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Literatura
COMPARADA
Paulo Astor Soethe
2009
© 2009 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização
por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais.
S681
Soethe, Paulo Astor. / Literatura Comparada. / Paulo Astor Soethe. —
Curitiba : IESDE Brasil S.A, 2009.
204 p.
ISBN: 978-85-387-0951-0
1. Literatura – História e Crítica. 2. Literatura comparada.
CDD 809
Capa: IESDE Brasil S.A.
Imagem da capa: IESDE Brasil S.A.
Todos os direitos reservados.
IESDE Brasil S.A.
Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200
Batel – Curitiba – PR
0800 708 88 88 – www.iesde.com.br
Paulo Astor Soethe
Possui pós-doutorado pela Universidade de Tübingen, Alemanha, como bolsista
da Fundação Alexander von Humboldt.
Doutor e mestre em Letras (Língua e Literatura Alemã) pela Universidade de São
Paulo (USP).
Graduado em Letras (Alemão e Português) pela Universidade Federal do Paraná
(UFPR).
Professor de Língua e Literatura Alemã, tradutor.
Sumário
Literatura: dizer sobre o mundo, dizer sobre o dizer.... 11
Literatura e discurso.................................................................................................................. 12
Literatura e mimese................................................................................................................... 15
Literatura e estética................................................................................................................... 21
A literatura entre as nações (e para além)........................ 29
Contexto e percurso da literatura comparada ............................................................... 29
Culturas nacionais e globalização ....................................................................................... 31
A contribuição latino-americana . ....................................................................................... 35
Autores multiculturais: Franz Kafka.................................... 47
O contexto histórico-cultural de Franz Kafka ................................................................. 47
Vida e obra de um escritor à frente de seu tempo . ...................................................... 49
A Metamorfose: pop, cult and more . ................................................................................... 52
O Processo: os descaminhos nossos de cada dia ........................................................... 57
Textos literários em diálogo: intertextualidade............. 67
As diversas camadas de significado no texto literário: palimpsesto ...................... 67
Raduan Nassar e Lavoura Arcaica ........................................................................................ 70
Cartas ao pai: cenas familiares, o poder e a palavra do outro . ................................. 73
Temas e recursos kafkianos em Lavoura Arcaica ........................................................... 75
Textos literários em diálogo com a tradição.................... 87
O texto literário: fascículo em coleção .............................................................................. 87
Matrizes consagradas .............................................................................................................. 89
Relato de um Certo Oriente, romance do diálogo inter-religioso . ............................ 91
João Guimarães Rosa e as artes visuais...........................105
Guimarães Rosa: uma obra brasileira para a literatura universal ...........................105
Introdução ao método de criação rosiano . ...................................................................107
Guimarães Rosa, aprendiz e fruidor das artes ..............................................................109
Leitura de um episódio “visual” de Grande Sertão: Veredas . ....................................113
Literatura e outras artes: a música....................................133
Heinrich e Thomas Mann, filhos de brasileira................................................................133
A música como referência cultural.....................................................................................136
Personagens-artistas e a música na obra de Thomas Mann.....................................140
Literatura e História: artes do tempo...............................159
Literatura, História: escrituras do inapreensível, marcas da memória..................161
Literatura, História: o que fica..............................................................................................163
Papel social da literatura e dos estudos de literatura comparada..........................169
Gabarito......................................................................................183
Referências.................................................................................197
Anotações..................................................................................203
Apresentação
Este manual propõe uma reflexão sobre a Literatura como fenômeno social
e como conjunto de produtos culturais. Entende cada obra como declaração de
alguém que participa de uma comunidade de comunicação e que, para manifestar-se, recorre a dimensões especiais da linguagem: à capacidade da linguagem
para encenar situações concretas, revelar-se a si mesma e dizer coisas inesperadas
sobre a vida, diante das grandes questões (como o amor, a morte, os conflitos e a
violência, o sentido de nossa existência, a posição que cada um ocupa na sociedade e no mundo natural).
Sobre o pano de fundo dessa reflexão geral, este livro oferece conhecimentos
básicos sobre o surgimento e o desenvolvimento da área de Literatura Comparada
no âmbito dos estudos literários. Com base em exemplos, apresenta instrumental
para análise e leitura crítica de obras em particular, relacionadas entre si ou a outras
áreas do conhecimento e a outras artes. Dedica-se ao trabalho prático com obras de
autores brasileiros (entre os quais Euclides da Cunha, João Guimarães Rosa, Milton
Hatoum e Raduan Nassar) e da literatura universal (como Haruki Murakami, Franz
Kafka, Thomas Mann e Mario Vargas Llosa). Irá relacionar essas obras entre si e a
outros âmbitos de diálogo: outras disciplinas afins (história, filosofia, geografia e
psicologia) e outras artes (pintura e música, em especial).
A partir de reflexões e exercícios no âmbito da disciplina de literatura comparada, este manual pretende convidar a ler e espera que seus leitores estabeleçam,
eles mesmos, comparações: relações que os levem a pensar sobre a literatura e a
realidade, sobre o lugar que a literatura ocupa no mundo e o lugar que ela oferece
a cada um.
Encerro a apresentação com uma palavra de agradecimento às colegas Sibele
Paulino, Elisangela Redel, Solange Rosa Carneiro Leão, Priscila Buse, Tassia Kleine e
Assionara Medeiros, pelo apoio na concepção deste material. Pensando neles e nas
alunas e alunos que vão utilizar o material, lembro que o verbo grego didáskein
significa, ao mesmo tempo, aprender e ensinar, e preciso supor que Guimarães
Rosa conhecesse essa regência peculiar. Em Grande Sertão: Veredas, o escritor
opera com a ambivalência do verbo. Zé Bebelo, pretenso mestre, diz a Riobaldo
no fim do romance: “A bem. Tu foi o meu discípulo... Foi não foi?” Mas então cai
em si, e percebe ter sido ele o aprendiz; e que só se aprende-ensina convivendo e
dialogando. Sua conclusão: “A bom, eu não te ensinei; mas bem te aprendi a saber
certa a vida...”
Literatura: dizer sobre o mundo,
dizer sobre o dizer
Divulgação Editora Objetiva.
Vamos imaginar que um leitor brasileiro se debruce sobre o romance
Kafka à Beira-Mar, do escritor japonês Haruki Murakami.
O romance figura duas histórias, que
em certo momento se entrecruzam.
A primeira é de Kafka Tamura, um
jovem de 15 anos no Japão contemporâneo. Tendo conflitos com o pai, ele
sai de casa em busca da mãe e da irmã,
sob a menção direta do mito grego de
Édipo.
A outra história é a do velho Satoru
Nakata, que se caracteriza por ser ingênuo e simples, mas que é também
uma espécie de honorável mago, capaz
de prodígios como falar com gatos ou
fazer chover peixes e sanguessugas.
Ambas as histórias compõem uma
teia de referências à cultura ocidental
(Édipo, contos de fada, obras de Franz
Kafka e outros escritores e compositores
europeus) e à cultura japonesa (formas
da literatura japonesa tradicional, como
1
tankas, haikus e haikais , fatos do Japão moderno e de sua história desde a
Segunda Guerra Mundial, entre outros).
Haruki Murakami nasceu na cidade de
Quioto, no Japão, em 1949. Depois de
viver longo tempo nos Estados Unidos, voltou ao seu país, morando na
capital, Tóquio.
1
Tanka é uma forma fixa de poema ou estrofe com cinco versos, dos quais o primeiro e o terceiro são livres e os demais têm sempre sete
sílabas. Historicamente, tanka é a forma básica de poesia japonesa e por isso equivale às vezes ao termo waka, que denota de forma
geral toda a poesia japonesa em suas formas clássicas. Quando essa literatura clássica ganhou ambientação palaciana, o tanka passou
a ser composto de maneira dialogada por duas pessoas. Uma compunha os três primeiros versos, o hokku (estrofe inicial), e a outra, os
outros dois, o wakiku (estrofe lateral). O hokku tornou-se ao longo do tempo uma forma fixa.
Os haikais eram poemas cômicos, muito populares a partir do século XVI. Nessa época, fundiram-se as características da comicidade
(hai-) e a forma do hokku (-ku), e surgiu então a forma haiku, que foi promovida no século XVII, pelo grande poeta Bashô, a uma forma
elevada, espiritual e de grande consciência artística. É essa forma haiku que se viu especialmente valorizada pelo poetas concretos, no
Brasil do século XX, sob a designação geral haikai (sobre esta forma poética, ver, por exemplo, Franchetti; Doi; Dantas, 1996).
Literatura Comparada
Nosso leitor brasileiro, na poltrona de sua sala, ou no banco de um ônibus
enquanto vai de casa para o trabalho, lê o romance na boa tradução de Leiko
Gotoda. O volume foi produzido cuidadosamente pela editora carioca Objetiva,
mas traz na capa a marca da editora espanhola Alfaguara.
Coisa curiosa: o leitor brasileiro debruça-se sobre uma história que acontece
literalmente do outro lado do mundo, escrita em um idioma cujo alfabeto ele
sequer seria capaz de ler. Mesmo assim, graças à boa tradução e sob as facilidades
do mercado editorial globalizado, vê-se envolvido em uma história inquietante.
Acaba por identificar-se com as personagens e com situações que parecem suas.
Depara-se com referências culturais que são uma mistura de coisas próprias ao
Japão e ao Ocidente. E já que Haruki Murakami, de forma generosa, muitas vezes
explicita e explica essas referências, nosso leitor brasileiro (como o leitor japonês,
ou outro qualquer) informa-se sobre um repertório cultural imenso, pensa, reflete e posiciona-se em face de questões fundamentais para qualquer ser humano:
relações com a família, amor e amizade, o poder e os limites da palavra, os desafios de tornar-se adulto, envelhecer, despedir-se da vida...
Murakami conhece bem a tradição literária japonesa e a ocidental. Deixa isso
claro ao escrever seu romance. Kafka à Beira-Mar exige do leitor que perceba a
literatura como fenômeno humano, capaz de ultrapassar fronteiras nacionais e
idiomas específicos. Exige dele que seja capaz de comparar os contextos e tradições diferentes que a obra envolve, os diálogos que ela estabelece, os textos e
referências que confluem para ela.
A literatura comparada, como disciplina acadêmica, ajuda a entender essa
dimensão das obras literárias: a inserção de cada texto e de cada conjunto de
textos (uma literatura nacional, ou a literatura de determinado período) em uma
rede de relações.
Porém, antes de definir e apresentar a disciplina, contar um pouco de sua
história e analisar obras específicas sob sua óptica, cabe explicar que aspectos
da literatura iremos destacar.
Literatura e discurso
Em primeiro lugar, vamos definir discurso, que será um conceito central em
nossa reflexão. Para nós, no sentido de filósofos como Jürgen Habermas e Karl-
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Literatura: dizer sobre o mundo, dizer sobre o dizer
-Otto Apel, discurso quer dizer a interlocução (a conversa ampla) que se dá em
um contexto social, histórico e reflexivo determinado. (O termo discurso também
tem outros usos na linguística ou na psicanálise, mas esses usos não nos interessarão aqui.)
Cada um de nós integra a sociedade como sujeito. Na sociedade, participamos de comunidades de comunicação mais ou menos formalizadas, em um
tempo e um espaço específicos. Denominamos discurso o debate e as ações comunicativas que uma comunidade de comunicação conduz em torno de determinada questão.
Quando pagamos a passagem de ônibus, por exemplo, participamos da organização estruturada de todo o sistema de transporte coletivo de nossa cidade.
Se fazemos isso de forma consciente, tanto melhor: então sabemos ser sujeitos
na organização desse sistema, sabemos ter direitos e deveres diante de todos os
outros sujeitos que participam dele (prefeitura, planejadores urbanos, empresas de ônibus, motoristas, cobradores, demais passageiros). Pagar a passagem
de ônibus pode significar: “Participo da comunidade de comunicação que organiza e utiliza o sistema de transporte coletivo”. E disso decorre a possibilidade
de propor ou exigir melhorias, reclamar formalmente se o ônibus vem lotado
demais ou atrasado, ou elogiar se tudo funciona bem. Essas são formas de participar do discurso sobre o sistema de transporte coletivo da cidade.
Outro exemplo: se lemos a resenha de um romance no jornal, decidimos
comprá-lo ou emprestá-lo na biblioteca e o lemos, participamos da comunidade
de comunicação organizada em torno da literatura, em um discurso específico
sobre esse romance. Se gostamos do livro e o recomendamos para um amigo que
também decide lê-lo, integramos o discurso sobre o livro de forma ativa: fazemos
em nível individual o que o resenhista do jornal faz em nível coletivo, no espaço
público. Portanto, há um discurso que trata das obras literárias como produtos
culturais, e integramos esse discurso ao ler e falar sobre literatura, ou estudá-la
em uma disciplina, como agora. Fazem parte desse discurso escritores e críticos
especializados, professores e alunos em colégios e universidades, bibliotecários,
administradores de arquivos literários, editores, os leitores de maneira geral.
O discurso literário, no entanto, tem uma peculiaridade: o produto cultural
sobre o qual se discute, o texto literário, também integra o discurso como uma voz
na comunidade de comunicação – não participa de maneira passiva, como objeto,
mas também como a voz de um sujeito dessa comunidade, em caráter ativo.
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Literatura Comparada
Assim, um romance, por exemplo, fala sobre si mesmo. Diz de si, inaugura
um debate sobre si mesmo. Além de falar de si, também traz declarações sobre
outros assuntos e, portanto, participa de outras comunidades de comunicação.
O texto fala de outros textos e manifesta-se igualmente sobre outros temas.
O romance de Haruki Murakami, que comentávamos há pouco, fala de si
mesmo, inaugura o discurso sobre si. Mas participa também do discurso sobre
Édipo Rei, de Sófocles (496-406 a.C.), e sobre as obras de Franz Kafka (1883-1924),
entre outras. A literatura comparada tem nesse caso um papel a desempenhar,
como veremos: ela estuda as relações de contato entre obras e literatura diversas,
por exemplo. No romance japonês, o protagonista chama-se Kafka e tem uma
forte semelhança biográfica com o escritor tcheco, na relação tensa com o pai.
No romance de Murakami, o personagem Kafka tem uma espécie de “amigo
imaginário” que se chama Corvo (é o significado da palavra kafka em tcheco); e o
romance ainda diz textualmente, no diálogo entre o protagonista Kafka Tamura
e seu amigo Oshima:
– Kafka Tamura?
– É o meu nome.
– Que estranho.
– Mas é o meu nome – insisto.
– Presumo que você já tenha lido algumas obras do escritor Franz Kafka.
Confirmo com um aceno de cabeça:
– O Castelo, O Processo, A Metamorfose e mais aquela história em que aparece uma máquina
de execuções estranha.
– Na Colônia Penal – diz Oshima. – Gosto desta história. Existem milhares de escritores no
mundo, mas só mesmo Kafka seria capaz de escrever esta.
– Das novelas de Kafka, essa é a de que mais gostei.
– Verdade?
Confirmo com um aceno.
– Quais aspectos você aprecia?
Penso um pouco a respeito. Pensar me toma tempo.
– Em vez de tentar explicar nossa condição, Kafka prefere explicar, em termos mecânicos
simples, esse complexo aparelho. Ou seja... – paro para pensar novamente. – Ou seja, assim ele
conseguiu explicar de maneira mais eloquente que qualquer outro escritor a condição em que
vivemos. Isto é, expressou melhor não falando da nossa condição, mas das particularidades
da máquina.
– Resposta bem formulada – diz Oshima. Depois, põe a mão no meu ombro. Percebo no seu
gesto uma espécie de simpatia natural por mim.
– Realmente, acho que Franz Kafka concordaria com você. (MURAKAMI, 2008, p. 73-74)
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Literatura: dizer sobre o mundo, dizer sobre o dizer
Parece não restar dúvida de que seja relevante uma leitura de Kafka à Beira-Mar que compare o romance à obra do escritor judeu tcheco de língua alemã.
Ou melhor, parece ser relevante uma leitura do romance à luz da obra de Kafka,
com destaque para as possíveis relações entre ambas.
Além disso, no entanto, o romance japonês fala também de outros assuntos que não são estritamente literários. Ele aborda as relações entre o Japão e
o Ocidente, a presença norte-americana naquele país durante o pós-guerra, e
questões de interesse geral, como adolescência e amor.
Quem recomenda Kafka à Beira-Mar a um amigo e depois conversa com ele
sobre os traços adolescentes da personagem Kafka Tamura, os supostos conflitos dele com o pai e o papel desses conflitos na caracterização da personagem, por exemplo, participa, junto com Murakami, de um discurso mais amplo
sobre a adolescência e as possibilidades de formação individual na sociedade
contemporânea.
Se o livro é discutido sob esse viés em um congresso de psicologia comportamental dedicado ao trabalho com adolescentes, por exemplo, o discurso acerca
do romance integra-se a um outro discurso formal sobre o assunto, entre psicólogos. E aí também entra em cena a literatura comparada, quando se trata de
aproximar a literatura de outras áreas do saber.
Mas isso significa que a literatura fala sobre a realidade? Significa que ela tem
um “valor de verdade”? Mas como, se os textos literários apenas figuram situações
imaginárias, no ambiente da ficção, do fingir? Será que o poeta chega mesmo a
“fingir que é dor a dor que deveras sente?”, segundo o conhecido poema de Fernando Pessoa (1888-1935)? E, mesmo fingindo, diz algo relevante sobre a vida
concreta das pessoas e da sociedade?
Literatura e mimese
Cabe introduzir aqui um segundo conceito fundamental para nossa reflexão:
o conceito de mimese. Durante muito tempo, traduziu-se mimese (ou mímesis) –
termo usado por Aristóteles já nas primeiras linhas de sua Poética – por “imitação”.
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Literatura Comparada
Esse entendimento do termo levou a pensar que a literatura imita a realidade,
criando uma espécie de “mundo paralelo”, autônomo em relação ao contexto
em que a obra surge ou é recebida.
O pensador brasileiro Luiz Costa Lima, já nos anos 1980, acompanhou de
perto a longa discussão e pesquisa filológica que ajudou a compreender melhor
o conceito aristotélico. Hoje, como resultado dessa pesquisa e discussão, tende-se a traduzir e entender mimese como “emulação” (sentimento de rivalidade
construtiva que incita alguém a imitar o outro, igualar-se a ele ou mesmo excedê-lo). Por coincidência, é a mesma palavra que se usa em informática para falar
dos ambientes que imitam situações em um meio digital. Para treinar pilotos de
avião, por exemplo, criam-se emulações da cabine e das situações de pilotagem,
como se a pessoa em formação estivesse dentro de um avião de verdade. Mas
não se está imitando a realidade, e sim, tornando possível que alguém vivencie
uma realidade própria, com os elementos que haveria na realidade propriamente dita, mas em uma situação única e nova. Vamos entender o raciocínio de Costa
Lima e em seguida voltar ao nosso exemplo do romance japonês.
Para o pensador brasileiro, desde fins da Idade Média, a produção de textos
ficcionais vem sendo acompanhada pelo exercício de um controle por parte da
verdade dominante na sociedade em que se dá tal produção. As regras poéticas
e um lugar bem delimitado para a literatura seriam instrumentos desse controle,
que se notava de modo muito claro e formalizado no período entre o Renascimento e o Iluminismo, mas que até hoje ainda se faz notar. Esse controle, que assumiu faces diversas em momentos históricos e circunstâncias sociais diferentes,
deve-se à própria natureza da ficção literária: como ela cria uma forma discursiva
diferenciada, insubmissa à verdade empírica, está sempre “passível de entrar em
choque com o que lhe permite o discurso no poder, o assim chamado discurso
da verdade” (LIMA, 1988, p. 3).
Vejamos a definição e a caracterização da mimese que Costa Lima oferece.
De início, ele estabelece alguns pressupostos que devolvem à mimese seu caráter de participação no tecido comunicativo e social. Para ele, “todo fenômeno
é recebido pelo agente humano de acordo com um conjunto de expectativas,
apreendido a partir da cultura a que o agente pertence” (LIMA, 1986, p. 361). Ou
seja, nada “cai do céu”, mas surge para nós no ambiente cultural em que vivemos,
segundo o que esperamos ver. É por isso que certos gestos inesperados impressionam e marcam tanto. Um líder religioso, de quem se espera que seja contido
e sisudo, pode causar sensação se, ao chegar em um país estrangeiro e descer
do avião, de repente se agacha e beija o chão; ou da mesma forma um cientista
genial, se de repente mostra a língua diante das câmeras.
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Divulgação.
Literatura: dizer sobre o mundo, dizer sobre o dizer
Domínio público.
O papa João Paulo II (1920-2005) beijando o chão ao chegar ao país
que visitava, conforme costume por ele iniciado.
O físico alemão Albert Einstein (1879-1955), em
sua foto mais famosa.
Mas essas são exceções. O receptor do texto ficcional (o leitor) geralmente estará orientado por uma expectativa culturalmente socializada do que se
deverá ver; e o produtor (o escritor), por sua vez, terá sempre o costumeiro como
ponto de partida para a representação do que deseja criar. A mimese movimenta-se em uma rede social de representações, pautada pelo conjunto de expectativas comuns.
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Literatura Comparada
Assim, a atividade literária, como qualquer outra, dá-se primeiro como uma
atualização de noções comuns às pessoas que constituem o ambiente social e
cultural de quem produz as obras. Luiz Costa Lima escreve que “a primeira sensação que a mimese provoca, a sensação de semelhança, deriva da correspondência
com os quadros de referência e expectativas daí resultantes” (LIMA, 1989, p. 68).
Quando as obras são recebidas, porém, encontram contextos e grupos sociais
sempre diversos. Ou seja: a sensação de semelhança, que se repete apesar de os
quadros de referência poderem variar, não esgota a experiência da mimese literária. Há ainda o acordo tácito entre escritor e leitor, segundo o qual se destaca a
percepção da diferença entre realidade e ficção. Por isso, o resultado da mimese
é o oposto de mera imitação: “A mimesis [...] é produção da diferença e não o
império da semelhança” (LIMA, 1988, p. 359). A mimese, “ao contrário da falsa
tradução, imitatio, não é produção da semelhança, mas produção da diferença.
Diferença, contudo, que se impõe a partir de um horizonte de expectativas de
semelhança” (LIMA, 1986, p. 361).
Segundo o estudioso brasileiro, essa diferença se estabelece por conta de
dois fatores: a resposta individual e criativa de cada um dos produtores e a própria variação dos quadros históricos e sociais, que impõem novas questões, às
vezes inadequadas às formas já existentes.
Isto é, o escritor impõe sua criatividade subjetiva, e assim faz irromper o novo
no discurso social. Poderíamos dizer que ele “beija o chão” ou “mostra a língua
diante das câmeras”. (E para inovar coloca em questão até mesmo sua individualidade, como veremos.) De outra parte, às vezes são o contexto e as relações
do discurso que mudam e atualizam de forma inesperada o texto literário (ou
pretensamente literário). Quem poderia supor que bruxos e magos dominariam
as preferências do mercado editorial adolescente e adulto na virada do século
XX para o XXI?...
Assim, um aspecto muito importante para Costa Lima é que a literatura dissipa as regras generalizadas quanto ao uso da linguagem. Mas ela dissipa também
uma pretensa “expressão do eu”. O autor deixa de expressar uma opinião ou uma
posição única, e encena diversas possibilidades em suas histórias ou poemas. No
meio literário ficcional, segundo Costa Lima, “o eu se torna móvel, ou seja, sem se
fixar em um ponto, assume diversas nucleações”; essa diversidade, no entanto,
é possibilitada “pelo ponto que o autor empírico ocupa” (LIMA, 1986, p. 238). E
disso conclui-se que
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Literatura: dizer sobre o mundo, dizer sobre o dizer
A imaginação permite ao eu irrealizar-se enquanto sujeito, para que se realize em uma proposta
de sentido. Pois, se é verdade que a unidade do eu é uma ilusão “cartesiana”, não é menos
verdade que a procura de uma unidade, nunca acabada e sempre provisória, é a condição
necessária para não nos desagregarmos no contínuo das experiências. [...] pela ficção, o poeta
se inventa possibilidades, sabendo-se não confundido com nenhuma delas; possibilidades
contudo que não se inventariam sem uma motivação biográfica. Menos do que disfarce, a
ficção, poemática ou em prosa, é uma produção direcionada pela unidade (instável) do eu.
(LIMA, 1986, p. 358-359)
Voltemos ao nosso exemplo. Assim como supusemos que Kafka à Beira-Mar
pudesse ser relevante para psicólogos que discutem comportamento adolescente, o romance de Murakami também integra de maneira calculada (pelo próprio autor) um debate sobre a identidade cultural japonesa a partir do fim da
Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Como se sabe, o Japão precisou mudar
muito a partir do fim da Segunda Guerra, quando foi derrotado pelos Estados
Unidos, depois de haver cometido o erro histórico de tornar-se o mais importante aliado da Alemanha nazista. Os leitores percebem a participação de Murakami
nesse debate delicado e buscam interpretar imagens e metáforas do livro sob
esse viés, perguntando-se o que essas imagens e metáforas poderiam significar
na discussão sobre o assunto.
De maneira muito própria à literatura, no entanto, não há como afirmar com
base no romance o que Murakami pensa em definitivo sobre o assunto, porque
ele não emite opiniões fixas, mas cria situações ficcionais em que o problema
aparece. Como escritor, lança mão de recursos especiais da linguagem para
propor perguntas sobre a questão da identidade cultural japonesa. Ele propõe
“enigmas” literários, por assim dizer, que levam os leitores a pensar sobre o
assunto. Como Murakami cria um texto autônomo, com personagens, tempo
e espaço próprios, é possível ler seu texto e entrar nesse debate a qualquer
momento, desde que se disponha, como leitor, de conhecimentos mínimos
sobre a participação do Japão na Segunda Guerra Mundial e as consequências
de sua derrota.
A dicção literária, a voz proferida sob a forma de literatura, destaca de maneira
especial as condições concretas de pensamento e interação em que ela mesma
surge. O texto literário enuncia algo e ainda figura, em si mesmo, as condições e
os elementos dessa enunciação. Haruki Murakami, de dentro do Japão contemporâneo, figura uma história no contexto japonês, para pensar sobre seu país. O
Japão que ele discute, embora seja ficcional, não é “fictício”, não é “de mentira”.
E aqui surge uma distinção importante, que o pensador alemão Heinz Schlaffer
explica da seguinte maneira:
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Literatura Comparada
Ao substantivo ficção relacionam-se dois adjetivos: fictício e ficcional. Denominam-se fictícias
as noções que não resistem a um exame crítico, quando se trata de verificar se elas são
verdadeiras; denominam-se ficcionais as noções que renunciaram à pretensão de serem
verdadeiras e apenas brincam com essa pretensão. Fictício é uma qualidade negativa, ficcional
é uma qualidade positiva. Que algo seja fictício só se descobre depois; que algo seja ficcional
aceita-se desde o início. Fictício é um juízo emitido pelo saber; ficcional designa um ato
voluntário da consciência. (SCHLAFFER, 1990, p. 145, tradução nossa)
Um romance contém e revela marcas reais de quem o enuncia e das condições sob as quais se enuncia. Ele não narra uma história que vamos descobrir ser uma inverdade, no final da leitura – já de antemão sabemos que não se
trata disso: “ficção não é sinônimo de falsidade, mas de suspensão do limite que
separa os conceitos de falso e de verdadeiro” (SANTOS; OLIVEIRA, 2001, p. 19).
Por isso o texto literário contém uma dimensão tão forte de relação com o real,
embora seja irreal: ele se refere a coisas no mundo, à pessoa que se refere a elas
e aos processos de comunicação dessa referência – um tempo, um lugar, personagens concretas, e não apenas ideias abstratas. A verdade do texto ficcional é
devida à sua concretude e à sua especificidade.
O texto literário não finge ser a enunciação de uma voz neutra e objetiva,
como se fosse a “embalagem” de um mero conteúdo de saber, opinião, sentimento... O que a literatura faz é explicitar em si o fato de ser enunciada por
um sujeito diante de outros sujeitos, e sob condições materiais e comunicativas muito concretas. Com isso, a literatura se despe das ilusões de objetividade
(como se a verdade surgisse de um sujeito único e ideal diante de um objeto). Ao
contrário, na literatura, só existe enunciação marcada pelas condições concretas
do discurso, do debate em que se diz algo. E por isso o texto literário se torna
mais “objetivo”: ele reconhece, figura e manifesta os limites e as possibilidades
de sujeitos mergulhados em uma comunidade de comunicação, a qual simplesmente não existe fora de um contexto social, material e cultural.
Como vimos até aqui, o dizer literário acontece em meio ao discurso de uma
comunidade de comunicação. A literatura usa recursos da ficção e da mimese,
da emulação de um ambiente concreto em que os personagens se movem, encenando situações e debates. E essas situações e debates são reconhecidos pelo
escritor e pelos leitores como suas, já que o interesse que marca os atos da escrita e leitura é entender o mundo e pensar sobre a realidade humana.
De seu lugar discreto, cada poema, cada conto, cada romance resiste à prevalência de usos da linguagem natural que se limitam à simples repetição e ao
controle social. A literatura, sob certo aspecto, é um reduto para o sujeito criativo
no tecido social comunicativo. Por ser a voz de um sujeito, revela a cada um o potencial de renovação das formas de comunicação e de compreensão do mundo.
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Literatura: dizer sobre o mundo, dizer sobre o dizer
Os textos literários carregam em si conhecimentos sobre a vida e a experiência
humana e aguçam a consciência (individual e social) quanto a certas formas de
conhecer: ativam a sensibilidade e a imaginação, chamam a atenção do sujeito
para sua participação no mundo material partilhado com os outros, para sua
participação em uma comunidade de comunicação que se imagina e se reconfigura a todo momento.
Literatura e estética
Resta explicar um terceiro aspecto do texto literário que para nós será muito
importante. Trata-se aqui de uma característica central da literatura, que torna
possível aos escritores e leitores questionar e inovar as formas de comunicação
no discurso de que participam, bem como interagir com outras tradições artísticas: a dimensão estética do texto literário.
A noção de estética que nos interessa está diretamente relacionada com sua
origem grega: aisthesis significava, em grego, “sensação”, “percepção proporcionada pelos sentidos” (visão, audição, tato etc.).
A palavra anestesia, por exemplo, tem a mesma origem que a palavra estética.
Se alguém sofre um corte grave na mão e precisa levar pontos, toma uma anestesia local e deixa de ter sensações ali, para não sentir dor. Deixa de sentir dor e
também quaisquer outras sensações. Anestesia, portanto, quer dizer sem (an-)
sensação (aesthesis). Estética, portanto, tem a ver – de um jeito positivo – com as
sensações proporcionadas pelos sentidos, pelo aparato de nosso corpo que nos
permite perceber o mundo à nossa volta.
Na literatura, importa muito ativar as sensações físicas, ao contrário do que
acontece em outros registros neutros e abstratos da linguagem.
Há poemas, por exemplo, em que a sonoridade é no mínimo tão importante
quanto o que se diz. Ou seja, o que percebemos com nossa audição (os sons
mesmo, desprovidos de conteúdo intelectual, abstrato) é significativo para a
fruição do poema, como se ao lê-lo estivéssemos ouvindo música. Veja-se a conhecida estrofe do poema “Violões que choram...”, do catarinense Cruz e Sousa
(1861-1898), que foi escrito em 1897 e cujas repetições de v e l, organizadas em
um ritmo regular, tornam presente a regularidade rítmica do violão e aludem à
sonoridade do vento. Mesmo quem não fale português pode, sem nada entender, perceber a riqueza sonora do texto:
21
Literatura Comparada
Vozes veladas, veludosas vozes,
volúpias dos violões, vozes veladas,
vagam nos velhos vórtices velozes
dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas. (SOUSA, 2009)
Domínio público.
Há outros poemas em que a visão desempenha papel central, pois é necessário ver a forma gráfica do poema para fruí-lo bem. Esse recurso já é explorado há
séculos pela literatura. O texto a seguir é de 1672 e foi escrito pelo poeta barroco
Johannes Praetorius. Nesse poema, a disposição dos versos imita o objeto de
que eles falam: o trevo.
A dimensão visual dos textos alcançou papel central na produção e discussão
dos poetas concretistas brasileiros a partir dos anos 1950. A produção e debate
teórico de autores como os irmãos Augusto e Haroldo de Campos, Décio Pignatari
e Ronaldo Azeredo mereceram grande atenção na cena literária internacional.
O poema “Velocidade”, a seguir, que Ronaldo Azeredo (1937-2006) publicou
em 1958, explora a dinâmica visual da letra v e demais letras. Cria, assim, justamente a impressão de um deslocamento dinâmico da palavra na superfície
da página e se proporciona a sensação visual da velocidade de um objeto em
movimento.
22
Domínio público.
Literatura: dizer sobre o mundo, dizer sobre o dizer
Mas também a leitura silenciosa de um texto linear e “bem comportado”
na sua forma gráfica ou sonora apela o tempo todo para nossas sensações. Os
textos literários de maneira geral lançam mão da matéria mais tênue e gratuita
do nosso repertório de bens culturais (a linguagem natural, que nos é dada na
infância) e com isso estimulam nosso pensamento, mesmo sem a presença de
dados figurativos como imagens e sons.
É como se a literatura afirmasse: naquilo que se diz há mais do que se diz, e
não devemos nos limitar aos conteúdos estabelecidos e prontos. Estamos imersos no mundo de corpo e alma e por isso podemos interferir em nosso ambiente. Até mesmo a palavra, que parece tão abstrata e imutável, tem uma dimensão
concreta, material e inovadora. Quando o escritor cria espaços, cores, luminosidades, dados “físicos” do mundo que cerca seus personagens, opera com a linguagem natural disposto a revelar o funcionamento dela no ambiente discursivo. E torna viva a dinâmica da consciência individual que essa mesma linguagem
faz presente no ambiente social.
O autor e o leitor de textos literários mantêm-se atentos à dimensão formal e
à materialidade da linguagem. Quando lemos e escrevemos, figuramos os diversos fatores e operações presentes na situação discursiva em que o próprio texto
23
Literatura Comparada
surge e se atualiza. O romance destaca as formas de construção do mundo que
cerca as personagens, a temporalidade e circunstância histórica em que vivem,
as formas e convenções das relações interpessoais, sentimentos e motivações,
pulsões e cálculos dos participantes envolvidos nas comunidades de comunicação ali presentes.
No romance Kafka à Beira-Mar, há um momento em que o adolescente Kafka
Tamura pensa ter visões de uma menina imaginária, que lhe aparece durante a
noite. Ele começava a se apaixonar por uma mulher bem mais velha, a senhora
Saeki, e por isso passa a fantasiar a presença dela, só que muito mais jovem.
O trecho do romance em que o adolescente reflete sobre o que lhe acontecia
talvez seja uma metáfora muito bonita para explicar a literatura:
Sinto o cheiro do mar no vento que me chega através do bosque de pinheiros. O que vi na
noite anterior foi sem dúvida alguma a senhora Saeki de 15 anos de idade. Ela está viva,
naturalmente. Vive no mundo real, como uma mulher real de mais de 50 anos. E neste exato
momento trabalha sentada à escrivaninha da sala existente no andar superior. Se eu sair daqui
e subir as escadas, posso me encontrar com ela. E também conversar com ela. Não obstante, o
que vi ontem à noite tinha sido o “fantasma” dela. Uma pessoa não pode estar em dois lugares
ao mesmo tempo, dissera Oshima. Pode sim, em algumas situações. Agora sei disso com
certeza. Pessoas vivas se transformam em “fantasmas”.
E outro fato importante: o “fantasma” me atrai. Não é a senhora Saeki presente aqui e agora
que me atrai, mas a senhora Saeki ausente, de 15 anos. Uma atração forte, além do mais.
Inexplicavelmente forte. E isso é real, não há como negar. Pode ser que a garota não seja real.
Mas o que palpita com força é o meu coração real. (MURAKAMI, 2008, p. 275)
Essa metáfora – em que o “fantasma” imaginário, mesmo sendo irreal, faz palpitar com força o coração real em busca de alguém – talvez ajude a entender o
que move milhões de pessoas a ler e valorizar a literatura, mesmo em um tempo
de tantas outras alternativas de entretenimento e informação. Sendo uma espécie de “máquina” muito sofisticada, cada texto literário mostra-se capaz de ativar
nossa consciência e nossos sentidos e de conectar-nos a uma comunidade de
comunicação ilimitada (até com quem está do outro lado do mundo...).
A literatura comparada, como disciplina acadêmica, mostra-se particularmente atenta ao potencial de formação individual e integração coletiva dos
textos literários. E talvez ela de fato represente “mais que uma disciplina acadêmica”, como escreveu François Jost, um dos grandes comparatistas, em ensaio
memorável, de 1974:
A literatura comparada representa uma filosofia das letras, um novo humanismo. [...] é
uma visão globalizante da literatura, do mundo das letras, uma ecologia humanística, uma
Weltanschauung2 literária, uma visão globalizante da literatura, englobante e abrangente.
(JOST, 1994, p. 344)
2
24
Weltanschauung: visão de mundo.
Literatura: dizer sobre o mundo, dizer sobre o dizer
Texto complementar
Autopsicografia
(PESSOA, 2009)
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
Atividades
1. Qual a diferença entre fictício e ficcional?
25
Literatura Comparada
2. Apresente com suas palavras o conceito de mimese proposto por Luiz Costa
Lima.
3. Qual a relação entre as palavras estética e anestesia?
4. Relacione o poema “Autopsicografia”, de Fernando Pessoa, apresentado
como texto complementar, e a última citação do romance Kafka à Beira-Mar
(p. 275, no original). O que ambos têm em comum?
26
Literatura: dizer sobre o mundo, dizer sobre o dizer
Dica de estudo
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27
A literatura entre as nações (e para além)
Erro de português
Quando o português chegou
Debaixo duma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português
Oswald de Andrade
Trataremos do surgimento e percurso histórico da literatura comparada
como área acadêmica. Procuraremos esboçar de maneira breve os dados
mais importantes das discussões conduzidas na Europa e nos Estados
Unidos em torno das tarefas e teorias dessa área de estudos, para então
nos concentrarmos na realidade latino-americana e brasileira.
Contexto e percurso da
literatura comparada
Em primeiro lugar, é preciso ter claro que, como área acadêmica, a literatura comparada nasce de uma concepção de literatura fortemente marcada pelo cultivo das culturas nacionais nas universidades e meios culturais de países que se consolidam (e também concorrem entre si) ao longo
dos séculos XIX e XX.
Como relata a professora Sandra Nitrini, em Literatura Comparada:
história, teoria e crítica (2000, p. 20), nas universidades francesas o ensino
da disciplina teve início no final da década de 1820. Um nome importante na época foi, por exemplo, o do historiador da literatura Philarète
Literatura Comparada
Chasles. Para ele, sob um espírito otimista, importava refletir sobre as influências que, a partir dos trânsitos das literaturas, um caráter nacional pudesse
exercer sobre outro.
Nessa época, as conquistas do Romantismo – como o reconhecimento da liberdade criadora individual e a atenção às formas na natureza e na cultura – tornavam muito importantes para a reflexão artística as transformações das obras
ao longo da história e a existência de realizações distintas em diferentes regiões.
Diferenças e características particulares eram um fator central para a definição
de estilos, períodos e obras literárias.
No entanto, pelas circunstâncias daquele contexto histórico, acabava sendo
mais importante para os estudiosos reunir as obras literárias sob uma mesma
categoria, segundo a ideia de identidade nacional. As obras de um mesmo país
eram vistas e valorizadas como manifestação de um caráter e de um destino
nacional. A história literária estabeleceu-se como instrumento de unificação nacional. Tomaram-se obras do passado medieval (como a Chanson de Roland, na
França; A Divina Comédia, de Dante Alighieri, na Itália; ou a Canção dos Nibelungos,
na Alemanha) e sobre elas se impôs uma aura de originalidade, como se representassem, desde um tempo remoto, o caráter nacional francês, italiano ou alemão.
Sob esse espírito, as filologias nacionais se consolidaram nas universidades
e, a partir do advento do positivismo (fim do século XIX), mesmo a necessidade de uma “cientificidade” para a disciplina de letras não colocou em questão
a perspectiva de que literatura é sempre literatura de um país, manifestação de
nacionalidade.
Entretanto, no viés assumido pela literatura comparada havia elementos autocríticos e antecipadores de outras possibilidades. Assim, a própria disciplina se
via de modo crítico e percebia que ela mesma intuía algo para além do nacionalismo. Em 1893, o professor Joseph Texte, que lecionava literatura comparada na
Universidade de Lyon, escreveu que
Produz-se há alguns anos em torno de nós, na Alemanha, Inglaterra e Itália, nos estudos de
história literária, um movimento voltado para o estudo comparativo das literaturas modernas.
