Comboio da Memória

Transcrição

Comboio da Memória
Comboio da Memória Sérgio Eliseu
ID+, Faculdade de Belas Artes, Portugal
Paulo Bernardino Bastos
iD+, Universidade de Aveiro, Portugal
Abstract
This article explores the potential of the Augmented
Reality technology when used as a medium for artistic
practices, mainly in its Urban Guerrilla Art aspects.
The art transforms itself in a place of encounter by
enhancing a public space outside of the institutional
circle of the artistic system, creating a social
engagement with the daily lives of its inhabitants.
“Memory Train”, a mobile AR project, is provided as a
case study. Built on the Layar platform, this work was
developed as a protest against the shutdown and
destruction of a centenary Portuguese railway line,
involving an unauthorized (but legal) invasion of the
former train route with pictures, sounds and messages
captured and recorded by many users in several
locations.
In “Memory Train” the public can choose to be a
spectator, a participant or even to act as creator, from
which arise multiple nonlinear narratives through
several cultural walking actions.
Besides exploring the concept of space beyond the
physical location and relative place-memory artistic
issues, this work also intends to include other related
data to each setting, providing it with a new sociopolitical narrative.
Acting as a resource over which further actions can be
built, “Memory Train” expects to stand as a platform for
rethinking the fundamental issues of belonging and
participation, having as a starting point a local matter.
Keywords:
Augmented reality, guerrilla art, memory, local, memory
Introdução
As pessoas sentiram sempre uma necessidade de
partilha e de se expressar publicamente. Algumas
vezes, contando histórias ou fazendo perguntas,
muitas vezes, objetivando defender uma ideologia
política (Smith 2007:11). Entre outros factores e,
provavelmente, muito também devido a essa condição,
diversos artistas têm vindo a utilizar determinados
espaços públicos para instalar/executar o seu trabalho.
Como consequência, não apenas se foram diluindo as
fonteiras entre o que se considera, a cada momento,
público e/ou privado, como também se foram
inscrevendo
novas
formas
de
participação
democrática. Quando neste tipo de práticas se utiliza a
expressão politica como medium, ainda que inseridas
num vasto espectro de formas e artistas, encontramos
comumente associada a designação de "Arte de
Guerrilha". Contudo, uma grande maioria dos seus
criadores trabalha sob pseudónimo, encontrando-se
assim aberta a qualquer pessoa interessada a
recriação de um espaço que, com determinadas
estratégias (em múltiplos casos consideradas ilegais)
lhe pode trazer uma nova vida [1].
A emergência da tecnologia da Realidade Aumentada
(RA) [2] não só redefiniu a experiência do design e do
entretenimento, como também permitiu aos artistas
reformularem a suas práticas em média arte e as suas
intervenções urbanas ao utilizar dispositivos portáteis
com capacidade de geolocalização que agora
transformam o espaço físico numa tela (Paterson et al.
de 2013: 125). Ou seja, é possível introduzir técnicas
de RA na execução de projectos de "Arte de
Guerrilha", processo ao qual poderá estar inerente a
vantagem de se interferir livremente com o ambiente
real sem o alterar fisicamente. Portanto, alguns dos
“artistas de guerrilha” deixaram de ter razões legais
para temer a polícia com suas novas invasões. Tal
como se demonstrou no emblemático caso da
intervenção "ArOCCUPY May Day”, iniciada no distrito
financeiro de Nova Iorque [3].
Assim, tendo como pano de fundo uma investigação
em torno do discurso artístico que emerge pela
utilização de técnicas RA e uma questão local que
afeta milhares de portugueses, foi desenvolvido o
projeto “Comboio da Memória”, que objetiva, não
apenas, promover uma reflexão em torno da forma
como o público se relaciona com determinados
espaços, bem como, através de uma atitude de
guerrilha em RA, invadir um espaço específico, o
centenário Ramal da Lousã.
