3.3 Deus e as Crenças Alheias
Transcrição
3.3 Deus e as Crenças Alheias
3.3 Deus e as Crenças Alheias O contacto com as culturas além-mar alimentaria, ao longo dos séculos XVI e XVII, um debate intensivo sobre a vida religiosa. Divulgando variadas vertentes e dimensões das temáticas anteriormente debatidas e inaugurando profícuas e novas discussões no seio da comunidade religiosa europeia, a descoberta de outros seres considerados supremos requeria um estudo detalhado e atento. Este novo e grande caudal de conhecimentos provocariam, com efeito, entusiasmo e confusão. Entusiasmo porque o corpo novo de informações vinha substituir as noções avulsas e deturpadas sobre o hieratismo religioso; perturbação porque a nova matéria não cabia dentro dos quadros da teologia tradicional. A procura do verdadeiro credo, do verdadeiro Deus via, com os novos povos, alargado o seu imensurável horizonte de reflexão. O conhecimento de outros povos e culturas implica necessariamente como já tivemos oportunidade de testemunhar - um reconhecimento e uma apreciação dos sentimentos, opiniões e práticas religiosas. A descrição e apresentação de um povo, de uma cultura significa assim compreender qual o seu comportamento religioso: será que conhecem um ente supremo como causa, fim ou lei universal? E, se nele crêm como o reconhecem e o caracterizam? Mas se não acatam a um deus, quais então os preceitos ou formas de adoração? E a que ídolos ou elementos da natureza? Quais as cerimónias rituais que praticam- se é que as têm? Conhecem o cargo de representantes religiosos encarregues de assegurar a presença e a continuidade do serviço religioso? E igrejas, também constroem? Ou será que existem locais sagrados similares? Relacionado com o espírito hierático surge o comportamento perante a morte e a natividade; como enterram os seus mortos, ou melhor, quais os sacramentos que conhecem e os ritos de graça que professam. Estas e muitas outras questões deveriam ajudar, assim se defendia, a enunciar e a descrever a cultura de um povo, bem como a discernir sobre o relacionamento dos Outros com o Criador de todas as coisas. 3.3.1 Um Desafio ao Cristianismo A vasta e larga proliferação de informações sobre outras culturas e as suas respectivas religiões teve, na verdade, o seu maior impacto ao longo do século XVI. Um caudal de dados recolhidos nos mais remotos e 202 EM DIÁLOGO COM AS NOVIDADES longínquos países chegariam diariamente à Europa através dos vivos relatos dos viajantes. Os depoimentos destes repórteres da novidade davam assim a conhecer que a comunidade seria muito maior do que se conhecia até então pelo que rapidamente surgem iniciativas para conhecer pormenorizadamente os povos recém-descobertos nas suas formas de viver e de ser. Apesar de assumidas diferenças na prática religiosa, os teólogos defendiam que os homens encontrados além-mar pertenciam à comunidade cristã, pois também eles seriam filhos de Deus. Assim, a surpresa de novos irmãos espalhados pelo globo e mais, o espanto de que Deus só agora os tenha dado a conhecer, entusiasmava, sobremaneira, os cristãos; a abertura do mundo era, na sua opinião, um verdadeiro milagre.1 As viagens marítimas permitiriam, pois, conhecer a obra divina na sua completa dimensão e não havia dúvidas de que o Criador decidira resolutamente deixar partes do mundo desconhecidas até à actualidade. Este facto, sem dúvida, de fabulosas ressonâncias era, para os letrados coevos, um motivo de grande regojizo. A seu ver, conhecer a obra divina, tal como ela agora se oferecia, surgia como um irregressível desafio a que dificilmente se puderia ficar indiferente. Conscientes de que não se trataria apenas de um reconhecimento de novas terras e novas gentes, buscam o confronto com as diferentes formas de viver e de crer, visto que muitos dos povos recém-descobertos apresentavam sintomáticas diferenças em relação ao cristianismo. Sem dúvida tal facto não seria uma novidade para os cristãos que, desde há muito, viviam em aberto confronto com os prosélitos de Maomé, mas o testemunho da existência de muitas outras formas religiosas ou de populações que nem sequer conheciam um ser supremo provocava naturalmente grandes disputas no meio cultural e religioso europeu. Assim, e considerando-se muito mais produtivo e útil conhecer este caudal de novas informações, que uma mera interna reflexão sobre o cristianismo,2 fomenta-se um estudo aturado e atento dos diferentes ritos e cerimónias dos povos ultramarinos. Mais defende-se o directo contacto com as outras vivências religiosas, os outros credos e ritos, no intento de assim saber distinguir, de facto, falsos de verdadeiros ritos, de saber definir falsos serviços religiosos ou de salvar a verdadeira 1. Jobst Ruchamer expressa a sua surpresa no prólogo da obra Newe unbekanthe landte (Nuremberga, 1508) ao exaltar que se tinham descoberto povos totalmente desconhecidos da cristandade. Ao rei português seria de mostrar grande respeito por esta empresa marítima. 2. Veja-se, por exemplo, o prólogo de Simon Grynaeus, Die New Welt, Estrasburgo, 1534. DEUS E AS CRENÇAS ALHEIAS 203 igreja dos malefícios do diabo. Esta a via que os conduziria a uma fortificação da verdadeira religião.3 A ambicionada tentativa de encontrar e formular o verdadeiro credo manifesta-se em duas atitudes: uns debruçam-se arrebatadamente na pesquisa das origens da religião cristã, outros na análise e ponderação sobre povos pagãos recém-descobertos. No discernimento em torno do hieratismo religioso destaca-se que a religião cristã teria as suas origens no credo pagão. Como se poderia então definir a verdadeira religião, sem em primeiro lugar ponderar sobre este intrincado e enleado passado? Aos olhos dos contemporâneos impunha-se uma profusa reflexão teológica sobre a história pagã, pois, sem este reconhecimento dos primeiros passos do credo cristão, dificilmente se poderia compreender e propagar a verdadeira religião.4 Se alguns teólogos se dedicam ao estudo da Sagrada Escritura, procurando encontrar nela os exemplos, as concepções de Deus, as leis do paganismo e da idolatria, outros iriam procurar, nas relações de viagens recentemente publicadas, os testemunhos nelas recolhidos sobre os gentios de além-mar, todos, sem dúvida, numa busca de argumentos e factos necessários para o debate sobre o paganismo e a religião cristã. Com efeito, este anseio teologal convoca à colheita de documentação. Isto é: reaviva-se o interesse por autores clássicos, grandes informadores dos primeiros tempos do cristianismo (ou mesmo de antes da implantação do credo cristão), ao mesmo tempo, que os escritos dos nautas se revelam valiosas compilações de material das gentes de além-mar. Neste sentido, a teologia cristã dever-se-ia confrontar até mesmo com o grande inimigo: Maomé. Embora Maomé fosse um adversário de Cristo não se poderia deixar de conhecer as suas ideias e pensamentos, pois também fora Deus que lhe dera essa inspiração. Assim argumenta Martinho Lutero quando defende a "utilidade" de estudar atentamente os escritos do grande inimigo do credo cristão. Tomando esta posição, e mesmo sabendo ser arrevesado, senão improvável, convertê-lo à palavra de Deus,5 Lutero, no intuito de conhecer convenientemente o pensamento doutrinal maometano, verte o Corão para o alemão. Conhecer a história da igreja constitui então para os cristãos, uma tarefa de prioridade, um dever imprescindível. Segundo Philip Melanchthon está 3. Este o fim expresso na obra de Johan Vives, Wahrhaftige Bestätitung des chrislichen Glaubens..., Basileia, 1571. 4. Veja-se, neste contexto, Philipp Melanchthon, Von der Kirchen/ vnd alten Kirchenlerern, (Verdeutscht durch Justus Jonam), Wittenberg, 1540. 5. Verlegung des Alkoran. Verdeutscht durch Martim Luther, Wittenberg, 1542, prólogo. 