mãe me forçou, através de subterfúgios diversos, para que eu saísse do quarto dela e dormisse no quarto de Clara. Chegou a dizer, nas horas das brigas, que ela, Clara, poderia me atrair mais que ela, já que eu gostava tanto de sexo. Falou outras coisas mais, tudo no momento de muita raiva, das brigas. Eu sei e compreendo. Entretanto, é nesses momentos que revelamos muito do que se acha escondido e não expressamos quando nossa censura nos domina. Ela me falou outras coisas de que tenho vergonha e que, por respeito a ela, prefiro não falar. — Terrível! Sinto-me mal em ouvir o que o senhor está me contando! Não imaginava nunca isso! — Com o passar do tempo Clara foi ficando como minha mulher. Sua mãe, por sua vez, tornou-se minha amiga, uma pessoa de quem gosto, que foi e é uma boa companheira. Como disse, há anos não temos relações sexuais. — Há anos? Como nós não ficamos sabendo? — Decidimos nada falar, também, para quê? — Para que nós soubéssemos. Fazendo parte da família poderíamos, talvez, dar alguma ajuda para vocês. — Acontece que Clara, que eu amava muito como filha e amiga, passou, com o tempo, a ser amada também como uma mulher que me atraía fisicamente, ou seja, com os dois tipos de amor: um de amizade e ternura — que 167 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 167 23/12/2009 15:34:15 tenho por você — e também o sexual, o físico, o que deixei de ter por sua mãe. — Muito estranho minha mãe aceitando isso! Não acredito! — Você acha que minto? Não preciso disso para viver. Já disse, não sou como seu amigo Mozart, que vive da mentira que ele mesmo fala para si próprio. Sei encarar a verdade sem ser derrubado por ela. Sempre enfrentei a realidade sem receio de ser massacrado. Voltando ao que dizia, tudo corria bem até que houve um problema sério. Apesar dos cuidados que tinhamos, Clara ficou grávida. — Ficou grávida? Fizeram um aborto? — Não, nada disso. Fizemos o casamento dela com Mozart. Tudo de comum acordo: eu e ela. — O quê? — Isso que você ouviu! Plínio é seu irmão por parte de pai. Gosto muito dele. Ele é meu filho! — O filho de Mozart então é, na realidade, seu filho? — Claro. Agora é que descobriu? Depois que falei? Nasceu sadio com oito meses. Não precisava prestar muita atenção para ver que havia alguma coisa errada. — É pior que pensava. Não imaginava que fosse tão longe. Tenho meus princípios também. Um deles é o de que devo ser leal aos amigos, ou seja, que devo falar com Mozart o que sei acerca do filho. — Pode falar. Usando este seu princípio de ser “sempre honesto”, você destruiria todo um castelo de areia construído pelo seu amigo. Em nome da “verdade”, acabaria com o falso alicerce, uma vida construída de fantasias. 168 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 168 23/12/2009 15:34:15 — Não percebe que ele precisa viver sob o manto da mentira? Ele não suporta a verdade. Você irá estourar seus pilares mais fortes: a fantasia. — É minha obrigação. — Voltaremos a esse ponto. — Por que Mozart se casou com Clara? Ele sabia que ela estava grávida? Perguntou Pedro. — Acho que não. Não contei. Mas convidei-o a casar com Clara, pois dessa maneira ele passava a ter uma vida mais confortável conforme seus sonhos. Ele é um eterno sonhador, gosta de uma vida boa: comer, dormir, fazer poesia, recitá-las e imaginar ser um grande homem... Eu lhe dei parte dessa vida, torná-lo um homem famoso não foi possível. Ajudei-o mais do que nunca. Só depois de casado ele pôde fazer, sem se preocupar com o futuro, o que sempre quis: compor suas poesias que ninguém lê ou escuta, ter um lugar para morar e o que comer. Ele pouco liga para Clara e para o filho, que ele acha que é dele. — Mas ele nunca desconfiou de nada? — Não sei. Caso tenha desconfiado, preferiu ficar calado, pelo menos tem sido seu comportamento até agora. Ela dorme num quarto e ele em outro. Eu vou, quase todas as manhãs, à sua casa. Quando lá chego, ele geralmente ainda está dormindo. Frequento sua casa também em outros horários. — Isso é um abuso! Inacreditável. Sinto-me mal de ouvir isso. Além de enganá-lo com respeito ao filho que não é dele, visita o filho e a amante na casa do tapeado, como se nada de errado estivesse acontecendo. 