Os conteúdos utilizados, partilhados pelas populações
locais, refletem reivindicações atuais e um quotidiano
passado (através de fotos, vídeos, sons, mensagens,
etc), tendo sido reconfigurados em material artístico
expressivo, sensível às questões de lugar, tempo,
comunicação e identidade. Porém, não se trata de um
projeto fechado, pois estes conteúdos vão-se
redefinindo e reposicionando através do resultado de
um conjunto de passeios culturais, onde para além de
explanações técnicas, se planificam os conteúdos das
invasões seguintes.
As atuais manifestações artísticas em RA introduzem
novas valências a um desejo de imersão do público na
obra de arte que, tal como observou Oliver Grau
(2003) não é novo e se desenvolveu ao longo do séc.
XX acompanhado por uma forte carga genética
conceptual. Por esse motivo, ainda que a “quarta
parede” da experiência passiva seja ultrapassada pela
interatividade, certo é que muitos dos casos ainda
utilizam o espaço expositivo tradicional, seja por
associação ou subversão, como forma de validação
(Garbe, 2013:30). Esta situação, na sua vertente de
subversão, encontra-se bem exemplificada pelo que
ocorreu em outubro de 2010, com “Uninvited Diy
exhibition” no MoMa [4], numa exposição incluída no
programa do “ConfluxFestival”, organizada pelos
artistas Sander Veenhof e Mark Skwarek, onde se
procedeu à apropriação do espaço do famoso Museu
de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMa) com
instalações artísticas virtuais não autorizadas pelos
responsáveis do museu. Tratou-se de uma iniciativa
de guerrilha, apenas possível porque a exposição só
era visível através da plataforma Layar, acessível
através de smartphones e/ou tablets, escapando por
essa via ao controlo da organização do MoMa. Um
projeto paradigmático que, segundo os autores,
permitiu uma reflexão sobre a questão da rápida
expansão da utilização da tecnologia de RA, bem
como sobre o seu impacto no espaço público e
privado.
categorizadas e escapando mesmo ao que Rosalind
Krauss (1979) classificou como “campo expandido” [5],
a
RA
apresenta-se
associada
a
qualquer
realidade/manifestação artística já reconhecida ou de
forma independente, parecendo predominar uma
espécie de folksnomia [6] que, tal como na web 2.0,
devido à quantidade de informação, apenas vai
permitindo uma categorização efetuada pelos próprios
produtores e utilizadores de conteúdos.
É possível, contudo, obervar internomias [7] nos
múltiplos projetos artísticos RA, com as quais se
estabelecem potenciais abordagens aos 5 sentidos e
consequente maior ou menor capacidade de imersão,
sendo estas inteiramente mediadas pela presença de
um dispositivo tecnológico que pode funcionar como
uma espécie de prótese digital ao permitir aceder à
obra.
As internomias visuais são, de momento, as mais
comuns. Efetivamente, a maior parte dos projetos em
RA, seja com sistemas móveis ou fixos, onde se
enquadram todos os trabalhos aqui referidos, são
dirigidos ao nosso olhar e suportam-se pela ilusão
desse mesmo sentido. Contudo, ainda que em menor
número, também encontramos trabalhos interessantes
que acrescentam, por exemplo, internomias auditivas,
como é o caso dos projetos “SoundARt” [8] e “Aporee miniatures for mobiles” [9]. Ou seja, a informação
acrescentada ao mundo real é sonora, dependendo,
(por visão computacional), ou não (através, por
exemplo, de sensores de presença ou GPS) da
informação visual existente no mundo real.
Figura 1 – “Uninvited Diy exhibition at MoMa NYC”, Instalação,
(Sander Veenhof e Mark Skwarek) 2010.
Figura 2 – “SoundArt”, Instalação, ZKM, (Julia Gerlach, Bernd
Lintermann, Peter Weibel) 2012.
Apesar da presença de projetos artísticos RA em
palcos prestigiados, é difícil ignorar a sua exponencial
multiplicidade em manifestações quase anónimas. De
facto, quase todos os dias surgem inúmeros projetos e
estes não se apresentam numa lógica arborescente,
mas antes em devires rizomáticos, o que dificulta uma
análise taxonómica assente em modelos tradicionais.