204 EM DIÁLOGO COM AS NOVIDADES fora de dúvida que qualquer homem racional reconhece a indelével utilidade da ciência histórica - na área de história religiosa - no esclarecimento dos primórdios e desenvolvimento do credo cristão.6 Redigir e esquissar a história da igreja cristã significa, portanto, para os autores coetâneos, narrar sobre os tempos pagãos, mormente, sobre o papel dos judeus na história do cristianismo. Daí que alguns autores sublinhem peremptoriamente três etapas no diálogo com o Omnipotente: a primeira em que os pagãos ainda não tem qualquer luz de Deus, apenas da natureza e de um ser supremo, depois os judeus que já teriam alguma luz, através da Sagrada Escritura e, por fim, a dos cristãos que, para além da luz da natureza e do Criador, conhecem a grande luz de Cristo".7 Defendendo tais doutrinas teológicas, os homens de letras germânicos recorrem ao Antigo Testamento em busca de exemplos claros e elucidativos da aurora da cristandade. Este livro sagrado, revelador da lei original, ensinar-lhes-ia as vias a trilhar na esteira de Cristo. Mostrando, lado a lado, fé e descrença, o Antigo Testamento daria a conhecer o Bem e o Mal. Enquanto, no evangelho de Moisés, Deus revelava aos homens os seus mandamentos, nos livros dos profetas plasmavam as manifestações de idolatria e actos pecaminosos. Uma leitura atenta e cuidada deste primeiro Livro conduziria, sem dúvida, à origem da revelação divina. E neste exercício de análise e reflexão, os cristãos seriam levados a questionar-se sobre o que os distinguia dos cristãos das primeiras horas, em que ainda buscavam Deus. A resposta encontrá-la-iam no Novo Testamento. Cristo feito homem viera ao mundo trazer a salvação; esta a Boa Nova que os Apóstolos levariam a todo o mundo. A definição de pagão, um importante aspecto no debate sobre o verdadeiro credo, não está, no entanto, apenas relacionada com o passado cristão. Com efeito, o conceito de paganismo inclue ainda todos os indíviduos que 6. "Es ist kein Zweiffel/ dz alle vernünftige Menschen selbs wol verstehen/ auch bekennen vnnd sagen müssen/ daß es hoch nötig sey/ Historien aller vnd jeder Zeit flüssig zu erforschen/ vnd eigentlich/ so viel müglich ist/ zu wissen/ Fürnemlich aber die Kirchen Historien/ vnd nachmals auch/ wie die höchste vnd gewaltige Weltreich im Menschlichen geschlecht ordentlich auff einander erfolget seyen" Newe Volkommene Chronica Philipp Melanchtonis, Frankfurt, 1569, p. 1562. Sobre o conceito de história, veja-se o próximo capítulo. 7. "[...] die Heyden hatten kein ander Liecht von Gott/ dann nur das jenig so von der Natur vnnd vollkommenheit der Geschopffen vnnd Wercken Gottes [...] Die Juden hatten ein schön Liecht von Gott/ welches auß der Schrifft [...] Christen aber haben neben dem Liecht der Natur/ vnd Geschöpffen Gottes/ das groß helle Liecht von Gott durch Christum". J. Jacob Grasser, Ecclesia Orientalis et Meridionalis, Eigentliche Beschreibung der Religions artickeln/ darauff die Christen in Asia vnd Africa/ vnten dem Türcken ...halten, Estrasburgo, 1613, prólogo sem numeração de páginas. DEUS E AS CRENÇAS ALHEIAS 205 não conhecem Deus e que, deste modo, seguem a lei da natureza. Estes seriam, aliás, os futuros cristãos. Estas duas facetas do paganismo sofreriam, com a descoberta de novas gentes em África, Ásia e América, profundas alterações. Na verdade, a entrada, na história da humanidade, de homens a quem ainda não fora dado a conhecer o Evangelho iria desencadear uma profusa reflexão nos quadros da teologia tradicional. Urgia, pois, antes de mais aferir qual o seu lugar nas concepções teológicas dominantes. No caso concreto do continente africano, o avanço ao longo da costa ocidental africana revelara desde já muitas novidades sobre os íncolas destas novas regiões e o seu modo de viver. Mas, no que respeita ao credo e às práticas religiosas, os autores têm dificuldade em as definir. Assim, em relação aos primeiros reinos africanos descobertos, mormente, no Senegal8 e no Budomel, fala-se inicialmente de uma evidente influência maometana. Neste último reino, Luís de Cadamosto teve oportunidade, durante a sua visita, de falar com o rei sobre o modo de orar. Sendo-lhe permitido entrar na mesquita quando o rei fazia a sua oração com os padres, que lhe ensinam a lei de Mafoma, Cadamosto conta que o rei, de pé, dizia algumas palavras ao mesmo tempo que, atirando-se ao chão, beijava a terra, acto que repetiria dez ou doze vezes juntamente com os seus súbditos, que o acompanhavam nestas cerimónias. No final, o rei perguntar-lhe-ia, qual a sua opinião sobre o que pudera apreciar, pedindo-lhe que o informasse sobre a religião europeia.9 Com o decorrer dos tempos saber-se-ia não só relatar de influências maometanas, mas também de povos bárbaros que não conheceriam nem leis nem costumes. Para os nautas portugueses estes autóctones da costa africana significariam o encontro com promissores seguidores da palavra de Deus.10 É, pois, com entusiasmo que se relata que o rei de Caramansa ouvira, com grande atenção, o que os portugueses lhe contaram sobre um deus cristão senhor de toda a terra.11 A salvação das almas reconhecida como a verdadeira crença fazia parte do acordo realizado entre portugueses e guineenses. O contacto estabelecido com os reis da costa ocidental africana marcaria o início de uma era de príncipes cristãos em África. Neste contexto, o reino do Congo constituiria um marco fundamental na propagação da palavra de Deus. "Que maior louvor se 8. Luís de Cadamosto, in: Newe unbekandte Landte, Nuremberga, 1508, cap. xvj. 9. Idem, cap. xxv/44 10. João de Barros, Ásia, Lisboa, 1552, ed. Hernani Cidade e Manuel Múrias, 4 vols, Lisboa, 1945, 1. Década, p. 71. 11. Idem, p. 77-81. 206 EM DIÁLOGO COM AS NOVIDADES poderia fazer a Deus e à sua Igreja do que a semear num local tão distante em que as suas gentes desconheciam o nome de Cristo, pois aqui não chegara a pregação dos Apóstolos. Neste continente tão longínquo e até há pouco desconhecido existia agora mais um altar oferecido a este Deus, em nome de seu filho." Cristo seria agora adorado por um rei "bárbaro per sangue e católico per fé" que assim criara, no seu reino, os fundamentos para uma comunidade cristã. Eis como João de Barros exalta calorosamente os frutos missionários da nação portuguesa sob a égide de D. João II.12 A revelação de sociedades que desconheciam a palavra de Deus constituiria uma surpresa para a comunidade cristã que, desde logo, determinaria a propagação e implantação da fé como a condição sine qua non na colonização dos novos territórios. Aos portugueses, escolhidos por Deus como representantes do povo cristão, caberia levar a mensagem da Boa Nova além-mar. A conversão ao cristianismo no reino do Congo representaria o primeiro sucesso da obra missionária portuguesa em terras africanas. A descoberta de sociedades, que pareciam viver sem leis nem credo, introduzia ainda a necessidade de distinguir entre os diferentes povos então descobertos e os já conhecidos. No continente africano ter-se-ia primamente apenas contactos com povos de influência muçulmana, os denominados infieis, mas com a passagem da linha equatorial a sua presença deixar-se-ia de fazer sentir. É difícil precisar quando é que a consciência europeia se apercebeu da diferença entre a condição espiritual do negro africano e a do infiel. Se para este existiam concepções definidas de uma recusa clara perante o cristianismo, visto que acredita e defende claramente uma outra doutrina, em relação ao negro africano apenas se sabia que vive sem lei e credo, regulamentando a sua vida pelo costume e pela força da natureza. Os protagonistas da empresa marítima vêm-se, assim, chamados à responsabilidade e, coagidos nos seus deveres apostólicos, crêm possível libertar os africanos das garras da idolatria. O facto de estes povos ainda não conhecerem o Evangelho seria, aos olhos dos coevos, dramático pelo que exigiam uma intervenção urgente por parte dos cristãos portugueses, intermediários e mensageiros da palavra de Cristo. A chegada dos mareantes portugueses a África oferecia às populações locais o momento da salvação, garantindo-lhes a possibilidade de ouvirem a palavra divina, a qual, pelos vistos, ainda não tinham tido a oportunidade de escutar. Enquanto os mouros viveriam no pecado, os 12. Idem, p. 126. DEUS E AS CRENÇAS ALHEIAS 207 pagãos gozariam de um estado excepcional: inocentes e sem máculas, os africanos da costa ocidental poderiam libertar-se do pecado e salvar a alma. Assim, desde o primeiro momento os portugueses procuram fazer deste homem neutro, não cristão, um cristão.13 Para muitos letrados lusitanos do século XVI, os Descobrimentos seriam a tomada de consciência dos deveres religiosos não cumpridos, ou mal cumpridos, e acima de tudo os deveres do apostolado cristão.14 Só mais tarde é que se iria questionar qual o significado atribuído à descoberta de um mundo novo, em que o comportamento moral e religioso dos seus habitantes era determinado pelos costumes. Os portugueses voltados para a missão evangelizadora pouco se tinham interrogado sobre os usos e costumes locais. Mas, com o passar dos anos, adquirir-se-iam informações mais precisas e detalhadas sobre o carácter hierático destes povos. Surpreendentemente, entre as várias sociedades africanas, existiriam poucos indícios de uma doutrina monoteísta. Levantada a questão se adorariam a vários deuses, urgia saber quem seriam e quais os ritos religiosos que lhes ofereciam. Estaria assim comprovado que aqui viveriam muitos gentios. Mas, seria a realidade vivida por estes gentios semelhante aos exemplos já conhecidos da Bíblia ou de outras fontes? Para alguns autores dos relatos de viagens, o paganismo significa - como vimos - um estádio anterior ao cristianismo, ou seja, eles consideram estes gentios pura e simplesmente como futuros cristãos,15 a quem seria dada, desta forma, a possibilidade de alcançar a salvação das almas. Mas já no século XVII, surgem outras vozes cépticas, que distinguem entre os pagãos dos tempos passados e os agora recentemente descobertos. Vejamos alguns exemplos. Um dos mais importantes argumentos destes autores seria que - já que não conhecem o verdadeiro Deus - estes povos adoram um outro ou outros deuses, pois, como se afirma repetidamente, não haveria maior 13. Recordemos as palavras de Gomes E. de Zurara, Crónica dos Feitos de Guiné, (1453), ed. A. Dias Dinis, Lisboa, 1949. 