De nacional ou local, como o era geralmente até aqui, a história literária possui uma tendência
manifesta de se tornar europeia e internacional. As relações das diversas literaturas entre
elas, as ações e reações que elas exercem ou sofrem, as influências morais ou simplesmente
estéticas que derivam destas trocas de ideias, tudo isto constitui um campo de estudos ainda
quase novo e que, acredita-se, preocupará cada vez mais os historiadores. Talvez haja nisso o
gérmen de um novo método em história literária. (TEXTE, 1994, p. 26)
Assim, embora tenha nascido e se consolidado sob o signo da vinculação
entre literatura e nacionalidade, a literatura comparada pôde antever que iria
30
A literatura entre as nações (e para além)
ser questionada, no futuro, a premissa de que essas duas coisas estivessem necessariamente ligadas, como se houvesse para ambas uma “essência” comum.
Culturas nacionais e globalização
Um marco importante nos estudos da área foi La Littérature Comparée (1931)
de Paul van Tieghem, uma obra de referência para se entender a assim chamada
escola francesa, que está visceralmente ligada a essa valorização do caráter nacional das literaturas. Tieghem formulou a distinção entre literatura comparada e
literatura geral, e Sandra Nitrini explica que a literatura comparada
[...] tem por objeto o estudo das relações entre duas ou mais literaturas. Tais conexões são
argamassadas por contatos binários entre obra e obra, obra e autor, autor e autor etc. Mas uma
série de contatos binários, por exemplo, Schiller na França, Rousseau na Alemanha, não dá conta
de movimentos mais gerais nem integra uma história do romantismo. Daí a função da literatura
geral, que faria uma síntese dos “fatos comuns a várias literaturas”. (NITRINI, 2000, p. 25)
Ainda sob forte convicção positivista, Thiegem acreditava que, com base
em cuidados metodológicos, seria possível fazer uma clara distinção entre dois
campos do saber autônomos. Vamos entender essa distinção a partir de exemplos concretos:
a literatura comparada estudaria, por exemplo, a influência específica do
escritor escocês Walter Scott1 na França;
a literatura geral refletiria sobre o desenvolvimento do romance histórico
de maneira “geral”, sem restringir-se a um exemplo específico de contato
entre dois polos (como no primeiro exemplo do item), procurando chegar,
portanto, a considerações abrangentes sobre essa forma literária, que potencialmente seriam válidas para qualquer ocorrência dessa forma.
Como se percebe, a concepção de Thiegem ainda supunha a existência de
conceitos e formas universalmente válidos, no espírito da ciência positivista.
Essa distinção entre literatura comparada e literatura geral foi um dos pontos
de partida para o diálogo crítico entre a literatura comparada e os estudos de
caráter formalista. Ninguém menos que René Wellek (1903-1995), o pai do New
Criticism, criticou essa distinção, de maneira aberta e direta, no Congresso da
Associação Internacional de Literatura Comparada realizado em 1958. Wellek
afirmou que
1
Sir Walter Scott (1771-1882) é considerado o criador do romance histórico, que se baseia em pesquisa e reconstrução de dados e fatos do passado.
É de sua autoria, entre outros, o romance Ivanhoé (1819), que narra a história de um cavaleiro durante os conflitos realmente ocorridos entre saxões
e normandos no século XII.
31
Literatura Comparada
Essa distinção, sem dúvida, é insustentável e impraticável. Por que se poderia, por exemplo,
considerar literatura “comparada” a influência de Walter Scott na França, enquanto um estudo
do romance histórico durante o período romântico seria visto como literatura “geral”? [...] as
tentativas de se estabelecer fronteiras especiais entre a literatura comparada e a literatura
geral devem desaparecer, porque a história literária e as pesquisas literárias têm um único
objeto de estudo: a literatura. (WELLEK, 1994, p. 109)
René Wellek considera uma incoerência desvincular o estudo dos casos particulares e do estudo dos processos gerais. Ele mesmo, no entanto, resolveu o problema de maneira também questionável ao reduzir o estudo da literatura a aspectos formais dos textos, sem dedicar a devida atenção à história e a dinâmicas
implicadas na inserção da obra em discursos sociais (nacionais e internacionais).
Afinal, a história e as dinâmicas sociais é que vão considerar qualquer obra um
“texto literário”. E, somente depois de a ela conferir esse status, a tornarão capaz
de influir em processos formais de desenvolvimento de determinado gênero. É
também limitador e simplificador dizer que existe “a” literatura “e ponto final”.
Assim, não é absurda a distinção entre o estudo de casos particulares (casos
de contato entre obras, autores e tradições) e o estudo de possíveis características gerais dos fenômenos literários. Na verdade, esse movimento de formular a
relação entre o caso específico e uma conclusão mais geral supõe, isso sim, um
esforço de teorização muito grande.
Nesse sentido, Hutcheson Macaulay Posnett, um dos primeiros teóricos da
literatura comparada, escreveu de maneira muito perspicaz (já em 1886!) que
A teoria de que a literatura é uma obra separada de indivíduos que devem ser adorados como
imagens caídas do céu, que não são conhecidos como artífices da linguagem e ideias de sua
época e de seu lugar, e a teoria semelhante de que a imaginação transcende as associações de
espaço e tempo, muito fizeram para ocultar a relação entre ciência e literatura e prejudicar o
trabalho de ambas. [...]
A questão central [dos estudos comparativos] é a relação do indivíduo com o grupo. Encontramos
nossas principais justificativas para considerar a literatura passível de explicação científica nas
alterações ordenadas pelas quais esta relação passou [...]. (POSNETT, 1994, p. 24-25)
Mesmo sob as limitações teóricas da época, Possnet percebe o caráter discursivo da literatura como dado central para a justa apreensão das obras. Uma
abordagem adequada não esgota as obras nem como produtos de uma subjetividade “inspirada”, nem como objetos desvinculados de uma época e de um
lugar. Assim, a consideração da obra como meio de “relação do indivíduo com
o grupo” lhe faz jus como voz discursiva que estabelece um diálogo privilegiado
com o cotidiano das pessoas e também com o mundo da ciência e das artes.
Isso explica por que uma outra corrente de estudos veio, dali a pouco tempo,
oferecer uma alternativa à escola francesa – que, muito restrita, aceitava pesqui32
A literatura entre as nações (e para além)
sas no âmbito exclusivamente literário e com isso restringia os “trânsitos” da
literatura em seu diálogo com outras áreas do saber e outras artes. No artigo
“Comparative literature: its definition and function” (1961), Henry H. H. Remak deu
a melhor definição da assim chamada escola americana e sua abertura para uma
interlocução mais ampla:
Literatura comparada é o estudo da literatura além das fronteiras de um país específico, e o
estudo das relações entre, por um lado, a literatura e, por outro, diferentes áreas do conhecimento
e da crença, tais como as Artes (por exemplo, a pintura, a escultura, a arquitetura e a música),
a Filosofia, a História, as Ciências Sociais (por exemplo, a política, a economia, a sociologia),
as Ciências, a Religião etc. Em suma, é a comparação da literatura com outra ou outras e a
comparação da literatura com outras esferas da expressão humana. (REMAK, 1994, p. 1)
Décadas de estudos fundados sobre a tradição europeia haviam trazido resultados valiosos, não resta dúvida. A perspectiva de consideração das literaturas de diversos países sob uma óptica internacional havia colocado os pesquisadores diante de um imenso e integrado conjunto de obras, e diante de questões
históricas e teóricas importantes, que receberam soluções válidas até hoje.
Nesse sentido, também é preciso mencionar aqui a vertente comparatista dos
países do Leste europeu, que, na tradição do Círculo de Praga, do formalismo russo
e seus desdobramentos, prestou contribuição importante aos estudos e debates
mais recentes na disciplina. É o caso da obra de Dionys Durisin, para quem, nas
palavras de Sandra Nitrini, “a relação do estudo da literatura comparada com a
historiografia literária é também automaticamente determinado por sua relação com a teoria literária” (NITRINI, 2000, p. 90).
Um bom exemplo disso é a reflexão sobre gêneros literários. Mencionamos há
pouco esse aspecto quando nos referimos rapidamente à recepção do romance
histórico na França, depois de ele ter sido lançado por Walter Scott, no início
do século XIX. Ora, os estudos sobre a influência exercida pela obra de Scott na
França e em outros países (em Portugal, por exemplo, com o romance Eurico, o
Presbítero, de Alexandre Herculano) faz perceber que alterações e constâncias
de certa forma literária no processo de sua recepção pela tradição literária de
outros países podem revelar traços fundamentais de determinado gênero.
Mesmo que havendo transformações, alguns traços permanecem e revelam-se mais “essenciais” para a caracterização do gênero, que vai sendo aceita
e fixada pela comunidade literária internacional. Ou seja, o estudo da aceitação
e das transformações de um gênero em diversas literaturas nacionais permite aos teóricos e historiadores da literatura tirar conclusões duradouras sobre
ele, já que tais conclusões são partilhadas e legitimadas por uma comunidade
muito ampla.
33
Literatura Comparada
No entanto, a discussão sobre as complexas relações entre a narrativa literária
e a narrativa histórica – tema muito em voga até hoje – só se tornou bem-vinda
na área dos estudos literários a partir do fortalecimento da escola americana,
como vínhamos dizendo.
Os comparatistas norte-americanos acrescentaram ao modelo da disciplina
– até então muito fixado nas literaturas (consequência da segmentação positivista-cientificista do saber) e nas literaturas nacionais (herança tácita do idealismo
nacionalista romântico) – algo novo: a abertura para o diálogo com outras áreas
do saber e com outras artes.
Isso rendeu conquistas interdisciplinares e transdisciplinares (o diálogo com
a história, por exemplo), inaugurou o importante campo dos estudos interartes
(relações entre literatura e pintura, literatura e música etc.) e fez jus, afinal, à liberdade dos textos literários de estabelecer diálogo com as comunidades de comunicação que eles integram sem que a pesquisa acadêmica venha impor-lhes
limites de cima para baixo, por razões metodológicas que nada têm a ver com as
dinâmicas sociais e comunicativas da literatura.
Após certo período de oposição entre as escolas francesa, americana e eslava,
as questões que surgiram desse embate foram sendo resolvidas e resultaram em
abertura para a área dos estudos literários, e em particular da literatura comparada. Ganharam (e ganham) com as contribuições comparatistas diversas especialidades e tendências na área de Letras, como:
a teoria literária;
os estudos de gêneros textuais;
os estudos de temas e motivos;
os estudos de recepção da literatura;
os estudos das influências (de um autor sobre outro, de uma literatura sobre outra) como parte da história literária;
os estudos de periodização literária;
os estudos da tradução literária (atividade imprescindível para o contato
entre literaturas e autores de comunidades linguísticas diversas);
os estudos interartes;
os estudos culturais sobre as relações entre literatura e cultura popular;
os estudos sobre literatura e sociedade.
34
A literatura entre as nações (e para além)
Entre essas diversas áreas de atividade, vamos destacar uma que se tornou
particularmente importante na América Latina, e que talvez consista na contribuição mais importante de nosso continente aos estudos de literatura comparada.
A contribuição latino-americana
Antonio Candido.
Divulgação <http://letras-uruguay.espaciolatino.com>.
Jesuane Salvador.
Entre os estudos sobre as relações entre literatura e sociedade e literatura e
cultura popular, devem ser mencionados o brasileiro Antonio Candido (*1918) e o
uruguaio Angel Rama (1926-1983), com destaque para Transculturación Narrativa
en América Latina (1984), obra póstuma de Rama, que morreu jovem, em um
acidente aéreo nas proximidades de Madri.
Angel Rama.
As ideias fundamentais de Antonio Candido mostram-se produtivas no Brasil
(e para além da cena brasileira) desde meados do século XX, quando produziu e
publicou Formação da Literatura Brasileira (1959), sua principal obra, direcionando-se para uma abordagem crítica própria, central para os estudos comparatistas. Sob o olhar da realidade brasileira, Candido revaloriza o conceito de influência, talvez o mais importante na discussão sobre literatura comparada.
Esse conceito esteve muito marcado por noções de hierarquia e causalidade no
comparatismo tradicional. Ou seja, sob uma perspectiva europeia (nacionalista e,
afinal, eurocêntrica) supunha-se, grosso modo, que autores precedentes exerciam
35
Literatura Comparada
influência sobre seus sucessores, determinando, de certa forma, os desenvolvimentos de literaturas mais jovens ou periféricas, como se costuma dizer hoje.
Havia aí uma noção hierárquica, tanto temporal (importava quem escreveu
antes) e causal (a literatura recebida determina as reações de quem a recebe).
Isso se explicava pela concorrência que havia entre as nações e também por uma
concepção da história pautada pela linearidade: supostamente, a história levava
a cabo uma evolução natural da humanidade, e cabia às nações de destaque
conduzir as outras pelo caminho que já conheciam.
A obra de Antonio Candido nasce no contexto de uma nação jovem e periférica e versa sobre o Brasil do século XIX, época em que o nosso meio cultural
fez um grande esforço para encontrar soluções próprias não apenas no âmbito
literário mas também no que diz respeito à sua identidade cultural como um
todo. A nossa língua oficial era (e continua sendo) o português e o país estava
em condições de receber a literatura portuguesa no original, mas sentia necessidade de distinguir-se de Portugal, a ex-metrópole. Havia no Brasil várias etnias
representadas e, para marcar a própria identidade, seria preciso figurá-las nos
textos literários de um modo agregador.
Diante do desafio de pensar a formação de uma literatura brasileira, Candido,
desenvolveu uma forma de pensar que concebe um sistema literário com existência concreta (autores, obra, meio editorial, público) e se afasta portanto de
uma ingênua concepção “essencialista”, que se baseia sobre um conceito idealista de nação. Por seu cuidado histórico, e por observar o discurso literário em sua
concretude, ele também pensou acerca do desenvolvimento da cena literária,
levando em conta as predominâncias de períodos (o realismo que se opõe ao
romantismo, por exemplo), fases, gerações de escritores etc., mas sem esquecer
que estava tratando de generalizações que poderiam conter lacunas.
A atenção do crítico precisa estar redobrada para perceber a relação entre o
elemento externo à literatura (as dinâmicas sociais) e seu papel na constituição
da forma da obra analisada, ou seja, sua transformação em elemento interno da
obra. Uma de suas discussões centrais é a consideração das influências “à luz da
dependência causada pelo atraso cultural” (CANDIDO, 1987, p. 151). Em virtude
de sua história anterior de submissão à metrópole, os países latino-americanos
teriam se afastado das antigas metrópoles, buscando modelos nas literaturas de
outros países, especialmente a França. E essa é a razão, inclusive, para o continente não se chamar América Ibérica e sim América Latina, pelo peso, na época,
que se atribuía à latinidade como componente da identidade cultural francesa.
36
A literatura entre as nações (e para além)
Assim, mesmo buscando diferenciar-se da Europa, os escritores e intelectuais
brasileiros e latino-americanos buscam modelos e interlocução com literaturas
europeias. E mesmo o diálogo com Portugal e Espanha prossegue, apesar dos
sinais de distância e estranhamento. Por isso, Candido considera inevitável destacar que o uso de formas importadas continuou sendo uma marca da literatura
em nosso continente, mas que ali se teriam manifestado temas e sentimentos próprios. Isso possibilitaria superar uma relação de dependência, e então se passaria
a cultivar uma relação de “participação e de contribuição a um universo cultural ao qual pertencemos, que ultrapassa as nações e os continentes” (CANDIDO,
1987, p. 152). As deformações impostas às formas importadas, vistas de maneira
positiva como força criadora, romperiam as noções de causalidade e de hierarquia. E com isso a perspectiva comparatista de Candido ganharia uma dimensão
nova. Sobre a questão, Sandra Nitrini comenta que
O conceito de influência [de Antonio Candido] se libera da carga semântica determinista,
colonialista, positivista e etnocêntrica, tornando-se um instrumento comparatista
independente da chamada “escola francesa” da primeira metade [do século XX] ou de qualquer
outra. (NITRINI, 2000, p. 209)
Assim, essa tensão entre as soluções locais da cena brasileira (o indigenismo
de um José de Alencar, por exemplo) e internacionais (como a relação dessa obra
com o indigenismo francês e o reconhecimento dos romances de Alencar na
Europa e na América) seriam um motor importante para a constituição da literatura em nosso país e, de maneira geral, em nosso continente. Como vemos, tal
exercício da literatura comparada ganha dimensões novas, por revelar a maneira
como as dinâmicas sociais se cristalizam nas formas literárias, e como a literatura
é também agente no discurso social em que nasce e do qual participa.
Nesse sentido, um grande interlocutor de Antonio Candido no mundo hispano-americano foi o uruguaio Angel Rama. Também ele confrontou-se com
conceitos de independência e originalidade, estando particularmente preocupado com as vinculações entre literatura e cultura. Com grande erudição sobre as
literaturas de língua espanhola no continente, e considerando em suas reflexões
vários autores e pensadores brasileiros, como Guimarães Rosa e Gilberto Freyre,
Rama colocou no centro de suas reflexões o conceito de transculturação narrativa, que em vários pontos coincide com noções e intuições de Candido.
No sentido da superação dos limites da abordagem comparatista europeia
tradicional, Rama antecipa aspectos importantes da presença das muitas vozes
do povo e da cultura popular que ganham forma entre os escritores de nosso
continente:
37
Literatura Comparada
[...] na originalidade da literatura latino-americana está presente, como um norte, seu afã
internacionalista, movediço e inovador, que mascara outra fonte de alimentação mais vigorosa
e persistente: a peculiaridade cultural desenvolvida no interior, que não foi obra única de suas
elites literárias, mas sim o esforço dedicado de vastas sociedades construindo suas linguagens
simbólicas. (RAMA, 2007, p. 17, tradução nossa)
Na percepção de Rama, em relação aos processos coletivos que a literatura do
continente passava a incorporar, confirmava-se uma vez mais o caráter discursivo da literatura, seu afã, sua vontade de figurar mais que uma voz subjetiva. Esse
esforço das “sociedades do interior” por fundar, elas mesmas, um discurso sobre
questões tão suas talvez conquistasse na literatura brasileira e hispano-americana, pela primeira vez, forma apta para a discussão de um problema urgente
no debate internacional: a contribuição de nosso continentente – multicultural e multiétnico – antecipava desafios da internacionalização em nível global
e apontava para possibilidades e riscos da preservação ou desaparecimento de
muitas vozes locais diante da unificação de comportamentos e estruturas cada
vez mais complexas, reguladas e padronizadas.
Textos complementares
O Estado nacional europeu: sobre o passado e o
futuro da soberania e da nacionalidade
(HABERMAS, 2002)
Como revela a designação Nações Unidas, hoje a sociedade mundial é
constituída por Estados nacionais. O tipo histórico decorrente da Revolução
Francesa e da Revolução Norte-americana impôs-se em todo o mundo. E
essa circunstância não é nada trivial.
As nações-Estado clássicas no Norte e Oeste Europeus surgiram no interior de Estados territoriais já existentes. Eles eram parte do sistema estatal
europeu que já havia tomado forma na Paz Westfaliana de 1648. Em contrapartida, as nações “tardias”, a Itália e a Alemanha em primeiro lugar, assumiram um outro desenvolvimento, típico também para as formações nacionais
da Europa Central e Oriental. Aqui, a formação do Estado seguiu os vestígios
de uma consciência nacional precipitada e disseminada com recursos de
propaganda. A diferença dessas duas trilhas (from state to nation versus from
38
A literatura entre as nações (e para além)
nation to state) reflete-se na origem dos atores que constituíam a vanguarda
na formação do Estado ou da nação, caso a caso. De um lado estavam juristas, diplomatas e militares que pertenciam ao Estado-maior em torno do
rei e que criaram uma “entidade estatal” racional; de outro, havia escritores
e historiadores, sobretudo eruditos e intelectuais, que, com a propagação
da unidade mais ou menos imaginária de uma “nação cultural”, estiveram
ocupados em preparar a unificação estatal imposta (apenas em um segundo
momento) por via diplomático-militar (por Cavour ou Bismarck, por exemplo). Uma terceira geração de Estados nacionais muito diversos surgiu após a
Segunda Guerra Mundial, como decorrência do processo de descolonização,
sobretudo na África e na Ásia. Não raro, esses Estados fundados nos limites
do domínio colonial precedente já reclamavam soberania antes mesmo que
as formas de organização estatais importadas pudessem lançar raízes sobre
o substrato de uma nação – que ultrapassava os limites tribais. Nesses casos,
Estados artificiais tiveram que ser “preenchidos” com nações que iam crescendo posteriormente. Por fim, a tendência à formação de Estados nacionais
independentes continuou na Europa Oriental e Meridional, após o colapso
da União Soviética, na trilha de secessões mais ou menos violentas; na situação social e econômica precária desses países, os velhos apelos etnonacionais foram suficientes para mobilizar populações vacilantes de modo que
assumissem a luta pela independência.
Hoje, portanto, o Estado nacional impôs-se definitivamente sobre as formações políticas mais antigas. [...] também reapareceram as estruturas dos
impérios da Antiguidade, inicialmente sob a forma do Sacro Império Romano-germânico, e mais tarde nos Estados pluriétnicos dos impérios russo, otomano e austro-húngaro. Mas nesse ínterim, o Estado nacional recalcou essas
heranças pré-modernas. No momento, observamos a profunda transformação da China, o último dos antigos impérios.
Na concepção de Hegel, toda formação histórica, a partir do momento
de sua maturidade, está condenada à decadência. Não é preciso adotar sua
filosofia da história para reconhecer que essa marcha vitoriosa do Estado
nacional tem também sua face irônica. A seu tempo, o Estado nacional foi
uma resposta convincente ao desafio histórico de encontrar um equivalente
funcional às formas de integração social tidas na época como em processo
de dissolução. Hoje, estamos novamente diante de um desafio análogo. A
globalização do trânsito e da comunicação, da produção econômica e de seu
39
Literatura Comparada
financiamento, da transferência de tecnologia e poderio bélico, em especial
dos riscos militares e ecológicos, tudo isso nos coloca em face de problemas
que não se podem mais resolver no âmbito dos Estados nacionais, nem pela
via habitual do acordo entre Estados soberanos. Salvo melhor juízo, tudo
indica que continuará avançando o esvaziamento da soberania de Estados
nacionais, o que fará necessária uma reestruturação e ampliação das capacidades de ação política em um plano supranacional que, conforme já vimos
observando, ainda está em fase incipiente. Na Europa, na América do Norte
e na Ásia, estão se constituindo formas de organização supraestatal para “regimes” continentais, que poderiam até mesmo ceder a infraestrutura necessária às Nações Unidas, ainda hoje muito ineficientes.
Contudo, esse passo abstrativo ainda incompleto dá apenas continuidade a um processo para o qual a atuação integradora do Estado nacional
constitui um primeiro grande exemplo. Por isso defendo a opinião de que
podemos nos orientar nesse caminho incerto rumo às sociedades pós-nacionais justamente segundo o modelo da forma histórica que estamos prestes
a superar.
Candido e Rama
(MARTINEZ, 2009)
Uma obra fundamental para compreensão dessa coerência de um legado
crítico interno é Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos, de Antonio Candido. Desde a sua primeira publicação, em 1959, a obra do crítico
brasileiro estabeleceu um divisor de perspectivas crítico-histórica e analítica
na questão da origem da literatura brasileira utilizando os conceitos metodológicos de manifestações literárias e sistemas literários. Segundo o autor, a
literatura é um sistema dinâmico que tem como componente a relação inter-humana estabelecida entre autor e leitor mediante a linguagem simbólica
da literatura. Em conjunção, os três elementos (autor – obra – público) estabelecem a diferenciação entre os conceitos metodológicos propostos por
Antonio Candido. Em linhas gerais, o autor igualmente reflete a literatura
brasileira como um processo formativo que leva em consideração quando há
40
A literatura entre as nações (e para além)
uma tradição literária interna e a constituição de um público leitor legitimado
nesse espaço, como também a configuração de particularidades que definem
a literatura brasileira como individual no legado literário universal, havendo,
assim, a consolidação do sistema literário brasileiro. Nota-se nos trabalhos
de Antonio Candido a sua visão sociológica no sentido de que a literatura é
fruto da sociedade, logo, é importante para a sua cultura.
Tal perspectiva é correlata a dos estudos de Angel Rama, que tratava a
literatura como elemento integrante da cultura, e não como um mero objeto
artístico independente do sistema cultural das civilizações. A partir da multidisciplinaridade, os estudos de Angel Rama sobre as narrativas latino-americanas transcendem o objeto artístico (a obra literária). Em outras palavras,
inserindo a obra em contextos literários e avaliando-a como parte de um
processo histórico-cultural, Angel Rama discutiu sobre a importância da literatura na sociedade da América Latina. Assim, a noção de cultura serve como
postulado teórico e metodológico que o crítico em questão teve como base
de toda sua produção intelectual. Igualmente, os estudos de Angel Rama desenvolveram os conceitos de comarcas e de geração para tratar das especificidades dos sistemas literários latino-americanos. Em linhas gerais, o termo
comarcas refere-se ao território geográfico, social e cultural das regiões da
América Latina que, em alguns estudos, correlacionam as dimensões geográficas do Brasil e da América Hispânica. Se o termo nação era insuficiente
para analisar as literaturas latino-americanas – devido à própria amplitude
do território geográfico e cultural – o termo comarcas analisaria como que as
especificidades culturais, territoriais e sociais das regiões do continente latino-americano são elementos constituintes desses sistemas literários. A razão
e a importância do conceito criado por Rama visam a apreciar como que as
obras literárias que abordam a tradição regional em paralelo com a tradição
universal partem da concepção de homogeneidades (cultural, geográfica e
linguística) para a construção da cosmovisão literária que, simbolicamente,
representaria o universo cultural da América Latina. Nessa avaliação, há nos
estudos de Rama, por exemplo, a apresentação de que na literatura da América Latina predominaram as abordagens das macrorregiões (ou sistemas
nacionais) e das microrregiões (ou subsistemas regionais), sendo que o processo de transculturação na narrativa no século XX ocorre a partir dos subsistemas culturais para chegar ao significado das comarcas da América Latina.
41
Literatura Comparada
Em outras palavras, isso significa que um sistema não exclui o outro, mas sim
o engloba. O resultado dessa união é a apresentação de um sistema orgânico
que Rama classificou como cultura integrada. Quanto ao significado do conceito geração, Angel Rama buscou compreender como que determinados
grupos de intelectuais constroem conscientemente projetos culturais, tais
como os escritores das gerações romântica e realista da América Hispânica
que reivindicavam a autonomia da literatura hispano-americana na grande
maioria do século XX. Ou seja, para o autor, os escritores não são apenas sujeitos contemporâneos, sobretudo são grupos de intelectuais engajados na
promoção da cultura interna das sociedades. Por essa razão, o crítico trabalha
sob a visão de cultura militante que seria justamente essa atitude consciente
e também política dos escritores de se fazer projetos culturais que indicassem o progresso das novas nações. Quanto a essa questão, destacamos a correlação com a proposta de Antonio Candido no que diz respeito à tradição
e consciência entre os autores nessa construção de uma literatura própria.
Segundo Angel Rama, os impulsos modeladores dos sistemas literários hispano-americanos – independência, originalidade e representatividade – são
inteligíveis nas perspectivas da crise de identidade e de autonomia literária.
Nos dois últimos séculos (XIX e XX), os impulsos modeladores estão regidos
pelo movimento pendular entre o polo externo (Ocidente) e o interno (América). A partir do impulso da representatividade da região, que modelou a
visão nacionalista dos realistas do século XIX na medida em que a região
era concebida como cultura, a literatura hispano-americana dos primeiros
decênios do século posterior apresenta duas perspectivas: a primeira, cosmopolita e a segunda, realista-crítica. Em resumo, a visão cosmopolita dos
regionalistas promovia o mito da pátria das nações emancipadas, ao tempo
em que na geração realista-crítica o progresso das nações, sobretudo das
metrópoles (a capital urbana), esbarra nas questões políticas e econômicas.
A disputa entre os regionalistas e os vanguardistas ocasionou na intensificação da ambivalência narrativa: campo versus cidade, rural versus metrópoles,
tradição versus modernização. Porém, segundo Angel Rama, a importância
das divergências literárias entre os dois grupos deve-se à modernização da
representatividade das regiões e de suas culturas.
42
A literatura entre as nações (e para além)
Atividades
1. O que distingue as escolas francesa e norte-americana na área de Literatura
Comparada?
43
Literatura Comparada
2. Qual a restrição feita por René Wellek à literatura comparada e como se resolve o impasse decorrente de sua crítica?
3. A literatura comparada precisou superar que grande restrição conceitual, herança do Romantismo, para abrir-se e desenvolver-se como disciplina?
44
A literatura entre as nações (e para além)
4. Explique qual a contribuição especial do pensamento latino-americano para
os estudos de Literatura Comparada.
Dicas de estudo
Para uma boa compreensão da história recente dos Estudos Literários, em
que a Literatura Comparada ocupa um lugar especial, recomenda-se a leitura
das três obras a seguir:
NITRINI, Sandra. Literatura Comparada: história, teoria e crítica. São Paulo:
Edusp, 1997.
TADIÉ, Jean-Yves. A Crítica Literária no Século XX. Rio de Janeiro: Bertrand,
1992.
EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: uma introdução. São Paulo: Martins
Fontes, 2001.
45
Autores multiculturais: Franz Kafka
O contexto histórico-cultural de Franz Kafka
Franz Kafka nasceu em 1883 e morreu em 1924. Embora não tenha chegado em vida sequer ao final do primeiro quarto do século XX, é um dos
escritores mais característicos e conhecidos de todo esse período. E certamente um dos mais lidos, em especial seus textos breves e enigmáticos,
como A Metamorfose, de que vamos nos ocupar mais adiante, recebem a
atenção de milhões e milhões de leitores até hoje, em todo o mundo.
Sem ter vivido os horrores do totalitarismo fascista (Hitler subiu ao poder
na Alemanha em 1933), Kafka anteviu os horrores e o absurdo de uma sociedade dominada pela burocracia e controlada por sistemas de poder
autonomizados e violentos. Soube tratar essa situação com formas inovadoras, combinando a criação de personagens e histórias surpreendentes,
relatadas, porém, com linguagem sóbria e distante, às vezes perpassada de
um humor fino e ácido, às vezes marcada por desespero e agonia.
As torres de Praga.
Divulgação.
Domínio público.
Kafka nasceu em Praga, a “cidade das mil torres”, capital da atual República Tcheca. Era uma cidade milenar, de grande tradição cultural, e marcadamente eslava. A maioria da população falava o idioma tcheco (kafka é
a palavra tcheca para “corvo”).
Literatura Comparada
IESDE Brasil S.A.
Durante quase toda a vida do escritor, no entanto, a cidade e toda a Boêmia
(região de que Praga era capital) fizeram parte do Império Áustro-Húngaro, que
era, também ele, um “caldeirão” de etnias, línguas e povos: a população era composta por austríacos, tchecos, morávios, poloneses, eslovacos, húngaros, romenos, bósnios, croatas, entre outros. O domínio político na Boêmia era exercido
por Viena, capital da Áustria, e por isso a elite da cidade falava alemão. Assim, o
alemão era a língua de maior prestígio, usada pela administração, pelos jornais,
pelas melhores escolas e universidades.
O Império Áustro-Húngaro em 1914.
Vindos do interior, os familiares de Kafka haviam migrado para Praga poucos
anos antes de ele nascer. Eram judeus e, como a grande parte dos integrantes
de seu povo, durante séculos haviam sido proibidos de viver nas cidades. Por
isso, habitavam áreas rurais, tinham uma cultura e uma religião próprias e falavam também outra língua, o ídiche (uma mistura de hebraico e dialeto alemão
medieval).
48
Autores multiculturais: Franz Kafka
Ou seja, Franz Kafka nasceu como judeu, em uma cidade tcheca, marcado por
um ambiente linguístico e cultural de fala alemã. Estava sempre fora de lugar,
porque as tensões e preconceitos entre esses três universos eram muito grandes:
os tchecos eram desprezados pelos austríacos de fala alemã e odiavam seus dominadores vindos de Viena, mas partilhavam com eles os fortes preconceitos e
hostilidade contra os judeus. (Vale lembrar que não foram os nazistas que inventaram o antissemitismo: eles apenas se aproveitaram dos preconceitos e ódios
raciais contra os judeus, que já graçavam na Europa havia muito tempo, e de
modo particular na Europa Central.) Assim, a obra de Kafka, escrita em alemão,
nasce dessa “desterritorialização”, desse deslocamento e falta de identidade do
escritor, em tensão e diálogo com as tradições das literaturas e culturas de língua
alemã, eslava e judaica, em um tempo de enormes transformações sociais, políticas e econômicas.
Os grandes textos de Kafka foram escritos entre os anos que precederam a
Primeira Guerra Mundial (principalmente 1912) e o fim desse conflito, que durou
de 1914 a 1918. Depois de quatro anos de horrores, na guerra lenta e dolorosa
nas trincheiras, a Europa mudou radicalmente: o mundo deixava para trás a era
das grandes monarquias e avançava para a modernidade, sob o ritmo de um
processo de industrialização e urbanização. Mas o pior ainda estava por vir, com
o fascismo, os genocídios, a bomba atômica. Apenas sensibilidades raras como
a de Kafka puderam antever os desdobramentos que se consolidariam na “era
dos extremos”, segundo designação atribuída ao século XX pelo historiador Eric
Hobsbawm: progresso e barbárie, desenvolvimento científico e miséria, sofisticação artística e banalização da cultura de massas, conquistas culturais e violência sem precedentes.
Vida e obra de um escritor à
frente de seu tempo
O conhecido conflito entre Franz Kafka e Hermann, seu pai, não era um caso
raro nas famílias judaicas na Europa de língua alemã. A Carta ao Pai, um dos textos
mais conhecidos do escritor, é documento característico de sua geração. Trata-se
de uma longa recriminação que Franz dirige a seu pai, condenando a maneira
como ele tratava o filho, conduzia a família e buscava lugar na sociedade. Um dos
argumentos recorrentes no texto é o do apressado abandono das raízes culturais
judaicas, atribuído à ânsia de reconhecimento social a qualquer custo.
49
Literatura Comparada
Essa era a situação de muitos judeus da geração de Hermann Kafka. Por
exemplo, na Prússia (um poderoso Estado vizinho ao Império Austro-Húngaro),
em 1867, a grande maioria dos judeus (70% deles) vivia no meio rural, em pequenas aldeias. Mas 60 anos mais tarde, em 1927, esse número havia caído para
15%. Houve na época, portanto, um grande êxodo rural entre a população judaica, e muitos dos que chegavam às cidades cuidavam de apagar as raízes culturais e religiosas que os antepassados cultivavam há séculos.
Hermann Kafka, como muitos brasileiros nas décadas de 1960 e 1970, havia
migrado para a cidade e pretendia “subir na vida”, alcançando reconhecimento
social o mais rápido possível. Depois de chegar à cidade, a maioria dos judeus de
classe média passou a querer assimilar-se, aculturar-se (assumir a cultura local
de prestígio) e integrar-se à nação de língua alemã. Além disso, muitos procuraram apagar a herança cultural judaica que traziam, já que eram fortíssimos os
preconceitos antissemitas. Segundo o estudioso Robert Alter,
Kafka é o crítico mais implacável da insipidez e da futilidade do projeto paterno de assimilação
[à cultura alemã burguesa]. Em Carta ao Pai, ele reflete sobre o vazio da preservação superficial
de vestígios de judaísmo e alimenta a fantasia de que caso o seu pai tivesse permanecido fiel
aos costumes tradicionais, o judaísmo poderia ter se tornado um ponto comum entre os dois.
(ALTER, 1992, p. 55)
Como a cultura dominante em Praga era a austríaca, judeus assimilados
como Hermann Kafka trataram de mandar seus filhos para as melhores escolas
e universidades de fala alemã. Em 1895, havia 10% de alunos judeus em universidades alemãs, mas a população de judeus correspondia a apenas 1% da população total. Essa foi uma das razões para a grande intelectualização dos judeus
de língua alemã, acima da média se comparamos com o restante da população.
O psicanalista Sigmund Freud (1856-1939), o escritor Stefan Zweig (1881-1942)
e o físico Albert Einstein (1879-1955) são outros nomes muito conhecidos de judeus-alemães que marcaram a cena intelectual daquele tempo. O próprio Franz
Kafka escreveu sobre isso em carta a seu amigo Max Brod (1884-1968):
A maioria dos jovens judeus que começaram a escrever em alemão queria deixar o seu caráter
judaico para trás, e seus pais aprovavam isso, mas de uma maneira um pouco vaga (e é essa
imprecisão que lhes era tão abominável). No entanto, as patas de trás desses jovens ainda
estavam presas ao caráter judaico do pai, e suas patas dianteiras se agitavam no ar, sem
encontrar um terreno firme. O desespero resultante dessa situação tornou-se sua inspiração.
(apud ALTER, 1992, p. 56)
Único filho homem ao lado de três irmãs, Kafka cumpriu a expectativa do pai
em relação a uma formação profissional que garantisse ascensão social, e estudou
50
Direito. Como advogado, trabalhou
muitos anos em uma companhia estatal de seguros de acidentes de trabalho. Lá, como bom funcionário,
conheceu a refinada burocracia austro-húngara e a realidade de trabalhadores nas indústrias mecanizadas que, não raro, sofriam acidentes
graves em razão das más condições
de trabalho e cargas horárias excessivas. Mas à noite e nos dias livres
dedicava-se à literatura, a autores
como o russo Fiódor Dostoievski
(1821-1881), romancistas franceses,
os poetas e narradores expressionistas, textos da tradição judaica e
ídiche. E escrever, escrever muito.
Domínio público.
Autores multiculturais: Franz Kafka
São famosos os vários noivados
de Kafka com a berlinense Felice A última foto de Franz Kafka (1924).
Bauer, os anúncios de casamento desfeitos, retomados e frustrados mais uma
vez. As fases críticas da relação de ambos coincidiram com o surgimento das
principais obras de Kafka, principalmente entre 1912 e 1917.
O último dos noivados desfeitos coincidiu, em 1917, com o surgimento de
uma tuberculose pulmonar. Foi essa doença, sem cura na época, que acabou
por ocasionar a morte precoce do escritor, sete anos mais tarde. Uma contaminação da laringe nos últimos meses de vida impôs longo sofrimento ao autor de
Um Artista da Fome, que morreu de inanição e falência cardíaca pouco antes de
completar 41 anos.
Para a disciplina de literatura comparada, a obra de Kafka é particularmente
interessante porque deriva de um contexto multicultural, como fruto da confluência de diversas tradições. Além disso, foi depois recebida sob contextos diferentes, distantes daquele em que foi escrita.
A obra de Kafka também foi um impulso de inovação literária, por exemplo,
para muitos autores latino-americanos em meados do século XX. Não se pode
51
Literatura Comparada
pensar o realismo mágico em nosso continente sem levar em conta a matriz
kafkiana. O argentino Jorge Luís Borges (1899-1986) foi um dos grandes nomes a
difundir a obra de Kafka no mundo hispano-americano. No Brasil, a revista literária Joaquim, coordenada por Dalton Trevisan, foi uma das primeiras a trazer matérias e textos sobre o autor tcheco entre 1946 e 1948. E um dos principais autores do boom internacional da literatura latino-americana, o colombiano Gabriel
García Márquez, relata como foi decisiva para ele a leitura de A Metamorfose, que
conheceu em 1947, como estudante do primeiro ano do curso de direito:
Domingo Manuel Vega, un estudiante de medicina que ya era mi amigo desde Sucre y
compartía conmigo la voracidad de la lectura [...], llegó una noche con tres libros que acababa
de comprar, y me prestó uno al azar, como lo hacía a menudo para ayudarme a dormir. Pero
esa vez logró todo lo contrario: nunca más volví a dormir con la placidez de antes. El libro
era La Metamorfosis de Franz Kafka, [...] que definió un camino nuevo para mi vida desde la
primera línea, y que hoy es una de las divisas grandes de la literatura universal: “Al despertar
Gregorio Samsa una mañana, tras un sueño intranquilo, encontróse en su cama convertido en
un monstruoso insecto.” Eran libros misteriosos, cuyos desfiladeros no eran sólo distintos sino
muchas veces contrarios a todo lo que conocía hasta entonces. No era necesario demostrar
los hechos: bastaba con que el autor lo hubiera escrito para que fuera verdad, sin más pruebas
que el poder de su talento y la autoridad de su voz. (GARCÍA MÁRQUEZ, p. 296)1
A Metamorfose: pop, cult and more
A história do caixeiro-viajante Gregor Samsa (o sobrenome da personagem
brinca com a semelhança Kafka-Samsa) talvez seja a mais popular que Kafka
criou. O rapaz que acorda “de sonhos intranquilos” e se acha transformado em
um inseto monstruoso habita o imaginário moderno como um mito pop, presente em filmes de animação, quadrinhos e música. Entre centenas de outros
exemplos, no início dos anos 1990, o grupo musical brasileiro Inimigos do Rei
popularizou o tema com a canção Uma barata chamada Kafka; em 2000, o diretor Tulio Viaro produziu o filme de animação Metamorfose (cor, 17min); e o desenhista Peter Kuper adaptou a história para os quadrinhos, em edição disponível
também em português.