Ou seja, ao contrário das técnicas artísticas já
No caso do projeto “SoundARt”, abordaram-se sete
áreas temáticas (música concreta, radioarte, radioarte
movel, intermedia, eletrónica e ruído) e recorreu-se a
uma faixa preta instalada no chão que ligava os dois
átrios do Centro de Arte e Media, em Karlsruhe, ao
longo da qual existiam marcadores de referência
semelhantes a códigos QR [10], dos quais dependia
toda a informação sonora. Ou seja, inteiramente
Realidade Aumentada:
discurso da arte
concretizações
no
mediados por uma aplicação instalada, cada código
evocava nos tablets disponibilizados um dos temas da
instalação e a respetiva informação: imagens, gráficos
de oscilação 3d e sons. O projeto “Aporee - miniatures
for mobiles” (2011), por sua vez, enquadra-se num
conjunto de projetos RA que dispensam informação
visual para apresentar os conteúdos sonoros, valendose apenas da antena GPS existente na maioria dos
smartphones. Neste caso, trata-se de uma aplicação
que permite uma ligação com a plataforma “Aporee”
que contém um crescente arquivo global de gravações
geo-localizadas, quer isoladamente como através da
seleção de rotas sonoras disponíveis. Ou seja,
podemos encontrar uma enorme complexidade de
ambientes sonoros, bem como as diversas perspetivas
artísticas dos seus muitos colaboradores em torno do
som, espaço e lugares, onde a poesia, ensaio, ficção,
documentação ou narração entra na paisagem e
permite transformar as rotas diárias numa espécie de
experiência de rádio.
Em menor número, as internomias tácteis presentes
em projetos artísticos com RA, encontram-se
frequentemente conjugadas com internomias visuais e
raramente isoladas. A relação mais comum é a
possibilidade de interação com objetos reais que
correspondem a marcadores de referência para a
informação aumentada, como é o caso do projeto
“Cinecubos” [11], sendo mais rara a estratégia
presente em “Into the Frame” [12], onde as alterações
se verificam no sentido contrário, ou seja, partem dos
elementos virtuais para o mundo real.
Figura 4 – “Into the Frame”, Instalação, Shoreditch Red Gallery
(Florian Dussopt, Nick Phillips, Dave Hunt, Paul West) 2014.
No projeto “Into the Frame”, por outro lado, o público é
convidado a sentir, através de um sistema háptico e
sonoro, a informação digital. Nesta instalação o
utilizador pode mover a sua mão, segurando um
dispositivo robótico que simula a sensação de toque
nas diversas texturas (mar, céu, rocha, etc.) e
respetivas profundidades presentes num quadro que
se encontra à sua frente. Ao mesmo tempo, é possível
“ouvir a imagem”, uma vez que se encontra atribuído
um determinado som a cada zona. Apesar de ser um campo fértil, muito raramente se
verificam internomias olfativas e gustativas, pois este
tipo de abordagens, frequentemente interligadas,
dependem de um conjunto de equipamentos que, na
sua maioria, ainda não passaram da fase de protótipo.
Figura 3 – “Cinecubos”, Instalação, FBAUP, (Sérgio Eliseu, Pedro
Cardoso) 2011.
No caso de Cinecubos, por exemplo, temos um
artefacto em forma de puzzle (com 12 cubos) onde os
participantes são convidados a configurar blocos no
espaço. Cada face contém um padrão visual distinto
que é interpretado pela máquina, através de sistemas
de visão computacional, rastreando e associando-os a
diferentes fragmentos de imagens em movimento que
lhes são sobrepostas [13]. Ou seja, as alterações
fisicas na obra provocam alterações na informação
digital.
Figura 5 – “Meta Cookie”, Protótipo, universidade de Tóquio (Takuji
Narumi) 2010.