14. Sobre a tomada de consciência dos deveres apostólicos dos portugueses, veja-se José Sebastião da Silva Dias, Os Descobrimentos e a problemática cultural do século XVI, Coimbra, 1973, pp. 55-59, 81-93 e Hernâni Cidade, A Literatura Portuguesa e a Expansão Ultramarina. As Ideias - Os factos - As formas de arte, vol. I, (sécs. XV e XVI), Lisboa, 1963, pp. 37-65. 15. Esta posição não se encontra somente em João de Barros (ver acima), mas também se observa em outros autores como, Fernão Lopes de Castanheda, História do Descobrimento e conquista da Índia, Lisboa, 1551-1561, ed. M. Lopes de Almeida, Porto, 1979; Damião de Góis, Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel I, Lisboa, 1566, ed. Lisboa, 1909; Jerónimo Osório, De Rebus Emmanuelis gestis, Lisboa 1571, Colónia, 1574. 208 EM DIÁLOGO COM AS NOVIDADES barbaridade do que o total desconhecimento de um ser supremo. Uma vez que nem sempre seria fácil precisar se um povo respeita ou adora um ser divino, os observadores europeus partem em busca de comportamentos ou ritos que, frutos de uma vivência religiosa, possam fornecer indícios sobre a religiosidade dos povos ultramarinos. Assim, testemunha-se que "não tem livro, nada sabem acerca de ler e escrever, nem de Deus e da sua palavra sagrada. Aqui não há uma igreja, nem baptismo, nem missa, nem padres ou absolvição, não há lei nem evangelho, pelo que são as gentes mais miseráveis debaixo do sol".16 Nestas apreciações feitas pela negação verifica-se como os autores procuram comportamentos e aspectos que, lhe sendo familiares e conhecidos, os possam informar sobre algumas práticas religiosas, seguindo, naturalmente, a doutrina que conhecem da Europa: a procura de um ser divino significa fé, significa o seguimento dos seus mandamentos, o evangelho que significa ainda a existência de uma comunidade reunida com os seus sacerdotes num lugar sagrado. A constatação de que os aspectos considerados elementares na prática da verdadeira religião seriam inexistentes leva a que procurem manifestações e cerimónias equivalentes. Assim, quando os habitantes do sul de África saiem para a rua em dias de lua cheia e dançam a noite toda, poder-se-á certamente interpretar como uma prática religiosa.17 Ou o facto de elevarem as mãos para o céu quando dançam poderá ser um indício de um rito religioso: "Não podemos saber qual é a sua religião: mas de manhã, quando nasce o dia, eles reunem-se, e de mãos dadas dançam e gritam na sua língua, em direcção ao céu, o que deixa presumir que tenham de ter alguma ciência de Deus; bem como quando se lhes pergunta sobre o seu credo, eles dizem que acreditam naquele que criou o céu, a terra, o mar e tudo o que encontra ao cimo da terra".18 16. "Sie haben kein Buch, wissen nichts von lesen und schreiben, nichts von Gott und seinen heiligen Wort: Hier ist keine Kirch, keine Tauff noch Nachtmahl, kein Priester noch Absolution, kein Gesetz noch Evangelium, sind also die elendesten Leute unter der Sonnen...". Johan Schreyer, Neue Ost-Indianische Reisz- Beschreibung..., Leipzig, 1681, ed. S.P. L' Honoré Naber, Reisebeschreibungen von deutschen Beamten und Kriegsleuten im Dienst der Niederländischen West-und Ost-Indischen Kompagnien 1602-1797, Haag, 1931, vol. 7, p. 20. 17. Johan Christian Hoffmann, Ost-Indianische Voyage..., Kassel, 1680, ed. S.P. L'Honoré Naber, Reisebeschreibungen von deutschen Beamten und Kriegsleuten im Dienst der Niederländischen West-und Ost-Indischen Kompagnien 1602-1797, Haag, 1931, vol. 7, p. 30. 18. "Man kan nicht wissen, was Ihre Religion sey: aber frühe, wann es Tag will werden, so kommen Sie zusamm, und halten einander bey den Händen, und tantzen, und schreyen auf Ihrer Sprach gegen den Himmel hinauf, daraus zu praesumiren, daß Sie doch von Gott einige Wissenschaft haben müssen, wie Sie dann einsmahls Selbst gesagt, als man nach Ihren Glauben fragte: Sie glauben an den, der alles erschaffen habe, Himmel, Erden, Meer, und DEUS E AS CRENÇAS ALHEIAS 209 Mas outros povos não respondem desta maneira. O padre Wilhelm Johann Müller conta que, no Fetu, os habitantes gozam com as leituras que os padres lhes fazem do Antigo Testamento, perguntando há quanto anos é que esses milagres se deram, como que se quissesem dizer como é que se pode realmente saber essas coisas se já foi há tanto tempo.19 Se não existe um ser divino, então presume-se que os povos ultramarinos pratiquem cerimónias ao diabo, a fim de se lhes reconhecer, alguma ainda que falsa - religiosidade. Por isso, os íncolas africanos adoram um ser diabólico, pedindo-lhe conselhos e oráculos; na veneração aos mortos, feita nos dias de Lua Nova, cantam, dançam e tocam em honra do demónio - tocam um instrumento parecido com um tambor, com três pés de altura, cortado e escavado de uma palmeira e depois coberto com uma pele; e batem nele com um pau e na outra mão seguram uma campainha de vaca [...] até que o cansaço os deita por terra".20 Assim trazem ao pescoço muitas "peças do diabo", como sejam: dentes, garras, palhas, cabeças de serpente e diferentes coisas diabólicas, a fim de evitar as fúrias do "trovão".21 No reino de Loanga tem, nas suas casas, toda a espécie de "obras do diabo" a quem adoram e fazem sacríficios, deitando vinho no chão em frente destas imagens. E muitas vezes tem "casas do diabo", isto é, oratórios, onde o demónio poderá vir quantas vezes quiser. E de tal modo acreditam nele que realizam sacríficios humanos em seu nome. Assim, chegam a sacrificar homens "[...] quando um está doente, promete oferecer ao diabo um escravo, o que assim cumprem, caso melhore. Assim, depois de lamentavelmente o matarem, colocam-no na casa do diabo alles, was auf Erden sey". Johan Jacob Saar, Ost- Indianische funfzehenjährige KriegsDienst..., Nuremberga, 1662, ed. S.P. L'Honoré Naber, Reisebeschreibungen von deutschen Beamten und Kriegsleuten im Dienst der Niederländischen West-und Ost-Indischen Kompagnien 1602-1797, Haag, 1931, vol. 6, p. 179 . 19. Wilhelm Johann Müller, Die Africanische auf der guineischen Gold-Cust gelegene Landschafft Fetu, Hamburgo, 1673, ed. Graz, 1968, pp. 90-91. 20. "Den teufel beten sie an/ welchen sie als ain Oraculum umb Raht fragen/ ingleichen verehren sie die Todten/ begehen alle neue Monden dem Teuffel feyerlich/ singen und springen/ spielende auf einem Instrument, so wie eine Trommel/ drey Fuß hoch/ aus einem Palm-Baum gehauen und ausgehölet/ nachmahls mit einer Haut überzogen; Darauff schlagen sie mit einem Knüppel/ in der andern Hand haltende eine Küh-Glocke/ auf den Armen Eiserne Ringe [...] biß sie von Müdigkeit auf die Erde fallen". Otto Friedrich von der Gröben, Guinesische Reise= Beschreibung, Marienwerder, 1694, ed. Leipzig, 1907, p. 34. 21. "[...] Zähne/ Klauen/ Stroh/ Schlagen-Köpffe/ und unterschiedliche abscheuliche ZauberDinge mehr". Idem, p. 41. 210 EM DIÁLOGO COM AS NOVIDADES "Maggasethi", até que o sátan o venha buscar. E assim o que lhe prometem, assim o cumprem rigorosamente".22 No reino de Benim num só dia ofereceram ao diabo, que consideram o seu deus, sete cães, três bois, doze cabras e mais de cem galinhas.23 Além disso, fala-se que também têm locais sagrados. Assim, a sua igreja poderá ser: "uma vedação com estacas; antes de [ali] entrarem, colocam tudo o que têm [no chão], até faca, e só depois é que entram na casa de adoração, onde caiem de joelhos; com as mãos esticadas e colocadas na cabeça, curvam-se, com a cara para a terra, e rezam ao diabo, o que tem necessidade".24 Ao longo da costa ocidental africana encontram-se, por conseguinte, povos que não conhecem a obra de Deus que criou o mundo, e que em vez de o adorarem como "Criador todo poderoso", adoram o diabo: o pastor Müller, ao serviço da Companhia Dinamarquesa, encontra, na região do Fetu, o diabo na figura de um horrível mouro negro que traz consigo uma lança de caçador, um arco e que anda com um cão enorme negro, o que o faz concluir, que se trata do "caçador infernal" conhecido da Sagrada Escritura.25 O facto de acreditarem neste ser satânico, quer então dizer, que levam uma vida idolatra. Deixando-se reger por ídolos, o dia-a-dia destes pagãos é assim definido pelos "feitiços". Além disso, fazem muitas festas de carácter religioso em honra dos ídolos que adoram. Estas cerimónias rituais seriam atentamente descritas pelos visitantes, em especial, as manifestações relacionadas com o nascimento, (baptismo) casamento e morte, etapas fundamentais da vida humana e símbolos da religiosidade local. 