1
“Domingo Manuel Vega, um estudante de medicina que já era meu amigo desde Sucre e compartilhava comigo a voracidade da leitura [...],
chegou uma noite com três livros que acabava de comprar, e me emprestou um deles ao acaso, como fazia amiúde para me ajudar a dormir. Mas
dessa vez ele conseguiu bem o contrário: nunca mas voltei a dormir com a placidez de antes. O livro era A Metamorfose de Franz Kafka, [...] que
definiu um caminho novo para minha vida desde a primeira linha, e que hoje é um dos grandes marcos da literatura universal: ‘Quando certa manhã
Gregor Samsa despertou, depois de uma noite mal dormida, achou-se em sua cama transformado em um monstruoso inseto.’ Eram livros misteriosos, cujos abismos não eram apenas distintos mas muitas vezes contrários a tudo o que eu conhecia até então. Não era necessário demostrar
os fatos: bastava que o autor os houvesse escrito para que fossem verdadeiros, sem mais provas que o poder de seu talento e a autoridade de sua
voz.” (Tradução nossa)
52
Domínio público.
Autores multiculturais: Franz Kafka
Divulgação.
A capa da revista alemã Der jüngste Tag [O Juízo Final] de 1916, primeira a publicar o texto, atendeu ao pedido de Kafka de que não se figurasse um inseto na
capa. O escritor queria manter a interpretação da metáfora a cargo do leitor.
53
Literatura Comparada
Gregor Samsa vasculha seu quarto com o olhar enquanto vai identificando os
sinais da transformação de seu corpo (voz diferente, pernas compridas e desajeitadas, barriga e costas abauladas, sensações estranhas em torno de uma área
esbranquiçada sobre o ventre, que lhe dava calafrios). Mostra-se especialmente
apegado à foto de uma mulher vestida com peles, recortada de uma revista.
Os traços adolescentes tardios do personagem parecem impor-se e sugerir um
texto curiosamente atual sobre a condição de quem, fisicamente transformado,
mantém-se em casa controlado pela família, sem uma atividade profissional que
lhe satisfaça e tendendo a um estado depressivo e decadente.
Já no início da narrativa, a família (o pai, a mãe e a irmã Grete) bate às portas
laterais do quarto, pedindo que Gregor abra. Ameaçam chamar o patrão do
rapaz, que de fato aparece e o recrimina. Gregor havia se atrasado para o trabalho. Afinal, decide ficar em casa, não vê mais sentido na vida de caixeiro-viajante
que levava. O personagem se isola do mundo do trabalho e concentra-se, de
maneira irresponsável, sobre si mesmo e as transformações do próprio corpo.
Quando se arrisca a sair do quarto, causa susto e repugnância na família. O pai
trata de enxotá-lo para dentro e fere-o a cada vez que o expulsa novamente
para seu lugar. Gregor, que já não servia mais para sustentar a família, limita-se a
ficar confinado no quarto, sofre com o imenso carinho que sente pela irmã e vai
definhando em meio à sujeira que produz, até morrer.
Depois da morte do filho problemático, a família se revigora. Tendo se livrado
do estorvo que o irmão representava, passeia pela cidade, na cena final da narrativa. A irmã, exuberante, é contemplada com orgulho pelos pais, que veem nela
a moça ideal para conquistar um bom marido. As últimas linhas do texto:
É claro que a grande melhora imediata da situação viria, facilmente, da mudança de casa; [o pai,
a mãe e Grete] agora queriam um apartamento menor e mais barato, mas mais bem situado
e sobretudo mais prático que o atual, que tinha sido escolhido ainda por Gregor. Enquanto
conversavam assim, ocorreu ao senhor e à senhora Samsa, quase que simultaneamente, à
vista da filha cada vez mais animada, que ela – apesar da canseira dos últimos tempos, que
empalidecera suas faces – havia florescido em uma jovem bonita e opulenta. Cada vez mais
silenciosos e se entendendo quase inconscientemente através de olhares, pensaram que já era
tempo de procurar um bom marido para ela. E pareceu-lhes como que uma confirmação dos
seus novos sonhos e boas intenções quando, no fim da viagem, a irmã se levantou em primeiro
lugar e espreguiçou o corpo jovem. (KAFKA, 1987, p. 85)
A dicção crítica e ácida de Kafka reflete sobre o abismo entre a subjetividade
de Gregor e o papel social e econômico que a família e a sociedade impõem a
ele. Por mais absurda e fantástica que possa parecer, a história da transformação
tem um fundamento prático muito concreto: o fracasso do homem-inseto e o
cinismo calculista da família que dele esperava sustento e bom comportamento,
oferecem ponto de partida fértil para se pensar nas relações do jovem com a
54
Autores multiculturais: Franz Kafka
família, nas expectativas burguesas de inserção na vida do trabalho, nas consequências de se ignorar e reprimir a sexualidade que desponta.
Aqui, um procedimento comparativo torna-se especialmente frutífero. Para
a leitura e interpretação do texto de Kafka, cabe pensar nos gêneros textuais
com que A Metamorfose dialoga. Um deles, por causa do motivo fundamental da
transformação de homem em animal e vice-versa, é o conto de fadas. Lembre-se,
por exemplo, das histórias O Príncipe Sapo ou Irmãozinho e Irmãzinha. Da mesma
forma, como neste último conto, as dinâmicas familiares conflituosas são característica marcante dos contos de fadas. Inclusive, o nome da irmã de Gregor no
original alemão, Grete, remete a um conto de fadas como esse, muito popular:
João e Maria (ou Joãozinho e Margarida, como já foi traduzido no Brasil) chama-se em alemão Hänsel und Gretel.
Um conto de fada
João e Maria é a história de um lenhador que é convencido pela mulher
a abandonar as crianças na floresta, já que não se podia sustentar a todos. A
questão da necessidade econômica está no centro do conto. Se hoje muitas
famílias pobres abandonam os filhos na rua, algo parecido também acontecia na Europa da Idade Média. O conto João e Maria foi entendido pelos
especialistas como uma espécie de recriminação dessa prática antiga de
abandonar os filhos quando não há condição de sustentá-los. Como se sabe,
os contos de fadas tiveram origem na tradição oral: eram histórias contadas
oralmente fazia muito tempo, e no século XIX foram recolhidas e trabalhadas por escritores e intelectuais, como é o caso dos irmãos Jakob e Wilhelm
Grimm, na Alemanha.
Todos conhecemos a história do casal de irmãos pequenos abandonados
na floresta. Depois de uma tentativa acertada de Joãozinho para encontrar o
caminho de casa, quando ele marca o caminho com cascalho, os irmãos são
levados novamente para lá e deixados sozinhos pelo pai, a mando da mãe.
Nessa segunda ocasião, Joãozinho não tem sucesso, pois marca o caminho
com migalhas de pão que os pássaros comem. Ele deixa de ser o herói da
história, abandona o papel de homenzinho salvador que lhe parecia reservado. Grete e ele chegam a uma casa feita de doces, mas descobrem ser na
verdade a morada de uma bruxa má. A bruxa prende Joãozinho e coloca
Maria (ou Grete) para trabalhar. Grete é esperta, engana a bruxa, mata-a,
jogando-a no forno aceso, e liberta o irmão. Agora é Grete que assume o
55
Literatura Comparada
papel de salvadora. Os dois irmãos voltam para casa, levando o tesouro da
bruxa, e quando chegam lá reencontram o pai – a mãe malvada havia morrido – e assim os três podem viver felizes para sempre.
O conto de fadas opera um recurso interessante: no espaço imaginário,
morava uma bruxa na casa encantada. Nesse espaço paralelo ao espaço do
mundo nu e cru da realidade, Grete pode matar a bruxa e tornar-se a heroína.
Ela salva o irmão e volta para o pai. Mas quando retorna, naquele outro espaço
da realidade, a “bruxa”, que era sua mãe malvada, também havia morrido. Os
intérpretes do conto de fadas percebem que a imaginação popular tratava de
criar um espaço mágico para “dar o recado” às mães malvadas que abandonavam seus filhos: elas eram como bruxas más e um dia teriam seu castigo.
De certa maneira, uma das inovações do texto de Kafka é perceber essa separação entre o espaço mágico e o espaço do mundo real nos contos de fadas, e
então suspendê-la. Ou seja: para falar dos conflitos e problemas na casa da família Samsa, Kafka superpõe o espaço imaginário (da transformação em inseto) e o
espaço “real” (da vida cotidiana da família). Com isso, confere mais força e estranheza à história que conta, tornando mais impactante seu enredo e sua forma.
Potencializa os significados possíveis e intensifica as possibilidades de figuração
literária da situação que descreve.
Pela mimese da situação de um jovem em determinada situação familiar e
profissional, Kafka oferece uma resposta inesperada à comunidade de comunicação de que participa. A questão da adolescência prolongada, por exemplo; o
problema da inserção no mercado de trabalho sob exigências que não levam em
conta as aspirações à liberdade individual; ou a falta de habilidade para conciliar amadurecimento social e psicológico – todas essas questões vêm à tona sob
uma forma nova, acessível à leitura e apreciação por todos os leitores da curiosa
história de Gregor Samsa.
Kafka recorre à dimensão estética da linguagem de modo intenso e inovador
ao velar e revelar a concretude material e a dinâmica emocional de seu personagem por meio da sua suposta transformação em um inseto e das reações da
família a isso. Por recorrer à figuração ficcional dessa situação, o escritor torna-se
capaz de falar de si mesmo, mas principalmente em caráter geral: pode ser lido
hoje como há quase cem anos sem que sua obra perca em interesse ou relevância para a comunidade de leitores.
Algo semelhante acontece com seu romance O Processo.
56
Autores multiculturais: Franz Kafka
O Processo: os descaminhos nossos de cada dia
Como advogado e funcionário com anos de trabalho na companhia de seguros estatal da Boêmia, o escritor Franz Kafka conhecia bem os meandros dos sistemas administrativo e jurídico do Estado moderno. Em O Processo, ele combina
a dimensão da vida individual do protagonista Josef K. e a falta de vínculo dessa
vida com os sistemas formais em que ela estava inserida. A obra permaneceu
inconclusa, embora o início e o fim tenham sido as primeiras partes a ser escritas,
por volta de agosto de 1914. Assim, para o leitor de hoje, não fica tão forte a impressão de inacabamento (como é o caso de outro grande romance de Kafka – O
Castelo, em que a história de fato se interrompe de uma hora para outra). Vamos
ao enredo.
No dia de seu aniversário de 30 anos, o protagonista de O Processo percebe,
ao acordar, que seu quarto havia sido invadido. “Certamente alguém havia caluniado Josef K.” (KAFKA, 1993, p. 7), conjectura o narrador, já que supostos funcionários declaram-no preso e recomendam que se ocupe do processo que se
movia contra ele. Sem qualquer outra explicação, dispensam-no e vão embora.
Funcionário bem posicionado em um banco, o solitário Josef K. passa a cuidar
de seu processo, procura se informar sobre a origem de sua culpa. Mas não parece
muito consciente sobre do que acontece ao redor. Mesmo depois da experiência
insólita da “detenção” pelos supostos agentes do poder, o narrador comenta:
Que tipo de pessoas eram aquelas? Do que elas falavam? A que autoridade pertenciam? K.
ainda vivia em um Estado de direito, reinava paz em toda parte, todas as leis estavam em vigor,
quem ousava cair sobre ele de assalto em sua casa? (KAFKA, 1993, p. 10)
Para o leitor contemporâneo ao surgimento do romance, soa irônico o comentário sobre “reinar paz em toda parte”: Kafka começou a escrever o romance
poucos dias após o início da Primeira Guerra Mundial, como veremos.
Sem entender o que acontece, Josef K. percorre os labirintos obscuros de
salas de tribunal, escritórios de advogados, repartições públicas, em um clima
de nonsense e indefinições. Depois da busca de apoio e conselho junto a várias
personagens, Josef K. dedica-se, no penúltimo capítulo, a uma longa conversa
com o capelão de uma catedral: com base na parábola “Diante da lei”, ambos discutem sobre a possibilidade de entendimento mútuo, mas não chegam a uma
resposta conclusiva.
No capítulo seguinte – o último – Josef K. entrega-se enfim a seus executores
e é morto em uma cena tragicômica, com alusões sacrificiais que lembram refe57
Literatura Comparada
rências judaicas, em especial o sacrifício de Isaac por Abraão. Para o protagonista
de Kafka, no entanto, não há redenção, ninguém interfere a seu favor. Deitado
sobre uma pedra, com o tronco despido, Josef K. ainda avista um último lampejo
de esperança, que afinal se esvai:
Seu olhar incidiu sobre o último andar da casa situada no limite da pedreira. Como uma luz que
tremula, as folhas de uma janela abriram-se ali de par em par, uma pessoa que a distância e a
altura tornavam fraca e fina inclinou-se de um golpe para a frente e esticou os braços mais para
a frente ainda. Quem era? Um amigo? Uma pessoa de bem? Alguém que participava? Alguém
que queria ajudar? Era apenas um? Eram todos? Havia ainda possibilidade de ajuda? Existiam
objeções que tinham sido esquecidas? Sem dúvida, estas existiam. A lógica, na verdade, é
inabalável, mas ela não resiste a uma pessoa que quer viver. Onde estava o juiz que ele nunca
tinha visto? Onde estava o alto tribunal ao qual ele nunca havia chegado? Ergueu as mãos e
esticou todos os dedos.
Mas na garganta de K. colocavam-se as mãos de um dos senhores, enquanto o outro cravava
a faca profundamente no seu coração e a virava duas vezes. Com olhos que se apagavam, K.
ainda viu os senhores perto de seu rosto, apoiados um no outro, as faces coladas, observando
o momento da decisão.
– Como um cão – disse K.
Era como se a vergonha devesse sobreviver a ele. (KAFKA, 1993, p. 246)
A mistura de uma história tão particular, de um lado, com elementos muito
fortes de denúncia social contra o absurdo da burocracia no Estado moderno, de
outro lado, conferem ao romance um caráter único.
Na vida pessoal, o primeiro noivado de Kafka com Felice havia durado de 12
de abril (1.º de junho, oficialmente) a 20 de julho de 1914. Em seu diário, Kafka
relata suas viagens a Berlim, para encontrar a família da noiva: primeiro para a
celebração do noivado, depois para o anúncio formal do rompimento e pedido
de desculpas.
No início do noivado, a anotação do diário do dia 6 de junho relata o
seguinte:
Estava preso como um criminoso. Mesmo que tivessem me prendido com correntes de
verdade e colocado soldados diante de mim para me vigiar, mesmo assim não teria sido mais
constrangedor. Este foi o meu noivado; e todos esforçavam-se por me trazer à vida, mas como
não tinham sucesso, esforçavam-se então por me suportar como eu era. Mas [Felice] menos
que todos, e de uma forma plenamente justificada, pois ela é quem mais sofria. (KAFKA, 1994,
p. 153-154, tradução nossa)
E depois do rompimento, na anotação do dia 23 de julho:
O tribunal de justiça no hotel. O rosto de F. Ela passa as mãos pelos cabelos, limpa o nariz
com as mãos, geme. Fica rapidamente de pé e diz algumas coisas premeditadas, já guardadas
58
Autores multiculturais: Franz Kafka
há tempo, hostilidades. Na casa dos pais. Lágrimas isoladas da mãe. Digo o ponto que havia
decorado. O pai o compreende corretamente de todos os pontos de vista. Eles me dão razão,
não se diz nada ou quase nada contra mim. Demoníaco em toda inocência. (KAFKA, 1996, p.
24, tradução nossa)
O vocabulário dos procedimentos penais e jurídicos marca as formulações no
diário. O indivíduo Franz Kafka, especialmente sensível e devotado ao universo
literário, considera-se inapto para a vida burguesa em família.
Uma coincidência nada casual, no entanto, é que em 31 de julho desse mesmo
ano começa a movimentação de tropas na Áustria-Hungria.
Kafka não é convocado porque havia sido declarado indispensável pela repartição pública onde trabalhava. Seu cunhado, no entanto, havia ido para a guerra,
e por isso a irmã Elly e os sobrinhos vão morar com os pais. Franz muda-se para a
casa dela e lá, em 11 de agosto, dá início à produção do romance O Processo.
Até 1.º de outubro, dois terços do romance estão escritos. Mas a partir daí
ocorre um declínio no ritmo de produção. Cresce a vontade de retomar o contato com as pessoas e reatar o relacionamento com Felice. Ele volta a se corresponder com ela e marca novo encontro para janeiro de 1915. Em 20 de janeiro,
escreve as últimas linhas do romance.
Segundo alguns biógrafos, Kafka teria movido O Processo contra si, motivado
pelo afastamento de Felice e pela opção quase autodestrutiva que fizera, em
favor da vida de escritor.
O fracasso, de qualquer modo, virá para Kafka nas duas vertentes: é bem conhecido o fato de que pouco antes de morrer ele pediu ao amigo Max Brod que
queimasse todos os seus escritos, insatisfeito com a qualidade literária daquelas
tentativas e considerando-as meras anotações individuais, sem interesse para
qualquer outra pessoa.
Brod fez-nos o favor de não cumprir o último desejo de Kafka. E com isso
legou ao mundo – nascida de um amontoado de folhas manuscritas, anotações
“subjetivas” sem maior valor – uma das obras literárias mais impactantes do
século XX.
59
Literatura Comparada
Texto complementar
A seguir, outro dos textos muito conhecidos de Franz Kafka. Parte do capítulo
9 do romance O Processo, intitulado “Na catedral”, o texto “Diante da lei” foi publicado pelo escritor como conto autônomo na coletânea Um Médico Rural.
Diante da lei
(KAFKA, 1990, p. 23-25)
Diante da lei está um porteiro. Um homem do campo chega a esse porteiro e pede para entrar na lei. Mas o porteiro diz que agora não pode permitir-lhe a entrada. O homem do campo reflete e depois pergunta se então não
pode entrar mais tarde.
– É possível – diz o porteiro – mas agora não.
Uma vez que a porta da lei continua como sempre aberta e o porteiro
se põe de lado, o homem se inclina para olhar o interior através da porta.
Quando nota isso o porteiro ri e diz:
– Se o atrai tanto, tente entrar apesar da minha proibição. Mas veja bem:
eu sou poderoso. E sou apenas o último dos porteiros. De sala para sala
porém existem porteiros cada um mais poderoso que o outro. Nem mesmo
eu posso suportar a simples visão do terceiro.
O homem do campo não esperava tais dificuldades: a lei deve ser acessível a todos e a qualquer hora, pensa ele; agora, no entanto, ao examinar
mais de perto o porteiro, com o seu casaco de pele, o grande nariz pontudo, a longa barba tártara, rala e preta, ele decide que é melhor aguardar até
receber a permissão de entrada. O porteiro lhe dá um banquinho e deixa-o
sentar-se ao lado da porta.
Ali fica sentado dias e anos. Ele faz muitas tentativas para ser admitido e
cansa o porteiro com os seus pedidos. Às vezes o porteiro submete o homem
a pequenos interrogatórios, pergunta-lhe a respeito da sua terra natal e de
60
Autores multiculturais: Franz Kafka
muitas outras coisas, mas são perguntas indiferentes, como as que os grandes senhores fazem, e para concluir repete-lhe sempre que ainda não pode
deixá-lo entrar. O homem, que havia se equipado com muitas coisas para a
viagem, emprega tudo, por mais valioso que seja, para subornar o porteiro.
Com efeito, este aceita tudo, mas sempre dizendo:
– Eu só aceito para você não julgar que deixou de fazer alguma coisa.
Durante todos esses anos o homem observa o porteiro quase sem interrupção. Esquece os outros porteiros e este primeiro parece-lhe o único
obstáculo para a entrada na lei. Nos primeiros anos amaldiçoa, em voz alta
e desconsiderada, o acaso infeliz; mais tarde, quando envelhece, apenas resmunga consigo mesmo. Torna-se infantil e uma vez que, por estudar o porteiro anos a fio, ficou conhecendo até as pulgas da sua gola de pele, pede a
estas que o ajudem a fazê-lo mudar de opinião.
Finalmente sua vista enfraquece e ele não sabe se de fato está ficando
mais escuro em torno ou se apenas os olhos o enganam. Não obstante reconhece agora no escuro um brilho que irrompe inextinguível da porta da lei.
Mas já não tem mais muito tempo de vida. Antes de morrer, todas as experiências daquele tempo convergem na sua cabeça para uma pergunta que até
então não havia feito ao porteiro. Faz-lhe um aceno para que se aproxime,
pois não pode mais endireitar o corpo enrijecido. O porteiro precisa curvar-se profundamente até ele, já que a diferença de altura mudou muito em
detrimento do homem:
– O que é que você ainda quer saber? – pergunta o porteiro. – Você é
insaciável.
– Todos aspiram à lei – diz o homem. – Como se explica que em tantos
anos ninguém além de mim pediu para entrar?
O porteiro percebe que o homem já está no fim e para ainda alcançar sua
audição em declínio ele berra:
– Aqui ninguém mais podia ser admitido, pois esta entrada estava destinada só a você. Agora eu vou embora e fecho-a.
61
Literatura Comparada
Atividades
1. Explique a origem multicultural de Franz Kafka e a importância disso para os
estudos de sua obra pela disciplina de literatura comparada. Em que língua
ele escreveu sua obra?
62
Autores multiculturais: Franz Kafka
2. Faça um resumo, em ordem cronológica, dos fatos da vida de Franz Kafka
mencionados ao longo deste capítulo.
3. Quais aspectos de A Metamorfose contribuíram para a popularização do texto?
63
Literatura Comparada
4. Explique e desenvolva o paralelo entre o conto de fadas João e Maria e A
Metamorfose.
5. Comente as relações entre vida privada e burocracia estatal denunciadas no
romance O Processo.
64
Autores multiculturais: Franz Kafka
Dicas de estudo
KAFKA, Franz. A Metamorfose. Tradução de: PASCHOAL, Erlon José. São Paulo:
Estação Liberdade, 1989.
KAFKA, Franz. A Metamorfose. Tradução de: CARONE, Modesto. 2. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000.
KAFKA, Franz. A Metamorfose. Tradução de: BACKES, Marcelo. Porto Alegre:
Companhia das Letras, 2001.
KAFKA, Franz. O Processo. Tradução: CARONE, Modesto. São Paulo: Companhia
das Letras, 2005. Edição de bolso.
KAFKA, Franz. O Processo. Tradução de: BACKES, Marcelo. Porto Alegre: Companhia das Letras, 2006.
Não deixe de ler A Metamorfose e O Processo na íntegra. Ambos estão disponíveis em boas traduções para o português do Brasil. O tradutor Modesto Carone
marcou época ao tornar acessível quase toda a obra de Kafka baseado, pela
primeira vez, no original alemão (muitas das traduções anteriores haviam sido
feitas a partir do francês ou do inglês). E hoje há outras excelentes traduções,
como as de Erlon José Paschoal e Marcelo Backes.
Filmes: adaptações imperdíveis do romance O Processo para o cinema, ambas
com título homônimo, foram dirigidas por Orson Welles (1963) e David Jones
(1993). Também vale a pena ver do diretor Steven Soderbergh o filme Kafka, de
1992. Todos esses títulos estão disponíveis em DVD.
LÖWY, Michael. Redenção e Utopia: o judaísmo libertário na Europa Central.
São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
Ensaio sobre o fenômeno do antissemitismo na Europa Central na virada do
século XIX para o XX, com um capítulo específico sobre Franz Kafka.
65
Textos literários em diálogo:
intertextualidade
As diversas camadas de significado no texto
literário: palimpsesto
A partir do resgate dos estudos do pensador russo Mikhail Bakhtin
(1895-1975) no fim da década de 1960 por Julia Kristeva (*1941), na França,
rapidamente se difundiu nos Estudos Literários, e em especial na área de
Literatura Comparada, a importante noção de intertextualidade.
Em síntese, trata-se da ideia de que qualquer texto é sempre perpassado por outros textos; de que todo texto sempre se constitui a partir do
diálogo entre diversas vozes.
A linguagem não é um dado individual, pois surge da interação
humana, acontece em meio a essa interação e torna-a possível. Não sendo
um objeto ou um sistema de que nos servimos, a linguagem é um acontecimento social que sempre se atualiza e revela nossa condição social. É um
medium em que nos movemos e no qual existimos.
Como o ar que nos cerca, e no qual se propagam as ondas sonoras
que levam nossa voz até o outro, a linguagem também é um meio, um
ambiente no qual vivemos em comunidade. Uma espécie de espírito
comum que, na melhor das hipóteses, vem nos unir. Afinal, cada palavra
que aprendemos e enunciamos não pertence apenas a nós mesmos, mas
é sempre partilhada com o outro: com pessoas que vivem diretamente
ao nosso lado e com pessoas distantes, no tempo e no espaço, mas que
se servem da mesma linguagem, serviram-se dela ou ainda se servirão no
futuro. Mesmo quando pensamos sozinhos, em silêncio, “cá com nossos
botões”, ecoa em nossas mentes a linguagem que temos em comum com
os outros. A todo momento, ressoa em minha voz a voz do outro; e na voz
do outro, a minha voz.
Com os textos literários não é diferente. Eles são escritos na linguagem
de todos, na linguagem do outro. Mas talvez estejam particularmente sensíveis a isso e conscientes desse traço essencial da linguagem. Por isso os
Literatura Comparada
escritores incorporam a seus textos outros textos, de outros escritores, de outras
fontes partilhadas por seus possíveis leitores.
O escritor brasileiro João Guimarães Rosa (1908-1967), por exemplo, escreveu
um conto breve chamado “Fita verde no cabelo (nova velha estória)”. Já no início
do segundo parágrafo, lê-se uma frase em que seu texto se caracteriza como
diálogo intertextual com o conto de fadas Chapeuzinho Vermelho: “Sua mãe mandara-a, com um cesto e um pote, à avó, que a amava, a uma outra e quase igualzinha aldeia” (ROSA, 1994, p. 981).
A história de Guimarães Rosa tem semelhanças e diferenças com o conto de
fadas, mas as formulações, em especial no diálogo repetitivo entre a avó e a neta,
não deixam dúvidas quanto à referência do conto brasileiro ao texto popular europeu: “– Vovozinha, que braços tão magros, os seus, e que mãos tão trementes!
– É porque não vou poder nunca mais te abraçar, minha neta… – a avó murmurou” (ROSA, 1994, p. 981).
No caso do conto de Guimarães Rosa, a confrontação da criança com a morte
da avó ocupa o lugar central. E por isso temos aqui uma “nova velha história”: ativam-se as expectativas dos leitores em relação ao que já era conhecido (a “velha
história” de Chapeuzinho Vermelho), mas surge uma história “nova”, pois o que
separa a avó de sua neta não é um lobo mau que devora a velhinha e toma seu
lugar, mas o fato inapelável da morte. O lobo torna-se uma metáfora da morte,
em um contexto inesperado e de grande sensibilidade humana e poética. O
texto tradicional, normalmente destinado às crianças, serve agora de moldura
para figurar a experiência de dor e espanto da criança diante do desaparecimento de alguém amado.
“Fita verde no cabelo” (que reproduzimos a seguir como texto complementar) evidencia o recurso da intertextualidade, empregado aqui de maneira calculada por Guimarães Rosa. O texto do escritor mineiro surge como uma camada
de significado que se superpõe a um outro texto, anterior. Embora “substitua” a
história velha por uma outra, uma nova história, Guimarães Rosa também perpetua a história anterior, pois a mantém como a base de sua “nova velha estória”.
Com isso, os dois textos iluminam-se um ao outro: “Fita verde no cabelo” destaca
aspectos de Chapeuzinho Vermelho que não estavam evidentes (o lobo como
metáfora da morte, mais que como metáfora do mal) e, vice-versa, não se pode
ler plenamente “Fita verde no cabelo” sem perceber as inversões que o texto faz
a partir da história mais antiga.
68
Textos literários em diálogo: intertextualidade
Essa dinâmica de uma história encobrir a outra, mas mantendo-a viva e conferindo-lhe novos significados, sugere a imagem do palimpsesto para se pensar a
intertextualidade. Um dos estudos mais importantes sobre o assunto, de Gerard
Genette, utiliza justamente esse título Palimpsestos: a literatura em segundo grau
(1982).
Palimpsesto é um pergaminho reutilizável – e por sua vez o pergaminho é uma
pele de cabra ou carneiro preparada para que nela se escreva. Esse ancestral do
papel foi usado na Antiguidade e na Idade Média, e era muito raro e caro, mas
também muito resistente. Então, era frequente lavar-se (ou raspar-se) o pergaminho para reutilizá-lo. Porém, permaneciam algumas marcas do texto anterior,
que às vezes reapareciam por conta de reações químicas no material – causadas
pela umidade, por exemplo. Assim, puderam ser redescobertos diversos manuscritos, por assim dizer, “embaixo” de outros, ainda mais quando se desenvolveram técnicas especiais de leitura dessas camadas, com meios modernos como
raios-x e outros recursos ópticos.
Domínio público.
Textos de pensadores importantes da Antiguidade, obras desconhecidas
ou conhecidas apenas por citações de terceiros foram descobertas em pergaminhos que pareciam conter apenas comentários religiosos ou textos práticos,
como receitas ou fórmulas, mas escondiam outras coisas, em camadas mais profundas. Um exemplo é o texto De re publica, de Cícero, descoberto na Biblioteca
do Vaticano, embaixo de comentários de Santo Agostinho ao Livro dos Salmos.
De re publica: um palimpsesto de Cícero (séc. V).
Essa imagem da descoberta de um texto até então invisível sob outro é
muito apropriada para esclarecer uma dimensão importante da literatura
comparada: o trabalho de “arqueologia” que ajuda a entender o surgimento e
compreender alguns níveis mais profundos de significado dos textos literários
69
Literatura Comparada
permite perceber que autores de tradições diversas estão em contato, aprendem uns com os outros, fazem dialogar as literaturas de seus respectivos países
e comunidades linguísticas.
Faremos, a seguir, uma apresentação do romance Lavoura Arcaica e de seu
autor, Raduan Nassar. Depois, destacaremos no texto a centralidade da figura
paterna, e por fim explicitaremos, no romance de Raduan Nassar, a presença de
discretas, mas contundentes, referências à obra de Franz Kafka.
Raduan Nassar e Lavoura Arcaica
O escritor Raduan Nassar (*1935), autor de Lavoura Arcaica (1975), descende
de imigrantes libaneses e viveu em contato intenso com as tradições religiosas
cristã e muçulmana, tendo na primeira a base de sua formação, na infância.
Divulgação MRE.
Ainda que tenha abandonado a prática religiosa na vida adulta, Raduan
Nassar foi um menino fervoroso que, quando estava com seus 10, 12 anos de
idade, ia diariamente à missa para comungar. João Nassar, o pai do escritor,
era cristão ortodoxo e, antes de emigrar
para o Brasil, trabalhava como agricultor em um Líbano dominado por turcos
otomanos. Segundo Raduan Nassar,
“veio do pai sua primeira formação política quando desde menino ouvia dele
relatos acerca daquela presença colonial” (CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA, 1996, p. 10).
Raduan Nassar viveu um ambiente
fortemente marcado pela multiplicidade étnica e religiosa: filho de imigrantes vindos de um país cindido entre o
cristianismo e o islã, cresceu em um
país de encontros interculturais par
excellence, como o Brasil. É um autor
multicultural: libanês cristão, brasileiro
Fiel católico segura a Bíblia cristã em língua
árabe.
interiorano, literato progressista que
produz sua obra mais importante em meio à ditadura militar. E também um
autor “desterritorializado”.
70
Textos literários em diálogo: intertextualidade
Seu romance Lavoura Arcaica contém numerosos motivos e referências culturais e religiosas. Há muitas alusões bíblicas, corânicas, menções da literatura
árabe e ocidental. Kátia Klassen nos lembra que
Os problemas em família, na narrativa bíblica, não param com Caim e Abel: as filhas de Ló se deitam
com o pai (Gn 19,30-38); Abraão bane de seu convívio o filho Ismael, fruto de sua relação com uma
concubina (Gn 21,8-20); o mesmo Abraão quase sacrifica seu filho Isaque para provar sua fé a Deus
(Gn 22,1-19); Isaque também prova em sua própria família a rivalidade entre os filhos Esaú e Jacó
(Gn 25,19-27,45); e os filhos de Jacó, por sua vez, tentam matar o irmão José por ser este o preferido
do pai (Gn 37,2-36). Os exemplos nas Escrituras são vários. (KLASSEN, 2002, p. 41)
Como se evidencia de imediato para quem começa a ler Lavoura Arcaica, trata-se de uma atualização crítica da parábola do filho pródigo, como apontou o
grande crítico brasileiro Alceu Amoroso Lima:
Novela trágica em que se misturam evocações do Antigo Testamento, como Abraão prestes a
sacrificar Isaac, com parábolas do Novo Testamento como a do Filho Pródigo. Tudo isso, porém,
à luz, ou à sombra de uma filosofia pagã do destino implacável, numa luta insolúvel entre
o mal e o bem, numa atmosfera bem brasileira, mas dominada por um sopro universal da
tradição clássica mediterrânea, em que ressoa a dor imemorial das mães. Drama pungente e
tenebroso, em estilo incisivo, nunca palavroso ou decorativo, da eterna luta entre a liberdade
e a tradição, sob a égide do tempo. Livro impressionante, revelação de um autêntico escritor.
(apud KLASSEN, 2002, p. 17)
Com 30 capítulos sem títulos, numerados de modo contínuo, o romance é
dividido em duas grandes partes, “A partida” e “O retorno”. A escrita de Nassar
apresenta um registro de prosa poética constante, como bem ilustra o início do
primeiro parágrafo:
Os olhos no teto, a nudez dentro do quarto; róseo, azul, violáceo, o quarto é inviolável; o quarto
é individual, é um mundo, quarto catedral, onde, nos intervalos da angústia, se colhe, de um
áspero caule, na palma da mão, a rosa branca do desespero, pois entre os objetos que o quarto
consagra estão primeiro os objetos do corpo; eu estava deitado no assoalho do meu quarto,
numa velha pensão interiorana, quando meu irmão chegou pra me levar de volta; minha mão,
pouco antes dinâmica e em dura disciplina, percorria vagarosa a pele molhada de meu corpo, as
pontas dos meus dedos tocavam cheias de veneno a penugem incipiente do meu peito ainda
quente; [...] o ruído das batidas na porta vinha macio, aconchegava-se despojado de sentido, o
floco da paina insinuava-se entre as curvas sinuosas da orelha, onde por instantes adormecia; e o
ruído se repetindo, sempre macio e manso, não me perturbava a doce embriaguez, nem minha
sonolência, nem o disperso e esparso torvelinho sem acolhimento [...]. (NASSAR, 1989, p. 8)
A temática, impactante, recorre a situações extremas na vida e problemáticas
para a tradição moral e religiosa, que se vê questionada em seus fundamentos.
No capítulo inicial, André, o protagonista do romance e detentor da voz narrativa em primeira pessoa, encontra-se sozinho em um quarto alugado. Como
se viu na citação acima, descreve-se com acento poético refinado uma cena de
masturbação do jovem André, metáfora de seu pleno isolamento.
Pedro, o irmão mais velho, é uma figura construída como substituto do pai,
como indica a escolha do nome bíblico: como o Pedro dos Evangelhos (que ao
menos na tradição católica é entendido como o apóstolo designado por Jesus
71
Literatura Comparada
Cristo para manter unida a comunidade depois de ele mesmo – Jesus – haver
partido), o irmão de André representa o pai e em seu nome vem resgatar o irmão
para o seio da família.
Por sua vez, o nome André (andros, “pessoa do sexo masculino”, em grego)
destaca na personagem a sua condição masculina, sendo marcante em André
a prevalência do desejo, a pulsão do homem que frequenta prostitutas, seduz a
irmã, exerce a sexualidade.
Ao chegar, Pedro retira André de sua individualidade. Começa então um diálogo, quase um monólogo de André (apenas entrecortado por algumas intervenções do irmão Pedro), que se estende até o capítulo 21, último da primeira
parte.
Os capítulos pares são interlúdios poéticos que descrevem o universo individual de André, a partir de sua sensibilidade e sua vivência mais pessoal. Os capítulos ímpares, por sua vez, mantêm a linearidade do encontro entre os irmãos,
mas apresentam muitos flashbacks1 que reconstituem as vivências de André na
fazenda com seu pai, sua mãe, recordações do avô, a natureza, os objetos da
casa e particularmente o contato com uma de suas quatro irmãs. Membro desajustado da família, o epilético André havia saído de casa para levar uma vida
desregrada na cidade.
No quarto de pensão em que os irmãos se reencontram, bebem vinho, exaltam-se e emocionam-se, André confessa a seu irmão a razão da partida: o amor
proibido por Ana, uma de suas irmãs, amor que se consuma e antecipa a tragédia no seio da família.
André afirma diante do irmão sua incompatilidade com a lei paterna. Ainda
que essa lei tenha seus fundamentos no espírito comunitário dentro da família,
no trabalho e na amabilidade, André não suporta o fato de a lei do pai não considerar pessoas deslocadas como ele mesmo – André, o epilético, o desregrado.
Segundo os sermões do pai à mesa, sua lei tem a paciência como virtude
máxima:
[...] a paciência há de ser a primeira lei desta casa, a viga austera que faz o suporte das nossas
adversidades e o suporte de nossas esperas [...] mão alguma em nossa casa há de fechar-se
em punho contra o irmão acometido […]. O amor na família é a suprema forma de paciência
1
72
Flashback é o recurso narrativo pelo qual se interrompe a sequência cronológica inserindo situações ocorridas anteriormente.
Textos literários em diálogo: intertextualidade
[…] na união da família está o acabamento de nossos princípios [...] a paciência é a virtude
das virtudes; não é sábio quem se desespera, é insensato quem não se submete [...]. (NASSAR,
1989, p. 60-62)
A ação nos nove capítulos finais, sob o título geral “O retorno”, ocorre após
a chegada de André à fazenda, na presença da família. O filho pródigo torna à
casa paterna, é recebido com aparente amor e perdão, mas não há mudança de
atitude por parte do pai. André vem marcado pela dissolução, ensaia sustentar
argumentos contra a palavra paterna em uma conversa entre os dois, mas afinal
cede e se cala, vencido pelo cansaço. Em segredo, traz consigo uma caixa com
uma coleção de acessórios femininos recolhidos com prostitutas, durante suas
andanças pela cidade.
E afinal a tragédia se cumpre: no penúltimo capítulo, durante a festa pelo retorno de André – a “páscoa” (como diz o romance) – Ana, a irmã incestuosa, surge
usando os acessórios profanos trazidos por André. Ela dança, enlouquecida, e o
pai, informado por Pedro, compreende o ocorrido entre Ana e André. Enfurecido, Iohána, o pai, mata sua filha com um alfanje2. Abraão a quem não vem o
anjo. Iohána destrói sua própria lei de amor e não violência, frustra e dispersa a
própria família.
A ação propriamente dita termina aí, mas o livro segue um passo a mais, pois
no último capítulo, em memória do pai, André introduz uma transcrição de suas
palavras, retomando a imagem de que “o gado sempre vai ao poço” (NASSAR,
1989, p. 196). Ou seja: segundo uma variação presente no capítulo 6, reforça-se
a ideia de que “estamos indo sempre para casa” (NASSAR, 1989, p. 36), mesmo
quando se pensa estar fugindo do lar. Sob o fatalismo da voz narrativa, a palavra
final é do pai, a quem o filho faz viver na memória, sob a lembrança da tragédia.
Cartas ao pai: cenas familiares,
o poder e a palavra do outro
Em uma leitura apressada, esse romance de Raduan Nassar parece uma simples inversão da parábola do filho pródigo. André seria o questionador rebelde
da ordem patriarcal, justo em sua rebeldia.
2
A palavra alfanje designa tanto um tipo de foice como um sabre típico da cultura militar árabe. Em sua ambivalência, essa palavra evoca, no
contexto intercultural do romance, a presença do pai severo e violento, associado ao rigor das culturas árabes, em que até hoje há punições físicas
para crimes graves.
73
Literatura Comparada
Não se pode, contudo, aceitar o fundamento ético do pai no romance como
algo simplesmente ilegítimo. O romance é bem mais complexo, ambivalente. O
pai, ainda que cometa a violência impulsiva ao fim da ação, também o faz sob
uma condição trágica.
O motivo do pai disposto a matar seu próprio filho é obsessivo, e porventura
mais determinante em nossa tradição cultural que o inverso. Abraão o teria feito
com Isaac, Deus Pai o faz com a morte de Jesus. E na literatura o motivo é recorrente, surgindo, por exemplo, em Emilia Galotti (1772), de Gotthold Ephraim
Lessing, drama que inaugura o teatro trágico burguês de língua alemã, e que já
retomava, por sua vez, o motivo clássico da jovem Virginia, narrada por Tito Lívio
(59 a.C.-16 d.C.) em Ab Urbe Condita: o pai, homem virtuoso e reto, mata a filha
para libertá-la do perigo de tornar-se objeto das artimanhas do governante que
os domina.
A fala do pai em Lavoura Arcaica não é insensata, tampouco necessariamente
opressiva. O que ela faz é entretecer diversas linhas de nossa tradição moral e filosófica, até mesmo com grande beleza formal e riqueza imagética. Sem dúvida,
sua rigidez e sua inflexibilidade são impositivas e revelam um rigor incapaz de
aceitar a subjetividade desenfreada e contestadora do filho.