Um exemplo clarificador é o projeto “Meta Cookie”
[14], onde um demasiado complexo sistema
computadorizado composto por uma webcam,
tubagens com odores e biscoitos inscritos com
marcadores de RA, permite ao utilizador escolher o
sabor (induzido pelo cheiro) do biscoito que que
deseja comer. Ou seja, a cada marcador de RA
corresponde um cheiro e o sabor dos biscoitos
depende do marcador que lhe for inserido.
Contudo, esta palavra pode possuir um sentido muito
mais aprofundado, carregando com ela um forte
significado histórico-sociológico. Isto porque, quando o
homem não se interessa mais pela problematização
do ambiente, ou seja, pelas questões que dizem
respeito a todos, perde a capacidade de perspetiva
como parte de um todo (Benjamin 1983: 213-240).
Comboio da Memória
Figura 6 – “GhostFood”, Instalação, Galleria Aferro - NY e
SteamWorkPhilly - Philadelphia. (Miriam Songster) 2014.
No entanto, com estratégias semelhantes mas mais
simples, encontramos no trabalho “GhostFood” [15]
um
projeto
artístico
com
recurso
a
RA
olfativa/gustativa, onde se explora a ideia de
alimentação num possível futuro. Trata-se de uma
instalação composta por uma roulote de “fastfood”
onde são servidos alimentos fac-simulados. Para tal, a
artista Miriam Songster desenvolveu um pequeno
dispositivo, inspirado na morfologia dos insetos, que
insere um estímulo olfativo e através do qual o
utilizador pode sentir uma experiência gustativa dos
alimentos atualmente ameaçados de extinção pelas
mudanças climáticas.
Uma componente transversal aos diferentes tipos de
projetos artísticos em RA considerados neste ponto é
o facto de se tratarem de processos de produção de
sentido partilhável, não se confinando a simulacros,
por serem experiências de vida não assentes em
meras estratégias de representação. As obras
referenciadas procuraram construir conceitos, novas
possibilidades de pensamento e de existência.
Conceitos não da essência ou da coisa, mas dos
acontecimentos. E é a arte e não os media que podem
captar o acontecimento, dar-lhe uma evidência
sensível, o poder do percepto e do afeto (Deleuze,
1969:151).
Projetos que evitam narrativas efémeras e solitárias,
baseadas antes na memória de um povo ou de um
lugar e não apenas num protagonista. Portanto,
narrativas coletivas são aqui o fenómeno a ser
estudado, bem como a sua capacidade de
compartilhar experiências/conhecimento. É certo que a
palavra ‘narrativa’ deriva do verbo ‘narrar’, cuja
etimologia provém do latim “narrare” e remete para o
ato de contar, relatar, expor um fato, uma história [16].
O universo do conceito base do nosso objeto de
estudo para o projeto “Comboio da Memória” está
associado à história do Ramal da Lousã, um troço
ferroviário cuja construção foi oficialmente anunciada
em 1873, sob decreto régio de Luís I (1861-1889).
Após 15 anos de interregno, a 16 de dezembro de
1906, o ramal foi finalmente concluído, ligando o
Concelho da Lousã a Coimbra durante mais de um
século [17]. Contudo, este caminho de ferro histórico
foi encerrado em 4 de Janeiro de 2010, com o
propósito de ser atualizado para um sistema de melhor
qualidade (metro de superfície) - "Metro Mondego".
Ainda que aparentemente apropriado, a prossecução
deste projeto deparou-se com algo que muito poucos
poderiam considerar como um pequeno obstáculo,
uma vez que a empreitada foi iniciada sem que
estivessem assegurados os fundos necessários à sua
conclusão. Como consequência, quatro anos mais
tarde, 16,5 milhões de passageiros permanecem sem
qualquer serviço ferroviário e, à luz da enorme crise
económica que Portugal atravessa, é muito provável
que assim permaneçam [18].
Figura 7 – Estado do ramal da Lousã (2014).
Atualmente, todas as populações afetadas utilizam os
seus próprios veículos ou viajam em autocarros com
menores condições de conforto para percorrer o
mesmo percurso, perdendo muito mais tempo,
sujeitando-se a maiores riscos de segurança
associados aos transportes rodoviários, num cenário
de agravamento das condições ambientais, como
consequência do aumento de emissões de CO2.