22. "Sie opfferen auch Menschen/ der gestalten: wann einer kranck wirdt/ so verspricht er dem Teufel einen seiner Sclaven zu verhren/ welches sie auch halten. Dann sie dieselbigen erstlich jämmerlich vmbbringen/ alßdann legen sie dieselbigen in das Maggasethi (Thäußlich)/ biß sie der Satan hinweg nimmt. Und was sie sonst dem Satan versprechen/ das halten sie ihme ganß getrewlich". Samuel Brun (Braun), Schiffarten..., Basileia, 1624, ed. Walter Hirscherg, Graz, 1969, p. 22. 23. Andreas Josua Ultzheimer, Warhaffte Beschreibung ettlicher Reisen in Europa, Africa, Asien und America 1596-1610, Tübingen, 1616, ed. Tübingen, 1971, p. 126. 24. "[...] ein Zaun von Pfälen wie Stacheten gemacht/ so von oben offen. Ehe sie hinein treten/ legen sie alles von sich/ biß auffs Messer/ alsdann gehen sie ins Beth=Hauß/ fallen auf ihre Knie/ strecken die Hände von sich/ und schlagen sie über das Haupt zusammen/ neigen das Antliß zur Erde/ und bitten vom Teuffel/ was sie nöhtig haben". Otto Friedrich von der Gröben, op. cit., p. 20. 25. "[...] in Gestalt eines langen abscheuliche schwarzen Mohren/ mit sich führend einen Jäger=Spieß/ Bogen/ kocher/ imgleichen schwartze grosse Hunde/ erscheinet". W.J. Müller, op. cit., pp. 45-46; "höllische Jäger" DEUS E AS CRENÇAS ALHEIAS 211 O médico Samuel Braun relata que quando os grandes senhores morrem, os amigos e serviçais fazem um grande banquete à sua maneira e comem juntos pela última vez. Em determinado momento, o feiticeiro, a que chamam "Manna Magüschy", dá de beber a quatro ou cinco amigos, a dez ou doze dos escravos e, por fim, também aos "padres" e mulheres do falecido que assim irão morrer com uma bebida feita de raízes.26 Por exemplo, no Loango usam "[...] desenterrar o corpo do morto (como é seu costume) espetam a cabeça num pau e dançam com ela; e o corpo oferecem-no ao diabo".27 Estes e muitos outros exemplos revelam, aos olhos dos visitantes, um estranho, sim até desumano, comportamento. Mas mais se poderia anotar sobre os funerais em África. Assim, lê-se que, por vezes, o morto seria enterrado com ouro e instrumentos, porque os habitantes consideram que só assim teria mais autoridade para além da morte. De facto, "[...]rezam com grande aplicação e isto por quatro razões 1. para que tenham o suficente de comer e beber todos os dias, nomeadamente, vinhos espanhóis e aguardente. 2. porque acreditam que a natureza é a maior de todas as forças. 3. porque acreditam receber tudo de um grande monarca que governa a outra natureza. 4. e porque acreditam num outro mundo regido só por um monarca, pedem que, depois da sua morte, ele os receba e que de boas graças com ele lhes sejam transmitidas outras riquezas".28 Geralmente, e com base nos elementos recolhidos, os autores estavam convictos que estes homens não-europeus viveriam na idolatria, isto é, no erro. Uns adoravam elementos da natureza, outros animais e quase todos o diabo, deixando que este lhes controlasse o dia-a-dia. Isto levá-los-ia a acreditar que vivendo estes num estádio natural, isso significaria que os gentios ainda não se tinham libertado do seu estádio selvagem. Daí que se comportassem como cegos que ainda não tinham visto a verdadeira luz. E, por isso, não estariam ainda em condições de levar uma vida digna de um ser humano. Estas considerações reflectir-se-iam nos seus escritos, em 26. Samuel Brun (Braun), op. cit., p. 21. 27. "[...] den todten Leichnamb wieder ausgraben (wie dero Gebrauch) den Kopff auf eine Stange stecken/ damit tanzen/ und den Leichnamb dem Teuffel opffern". Otto Friedrich von der Gröben, op. cit., p. 38. 28. "Sie beten sehr fleißig/und solches 4. Ursachen halber/ 1. damit sie täglich gut zu essen und trincken haben möchten/ als Spanische Weine/ und Brandtwein. 2. Weil sie glauben/ daß eine Natur aller Naturen ist/ so von grösserer Kraft/ als ihre sey. 3. Weil sie västiglich glauben/ alles von dem grossen Monarchen/ der die andere Natur regieret/ zu erhalten. 4. Weil sie noch andere Welt glauben/ so bloß von einem Monarchen regieret wird/ bitten sie/ daß/ wann sie nach ihrem Absterben zu ihm kommen werden/ bey denselben in Gnaden seyn mögen/ und vor andern Reichthumb überkommen". Idem, p. 23. 212 EM DIÁLOGO COM AS NOVIDADES expressões como "gente selvagem e bestial",29 "gente bestial quase irracional"30 que levam uma vida mais parecida com as dos animais do que humana,31 chamando-lhes, por vezes, até monstros.32 Como os povos africanos fogem ao padrão conhecido, os europeus, perante uma incompreendida diversidade, reagem com intolerância. Partindo do princípio de que os povos gentios teriam chegado a este estádio, não por desorientação, mas sim porque não utilizaram as suas capacidades de ser racional, a postura comum dos autores é de incompreensão. O facto de não se terem empenhado no seu desenvolvimento não seria aceite pelos europeus que assim lhes apontam esta falta, aliás, falha. É com grande pesar que os europeus testemunham que em terras de alémmar vivam homens sem qualquer conhecimento do "pai Adão"; e que vivam, a seu ver, um dia-a-dia deplorável, uma vez que não conhecem a Deus e que na sua maneira de viver se reconheça tão pouca humanidade que mais se poderiam contar entre os animais do que entre as gentes racionais.33 Esta é a opinião do padre alemão Johann Christian Hoffmann que é, de certo modo, característica da reacção à maneira estranha e incompreensível de viver dos povos ultramarinos. Como se poderiam ter deixado chegar a este estádio de perfeita animalidade, vivendo "mais entre os animais estúpidos" do que entre gente racional. Tendo descorado a razão e a Deus, estes descendentes de Adão desprezaram decididamente viver segundo a ética cristã. Numa outra passagem, Hofmann acentua este aspecto, afirmando que tudo lhe parecera estranho, mas a maneira de viver deste povo selvagem que, inicialmente tomara por monstruosos macacos e não por integros homens, era incrível. E isto porque, a seu ver, em nada se 29. "Wilde bestilische Menschen". Volquart Iversens, Ost=Indische Reise=Beschreibung, in: Adam Olearius (Ed.), Orientalische Reise-Beschreibung, Schleswig, 1669, p. 73. 30. "Wilde viehisch kaum vernünftiger Menschen". Jürgen Andersen, Orientalische ReiseBeschreibung, In: Adam Olearius (Ed.), Orientalische Reise-Beschreibung, Schleswig, 1669, p. 4. 31. Johann Albrecht von Mandelslo, Des hoch edelgebornen Johann Albrechts von Mandelslo Morgenländische Reybeschreibung, in: Adam Olearius (Ed.), Orientalische ReiseBeschreibung, Schleswig, 1658, p. 113. 32. Johan Jacob Saar, op. cit., p. 178. 33. "Zu betrauen ists, daß unter dem menschlichen Geschlecht solche Leuthe, wie anitzo angewiesen, zu finden seyn, alß an welchen, ungeachtet sie von dem ersten Vatter Adam abkünfftig, nichts wenigers gleichwohl alß Menschligkeit gespühret wird, warumb sie in Wahrheit mehr unter das dumme Vieh alß in die Zahl der vernünftigen Menschen können gerechnet werden, sintemahl sie in dieser Welt ohne Gott seyn, und daher ein sehr erbärmliches Leben in dieser Zeitligkeit leben". Johan Christian Hoffmann, op. cit., p. 31. DEUS E AS CRENÇAS ALHEIAS 213 parecem aos homens, pelo que em verdade e, em face da sua barbaridade, são as gentes mais miseráveis que alguma vez viu.34 O gentio seria assim aquele que vive sem conhecer a Deus, sem racionalidade e que segue uma vida de selvagem, longe do que se considera ser própria de um ser humano, por isso cheia de vícios e defeitos. Assim, a observação de certos hábitos da vida pagã ia de encontro a esta opinião: que viviam juntos como "os animais", andavam nus sem vergonha, casamentos selvagens, alguns até seriam canibais, em suma, uma grande lista de deformidades e defeitos que, aos olhos dos visitantes, davam a conhecer a devassidão da tão reprovável vida pagã. O paganismo deturpara, sem dúvida, a vida humana ao deixar que a natureza dominasse a conduta humana. Numa situação como esta o homem não conseguiria distinguir entre o Bem e o Mal. Este conceito está muito relacionado com a definição de paganismo partilhada pela igreja protestante. Enquanto, a igreja católica defendia os gentios como futuros cristãos, a quem era necessário transmitir a luz da verdade e da civilização, os protestantes consideravam que a natureza já lhes destruíra a inocência; ao esquecerem-se da sua descendência teriam pecado, pelo que já seria tarde demais para os salvar. Estas duas interpretações da Sagrada Escritura reflectiam-se nos textos publicados. Para alguns viajantes o encontro com os gentios no continente africano significava a possibilidade de propagar a palavra de Deus por estas paragens, ou seja, os africanos teriam agora a oportunidade de conhecer a luz da verdade, acreditando, por isso, que através da missionação seria possível torná-los civilizados e cristãos. Outros autores, como os seus relatos de viagens o testemunham, acham que cada um dos povos recentemente descobertos já decidiu o caminho civilizacional ou religioso que pretende trilhar. A igreja protestante defendia, deste modo, uma atitude mais reservada no que respeita à evangelização, como se pode ver nos seus escritos teológicos. A grande linha argumentativa deixa-se descrever da seguinte 34. "Alles kam mir allhier seltzam vor, am seltzamsten aber die wilde Lands-Arth dieser Völcker, die Ich anfänglich mehr vor ungeheure Affen, alß vor rechtschaffene Menschen ansahe, und gewißlich! wegen ihrer Unmenschligkeit haben sie fast nichts an sich daß einem Menschen ähnlich ist, und daher seyn sie in Wahrheit die allerelendesten Menschen, die Ich jemahl gesehen". Idem, p. 26. A comparação dos hotentotes aos macacos, um símbolo do mal e do pecado, atribui-lhes-ia os seus poderes maléficos. Veja-se Hannelore Sachs, Ernst Badstübner, Helga Neumann (Ed.), Erklärendes Wörterbuch zur christlichen Kunst, Hanau s. D., p. 21. 