Mas é também o pai que apresenta aos filhos a força da individualidade, que
se mostrava necessária inclusive para manter a união da família. Isso fica claro à
seguinte passagem do romance, em que André se dirige a Pedro:
Era o pai que dizia sempre: é preciso começar pela verdade e terminar do mesmo modo […], era
essa a sua pedra angular, era essa a pedra em que tropeçávamos como crianças, essa a pedra
que nos esfolava a cada instante, vinham daí as nossas surras e as nossas marcas no corpo
[…], mas era ele também, era ele que dizia provavelmente sem saber o que estava dizendo
e sem saber com certeza o uso que cada um de nós poderia fazer um dia […] olha o vigor da
árvore que cresce isolada e a sombra que ela dá ao rebanho, os cochos, os longos cochos que
se erguem isolados na imensidão dos pastos, tão lisos na imensidão dos pastos, tão lisos por
tantas línguas, ali onde o gado vem buscar o sal que se ministra com o fim de purificar-lhe a
carne e a pele, era ele dizendo coisas assim na sua sintaxe própria, dura e enrijecida pelo sol
e pela chuva, era esse lavrador fibroso catando da terra a pedra amorfa que ele não sabia tão
modelável nas mãos de cada um. (NASSAR, 1989 p. 43-44)
André, por sua vez, está distante de apresentar-se como um herói da liberdade que, por meio da oposição ao pai, consiga libertar seus irmãos da opressão.
Traços de autoironia ou mesmo declarações de culpa fazem perceber que o protagonista trata de desmascarar-se também a si mesmo.
Assim, com uma ambivalência de traços kafkianos, Lavoura Arcaica constitui-se como narrativa de uma história familiar tensa, surpreendente, crivada de
indefinições.
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Textos literários em diálogo: intertextualidade
Temas e recursos kafkianos em Lavoura Arcaica
Texto sobre a puberdade tardia e problemática e a impossibilidade de conciliar a ordem da casa e do trabalho com a irrupção da sexualidade incontrolável,
Lavoura Arcaica apresenta diversos paralelos composicionais e temáticos com
a obra de Kafka, especialmente A Metamorfose (1912). Os dois textos começam
com figurações da intimidade dos protagonistas no quarto, em cenas de onanismo, mais clara em Raduan Nassar, mais discreta e cifrada em Kafka; os dois textos
operam com o desejo incestuoso do protagonista pela irmã, a condição de pária
na família e a anormalidade orgânica.
Esses traços comuns às duas obras-primas permitem-nos interpretar cada
uma delas sob o viés da figuração crítica do protagonista, que apenas aparentaria ser vítima de um sistema opressor.
Em Lavoura Arcaica, depois da consumação do amor entre André e Ana, a
irmã se refugia na capela, onde reza para purgar a culpa que sente. André, ao
acordar depois da noite de amor, corre até a capela e implora diante da irmã que
se mantenha ligada a ele. Ela se recusa a continuar a vida incestuosa, embora se
compadeça do irmão. Em meio às súplicas e blasfêmias do irmão desesperado e
convulsivo, ela foge da capela. Então, segue uma cena solitária de André: diante
da capela, vivencia uma espécie de morte espiritual que antecede o momento
em que decide sair de casa.
Nesse momento, evidencia-se uma possível alusão ao final do romance O
Processo (1914), de Kafka, que se mistura à figuração do protagonista em A Metamorfose. André olha para o céu e diz:
[...] neste edifício erguido sobre colunas atmosféricas escorridas de resinas esquisitas, existe
sempre nas janelas a suspensão de um gesto fúnebre; e existe a última janela de abertura
debruçada para brumas rarefeitas e espectros incolores, ali onde instalo meus filamentos e
minhas antenas, meus radares e minhas dores, captando o espaço e o tempo na sua visão mais
calma, mais tranquila e mais inteira. (NASSAR, 1989, p. 144)
A alusão de André a si mesmo com características de inseto (dotado de filamentos e antenas) já havia aparecido páginas antes: “o tempo [...] era um tempo também
de sobressaltos, me embaralhando ruídos, confundindo minhas antenas, me levando a ouvir claramente acenos imaginários” (NASSAR, 1989, p. 95). E a imagem repetese no capítulo seguinte ao do episódio na capela, sob a fala do pai:
“[...] e quanto mais engrossam a casca, mais se torturam sob o peso da carapaça, pensam que estão
em segurança, mas se consomem de medo, [...] fazem-se prisioneiros de si mesmo e nem sequer
suspeitam, trazem na mão a chave mas se esquecem que ela abre, e obsessivos, afligem-se com
problemas pessoais sem chegar à cura, pois recusam o remédio; a sabedoria está precisamente em
não se fechar nesse mundo menor [...]” (Da mesa dos sermões.). (NASSAR, 1989, p. 149)
75
Literatura Comparada
Não bastasse o conflito com o pai como elemento estruturador do romance,
tal como se dá na Carta ao Pai (1919), de Kafka; não bastasse a cena inicial de isolamento no quarto, tão característica de A Metamorfose; não bastasse o lampejo
de uma janela mais alta de onde se insinua a “suspensão de um gesto fúnebre”,
como na cena final de O Processo, Raduan Nassar ainda se permite a alusão sugestiva da figuração de André como o inseto incestuoso e individualista.
Leituras mais recentes das obras de Kafka, em especial de O Processo, têm
enfatizado que a grande culpa de Josef K. seria sua incapacidade de enxergar
a realidade social à sua volta. Envolvido em um mundo bem ordenado como
alto funcionário de um banco, Josef K. não perceberia a própria incapacidade de
aliar-se a quem lhe ofereceria possibilidades de laços de afetividade e envolvimento social, pelas vias do amor, da amizade e da arte.
Esse aspecto é menos evidente em A Metamorfose, já que o foco da crítica no
texto incide principalmente sobre as estruturas tradicionais burguesas da família de Gregor Samsa, o protagonista que se transforma em inseto. Mas Gregor
mesmo nada faz de efetivo em favor de si. Ele se limita a recolher-se e isolar-se no
quarto, amedrontado e depressivo. Assim, também seria plausível colocar Gregor
Samsa no banco dos réus e fazer incidir sobre ele o veredicto cabível aos que se
submetem à ordem superior sem questioná-la, ou que a questionam apenas em
proveito próprio e individualista, e por isso não conseguem vencê-la.
Vejamos como isso se dá em Lavoura Arcaica.
Atormentado pela sexualidade frustrada e o enfrentamento da lei, André revela-se frequentemente insensível: “e meu irmão sorria, os olhos lavados, cheios
de luz, e tinha a ternura mais limpa do mundo no seu jeito de me olhar, mas isso
não me tocava propriamente, continuei calado” (NASSAR, 1989, p. 38).
Na relação amorosa com sua irmã, André expõe sentimentos intensos, a
ponto de fundir em um exemplo majestoso os discursos religioso e amoroso. Na
capela da fazenda, em face de uma Ana arrependida do incesto, André propõe,
em troca do “amor clandestino”, “estar sempre presente na mesa clara onde a
família se alimenta”. Ele declara: “serei bom e reto, solícito e prestativo, gosto
de servir os outros, sou capaz de ser afável” (NASSAR, 1989, p. 127). Até mesmo
compromete-se a conciliar-se com o pai:
[...] numa noite dessas, quando o pai na sua gravidade tiver se perdido nos seus pensamentos,
vou caminhar na sua direção, puxar uma cadeira, me sentar bem perto dele, […] e puxar sem
constrangimento a conversa remota que nunca tivemos; e logo que eu diga “pai”, e antes que
eu prossiga tranquilo e resoluto, vou pressentir no seu rosto o júbilo mal contido vazando com
a luz dos seus olhos úmidos. (NASSAR, 1989, p. 127-128)
76
Textos literários em diálogo: intertextualidade
Contudo, à medida que Ana não cede a suas súplicas, André desmascara seus
interesses e egoísmo: “eu pedi suplicando, mas Ana não me ouvia […] eu esgotava todos os recursos com um propósito suspeito: ficar com a alma leve, disponível” (NASSAR, 1989, p. 131). E então ameaça:
[...] a minha súplica […] é antes um sinal, é a minha advertência, vai no meu apelo, eu te
asseguro, a clarividência de um presságio escuro: na quebra desta paixão, não serei piedoso,
não tenho a tua fé, não reconheço os teus santos na adversidade” eu disse já ouvindo os balidos
de uma ovelha tresmalhada correndo num prado vermelho [...]. (NASSAR, 1989, p. 132)
Além disso, André aprofunda sua lógica individualista e recorre a argumentos
perspicazes, mas utilizados com a clara finalidade de persuadir sua irmã a abdicar das convicções que tinha:
[...] neste mundo de imperfeições, tão precário, onde a melhor verdade não consegue transpor
os limites da confusão, contentemo-nos com as ferramentas espontâneas que podem ser
usadas para forjar nossa união: o segredo contumaz, mesclado pela mentira sorrateira e pelos
laivos de um sutil cinismo; afinal, o equilíbrio, de que fala o pai, vale para tudo, nunca foi
sabedoria exceder-se na virtude; […] a razão é pródiga, querida irmã, corta em qualquer direção,
consente qualquer atalho, bastando que sejamos hábeis no manejo desta lâmina […]: não há
então como ver na singularidade do nosso amor a manifestação de egoísmo, conspurcação
dos costumes ou ameaça à espécie; nem nos preocupemos com tais nugas3, querida Ana, é
tudo tão frágil que basta um gesto supérfluo para afastarmos de perto o curador impertinente
das virtudes coletivas. (NASSAR, 1989, p. 134)
Muito inteligente, André serve-se da argúcia para exercer poder sobre Ana,
fato que ele mesmo manifesta claramente, enquanto narra a história a seu irmão
Pedro, com imagens que prefiguram a imolação (o sacrifício) de Ana:
[...] eu endurecia sem demora os músculos para abrir minha picada, a barra dos meus braços
e o ferro dos meus punhos, golpeando a mata inóspita no gume do meu facão […], afilando
meus nervos como se afilasse a ponta de um lápis, fazendo a aritmética a partir dos meus
próprios números, pouco me importando que as quireras do meu raciocínio pudessem ser
confrontadas com as quireras de outro moinho. (NASSAR, 1989, p. 134)
Pactário como Fausto4, já que seu corpo abandonado por Ana “fora talhado
sob medida pra receber o demo” (NASSAR, 1989, p. 139), André só encontra limite
para seu discurso e sua fala blasfema na capela quando a irmã o interrompe:
Ana ergueu-se num impulso violento […]: vi o pavor no seu rosto, era um susto compacto
cedendo aos poucos, e, logo depois, nos seus olhos, senti profundamente a irmã amorosa
temendo por mim, e sofrendo por mim, e chorando por mim, e eu que mal acabava de me
jogar no ritual deste calor antigo, inscrito sempre em ouro na lombada dos livros sacros,
incorporei subitamente a tristeza calada do universo, inscrita sempre em traços negros nos
olhos de um cordeiro sacrificado. (NASSAR, 1989, p. 141)
3
Nugas: coisas sem importância, ninharias.
4
A história de Fausto surgiu no fim da Idade Média, quando o doutor Johannes Georg Faust (1480-1540), um livre pensador, tornou-se famoso por
sua sabedoria e suas façanhas. Como era comum na época, logo se atribui sua inteligência e sua liberdade intelectual a alguma intervenção demoníaca. Nasceu então esse mito moderno do intelectual que teria vendido sua alma ao demônio para conquistar inteligência e habilidade científica.
O grande escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), entre outros, difunde esse mito em sua obra Faust, um conjunto de duas peças
teatrais que reconstroem a história de Fausto e a atualizam no contexto do surgimento da modernidade.
77
Literatura Comparada
A irmã se vai e voltará somente para a cena da dança e de sua imolação. É
nesse ponto que termina a primeira parte do romance, cuja epígrafe eram versos
de Jorge de Lima, poeta maior do catolicismo no Brasil: “Que culpa temos nós
dessa planta da infância,/ de sua sedução, de seu viço e constância?”
Os motivos cristãos e a centralidade da figura de Ana como cordeiro amoroso
marcam a obra. Há contudo, no capítulo central do livro, de número 15, e que
integra portanto a primeira parte, um interlúdio curto em que se descreve o avô.
O velho, já falecido, mas presente na memória e no lugar vazio à mesa, está mais
próximo da impassibilidade muçulmana: diante das vicissitudes e “ao contrário
dos discernimentos promíscuos do pai” (NASSAR, 1989, p. 91), ele respondia
sempre com um “arroto tosco que valia por todas as ciências, por todas as igrejas
e por todos os sermões do pai: ‘Maktub’” (NASSAR, 1989, p. 103 – a expressão
árabe maktub significa “estava escrito”). Essas palavras antecedem o encontro
amoroso de André e Ana, o qual marcará com a morte os laços da família.
A segunda parte do romance tem por epígrafe uma citação do Alcorão, livro
sagrado dos muçulmanos: “Vos são interditadas: vossas mães, vossas filhas,
vossas irmãs” (apud NASSAR, 1989, p. 145). A passagem é extraída da surata5
número 4, intitulada “As mulheres”, em cujo parágrafo 23 são elencadas as interdições de união sexual com mulheres da família – esse parágrafo corânico é
concluído por um versículo que anuncia o perdão, gesto de que Iohána, o pai,
não será capaz de cumprir: “Deus perdoa e é clemente”.
E se porventura encontramos dureza nesse pai, há fatalidade no avô, cuja
imagem evoca um vínculo ancestral com o mundo árabe:
[...] era ele na verdade nosso veio ancestral […], ele na verdade que nos conduzia, era ele
sempre apertado num colete, a corrente do relógio de bolso desenhando no peito escuro um
brilhante e enorme anzol de ouro; era esse velho asceta […], ele que não se permitia mais que
o mistério suave e lírico, nas noites mais quentes, mais úmidas, de trazer, preso à lapela, um
jasmim rememorado e onírico, era ele a direção de nossos passos em conjunto […]; era ele o
guia moldado em gesso, não tinha olhos esse nosso avô, Pedro, nada existia nas duas cavidades
fundas, ocas e sombrias do seu rosto, nada, Pedro, nada naquele talo de osso brilhava além da
corrente do seu terrível e oriental anzol de ouro. (NASSAR, 1989, p. 46-47)
A imagem do anzol luzente, possível alusão ao alfanje, o sabre curvo dos
árabes, antecipa o destino inexorável da família. Depois da dança tresloucada de
Ana, quase ao fim do romance, o pai entra em cena para além das palavras, e seu
gesto desdiz o que ele pregava:
o alfanje estava ao alcance da mão, e, fendendo o grupo com a rajada de sua ira, meu pai
atingiu de um só golpe a dançarina oriental (que vermelho mais pressuposto, que silêncio
5
78
As partes em que se divide o Alcorão são as suratas, que por sua vez se subdividem em capítulos e estes, em versículos.
Textos literários em diálogo: intertextualidade
mais cavo, que frieza mais torpe nos meus olhos!), não teria a mesma gravidade se uma ovelha
a inflamasse, ou se outro membro qualquer do rebanho caísse exasperado, mas era o próprio
patriarca, ferido nos seus preceitos, que fora possuído pela cólera divina (pobre pai!), […] e do
silêncio fúnebre que desabara atrás daquele gesto, surgiu primeiro, como de um parto, um
vagido primitivo
Pai! (NASSAR, 1989, p. 192-193)
O próprio pai retorna à condição de filho pecador. É sua voz que recorre ao Pai
(com P maiúsculo pela primeira vez em todo romance) e na tragédia e desgraça
de sua linhagem cessa a antiga lei: a imolação de Ana deve-se à irrupção da violência e do poder no universo da família. Se o pai (com seu rigor moral e atitude
intolerante) é um agente enlouquecido de opressão e morte, ele é também, de
outra parte, um instrumento do projeto corrosivo de André (relativista, cético,
utilitarista, defensor da liberdade individual a qualquer custo).
A fragilidade e o silêncio de Ana, como cordeiro, fazem desmoronar as duas
atitudes (do pai e de André) e revela, por sua condição de criatura sacrificada,
uma nova ordem. Raduan Nassar não encontra solução para nossa condição dividida entre liberdade individual e ordem moral, e vê aí uma encruzilhada que
destrói a possibilidade de fé e verdade nas relações comunitárias e sociais.
Seu romance magistral, em sua forma e contundência reflexiva, encontra nesse
dilema humano um princípio constitutivo e funda a partir da inconformidade em
face dessa condição uma dicção própria e atual. Seu texto realimenta questões
centrais sobre a justiça e a insurreição humana contra uma ordem pretensamente
natural para as relações entre as pessoas, na família e para além dela.
Ana, que encarna a figura despossuída de seu direito à vida sob a ação violenta dos dois princípios absolutizados (liberdade e ordem), apresenta-se como
cordeiro em favor do qual não intercede a mão forte do anjo. Ela irrompe, no
entanto, como uma força estética, corpórea, artística. Seu olhar silencioso e acurado dirige-se contra as leis absolutas. Talvez seja a melhor imagem em todo o
romance da dicção literária que reinsere nos debates teóricos a força da experiência pessoal e comunitária.
Como em Franz Kafka, também em Raduan Nassar a energia da subjetividade
que busca vínculos, mas fracassa, é ainda forte o bastante para tornar-se arte,
voz e ato.
E a leitura que aproxima esses dois escritores nos faz perceber que, mesmo
marcados pelo isolamento, os dois integram uma comunidade de comunicação
muito peculiar, e nos convidam a interagir com eles.
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Literatura Comparada
Texto complementar
Fita verde no cabelo (nova velha história)
(ROSA, 1994, 981 - 982)
Havia uma aldeia em algum lugar, nem maior nem menor, com velhos e
velhas que velhavam, homens e mulheres que esperavam, e meninos e meninas que nasciam e cresciam. Todos em juízo, suficientemente, menos uma
meninazinha, a que por enquanto. Aquela, um dia, saiu de lá, com uma fita
verde inventada no cabelo.
Sua mãe mandara-a, com um cesto e um pote, à avó, que a amava, a uma
outra e quase igualzinha aldeia. Fita-verde partiu, sobre logo, ela a linda,
tudo era uma vez. O pote continha um doce em calda, e o cesto estava vazio,
que para buscar framboesas.
Daí, que, indo, no atravessar o bosque, viu só os lenhadores, que por lá
lenhavam; mas o lobo nenhum, desconhecido nem peludo. Pois os lenhadores tinham exterminado o lobo. Então, ela, mesma, era quem se dizia: – “Vou
à vovó, com cesto e pote, e a fita verde no cabelo, o tanto que a mamãe me
mandou”. A aldeia e a casa esperando-a acolá, depois daquele moinho, que a
gente pensa que vê, e das horas, que a gente não vê que não são.
E ela mesma resolveu escolher tomar este caminho de cá, louco e longo, e
não o outro, encurtoso. Saiu, atrás de suas asas ligeiras, sua sombra também
vindo-lhe correndo, em pós. Divertia-se com ver as avelãs do chão não
voarem, com inalcançar essas borboletas nunca em buquê nem em botão, e
com ignorar se cada uma em seu lugar as plebeiinhas flores, princesinhas e
incomuns, quando a gente tanto por elas passa. Vinha sobejadamente.
Demorou, para dar com avó em casa, que assim lhe respondeu, quando
ela, toque, toque, bateu:
– “Quem é?”
80
Textos literários em diálogo: intertextualidade
– “Sou eu…” – e Fita-verde descansou a voz. – “Sou sua linda netinha, com
cesto e pote, com a fita verde no cabelo, que a mamãe me mandou.”
Vai, a vovó, difícil, disse: – “Puxa o ferrolho de pau da porta, entra e abre.
Deus te abençõe.”
Fita-verde assim fez, e entrou e olhou.
A avó estava na cama, rebuçada e só. Devia, para falar agagado e fraco e
rouco, assim, de ter apanhado um ruim defluxo. Dizendo: – “Depõe o pote e
o cesto na arca, e vem para perto de mim, enquanto é tempo.”
Mas agora Fita-verde se espantava, além de entristecer-se de ver que perdera em caminho sua grande fita verde no cabelo atada; e estava suada, com
enorme fome de almoço. Ela perguntou:
– “Vovozinha, que braços tão magros, os seus, e que mãos tão
trementes!”
– “É porque não vou poder nunca mais te abraçar, minha neta…” – a avó
murmurou.
– “Vovozinha, mas que lábios, aí, tão arroxeados!”
– “É porque não vou nunca mais poder te beijar, minha neta…” – a avó
suspirou.
– “Vovozinha, e que olhos tão fundos e parados, nesse rosto encovado,
pálido!”
– “É porque já não te estou vendo, nunca mais, minha netinha…” – a avó
ainda gemeu.
Fita-verde mais se assustou, como se fosse ter juízo pela primeira vez.
Gritou: – “Vovozinha, eu tenho medo do Lobo!…”
Mas a avó não estava mais lá, sendo que demasiado ausente, a não ser
pelo frio, triste e tão repentino corpo.
81
Literatura Comparada
Atividades
1. O que é intertextualidade?
2. Explique a noção de linguagem contida no conceito de intertextualidade.
82
Textos literários em diálogo: intertextualidade
3. Caracterize a obra Lavoura Arcaica.
83
Literatura Comparada
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Textos literários em diálogo: intertextualidade
4. Que aspectos permitem estabelecer um diálogo intertextual entre Lavoura
Arcaica e a obra de Franz Kafka?
Dicas de estudo
Cadernos de Literatura Brasileira. Publicados pelo Instituto Moreira Salles
(IMS), os Cadernos de Literatura Brasileira trazem um material muito importante
sobre grandes autores brasileiros, merecendo atenção e leitura cuidadosa. Há
um número dedicado a Raduan Nassar.
<http://ims.uol.com.br/ims/>. O site do IMS vale uma visita.
RIBEIRO, Ronaldo. Terra prometida. National Geographic Brasil, n. 11, p. 80-107,
jun. 2009.
A matéria informa sobre os cristãos árabes e sua a presença no Brasil em decorrência da imigração síria e libanesa.
85
Textos literários em diálogo
com a tradição
Refletiremos sobre a maneira como os textos contemporâneos se
mantêm em diálogo com a tradição e, assim, aprofundaremos a noção
de intertextualidade e apresentaremos um escritor brasileiro contemporâneo: Milton Hatoum.
O texto literário: fascículo em coleção
Para dar início a nossa reflexão, vamos nos remeter a uma imagem sugerida pela origem da palavra texto, por sua etimologia: foi a palavra tecitus, do latim, que deu origem a texto, em português.
Ao longo da história da língua portuguesa, portanto, a palavra latina
tecitus, que designava “tecido”, deu origem à nossa palavra tecido, mas
também a texto. E essa coincidência do parentesco de texto e tecido é
muito significativa, porque a imagem de um tecido, sob certo aspecto, é
excelente para explicar o que é um texto: assim como o tecido, também o
texto é resultado de um entrelaçado de “fios”. Como as fibras que se entrelaçam e constituem os fios, na roda de fiar, os sons combinam-se e constituem palavras. Como os fios no tear, as palavras ligam-se umas às outras,
constituem frases, e as frases unem-se por conectores – que manifestam
as relações lógicas ou temporais entre o que elas expressam – e formam
textos. Ou seja, os textos são frutos de uma estrutura bem “entretecida”,
em que unidades menores combinam-se, referem-se umas às outras, e
assim constituem uma unidade consistente. Cada texto, que é sempre o
enunciado de alguém, constitui-se no tear de nossa capacidade de operar
a linguagem natural.
Os fios, nós os partilhamos com muitos outros falantes e, por isso, ao
tecermos nosso texto, já o concebemos ligado aos textos que os outros
tecem. Os enunciados dos outros estão entretecidos nos nossos, como impulsos ou respostas, e partilham o material de que todos são feitos: a linguagem natural, nossa relação humana com o mundo, a vida, os outros.
Literatura Comparada
Vamos considerar a dimensão diacrônica (dia = “através”; chronos = “tempo”)
dos textos entretecidos entre si nos ambientes culturais. Ou seja, perceber como
textos tecidos hoje também recorrem, em sua tecedura, a fios já presentes em
tempos passados, e como se ligam a eles. O exemplo da presença de textos milenares, como os da Bíblia, permite-nos refletir sobre a relação dos textos
com a tradição: a presença de conteúdos e referências fixadas em comunidades humanas desde há muito tempo atualiza-se e assume novos significados
quando integrada aos novos contextos e discursos, hoje.
IESDE Brasil S.A.
Assim, recorrendo agora a uma segunda imagem, cada texto é fascículo, ou
seja, literalmente um feixezinho (em latim, fasciculum) de filetes, cada um proveniente de lugar distinto. Juntos, esses filetes remetem a muitas origens e, mesmo
na diversidade, constituem um todo orgânico que confere força e consistência
ao feixe.
Feixe de sentidos
Infelizmente, também o fascismo italiano usou essa
imagem, herdada da Roma antiga. O fasces romano era
usado pelo lictor, uma espécie de assistente e guarda
de segurança dos dirigentes da época. O fasces simbolizava o poder exercido pelo dirigente, resultado da
união de muitos, que legitimavam o poder daquele
dirigente em particular.
Mais presente para nós, hoje, no entanto, é o significado de fascículo como
“caderno, parte de uma coleção”. Cada fascículo tem integridade própria, mas
não é independente, pois se refere e dá continuidade a enunciados já feitos anteriormente e antecipa enunciados que se seguirão a ele. O texto literário, do
ponto de vista da história do pensamento, é como fascículo de uma grande
obra, parte de um todo.
Essa complexidade do texto literário como entrelaçamento de fios, feixe de
filetes ou fascículo em uma coleção, nos dá uma noção da importância e do sentido de considerá-lo em relação a outros textos, e tanto mais em relação aos
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Textos literários em diálogo com a tradição
textos que são fundamento de tradições culturais hoje partilhadas por bilhões
de pessoas.
Matrizes consagradas
Em princípio, todos os textos disponíveis podem servir de fonte para a apropriação intertextual por quem vai escrever. Alguns, no entanto, por serem de
amplo conhecimento e fundarem o imaginário de grandes camadas da população, representam matrizes textuais consagradas, e por isso amplamente
partilhadas.
Para alguns escritores, os contos de fadas servem de referência. Os autores
supõem o conhecimento dessas histórias em seus leitores, talvez aprendidas na
infância como histórias narradas pela avó, talvez difundidas por outros meios,
como os desenhos animados e os livros infantis, nos dias de hoje.
Durante alguns séculos, a cultura clássica da Grécia e de Roma havia oferecido modelos imaginários e referências intertextuais muito fortes para quem e
comunicasse na cena literária ou cultural. Hoje, apesar de certo renascimento do
interesse pela cultura clássica, o conhecimento amplamente difundido restringe-se a alguns poucos personagens e episódios.
No mundo ocidental, apesar do processo de secularização e enfraquecimento
da tradição cristã, a Bíblia ainda constitui uma das referências mais conhecidas
pelas pessoas em geral. Cristãos ou não, o cidadão médio ainda conhece as personagens e episódios centrais presentes na Bíblia, a começar por Jesus, Maria, os
apóstolos e diversas figuras do Antigo Testamento, como Moisés, Abraão, Caim
e Abel, Adão.
A Bíblia cristã, como livro que se consolidou na sua forma atual por volta de
cem anos após o nascimento de Jesus Cristo, também guarda boa parte da tradição do povo judeu no Velho Testamento. O Velho Testamento corresponde em
parte à Torá, o livro sagrado dos judeus. No Novo Testamento, são centrais os
livros que narram a vida de Jesus, os Evangelhos, escritos por quatro grandes
comunidades cristãs fundadoras e, além disso, há os demais livros, uma série de
cartas, relatos e documentos dessas comunidades.
A Bíblia cristã e a Torá foram elas mesmas matrizes para muitos relatos presentes no Corão, o livro sagrado dos muçulmanos. Pouca gente no mundo cristão sabe disso, mas o Islã também conhece as principais personagens da tradi89
Literatura Comparada
ção judaico-cristã. Fundado por Muhammad (também conhecido como Maomé,
570-632), o Islã surgiu no século VII d.C., quando o cristianismo já se havia estabelecido como principal religião em diversas regiões da Europa e do Oriente
Próximo. Adão, Noé, Abraão e seus descendentes são figuras centrais do Corão,
e referências a Jesus e Maria, por exemplo, são positivas e respeitosas.
Essa referência básica, dos grandes livros sagrados das religiões monoteístas, servirá de exemplo para notarmos o diálogo (ora discreto, ora declarado)
dos textos literários com uma das matrizes imaginárias mais fortes da tradição
ocidental. Destacaremos um caso em que, de maneira inesperada, um autor brasileiro contribui para a reflexão sobre o diálogo inter-religioso entre o cristianismo e o islã, questão que se tornou tão atual desde o ataque terrorista às Torres
Gêmeas do World Trade Center, em Nova York, em 11 de setembro 2001.
Antes de irmos ao romance a que nos referimos, vamos a uma breve observação sobre esse assunto, justamente a partir de um tema bíblico.
Para quem se ocupa de literatura comparada e culturas estrangeiras, é
sempre recorrente a imagem da torre de Babel, uma das matrizes primordiais
de qualquer reflexão sobre a diversidade linguística e cultural na sociedade.
Trata-se aqui, como sabemos, do relato bíblico (Gn 11: 1-9) sobre o confronto entre Deus e os homens, os quais começavam a se apropriar de técnicas
mais sofisticadas de engenharia (coziam tijolos e os juntavam com argamassa)
e pensavam assim poder equiparar-se ao Criador, construindo prédios fortes
que chegavam “às alturas”. Deus, no relato, não admite esse atrevimento. De
maneira prudente – como fizera mais no início do Gênesis (3: 24), ao destinar
uma espada de fogo para guardar o caminho da árvore da vida, evitando que
os homens eventualmente se tornassem como Ele –, dispersa os homens, “confundindo sua linguagem”.
O artista flamengo Pieter Brueghel, o Velho (1525-1569), tematizou esse atrevimento humano e sobre esse quadro de Brueghel, pintado por volta de 1563, a
historiadora da arte Wendy Beckett afirma que
A Torre de Babel, de Brueghel, é de uma complexidade horripilante, apoucando a presunção
autoritária das figuras humanas, reduzindo a labuta mais gigantesca a uma despropositada
correria de formigas. Babel é a nossa própria vivência: os humanos são tão patéticos quanto
condenados em sua vaidade. (BECKETT, 1997, p. 168)
Assim, ao superpormos mentalmente as ilustrações, temos uma imagem para
emoldurar também a situação da política internacional dos dias de hoje.
90
Domínio público.
Divulgação.
Textos literários em diálogo com a tradição
Os escombros do World Trade Center e A Torre de Babel, c. 1563. Pieter Brueghel, o Velho.
Sobre esse pano de fundo, o papel das obras literárias e da literatura comparada, no contexto global contemporâneo, também ganha a dimensão de
agente relevante no debate sobre os conflitos culturais, sociais e políticos, em
nível internacional.
Relato de um Certo Oriente,
romance do diálogo inter-religioso
Divulgação O Estado de S. Paulo.
O romance Relato de um Certo Oriente (1989), de Milton Hatoum (*1952), tem
como contexto espacial a cidade de Manaus. Sua estrutura narrativa, constituída
de diversas perspectivas em que se alternam
as vozes de diversos narradores, constrói-se
sobre as memórias e investigações em torno
da vida de Emilie, a protagonista católica de
origem sírio-libanesa, casada com um muçulmano igualmente sírio-libanês e mãe de três
filhos e uma filha nascidos no Brasil.
Manaus e a floresta constituem, com a
cidade de Trípoli e outras localidades do Líbano,
um ambiente duplo que abriga, sobretudo,
a memória. Manaus e a floresta – tal como o
espaço psicólogico e existencial das personagens – são, metaforicamente, lugares isentos
de determinações culturais únicas, marcados
Milton Hatoum.
por tensões multiétnicas e multiculturais. De
outra parte, a metrópole amazônica e a floresta que a envolve são também estímulo fundador que inicia processos de construção de novas identidades.
91
Literatura Comparada
O marido de Emilie, cuja voz conduz a narrativa no quarto capítulo do romance, diz por exemplo: “Compreendi que a visão de uma paisagem singular pode
alterar o destino de um homem e torná-lo menos estranho à terra em que ele
pisa pela primeira vez” (HATOUM, 1989, p. 73). E em outra parte ouvimos sobre
Dorner, amigo alemão da família radicado há muitos anos em Manaus:
Ele passou a vida anotando suas impressões acerca da vida amazônica. O comportamento
ético de seus habitantes e tudo o que diz respeito à identidade e ao convívio entre brancos,
caboclos e índios eram seus temas prediletos. Numa das cartas […] afirmava que o gesto lento
e o olhar perdido e descentrado das pessoas [de Manaus] buscam o silêncio e são formas de
resistir ao tempo, ou melhor, de ser fora do tempo. [Seus] argumentos apoiavam-se na vivência
intensa da região […] e também na leitura de filósofos que tateiam o que ele nomeava “o
delicado território do álter”. (HATOUM, 1989, p. 83)
Esse espaço de alteridade, a busca por conhecer, compreender e possivelmente respeitar a condição do outro é um dos temas centrais da obra.
No romance, desperta grande interesse a construção de boa parte do enredo
a partir do casamento misto entre uma católica fervorosa, Emilie, e um muçulmano. Esse exemplo doméstico da relação conflituosa entre as duas maiores
religiões monoteístas do planeta é algo exótico e inesperado para os estereótipos da cultura brasileira relacionados à Amazônia. A relação entre Emilie e seu
marido atualiza, por um lado, a questão do confronto entre culturas distintas,
matriz central da busca de identidade na América Latina. Por outro lado, propõe
a questão central para a crise do universo religioso da atualidade – o desafio do
diálogo inter-religioso, especialmente entre cristianismo e islamismo.
Ainda que Emilie e seu marido, cujo nome não se dá a conhecer no texto,
vivam um casamento de amor, desejo e, via de regra, respeito, o romance apresenta momentos tensos de crítica mútua e desavenças do casal, resultantes das
práticas religiosas de um e de outro, consideradas questionáveis ou incompreensíveis pelo companheiro.
Uma desavença ocorre, por exemplo, pela recusa do marido a participar de
uma das festas de Natal, dado não haverem matado as aves da ceia em conformidade com o ritual muçulmano, no qual não se deve impor sofrimento ao animal
sacrificado. Emilie não compreende o motivo dessa recusa calada do marido, já
que uma empregada da casa havia matado as aves durante a ausência da patroa,
de maneira cruel e sádica. Emilie, portanto, sem compreender a situação, refere-se a Muhammad (que é conhecido entre os muçulmanos como “o Profeta”)
de forma desrespeitosa e diz: “Deve ser uma das proibições do Livro – ironizou
Emilie –, mas hoje quem dita o que pode e o que não pode sou eu, não um analfabeto guerreiro que se diz Profeta e Iluminado” (HATOUM, 1989, p. 39).
92
Textos literários em diálogo com a tradição
Depois do fato, o marido, ausente da festa, vai até o quarto do casal e destrói
silenciosamente as peças religiosas e santos de sua esposa, e então sai de casa
por toda a noite. Nesse ponto, o texto faz a única referência nominal a Jesus:
Os santos de gesso [estavam] pulverizados, os de madeira quebrados barbaramente, a Nossa
Senhora da Conceição espatifada e o Menino Jesus destroçado. Mas […] o oratório de caoba
e a imagem de Nossa Senhora do Líbano […] continuavam intactos, alheios à fúria do meu
pai durante o crepúsculo e uma parte da noite. O quarto parecia ter sido assolado por um
cataclisma, um furacão ou um único grito vindo do Todo-Poderoso. (HATOUM, 1989, p. 44)
Essa presença e figuração discreta de Jesus é muito significativa: ocorre em
um contexto de incomunicabilidade; destaca a fragilidade do menino de Belém,
que foi destruído; e está acompanhada de uma formulação irônica do narrador
sobre a fúria irracional do marido, enquanto “grito do Todo-Poderoso”, provável
alusão ao caráter belicoso e agressivo presente em determinadas correntes do
Islã, como em qualquer religião fundamentalista.
Depois do incidente, a mulher reconstrói as peças e o casal se reconcilia, por
meio de uma série de esforços e artifícios de ambas as partes. Quando se aclara a
razão do conflito, ou seja, a morte indevida das aves, Emilie cuida de que no ano
seguinte elas sejam sacrificadas segundo a expectativa do marido.
Se aparentemente o convívio inter-religioso esgota-se no romance pela referência à separação de dois universos rituais, pode-se identificar, no entanto, uma
segunda alusão a Jesus, indireta, que se reflete exatamente sobre o marido de
Emilie, o muçulmano. Essa alusão ocorre no âmbito de sua relação com a filha,
Samara Délia.
Samara engravidou solteira e passou desde então a merecer o ódio e a repulsa de dois de seus irmãos, muito rancorosos. Como se não bastasse, a filha
pequena de Samara Délia morre atropelada, no episódio mais comovente do
romance.
O pai de Samara, marido de Emilie, tido como homem rigoroso e calado,
desde o início defende a filha e procura reconciliar a família. Em certa ocasião,
reuniu os três filhos homens (havia um terceiro, além dos rancorosos) e os fez
ler um versículo da Surata das Mulheres, no Alcorão, “a fim de que todos entendessem que na palavra de Deus, o Misericordiosíssimo, sempre havia perdão e
clemência” (HATOUM, 1989, p. 144).
A reação dos dois irmãos rancorosos, no entanto, é a de passarem a desprezar o pai, por haver “recorrido a um texto sagrado para perdoar o imperdoável”
(HATOUM, 1989, p. 144).
93
Literatura Comparada
Quando o pai morre, esses irmãos continuam perturbando a irmã e – muito
significativamente – uma das coisas que fazem é reunir uns meninos para apedrejar – é essa a palavra usada – a janela do quarto onde dormia sozinha a
“pecadora”.
Ou seja, o pai – muçulmano rigoroso – vive a aprendizagem do perdão e recorre à sua religião para extrair dos textos sagrados uma flexibilidade caritativa
que sugere a nós, leitores, uma associação inevitável com o episódio bíblico da
mulher pecadora a quem se queria apedrejar (Jo 8: 1-11).
No episódio do Evangelho de João, a misericórdia (uma das virtudes essenciais ao cristianismo) está figurada de maneira marcante e associada à pessoa de
Jesus. Na situação extrema de sofrimento e perdão por parte do pai na relação
com sua filha, ocorre um encontro com a condição humana mais fundamental.
Forma-se aí um novo espaço de percepção do divino, para além de diferenças
entre as religiões, e que se apresenta sugerido pela circunstância concreta do
perdão.
O texto literário reconstrói o poder narrativo básico do Evangelho e, em sua
dramaticidade, aponta novas perspectivas humanas de convívio e integração. Se
os irmãos jamais perdoam Samara Délia, ao menos os leitores dispõem de um
caminho interpretativo que conduz ao perdão e, de outra parte, a uma possibilidade de diálogo concreto entre cristãos e muçulmanos a partir de potencialidades presentes nas duas religiões, avivadas por situações concretas de convívio.
Não é casual que o amor paterno, no romance, conduza à aproximação dos dois
universos religiosos.
No romance, sob esse ponto de vista, vemos o marido de Emilie uma última
vez, nas páginas finais, a partir da visão da narradora mais jovem do texto. Ela,
que é neta de Emilie, contempla um de seus tios, Hakim, junto ao túmulo do avô.
Por meio de uma carta, essa narradora dirige-se a um irmão que está distante,
em Barcelona. O tio Hakim é o outro filho de Emilie, exatamente aquele que não
condenou a própria irmã e que, na reunião com o pai, leu os versículos do Alcorão em voz alta para os dois irmãos rancorosos.
Uma personagem que conta à narradora sobre o comportamento do tio
Hakim nos dias que sucederam a morte do pai, afirma sobre ele:
[...] aquele vozeirão vinha da boca de teu tio Hakim; quem rezava era um objeto escuro: uma
caixa preta sobre o túmulo do teu avô. Fiz o sinal da cruz como muitos que passam ao lado
deste túmulo e ficam abismados porque ali não há uma cruz, nem coroa de flores, nem imagem
de santo, nenhum sinal de morto cristão. (HATOUM, 1989, p. 158)
94
Textos literários em diálogo com a tradição
Ali Mansuri.
Uma vez mais, elementos cristãos (o sinal da cruz e os demais objetos que faltavam no túmulo) associam-se a elementos muçulmanos: a figura humana vista
como caixa negra, em alusão à Caaba, na cidade de Meca, na Arábia Saudita, o
principal lugar de culto e peregrinação para os muçulmanos.
A Caaba, a construção que, no pátio da grande mesquita de Meca, abriga
a Pedra Negra, a mais sagrada relíquia do islamismo: é na direção dessa
relíquia que os muçulmanos se voltam, nas suas orações diárias.
À narradora e ao leitor, no fim do texto, não deverão mais perturbar a ausência de cruzes e santos no túmulo. Prevalecem, graças à dinâmica da orquestração literária, o respeito à imagem do tio e do avô. Justamente eles que souberam
perdoar e que são personagens das mais íntegras no romance.