Portanto, pretendendo trazer esta questão à ordem do
dia e como forma de assinalar o quarto aniversário do
encerramento total deste ramal, o projeto “Comboio da
Memória” invadiu o antigo percurso desta ferrovia,
reunindo o apoio e colaboração de diversos cidadãos
locais, que partilharam conteúdos associados à
utilização deste serviço, tais como fotografias, sons,
vídeos e mensagens. Estes materiais foram, então,
manualmente trabalhados e georreferenciados, com
recurso a um navegador RA para smartphones/tablets
- Layar [19].
Contudo, de modo a maximizar o impacto e
experiência decorrentes da convergência entre o
espaço geográfico e dados digitais, a aplicação deverá
ser lançada no percurso da antiga linha férrea. Sendo
esta uma das razões pelas quais o projeto é ainda
composto por um conjunto de passeios culturais,
divulgadas através das redes sociais (num grupo
especificamente criado para esse efeito, que conta
com a participação de mais de duas centenas de
membros/colaboradores) onde é explicada a natureza
do projeto, as especificidades técnicas e são tomadas
decisões acerca das modificações a implementar nas
invasões seguintes. O resultado tem sido uma
interessante adesão dos populares, que se repercutiu
a nível dos órgãos de comunicação locais através de
entrevistas, bem como de explicações acerca do
projeto.
É ainda possível acompanhar este projeto e iniciativas
associadas num website que inclui todos os conteúdos
disponíveis, um mapa que detalha todos os pontos de
interesse, assim como o resultado dos passeios
culturais [20].
Figura 8 – “Comboio da memória”, Instalação em RA, antigo Ramal
da Lousã. (Sérgio Eliseu) 2014.
Hiper-narrativas
Existe uma forte convergência entre técnicas e
estratégias na construção de um sempre renovado tipo
de media que vai emergindo e substituindo as
estruturas convencionais dos diversos media
precedentes (cinema, televisão, jogos, etc.). Trata-se
de uma mudança que vem ocorrendo desde a década
de 60 do século XX que levanta novas questões e
acolhe diferentes opiniões em torno do papel do
público na participação ativa na construção de
narrativas digitais (Eliseu e Cardoso, 2013). Contudo,
se nos centrarmos em questões já levantadas por
Manovich, de que forma toda esta computadorização
afeta o próprio conceito de imagem em movimento?
Oferece novas possibilidades para outras linguagens
fílmicas? (Manovich, 2002:64) Na nossa perspetiva
concordamos com a perspectiva de que as novas
tecnologias encontram-se efetivamente a produzir
profundas alterações ontológicas nas estruturas
tradicionais do cinema (Kluszczynski, 2007:208). As
estruturas
lineares
clássicas
transformam-se
gradualmente em estruturas interativas, permitindo o
redefinir da própria identidade do cinema conforme o
conhecemos, colocando o utilizador ativo dentro do
espaço da imagem e convertendo o local da
contemplação em espaço de imersão (Bernardino,
2012:1259). Com efeito, o caráter multimédia dos
nossos tempos abre uma nova dimensão na
colaboração criativa. Sendo que, todos os dias se
acelera um processo que reflete a diversidade de
práticas
artísticas
e
conhecimentos
técnicos
envolvidos (programação, hardware, jogos, música,
cinema, etc.) e vamos assistindo a um fenómeno de
convergência não só no que respeita aos meios, como
observa Susanne Jaschko (2010:210), mas também
no que se refere ao género e às práticas artísticas,
além dos espaços em que se realiza a arte interativa.
Por consequência, como atenta Lévy (2000:164-165),
organizando a participação em acontecimentos mais
do que espetáculos, as artes da cibercultura
reencontram a grande tradição do jogo e do ritual.