214 EM DIÁLOGO COM AS NOVIDADES forma:35 os autores protestantes consideram que o Evangelho já teria sido propagado por todos os países. A partir deste irremediável veredicto, os teólogos luteranos e calvinistas entendem que não haveria necessidade de o repetir, pois quem não ouvira a voz de Deus escolhera certamente a idolatria. O reformador Martinho Lutero, grande defensor desta tese, determinaria, deste modo, as posições e perspectivas da igreja protestante. Na sua interpretação da Sagrada Escritura, Lutero designa e especifica os princípios orientadores e característicos da evangelização. Assim, baseando-se numa passagem do Evangelho de São Marcos, em que se diz: "Apareceu, finalmente, aos próprios onze, quando estavam à mesa, e censurou-lhes a incredulidade e a obstinação em não acreditarem naqueles que O tinham visto ressuscitado. Depois, disse-lhes: 'Ide pelo mundo inteiro e anunciai a Boa Nova a toda a criatura. Quem acreditar e for baptizado será salvo, mas quem não acreditar será condenado'",36 o teólogo alemão argumenta que a mensagem do Evangelho já fora ouvida em todo o mundo, pelo que já tinha sido dada, a todos os pagãos, a oportunidade de libertar o seu coração da idolatria. Embora se reconheça que a mensagem fora dada a conhecer em diferentes momentos históricos, para Lutero e os teólogos protestantes, a sua divulgação já fora feita. Além disso, segundo Lutero, e este aspecto é de grande importância neste contexto, não há necessidade de que todos os povos sejam cristãos. Nem todos podem ser recebidos no rebanho dos cristãos, aliás, até porque, como frisa, o diabo não o permitiria. Isto explicaria a existência de vários credos e religiões no mundo. A mensagem já se fizera ouvir no Egipto, na Grécia, na Itália, na Espanha, na França e ecoaria, momentâneamente, na Alemanha, sem que se pudesse prognosticar por quanto tempo. Em África já se tinham instaurado de novo a mentira e a guerra. Lutero não vê, aliás, a propagação do cristianismo como uma tarefa humana. Tudo dependeria muito mais da força da palavra de Deus. Mais do que uma igreja do sermão, Lutero crê numa igreja que se distingue pela cruz e pelo sofrimento. Elogiando o povo judeu, cujo íntegro e exemplar comportamento teria convertido muitos pagãos, Lutero considera, no entanto, ser o próprio Deus quem escolhe o povo para a salvação. Deus é que tem o poder de, consoante a conduta de um povo, de lhe dar ou tirar o 35. Vgl. u.a. P. Drews, Die Anschauungen der reformatorischen Theologen über die Heidenmission, in: Zeitschrift für praktische Theologie, 1897, pp. 1-27 e Urs Faes, Heidentum und Aberglaube der Schwarzafrikaner in der Beurteilung durch deutsche Reisende des 17. Jahrhunderts, Zurique, 1981, pp. 16-33. 36. Evangelho segundo São Marcos 16, 14-16. DEUS E AS CRENÇAS ALHEIAS 215 Evangelho. Daí que Lutero, e com ele muitos outros teólogos, não veja necessidade de uma conversão dos pagãos.37 Ainda, em 1661, a Faculdade de Teologia da Universidade de Wittenberga, com base na doutrina luterana, considera o paganismo uma justa repreensão e admoestação de Deus ao desprezo pela verdade eterna. Nas terras, onde a palavra de Deus não fora atentamente escutada, ficariam apenas "idolatria, pecado e condenação";38 este era, sem dúvida, o caso do continente africano. Um dos teólogos mais importantes do século XVII, o Superintendente de Regensburgo, Heinrich Ursinus, aponta três particularidades na designação de pagão: 1. são selvagens que nada possuiem de humano; 2. são cruéis e tiranos; 3. vivem em pecado, repudiadores da religião cristã que os antepassados teriam recusado horrível e desagradecidamente. Não tiveram em atenção as graças de Deus, e, por isso, se tornaram cada vez mais selvagens. Mas eles, e só eles, seriam os culpados desta situação, não tendo assim qualquer direito ao perdão. Neste sentido, Ursinus considera que não se deveriam enviar missionários: "A cães e porcos desta laia não se deve arremessar as pérolas e a santidade de Deus", só no caso de se afastarem da crueldade.39 Embora com as viagens dos Descobrimentos chegassem outras novas acerca dos povos e das religiões de além-mar, a igreja protestante, apesar de reconhecer tal facto, mantem firme a sua opinião de que se podem encontrar reminiscências, entre estes povos, de um contacto com o cristianismo em tempos já remotos. O facto da maioria dos povos africanos fazerem uso da circuncisão - guardado, naturalmente, dos primeiros tempos - ou casos como o reino do Preste João seriam provas mais que evidentes da velha presença do cristianismo, em África. Esta a posição defendida, entre outros, por Johan Gerhardt, que se insurge contra o proselitismo católico.40 O pastor de Hamburgo, Müller, vai mais longe e acusa a igreja católica de descuidar a orientação dos crentes na Europa para pregar além-mar, o que, a seu ver, seria antagónico ao cristianismo. Tal como Lutero, Müller considera que os Apóstolos já pregaram a mensagem divina (Mt 24, 14) 37. Lutero citado por P. Drews, Die Anschauungen der reformatorischer Theologen über die Heidenmission, in: Zeitschrift für pratische Theologie, 1897, p. 1. 38. "[...] gräuliche Abgotterei, Sünde und Verdammung". Citado por Urs Faes, op. cit., p. 17. 39. "Solche Hunde und Säuen soll man Gottes Perlen und Heiligtum nicht vorwerfen". Idem. 40. Johann Gerhardt, Locis Theologicis, citado por R. Bückmann, Die Stellung der lutherischen Kirche des 16. und 17. Jahrhunderts zur Heidenmission und die gemeinsamen Bestrebungen von Leibniz und A. H. Francke zu ihrer Belebung, in: Zeitschrift für kirchliche Wissenschaft und kirchliches Leben, 1881, pp. 362-389. 216 EM DIÁLOGO COM AS NOVIDADES em todos os locais (Mc 24, 14) e até ao fim do mundo (Act 1, 8). A comunidade cristã existente, essa sim seria de maior importância, uma vez que o dever de evangelizar (Mc 16, 15) já fora cumprido pelos Apóstolos. Müller critica ainda a maneira como os missionários católicos procuram, a todo o custo, auferir mais cristãos: "Não há necessidade de fazer uso do papado para converter, divulgar o sagrado sacramento e catequizar estes homens, obrigando-os a horrendos martírios e tiranias, a não ser por meio da palavra (Mc. 16, 16). Sobre a invasão feita a estes povos com fogo e espada, pilhando e saqueando as suas terras e cidades e prendendo-os para os obrigar a aceitar o credo cristão, não teve o papado até agora qualquer prova de que [essas acções] sejam justas e apostólicas".41 Neste contexto, convém ainda referenciar um outro escrito de excepcional valor e interesse para esta discussão: o Hausbuch.42 Com efeito, da autoria de Heinrich Bullinger, esta colecção de sermões é de grande significado para este assunto, uma vez que, como sabemos, este livro seria lido diariamente a bordo dos navios da Companhia Holandesa das Índias (VOC). Bullinger, um seguidor de Zwingli, considera que não se poderá afirmar que a Bíblia condene definitivamente os pagãos, antes pelo contrário, os seus textos e escritos alertam para uma possível salvação. No segundo sermão desta colecção, também este teólogo acentua que a palavra de Deus teria sido pregada em todo o mundo. Embora nem todos a tenham reconhecido, o certo é que todos tiveram a oportunidade de a seguir, quer pela lei da natureza, quer pela lei da razão. E, mesmo quando alguns deles se deixaram vencer pelo pecado, a lei da natureza foi-lhes ditada por Deus no seu coração, lei esta que - tal como a de Deus - lhes permite distinguir entre o Bem e o Mal e encontrar o caminho para a salvação. Bullinger vê assim a possibilidade de os pagãos reconhecerem Deus e se tornarem cristãos,43 ou seja, ao contrário de Lutero, Bullinger não os vê de todo condenados. Daí que se possam observar vários estádios religiosos, isto é, se reconhecem ou não um ser supremo, quais os ritos 41. "Man muß auch die Päpstische Art nicht gebrauchen/ solche Leute zubekehren/ und mit schrecklicher Maarter und Tyranney nötigen und zwingen/ sondern die jenige Mittel gebrauchen/ welche seyn die Predigt des Worts (Mc 16, 16) und Außtheilung der Heil. Sakramenten. Daß man aber solche Völker mit Feuer und Schwert solle überfallen/ ihre Länder und Städte plündern und einnehmen und sie also zwingen zum Christlichen Glauben/ davon haben sie Päpstler bißher keinen Beweiß bringen können/ daß es recht und Apostolisch sey". Johannes Müller, Widerlegung der papistischen Einwürfe, no anexo publicado por in: Wolfgang Gröszel, Die Mission und die evangelische Kirche im 17. Jahrhundert, Gotha, 1897, pp. 127-133, aqui p. 130. 