E terminamos com as palavras finais dessa cena de Relato de um Certo Oriente:
Eu mesma relutei em acreditar que um corpo em Manaus estivesse voltado para Meca, como
se o espaço da crença fosse quase tão vasto quanto o Universo: um corpo se inclina diante
de um templo, de um oráculo, de uma estátua ou de uma figura, e então todas as geografias
desaparecem ou confluem para a Pedra Negra que repousa no íntimo de cada um. (HATOUM,
1989, p. 159)
Na densidade das intensas experiências individuais, entretecidas com os fios
da tradição, parece haver o que mais nos toca e nos aproxima a cada ser humano:
a condição individual, partilhada por cada um, de “fascículo” na história, parte de
um todo maior e inserido em uma linha temporal de continuidades e rupturas.
A literatura comparada, por ser tecelã dedicada nessa lida de aproximar produtos culturais diversos em culturas e épocas distantes – para descobrir neles
diferenças, mas em especial semelhanças –, oferece instrumental de análise e
95
Literatura Comparada
reflexão precioso para os dias de hoje. Aberta à diversidade, é capaz de operar
com conteúdos da tradição sem incorrer em conservadorismo e dicção autoritária, preconceitos ou dogmas impositivos.
Texto complementar
Os orientes de Milton Hatoum
(PEREIRA, 2006, p. 83-92)
Tanto nos países ou regiões que se abrigam sob o incerto e controvertido
topônimo de “Terceiro Mundo”, quanto nos privilegiados lugares de onde os
capitais se disseminam, as intercambiáveis áreas dos Estudos Culturais e da
Literatura Comparada estabelecem pontos de contato com o Pós-Colonialismo, ou seja, com trabalhos de teóricos das ex-colônias do império europeu,
ou delas provenientes, mas radicados nas antigas metrópoles. Sobressaindo
como principal feixe de convergências entre os debates contemporâneos, a
articulação intercultural alarga discussões em torno de temas como cruzamentos discursivos, disseminação espacial e hibridismo.
As diásporas e passagens encontram campo fértil nos objetos concretos
da diluição das fronteiras, da contextualização identitária e da problematização da nacionalidade literária. [Vamos comentar o] romance Relato de um
Certo Oriente, cuja história principal transita pelos intrincados labirintos da
memória, reiterados por constantes afastamentos e deslocamentos, migrações e emigrações, exílios e autoexílios.
[...] o caráter híbrido da narrativa é estabelecido [por meio] dos nomes
compostos das personagens, reunidas em torno do casal libanês, que um dia
saiu do Líbano para Manaus, e o deslocamento físico torna-se contíguo ao
afastamento de uma perspectiva sexista, geralmente veiculada por escrituras masculinas, pois ocorrem mudanças nas atitudes do patriarca, cuja “fama
de homem sisudo, austero e maníaco se diluiu no tempo, e dos comentários
apressados sobre a sua personalidade, restou a verdade unânime de que
ele era antes de mais nada uma pessoa generosa que cultuava a solidão”
(HATOUM, 2004, p. 19-20).
[...]
96
Textos literários em diálogo com a tradição
Na zona limítrofe em que se encontra o imaginário da família líbano-brasileira, entre a religião católica de Emilie e a muçulmana de seu marido, não
ocorrem grandes desavenças, até o momento em que o último quebra os
santos da matriarca. O ato reinscreve abruptamente a assimilação do catolicismo por outras crenças, demonstrando que, no “novo internacionalismo”,
o movimento do específico ao geral, do material ao metafórico, não é uma
passagem suave de transição e transcendência [...].
As problemáticas fronteiras da modernidade, encenadas nas temporalidades ambivalentes do espaço-nação desintegrado, exemplificam-se num
rádio holandês, que captava as ondas do Ocidente e do Oriente, assim como
na alusão de Hindié a judeus e portugueses. Além disso, Hakim convive com
o idioma português na escola e nas ruas da cidade, mas aprende o “alifebata”
árabe na Parisiense, desvendando, além da língua, os mágicos recônditos de
tal loja, que também serve de residência à família. Na mudança desse local
para um sobrado, efetiva-se a movência a uma época anterior ao aportamento em Manaus. A viagem no tempo é viabilizada pela devassa na vida de
Emilie, a que procede seu filho mais velho, vasculhando objetos chaveados
num baú e correspondências encerradas em um relógio.
O desejo de desvendamento do Outro reduplica-se na tradução de orações, do francês para o português, realizada por Emilie, e no intertexto com
o místico poeta persa Farid Attar, antecipando breve referência à travessia
de Emir para a outra vida. Esse episódio será narrado pelo fotógrafo alemão
Dorner, em quem o momentâneo narrador Hakim se detém [...]. A passagem
do ser de quem se fala ao “eu” que fala a um “você” faz-se espaço intermediário, a intervir no aqui e agora, de modo que o olhar descritivo do estrangeiro sobre o Brasil intercala-se à sua análise de Emir, um ser distinto dos
outros imigrantes por não se entregar “ao vaivém incessante entre Manaus
e a teia de rios, não havia nele a sanha e a determinação dos que desembarcam jovens e pobres para no fim da vida ostentarem um império” (HATOUM,
2004, p. 62).
O híbrido local da cultura se inscreve na zona portuária, espaço da troca
e da exploração transnacionais, em que o relato oferecido por Dorner à filha
adotiva do casal libanês transita entre os índios locais e o restaurante francês, até chegar aos rumores sobre a morte de Emir nas águas do rio Negro.
O indício trágico das relações pessoais é notado no fato de Emilie encontrar
o futuro marido pela primeira vez justo no dia em que localizam o corpo do
97
Literatura Comparada
irmão dela. As mortes dos pais da matriarca, assim como sua viagem e a de
Emilie para o local do enterro são igualmente contadas pelo fotógrafo, e a
temática da partida relaciona-se à estratégia, já vista, de realizar o trânsito de
uma personagem ao papel de personagem-narrador.
É assim que o alemão depõe sobre o hábito de leitura do dono da Parisiense, autenticado pela frase proferida por essa personagem: “O paraíso
neste mundo se encontra no dorso dos alazões, nas páginas de alguns livros
e entre os seios de uma mulher” (HATOUM, 2004, p. 70). [...]
Quando o fotógrafo retoma o diálogo com a neta dos libaneses, a intertextualidade com o Alcorão se une a certos índices de hibridismo, como a
lápide de Emir, procedente da Itália. As leituras d’As Mil e uma Noites reforçam o aspecto híbrido do texto e a amizade do narrador-personagem com o
dono da Parisiense. [...]
A entremeada inscrição do regional e do híbrido é veiculada pelo fascínio de Dorner por orquídeas amazonenses, admiração que, mesmo longe do
Brasil, perdura, relacionando-se ao lembrado convívio entre brancos, caboclos e índios, bem como à coexistência da floresta com a cidade.
A positiva impureza étnica brasileira desliza na cor da pele ou num fio de
cabelo, e necessita de um tipo duplo de escrita, que se mova entre formações culturais e processos sociais sem uma lógica centrada. [...]
Desse modo, o sentido da ficção é buscado no caráter evasivo e transitório do real, conformando certa valorização da intertextualidade. A utilização da fotografia como um outro texto, podendo estabelecer comunicação
com o universo representado, é observada na situação em que Hakim sabe
da morte do pai ao receber uma fotografia em que Emilie está “sentada na
cadeira de balanço ao lado da poltrona coberta por um lençol branco, onde
meu pai costumava sentar-se” (HATOUM, 2004, p. 104). Uma outra fotografia remete o personagem-narrador à tarde em que anunciara sua decisão
de partir. Nesse dia, o retratado rosto da mãe parece “revelar as decepções,
os tropeços e os sofrimentos desde o momento em que Emilie descobriu o
relevo no ventre da filha” (HATOUM, 2004, p. 106).
Os dois instantes evocados pelo mesmo retrato são unificados pela narração de Hakim, que parte da gravidez de Samara Délia para chegar ao en-
98
Textos literários em diálogo com a tradição
contro entre ambos, antes da mudança dele para o sul. Os dois inomináveis
irmãos e o pai não toleravam o fato de Samara ter sido mãe solteira com 15
ou 16 anos. Se os primeiros continuam irredutíveis em suas posições, o segundo, que a princípio não aceitara a filha, passa a ser cativado pela presença da neta, estabelecendo uma posição liminar. É o que ocorre com Emilie,
pois, embora tivesse aceitado a gestação da filha, acaba por aconselhá-la a
ser casta e devota para o resto da vida. Tal forma de mortificação, sobreposta
ao precoce fim da vida de Soraya Ângela, como outras mortes, nesta narrativa, vincula-se a um deslocamento espacial.
[...] a referida frieza do patriarca para com Samara trafega em caminho ao
perdão. A morte do ancião, brevemente narrada, adequa-se ao “fim da vida
como ele sempre quis, vivendo consigo mesmo, sem testemunhas e longe de
tudo: do ódio, do ciúme, da esperança e do receio” (HATOUM, 2004, p. 147).
A referência ao poeta norte-africano Amadou Tifachi, cujas produções estão
repletas de erotismo, vincula-se à partida de Samara, dando a entender que
a libertação da mulher passaria pela duplicidade advinda do entre-lugar que
intermedeia o processo identitário composto pela sedimentação histórica e
a perda da identidade no processo de identificação cultural.
A construção do sujeito, bifurcada à disseminação dos libaneses nos limites
da nação brasileira, cria uma textualidade simbólica, que pode ser refigurada
no último capítulo, quando a narração retorna à mulher inominada. Os funerais de Emilie e o encontro com tio Hakim, um outro estranho ao lar, demarcam
os movimentos e realinhamentos metafóricos de uma subjetividade reivindicada a partir de tempos retroativos e prefigurativos. Sem perder seu norte, o
texto revela contexto, subtexto e intertexto, além de demarcar o locus enunciativo da cultura. Seus significados encontram-se entre espectros mudos e
almas desnudas, que se corporificam em crenças antecessoras da civilidade.
O imaginário em estado bruto, instigando temporalidades que coabitam
a pós-modernidade, conflui à visita da personagem-narradora ao cemitério,
ocasião em que o coveiro lhe relata o momento em que “quem rezava era um
objeto escuro: uma caixa preta sobre o túmulo do teu avô” (HATOUM, 2004,
p. 158). [...]
[Este] exercício analítico permite identificar, nos vários relatos que compõem o Relato de um Certo Oriente, a carta, o diário, o livro de viagens e as me-
99
Literatura Comparada
mórias, formas simples e originárias do gênero romanesco. Entre o fato real e
o ato de imaginar, autor e escritor, agente e sujeito, já vinham conformando
outro terceiro domínio, por cujo intermédio podemos reordenar símbolos e
redescobrir a verdade, “os olhos da memória as passagens da infância, as cantigas, os convívios, a fala dos outros, a nossa gargalhada ao escutar o idioma
híbrido que Emilie inventava todos os dias” (HATOUM, 2004, p. 166).
Atividades
1. “Os textos literários recorrem, em sua tecedura, a fios já presentes em tempos passados, e ligam-se a eles”. Comente essa afirmação.
100
Textos literários em diálogo com a tradição
2. Qual a relação da Torá, livro sagrado dos judeus, e a Bíblia cristã com o Corão,
livro sagrado dos muçulmanos?
3. Discorra sobre Relato de um Certo Oriente, de Milton Hatoum, apontando que
tipo de diálogo inter-religioso é abrigado nesse romance.
101
Literatura Comparada
4. Em que passagem de Relato de um Certo Oriente podemos identificar um
conflito oriundo das divergências entre o cristianismo e o islamismo?
5. Que alusão indireta a Jesus se reflete na ação do marido de Emilie ao defender Samara Délia, que é filha do casal?
102
Textos literários em diálogo com a tradição
Dicas de estudo
KUSCHEL, Karl-Josef, Os Escritores e as Escrituras: retratos teológico-literários
São Paulo: Loyola, 1999.
A relação entre literatura e religião é uma área de estudos que se expande no
Brasil e América Latina. Atualmente, em nosso país, o livro de Kuschel é uma das
principais obras de referência sobre o assunto.
KÜNG, Hans. Religiões do Mundo: em busca dos pontos em comum. Campinas:
Verus, 2004.
Leitura recomendada para um estudo conciso, mas autorizado e abrangente,
das religiões mundiais, conhecimento imprescindível para os estudos de literatura comparada.
103
João Guimarães Rosa e as artes visuais
Guimarães Rosa: uma obra brasileira para a
literatura universal
Tom Alves.
João Guimarães Rosa (1908-1967), médico de formação, diplomata,
homem público, refletiu em sua obra e atividade os anseios, sonhos e incertezas de quem se sabe em meio ao processo de formação de um país
gigantesco, cheio de desafios e dificuldades. O sertão, o Brasil do interior, começava a extinguir-se e dar lugar a uma nação moderna, urbana,
internacionalizada.
Paisagem do sertão de Minas Gerais.
O próprio Rosa era um homem do sertão, nascido na pequena Cordisburgo, no interior mineiro. Conhecia a realidade interiorana tão bem
quanto as novas estruturas sociais, políticas e administrativas. Da mesma
forma, conhecia a linguagem e a cultura do povo simples tão bem quanto
os recursos sofisticados da arte e da literatura modernas.
Para Rosa, importava conceber em sua obra um caminho de formação estética pela palavra: esperava que seus leitores pudessem, junto com
ele, entender o mundo com a força dos sentidos e a delicadeza da criação
pelo espírito. Talvez fosse esse o grande projeto do escritor também para
Literatura Comparada
o Brasil, que deixava a profusão de formas naturais do sertão para enveredar-se
no cruzamento de linhas e ângulos da arquitetura urbana e da engenharia das
relações burocratizadas em sociedades complexas.
Como migrar para a cidade sem perder os valores e a dinâmica das relações
humanas ainda nascentes do sertão, desse lugar em que “o eu ainda não encontrou o tu”, como disse Rosa, citando um de seus escritores preferidos, o alemão
Johann Wolfgang von Goethe(1749-1832)? Seria preciso vender a alma ao demo,
ao medo do incerto, ou continuaria sendo possível ao homem humano viver suas
travessias, ir “sem planos” e “voltar do meio pra trás”, quando quisesse?
Preocupado com os trânsitos geográficos, sociais e históricos – em um caminho de formação para o Brasil que não deixasse de lado a sensibilidade estética
como um dos pilares do projeto de modernização –, Rosa quis conferir ao sertão
mineiro visibilidade internacional, em um projeto consciente de escrever uma
obra brasileira para a cena literária mundial.
É muito significativo que ele tenha se ocupado de detalhes sobre a realidade
do espaço cultural e geográfico de Minas Gerais, incorporando-o a seus textos,
e que desejasse, ao mesmo tempo, ver esses textos traduzidos para diversos
outros idiomas, como o inglês, o alemão, o italiano, o espanhol, entre outros.
Em uma dissertação de mestrado intitulada A Percepção Geográfica da Paisagem nos Gerais do “Grande Sertão: Veredas”, a pesquisadora Solange de Lima
Ferreira discorre sobre os conhecimentos de Rosa acerca da região descrita em
sua obra. De Riobaldo, protagonista do romance Grande Sertão: Veredas, ela diz
que “demonstra ter um conhecimento empírico muito minucioso da geografia
dessa região” (FERREIRA, 1990, p. 89).
No Arquivo Guimarães Rosa do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo (USP), há muito material que resultou de viagens do escritor ao interior mineiro: cadernetas de anotações e uma pasta que o próprio
Rosa denominou Geografia: ar e terra (ROSA, inédito b).
Com base nesse material, sabe-se por exemplo que Rosa leu a Geografia do
Estado de Minas, de Alvaro Astolpho da Silveira: em folhas datilografadas, o texto
menciona diversos lugares e acidentes descritos no romance Grande Sertão: Veredas. Esse material traz definições utilizadas no romance (como as de chapadão
e chapada, entre muitas outras); explica a origem de nomes de lugares (tal como
a Serra do Espinhaço, conhecida no local como Serra Geral ou Serra de Minas);
e ensina vocábulos inusitados, como a palavra indígena para sumidouro – anhanhonhacanhuva –, que foi destacada em vermelho pelo escritor.
106
Divulgação.
João Guimarães Rosa e as artes visuais
Sumidouro.
Encantado com essa palavra, Rosa a empregou no conto “O recado do
morro”:
Fim do campo, nas sarjetas entremontãs das bacias, um ribeirão de repente vem,
desenrondilhando, ou o fiúme de um riachinho, e dá com o emparedamento, então cava um
buraco e por ele se soverte, desaparecendo num emboque, que alguns ainda têm pelo nome
gentio, de anhanhonhacanhuva. (ROSA, 1994a, p. 691)
O percurso traçado por Rosa em Grande Sertão: Veredas é um tributo que ele
fez à região de onde veio, o centro do Brasil, como símbolo das contradições,
tensões e possibilidades que o país carrega em si. Como homem de Estado e
diplomata, mas também como homem vindo da periferia do mundo, Guimarães
Rosa procurou fundir em sua obra registros linguísticos e perspectivas culturais
diferentes para conceber e propor formas literárias inovadoras. Procurou resgatar a linguagem do povo simples do sertão, fazendo-a ressoar em uma obra literária reconhecida internacionalmente.
Introdução ao método de criação rosiano
Como escritor, João Guimarães Rosa previa e desejava um diálogo intenso
com a crítica e a pesquisa especializada, o que justifica ainda mais a decifração
por nós, leitores, de aspectos que dependem de referências documentais, pois,
disse ele,
107
Literatura Comparada
A crítica literária só tem razão de ser quando aspira a complementar, a preencher, em suma
a permitir o acesso à obra. Uma crítica tal como eu a desejo deve ser um diálogo entre o
intérprete e o autor, uma conversa entre iguais que apenas se servem de meios diferentes.
(ROSA, 1994a, p. 40)
Para Rosa, um dos aspectos centrais do processo criativo encontrava-se no
nível da palavra. Encontrar novos vocábulos para criar e expressar novas situações e percepções do mundo era algo central. Na entrevista que concedeu em
1965 ao alemão Günter Lorenz, ele declarou que
Hoje um dicionário é ao mesmo tempo a melhor antologia lírica. Cada palavra é, segundo sua
essência, um poema. Pense só em sua gênese. No dia em que completar cem anos, publicarei
um livro, meu romance mais importante: um dicionário. Talvez um pouco antes. E este fará as
vezes de minha autobiografia. (ROSA, 1994a, p. 53)
Em 27 de junho de 2008, completaram-se, de fato, os cem anos de nascimento do escritor mineiro de Cordisburgo, e ele está mais vivo que nunca. A cena
editorial, a crítica especializada, a mídia, a cena internacional e seus muitos leitores, todos consideram-no o escritor brasileiro mais importante do século XX,
senão de toda nossa história literária.
Vamos tentar entender o raciocínio de Rosa: “No dia em que completar cem
anos, publicarei um livro, meu romance mais importante: um dicionário. E este fará
as vezes de minha autobiografia.” Do ponto de vista de sua biografia intelectual, as
listas de palavras e expressões deixadas pelo escritor em seu arquivo são um mapa
minucioso de suas leituras e o melhor indício de seu processo de criação.
O “romance mais importante” do grande escritor que registrasse esse processo histórico e social precisaria ser extremamente pessoal, “lírico”, “uma autobiografia”. E, ao mesmo tempo, precisaria ser um texto coletivo e aberto, um retrato
de todas as vozes que representasse, e uma fonte de reflexão e reescrita para
todos os leitores futuros – “um dicionário”.
Segundo a citação acima, Guimarães Rosa acreditava que “cada palavra é,
segundo sua essência, um poema.” Sua recomendação era: “Pense só em sua
gênese.” Esse produto histórico (cada palavra que nasce do encontro das pessoas e se atualiza cada vez que é reutilizada) tinha para o criador de Riobaldo e Diadorim o poder mágico da arte: a criação de um mundo novo de possibilidades e
diálogo, a fundação da individualidade subjetiva e sua solvência no corpo social
dinâmico, marcado por conflitos, acordos, instabilidade e efemeridade.
Rosa levava tão a sério o registro das palavras como rastros de sua formação e diálogo que, de fato, sua autobiografia intelectual pode ser reconstituída
de maneira minuciosa pelas listas de palavras e expressões deixadas por ele em
108
João Guimarães Rosa e as artes visuais
seu arquivo, nas folhas e cadernetas de anotações. O registro desses rastros de
vivências era um coletar sobre papel em branco centos e centos de vocábulos:
ao estudar, ler, viajar, ver o mundo, aprender novos idiomas, observar quadros,
conversar com os homens simples do sertão, Rosa estava em busca de palavras
e expressões novas, dizeres e vozes diversas, que poderia tornar suas.
Paulo Soethe.
Quando lhe ocorria um vocábulo que pretendia ter inventado, destacava-o
com o sinal m%, que queria dizer “cem por cento meu” ou “meu próprio”. Depois,
ele coligia, reunia esses vocábulos em listas, que usava para compor seus textos
literários.
Ao colecionar palavras “inventadas”, Rosa sabia trazer para a literatura a força
da língua viva e incontrolável das pessoas todas, do povo do sertão e da massa
emergente nas cidades, do presente, do passado e do futuro ainda incerto. As
muitas anotações do escritor são um mapa minucioso de suas leituras, e o melhor
itinerário de seu processo de criação. Não é à toa que a pesquisadora Nilce Martins, em seu Léxico de Guimarães Rosa (2004), registra mais de oito mil neologismos na obra do escritor. O programa lexicogênico (criador de palavras) foi
cumprido a sério por Rosa: “Cada palavra é, segundo sua essência, um poema.”
Tratava-se para Rosa, como dissemos, de um caminho de formação estética
pela palavra: aprender a entender o mundo com a força dos sentidos e a delicadeza da criação pelo espírito.
Guimarães Rosa, aprendiz e fruidor das artes
Uma das grandes contribuições da literatura comparada, em especial na sua
vertente norte-americana, é a aproximação comparativa entre texto e imagem.
Os assim chamados estudos interartes destacaram dimensões novas do texto literário e direcionaram a atenção do leitor a elementos estéticos da composição
109
Literatura Comparada
Domínio público.
que até então não haviam merecido atenção. Aspectos desse tipo de pesquisa
são, por exemplo, a dimensão da visualidade suscitada pela leitura, especialmente na figuração do espaço em que se situam as personagens e a ação1; ou a
fruição (observação e proveito) de obras de arte pelos escritores como fontes de
aprendizado artístico – do que nos ocuparemos mais adiante.
Dois Cavaleiros sobre um Cume, c. 1646-1648. Aelbert Cuyp.
Domínio público.
Rosa aprendeu muito das artes plásticas. Em anotação característica, diante
da tela Paisagem com Cidade, de Aelbert Cuyp (1620-1691) – vista no Museu da
Orangerie, em Paris, juntamente “com Ara” (sua esposa Aracy Moebius de Carvalho), em “16.XII.50” –, o escritor registra em sua caderneta: “Sinto, colho o espaço.”
Aracy, em 1939.
1
110
Aracy
Nascida em 1908, na cidade de Rio Negro (PR),
Aracy Moebius de Carvalho foi a segunda esposa
de João Guimarães Rosa, que com ela viveu até
o fim de seus dias. Ambos trabalharam no consulado-geral do Brasil em Hamburgo (Alemanha)
de 1938 a 1942, durante o período do nazismo e
o início da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
Mulher corajosa, Aracy ajudou muitos judeus a
fugir da Alemanha, salvando suas vidas.
Ver número especial “Poéticas do espaço” da revista Aletria (Belo Horizonte, UFMG), n. 15, 2007.
João Guimarães Rosa e as artes visuais
Apesar da pouca atenção que se deu a isso, o interesse de Rosa pelas artes visuais está amplamente documentado em seu Caderno de estudos para a obra: pintura
(inédito a), em várias folhas de anotações sobre visitas a exposições de arte e em
diversas observações e marcações à margem de livros em sua biblioteca.
IEB/USP.
Não possuindo indicação de data, esse caderno de estudos sobre pintura é um
caderno escolar cuja capa traz a figura de um busto do Duque de Caxias e algumas
cenas do Exército Brasileiro, em provável alusão à participação na Segunda Guerra
Mundial. Supõe-se, assim, que o caderno seja de meados da década de 1940.
Várias das suas anotações foram feitas
a partir da leitura de dois livros introdutórios de René Xavier Prinet – Initiation au
Dessin (1940) e Initiation a la Peinture (1938),
ambos presentes no acervo da biblioteca de
Guimarães Rosa depositada no Instituto de
Estudos Brasileiros. O segundo livro, conforme anotação de Rosa na folha de rosto, foi
adquirido em “Paris, 21.VI.939”.
Os volumes da biblioteca do escritor
estão anotados e muitos trechos destacados
e sublinhados são transcritos ou resumidos
no caderno. Embora não haja menção dos
títulos das obras no caderno, fica evidente
Fac-símile do exemplar da
sua utilização por Rosa. Ele estudou passo a
Biblioteca Guimarães Rosa.
passo conceitos fundamentais do desenho
e da pintura, intercalando às anotações vocábulos e expressões criados por ele
mesmo, antecedidos com o já mencionado símbolo m%.
Um exemplo que comprova a utilização do livro como base para boa parte
das anotações é oferecido pela definição de epiderme. Em Prinet, “L’epiderme
d’un tableau est cette partie de la matière qui reste en contact direct avec l’air et
la lumière du jour. Ainsi que pour tout objet précieux, elle doit donner envie de
la caresser (PRIENT, 1938, p. 45)”.
No caderno de Guimarães Rosa, a tradução: “Epiderme = A epiderme de um
quadro é essa parte da matéria que fica em contato direto com o ar e a luz do dia.
Assim como todo objeto precioso, ela deve dar vontade de se a acariciar (ROSA,
inédito a, fl. 11)”.
111
Literatura Comparada
Na sequência, o escritor observa: “assetinada [sic]como a pele de uma mulher
ou uma criança” (ROSA, inédito a, fl. 18). Eis aí o indício de um dos aspectos centrais em seus estudos de pintura: ao longo do caderno, podemos perceber que
interessam a Rosa, de modo particular, a representação visual do corpo humano.
Além disso, igualmente a transposição da força expressiva própria ao corpo para
outras realidades visuais, sobretudo paisagísticas.
Imediatamente abaixo da anotação sobre a epiderme do quadro, e depois da
associação dessa epiderme com a pele feminina ou infantil, há outra anotação
própria: “m%) Nada mais real que um corpo? interpretação válida: exasperar essa
vida...” (ROSA, inédito a, fl. 18).
A seguir, na folha 12, encontra-se uma transcrição do comentário de Prinet
sobre a tela Antiope (c. 1528), de Antonio Correggio (1489-1534), que se encontra no Museu do Louvre, em Paris.
A partir daí, as notas de Rosa sugerem sua disposição para encontrar analogias entre a pintura e a conformação literária da realidade visual. Às anotações
sobre o corpo e a epiderme se seguem outras, breves, de cunho próprio (sempre
antecedidas de m%), dentre as quais
Literalmente
nenhum romantismo
não posso estilizar
técnica exata. (ROSA, inédito a, fl. 12)
Assim, o escritor depreende, do estudo
da estética da pintura, recursos e parâmetros
para a própria produção literária.
O escritor anota e sublinha no seu caderno
a expressão “em visibilidade nenhuma futilidade” (ROSA, inédito a, fl. 17) e de suas leituras anota: “Forma. Essa delimitação particular
no espaço, graças à qual cada objeto é rendu
visible [torna-se visível] sob uma forma específica, é obtida pelo desenho.”
Antiope. Antonio Correggio.
112
Domínio público.
O trecho anotado por Rosa, já traduzido por ele mesmo, revela a ambiguidade do termo epiderme: “a luz alva da epiderme opera o milagre de irradiar-se em
todos os sentidos, sem que a inteireza do modelo e dos contornos se prejudique
por isso” (ROSA, inédito a, fl. 12).
João Guimarães Rosa e as artes visuais
E na folha seguinte:
m% = a instantaneidade do desenho
virtuosidade
o claroescuro produz a modelagem
O claro e o escuro servem para exprimir o lado plástico da figura e a fazer sobressair os níveis
ocupados pelos objetos, as distâncias que os separam; e a delimitar sua forma. (ROSA, inédito
a, fl. 18)
Já no início do caderno (fl. 2), a utilização dos claro-escuros, dos assim chamados valores em um quadro ou desenho, havia interessado Guimarães Rosa. Com
a descoberta dos claro-escuros e da noção de uma epiderme comum à imagem
e ao corpo, Rosa se depara com a possibilidade de representar, com “verdade
absoluta”, a realidade física dos corpos humanos face a face, e ainda o espaço
entre eles, como realidades visuais palpáveis e significativas quanto à relação
humana aí envolvida.
Na folha 18, após uma anotação segundo a qual o claro e o escuro exprimem o
lado plástico da figura, fazendo sobressair “as distâncias que os separam” e delimitando sua forma, Rosa ainda registra: “A maneira pela qual o artista utiliza a luz...” E então
ele mesmo, artista da palavra, cunha expressões próprias (antecedidas de m%):
à luz da manhã
espécie de céo luminoso
contraluar
contraclarão
contraclaridade
o agir do vermelho. (ROSA, inédito a, fl. 18)
De que forma Guimarães Rosa fez uso desses recursos bem demonstram
vários momentos no romance.
Leitura de um episódio “visual” de
Grande Sertão: Veredas
Vamos recuperar inicialmente algumas informações básicas sobre o romance
Grande Sertão: Veredas (1956).
Riobaldo, o protagonista, é filho natural de uma mulher simples com o fazendeiro Selorico Mendes. Quando menino conhece Reinaldo Diadorim, um outro
113
Literatura Comparada
garoto. Depois, homem feito, encontra-o de novo em um bando de jagunços2.
Os dois pelejam pelo sertão, ora fugindo das tropas dos governo, ora combatendo uma parte dissidente do bando (sob o comando de Hermógenes, traidores
haviam assassinado o líder Joca Ramiro, pai de Diadorim). Cada vez mais encantado pelo amigo, apaixonado mesmo, Riobaldo acompanha-o em seu propósito
de vingar a morte do pai: torna-se líder do bando e conduz os homens à vitória
sobre os “hermógenes”, os jagunços traidores.
Mas na batalha final ele perde Diadorim, seu grande amor: descobre que Reinaldo Diadorim era uma mulher disfarçada de homem, uma donzela guerreira,
criada como homem e agindo como homem para poder acompanhar seu pai
nas lutas armadas. Diadorim morre em combate depois de liquidar Hermógenes, cumprindo a vingança. Diante do corpo morto e nu de Diadorim, Riobaldo
descobre a verdade, motivo de sua dor.
Riobaldo sobrevive às batalhas, casa-se e torna-se fazendeiro.
Já velho, narra sua história a um moço que visitava sua propriedade por uns
dias.
Essa narração de Riobaldo acontece em primeira pessoa, diante de um interlocutor da cidade, a partir de uma visão retrospectiva dos fatos narrados. O leitor
do romance sabe-se diante de um diálogo. Riobaldo é mediador entre si mesmo
e a imagem que pode fazer de si, no presente e no passado. Fala do jagunço
que foi, mas como quem fala de um outro: “De cada vivimento que eu real tive,
de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse
diferente pessoa” (ROSA, 1994b, p. 68).
O matagal cerrado de vocábulos novos e episódios pontuais exige do leitor
persistência e acuidade, lâminas agudas para abrir a picada da narrativa com sua
leitura. A grande mobilidade do bando e o percurso trilhado pelos personagens
permitem a Rosa contemplar a diversidade paisagística da região, e isso faz o
texto dialogar com a tradição, cultivada desde o Romantismo, de associar estados de espírito à percepção da paisagem natural (cf. PAULINO; SOETHE, 2005).
2
Os habitantes do sertão são chamados sertanejos. Na época dos acontecimentos do romance (final do século XIX e início do século XX), o sertão
estava isolado, distante da civilização urbana, e apresentava um ordem social fortemente determinada pelas relações entre os trabalhadores rurais
e os grandes proprietários de terras – os fazendeiros ou coronéis. Tais relações traziam fortes traços da escravidão e de uma espécie de feudalismo
tardio que marcou nossa história colonial. Uma boa parte da população sertaneja, no entanto, não consistia nem de senhores e nem de trabalhadores regulares, de morada fixa, pois muitos viviam em regime quase nômade, prestando serviços ocasionais, mudando com frequência de uma
propriedade para outra. Não raro, constituíam força paramilitar a serviço de um fazendeiro, sendo então denominados jagunços. E houve casos em
que jagunços se organizaram em bandos independentes, revoltando-se contra os fazendeiros e o governo (sobre o assunto, ver o estudo de Victor
Nunes Leal, 1997).
114
IEB/USP.
João Guimarães Rosa e as artes visuais
O Tratado da Paisagem de André Lhote e, ao lado, as anotações de Rosa.
Vamos observar a seguir dois exemplos, retirados do romance, em que fica
clara a utilização consequente de claros e escuros por Guimarães Rosa.
O primeiro é o episódio em que se manifesta o ciúme de Diadorim depois
de Riobaldo ter conhecido sua noiva Otacília. Os amigos Riobaldo e Reinaldo
eram muito próximos, sempre havia uma afinidade especial entre os dois, mas
jamais eles chegam a uma conversa clara sobre o possível amor que Riobaldo
supunha homossexual e por isso proibido. Mas no romance há várias situações
em que cada um deles se comporta em relação ao outro sob o signo da relação
amorosa.
Durante a primeira conversa entre Riobaldo e Otacília, a futura esposa,
surgem os primeiros sinais do ódio de Diadorim, que irá se manifestar ao anoitecer, quando os jagunços estão reunidos no bando, como descreve o narrador:
Daí, sendo a noite, aos pardos gatos. Outra nossa noite, na rebaixa do engenho, deitados em
couros e esteiras – nem se tinha o espaço de lugar onde rede armar. Diadorim perto de mim. Eu
não queria conversa, as ideias que já estavam se acontecendo eram maiores. Assim eu ouvindo
o ciciri dos grilos. Na beira da rebaixa, a fogueira feita sarrava se acabando, Alaripe ainda esteve
lá, mexendo em tição, pitou um cigarro. (ROSA, 1994b, p. 128)
Note-se no texto a escuridão em que estão imersos os personagens, todos
indistintos. O uso da expressão “pardos gatos” – variação do popular “no escuro
todos os gatos são pardos” – alerta para essa indistinção. A proximidade, já que
115
Literatura Comparada
não há “espaço de lugar”, insere a dimensão de fundo à cena, também pela alusão
dupla à dimensão espacial. Isso, no entanto, ainda não apresenta os personagens
como figuras de contornos distintos – ao contrário, embaralha-os, amontoa-os.
Apenas Diadorim, antes de Alaripe aproximar-se da fogueira, é destacado sob
a óptica de Riobaldo, com a expressão “perto de mim”. Dá-se a ele um primeiro
contorno, ainda difuso, mas expressivo, dado pela rima que seu nome ressoa na
designação do ponto de vista que o delineia: “Diadorim perto de mim”. A indistinção persiste pelo silêncio e pelo preenchimento da atmosfera com o canto
dos grilos. Um foco de luz, apenas muito tênue, oferece-se com a fogueira extinta, o tição e a brasa do cigarro.
Divulgação.
Na sequência, marcada por outra atmosfera, um dos jagunços quebra o silêncio e fala de Otacília. Riobaldo adverte o amigo de que “não toque no nome
dessa moça”. Ninguém o retruca: “eles viam que era sério fatal, deviam estar
agora desqueixelados, no escuro” (ROSA, 1994b, p. 128). O escuro persiste, mas
as figuras tomam forma, agora em conjunto, sob a óptica de Riobaldo. E a luminosidade do quadro, ainda difusa, ganha outra intensidade pela presença da
Lua. Assim como o “ciciri” dos grilos dava contorno sonoro à escuridão na cena
anterior, é agora o canto da mãe-da-lua (um pássaro noturno da região), “foi, foi,
foi”, que dá concretude sonora a essa discreta fonte de luz:
Por longe, a mãe-da-lua suspirou o grito: –
Floriano, foi, foi, foi... – que gemia nas almas.
Então era o que em alguma parte a Lua estava
se saindo, a mãe-da-lua pousada num cupim
fica mirando, apaixonada, abobada. Deitado
quase encostado em mim, Diadorim formava um
silêncio pesaroso (ROSA, 1994b, p. 128).
O desenho de Diadorim reforça-se, assume forma. A ressonância entre
“mim” e “Diadorim” ainda está presente,
em ordem inversa, aproxima a figura
de Diadorim a Riobaldo, e delineia seu
corpo, envolvido pelo traçado do “silêncio pesaroso”.
Dá-se então um breve diálogo enciumado em que fulge “o punhal na mão” de
Mãe-da-lua (Nyctibius griseus).
Diadorim, “meio ocultado”. Logo depois,
os ânimos se acalmam e conclui-se a cena. O rosto de Diadorim ainda recebe um
contorno final: “Diadorim encolheu o braço, com o punhal, se defastou e deitou
116
João Guimarães Rosa e as artes visuais
de corpo, outra vez. Os olhos dele dançar produziam, de estar brilhando. E ele
devia de estar mordendo o correiame de couro (ROSA, 1994b, p. 128).”
Domínio público.
Riobaldo, que não adormece, sai de perto de seus colegas. A luminosidade
então é outra: “a Lua subia estada, abençoando redondo o friinho de maio. Era
da borda-do-campo que a mãe-da-lua sofria seu cujo de canto, do vulto de árvores da mata cercã” (ROSA, 1994b, p. 129). Agora se pode ver o contorno das árvores, da casa da fazenda do pai de Otacília, em que os jagunços estavam acampados. E pela imaginação de Riobaldo surge um quadro alvo: “Otacília deitada,
rezada, feito uma gatazinha branca, no cavo dos lençóis lavados e soltos” (ROSA,
1994b, p.129). Aí ressoam, a propósito, notas feitas no caderno de pintura, a
partir do nu feminino O Despertar, de Gustave Courbet (1819-1877): “m% = por
entre envolvências de lençóis desfeitos, que como espumaradas se insinuam”.
O Despertar, 1866. Gustave Courbet.
Após esse lampejo, Riobaldo se vê novamente imerso na claridade difusa do
luar e pressente alguém vindo atrás de si: “Diadorim, fosse? [...] mas lá não estava
pessoa nenhuma, entre claridade e sombras” (ROSA, 1994b, p.129). Então Riobaldo volta ao local onde dormia, adormece e só acorda quando Diadorim, “no mexe
leve”, levanta-se: “levando a capanga, ia tomar seu banho em poço de córrego, das
barras no clarear” (ROSA, 1994b, p.129). O banho ao amanhecer, visão de Diadorim na sensualidade que jamais se revelará de todo, surge apenas como quadro
possível, subtraído à parede da galeria de imagens que o romance oferece.
“Entre claridade e sombras”: aí se configuram situações as mais intensas no
romance. A preservação do mistério imposto pela presença física do outro, por
meio da imersão dos personagens na escuridão e de sua maior ou menor revela117
Literatura Comparada
ção pela luz, permite a Guimarães Rosa dar-lhes contornos sugestivos e figurar,
de modo palpável, o espaço que os separa e aproxima.
Os estudos comparados de literatura e artes visuais oferecem, nesse sentido,
grande contribuição à leitura dos textos literários sob um novo olhar e suscitam
os pesquisadores a investigar, historicamente, quais as matrizes artísticas aproveitadas pelos escritores e úteis para a fixação de suas convicções poéticas e o
exercício de suas práticas criativas individuais.
Texto complementar
Guimarães Rosa, leitor dos alemães
(SOETHE, 287-301)
As fontes do Arquivo e da Biblioteca Guimarães Rosa contêm informações
sobre que livros de autores alemães o escritor leu e quais deles desencadearam o que se poderia designar como recepção produtiva. Em seu acervo
pessoal, de cerca de 3 000 exemplares, havia mais de 120 livros em alemão
ou obras sobre temas alemães em francês, espanhol, inglês, italiano ou português. São obras literárias, tratados sobre cultura popular alemã, artes plásticas, religião, história política, catálogos, bem como livros de filosofia.
Vale destacar brevemente, como exemplo, a recepção por Rosa do relato
de um viajante de língua alemã no Brasil. Na biblioteca do escritor estão
presentes os dois volumes da tradução brasileira de Viagem pelo Interior do
Brasil. Johann Emanuel Pohl (1951), o autor, empreendeu essa expedição “nos
anos de 1817-1821, sob as ordens supremas de sua majestade o imperador
da Áustria, Francisco I”. Os exemplares da obra, publicada originalmente em
Viena em 1832-1837, contêm anotações de Rosa à margem, em especial nas
páginas em que se descrevem cenários das vivências e caminhos de Riobaldo. No volume II, por exemplo, há alusões do viajante austríaco à região do
rio Abaeté. Registro aqui apenas os trechos destacados por Rosa, como a
seguir:
118
João Guimarães Rosa e as artes visuais
“bela côr verde [à margem, anotação em verde: Rio Abaeté]
Aqui o rio Abaeté é constrangido de ambos os lados por uma cordilheira contínua, a serra
do rio Abaeté, que o acompanha até a sua embocadura no rio São Francisco. Ambas as
suas margens são cobertas de florestas. […] belo rio […] serra do Espírito Santo [sublinhas
em lápis verde; à margem, em lápis cinza: “m% = … o rio Abaeté / entre a serra do Abaeté].”