Tanto no jogo como no ritual, não é o autor nem o
registo que são importantes, mas sim o ato coletivo
aqui e agora. Ou seja, como afirma Grau (2003:17),
em vez de o copiar, a transformação do real é o
domínio central e a essência da arte é a criação de
realidades individuais e coletivas.
Interessa-nos, portanto, com o projeto “Comboio da
Memória” promover uma reflexão em torno do
potencial deste tipo de narrativas digitais, onde
acreditamos emergir da convergência de técnicas e
estratégias um renovado tipo de media que vai muito
além das estruturas convencionais precedentes e
permite explorar a função da memória, como diria Aby
Warburg (1866-1929) “a bewegtes Leben”, ou seja,
enquanto "vida em movimento", cujos traços
significantes estão inscritos na memória do espaço
apropriado. Não existindo, à partida, uma narrativa da
memória, mas (uma) hiper-narrativa de memórias
interligadas que, graças dispositivos móveis e serviços
multimédia gratuitos, abre quiçá, também num
renovado cinema contemporâneo espaço para um
realismo alternativo na forma de estruturação da
matéria narrativa cinematográfica. Desta feita, numa
atitude de guerrilha, promovendo uma experiência
coletiva em tempo real de múltiplas narrativas de
modo participativo e não-linear, onde o público pode
escolher posicionar-se como espetador, agir como
participante ou intervir como criador e até
manifestante.
Conclusão
Naturalmente ansiosos por tirar partido do potencial da
tecnologia da RA e em paralelo com um
aprofundamento do seu conhecimento técnico ou
estreitamento do seu relacionamento com engenheiros
e programadores, um número considerável de artistas
começou a aplicar esta tecnologia. Esta situação
permitiu que no início deste século observássemos
uma exponencial produção de projectos artísticos e
inclusivamente o surgimento de expressões como
“Augmented Reality Artists” que tornam ainda mais
complexa a sua análise.
Por outro lado, a aplicação de técnicas de RA na
produção de Arte de Guerrilha abre portas a uma
vantajosa capacidade de interferência no mundo real
sem o alterar fisicamente. Como tal, as novas
invasões de guerrilha em qualquer tipo de espaço são
completamente legais. Neste tipo de invasões artísticas, acreditamos que a
arte se transforma num ponto de encontro por via da
potenciação dos espaços públicos exteriores ao
círculo institucional do sistema artístico, em estreita
relação com o quotidiano e idiossincrasias dos seus
habitantes.
Desse modo, o projeto “Comboio da Memória”
constitui-se igualmente como uma base de construção
para futuras intervenções, esperando ainda servir
como plataforma de pensamento em torno de
questões fundamentais de pertença e participação,
encontrando o seu ponto de partida numa
problemática de interesse local. Neste caso específico,
com uma forte carga simbólica que estabelece uma
relação entre a comunidade e o significado da ferrovia
nas suas vidas.
Este projeto é uma experiência que não corresponde
apenas a um presente alterado, abrangendo o
passado,
pela
apropriação
de
memórias
multidimensionais, assim como o futuro, através do
estabelecimento de relações entre “outro” e “outros”,
construído com base numa comparação entre o
espaço físico e virtual e a experiência pessoal. Como
consequência, tal implica que o proposto possa
apenas ser conseguido através da aceitação dos seus
sujeitos. Por agora, o resultado é um envolvimento
comunitário muito interessante.
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Imagens
Figura1http://static511.layar.com.s3.amazonaws.com/old/2010/10/m
oma_augmented_reality1.jpg
Figura 2- http://soundart.zkm.de/
Figura 3- Sérgio Eliseu
Figura 4- http://www.digitalartsonline.co.uk/news/interactivedesign/interactive-painting-lets-visitors-hear-feel-art/
Figura 5- http://www.cyber.t.utokyo.ac.jp/~narumi/metacookie.html
Figura 6- http://www.miriamsimun.com/category/selectedwork/
Figura 7- Sérgio Eliseu
Figura 8- Sérgio Eliseu
1] Provavelmente, no início deste tipo de arte, os casos mais
famosos foram as ações do grupo "Guerrilla Girls". Hoje em
dia, temos muitos outras intervenções famosas como, por
exemplo, de "Banksy".