42. Heinrich Bullinger, Haußbuch, Berna, 1558. 43. Idem, Sermão nº 7. DEUS E AS CRENÇAS ALHEIAS 217 religiosos, bem como quais os usos e cerimónias que lhe oferecem, até qual o comportamento em relação à família, ao casamento e à morte. Mas se não viverem segundo a lei da natureza, ou se a tiverem corrompido, então já não há perdão: caiem no pecado, na idolatria. Além disso, todos aqueles que não tiverem uma relação com o verdadeiro Deus, serão inevitavelmente vítimas do diabo, que os seduziu e perverteu a práticas religiosas falsas.44 Nos finais do século XVII, esta vasta e larga disputa doutrinal ainda se torna mais viva no discurso teológico coevo. Os cristãos católicos interrogam-se principalmente sobre a ressonância das acções missionárias no mundo. Esta preocupação reflectir-se-ia assim em muitos dos escritos contemporâneos, pois para aqueles que haviam acreditado na missionação convinha traçar um quadro informativo do apostolado, mais concretamente, urgia debuxar a expansão da igreja cristã no orbe terráqueo. No ano de 1678 vem a lume, em Viena, uma obra intitulada Kirchen=Geschichte [História da Igreja].45 O seu autor, o jesuíta Cornelius Hazart, exemplifica e esclarece, em doze livros, os diversos aspectos de que se revestiu a divulgação do credo cristão em algumas das regiões do mundo por onde se espalhou o cristianismo, entre elas Japão, Terra dos Mouros, Peru, Paraguai, Brasil, Florida, Canadá, México, Mongor e Bisnaga. No capítulo dedicado à Terra dos Mouros, Cornelius Hazart descreve este processo em terras da Abissínia, Guiné, Monomotapa, Fez e Marrocos.46 Todos os capítulos seguem a mesma estrutura narrativa, como no caso da Guiné e do Congo. O autor explana primamente as diversas etapas das viagens de descobrimento, com vista a descrever os primeiros passos da cristianização nestas regiões africanas - os baptismos de reis, a primeira igreja em África - até ao relato das perseguições levadas a cabo durante o século XVII. Aqui como nos capítulos reservados ao Monomotapa, a Fez e a Marrocos, Cornelius Hazart expõe veemente as acções levadas a cabo 44. Idem, Sermão nº 35. 45. Cornelius Hazart, Kirchen=Geschichte/ Das ist: Catholische Christenthum durch die gantze Welt ausgebreitet, Viena, 1678. 46. Aqui poder-se-á testemunhar que entre as fontes a que o autor recorre para traçar um esboço adequado dos conhecimentos actuais, Hazart refere as obras ibéricas, aparecendo ao longo do seu texto nomes como Balthasar Teles, Manuel de Almeida e Pero Pais. O facto de as relações dos padres jesuítas portugueses fornecerem informações pormenorizadas e precisas acerca das missões religiosas além-mar, torna compreensível que os autores alemães procurem e recorram a estes mesmos textos quando pretendem tratar temas religiosos. Para além dos autores jesuítas, Cornelius Hazart, igualmente jesuíta, refere ainda Damião de Góis e Francisco Álvares. 218 EM DIÁLOGO COM AS NOVIDADES pelos missionários europeus nestes reinos ultramarinos, bem como as perseguições de que foram vítimas, como Gonçalo da Silveira, um mártir da missionação no Monomotapa. Um outro exemplo bem elucidativo do debate doutrinal em terras alemãs é a criação do Collegium Orientale Theologicum em Halle. Nascido do desejo de formar missionários que, através de uma adequada formação, pudessem pregar dignamente a palavra de Deus, o colégio prova que o tema missão ainda não estava completamente encerrado nos meios intelectuais protestantes. O pastor August Hermann Francke e o escritor e cientista Gottfried Wilhelm Leibniz, ambos luteranos, defendem a ideia de criar uma rede missionária capaz de desenvolver um programa cultural e político além-mar. Leibniz dedicar-se-ia entusiasticamente à defesa desta ideia, procurando recolher, entre os príncipes e nobres da Europa, auxílio para este seu projecto universal. Não obstante o seu país de opção fosse a China, o letrado desenvolveria uma concepção geral de como e qual deveria ser a formação dos novos e promissores missionários; entendidos como verdadeiros eruditos, os pregadores da fé deveriam formar-se em academias a fim de aprenderem línguas, doutrina teológica, filosofia, matemática e ainda a geografia dos países que posteriormente viriam a visitar. Este projecto que Leibniz expôs na Societät der Wissenschaften (Academia das Ciências), em Berlim, apostava na constituição e desenvolvimento das ciências sociais e humanas como garante de honra na glorificação de Deus. Entre os múltiplos contactos estabelecidos com conceituados e poderosos eruditos, Leibniz dispõe do enorme apoio de August Hermann Francke, que com ele partilha estes objectivos.47 Em 1702, o colégio abre assim as suas portas aos primeiros discípulos. No estatuto regulamenta-se que os noviços devem estudar a Sagrada Escritura, Matemática, Física e Línguas. Neste campo aconselha-se a que uns se apliquem ao estudo de línguas como a caldaica, síria, arábe, talmude, etíope, arménia, chinês, enquanto outros deveriam estudar polaco, eslavo, russo, francês, inglês e italiano. Recomenda-se ainda o estudo da filosofia rabina, a fim de ajudar na, ainda actual, conversão dos judeus. Assim preparados os missionários levariam a ciência e a mensagem divina além-mar, contribuindo incansavelmente, com o seu trabalho, para a expansão da fé cristã no mundo.48 No diálogo com o Outro reacende-se, como já tivemos oportunidade de frisar, um desafio teologal que visava o esclarecimento e a rectificação do 47. Veja-se R. Bückmann, op. cit., p. 379. 48. Hiob Ludolf, amigo de Francke, recebe os estatutos e ao ver que o instituto se dirigia para o Oriente, menciona a Abissínia como um dos países a missionar. Ver próximo 3.4. cap. DEUS E AS CRENÇAS ALHEIAS 219 significado e importância do sentimento religioso na vida humana. As primeiras tentativas de aproximação resultavam, sem dúvida, do desejo de tornar o cristianismo a religião universal, propagando determinantemente a palavra de Deus a todos que a não conheciam. As diferentes religiosidades, o próprio facto da diversidade ser possível, o conceito de um ser supremo, da existência de outros deuses que não o cristão seriam um tema de actualidade e ponderação nos textos do século XVII. Por ora ainda não se dramatizariam as diferenças religiosas na procura do Outro, certamente futuro cristão, pois ainda se acreditava na universalidade da verdadeira religião. As sombras e dúvidas que a pouco e pouco se faziam sentir não conseguiam esmorecer, por enquanto, o interesse e o entusiasmo face a outras realidades e a outras vivências religiosas. 3.3.2 Cristãos, Muçulmanos, Judeus e Pagãos em África Qual o lugar do continente africano no debate teologal tão aceso ao longo destes dois séculos ? Quais os credos representados nesta parte do mundo e que exemplos e impulsos de hieratismo se poderiam receber de África? Se, por exemplo, no norte de África era clara a influência dos mouros, como seria no interior e no sul? Os mais curiosos inquiriam ainda sobre a vida religiosa dos cristãos residentes no Egipto ou se seria correcto dizer que o rei da Etiópia fosse o tão procurado Preste João? O confronto cristãos-mulçumanos já se arrastava desde há muito e as relações entre estes dois povos tinham ultrapassado o estádio de mútuo interesse. Para os cristãos os que professavam a religião muçulmana eram os inimigos do povo de Deus e o profeta Maomé, seria a "besta diabólica", tal como o define Salomon Schweigger; a seu ver, Maomé comportara-se como o profeta das mentiras, pois adulterara a palavra de Deus para dela tirar partido. Os maometanos desmenteriam a Santíssima Trindade, e, embora considerassem Moisés, Cristo e Maomé os seus profetas, negam que Cristo seja filho de Deus. Conhecem o Antigo e Novo Testamento, mas o livro dos partidários da religião de Mafoma, é o Corão.49 Tinha-se acreditado durante muito tempo que a sua área de influência se 49. A confrontação resultante do avanço dos Turcos, gerava uma discussão em torno do credo maometano. Veja-se, por exemplo, Auß Rathschlage Herrn Erasmi von Roterdam/ die Türcken zubekriegen/ Der vrsprung vnnd alle geschichten der selbigen gegen Römische Keyser vnnd gemeyne Christenheyt..., Augsburgo, 1530. Sobre as publicações referentes a esta questão, veja-se Carl Göllner, Turcica, Die europäischen Türkendrucke des XVI. Jahrhunderts, 3 vols., Bucareste / Berlim/ Baden-Baden, 1961-1978. 