(POHL, 1951, p. 269, cf. destaques de João Guimarães Rosa)
Essas anotações ecoarão, por exemplo, no episódio do reencontro de Riobaldo e Zé Bebelo, após a morte de Diadorim e volta de Riobaldo à vida social:
“Que Zé Bebelo estava demorando léguas para cima, perto de São Gonçalo
do Abaeté. Me fiz pra lá. […] trote tocamos, viemos, beirando aquele rio. O
senhor sabe – o rio Abaeté, que é entristecedor audaz de belo: largo tanto,
de morro a morro” (ROSA, 1994b, p. 384).
Outro fato curioso, que por si só merece estudo aprofundado, é o grande
número de anotações e destaques no exemplar do livro de Emilio Willems
(1946), A Aculturação dos Alemães no Brasil. O interesse de Rosa, em particular
pela contribuição de imigrantes alemães para a “cultura material”, destacada
por Willems, ecoa na figura de Vupes, em Grande Sertão: Veredas. O personagem alemão é descrito como distinto e cultivado; valoriza certo refinamento
social e relacional, preferindo a cidade para viver; comercializa artigos de
ferro. Além disso, sob uma perspectiva idealista, Vupes elogia em Riobaldo
sua pontaria, ao destacar que este atira como o espírito1. Pode não ser casual,
portanto, o jogo com o sobrenome do personagem alemão “Wuspes…
Wupsis… Vupses” (ROSA, 1994b, p. 50), de grafia relativamente semelhante a
“Willems”, sem contar a coincidência plena do prenome: “Emilio” nos dois
casos. Parece-me plausível, para uma investigação mais exaustiva, a hipótese
de que estaria em questão, no personagem Vupes, a linha alemã dentre os
muitos fios do tecido étnico e cultural brasileiro, se entendemos Grande
Sertão: Veredas como romance de formação do Brasil, no sentido que propõe
Willi Bolle (2004).
Quanto à literatura alemã, Rosa declara na entrevista a Günter Lorenz conhecê-la “bastante bem” (ROSA, 1994a, p. 52): o Simplizissimus (de Grimmelshausen), a obra de Goethe, Thomas Mann, Robert Musil, Franz Kafka e Rilke
seriam objetos de sua admiração. No entanto, não saberia “o que fazer com
1
Curioso que em grego haja uma mesma palavra para “boa pontaria”, “intuição” e “habilidade para aproveitar a ocasião”, qualidades que
Vupes valoriza em Riobaldo: trata-se do termo eustóchia.
119
Literatura Comparada
autores mais jovens como Brecht”, já que a visão do ser humano que representam corresponderia à de Wolfsburg-Menschen, “seres humanos do tipo
Wolsburg”, em alusão à cidade-sede da fábrica Volkswagen, como símbolo
da sociedade de consumo moderna. Rosa condena, assim, a intensa politização da nova geração de escritores e afirma, em uma declaração claramente
provocativa, que todos esses autores juntos “não terão a importância que
uma única frase de Goethe tem para o destino do homem” (ROSA, 1994a,
p. 52). Uma vez mais Rosa combina elementos opostos da cultura alemã –
engajamento de esquerda (Brecht) e entusiasmo capitalista (Wolfsburg) –
para distanciar-se dos diferentes polos e apresentar-se como escritor apolítico. Seu modelo é Goethe, que “não escrevia para o dia, mas para o infinito”
(ROSA, 1994a, p. 49).
Essa postura de Rosa despertou reações severas de estudiosos alemães
como Martin Franzbach, que não poupou críticas nem a seus conterrâneos
envolvidos na difusão da obra de Guimarães Rosa na Alemanha:
Tradutores, críticos e filólogos alemães tentaram contribuir com a notoriedade de
Rosa em nível internacional. Hoje, no entanto, já se pode dizer […] que seus hinos de
louvor corresponderam mais a um desejo intelectual do que à realidade sociológica da
recepção. Os julgamentos estéticos de valor dessa gente na verdade apenas refletem o
mal entendido que também Rosa produziu com a concepção de literatura alemã que
defendia. A recepção de Rosa esteve restrita apenas ao cânone de leituras da burguesia
alemã ilustrada. (FRANZBACH, 1978, p. 167-168)
Em suma: como diplomata experiente Guimarães Rosa soube despertar
reações nos países estrangeiros de língua alemã e, com suas declarações
provocativas, tornar-se tema de controvérsias. O elemento autoirônico, sugerido na comparação de si mesmo com Goethe, encontra-se também nas
referências aos próprios livros como “leitura para alemães – gente que sente
de modo agarrado e afetivo a natureza, e que precisa, a todo momento, de
maneira inadiável, de apoiar-se na metafísica” (apud MEYER-CLASON, 1969,
p. 49). Depois de descrever os próprios livros como objetos “virgens e irrevelados, enquanto não recebessem a sanção e bênção dos leitores alemães”,
segue o comentário que a meu ver é indício de ironia fina: “O que digo é
sincero, nada demagógico, poderia jurá-lo pelo corcel do jagunço Riobaldo”
(apud MEYER-CLASON, 1969, p. 49-50).
Essas ideias, expressas no discurso pelos 60 anos de Witsch, destacam
apesar da ironia, e mesmo por ela, o que Rosa via como fator de identificação
para ele com a literatura e cultura alemã do século XIX e início do século XX:
120
João Guimarães Rosa e as artes visuais
sensibilidade para a natureza e necessidade de asseguramento metafísico
(seja de maneira pretensamente exitosa, como em Goethe, seja de maneira
fracassada, como em Kafka); isto é, a necessidade de conferir à realidade um
sentido elevado, por meio da laboração espiritual. Assim, ao lado da formulação irônica e quase patética de que seus romances sejam leitura para alemães2, também se podem entender essas manifestações como proposições
poetológicas sobre a própria obra. Convivem tensamente a autoestilização
irônica e o fundo de seriedade presente ex negativo nas suas declarações, se
entendidas como portadoras de ironia e autocrítica.
Em suma, como amplo material para pesquisa futura, encontram-se
na biblioteca de Rosa livros de Novalis, Jean Paul, Goethe, Schiller, Heine,
Hebbel, Raabe, Meyrinck, Sacher-Masoch, Thomas Mann, Musil, Kafka, Rilke,
Bergengruen, Kükelhaus e Jünger. Há uma recepção produtiva da literatura
de língua alemã por Rosa, para além do cânone burguês que ele, à primeira
vista, parece exaltar.
2
O argumento já constava na primeira carta ao tradutor alemão Curt Meyer-Clason (ROSA, 2003, p. 70).
Atividades
1. Abrigando-se no fato de que João Guimarães Rosa teve contato com a realidade interiorana, tanto quanto com estruturas modernizadas, discorra sobre
a importância da criação de vocábulos e expressões na criação rosiana.
121
Literatura Comparada
122
João Guimarães Rosa e as artes visuais
2. A grande obra de Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas, está calcada de
modo especial na realidade do interior do Brasil – o sertão. Comente de que
maneira Guimarães Rosa fundiu em sua literatura inovadora registros tão minuciosos do espaço geográfico e cultural de Minas Gerais.
123
Literatura Comparada
3. Explique esta citação de João Guimarães Rosa: “Cada palavra é, segundo sua
essência, um poema”.
124
João Guimarães Rosa e as artes visuais
4. De que forma Guimarães constrói em sua obra um diálogo entre a realidade
física dos corpos e sua descoberta sobre claros-escuros?
125
Literatura Comparada
126
João Guimarães Rosa e as artes visuais
5. Em que cena da obra de Guimarães Rosa podemos encontrar um indício de
sua fruição do nu feminino em O Despertar, de Gustave Courbet?
127
Literatura Comparada
6. Discorra sobre alguns aspectos importantes da obra Grande Sertão: Veredas,
publicada por João Guimarães Rosa, em 1956.
128
João Guimarães Rosa e as artes visuais
7. Quem foi João Guimarães Rosa? Comente.
129
Literatura Comparada
Dicas de estudo
PAULINO, Sibele; SOETHE, Paulo Astor. Artes visuais e paisagem em Guimarães
Rosa. Letras, Curitiba, n. 67, p. 41-53, set./dez. 2005. Disponível em: <http://ojs.
c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/letras/article/view/5526/4046>.
Hoje, boa parte das revistas acadêmicas da área de Letras está disponível em
versão on-line. Vale sempre procurar os textos na internet, sobretudo os mais
recentes. Da mesma forma, é imenso o acervo digital de imagens na rede. De
qualquer modo, não deixe de visitar os museus próximos a você, sempre que
possível: um bom profissional da área de Letras precisa de conhecimento e vivências das artes de maneira geral.
MANGUEL, Alberto. Lendo Imagens. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
Sobre a relação entre imagens e textos na História da Arte, vale conferir este
livro em que o autor, em um vocabulário acessível, defende a ideia de que os não
especialistas têm o direito de ler imagens como quem lê um texto. A partir de
dezenas de exemplos, são comentados episódios que se ocultam em pinturas,
esculturas, fotografias e projetos arquitetônicos desde a Roma antiga até as arrojadas experiências da arte do século XX.
130
João Guimarães Rosa e as artes visuais
131
Literatura e outras artes: a música
Apresentamos aqui um aspecto da literatura comparada em sua vertente dos estudos interartes: a relação entre literatura e música. Essas duas artes são consideradas sobretudo “artes temporais”, já que se desenvolvem
diante do leitor ou do ouvinte ao longo de um determinado tempo, e operam
com categorias temporais como ritmo, cadência, compasso, métrica.
É possível estabelecer comparações formais bastante complexas entre
textos literários e composições musicais. No Brasil, são muito relevantes,
por exemplo, os estudos que aproximam literatura e canção, desenvolvidos
por professores, poetas e músicos como José Miguel Wisnik e Luiz Tatit (Universidade de São Paulo), Benito Martinez Rodriguez e Marcelo Sandmann
(Universidade Federal do Paraná). Da mesma forma, é referência importante a obra teórica e interpretativa de Solange Ribeiro de Oliveira (Universidade Federal de Minas Gerais). No texto complementar, reservamos
espaço para uma leitura que exemplifica o interesse desses estudos.
De nossa parte, vamos destacar um fato da história cultural em que,
por razões também biográficas, a música ingressa como tema na obra de
dois grandes escritores estrangeiros, dois irmãos, filhos de uma brasileira.
Divulgação Viva Terra.
Heinrich e Thomas Mann,
filhos de brasileira
Embora alemães e brasileiros comecem só agora a perceber esse fato,
as raízes culturais e espirituais de
dois dos maiores escritores do século
XX na Alemanha, Heinrich e Thomas
Mann, estão profundamente vinculadas à origem brasileira de sua mãe.
Fazenda Boa Vista, Paraty, estado do Rio de Janeiro.
Literatura Comparada
Jorges.
Domínio público.
O pai de Julia era João Luiz Germano
Bruhns (1821-1893), alemão que emigrou
para o Brasil em 1840, com planos de expandir os negócios da família. Depois de
se fixar em Angra dos Reis, também no litoral fluminense, em 1847 ele se casou com
Maria Luiza da Silva, com quem teve cinco
filhos. Em março de 1856, Maria Luiza faleceu durante o parto, junto com o bebê, ao
tentar dar à luz seu sexto filho. A pequena
Julia contava pouco menos de cinco anos
e dois anos depois foi levada pelo pai à
cidade de Lübeck, no norte da Alemanha,
para nunca mais voltar ao Brasil. No entanto, João Luiz Bruhns retornou ao Rio de Ja- Luiz e Paolo Bruhns, irmãos de Julia Mann.
neiro poucas semanas depois, deixando a
menina, órfã de mãe, em um internato, aos cuidados de uma educadora.
Domínio público.
Julia da Silva Bruhns nasceu em 14 de agosto de 1851, nas proximidades de
Paraty, no litoral do Rio de Janeiro, e cresceu na Fazenda Boa Vista, “entre o mar e
a mata”, como ela descreve em suas memórias (MANN, Julia. 1993, p. 8).
Lübeck, no norte da Alemanha.
O próprio Thomas Mann escreverá sobre isso, em 1930:
Minha mãe era natural do Rio de Janeiro, mas tinha um pai alemão, de modo que nosso
sangue está misturado ao latino-americano em apenas um quarto. A nós quando crianças ela
contava sobre a beleza paradisíaca da baía do Rio, sobre as cobras venenosas que apareciam
na plantação de seu pai e que os escravos negros tratavam de matá-las a pauladas. Com sete
anos ela se viu transplantada para Lübeck – e a primeira neve que viu achou que fosse açúcar.
Lá cresceu, num pensionato para moças, dirigido por uma mulher culta, pequena e corcunda,
chamada Therese Bousset [...]. (MANN, Thomas. 1983, p. 153, tradução nossa)
134
Literatura e outras artes: a música
As recordações da infância no Brasil e sua origem estrangeira deixaram
marcas na memória e na formação de Julia. Pouco antes de completar 18 anos
de idade, em 4 de junho de 1869, ela se casou com Johann Thomas Heinrich
Mann, um cidadão importante de Lübeck, comerciante e senador da cidade1.
Seu primeiro filho, Luiz Heinrich Mann2, nasceu em 1871; Thomas Mann, quatro
anos mais tarde, em 1875.
Divulgação.
Para eles e outros os três filhos (Viktor, Carla e Julia), a jovem mãe ensinou
palavras em português e também canções do Brasil, como “Molequinho de meu
pai”. A brasileira Julia Mann menciona a canção e registra a respectiva melodia
em partitura nas suas Lembranças da Infância de Dodô, livro que escreveu já
madura, em 1903.
A capa das Lembranças da Infância de Dodô, de Julia Mann, 1958.
O registro dessa canção é bastante significativo porque revela a forte ligação
da mãe dos escritores com a música (brasileira) enquanto dado de sua origem cultural, algo que repercutirá também na obra literária de seus filhos. As Lembranças
só foram publicadas em 1958, em uma edição limitada, décadas após a morte de
Julia Mann, que aconteceu em março de 1923, quando ela contava 71 anos.
1
Senador da cidade: cargo equivalente ao de vereador, diríamos hoje, mas bem mais importante pela tradição e pela riqueza de Lübeck, que durante séculos foi uma cidade-Estado, administrativamente autônoma.
2
A atribuição do nome brasileiro ao primeiro filho foi homenagem de Julia Mann a seu irmão Luiz e a seu pai, que havia adaptado o nome alemão
Ludwig para a versão brasileira Luiz – e foi também uma maneira de manter viva, na história da família, sua origem brasileira.
135
Divulgação.
Literatura Comparada
Melodia da canção “Molequinho de meu pai”, como registrada
por Julia Mann em suas memórias.
Julia Mann foi, ela mesma, autora de contos, cartas e memórias de infância,
hoje disponíveis em tradução brasileira (MANN, Julia. 1993). Sobre o papel da
música na vida de sua mãe e na própria formação cultural e artística, Thomas
Mann se manifesta, por exemplo, em uma carta de 1939 a Agnes E. Meyer:
A natureza sensorial e pré-artística de minha mãe se expressava em sua musicalidade, em seu
desempenho ao piano, de muito bom gosto e com boa formação burguesa, e também em seu
canto refinado, ao qual devo meus bons conhecimentos sobre a canção erudita alemã. (MANN,
Thomas. 1963, p. 100, tradução nossa)
E em “Das Bild der Mutter” (“O retrato da mãe”), de 1930, ele se recorda:
Meu gosto maior era acompanhar minha mãe quando ela se dedicava à música. Seu piano
Bechstein ficava no salão, um cômodo avançado e claro [...]. Ali eu ficava horas e horas em uma
cadeira de espaldar estofada em cinza-claro e ouvia minha mãe tocar peças bem ensaiadas,
com uma sensibilidade fina e sensual, que eu notava com especial alegria quando ela executava
os estudos e noturnos de Chopin. (MANN, Thomas. 1983, S. 154, tradução nossa)
Temos aqui um exemplo peculiar na história da literatura, em que a “exótica”
origem cultural brasileira e a musicalidade irrompem na vida de uma família burguesa tradicional tornando-a uma “dinastia de escritores”.
A música como referência cultural
A relação entre música e identidade artística e cultural é clara para os descendentes de Julia Mann. Um evidente exemplo disso é um episódio do romance
Entre as Raças (1907), de Heinrich Mann, obra em que o escritor aproveita litera-
136
Literatura e outras artes: a música
riamente diversos detalhes da biografia e das memórias de sua mãe para criar a
protagonista Lola Gabriel e conceber sua história.
Como Julia Mann na vida real, a Lola do romance era uma menina brasileira vivendo há alguns anos na Alemanha, enfrentando várias dificuldades de
adaptação cultural. No episódio a seguir, ela surge como adolescente, reunida
com suas amigas no pensionato onde viviam e estudavam. Entre as meninas,
destaca-se Jenny, concorrente de Lola: as duas têm posições de liderança junto
às amigas e o grupo de meninas divide-se conforme a simpatia maior por uma
ou por outra.
No episódio que leremos, entra em questão o gosto musical da época e o
valor de uma canção “muito alemã”, cantada por Jenny. Como Lola se manifesta
de maneira negativa sobre a canção, acaba por ser colocada à parte, como a
única estrangeira em meio a todas as outras meninas:
No domingo à tarde, Jenny apresentou-se: cantou um repertório muito piegas, mirando o céu
e pousando as pontas dos dedos no peito. Lola falou alto, do fundo de sua alma:
– Isso é de mau gosto para além da conta!
As aliadas de Jenny não concordaram; mesmo entre as amigas de Lola não havia muitas que
partilhassem sua opinião. A filha de um deputado do parlamento alemão disse:
– Foi muito alemão.
– Foi de mau gosto! – Lola disparou. – E se foi alemão, então foi algo alemão de muito mau
gosto!
Fez-se silêncio; e quando Lola virou-se para as suas aliadas em busca de ajuda, elas desviaram
seus olhares, e afastaram-se, ombros para lá, ombros para cá, até que Lola ficasse isolada. Do
outro lado veio mais uma provocação:
– Afinal, você é mesmo brasileira!
– Se fosse isso, ao menos – esquivou-se a filha do parlamentar. – Mas ela é nada: ela é...
E forçando-se a pronunciar a palavra, torcendo o nariz, disse entre os dentes:
– Internacional!
A aversão no rosto da filha do parlamentar contaminou todos os outros olhares; e como se
tivessem ao lado um motivo de vergonha, cada uma saiu calada à busca de outras coisas que
fazer. (MANN, Heinrich. 1987, p. 46, tradução nossa)
Em uma época de nacionalismo exaltado na Europa, em que as grandes potências concorriam pelos domínios coloniais na África e na Ásia, ser “internacional” era visto como um defeito. Por isso o critério artístico de julgamento da
canção alemã importava pouco: o que importava para a maioria das meninas
era valorizar a canção por ela ser alemã. É muito característico que a enojada
condenação de Lola como “Internacional!” se dê pela boca de uma personagem
137
Literatura Comparada
apresentada como “filha do parlamentar”, ou seja, alguém próximo ao poder do
Império Alemão, poucos anos antes da Primeira Guerra Mundial (1914-1918).
Solidário à protagonista de seu romance, Heinrich Mann cria uma situação
em que condena a estreiteza do “orgulho nacional” e a instrumentalização da
arte (a indevida utilização da arte para fins de defesa e propagação de ideias
doutrinárias). O que para nós hoje é um valor (o esforço de internacionalização
e integração entre os povos) era, há cem anos, na Europa, algo condenável para
a maioria.
Ao longo do romance, a música constitui para Lola um refúgio, um modo de
combater a solidão que sente por ser diferente das outras pessoas.
O romance de Heinrich Mann faz, avant la lettre (“antes da letra; antes de o
termo existir”), a defesa da internacionalidade. E também defende a autonomia
da arte, em especial da música, diante do controle político que ela possa sofrer
pelo poder constituído.
Divulgação.
Dinastia
Cartaz da versão espanhola de minissérie televisiva alemã (2001) sobre a história da família Mann.
Em 2001, foram comemorados os 150
anos do nascimento da menina brasileira
que viria a ser a matriarca de uma dinastia
de escritores e intelectuais. Na Alemanha,
já se disse que os Mann são para aquele
país o que os Kennedy representam para
os Estados Unidos, e os Windsor para a
Inglaterra: uma família peculiar, que representa e vivencia a história recente e
as grandes questões do país, com grande
visibilidade na opinião pública. Desde o
final dos anos 1980 até os dias de hoje, de
fato se vive o que os alemães chamam de
uma “mannomania”.
Pois além de Heinrich e Thomas Mann,
também os filhos deste último alcançam
destaque na vida intelectual alemã: Klaus e Erika como escritores e ativistas
culturais, Golo como escritor. Klaus Mann, em especial, é conhecido no Brasil
138
Literatura e outras artes: a música
Cartaz da versão brasileira de
Mephisto, de Istvan Szabo.
Divulgação.
Divulgação.
por seu romance Mephisto (ou Mefisto), adaptado para o cinema pelo importante diretor húngaro Istvan Szabo.
Capa da edição brasileira do
romance de Klaus Mann.
Divulgação Rowohlt .
Frido Mann (bisneto de Julia, neto de Thomas e filho do músico e germanista
Michael Mann) mantém contato intenso com o Brasil e dedicou-se a resgatar as
origens brasileiras de sua família. Em 1997, houve em Paraty uma série de eventos organizados por Frido e intelectuais brasileiros, em cooperação com o Instituto Goethe, conferindo visibilidade ao
fato biográfico das raízes brasileiras na
vida da grande família de escritores.
Pelo sesquicentenário de nascimento
de Julia Mann, foi organizada na Europa
a exposição “Uma Vida entre Duas Culturas”. O material chegou ao Brasil em 2001
e foi exibido no Museu da República, no
Rio de Janeiro.
Frido é escritor, autor de uma trilogia
de romances em que o Brasil desempenha papel importante, e recentemente publicou sua autobiografia, que na
Alemanha ja atingiu a marca de 25 mil
exemplares vendidos. Muitos dos episódios narrados na biografia tem relação Capa de Montanha Russa (2008), a autobiografia de Frido Mann, em que relata
com experiências dele no Brasil.
diversos episódios do seu contato com
o Brasil.
139
Literatura Comparada
Personagens-artistas e a música na obra de
Thomas Mann
Se a origem brasileira ainda não foi devidamente considerada pela crítica
especializada na pesquisa e interpretação da obra de Thomas Mann, por outro
lado são frequentes as análises das figurações das mães de artistas em textos do
escritor, enquanto figuras exóticas e marcantes.
Há por exemplo a mãe do protagonista em Tonio Kröger; a mãe de Adrian Leverkühn, em Doutor Fausto; e alusões nesse mesmo sentido à mãe de Gustav von
Aschenbach, em A Morte em Veneza. Nessas obras, bem como em anotações em
diários e cartas, Thomas Mann trata de localizar a gênese da arte na confluência
de princípios diversos de rigor e liberdade, austeridade e sensualidade, associados respectivamente ao masculino (ou paterno) e ao feminino (ou materno), enquanto elementos complementares.
A ideia não é nova e, como relata Klaus Harprecht, era corrente nas famílias
burguesas da virada do século XIX para o XX a observância dos versos de um
famoso epigrama de Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832):
Do pai herdei a estatura,
o jeito sisudo de ser,
da mãezinha, vivaz candura,
e a vontade de histórias tecer. (apud HARPRECHT, 1995, p. 66-67, tradução nossa)
Porém, mais do que uma harmonização burguesa tradicional desses dois
polos, Thomas Mann trata de se alimentar da tensão que nasce do convívio
inevitável desses princípios. Se o sujeito humano vive da ambivalência entre a
condição cultural (civilidade, espírito) e a condição natural (corporeidade, vida),
o mesmo vale para o texto literário, que se constitui em um misto de rigidez linguística formal (o espírito) e sensualidade e materialidade próprias à dimensão
estética (a vida).
Em outras palavras, a poética de Thomas Mann alimenta-se da consciência
do caráter ambivalente da literatura, como espaço da corporeidade em meio
ao território de domínio racional e lógico em que se move a linguagem natural
humana (na ciência, na política, nas práticas educacionais, administrativas, jurídicas e burocráticas, entre outras).
Em A Morte em Veneza essa questão é bastante clara. O protagonista é Gustav
von Aschenbach, um escritor em crise que herdara da mãe “um influxo de sangue
140
Literatura e outras artes: a música
mais agitado e sensual” – como não podia deixar de ser, ela era de origem étnica
diversa (tcheca neste caso). Aschenbach recebe da mãe “as características de
uma raça estrangeira patentes em sua aparência”. O ser desse “artista especial”
surge da “fusão de uma escrupulosidade profissional austera com impulsos ardentes e obscuros” (MANN, Thomas. 2000, p. 10).
Em um momento de reavaliação de suas convicções espirituais e artísticas,
Aschenbach sai em férias para Veneza, cidade italiana que evoca o Sul, como
espaço de liberdade tradicional no imaginário alemão. Na cidade, o escritor
encanta-se por um menino polonês (eslavo como a mãe do protagonista) chamado Tadzio. Ao mesmo tempo, uma epidemia de cólera acomete a cidade. As
experiências do encantamento estético e erótico, da crise espiritual, da ameaça
de doença e morte: tudo isso se mistura na narrativa.
O texto figura um espaço de encontro com o outro, com o alheio. A matriz decisiva de desgarramento e necessidade de reconstrução da identidade se dá em
A Morte em Veneza pelo cultivo nada casual de um espaço paisagístico próprio,
o mar, em que masculino e feminino irão se fundir, pois o mar serve de pano de
fundo para a marcante imagem de Tadzio, menino que reúne elementos masculinos e femininos, já que convergem para ele os desejos homossexuais e projeções do protagonista Gustav von Aschenbach, que o observa.
A atração exercida pelo menino Tadzio sobre o escritor bem situado e de
meia-idade é muito mais uma figuração refinada da androginia como metáfora
do encontro (gênese da arte) do que mera solução biografista de uma eventual
homossexualidade reprimida, aspecto que se tem enfatizado em excesso na biografia de Thomas Mann.
Na adaptação de A Morte em Veneza para o cinema, pelo diretor italiano Luchino Visconti (1906-1976), Gustav von Aschenbach não é um escritor mas um
músico. Essa mudança não é casual, pois sabe-se que a ideia fundamental da
novela surgiu durante uma viagem de Thomas Mann à Itália, na qual lhe chega a
notícia do falecimento do grande compositor e maestro vienense Gustav Mahler.
O prenome do protagonista da novela de Thomas Mann seria uma alusão ao
compositor tão admirado.
A presença da música em A Morte em Veneza permanece cifrada e só se realiza
de forma direta na adaptação da novela ao cinema: a trilha sonora do filme é
toda ela organizada a partir de obras de Mahler.
A presença da música marca a obra de Thomas Mann também em nível formal
(há em língua inglesa um estudo específico sobre esse recurso em Tonio Kröger
141
Literatura Comparada
– BASILIUS, 1981), mas Thomas Mann guardou espaço central para a música em
seu romance maior, o Doutor Fausto. Em rápidas palavras, o texto narra a vida do
compositor Adrian Leverkühn, que sela um pacto com o demônio: vende sua alma
em troca de exercer sua genialidade musical, sob o compromisso de prescindir
completamente do amor. A vida de Adrian tem um forte paralelo com a história da
Alemanha sob o nazismo e é um dos grandes romances do século XX.
Um detalhe interessante nesse romance é que o único amor que Adrian se
havia permitido, e que lhe traz a morte pela doença, havia se dado com uma
prostituta chamada Esmeralda. Marcado por esse amor, Adrian compõe sua
grande obra, a “Lamentação do Dr. Faustus”. Nesse trabalho, um dos principais
motivos musicais é uma sequência de notas que, na notação alemã, é registrada
com as letras h e a e es (ou seja: si, mi, lá, mi, mi bemol). Essa sequência, como o
próprio romance diz, remete ao nome Hetaera esmeralda, uma alusão ao grande
amor de Adrian: hetaera (έταĩραι) que em grego, significa “cortesã”, é seguido do
nome da mulher amada.
Will Carter.
Hetaera esmeralda é o nome de uma borboleta descrita no romance, de asas
transparentes, e que recebeu esse nome justamente por parecer nua e assumir
uma aura erótica. O que o romance não diz claramente, no entanto, é que essa
borboleta só existe na América do Sul, especialmente no Brasil.
Exemplar da espécie Hetaera esmeralda. Rio Cristalino,
Mato Grosso, 2006.
142
Literatura e outras artes: a música
Divulgação Iris Druck .
Thomas Mann sabia disso, pois havia lido sobre o inseto em um livro especializado que o escritor Hermann Hesse havia prefaciado e dado de presente a
Thomas Mann, anos antes. Hesse era um amante da natureza e especialmente
interessado por borboletas...
Fac-símile do exemplar de A Beleza dos
Lepidópteros (1936), com prefácio de
Hermann Hesse.
Em uma alusão sofisticadíssima e discreta à sua origem brasileira e latino-americana (cf. SOETHE, 2006), o escritor faz soar acima das palavras, como
música, a consciência da internacionalidade de sua arte.
Em uma carta de 1943 ao dramaturgo austríaco Karl-Lustig Prean, Thomas
Mann se expressa de maneira clara e direta:
Cedo soou em meus ouvidos o louvor da beleza [desse país imenso e acolhedor... ao qual me
sinto ligado por laços sanguíneos], pois minha mãe veio de lá, era uma filha da terra brasileira;
e o que ela me contou sobre essa terra e sua gente foram as primeiras coisas que ouvi sobre o
mundo estrangeiro. Também sempre estive consciente do sangue latino-americano que pulsa
em minhas veias e bem sinto o quanto lhe devo como artista. Apenas uma certa corpulência
desajeitada e conservadora de minha vida explica que eu ainda não tenha visitado o Brasil.
A perda de minha pátria [mein Vaterland] deveria constituir uma razão a mais para que eu
conhecesse o país de minha mãe [mein Mutterland]. Ainda chegará essa hora, espero. (MANN,
Thomas. 1963, p. 306)
143
Divulgação AW.
Literatura Comparada
Mutterland: die Familie Mann und Brasilien (Mátria: a Família Mann e o Brasil,
2009), primeiro livro específico sobre
o tema lançado na Alemanha.
No projeto de uma literatura comparada que queira ser “uma ecologia humanística [...], uma visão globalizante da literatura” (JOST, 1994, p. 344), os estudos
que aproximam texto e música desempenham papel peculiar, e particularmente
feliz nesse encontro entre a literatura brasileira e a literatura alemã.
Texto complementar
Canção popular brasileira: anos 1960 e 1970
(SANDMANN, 2009, p. 73-79)
Em publicação recente, Elos de Melodia e Letra, que reúne análises semióticas de canções de Caetano Veloso, Chico Buarque e da parceria Tom Jobim
e Vinicius de Moraes, Luiz Tatit e Ivã Lopes sintetizam, nos seguintes termos,
o lugar que a canção popular acabou por ocupar na vida cultural do Brasil a
partir de meados do século XX: “Desde a eclosão do movimento bossa-nova,
em 1958, a canção brasileira vem atraindo a atenção, não apenas da forte
indústria do entretenimento instalada no país, mas também de boa parte
da elite cultural que hoje lhe reserva o papel artístico e social anteriormen144
Literatura e outras artes: a música
te concedido apenas à literatura e às artes eruditas em geral. Essa condição
especial não pode evidentemente ser desvinculada dos grandes artistas que
emprestaram ou vêm emprestando o seu talento para a criação de um repertório cancional cuja originalidade e qualidade já são reconhecidas em todo
o mundo.”
A canção popular (a música popular), em sua múltipla manifestação, é
matéria de amplo interesse. Por sua própria natureza, é realização cara a
grande parte da população brasileira, esteja ela concentrada nos centros
urbanos, ou dispersa no meio rural, agora definitivamente conectado aos
mesmos centros, numa malha cerrada e de trocas várias. Circulando pelos
meios de massa, permeia o cotidiano das pessoas, integra os momentos de
trabalho, lazer e celebração, emoldura o quadro dos afetos e paixões entre
os sujeitos. É ainda elo identitário, marcando a fronteira entre territórios,
grupos e condições. E em momentos de grande tensão social e política,
surge como arma de questionamento crítico (como em algumas manifestações do samba carioca ao longo de toda sua história, ou da MPB dos anos
1960 e 1970 durante os anos do regime de exceção, ou ainda no rap dos
dias que correm).
Ao mesmo tempo, tornou-se assunto relevante para parte significativa da
intelligentsia do país, objeto de investigação acadêmica nos mais variados
campos do conhecimento (História, Sociologia, Antropologia, Musicologia,
Literatura, Semiótica, Estudos Culturais etc.). Revela-se, ainda, objeto de interesse para criadores situados em pontos privilegiados do espectro artístico (p. ex., em músicos “sofisticados”, de Tom Jobim a Benjamin Taubkin; no
cinema, das ficções de Cacá Diegues aos documentários ou ficcionalizações
da vida de compositores e músicos, como nos recentes Cazuza, Os Filhos de
Francisco, Viva São João; na dança e na performance, do trabalho de pesquisa e difusão de um Antônio Nóbrega aos projetos experimentais do grupo
Corpo etc.).
Por vezes, atrai a si os tantos esforços de definição e representação de
uma identidade nacional, como ocorreu com o samba urbano durante a Era
Vargas ou com a MPB dos anos 1960-1970, com destaque para a canção de
protesto ou, na contramão desta, as realizações do Tropicalismo. Este, a despeito das tantas ambiguidades e de uma maior abertura para o internacional, não deixou de postular um lugar de centralidade e representação (ou
seja: também propôs, à sua maneira, uma “interpretação do Brasil”).
145
Literatura Comparada
E se podemos desconfiar sempre das tentativas de estabelecer uma identidade nacional (única, coesa, formulada a partir de um centro evidente), não
há como negar que, ao olhar estrangeiro, a música popular brasileira, ao lado
de uma ou outra manifestação (o futebol, com seus astros e mitos), aparece
como encarnação fundamental da “brasilidade” (samba, carnaval, Carmem
Miranda, Bossa-Nova etc., já tornados clichês pela indústria do entretenimento). Com a exceção de um ou outro filme ou diretor de cinema, ou do
fenômeno Paulo Coelho (cuja nacionalidade, ao que tudo indica, não parece
ser ingrediente de especial apelo na recepção de sua obra), nenhuma outra
manifestação artística do país terá tido a visibilidade fora do Brasil que tem
esta manifestação.
O interesse de “boa parte da elite cultural” pela canção popular (ou melhor:
por um “certo tipo” de canção) desde a Bossa-Nova e seus desdobramentos
(aquilo que iria, dos anos 1960 em diante, ser chamado abreviadamente de
MPB) pode ser claramente conferido a partir de algumas publicações que
marcaram época, produzidas por intelectuais pertencentes a diferentes
campos da produção cultural.
Em 1968, o poeta Augusto de Campos, protagonista da agitação vanguardista na arte brasileira dos anos 1950-1960, nome central do movimento de
Poesia Concreta, tradutor, ensaísta e um crítico e melômano especialmente
interessado nas vertentes mais radicais da música de concerto do século XX
(de Anton Webern a John Cage), organizou o pioneiro Balanço da Bossa, posteriormente ampliado e rebatizado de Balanço da Bossa e Outras Bossas. Nele,
o autor reunia artigos saídos esparsamente na imprensa ao longo da década
de 1960, escritos no calor da hora por nomes como Brasil Rocha Brito, Júlio
Medaglia, Gilberto Mendes, além de textos seus, artigos a respeito do efervescente cenário da música popular daqueles anos, do surgimento da Bossa
Nova de João Gilberto e Tom Jobim ao Tropicalismo de Caetano Veloso e
Gilberto Gil. Na “Introdução” do volume, de março de 1968, seu organizador
sintetizava nos seguintes termos o perfil dos colaboradores e a perspectiva
crítica em comum que os unia então: “Embora escritos em épocas diversas
e por autores diversos, esses estudos – de um musicólogo, um regente, um
compositor e um poeta ‘eruditos’ mas entusiastas da música popular – têm
uma perspectiva comum que os solidariza. Estão, todos, predominantemente
interessados numa visão evolutiva da música popular, especialmente voltados para os caminhos imprevisíveis da invenção. Nesse sentido, estou cons-
146
Literatura e outras artes: a música
ciente de que o resultado é um livro parcial, de partido, polêmico. Contra.
Definitivamente contra a Tradicional Família Musical. Contra o nacionalismo-nacionaloide em música. O nacionalismo em escala regional ou hemisférica,
sempre alienante. Por uma música nacional universal.”
Augusto de Campos projetava sobre o campo da música popular conceitos e categorias caros às vanguardas históricas (visão evolutiva, invenção) e
tomava partido num debate que opunha os defensores de uma “legítima” e
“tradicional” música popular brasileira, infensa à influência estrangeira (seja
do jazz, seja do rock), bem como à experimentação, aos “modernizadores”
dessa mesma música popular (bossa-novistas e tropicalistas). E era ao lado
deste último grupo que o poeta “erudito” e de vanguarda vinha, naturalmente, se alinhar. Tal polarização viria a se desvanecer ao longo dos anos, mas
as intervenções críticas presentes no volume marcaram época e certamente
ajudaram a sedimentar o lugar de prestígio que compositores como Caetano
Veloso e Gilberto Gil, por exemplo, vieram a ocupar junto a um público “mais
letrado”, público em parte coincidente com aquele atingido pelos meios de
comunicação de massa em que a música daqueles circulava, mas não restrito
a eles.
Em diferente linha de investigação, outro estudo importante no processo
de recepção acadêmica da música popular daqueles anos, agora com destaque para o Tropicalismo, é Tropicália: alegoria, alegria, de Celso Favaretto,
originalmente uma dissertação de mestrado em Filosofia, apresentada na
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo, e publicada em livro em 1979. Mobilizando um amplo leque de conceitos (extraídos da sociologia, da psicanálise, da estética, da linguística, da
teoria musical e literária), Favaretto centrava-se numa abordagem geral da
intervenção crítico-criativa do Tropicalismo e na análise de canções surgidas nos anos históricos do movimento (entre 1967, com a polêmica entrada em cena de Caetano Veloso e Gilberto Gil defendendo, respectivamente,
“Alegria, Alegria” e “Domingo no Parque”, no 3.° Festival da Música Popular
Brasileira da TV Record de São Paulo; ao disco coletivo Panis et Circensis, de
1968, com colaborações, além dos já citados, de Rogério Duprat, Capinam,
Torquato Neto, Tom Zé, Gal Costa, Nara Leão e os Mutantes).
No processo de análise, o autor destaca a operação paródica frequente nas
canções, bem como o processo de justaposição de elementos arcaicos e modernos, que criam imagens estranhas e tensas, alegorias da própria situação
147
Literatura Comparada
do Brasil e sua inserção no mundo. Passa em revista os tantos diálogos com
a Antropofagia de Oswald de Andrade, a Poesia Concreta, a música experimental, a própria tradição da música popular brasileira, e outras manifestações culturais (do cinema de Joaquim Pedro de Andrade ao Teatro Oficina de
José Celso Martinez Correia). E aborda, ainda, os tantos embates entre crítica
estética e comportamental e crítica social e política, sublinhando a ambígua
inserção do movimento na indústria do espetáculo e do consumo.
A certa altura do texto, Favaretto equipara as realizações musicais do
grupo à produção cultural geral daquele momento: “[...] o tropicalismo levou
à área da música popular uma discussão que se colocava no mesmo nível
da que já vinha ocorrendo em outras, principalmente o teatro, o cinema e a
literatura. Entretanto, em função da mistura que realizou, com os elementos
da indústria cultural e os materiais da tradição brasileira, deslocou tal discussão dos limites em que fora situada, nos termos da oposição entre arte
participante e arte alienada. O tropicalismo elaborou uma nova linguagem
da canção, exigindo que se reformulassem os critérios de sua apreciação,
até então determinados pelo enfoque da crítica literária. Pode-se dizer que
o tropicalismo realizou no Brasil a autonomia da canção, estabelecendo-a
como um objeto enfim reconhecível como verdadeiramente artístico.”
Na sequência, o autor toca na questão da canção como gênero específico, para além da música e da literatura: “Por ser inseparavelmente musical e
verbal, é difícil tanto compor a canção como analisá-la. Ela remete a diferentes códigos e, ao mesmo tempo, apresenta uma unidade que os ultrapassa
[...]”. E, mais adiante, indica justamente aquele que será o ponto de partida,
em anos subsequentes, para os estudos de Luiz Tatit sobre a canção popular
no Brasil (e para além do próprio Tropicalismo): “Os tropicalistas realizaram a
vinculação de texto e melodia, explorando o domínio da entoação, o deslizar
do corpo na linguagem, a materialidade do canto e da fala, operados na conexão da língua e sua dicção, ligados ao infracódigo dos sons que subjazem
à manifestação expressiva.”
Nas análises que desenvolve, parece claro que Favaretto dá às canções
tropicalistas um estatuto que as põe em pé de igualdade com outras manifestações da arte de alto repertório, reconhecendo-as como passíveis de
148
Literatura e outras artes: a música
análises estéticas sofisticadas e em sintonia com as grandes questões da cultura e da sociedade de seu tempo.