169 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 169 23/12/2009 15:34:15 — Não penso como você, que tem certeza do que pensa. Eu, pessoalmente, não sei se estou prejudicando ou ajudando Mozart. Não sei se sou seu maior amigo ou seu pior inimigo. Tudo isso depende do acontecimento focalizado. Não sei com seria a qualidade de vida dele sem minha ajuda. Sei que para ajudá-lo, como estou fazendo, estou ajudando também a mim. Às vezes, como agora, quando sua mãe fica fora da fazenda, Clara vem dormir aqui. Sua mãe, uma vez informada de sua vinda, nem discute e nem atrapalha o encontro. Acredito que para Donana seria mais trágico se ela se separasse de mim, do que viver dessa maneira: aceitando Clara e eu. Ela não sabe viver sozinha. Sendo dependente, está sempre precisando de alguém para orientá-la quanto às decisões, isto é, que a proteja e pense por ela. Muitos são assim. — Ela prefere ficar calada e quieta, fingir estar casada comigo do que separar-se. É uma opção. Não sei se há outra forma melhor de viver nas condições dela. Parece que nós, seres humanos, vamos, sem querer, arrumando a melhor solução para os nossos problemas, cada um a sua. Não há uma solução correta para todos os problemas e para todas as pessoas. — O que parece esquisito e desonesto para você, pode não ser o mesmo para outro. Para os olhos de um solucionador de fora, alheio às minúcias relacionadas às decisões, o que está sendo feito poderá aparentar ser absurdo e estranho. Entretanto, para as condições dos envolvidos, naquela situação e época específica, a estratégia escolhida pode ser a mais acertada ou, se quiser, a menos ruim. 170 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 170 23/12/2009 15:34:15 — Além de tudo, não há interesse nem meu, nem dela, como também não há nem possibilidade do casamento retornar ao que foi no início. Nosso casamento, como tudo nesse mundo, morreu para nós dois há muito tempo. José Alencar, à medida que falava, ia se sentindo cada vez mais aliviado. Ele pressentia que precisava contar para alguém sua segunda vida, a relação não revelada verbalmente, os anos vividos com Clara. Estava há muito tempo pronto para explodir. Sem querer, através de sua conduta ele contava para todos que tinham condições de enxergar seu grande amor por Clara, aparentando ser um amor de pai para filha. Também disfarçava seu amor por Plínio — na verdade seu filho — como se ele fosse apenas o filho da filha adotiva e de Mozart. Sempre quis cuidar de Plínio como seu filho e não como um filho que não pode saber que o é. José Alencar, mais calmo à medida que deixava suas ideias fluírem, foi descrevendo os fatos para o filho. Pedro, perplexo com o que ouvia, não sabia o que fazer. Ele também era muito amigo de Mozart, por isso sentia-se na obrigação de lhe contar tudo. — O que pensa fazer? Perguntou Pedro, sem saber o que falar. — Ainda não sei. Talvez deixar continuar tudo como está. No fundo sou também medroso. Não muito. Pode ser que um dia passe a morar com ela, constituindo uma família de fato e não disfarçada ou clandestina como esta. — Não seria melhor? Decidir e mostrar a realidade? Devemos ser, antes de tudo, verdadeiros. Você defende 171 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 171 23/12/2009 15:34:15 esse ponto de vista. Foi o que mais aprendi quando criança com o senhor, que sempre dizia: “Devemos falar a verdade”, não acha? — Ainda não sei, não decidi nada. Cheguei a procurar o advogado da cidade. Mas como todos, estou também preso às normas, às regras sociais, pois do contrário serei “excomungado” para sempre do convívio social. — Procurou Dr. Milton? Aquele bêbado irresponsável! — Ele mesmo, Dr. Milton. Ele tem a cabeça melhor do que quase todos os moradores daqui. Não sei se a bebida o ajuda ou o atrapalha. Para ele, segundo entendi e prestei bastante atenção, nem tudo deve ser dito, por mais verdadeiro que seja. Poucas pessoas suportam ouvir a verdade. A maioria escolheu viver no mundo da mentira, nos contos de fada. Parece haver uma atração dos homens pelo sobrenatural, pelo falso. Eu não sou pregador, não quero mudar o modo de pensar dos outros. Além disso já estou velho demais para ser modelo para os demais. — Isso é um absurdo. Meu primeiro impulso seria acabar, o mais depressa possível, com todo esse teatro, essa representação que o senhor, Clara e talvez Mozart, fazem. Eu, no lugar dele... Pedro interrompeu a frase no meio e, em seguida, continuou desolado: - Eu, de fato, não sei o que faria. — Ele não faria nada. É o que faz e sempre fez. Nada! Nas