220 EM DIÁLOGO COM AS NOVIDADES circunscrevia apenas ao norte de África, mas, com grande surpresa, as viagens dos Descobrimentos iriam revelar que, na costa oriental africana, os maometanos exerciam também grande soberania.50 De novo se encontrariam os inimigos da fé, cujos objectivos eram idênticos aos dos cristãos. As viagens marítimas tinham dado a conhecer, como já acima referimos, muitos povos que, não professando qualquer religião, desconheciam, por completo, a existência de Deus e a palavra de salvação trazida por Cristo. Este é o caso dos autóctones da costa ocidental africana, ou dos que vivem junto ao Cabo da Boa Esperança, íncolas que, pela disparidade de usos e costumes, chamam incisivamente a atenção dos teólogos e eruditos. Perante a alteridade, os homens de letras lançam-se numa tarefa: a de reflectir a identidade religiosa de cada nação ou sociedade, intentando recolher o máximo de dados esclarecedores sobre o gentilismo agora descoberto. Se para atingir este propósito se bebia nas descrições bíblicas de tempos antigos e se utilizavam a Bíblia como a "lei sagrada" para ordenar e definir o paganismo, o certo é que as novas facetas não se deixavam testemunhar na Sagrada Escritura nem na história do cristianismo.51 No continente africano, onde Cham, "o mais pobre" dos três filhos de Noé,52 se estabelecera, encontrar-se-iam indícios dos primeiros tempos do Antigo Testamento; assim bastaria recordar a presença de José no Egipto ou a libertação do povo de Deus do jugo do faraó pelo seu profeta Moisés. E, como se sabia do Pentateuco, a fúria de Jeová recaira sobre esta terra, pois o seu povo não o reconhecera. Assim, "O Egipto será o humilde de todos os reinos e não se elevará mais acima das nações. Reduzirei a sua população, a fim de que ela não domine mais sobre as outras nações. Para Israel não será mais objecto de confiança; pois que recordará a culpa que 50. Veja-se, por exemplo, o diário da viagem de Vasco da Gama escrito por Álvaro Velho. Ver Cap. 2.4. 51. Bernhardi Vareni, Kurßer Bericht von Mancherley Religionen der Völcker, Verdeutscht durch E. F. (Erasmus Francisci), Heidelberg, 1665, salienta quatro tipos de paganismo: 1. que não conhecem um ente surpremo e são canibais 2. que adoram os astros, 3. que respeitam muitos deuses, 4. que adoram a um só deus, mas que conhecem muitos outros e que não seguem a Sagrada Escritura. Os povos da Guiné e do Monomotapa pertenceriam ao quarto tipo mencionado e os habitantes do Cabo da Boa Esperança ao primeiro deste grupo. 52. Santo Jerónimo assim o defeniu. África seria condenada pelos pais da igreja. Veja-se Alexander Perring, Erdrandsiedler oder die schrecklichen Nachkommen Chams, Aspekte der mittelalterlichen Völkerkunde, In: Thomas Koebner, Gerhart Pickerodt (Ed.), Die andere Welt, Studien zum Exotismus, Frankfurt/M. 1987, pp. 31-87, aqui p. 47. DEUS E AS CRENÇAS ALHEIAS 221 Israel cometeu, voltando-se para ele. Assim saberão que Eu sou o Senhor Deus".53 Esta tradição histórica e bíblica era o aspecto mais relevante para os letrados coetâneos, visto que esclareceria a inserção deste continente na história da humanidade e poderia ajudar a explicar a existência de usos de origem judaica em África - usos estes que não se encontravam apenas no norte, mas que estariam muito mais espalhados do que se supusera. Até entre os guineenses ou hotentotes se poderiam observar afinidades com as leis judaicas; esta a reacção quando se toma conhecimento de que muitas populações fazem uso da circuncisão ou que guardavam resguardo à carne de porco ou a outros alimentos proibidos pela Sagrada Escritura.54 Mas, e o que se sabia em relação ao cristianismo? Cristãos viviam desde há muito em Alexandria55 e - nos meados do século XVI - existia uma comunidade cristã no Congo. Mas também na Guiné e no Monomotapa aumentava o número de conversões.56 Isto sem esquecer os cristãos etíopes. Com efeito, as notícias dos nautas portugueses sobre o tão procurado rei cristão residente algures entre África e Ásia provocariam grande interesse e furor nos meios culturais europeus. Para além do vasto e largo debate sobre se, de facto, este seria o tão procurado Preste João, visava-se esclarecer a sua existência no interior do continente africano e aprofundar se este reino correspondia ao que se desde sempre se dissera sobre o lendário Preste João. A curiosa cristandade europeia aspirava, pois, conhecer as cerimónias e ritos deste povo que se dizia cristão das primeiras horas e saber se permanecia vivo esse espírito? E mais como decorriam os contactos com o cristianismo europeu? 53. Ezequiel 29, 15-16. 54. Importa aqui salientar pelo menos dois importantes escritos sobre o judaísmo em África: Abraham Rogerius, Offne Thür zu dem verborgene heydenthum..., Nuremberga, 1663 e Georg Friedrich Behaim von Schwarzbach, Asiatische und africanische denckwürdigkeiten dieser zeit, das ist beschreibung der Königreiche, herrschafften und Länder dess grossen mogols [...] neben dem africanischen Judenthum, Nuremberga, 1676. 55. Com o renascimento das obras clássicas, nos finais do século XV, princípios do século XVI desenvolver-se-iam inúmeras pesquisas sobre a língua e cultura gregas. Neste contexto, surgem estudos sobre a Bíblia escrita em grego, como os de Erasmo, Melanchthon e do erudito de Tübingen, Martin Crusius. Salomon Schweigger, um dos alunos deste iniciador dos estudos de cultura grega, aflora alguns temas relacionados com a igreja ortodoxa e o patriarcado em Alexandria na sua Newen Reyßbeschreibung auß Teutschland nach Constantinopel und Jerusalem, Nuremberga, 1608, ed. Graz, 1964, pp. 253-254. Veja-se sobre esta temática Graecogermania. Griechischstudien deutscher Humanisten. Die Editionstätigkeit der Griechen in der italienischen Renaissance (1469-1523), ed. Dieter Harlfinger, Wolfenbüttel, 1989. 56. Veja-se, principalmente, Cornelius Hazart, op. cit., 222 EM DIÁLOGO COM AS NOVIDADES No esclarecimento destas prementes questões alude-se mais uma vez ao facto de os Apóstolos terem pregado por todo o mundo a Boa Nova. Salienta-se que o Apóstolo S. Pedro erguera Antioquia a diocese episcopal, similar a Roma e Alexandria. Antioquia tornar-se-ia, pois, por suas mãos a cidade do cristianismo, visto que: "Foi em Antioquia que, pela primeira vez, os discípulos começaram a ser tratados pelo nome de 'cristãos'".57 Ficando, deste modo, todas as novas comunidades cristãs subjugadas a esta cidade, era aqui que elas deveriam procurar ajuda e conselho. No ano de 637, Antioquia viria, no entanto, a cair nas mãos do sultão do Egipto e, consequentemente, no poder dos maometanos. A diocese episcopal seria então transferida para a Arménia, cujo chefe espiritual e político se chamava Preste João, nome que ele legaria a todos os seus descendentes. Esta também a razão porque as antigas cosmografias o localizavam na Ásia. Com o avanço dos Tártaros, nomeadamente do rei Cenchis, exterminar-se-ia a dinastia do Preste João. Não obstante fosse contra a idolatria gentia, Cenchis ordenou um rei, Georgius, para os cristãos da Arménia, o qual preservaria o cristianismo nesta região. Existiam, no entanto, algumas diferenças na comunidade cristã, uns eram cristãos nestorianos, defendendo o sistema cristológico de que Cristo só teria duas pessoas, uma no céu e outra na terra; outros os jacobitas tinham também um patriarca.58 Passados alguns anos após a dinastia do Preste João, é natural que se instaurassem confusões e daí que os peregrinos ao ouvirem falar do rei da Etiópia, em Jerusalém, o continuassem a chamar de Preste João e que situassem as suas terras em África - esta é, por exemplo, a explicação dada pelo tradutor da obra do padre franciscano Francisco Álvares para a origem do nome do Preste João.59 Com a chegada de informações sobre os usos e costumes da corte do Preste João, largamente divulgadas por homens como Damião de Góis e Francisco Álvares, a cristandade europeia preocupa-se com a deturpada prática religiosa cristã nestas terras africanas. O facto de os cristãos etíopes terem preservado costumes judaicos, como o baptismo anual e a circuncisão ou ainda o sabatismo, gera pouco a pouco algumas objecções e dúvidas. O padre franciscano Francisco Álvares relata na sua Verdadeira Informação das Terras do Preste João60 que é costume baptizarem-se 57. Veja-se Act. 11, 26. 58. A igreja jacobita resultou de uma oposição no Concílio de Chalcedon, no ano de 451, onde se afirmaria monofisista. O nome vem do fundador Jakob Baradäus e o seu chefe é o patriarca de Antioquia. 59. De facto, ao longo de muitos anos haviam-se formulado diversas lendas à volta desse rei cristão. Veja-se cap. 2.6. 