Do mesmo ano de 1979, é o ensaio “O Minuto e o Milênio ou Por Favor,
Professor, Uma Década de Cada Vez”, de José Miguel Wisnik, escrito originalmente para o volume Música, da coleção Anos 70, dirigida por Adauto
Novaes. Neste breve (posto que concentrado) estudo, Wisnik discute a produção de música popular ao longo da década de 1970 no Brasil, centrando
o foco, a certa altura, em alguns nomes centrais da canção brasileira, surgidos na década imediatamente anterior e que consolidaram sua trajetória
por aqueles anos, como Roberto Carlos, Caetano Veloso e Chico Buarque de
Holanda.
Tomando como ponto de partida o chamado “vazio cultural” vivido então,
para o qual duas realidades contribuíam especialmente – o crescimento dos
meios de comunicação de massa e a censura à produção artística durante o
regime militar –, o autor procurava evidenciar de que modo a música popular, por meio de uma espécie de “poética da malandragem”, conseguia driblar
a censura política e de costumes e resistir à simples e pura padronização imposta pela indústria do entretenimento.
Segundo Wisnik, dois modos de produção musical conviviam e se interpenetravam então no país: o “industrial”, intensificado com o crescimento da
indústria do disco e dos meios de comunicação; e o “artesanal”, “que compreende os poetas-músicos criadores de uma obra marcadamente individualizada, em que a subjetividade se expressa lírica, satírica, épica e parodicamente.” Nesse lugar limítrofe, conceitos como os da Escola de Frankfurt
utilizados para entender a produção da “indústria cultural”, como “estandardização” e “regressão da audição”, se mostrariam insuficientes: “A má vontade
para com a música popular em Adorno é grande. Podemos entendê-la num
europeu de formação erudita. Por um lado, o uso musical para ele é a escuta
estrutural estrita e consciente de uma peça, a percepção da progressão das
formas através da história da arte e através da construção de uma determinada obra. Por outro, o equilíbrio entre a música erudita e a popular, num
país como a Alemanha, faz a balança cair espetacularmente para o lado da
tradição erudita, porque a música popular raramente é penetrada pelos se-
149
Literatura Comparada
tores mais criadores da cultura, vivendo numa espécie de marasmo kitsch e
digestivo [...]. Ora, no Brasil a tradição da música popular, pela sua inserção
na sociedade e pela sua vitalidade, pela riqueza artesanal que está investida
na sua teia de recados, pela sua habilidade em captar as transformações da
vida urbano-industrial, não se oferece simplesmente como um campo dócil
à dominação econômica da indústria cultural que se traduz numa linguagem
estandardizada, nem à repressão da censura que se traduz num controle
das formas de expressão política e sexual explícitas, nem às outras pressões
que se traduzem nas exigências do bom gosto acadêmico ou nas exigências
de um engajamento estreitamente concebido.”
Wisnik insiste nos usos da música no país, entre os quais o puramente
“estético-contemplativo” (fundamental dentro da tradição culta europeia)
nunca se impôs. No Brasil, a música erudita nunca teria conseguido formar
plenamente um “sistema” (no sentido que Antonio Candido dá para o termo
no seu Formação da Literatura Brasileira), congregando autores, obras e público. Aqui, a música sempre teria estado fortemente vinculada às práticas
rituais e mágicas, às atividades do cotidiano, às festas populares etc. Com o
processo de urbanização ao longo do século XX e com o advento dos meios
de massa, tais usos iriam amplificar-se e complicar-se ainda mais.
O autor sublinha o caráter impuro, híbrido, miscigenado da produção musical brasileira, e dos problemas que surgem na sua compreensão: “O fenômeno da música popular brasileira talvez espante até hoje, e talvez por isso
mesmo também continue pouco entendido na cabeça do país, por causa
dessa mistura em meio à qual se produz: a) embora mantenha um cordão
de ligação com a cultura popular não letrada, desprende-se dela para entrar
no mercado e na cidade; b) embora se deixe penetrar pela poesia culta, não
segue a lógica evolutiva da cultura literária, nem se filia a seus padrões de
filtragem; c) embora se reproduza dentro do contexto da indústria cultural,
não se reduz às regras da estandardização. Em suma, não funciona dentro
dos limites estritos de nenhum dos sistemas culturais existentes no Brasil,
embora se deixe permear por eles.”
150
Literatura e outras artes: a música
Wisnik evidenciava assim o lugar limítrofe, privilegiado e problemático
ocupado pela canção popular no Brasil àquela altura. A partir da definição
desse lugar (“um lugar entre”), pode-se compreender melhor por que motivo
algumas canções de apelo popular, veiculadas no rádio e na televisão para o
consumo de massa, poderiam surgir também como local de debates estéticos, sociais e políticos, e interessar fortemente ao mundo letrado.
No início dos anos 1980, a Editora Abril Cultural lançava a série Literatura
Comentada, com pequenos volumes dedicados a nomes fundamentais da
literatura brasileira do passado e do presente, com informações biobliográficas e apreciações críticas da parte dos seus organizadores, bem como uma
antologia de textos dos escritores escolhidos. Entre os autores àquela altura
mais recentes, além do já consagrado Vinicius de Moraes (nome de trânsito
evidente entre o mundo literário e o da canção popular), iria dedicar volumes
específicos a Chico Buarque de Holanda, Caetano Veloso e Gilberto Gil (Noel
Rosa, único dentre os compositores da “Velha Guarda”, iria receber igualmente um fascículo dedicado à sua produção). Se o primeiro desses três, ao lado
do trabalho com música, havia enveredado pela novela de ficção (Fazenda
Modelo) e pelo teatro (Calabar, Gota d’água e Ópera do Malandro), os dois
últimos eram fundamentalmente compositores de canções. Tratava-se, vale
lembrar, de uma série que circulava em bancas de jornais e revistas, voltada, portanto, para o grande público, especialmente sensível aos apelos de
nomes de maior visibilidade nos meios de comunicação. Por outro lado, não
deixava de ser uma espécie de “canonização” precoce de tais criadores, sua
incorporação ao universo da “literatura” (da cultura séria e letrada, portanto). De qualquer forma, parece evidente que tais artistas da canção (e não
quaisquer outros, como Roberto e Erasmo Carlos, por exemplo) rasuravam
os limites entre os campos, podendo ser reivindicados por este ou aquele, a
depender dos critérios de avaliação (os mesmos nomes integravam a série
Nova História da Música Popular Brasileira, de alguns anos antes e pela mesma
editora, publicação com fascículo e disco de vinil em anexo, igualmente com
ampla circulação nas bancas).
151
Literatura Comparada
Atividades
1. Quem foi Julia da Silva Bruhns? Comente.
152
Literatura e outras artes: a música
2. Embora longe de sua terra natal, Julia levou consigo as lembranças de sua infância no Brasil. De que forma Julia repassou esses vestígios aos seus filhos?
3. Qual foi o papel da música na vida de Julia e na formação de Thomas Mann?
153
Literatura Comparada
4. Como a música é identificada no romance Entre as Raças, de Heinrich Mann,
como um elemento de identidade cultural?
5. Discorra sobre a dinastia de escritores e intelectuais Mann.
154
Literatura e outras artes: a música
6. Que alusões à relação de Thomas Mann com a música podemos encontrar
em seu romance Doutor Fausto? Existem nessa obra aspectos que remetem
à cultura brasileira?
155
Literatura Comparada
7. Qual a grande mudança que ocorre na adaptação de A Morte em Veneza para
o cinema, por Lucchino Visconti? Qual a razão da mudança?
156
Literatura e outras artes: a música
Dicas de estudo
TREVISAN, João Silvério. Ana em Veneza. São Paulo: Best Seller, 1994.
Para um mergulho no universo intercultural ligado à história da família Mann
e para conhecer, ao mesmo tempo, um romance recente da literatura brasileira
em que a música desempenha papel central, vale conhecer esta obra que aproxima o leitor da figura do compositor brasileiro Alberto Nepomuceno (18641920) e faz reflexões interessantes sobre as perspectivas e a cena cultural do
Brasil contemporâneo.
OLIVEIRA, Solange Ribeiro de. Literatura e Música: Modulações pós-coloniais.
São Paulo: Perspectiva, 2002.
Como estudo teórico sobre literatura e música, recomenda-se este trabalho
que apresenta considerações gerais sobre os estudos interartes, as contribuições da área de Letras para a análise musical e da musicologia para a análise da
obra literária.
ROSENFELD, Anatol. Thomas Mann. São Paulo: Perspectiva, 1994.
Coletânea de ensaios de um grande crítico e estudioso que, como outros
grandes intelectuais de fala alemã exilados durante o nazismo (Herbert Caro,
Vilém Flusser e Otto Maria Carpeaux, por exemplo), permaneceu no Brasil e foi
um dos grandes difusores da literatura europeia em nosso país a partir do fim da
Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
157
Literatura e História: artes do tempo
Além de A Morte em Veneza (1912) e Doutor Fausto (1947), Thomas
Mann escreveu um livro monumental chamado A Montanha Mágica
(1924). Nesse romance, o escritor cria a história de Hans Castorp, um rapaz
singelo que vai visitar seu primo em um sanatório para o tratamento da
tuberculose, em meio ao Alpes suíços, na cidade de Davos (onde hoje, por
coincidência, reúnem-se a cada ano os líderes mundiais dos países ricos).
Embora seu plano inicial fosse permanecer poucas semanas nessa
visita, Hans Castorp acaba permanecendo sete anos – em parte por haver
ficado doente, mas sobretudo por haver se apaixonado por uma moça
russa chamada Clawdia Chauchat.
O sanatório nas montanhas também abriga figuras representativas
da sociedade europeia de antes da Primeira Guerra Mundial (1914-1918),
além de ser o cenário da história pessoal de Hans Castorp, que permanece em sua “montanha mágica” de 1907 a 1914. Assim, o final do romance
informa que quando tem início o conflito mundial Hans se vai para participar da guerra, como soldado no front.
Dessa forma, o leitor tem diante de si personagens envolvidas em debates que reconstroem o ambiente intelectual do período imediatamente anterior à guerra: decadência das monarquias europeias, consolidação
da ciência e da sociedade industrial moderna, fortalecimento das ideias
democráticas, ameaça de sobrevivência de ideias autoritárias, marcante
presença de culturas não europeias no cenário internacional, novas possibilidades artísticas e culturais – tudo isso é longamente apresentado e discutido no romance, direta ou indiretamente. Portanto, a obra tem o valor
de documento de época, refletindo a situação histórica de seu tempo e
refletindo sobre essa situação.
No entanto, como obra ficcional ela também cria tempo próprio – um
tempo interno, próprio das personagens, que no caso desse romance são
todas “seres de papel”, inventadas, sem correspondente direto no mundo
concreto. É como se o escritor tomasse um punhado de tempo, como um
material que ele pudesse moldar. Só que, em última instância, o tempo
Literatura Comparada
não se deixa apreender, não se deixa moldar como uma coisa. Ele é sempre fruto
da apreensão da realidade por alguém, e está sempre fugindo entre os dedos
de quem tenta retê-lo, como um fluido em movimento: quando dizemos agora,
esse agora já é passado.
As artes do tempo, apesar disso, são uma tentativa de apreensão do tempo.
De maneira mais abstrata na música, de maneira mais voltada aos acontecimentos e conteúdos na literatura. Ao criarem um tempo próprio, as obras de arte
“temporais” também permitem remeter-se a um tempo passado, apreendido e
vivido pelas pessoas em outros momentos.
Sobre o assunto, lê-se em A Montanha Mágica:
Pode-se narrar o tempo, o próprio tempo, o tempo como tal e em si? Não, isso seria uma
empresa deveras tola. Uma história que rezasse: “O tempo decorria, escoava-se, seguia o seu
curso” e assim por diante – nenhum homem de espírito são poderia considerá-la história. [...]
pois a narrativa se parece com a música no sentido de que ambas dão um conteúdo ao tempo;
“enchem-no de uma forma decente” [...] e fazem que ele “tenha algum valor próprio” e que
“nele aconteça alguma coisa”. [...] o tempo é o elemento da narrativa, assim como é o elemento
da vida; está inseparavelmente ligado a ela, como aos corpos no espaço. É também o elemento
da música, que o mede e subdivide, carregando-o de interesse e tornando-o precioso. Nesse
ponto, como já mencionamos, assemelha-se à narrativa [...].
[É] lógico que o tempo, além de ser o elemento da narrativa, também pode tornar-se o assunto
dela. Embora seja exagero afirmar que se pode “narrar o tempo”, não constitui certamente
empresa tão absurda a de querer narrar coisas do tempo. Dessa maneira poderíamos atribuir
uma ambiguidade singular ao conceito de um “romance do tempo”. (MANN, 1986, p. 654-655)
A ambiguidade de que falam Thomas Mann e seu narrador é a de que A Montanha Mágica apresenta-se mesmo como um Zeitroman (em alemão, Zeit = “tempo”
/ Roman = “romance”), isto é: um “romance sobre o tempo” e um “romance de
época”, um romance sobre o tempo histórico passado a que ele se refere e no qual
ocorre a ação narrada.
Pela partilha de um tempo “em estado puro” com o leitor, um tempo novo, a narrativa torna-se uma forma efetiva e adequada de abordar experiências coletivas no
discurso, em uma comunidade de comunicação. Por isso, o narrador de A Montanha
Mágica diz ter “um interesse natural” de que “todos os leitores agrupados em torno
de nós participem das experiências de nosso herói, Hans Castorp, o qual, há muito
tempo, deixou de estar seguro sobre a questão” (MANN, 1986, p. 655) – ou seja,
deixou de estar seguro sobre a natureza e a quantidade do tempo que passa.
Temos aqui, de maneira clara no romance, uma valorização da narrativa como
experiência de partilha humana, de renovação das vivências de experiências que
ainda marcam, no presente da partilha, as vidas de cada um.
160
Literatura e História: artes do tempo
Todos conhecem essa situação quando a família reunida recorda histórias de
antepassados que marcaram as vidas dos descendentes, ou quando amigos reunidos se lembram de alguém ausente que foi importante para todos. E isso se
intensifica ainda mais quando se fala de alguém falecido que, apesar de já não
estar mais presente, mantém-se vivo entre todos, na memória.
Literatura, História: escrituras do
inapreensível, marcas da memória
O que se tem na narrativa ficcional – quando ela evoca experiências relevantes vividas na história de uma comunidade de leitores – é a recriação de impressões pessoais e coletivas que se fixam em produtos da cultura, como testemunhos, figurações e sinais das coisas ocorridas.
Pois assim se concretiza a memória: lembranças individuais são partilhadas
e recebem uma forma material, seja na fala ou na escrita, seja por meio de imagens, objetos guardados, ruínas, monumentos... E quanto maior visibilidade e
aceitação (ou imposição) social essas lembranças têm, mais elas integram a memória “oficial” de uma sociedade.
A literatura, ao se debruçar sobre a história, está consciente dos mecanismos
da fixação da memória. E como interessa aos textos literários figurar as dinâmicas do discurso, as obras procuram abrigar a pluralidade de vozes, incluindo os
diversos pontos de vista que contribuem para fixar os conteúdos da memória.
O pensador Walter Benjamin (1892-1940) foi um dos principais responsáveis
pela maior consciência em relação a essa pluralidade de perspectivas, que sobrevivem mesmo diante da fixação de uma “história oficial”. Deve-se a ele, em
grande medida, a consciência contemporânea sobre haver sempre modos diferentes de contar a história oficial, sob a perspectiva dos vencidos ou dos que não
foram os atores principais no desenrolar dos acontecimentos.
Ele tem uma “imagem de pensamento” muito esclarecedora quanto a isso:
lembra-nos que, ao contemplar um monumento – a grande estátua de um herói,
por exemplo – é importante dedicar especial atenção às figuras que ficam ao pé
da figura principal. Quem seriam aquelas figuras anônimas e secundárias? Que
papel teriam desempenhado para se realizar o feito que a voz oficial atribui ao
herói que se celebra lá no alto?
161
Literatura Comparada
Domínio público.
Um produto cultural em que, por exemplo, se vê de modo claro uma figura
secundária no registro e celebração de um acontecimento da história do Brasil é
Independência ou Morte!, o quadro monumental de Pedro Américo.
Independência ou Morte: o grito do Ipiranga,1888. Pedro Américo.
No canto esquerdo inferior do quadro, a presença do homem simples que
conduzia o carro de bois e observa a distância o que acontece no centro da tela
nos faz pensar sobre o papel do povo na condução desses acontecimentos, nas
decisões sobre a independência do Brasil em relação a Portugal, e sobre as mudanças concretas que isso pode haver trazido ou não para o dia a dia das pessoas
naquela ocasião.
Observamos que o quadro foi pintado 66 anos depois do acontecimento, retratado durante o Segundo Império, e como parte de uma série de esforços para
construir e reforçar a identidade nacional. A sensibilidade do artista, se por um
lado idealiza e monumentaliza os acontecimentos, por outro não deixa de retratar o povo, em significativa posição periférica, lateral, com postura e vestimenta
bem distinta daquela que caracteriza os pretensos personagens principais do
que ali acontecia.
Esperamos ter deixado clara, com esse exemplo, a importância de prestar
atenção à diversidade de versões, perspectivas, pontos de vista diferentes na
figuração de acontecimentos históricos pela arte, e em especial pela literatura.
Sob a óptica da literatura comparada, que busca diferenças, semelhanças e
interfaces, já podemos imaginar o interesse dessa área de estudos pela relação
entre literatura e história (como disciplina acadêmica) e também entre obras
que, direta ou indiretamente, abordam um mesmo episódio ou contexto histórico, sob perspectivas diversas.
162
Literatura e História: artes do tempo
A seguir, sob esse viés, vamos nos dedicar a relacionar três obras importantes
da literatura latino-americana do século XX, sendo duas brasileiras (Os Sertões,
de Euclides da Cunha, e Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa) e uma
peruana (A Guerra do Fim do Mundo, de Mario Vargas Llosa).
Ao aproximá-las, vamos exemplificar de que maneira estudos comparativos
podem contribuir para enriquecer a leitura e ampliar os significados de determinadas obras.
Literatura, História: o que fica
Paulo Soethe.
Um dos episódios mais dolorosos da história do Brasil, sob uma perspectiva democrática e consciente das tensões sociais, foi o conflito de Canudos, no
sertão baiano. O local, que hoje abriga um parque estadual em memória desses
acontecimentos, foi palco de uma guerra sangrenta na qual milhares de brasileiros perderam suas vidas.
Parque Estadual de Canudos.
O grande relato geográfico, antropológico e jornalístico de Euclides da Cunha,
Os Sertões (1902), trata desse episódio em detalhes. A obra é hoje considerada
um “romance” e está entre as grandes obras literárias do assim chamado Pré-modernismo brasileiro. Embora concebido como relato ensaístico de caráter científico, bem ao gosto do positivismo que estava em voga na época, hoje o livro é
considerado obra literária de primeira grandeza e muito valorizado como tal.
Entre 1997, ano do centenário da guerra covarde de que trata o livro, e 2002,
ano do centenário de publicação de Os Sertões, o ambiente literário brasileiro
esteve fortemente marcado pelo respeito ante o episódio histórico e o caráter
único e monumental do livro do escritor fluminense.
163
Literatura Comparada
Euclides da Cunha – uma vez mais em evidência em 2009, pelo centenário de
sua morte – foi a testemunha mais eloquente desse evento trágico da história do
Brasil, nos primeiros anos da República.
Paulo Soethe.
Reunidas em torno do líder religioso Antonio Conselheiro (Antônio Vicente
Mendes Maciel, 1830-1897), milhares e milhares de pessoas muito pobres fizeram-se seguidoras de seu carisma e peregrinaram com ele pelo sertão nordestino, até se fixarem no arraial de Canudos. Lá, erigiram uma cidade organizada
segundo regras próprias, pautadas pela liderança religiosa do Conselheiro e por
princípios igualitários de partilha, solidariedade e obediência. Construíram uma
grande igreja e, ao longo do tempo, 5 200 casas de pau a pique, onde se abrigaram cerca de 25 000 pessoas, segundo os historiadores.
Casa de pau a pique nas proximidades do Parque Estadual de Canudos.
Como o movimento não reconhecia a República e cultivava uma religiosidade cristã popular que identificava o Estado leigo republicano com o Anticristo,
logo surgiram no Rio de Janeiro, a capital distante, rumores de que em Canudos
articulava-se uma sublevação, uma revolta contra a República, incitada por interesses da Inglaterra e dos monarquistas brasileiros que ainda não se conformavam com o advento do regime republicano no país.
Em razão desses rumores e sua difusão sensacionalista pela imprensa nacional, e em razão da aguerrida resistência dos seguidores de Antonio Conselheiro,
que venceram as primeiras expedições militares enviadas para “restabelecer a
ordem no país”, o conflito intensificou-se e teve seu fim com uma quarta expedição. Assim, o arraial foi arrasado e quase toda sua população foi morta, incluindo
mulheres, crianças e idosos.
O episódio é motivo de vergonha na história brasileira. Revela uma tentativa de organização social do povo miserável sendo cruelmente esmagada
pelo poder vigente, com recursos militares e força bruta desproporcionais. O
164
Literatura e História: artes do tempo
componente religioso do movimento confere-lhe uma dimensão de certa sacralidade e mistério, e por isso são profundas as marcas afetivas e imaginárias que
permanecem na memória histórica hoje.
Além disso, o episódio encontra eco em outros movimentos semelhantes
como em Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, também no Nordeste, liderado
pelo beato José Lourenço; a Guerra do Contestado, no Paraná e em Santa Catarina, cujo líder foi o monge José Maria; ou o episódio do Ferrabrás, em São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, que teve como líder a visionária Jacobina Maurer.
Esses três movimentos também mereceram tratamento literário, nos romances
Caldeirão (1982), de Claudio Aguiar; Geração do Deserto (1964), de Guido Wilmar
Sassi; e Videiras de Cristal (1985), de Luiz Antonio de Assis Brasil.
Os Sertões, que na edição crítica mais recente tem 720 páginas, divide-se em
três partes, “A terra” , “O homem” e “A luta”.
Como os subtítulos indicam, Euclides da Cunha
descreve o ambiente geográfico do sertão baiano, “A terra” que abriga o
conflito de Canudos, afirmando, impactado, que “é uma paragem impressionadora” (CUNHA, 2002, p. 87);
tece considerações sobre a gente do sertão, com reflexões marcadas por
teorias raciais típicas do início do século XX, procurando caracterizar “O
homem” com os instrumentos teóricos de que dispõe, mas essa visão preconceituosa oscila, modifica-se ao longo do livro, sendo muito famosa hoje
a frase “o sertanejo é, antes de tudo, um forte” (CUNHA, 2002, p. 207);
narra “A luta” entre o exército e a gente de Canudos em toda a sua dramaticidade, sendo que o tom parcial de condenação dos “fanáticos” vai se
atenuando até o momento final, em que o autor comenta, de modo muito
crítico, que
Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento
completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao
entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro
apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente
cinco mil soldados. (CUNHA, 2002, p. 778)
Por sua forma peculiar, que permitiu registrar os fatos e ao mesmo tempo dar
expressão às mudanças do posicionamento de Euclides da Cunha diante do conflito, Os Sertões se tornou um texto de imensa importância para a construção da
complexa identidade do Brasil moderno. A consciência do conflito entre os “dois
165
Literatura Comparada
Domínio público.
Brasis” (do litoral urbano e do sertão) antecipou as tensões e transformações que
o país viveria nas décadas seguintes: a mudança da paisagem sociocultural dominante no Brasil e a mudança concreta das pessoas, que se deslocam do sertão,
do interior, para a cidade.
Antonio Candido.
Por isso, não é casual que o principal
romance brasileiro da segunda metade do
século XX, Grande Sertão: Veredas, de João
Guimarães Rosa, tenha sido entendido em
tempos recentes como uma releitura de Os
Sertões. Uma intuição inicial disso é oferecida, como não raro nos estudos de literatura
brasileira, pelo mentor de toda uma geração de críticos e pesquisadores, o professor
Antonio Candido.
Em seu texto sobre o romance rosiano,
o ensaio “O homem dos avessos” (lançado
em 1957, sob o título “O sertão e o mundo”),
Candido percebe a afinidade entre as obras
de Euclides da Cunha e Guimarães Rosa:
Há, em Grande Sertão: Veredas, como n’Os Sertões, três elementos estruturais que apoiam a
composição: a terra, o homem, a luta. Uma obsessiva presença física no meio; uma sociedade
cuja pauta e destino dependem dele; como resultado, o conflito entre os homens. Mas a
analogia para aí; não só porque a atitude euclidiana é constatar para explicar, e a de Guimarães
Rosa inventar para sugerir, como porque a marcha de Euclides é lógica e sucessiva, enquanto
a dele é uma trança constante dos três elementos, refugindo a qualquer naturalismo e
levando, não à solução, mas à suspensão que marca a verdadeira obra de arte, e permite a sua
ressonância na imaginação e na sensibilidade. (CANDIDO, 1994, p. 79)
A sugestão de Candido, sua proposição de uma analogia e a suposição de
que ela não iria adiante (“a analogia para aí”) são retomadas de forma produtiva
por um dos comentadores mais perspicazes de Grande Sertão: Veredas, o professor Willi Bolle, da Universidade de São Paulo.
Desde o final dos anos 1990, com uma série de artigos, até a publicação de
seu livro grandesertão.br, em 2004, Bolle investiu em refletir sobre a diferença
entre Os Sertões e Grande Sertão: Veredas. Sob uma abordagem comparativa, estabeleceu chaves importantes para a compreensão das duas obras. Seu principal
argumento é o de que
166
Literatura e História: artes do tempo
O retrato do povo sertanejo por parte de Rosa é [...] uma antítese às idealizações. Uma
comparação com a representação do povo em Os Sertões, de Euclides da Cunha, demonstraria
que Grande Sertão: Veredas é uma crítica contundente ao livro precursor que, este sim, forjou
uma imagem idealizada do sertanejo.
Divulgação Editora 34.
Divulgação Revista Época.
[...] Os Sertões é um livro fortemente condicionado pela etnografia dos vencedores, característica
da época do imperialismo clássico. Já na feitura de Grande Sertão: Veredas sentem-se as marcas
da dissolução dos impérios coloniais e de uma etnografia relativista. Diferentemente da
antropologia autorial de Euclides, Guimarães Rosa optou por retratar a sociedade sertaneja
através de um profundo mergulho em sua dimensão linguística. (BOLLE, 2002, p. 354-355)
Willi Bolle e seu livro grandesertão.br (2004).
Assim, um exemplo da abordagem dos movimentos religiosos no interior do
sertão presta-se aqui a ilustrar a linguagem própria do romance de Rosa, seu
tributo ao falar sertanejo e ao modo de ver as coisas próprio ao olhar do povo do
sertão, sem idealizações e parcialidade.
A ambivalência da religiosidade popular – fonte de força e esperança, causa
de enganos e passividade, consequência da fé, mas também da miséria e do desespero – vem à tona nas considerações do narrador Riobaldo sobre o “fazendão
de Deus”. Primeiro, o fazendão é idealizado de maneira ingênua, depois repudiado sob a visão da miséria e da dura realidade do sofrimento. Entre as duas
posições extremas, o interlocutor de Riobaldo, moço da cidade (e com ele todos
nós, leitores), é chamado a se posicionar.
No texto, a clara alusão aos movimentos religiosos que graçavam na época
dos acontecimentos narrados no romance:
[...] saiba o senhor: população de um arraial baiano, inteira, [...] marchava de mudada – homens,
mulheres, as crias, os velhos, o padre com seus petrechos e cruz e a imagem da igreja – tendo
até bandinha de música, como vieram com todos, parecendo nação de maracatu! Iam para os
167
Literatura Comparada
diamantes, tão longe, eles mesmo dizendo: “...nos rios...” Uns tocavam jumentos de almocreve,
outros carregavam suas coisas – sacos de mantimentos, trouxas de roupa, rede de caroá a
tiracol. O padre, com chapéu-de-couro prà-trasado. Só era uma procissão sensata enchendo
estrada, às poeiras, com o plequeio das alpercatas, as velhas tiravam ladainha, gente cantável.
Rezavam, indo da miséria para a riqueza. E, pelo prazer de tomar parte no conforto de religião,
acompanhamos esses até a Vila da Pedra-de-Amolar. Lá venta é da banda do poente, no tempo-das-águas; na seca, o vento vem deste rumo daqui. O cortejo dos baianos dava parecença
com uma festa. No sertão, até enterro simples é festa.
Às vezes eu penso: seria o caso de pessoas de fé e posição se reunirem, em algum apropriado
lugar, no meio dos gerais, para se viver só em altas rezas, fortíssimas, louvando a Deus e
pedindo glória do perdão do mundo. Todos vinham comparecendo, lá se levantava enorme
igreja, não havia mais crimes, nem ambição, e todo sofrimento se espairava em Deus, dado
logo, até à hora de cada uma morte cantar. [...]
Todo assim, o que minha vocação pedia era um fazendão de Deus, colocado no mais tope, se
braseando incenso nas cabeceiras das roças, o povo entoando hinos, até os pássaros e bichos
vinham bisar. Senhor imagina? Gente sã valente, querendo só o Céu, finalizando. Mas diverso
do que se vê, ora cá ora ali lá. Como deu uma moça, no Barreiro-Novo, essa desistiu um dia
de comer e só bebendo por dia três gotas de água de pia benta, em redor dela começaram
milagres. [...] aquilo não era o que em minha crença eu prezava. Porque, num estalo de tempo,
já tinham surgido vindo milhares desses, para pedir cura, os doentes condenados: lázaros de
lepra, aleijados por horríveis formas, feridentos, os cegos mais sem gestos, loucos acorrentados,
idiotas, héticos e hidrópicos, de tudo: criaturas que fediam. Senhor enxergasse aquilo, o senhor
desanimava. Se tinha um grande nojo. Eu sei: nojo é invenção, do Que-Não-Há, para estorvar
que se tenha dó. E aquela gente gritava, exigiam saúde expedita, rezavam alto, discutiam uns
com os outros, desesperavam de fé sem virtude – requeriam era sarar, não desejavam Céu
nenhum. (ROSA, 1994, p. 42-43)
De qualquer modo, a ambivalência do impulso que motiva a agregação do
povo por meio da fé não deixa de revelar duas coisas: a dura realidade social de
miséria e doença e a vitalidade e esperança (“uma festa”) dos passantes na procissão. Ao confessar o próprio nojo, mas dizê-lo “invenção, do Que-Não-Há” (do
demônio) – invenção feita “para estorvar que se tenha dó” – Riobaldo se despe
de qualquer máscara diante de seu ouvinte: seu nojo da pobreza e da doença
não lhe permite clareza quanto ao valor articulador da esperança desesperada
que se vê na maneira como espontaneamente a massa vem em busca de consolo e cura.
Ao se revelar ambivalente, Riobaldo torna-se complexo o suficiente como
narrador. De visão múltipla e franca, a voz literária de Riobaldo encarna em si
as contradições e desafios da sociedade brasileira. Se nasce da perspectiva de
um escritor intelectualizado (Guimarães Rosa, seu criador), faz ressoar, mesmo
assim, a voz do povo. Contempla a realidade, concebe-a partilhada, discursiva,
em uma comunidade de comunicação única. É voz movida pela concretude da
experiência sensorial positiva ante a procissão festiva e de repulsa ante a dor
alheia. E ao interagir conosco, leitores, surpreende-nos com uma solução formal
nova, fazendo surgir o diferente em nosso horizonte de expectativas, pondo em
ação a mimese, o desafio ao pensamento.
168
Literatura e História: artes do tempo
Domínio público.
Papel social da literatura e dos estudos
de literatura comparada
Para encerrar, cabe mencionar rapidamente um último livro, publicado em
1981: A Guerra do Fim do Mundo, de Mario
Vargas Llosa (*1936). A obra nos interessa de maneira especial porque nasceu
da sugestão de uma escritora brasileira,
(Nélida Piñon, *1937), a um escritor peruano, o próprio Vargas Llosa: Por que
não escrever, sob olhar estrangeiro, um
grande romance sobre um dos episódios
mais importantes da história brasileira?
A sugestão foi aceita e rendeu a pesquisa de Vargas Llosa sobre o tema, e por
fim a concepção do romance A Guerra do
Fim do Mundo.
Nesse texto, Vargas Llosa reconta a
história do conflito de Canudos sob o
registro ficcional, incorporando problemas e questões propostos pela historiografia disponível na época em que escreveu. Interessa-lhe, por exemplo,
compreender o papel que tiveram os rumores de um apoio direto da Inglaterra e de grupos monarquistas ao movimento de Antonio Conselheiro. Esses
rumores foram responsáveis, em parte, por fazer o país inteiro supor que a
existência do arraial miserável, isolado no sertão baiano, pudesse representar
uma ameaça à República.
Mario Vargas Llosa e Nélida Piñon.
Para dar forma concreta ao que provavelmente aconteceu, já nas primeiras
páginas do romance Vargas Llosa cria um episódio em que uma das personagens principais, o escocês Galileo Gall, um militante revolucionário anarquista,
conversa com o diretor do Jornal de Notícias, da Bahia. A intenção de Gall era
publicar a convocação de “um ato público de solidariedade com os idealistas de
Canudos e com todos os rebeldes do mundo” (VARGAS LLOSA, 1999, p. 13).
O diretor do jornal explica a Gall que não poderia publicar a nota, sob o risco de
seu jornal ser fechado pelas autoridades. O periódico procurava manter-se crítico
e independente, mas vivia sob pressão do governo. O diretor alerta Gall para
169
Literatura Comparada
que não fosse ao Diário da Bahia para tentar publicar a nota, porque poderia ser
preso: o jornal pertencia ao barão de Canabrava, dono das terras em que situava
o arraial de Canudos, onde os seguidores do Conselheiro se haviam instalado. O
Diário da Bahia tinha uma posição totalmente contrária aos rebeldes, considerados bandidos. Depois de Galileo Gall deixar o jornal sem conseguir publicar sua
convocação revolucionária, o leitor ainda fica sabendo que naquele momento
a equipe de redação recebe a ordem de publicar uma nota do governo: “Por
disposição do governador do estado da Bahia, excelentíssimo senhor Luís Viana,
partiu hoje de Salvador uma companhia do Nono Batalhão de Infantaria, sob
comando do tenente Pires Ferreira, com a missão de expulsar de Canudos os
bandidos que ocuparam a fazenda e capturar seu líder, o sebastianista Antonio
Conselheiro” (VARGAS LLOSA, 1999, p. 13). Essa primeira expedição militar realmente aconteceu e foi rechaçada pelos “rebeldes” de Canudos.
Como vemos, o romance combina a figuração de situações inventadas, mas
muito concretas para a percepção do leitor, com informações e dados reais. Galileo
Gall é uma personagem inventada, mas o barão de Canabrava era de fato o proprietário das terras de Canudos. O diálogo entre Gall e o diretor do Jornal de Notícias
nunca houve, mas esse jornal existia e a nota do governo foi publicada. E o Diário da
Bahia era de fato um jornal concorrente, mais conservador, na Salvador da época.
Com isso, percebemos que, sob um registro ficcional, o romance oferece informação histórica ao leitor. Dessa maneira, o texto figura as relações que havia
na época e os interesses envolvidos. Ao mostrar os bastidores da imprensa, por
meio do diálogo e das ações de suas personagens e dos comentários de seu
narrador, Vargas Llosa procura deixar claro como houve, por um lado, restrição
da liberdade de imprensa e, por outro, campanhas sensacionalistas interessadas
em criar uma imagem dos rebeldes que justificasse ações militares contra eles,
em favor do interesse dos grandes proprietários de terras.
Desse modo, a dinâmica narrativa torna concretos e claros os elementos envolvidos nos processos sociais. Daí a opinião do grande historiador Peter Burke:
Em termos gerais, os historiadores de minha geração passaram a ter mais respeito pela
narrativa, e não estão sozinhos nisto. Entre outros grupos, os sociólogos, os antropólogos, os
filósofos, os teóricos políticos, os advogados e os médicos caminham todos na mesma direção.
(BURKE, 2000, p. 18)
As palavras de Burke demonstram que textos narrativos – depoimentos de
pessoas envolvidas nos acontecimentos, mas também narrativas ficcionais produzidas a partir desses acontecimentos – têm relevância e interesse teórico para
outras áreas, segundo defenderam vários estudiosos da literatura comparada.
170
Literatura e História: artes do tempo
Uma razão para esse valor peculiar da narrativa é porque, de maneira privilegiada, ela pode incluir a presença de várias vozes e perspectivas. Nesse sentido,
o romance de Vargas Llosa é exemplar. O princípio de construção do romance
é a pluralidade de perspectivas, ou seja, o romance é poliperspectivo. O narrador ora assume o ponto de vista de Antonio Conselheiro, ora de Galileo Gall. E
ainda se alternam numerosos outros personagens e suas perspectivas: militares
que atacam Canudos; pessoas que vivem no arraial, seguidores do Conselheiro, como Antônio Vilanova ou o Beatinho; um jornalista, que o leitor facilmente
identifica como figura que representa Euclides da Cunha.
Com esse procedimento de incluir várias perspectivas, Vargas Llosa procura
ir ao encontro da complexidade dos fatos. E também incorpora à voz do narrador, que tudo observa, a pluralidade cultural de figuras secundárias. Veja-se, por
exemplo, essa descrição da vida no arraial, quando se inicia sua organização:
Diariamente chegavam a Canudos três, cinco, dez famílias ou grupos de peregrinos, com seus
minúsculos rebanhos de cabras e suas carroças, e Antônio Vilanova destinava-lhes um espaço
naquele labirinto de casas para que levantassem a sua. Toda tarde, antes dos conselhos, o santo
recebia dentro do templo ainda sem teto, os recém-chegados. Eram encaminhados até ele pelo
Beatinho, através da massa de fiéis, e ainda que o Conselheiro tentasse impedi-los dizendo “Deus
é outro” atiravam-se a seus pés para beijá-los ou tocar sua túnica enquanto ele os abençoava,
olhando-os com esse olhar que dava a impressão de estar olhando o mais distante. [...]
[...] Muitos dos recém-vindos mudavam de nome, para assim simbolizar a nova vida que
começavam. Mas aos ritos católicos se enxertavam às vezes, como plantas parasitas, costumes
duvidosos. Assim, alguns mulatos punham-se a dançar quando rezavam e se dizia que,
sapateando com frenesi sobre a terra, expulsariam os pecados com o suor. Os negros foram se
agrupando no setor norte de Canudos, um quarteirão de choças de barro e palha que, mais
tarde, seria conhecido como o Mocambo. Os índios de Mirandela, que surpreendentemente
vieram instalar-se em Canudos, preparavam, à vista de todos, cozimentos de ervas de cheiros
e andavam em êxtase. [...]
A diversidade humana coexistia em Canudos sem violência, em meio a uma solidariedade
fraterna e um clima de exaltação que os escolhidos não haviam conhecido. Sentiam-se
verdadeiramente ricos de serem pobres, filhos de Deus, privilegiados, como lhes dizia todas as
tardes o homem de túnica esburacada. (VARGAS LLOSA, 1999, p. 80-81)
A figuração da multiplicidade cultural marcada pelo sincretismo religioso na
realidade social da população pobre do sertão surge como dado importante.
Brancos, negros e índios, com seus costumes e tradições, convivem e se aproximam em torno do Conselheiro. E um dado curioso nesse romance é que a
instância autorial, que coordena essa “orquestra de vozes” no romance, parece
sempre poupar a figura do Conselheiro e manter-lhe o mistério. É como se as
indefinições que marcam o episódio de Canudos permanecessem vivas na inapreensibilidade da figura do Conselheiro e pelo respeito a ele que permaneceu
vivo na memória do povo da região – e também na obra de um crítico seu, como
foi Euclides da Cunha.
171
Literatura Comparada
Assim, percebemos a força da literatura e da palavra quando se trata de
evocar a memória desse episódio tão significativo da história brasileira, de violência e desencontro entre o poder constituído e a vida da população pobre.
De modo muito significativo, a visão de Euclides da Cunha, contemporânea
ao conflito, sobrevive e se fortalece em Os Sertões, obra científico-jornalística
que ganha status literário. Depois, o maior escritor brasileiro do século XX,
João Guimarães Rosa, confronta-se com a questão, sob a sutileza de soluções
formais inovadoras, que se ocupam de incorporar a voz do povo à discussão
sobre os “dois Brasis”, iniciada por Euclides. Por fim, Vargas Llosa, escritor peruano de grande destaque internacional, lança um olhar estrangeiro sobre o
conflito e prossegue com a tarefa de incorporação de perspectivas múltiplas à
estruturação do texto.
O papel social da literatura – tornar os leitores sensíveis às dinâmicas discursivas da linguagem e da vida humana – encontra um exemplo privilegiado na
confrontação desses três grandes autores com o episódio de Canudos, tão significativo para a história do Brasil. Ao reforçar o diálogo e a aproximação entre
essas obras, de épocas diferentes e tradições literárias diversas (brasileira e peruana, no caso), a literatura comparada presta tributo ao diálogo constitutivo de
nossa humanidade, para além das fronteiras nacionais e como caminho possível
para a superação de injustiças econômicas e sociais.