minhas conversa com Dr. Milton, tenho conversado com ele sobre isso, apenas com ele. Agora você sabe de tudo. 172 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 172 23/12/2009 15:34:15 — Quando o procuro, levo para ele algum dinheiro e alguns mantimentos para pagar a consulta que ele não cobra. É advogado, mas quase não tem clientes, só os muito pobres. — Como vai consultar com um traste desses? — Ele, para mim, é ainda melhor do que os não-alcoólatras, dos chamados sérios e acima de qualquer suspeita. Não gosto dos arrumadinhos, dos intelectuais. Já lhe disse, Dr. Milton, pelo menos eu acredito, conhece melhor o homem que nós, principalmente os presunçosos que vivem de ilusões. — A maioria procura se iludir de todas as maneiras, esses imaginam que têm muito mais capacidade que realmente têm. Eles não sabem que não sabem. — Queremos nos iludir? Todas as pessoas, segundo meu conhecimento, lutam pela verdade! — Nada disso! Para Dr. Milton nós devemos, para não atrapalhar a felicidade de grande parte das pessoas, – gente como Mozart e elas são milhões – ampará-las através do uso de palavras falsas, em resumo, dizer-lhes tudo aquilo que desejam ouvir, somente isso. Eles querem e precisam ser ludibriados para suportar a vida falsa que levam, enganando os outros e, principalmente, a eles mesmos. — Não estou entendendo mais nada. Isso vai contra tudo o que aprendi até agora. — Para que revelar para a pessoa que ela é medíocre? Escancarar para Mozart sua ingenuidade, desleixo, incapacidade ou impotência perante a vida? Para que ele faça uma poesia sobre isso, esquecendo em seguida tudo o que ouviu? 173 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 173 23/12/2009 15:34:15 — Continuo achando que é melhor ser honesto com ele que enganá-lo. Ainda estou imaginando que o melhor é contar tudo a ele. — Ele quer e precisa ser enganado. Não entende! Caso não seja enganado, ele perderá a identidade que construiu através de seus sonhos. Sem se apoiar na sua imaginação que não tem suporte real, ele se arruinará, brigará com todos, perderá a felicidade frágil que dá força à sua vida e também se desesperará ao perceber que não é como ele diz e conta para os amigos. Não sei se sozinho, quando conversa com ele mesmo, se nessas ocasiões continua a se tapear, como se descreve para os outros. — Mas poderá se recuperar e aprender com a queda das ilusões? Ainda estou em dúvida se conto, ou não, para Mozart, tudo o que sei, o que descobri e o que ouvi aqui nesse terrível dia. — Se você acredita que é amigo dele, não faça uma besteira dessas. O homem não quer perceber a sua real origem, não quer perceber a sua real família, não quer perceber sua real burrice. — Somos todos assim, uns mais outros menos. Mozart tem essa característica mais acentuada. Facilitamos a entrada de fantasias na ilusão de tornar mais fácil a vida. Vivemos de ilusões, mentiras, paixões e fantasias, pois precisamos delas para tolerar a vida realmente vivida. — Por isso os políticos a usam sem parar para que o povo possa dormir e trabalhar calmamente no dia seguinte. — Os religiosos – orientadores de alma – pregam há séculos mentiras e mais mentiras, forçando nossa natureza a agir contra ela em nome de princípios duvidosos. 174 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 174 23/12/2009 15:34:15 — Os comerciantes mentem para ganhar nosso dinheiro, para vender-nos artigos imprestáveis como ótimos e de excelente qualidade. Nós nos arrumamos, usamos roupas vistosas, fazemos a barba, as mulheres usam cremes, arrumam os cabelos, para se tornarem diferentes, deixando de lado o seu lado “natural”, pois só assim elas e os outros irão achá-las bonitas e vistosas. Todos nós acreditamos sem questionar nas propagandas lidas e ouvidas, os médicos mentem sem parar acerca de nossa saúde, quando ela já se foi. Os advogados mentem — e como mentem — na defesa de seu cliente ou na acusação do cliente do colega. Escondemos, através das palavras, a realidade que não suportamos ou que não deve ser exibida. Assim é o homem — concluiu desolado José Alencar, pesaroso de fazer parte desse grupo de animais e não de outro e continuou, já sem forças: — Somos um animal em busca da trapaça, por isso, desde cedo, lemos, ouvimos, assistimos novelas e filmes mostrando ficções, a não realidade. — Eu, como todos nós, participo desse jogo, estou vivendo da mentira. Agradeço