[2] Segundo Milgram (1994) a realidade aumentada é
definida como a sobreposição de objectos virtuais
tridimensionais, gerados por computador, com um ambiente
real. Porém, como podemos verificar mais à frente no artigo,
o conceito é muito mais abrangente.
[3] http://aroccupymayday.blogspot.pt/ (acedido em 12-102013). Há muitos outros trabalhos de natureza semelhante,
como, por exemplo, "Namaland" de Connor McGarrigle
(http://www.walkspace.org/namaland/ (acedido em 03-012014) .
[4] Museu de Arte Moderna de Nova Iorque.
[5] Krauss referia-se à relação que a escultura estabelece
com a paisagem e com a arquitectura, tendo como
referência muitos dos trabalhos dos movimentos Minimalista
e da Land Art, mas também das instalações e dos
Happenings, onde se estabelecia um diálogo entre o sujeito,
o objecto, o espaço real e o tempo.
[6] A folksonomia é uma analogia à taxonomia, mas inclui o
prefixo folks, palavra da língua inglesa que significa pessoas.
Na folksonomia, quem classifica o conteúdo são as próprias
pessoas interessadas no mesmo.
[7] Conceito introduzido que permite analisar e estabelecer
relações entre métodos convergentes de múltiplos projectos
em realidade aumentada.
[8] http://soundart.zkm.de/soundart-2012-7-horstationen-inaugmented-reality/ (acedido em 15-01-2014).
[9] http://aporee.org/(acedido em 16-01-2014).
[10] Tratam-se de marcadores fiduciais. Imagens com
padrões visuais que o software reconhece e processa
calculando coordenadadas que permitem manter uma
correlação entre a sua posição e a informação virtual que se
sobrepõe enquanto o marcador estiver disponível na
câmara.
[11] Projecto no âmbito do plano curricular de doutoramento
em Arte e Design na Faculdade de Belas Artes da
Universidade do Porto. Foi apresentado publicamente, em
2011, numa mostra colectiva de trabalhos dos alunos de
doutoramento no Museu da referida entidade, que teve como
tema principal a obra de Ernesto de Sousa (1921-1988).
[12] http://www.mdx.ac.uk/aboutus/news-events/news/Intothe-Frame.aspx (acedido em 05-02-2014).
[13] Estas imagens em movimento provêm de películas de
filmes de Ernesto de Sousa e de feeds de vídeo captado em
tempo real. A sua disposição objetivou metaforizar a
estratégia anti-filme ao remeter para uma experiência em
tempo real de múltiplas narrativas de uma forma participativa
e não-linear, onde o público podia escolher posicionar-se
como espectador, agir como participante ou intervir como
criador, visualizando-se, em tempo real na peça que
explorava. Das múltiplas configurações possíveis (A12,6 =
665280), apenas 6 correspondem a “soluções do puzzle”.
Isto, claro, se ignorarmos outras disposições formais que
também são possíveis (composições com sobreposição de
cubos, por exemplo) e acabaram por se verificar diversas
vezes durante a sua exposição. Assim, as possibilidades são
potencialmente infinitas.
[14]http://www.cyber.t.u-tokyo.ac.jp/~narumi/metacookie.html
(acedido em 05-02-2014).
[15] http://www.miriamsimun.com/ghostfood/ (acedido em 0502-2014).
[16] Ver http://www.priberam.pt/dlpo/narrativa (acedido em
05-02-2014).
[17] http://www.metromondego.pt/ (acedido em 03-01-2014).
[18]http://www.tcontas.pt/pt/actos/rel_auditoria/2011/2s/auditdgtc-rel026-2011-2s.pdf (acedido em 07-01-2014).
[19] O projecto utiliza a plataforma Layar, uma vez que esta
pode ser usado livremente numa vasta gama de
equipamentos.
https://www.layar.com/
(acedido
em
2013/01/11).
[20] www.comboio.eliseu.com