Texto complementar
A cidade sagrada
(NUNES, 2002, p. 247-250)
Não era a primeira vez que poder e religião se associavam na fundação
de Belo Monte, em Canudos, sob a chefia do Conselheiro, Antonio Vicente
Maciel, na mesma região baiana onde o comando político, no fim do império e ao começar a república, pertencia, sob a tutela da Igreja, ao barão de
Jeremoabo, proprietário de mais de 60 fazendas. Outros conselheiros, indivíduos empenhados na conversão de pecadores para conduzi-los a Deus e na
execução de obras pias, percorriam, agrupando gente, vilas e pequenas cidades, ao lado de beatos, nome que davam aos homens devotos, puxadores
de terços e de ladainhas, dedicados à Igreja. É difícil precisar como Antonio
172
Literatura e História: artes do tempo
Conselheiro passou do exercício da piedade ao mando político, ao governo
de Canudos, um burgo pobre, arraial em fazenda abandonada, que depois
de 1893, com a população flutuante nele concentrada, em casario compacto
de pau a pique, como ponto de fuga e abrigo para os desvalidos que por
muitas fazendas se disseminavam, cresceu até cerca de 25 mil pessoas.
Essa população flutuante, cujo crescimento, ao aproximar-se a chegada
da quarta expedição contra Canudos, fez-se de maneira galopante, assustando os coronéis, os grandes proprietários da região, apaniguados ou amigos
do barão de Jeremoabo, e a alta hierarquia eclesiástica, era formada de roceiros, pequenos agricultores e suas famílias. Vinham da estirpe dos posseiros,
que não usufruíam de terra própria. Pouco gado vacum criavam; sem pastagens, só cabras e bodes prosperavam na região adusta da caatinga, a parte
mais braba, mais madrasta do sertão, onde se localizava Canudos. As peles
desses animais eram armazenadas e vendidas. Em segundo lugar, figuravam
comerciantes, pequenos ou médios, entre os habitantes de Canudos, que
tinha escola e professora primária. O próprio Conselheiro estava longe de
ser analfabeto. Frequentara as primeiras letras completas, àquela época, segundo tradição que perdurava nos seminários católicos, incluindo o ensino
de latim.
Mas também havia, nesse meio sertanejo heterogêneo, como lembra
Walnice Galvão, em O Império de Belo Monte: vida e morte de Canudos (São
Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001), principal motivação deste nosso trabalho, ex-escravos (a abolição se fizera um pouco antes da proclamação da
república, em 1889) e índios.
Antes de abandonar a vida errante que o levara a ocupar-se, por onde passava, com a construção ou a preservação de igrejas ou cemitérios, antes pois
que o Conselheiro se encerrasse em Canudos, transformando o burgo em
cidadela, e a cidadela na santa cidade de Belo Monte, até as famílias dos potentados locais, principalmente as mulheres, por ele inferiorizadas, acorriam
às praças e latadas onde o santo homem pregava. Depois sobreveio a ação
aguerrida do santo, seus fiéis armados, embora fossem improvisados seus
apetrechos bélicos, enfrentando sucessivas forças governamentais que tentaram desbaratá-los, ao longo de quatro expedições militares – com tropas
regulares, munidas de modernos fuzis, metralhadoras e canhões, a última
comandada por generais. O ímpeto agressivo, a ameaça aos grandes proprietários e à Igreja – uma pacificadora comissão de franciscanos chegou a
173
Literatura Comparada
adentrar Canudos – que o Conselheiro encarnava, bem assim como a marcha
da campanha militar contra ele intentada, principalmente a partir da atuação do coronel Moreira César, derrotado dentro da fortaleza onde chegou a
penetrar, tudo isso pode ser acompanhado pela expressão dos sobressaltos,
iras e preocupações dos potentados locais nas cartas por eles escritas ao seu
reconhecido líder, o barão de Jeremoabo.
Um dos missivistas confidencia ao barão o desastrosos que achava o
haver-se nomeado para o comando da tropa contra os insurgentes o “cruel
Moreira César”, que “vai fazer uma carnificina medonha nos maltrapilhos e
quase inermes fanáticos de Canudos” (cf. Canudos: cartas para o barão. Consuelo Novais Sampaio (Org.), Edusp, 1999, p. 138). Não tão inermes assim,
pois que, segundo outro correspondente, eles derrotam as tropas legais, matando quase todos os oficiais e apreendendo-lhes “apetrechos bélicos e víveres” (p. 150). Há, porém, os que chamam Moreira César de “heroico”; outros
lamentam-lhe a temeridade ao querer “entrar em Canudos sem descanso da
força” (p. 162). Mas no momento agudo do conflito – a quarta expedição,
do general Arthur Oscar –, ninguém mais pode viajar. Muitos proprietários
abandonam as fazendas. No entanto, os bombardeios das tropas se tornam
incessantes. “De vários pontos tem-se ouvido continuamente o ribombar do
canhão” (p. 185). Os jagunços porém passaram a fazer guerra de emboscada.
“Já se vê que o negócio complica-se e não será fácil levar a cabo a empresa”.
Muita gente do Conselheiro – escreve outro – está fugindo. Diz-se que “a catinga dos mortos” em Canudos já sufoca. O santo homem morreria em breve.
Submetida a cidadela, as tropas legais degolaram prisioneiros e se apropriaram de crianças abandonadas.
O que afinal pregava o Conselheiro e quais os atos do governo?
O Conselheiro falava como um padre, sem nunca porém ministrar os sacramentos, privilégio do sacerdócio que não tinha. Sua visão de mundo, mais
do que teocêntrica, estava centrada no Cristo e na Virgem Maria. Mostra-o o
livro de sermões que ele deixou, com o título de Tempestades que se Levantam
no Coração de Maria por Ocasião do Mistério da Anunciação. Nada aí excede
a ortodoxia da Igreja. Embora arredio ao alto clero (teve seguros aliados no
baixo), era o nosso pregador católico, apostólico romano, mas antes da reforma de Trento e, portanto, fiel ao direito divino dos reis, repudiando o Estado
leigo, não religioso, tal como formalmente instalado com a proclamação da
república. O Conselheiro antagonizou a república não porque fosse de um
174
Literatura e História: artes do tempo
então propalado partido monárquico – como o próprio Euclides da Cunha
pensara ao escrever sobre Canudos como a nossa Vendeia, antes de acompanhar parte da luta em sua última fase – mas porque adotava a teocracia.
O poder, que só pertencia aos príncipes, vinha de Deus. Política e religião
nele se uniam indissoluvelmente. O que o Conselheiro pregava se antepunha à sociedade civil; o Estado leigo, não religioso, é que constituía, para ele,
a verdadeira heresia. Respeito à propriedade, defesa da família e luta contra
os inimigos da Igreja, judeus, protestantes, maçons e republicanos, tais os
pontos quentes do ultraconservadorismo do Conselheiro, apenas abalado
na condenação frontal que fez da escravidão. O seu enfrentamento com o
governo começa quando a mesma religiosidade, equivalente já a uma posição política, inspira-os, a ele e a seu grupo, a reagirem violentamente contra
medidas governamentais, como a cobrança de impostos, e contra aspectos
constitucionais do Estado, como o casamento civil. Ele patrocinaria em 1893,
em várias cidades, uma queima das tábuas com os editais para a cobrança
dos impostos republicanos.
Acho que o principal ato de governo de Antonio Conselheiro, que atraiu
gente para Canudos, esvaziando as fazendas circunvizinhas, conforme queixa
dos potentados, foi a instalação gratuita dos habitantes: a terra se tornou
propriedade comum dentro da cidadela. Os outros atos de governo eram
defensivos (organização das guardas) ou devocionais, além dos proibitivos,
como o impedimento do consumo de bebidas alcoólicas.
Mas, concluindo, de que remotas e profundas causas proveio a autoridade do santo homem?
Para podermos responder a essa pergunta, teremos de referir a discussão
que se trava já no final do livro citado de Walnice, sobre qual dos três focos
de expectativa político-religiosa – sebastianismo, milenarismo e messianismo – incidiria sobre a atuação de Antonio Maciel.
Dom Sebastião, o monarca português morto em Alcácer-Quibir, que
deveria voltar algum dia, só aparece, como a ideia milenarista do “fim dos
tempos” – no entanto adotada por Robert M. Levine em O Sertão Prometido: o
massacre de Canudos (Edusp, 1995) – em folhetos proféticos encontrados no
reduto e versos de poesia popular da época. Não há dúvida que a atuação de
Antonio Maciel, como líder religioso, teve coloração messiânica. Mas nenhuma dessas tendências explica a junção do poder político e da religião, que
175
Literatura Comparada
o meio sertanejo tem frequentemente combinado. “O senhor sabe: sertão
é onde manda quem é forte, com as astúcias”, lê-se em Grande Sertão: Veredas. Por isso, no sertão, o poder é anômico, difuso e também religioso. Dessa
forma, numa visão retrospectiva que incorporou o Belo Monte, a cidade sagrada do Conselheiro e de Euclides da Cunha, o Riobaldo de Guimarães Rosa
poderia imaginar a hipótese de “pessoas de fé e posição se reunirem, em
algum apropriado lugar, no meio dos gerais, para se viver só em altas rezas,
fortíssimas, louvando a Deus e pedindo glória do perdão do mundo. Todos
vinham comparecendo, lá se levantava enorme igreja, não havia mais crimes
nem ambição, e todo sofrimento se espraiava em Deus, dado logo, até a hora
de cada uma morte cantar.”
Atividades
1. A literatura pode refletir e recriar aspectos sociais, culturais e históricos de
uma época. Que situação histórica podemos encontrar no romance A Montanha Mágica, de Thomas Mann?
176
Literatura e História: artes do tempo
2. Abordado de diversas formas – em obras como Os Sertões, de Euclides da
Cunha, Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, e A Guerra do Fim do Mundo, de Mario Vargas Llosa –, o conflito de Canudos é considerado um dos
episódios mais marcantes na história do Brasil. Faça um breve comentário
sobre o que foi esse episódio.
177
Literatura Comparada
3. Qual a divisão interna de Os Sertões, de Euclides da Cunha?
4. Qual é, conforme a abordagem de Willi Bolle, a principal diferença entre as
obras de Euclides da Cunha e Guimarães Rosa?
178
Literatura e História: artes do tempo
5. Comente sobre a figuração de movimentos religiosos sertanejos na obra de
Guimarães Rosa.
179
Literatura Comparada
6. Que aspectos históricos podemos encontrar no romance A Guerra do Fim do
Mundo, de Mario Vargas Llosa?
180
Literatura e História: artes do tempo
Dicas de estudo
BOLLE, Willi. grandesertão.br. São Paulo: Editora 34: Duas Cidades, 2004.
RONCARI, Luiz. O Brasil de Rosa: o amor e o poder. São Paulo: Unesp, 2004.
Entre os estudos recentes sobre a obra de Guimarães Rosa, vale conferir os
livros de Willi Bolle e Luiz Roncari: sob perspectivas diversas, eles deram novo
impulso aos estudos rosianos.
LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, Enxada e Voto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
Para se entender o contexto dos conflitos sociais e políticos no sertão brasileiro, tão presentes em nossa literatura, vale sempre voltar a este estudo clássico.
WEINHARDT, Marilene. Mesmos Crimes, Outros Discursos?: algumas narrativas
sobre o Contestado. Curitiba: UFPR, 2000.
Esse ensaio se tornou referência imprescindível na área dos estudos sobre as
relações entre literatura e história.
181
Gabarito
Literatura: dizer sobre o mundo, dizer sobre o dizer
1. Fictício quer dizer meramente inventado, inverídico. A qualidade de
“ficcional” característica fundamental dos textos literários: algo concebido em um ambiente criativo e que remete a interpretações e reflexões possíveis sobre aquilo de que se fala.
2. Luiz Costa Lima procura corrigir a ideia corrente de que mimese seja
o mesmo que imitação. Ele lembra que a resposta do escritor que recorre à mimese nasce em um horizonte de expectativas comuns, um
horizonte do que já é conhecido. Mas a prática da mimese consiste em
criar figuras, imagens e histórias novas, que apresentem algo inesperado. Mimese é, portanto, produção da diferença, a partir de expectativas do mesmo.
3. Ambas têm uma origem etimológica comum, já que em ambas está
presente a palavra grega aesthesis, que quer dizer “sensação”.
4. Embora muito distintos entre si, o texto de Pessoa e o de Murakami
apresentam a mesma relação entre o fingir algo por meio da imaginação e a intensidade do sentimento que está relacionada a isso – em
ambos se faz alusão ao coração como sede viva das emoções. O fingir
do eu lírico no poema e do personagem no romance também coincidem por ambos estarem conscientes de operar o ficcional.
A literatura entre as nações (e para além)
1. A escola francesa, mais antiga, restringe os estudos comparatistas à
literatura e aos contatos entre obras em particular, ou entre diferentes
literaturas nacionais. É fundamental para ela o conceito de influência.
A escola norte-americana, que se lançou a partir dos anos 1960, inclui
nas atividades comparatistas os diálogos entre a literatura e outras
áreas do saber, e entre a literatura e outras artes. Antecipou, em grande medida, os procedimentos dos estudos culturais, hoje bastante em
voga na academia, de modo especial na área de Letras.
Literatura Comparada
2. Wellek recusa a divisão metodológica entre literatura comparada e literatura
geral, dizendo haver apenas o estudo da literatura como tal. Sua postura metodológica, pautada pela análise formal do texto e desconsiderando fatores
extratextuais, também se demonstra problemática. Hoje, tem-se claro que o
percurso entre o estudo de casos particulares, considerando-se o contato entre autores e literaturas, e a generalização de conceitos e conclusões a partir
disso demanda um esforço teórico imprescindível para o desenvolvimento
dos estudos literários. Tem-se claro, também, que o estudo da literatura precisa considerar as obras e autores em seus contextos de relações discursivas.
3. A vinculação entre literatura e nacionalidade, ou seja, a pressuposição metafísica e arbitrária de que as literaturas são instrumentos ou reflexos das identidades nacionais.
4. A perspectiva assumida por teóricos como Antonio Candido e Angel Rama
questionou o conceito de influência como um evento linear e hierárquico na
história literária e nas dinâmicas de contato entre diferentes obras e escritores. Ao pensar a literatura latino-americana como um sistema complexo
de dinâmicas sociais e comunicativas entre escritores, obras e leitores que
se apropriam criativamente de formas tradicionais, renovando-as pelos temas e sentimentos locais e então propondo uma literatura autônoma, em
um diálogo questionador com a tradição, Candido e Rama revitalizaram os
estudos comparatistas, antes muito presos a uma visão linear da histórica e
restritos à literatura como um fenômeno fechado em si mesmo.
Autores multiculturais: Franz Kafka
1. Kafka era de origem judaica. Nasceu na Boêmia, região predominantemente
tcheca, dominada por uma elite austríaca. Como seu pai mandou-o estudar
em colégios e universidades de língua alemã, que desfrutavam de mais prestígio, Kafka aprendeu o alemão e escreveu sua obra nesse idioma.
Sua origem multicultural oferece interfaces para a aproximação entre sua
obra e outras obras e tradições literárias que confluem em seus textos: eslavos como Dostoiévski, alemães como os autores expressionistas e textos
judeus, todos encontram eco na produção de Kafka e podem ser objeto de
comparações com obras suas.
2. Kafka nasceu em 1883, estudou em escolas e universidades de língua alemã. Formou-se em Direito e trabalhou em uma companhia de seguros de
184
Gabarito
acidentes de trabalho. Escreveu algumas de suas principais obras entre 1912
e 1918. No início da I Guerra Mundial, da qual foi dispensado por ser um
funcionário muito importante em sua repartição, mudou-se para a casa de
sua irmã. Selou e rompeu diversas vezes o noivado com a berlinense Felice
Bauer, com a qual jamais se casou. Adoeceu de tuberculose em 1917 e veio a
falecer em 1924, pouco antes de completar 41 anos.
3. Mistura de aspectos fantásticos – a transformação do protagonista em inseto –
com uma gama de assuntos práticos de interesse geral, como adolescência,
conflitos familiares, sexualidade, problemas no mundo do trabalho; a relativa brevidade do texto e sua leitura fluida, com uma trama envolvente; a
relação de aspectos da vida de Franz Kafka, ela mesma bem conhecida e de
interesse geral do público leitor, com a vida da personagem Gregor Samsa.
4. O conto de fadas, assim como o texto de Kafka, apresenta tensões familiares
decorrentes de fatores econômicos, que inclusive fazem temer a destruição
de seus membros. Nas duas histórias, a relação entre irmão e irmã (com traços incestuosos) coloca-os afinal em uma situação de concorrência. Nos dois
casos, a irmã floresce, enquanto o irmão declina ao longo da história. No
conto de fadas, ocorre a separação clara entre espaços referencial e mágico.
A punição e morte da mãe malvada se dá no conto de forma alegórica, com
o assassinato da bruxa por Grete correspondendo ao desaparecimento da
mãe no espaço referencial. No texto de Kafka, essa separação não ocorre e o
elemento mágico ganha força, potencializando a metáfora da transformação
do protagonista.
5. O romance O Processo evidencia os traços autoritários da burocracia moderna, sob a qual o indivíduo não tem noção e domínio de coisas que lhe acontecem e determinam seu dia a dia e sua vida prática.
Textos literários em diálogo: intertextualidade
1. Intertextualidade é o fenômeno da presença de textos em outros textos,
pois qualquer texto sempre é perpassado por outros textos e todo texto sempre se constitui a partir do diálogo entre diversas vozes discursivas.
A noção desenvolveu-se a partir do fim da década de 1960, na França, com
o resgate dos estudos do pensador russo Mikhail Bakhtin por Julia Kristeva,
difundindo-se rapidamente nos Estudos Literários.
2. A noção de linguagem subjacente ao conceito de intertextualidade é entendida não como um dado individual, mas como resultado da interação humana: a
185
Literatura Comparada
linguagem não é um objeto ou sistema de que nos servimos, e sim, um acontecimento social que sempre se atualiza, revelando nossa condição social.
É um medium em que nos movemos e no qual existimos, sendo um meio,
um ambiente no qual vivemos em comunidade. Dessa maneira, cada palavra
que aprendemos e enunciamos não pertence apenas a nós mesmos, já que
é sempre partilhada com o outro, com pessoas que vivem diretamente ao
nosso lado e com pessoas que, distantes no tempo e no espaço, servem-se
da mesma linguagem, serviram-se dela ou ainda se servirão no futuro. Em
minha voz ressoa a voz do outro; e na voz do outro, a minha voz. Daí ser evidente que cada texto contenha referências a outros textos, alusões a eles.
3. Lavoura Arcaica é um romance, organizado em 30 capítulos sem títulos, de
numeração contínua, dividido em duas grandes partes, “A partida” e “O retorno”. A escrita do autor apresenta um registro de prosa poética constante.
A temática é impactante, recorrendo a situações extremas que constituem
problemas difíceis para a tradição moral e religiosa. André é o seu protagonista e o detentor da voz narrativa em primeira pessoa.
A primeira parte da obra é estruturada com base no diálogo que se dá entre
André e Pedro, seu irmão mais velho. Aqui os capítulos pares são interlúdios
poéticos que descrevem o universo individual de André a partir de sua sensibilidade e sua vivência mais pessoal. Os capítulos ímpares, por sua vez, mantêm a linearidade do encontro entre os irmãos, mas apresentam flashbacks
que reconstituem as vivências de André na fazenda com seu pai, sua mãe, recordações do avô, a natureza, os objetos da casa e particularmente o contato
com uma de suas quatro irmãs. Membro desajustado da família, o epilético
André havia saído de casa, para levar uma vida desregrada na cidade.
Nos nove capítulos finais, que constituem a segunda parte, a ação ocorre
após o retorno de André à fazenda. O filho pródigo torna à casa paterna, é
recebido com aparente amor e perdão, mas não há mudança de atitude por
parte do pai. André vem marcado pela experiência da cidade. Em segredo,
traz consigo uma caixa com a coleção de enfeites que havia recolhido com
prostitutas durante suas andanças. No fim, a tragédia se cumpre: durante a
festa pelo retorno de André (a “páscoa”, como diz o romance), Ana, a irmã
incestuosa, surge vestida com os adornos profanos trazidos por André. Ela
dança, enlouquecida, e o pai, informado por Pedro, compreende o ocorrido
entre Ana e André. Enfurecido, Iohána, o pai, mata sua filha, destrói sua própria lei de amor e não violência, frustra e dispersa a própria família.
186
Gabarito
4. A centralidade do conflito entre pai e filho, a situação multicultural e multirreligiosa da gênese das duas obras, a encenação de temas centrais da tradição
moral e existencial sob a dinâmica de relações familiares, as alusões à obra
de Kafka presentes no romance brasileiro, como a figuração do protagonista
André como inseto e sua situação de morte e imolação diante da torre da
igreja, com a imaginação de um gesto de esperança em uma janela da torre
que se vê entreaberta.
Textos literários em diálogo com a tradição
1. A literatura constitui-se como tecedura porque está estruturada por unidades menores que se combinam e entrelaçam. Além disso, os textos literários também estão interligados a outros textos, recorrem a “fios” já presentes
em outras obras. A literatura comparada estuda as obras literárias a partir
de uma perspectiva intercultural e relacional, preocupada com superar fronteiras que as separem, encontrando os fios comuns que se estendem entre
obras diversas, unindo-as.
2. A Bíblia cristã guarda boa parte da tradição do povo judeu no Velho Testamento, o qual em parte corresponde à Torá. Visto que o Islã surgiu no século
VII d.C., fundado por Maomé, quando o cristianismo já se havia estabelecido
como a principal religião em diversas regiões da Europa e do Oriente próximo, a Bíblia e a Torá foram matrizes para muitos relatos presentes no Corão.
Embora poucas pessoas tenham conhecimento sobre isso, o Islã também conhece as principais personagens da tradição judaico-cristã. Ou seja, a relação
que se estabelece entre os livros sagrados das religiões mundiais monoteístas é, fundamentalmente, uma relação de intertextualidade.
3. A narrativa tem como palco a cidade da Manaus, girando em torno da protagonista Emilie, católica de origem sírio-libanesa que é casada com um
muçulmano também sírio-libanês. Ela é mãe de três filhos e uma filha e seu
casamento misto entre uma mulher católica e um muçulmano é inesperado
para os estereótipos da cultura brasileira relacionados à Amazônia. A relação
entre Emilie e seu marido deixa claro o confronto entre culturas distintas e o
desafio do diálogo inter-religioso do cristianismo com o islamismo.
4. Em certa altura do romance, como as aves da ceia de Natal não foram abatidas
conforme o ritual muçulmano, o marido de Emilie se recusa de participar da
festa. Então, Emilie se refere a Muhammad (Maomé) de forma desrespeitosa,
187
Literatura Comparada
dizendo ser provavelmente uma das proibições do livro, mas que naquele dia
seria ela a dizer o que se podia ou não fazer, e não um analfabeto guerreiro
que se dizia Profeta Iluminado. Depois do ocorrido, o marido vai até o quarto
do casal e destrói todas as peças religiosas e santas de sua esposa.
5. Tendo engravidado ainda solteira, Samara Adélia passou a ser odiada pelos irmãos. Para defender a filha e reconciliar a família, em certa ocasião o
pai reúne seus três filhos e os faz lerem no Alcorão um versículo da Surata
das Mulheres, no intuito de despertar o perdão nos filhos homens. A reação
é contraditória, pois eles passam a odiar também o pai e, ainda depois da
morte do patriarca, continuam perturbando a irmã, reunindo alguns meninos para apedrejar a janela do quarto onde dormia a “pecadora”. Assim, a
associação entre essa passagem do romance e o episódio bíblico em que a
mulher pecadora é apedrejada torna-se bastante plausível.
João Guimarães Rosa e as artes visuais
1. Considerado um expoente inovador da literatura brasileira, João Guimarães
Rosa tinha, de modo especial, grande preocupação quanto aos registros linguísticos em suas obras, de maneira que transpassasse sua ideia inovadora
de fundir em sua literatura o presente, passado e futuro sob a perspectiva de
culturas que divergem entre si e apresentando, de modo peculiar, a linguagem do povo simples do sertão, para a cena literária mundial. Na verdade,
para Rosa, um dos aspectos imprescindíveis para o processo criativo estava
na essência da palavra. Não obstante, podemos afirmar a importância dos
vocábulos para Rosa somente pelo fato de ele ter criado listas de palavras e
expressões que, “cem por cento meu”, segundo as palavras dele mesmo, traduziam as peculiaridades e sentidos do mundo de um ponto de vista literário. No decorrer das diversas situações de sua vida, Guimarães Rosa buscava
encontrar novos dizeres, outras expressões que eram de extrema importância para suas obras. Colecionador de palavras: talvez esta seja a síntese da
essência de Guimarães. Palavras da cidade ou do sertão, do passado, presente ou futuro, inventadas ou ouvidas, foram o caminho para a compreensão
e recriação do mundo sob o ângulo da sensibilidade estética. A construção
de oito mil neologismos, segundo coloca Nilce Martins, é o suficiente para
chamá-lo de “criador das palavras”.
2. Guimarães Rosa se ocupou de modo especial de cada detalhe da realidade
cultural e geográfica do interior de Minas Gerais. Mas, qual a base do conhe188
Gabarito
cimento de Guimarães acerca de tantas informações minuciosas descritas
em Grande Sertão: Veredas? Primeiramente, é preciso considerar o fato de
que o próprio Rosa era um homem do interior mineiro e, consequentemente, conheceu de perto a realidade desse meio, seu povo, sua política e linguagem. Todavia, embora exista esta íntima relação entre Guimarães e o sertão,
vale ressaltar que grande parte de seu conhecimento teve origem em suas
abrangentes viagens pelo interior, que resultaram em anotações e estudos,
em cadernetas e pastas, tais como aquela que denominou Geografia: ar e
terra. Afinal, como ele poderia descrever tão fielmente em seu romance diversos lugares e acidentes, como a Chapada, a origem da Serra do Espinhaço,
conhecida no local como Serra Geral ou Serra de Minas? Tais apontamentos
são, na verdade, consequências das inúmeras leituras e pesquisas que Rosa
fazia. Nesse caso, trata-se de uma referência ao livro Geografia do Estado de
Minas, de Alvaro Astolpho, o qual apresenta os vários lugares descritos no
romance Grande Sertão: Veredas.
3. Palavras – tão simples e ao mesmo tempo tão complexas. Para muitos, conjunto de letras, significantes que produzem um significado; para outros, um
poema a cada fonema. Para o grande escritor do século XX, as palavras possuem um poder maior que a simples função de comunicar: elas nascem do
encontro das pessoas e se renovam conforme utilizadas. Embora pareçam
simples, elas oferecem “a criação de um mundo novo de possibilidades e diálogo”. Dessa perspectiva, para Rosa, o romance mais importante seria um
dicionário que, ao mesmo tempo em que reproduzisse todo um contexto
histórico e social de determinada época, “seria sua própria biografia”, refletindo as vozes de seu tempo por meio de sua voz subjetiva. As listas de palavras e expressões que Guimarães nos deixou já são suficientes para descobrir
suas leituras e suas criações, sendo estas sua verdadeira autobiografia.
4. “A maneira pela qual o artista utiliza a luz”: somente a reflexão sobre essa
citação responderia a questão. Diversas foram também as anotações que
Rosa fazia sobre a arte em seu Caderno de Estudos Para a Obra: pintura. Ao
longo do caderno, percebe-se o grande interesse de Rosa pela representação visual do corpo e também de sua força expressiva para outras realidades visuais, sobretudo paisagísticas, Rosa descobre a possibilidade de
representar o claro-escuro de modo a refletir a “verdade absoluta”, a realidade dos corpos e o espaço entre eles. Mas o que a arte visual – a pintura
em especial – tem de semelhante com as obras escritas? Tomando-se como
exemplo o episódio que o texto comenta, do bando de jagunços no escuro
e a cena do ciúme sentido por Diadorim, pode-se perceber nitidamente de
que maneira Guimarães Rosa fez uso dos tons claros e escuros:
189
Literatura Comparada
personagens imersos na escuridão e indistintos: o autor imerge os personagens na escuridão de forma a não distingui-los;
contorno superficial e um tênue foco de luz: depois, apenas Diadorim é
destacado, sob a óptica de Riobaldo, com a expressão “perto de mim”, o
que implica um contorno expressivo, embora ainda difuso, por ressoarem
um no outro em função da rima;
as figuras tomam forma: um jagunço quebra o silêncio e fala de Otacília.
Neste caso há outra perspectiva, pois o escuro persiste, mas as figuras recebem contorno. A lua ilumina a cena e os grilos dão contorno sonoro à
escuridão.
Esses exemplos mostram claramente o jogo de claros e escuros utilizados
por Guimarães Rosa. A arte mostra-se presente e nela o autor retrata a realidade dos corpos da cena, seus estados emocionais e a distância entre eles,
que assim são realidades visuais “palpáveis”.
5. “A epiderme de um quadro é essa parte da matéria que fica em contato direto com o ar e a luz do dia. Assim como todo objeto precioso, ela deve dar
vontade de se a acariciar”. Eis a tradução que Guimarães fez da definição de
epiderme de Prinet. Rosa teve grande interesse em representar o corpo de
modo que, assim como nessa citação, transpassasse a realidade e a beleza de
um corpo, bem como os desejos por ele provocados. Pensemos, então, nesta
cena do romance de Guimarães: “Otacília deitada, rezada, feito uma gatazinha branca, no cavo dos lençóis lavados e soltos.” Essa pequena citação
demonstra o valor dessa “epiderme” que, embora não esteja pintada, está escrita e palpável na imaginação dos leitores. A propósito, essa cena ressoa as
notas feitas por Rosa em seu caderno de pintura a partir da obra de Gustave
Courbet e ao qual Rosa acrescenta uma observação: “por entre envolvências
de lençóis desfeitos, que como espumaradas se insinuam”.
6. Obra-prima do autor, Grande Sertão: Veredas tem sido objeto de muitos estudos por parte de críticos em razão da linguagem utilizada, a qual possui
uma valorização expressiva. O interior do nosso país é fielmente reproduzido, repassando ao leitor uma imagem da realidade do sertão, do mundo e
do homem. A obra gira em torno de Riobaldo, o protagonista, e seu possível
pacto com demônio.
190
Filho natural de uma mulher simples com o fazendeiro Selorico Mendes, quando menino Riobaldo conhece Reinaldo Diadorim, o qual tornará a ver em um
Gabarito
bando de jagunços quando adulto. Os dois passam por muitas aventuras no
interior de Minas Gerais, ora fugindo de tropas do governo, ora combatendo
uma parte dissidente do bando.
Hermógenes comanda o assassinato de Joca Ramiro, pai de Diadorim, e em
razão desse fato Riobaldo acompanha Diadorim no propósito de vingar essa
morte – e assim Riobaldo se torna líder do bando.
No entanto, após cumprir sua vingança e matar Hermógenes, Diadorim morre em combate. Em meio a tais transtornos, Riobaldo descobre que o mesmo
era uma mulher disfarçada, criada como homem para seguir os passos de
jagunço do pai.
Por fim, Riobaldo sobrevive às batalhas, casa-se e torna-se fazendeiro.
João Guimarães Rosa foi um grande inovador, artista que se destacou no cenário das letras modernas. No entanto, a linguagem particular de Guimarães
Rosa não está no rebuscamento das palavras ou no uso de arcaísmos, mas sim
nos neologismos, na recriação e na invenção das palavras, tendo como ponto
de partida a fala dos sertanejos, suas expressões, suas particularidades.
7. João Guimarães Rosa nasceu em Cordisburgo, Minas Gerais, em 1908, e faleceu em 1967, no Rio de Janeiro. Embora na maior parte de sua vida estivesse
voltado para a carreira diplomática, sempre demonstrou profundo interesse
pela natureza, os bichos e as plantas, pelos sertanejos e pelo estudo de línguas. Médico de formação, diplomata, homem público, em sua obra ele retratou “os anseios, sonhos e incertezas de quem se sabe em meio ao processo de formação de um país gigantesco, cheio de desafios e dificuldades”. O
sertão, o Brasil do interior, começava a extinguir-se e dar lugar a uma nação
moderna. É muito importante lembrar que Rosa habitou, ele mesmo, o sertão. Como personagem desse cenário, nasceu e cresceu no interior de Minas
Gerais e manteve contato com a natureza e a gente do sertão. Em maio de
1952, quatro anos antes da publicação de Grande Sertão: Veredas, ele empreendeu uma viagem de dez dias a cavalo com um grupo de boiadeiros que
conduzia 600 reses por um percurso de 240 quilômetros.
No entanto, apesar de conhecer bem a realidade do interior, social, política,
cultural e linguística, Rosa não devia nada à linguagem mais complexa e à
literatura moderna. Sobretudo, para ele o importante era a formação estética por meio da palavra, no intuito de que todos, assim como ele, “pudessem
entender o mundo com a força dos sentidos e a delicadeza da criação pelo
espírito”.
191
Literatura Comparada
Literatura e outras artes: a música
1. Filha de João Luiz Germano Bruhns (1821-1893), alemão que emigrou para o
Brasil a negócios, Julia da Silva Bruhns nasceu em 14 de agosto de 1851, no
litoral do Rio de Janeiro e cresceu na fazenda Boa Vista. Sua mãe, Maria Luiza
da Silva, faleceu durante um parto, quando Julia contava quase cinco anos.
Em razão disso, algum tempo depois, em 1858, Julia foi levada à cidade de
Lübeck, Alemanha. Em 1868, aos 18 anos de idade, ela se casou com Johann
Thomas Heinrich Mann. Além dos dois primeiros filhos, Luiz Heinrich e Thomas Mann, teve outros três, Viktor, Carla e Julia. As lembranças ficaram, mas
Julia não mais retornou ao Brasil. Em 1903, escreveu suas memórias de infância, que serviram de material para a produção do romance Entre as Raças, de
Heinrich Mann.
2. Além de palavras em português, Julia também ensinava canções do Brasil,
como “Molequinho de meu pai”, cuja melodia foi registrada em partitura em
seu livro Lembranças da Infância de Dodô (1903). De forma especial, essa canção e a música em geral revelam a presença da origem cultural brasileira da
mãe na obra de seus filhos.
3. Julia possuía muitos talentos. Seu “desempenho no piano”, seu “canto refinado”, relatados por Thomas Mann, evidenciam tal afirmação. Em consequência da vocação da mãe, já quando criança Thomas Mann apreciava ouvi-la
ao piano e acompanhá-la durante horas em seus ensaios. Em razão dessa
influência, Thomas Mann adquiriu grande conhecimento em relação à canção erudita alemã e também amor pela música.
4. Nessa obra, Heinrich Mann faz uma apropriação e recriação de diversos aspectos das memórias de sua mãe na construção da protagonista Lola Gabriel. Há no romance um episódio em que Lola é recriminada por sua rival
Jenny e suas aliadas por discordar do “bom gosto” da música cantada naquele momento, uma canção considerada “muito alemã” pelas meninas que
conviviam com a estrangeira Lola em um pensionato. Por esse motivo, Lola
é “apontada” como brasileira e depois como “internacional” em um sentido
pejorativo. Lola foi rejeitada por não se manifestar de acordo com o gosto
192
Gabarito
musical da época, o qual se colocava a serviço do fortalecimento do orgulho
e da identidade nacionais.
5. Grande foi a repercussão do talento de Heinrich e Thomas Mann. Os filhos
deste último (Klaus, Erika e Golo Mann) nunca deixaram de percorrer os mesmos caminhos já traçados por seus antecessores. Klaus Mann, em especial, é
conhecido no Brasil por seu romance Mephisto, que foi adaptado para o cinema por Istvan Szabo. Resgatando as origens da família Mann, Frido Mann,
neto de Thomas e bisneto de Julia, mantém íntimo contato com o Brasil. Autor de uma trilogia de romances, dedica-os a suas raízes brasileiras. E recentemente Frido publicou sua autobiografia, que também relata experiências
no Brasil.
6. Doutor Fausto, o grande romance de Thomas Mann, narra a vida do compositor Adrian Leverkühn, que no intuito de exercer seu talento musical faz
um pacto com o diabo. Em virtude do seu amor pela prostituta Esmeralda,
Adrian compõe Lamentação do Dr. Faustus, sua obra-prima, na qual repete-se como um tema musical a sequência de notas h e a e es (si, mi, lá, mi,
mi bemol), remetendo ao nome Hetaera esmeralda, que além de ser uma
alusão à amada do compositor, é o nome de uma borboleta que só existe na
América do Sul, em particular no Brasil. Essa alusão de Thomas Mann tem origem na sua leitura de um livro sobre borboletas que ganhou de presente de
Hermann Hesse. Eis a discreta (mas clara) referência à sua origem brasileira
no romance.
7. Gustav von Achenbach, o protagonista do livro A Morte em Veneza, era um
escritor em crise. Na adaptação para o cinema, o personagem já não é
um escritor, mas um músico, em uma modificação que revela a alusão feita
por Thomas Mann ao grande compositor e maestro vienense, Gustav Mahler: a concepção básica da novela surgiu em meio a uma viagem de Thomas
Mann à Itália, durante a qual recebeu a notícia do falecimento de Mahler. Eis
a razão para a escolha do prenome do protagonista em sua obra, detalhe
que foi percebido por Visconti e aproveitado para a adaptação da obra literária para o cinema.
193
Literatura Comparada
Literatura e História: artes do tempo
1. A Montanha Mágica (1924), de Thomas Mann, conta a história de Hans
Castorp, protagonista que, ao visitar seu primo em um sanatório nas montanhas suíças, acaba por permanecer nela por sete anos em decorrência de
sua saúde e também por apaixonar-se por Clawdia Chauchat. Não obstante,
há também a representação de aspectos pertinentes à sociedade europeia
de antes da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). É possível perceber no
romance a reconstrução de elementos que marcaram o período anterior à
guerra: a decadência das monarquias europeias, a consolidação da ciência e
da sociedade industrial modernas, o fortalecimento das ideias democráticas,
a ameaça da sobrevivência de ideias autoritárias, a marcante presença de
culturas não europeias no cenário internacional, bem como as novas possibilidades artísticas e culturais.
2. Comandadas pelo religioso Antonio Conselheiro, milhares de pessoas pobres vagaram pelo sertão nordestino e depois se fixaram no arraial de Canudos, no qual deram origem a uma cidade regida pela liderança religiosa do
Conselheiro. Construíram uma grande igreja e mais tarde 5 200 casas de pau
a pique, abrigo de aproximadamente 25 000 pessoas. O movimento possuía
sua própria convicção religiosa e não reconhecia a República recém-proclamada. Em vista disso, no Rio de Janeiro surgiram comentários referentes a
uma possível revolta contra a República instigada por interesses da Inglaterra e de monarquistas brasileiros. Embora o arraial tenha resistido às primeiras expedições militares, foi irremediável sua total derrota, que ocasionou a
morte de quase toda a população “rebelde”.
3. A obra encontra-se divida em três partes, “A terra”, “O homem” e “A luta”.
A primeira, que aborda aspectos geográficos e paisagísticos, trata do sertão
baiano, onde se dá o conflito.
O objeto da segunda parte é o povo do sertão, que Euclides da Cunha procura caracterizar com os instrumentos teóricos vigentes na época, inclusive
teorias raciais hoje em total descrédito.
194
Gabarito
Por fim, a terceira parte relata a luta entre o Exército Brasileiro e a gente de
Canudos.
4. Segundo Bolle, Os Sertões “é condicionado pela etnografia dos vencedores,
característica da época do imperialismo clássico”. Por outro lado, em Grande
Sertão: Veredas há uma “dissolução dos impérios coloniais e de uma etnografia
relativista”. Bolle defende que “o povo sertanejo por parte de Rosa é [...] uma
antítese às idealizações”, e que o escritor mineiro, incorporando “a voz do
povo”, supera a visão limitada, intelectualizada, parcial e distorcida de Euclides da Cunha e seu cientificismo.
5. A abordagem de movimentos religiosos sertanejos permite ilustrar a linguagem própria no romance de Rosa sem idealizações nem parcialidade. A
religião é ambivalente, pois, ao mesmo tempo em que representa a força e
a esperança do povo, também é causa de enganos e passividade, fonte de
miséria e desespero. O próprio Riobaldo possui essa ambivalência: primeiro,
o “fazendão de Deus” é idealizado de maneira ingênua; depois, ele é repudiado sob a visão da miséria e da realidade dura do sofrimento. A fé do povo
denuncia miséria e doença, e por outro lado, vitalidade e esperança.
6. O autor combina situações inventadas, mas que aludem a fatos reais.
Galileo Gall é um personagem fictício, mas o Barão de Canabrava, também
personagem do romance, era de fato o proprietário das terras em Canudos.
Se não houve o diálogo (relatado no romance) entre Gall e o diretor do Jornal de Notícias, fato é que o jornal existia e a nota do governo mencionada
no romance foi publicada nesse periódico, e o Diário da Bahia era um jornal
concorrente.
Em sua obra, Vargas Llosa reflete a restrição de liberdade de imprensa e, por
outro lado, campanhas interessadas em criar uma imagem negativa dos rebeldes para justificar as ações repressivas e violentas das forças oficiais.
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