a você, meu filho, que conseguiu fazer com que eu falasse a verdade nessa manhã. Vivemos apoiados na “mentira ideal”, uma representação nossa a nosso respeito do que construímos mentalmente e que, de fato, não somos na maioria das vezes. O que desejamos ser ou atingir está muito distante do que realmente alcançamos. Por outro lado, apoiados na “mentira obrigação”— uma pressão para agirmos de um certo modo conforme os valores culturais — nos forçamos a fingir que somos honestos, corretos, gentis etc. 175 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 175 23/12/2009 15:34:16 — A cada momento torno-me mais confuso. Os pilares sobre os quais eu edifiquei meu raciocínio e minhas decisões, com essa conversa, estão sendo demolidos. Tudo vale. — Temos a tendência, alguns mais, outros menos, a nos imaginarmos como capazes de estarmos muito próximos desse “eu-ideal” e desse outro “eu-obrigação”, também chamado de “eu-dever”. Nesse modo nos imaginamos perfeitos, pois nos encaixamos nas duas quimeras inventadas pelo homem, esses dois fantasmas: o “eu-ideal” e o “eu-dever”. Vivemos à procura desses objetivos fantásticos para vivermos socialmente. Mozart vive disso, pois é um poeta frustrado, um falso artista, um falso gênio e falso caráter, leviano, medíocre, acreditando um dia fazer uma grande proeza: produzir uma grande poesia ou uma bela pintura. Ele não trabalha, Clara é quem faz tudo para ele. Vive com meu dinheiro, finge não saber que sou eu quem o sustenta junto com o filho que também não é dele. — Como afirma, sem pensar, essas acusações? — Você, Pedro, é um fanático da verdade, apresenta a “exigência ideal”. Acredita que é necessário mudar o rumo da vida de Mozart, reconstruir o amor dele e tirar a sua mulher de mim. Isso melhoraria a minha vida, a de Mozart, de Clara, de Plínio? Acredito que nunca! Acabaria com a vida de todo o grupo. Nós todos estamos apoiados nesse suporte falso com o qual vivemos. Caso ele se quebre, não temos como ficar em pé. Portanto, a maioria das pessoas precisa acreditar que eles são parecidos com as fantasias existentes em suas mentes. 176 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 176 23/12/2009 15:34:16 — Acredito que se você contar a ele, você irá destruir a vida rotineira e pacata do casal, causará o desespero do filho. Talvez Mozart, o que você mais quer salvar, após a tempestade sobreviva, consolando-se nos seus belos versos inventados para comemorar o acontecimento inesperado. Acredito que para ele o desespero do filho e da mulher, ou mesmo a morte deles, irá lhe fornecer, nada mais nada menos, que um lindo tema para declamações na “Academia” diante da seleta plateia que, ao terminar, baterá palmas e em seguida irá lanchar e contar casos. Ele se inspira na mentira, vive à custa dela, ela é seu principal remédio estimulante. Ele, como Piquira, que encontrou de maneira engraçada também um estimulante para viver suas fantásticas caçadas. Se você destruir a mentira de um homem como Mozart, você destruirá, ao mesmo tempo, a felicidade dele e da família. Você, Pedro, está pensando como diversos reformadores ingênuos que pregam a verdade para pessoas que vivem e precisam viver das fantasias irrealizáveis, pois são incapazes de viver sem elas. — Assim como o diabo é indispensável na construção de Deus, a mentira é indispensável na construção da verdade. Também o demônio tem um papel crucial na criação de Deus. As convenções sociais e políticas, mentiras acerca de nossas obrigações, asfixiam a individualidade de cada um de nós, impedindo o crescimento das pessoas. Nesse instante a conversa entre pai e filho foi interrompida: a porta do quarto de Clara se abriu. Ela, ao sair do quarto foi direto à cozinha e após dar o “bom dia” a José Alencar, expressando um sorriso calmo e afetuoso, em seguida virou-se para Pedro e fez o mesmo. 177 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 177 23/12/2009 15:34:16 A fisionomia serena de Clara transformou a face carregada de José Alencar. Essa comunicação entre os dois afetou as emoções negativas de Pedro, acalmando-o também. Automaticamente e sem muito pensar e após responder com carinho ao afetuoso sorriso de Clara, Pedro decidiu dar por terminadas para sempre toda aquela tumultuada discussão e dúvidas ocorridas naquela noite e início da manhã. 178 DIAGRAMACAO UMA DECISÃO DELICADA PRONTA.indd 178 23/12/2009 15:34:16