60. Lisboa, 1540; Eisleben, 1566. DEUS E AS CRENÇAS ALHEIAS 223 todos no Dia dos Reis, por esse ser o dia em que Cristo se baptizou. Ele, que assistiu a esta cerimónia durante a sua estada no reino etíope, conta que perto da meia-noite, o Preste, seguido de Abuná, seu patriarca, e da rainha se dirigem para um tanque construído propositadamente para o efeito. Terminado este rito, será a vez dos crentes se aproximarem do tanque, onde seriam aguardados, por um padre que os emerge três vezes na água. Álvares refere que tanto o padre como os fiéis nada teriam vestido, estando assim estariam completamente nus na realização deste acto. Quanto ao primeiro baptismo, este dever-se-ia realizar quarenta dias depois do nascimento, no caso de um rapaz, e de sessenta dias se for uma rapariga; ambos seriam, todavia, circuncisados.61 Francisco Álvares observa ainda certas diferenças na forma de festejar, por exemplo, a Quaresma. Na terra do Preste João inicia-se o jejum já dez dias antes do Entrudo, isto é, usam uma quaresma de cinquenta dias em vez de quarenta, sendo o jejuar mais rigoroso e de grande abstinência, dado que só comem pão e água. Também no que respeita ao sacramento da comunhão existiriam diferenças: todos podem comungar sem que para isso se tenham submetido a uma confissão.62 Em relação aos clérigos, Álvares observa que estes, em contraposição com os de Europa, poderiam ser casados. Para isso baseiam-se no concílio de Nicaia que permite aos padres contrairem matrimónio.63 Os seus livros assim o referem, pois já São Paulo o teria autorizado. Numa das conversas entre Francisco Álvares e o Preste João ressaltam algumas discrepâncias, nomeadamente, no que tange a doutrina da igreja romana. Para o padre franciscano só existe uma: a de Roma. Embora, considere que em tempos Antioquia tenha desempenhado um papel fulcral na reunião da igreja e reconheça que São Pedro fora seu bispo, durante cinco anos, Álvares defende que o Apóstolo se mudara para Roma, onde exercera este cargo durante vinte e cinco anos. De acordo com as palavras de Cristo - continua Álvares -, Pedro fundaria a verdadeira igreja e, por isso, o seu sucessor será, em Roma, a cabeça da cristandade.64 Estes alguns dos aspectos que levantariam certas dúvidas quanto às práticas religiosas na Etiópia. Inicialmente procura-se atenuar as divergências. O certo é que seriam descendentes de David e Salomão, que 61. Idem, p. 116-118. 62. Idem, p. 336-343. 63. Idem, p. 124. 64. Idem, p. 260-264. 224 EM DIÁLOGO COM AS NOVIDADES teriam sido convertidos por São Filipe65 e até o Apóstolo São Mateus os teria visitado. E em relação à circuncisão recorda-se, numa postura de aproximação, que São Paulo a teria praticado. Mas com os estreitos e assíduos contactos aumentam também as dúvidas, se entre os etíopes se professa realmente a verdadeira fé em Cristo. A autenticidade da igreja cristã na Etiópia uma questão frequentemente colocada e debatida nos vários escritos do século XVI.66 Um dos letrados que mais se interessou pela religião etíope e que mais a procurou estudar foi Hiob Ludolf. No contexto dos seus trabalhos sobre a Etiópia, a questão religiosa assumiu um lugar de destaque. É o que poderemos constatar já na sua Historia Aethiopica,67 bem como no manuscrito a que deu o título Theologia Aethiopica.68 Este último fornecenos importantes achegas sobre o método utilizado pelo investigador da história religiosa etíope. Nas obras de Francisco Álvares, Damião de Góis e Mattheus Dresser, Ludolf pôde informar-se detalhada e pormenorizadamente acerca das práticas religiosas na Etiópia. Quando, por fim, teve oportunidade de contactar com o etíope residente na Europa, Gregorius, Ludolf pôde então questioná-lo sobre a vida religiosa do seu país natal. Entre os temas focados surgiam questões relacionadas com os escritos que os etíopes consideram sagrados, como a sua posição frente à sagrada Trindade, quais os ritos ou sacramentos - como baptismo, casamento, circuncisão e enterro - que professam, bem como a possibilidade de os sacerdotes contrairem matrimónio. Neste rol de 65. Este teria convertido e baptizado o eunuco da rainha Candace Act. 8, 26-40. Álvares, pp. 157-161. 66. Veja-se, a este propósito, Mattheus Dresser, Oration von dem Jetzigen Zustand der christlichen Kirchen vnd Religion in Morenland vnter Priester Johan, Leipzig, 1583, p. 253: "Ist derwegen dieses der fürnembsten vnnd höchsten Weltthaten/ oder viel mehr der wunderwerck Gottes eines/ dardurch er seine Liebe/ Gnade/ vnd gütigkeit gegen der christlichen Kirchen/ zu dieser letzen Zeit der Welt bezeugt hat: Daß er diese so weit von einander gelegene Christliche Kirchen/ durch eine newe/ zuuor vnerhörte Schiffart gleich zusammen gefüget hat/ oder hat ja die Christen vnsere Mitbrüder/ so fern gegen Mittag in Africa wohnende/ und gezeiget/ damit wenn wir dieselben anschawen/ wir vber dem Zustande vnserer Christlichen Kirchen desto mehr vns freuen sollen/ so viel ein heller Liecht vnd durch die Gnade Gottes angezündet ist." Veja-se ainda David Chytraeu, Was zu dieser Zeit in Griechenland; Asien Africa vnter des Türcken vnd Priester Jiahnns Herrschafften..., Rostock, 1581, (s. L., 1584; edições em latim: Rostock, Frankfurt, Wittenberga, 1580, Wittenberga, 1581, Frankfurt, 1583) und J. Jacob Grasser, Ecclesia Orientalis et Meriodinalis. Eigentliche Beschreibung der Religions artickeln/ darauff die Christen in Asia vnd Africa/ vnten dem Türcken/ Tartar/ Moscowiten/ Persianer/ Priester Johan/ vnnd andern frembden Monarchien gesessen halten, Estrasburgo, 1613. 67. Frankfurt/M., 1691. 68. Veja-se Siegbert Uhlig, Hiob Ludolfs "Theologia Aethiopica", 2 vols, Wiesbaden, 1983. DEUS E AS CRENÇAS ALHEIAS 225 perguntas reconhecemos desde já que o esclarecimento sobre a cristandade na Etiópia é, para além de uma forte vontade de satisfazer uma imensa curiosidade, uma deliberada recolha de exemplos sobre um país cristão longínquo bem capaz de assegurar o debate religioso da ciência teológica coeva. Ludolf estava muito empenhado num intensivo e estreito diálogo com os cristãos etíopes, desejando assim calorosamente um intercâmbio a nível científico.69 Daí que, em 1663, envie para a Eiópia com o apoio do duque Ernst von Sachsen-Gotha-Altenburg um aluno, de nome Johann Michael Wansleben, no intuito de promover um estreito relacionamento entre os dois países. Mas, Wansleben apenas se deslocaria até ao Egipto, onde viria a desistir do contrato feito. Um segundo motivo no empenhamento de Hiob Ludolf em relação aos cristãos da Etiópia diz respeito a uma possível aliança que ambicionava estabelecer com este país na esperança de pôr cobro ao perigo turco que de novo se fizera sentir, em 1683, aquando do cerco a Viena. Por esta razão Ludolf escreve uma carta ao povo etíope formulando um acordo histórico entre os dois povos. Mas também a sua iniciativa, apesar de apoio imperial, não seria granjeada pelo êxito.70 Cristãos, judeus, muçulmanos e gentios, estes os quatro grupos religiosos que, a pouco e pouco, se distribuiam pelo novo espaço descoberto em África. A par e passo traça-se um quadro religioso de cada uma das regiões africanas, a fim de ordenar estes territórios ultramarinos na história religiosa mundial.71 Etiópia, Marrocos, Guiné, Alexandria, Monomotapa, Cabo da Boa Esperança, Angola, Congo e Moçambique faziam também agora parte do aceso discurso hierático europeu.72 Se, no início, é a vontade de conhecer as religiões desconhecidas que determina a busca permanente de novas informações, a partir da década de 60 do século XVII, os teólogos sentem uma enorme necessidade de efectuar uma classificação, ou melhor, uma comparação dos elementos recolhidos. Tal como já tinhamos testemunhado em relação aos usos e costumes de cada povo, também na doutrina teologal se declara urgente 69. Veja-se August Beck, Ernst der Fromme, Herzog zu Sachsen-Gotha und Altenburg, Ein Beitrag zur Geschichte des 17. Jahrhunderts, Weimar, 1865, p. 569-571. 70. Veja-se Uhlig, op. cit., pp. 285-290. 71. Veja-se, por exemplo, Bernhardi Vareni, op. cit. 72. Cf. Kirchen Historia..., 3 vols., Jena, 1566; Aubertus Miraeus, De statu religionis Christianae per Europam, Asiam, Africam et orbem Novum, Colónia, 1619; Hugo Grotius, Von der Warheit der christlichen Religion, Breslau, 1631; Georg Horn, Erzehlung der Kirchengeschichten..., Schaffhausen, 1667. 226 EM DIÁLOGO COM AS NOVIDADES conhecer em paralelo as vivências religiosas espalhadas pelo mundo. Só conhecendo todas as formas possíveis de crer, de viver em acordo com o ser supremo eleito, reservando-lhe um lugar no dia-a-dia, nas cerimónias mortuárias, nos ritos religiosos, se poderá talvez ter uma opinião crítica face ao que se entende como a "verdadeira" religião. Após a recolha factual, realizar-se-á um estudo atento e cuidado; ao colocar, lado a lado, as práticas religiosas da Guiné, da China, da Itália ou da Índia, os doutrinadores procuram, através deste cotejo, encontrar os limites e fronteiras representativas de um comportamento dito religioso. Efectua-se aquilo que poderemos denominar de uma colecção monumental sobre a identidade religiosa, colecção esta em que o continente africano possui uma decisiva participação. Para se construir uma história da religião é preciso reunir as várias formas de religiosidade espalhadas pelo mundo, pois, ao esboçar as similaridades e as divergências, formula-se indubitavelmente a linha evolutiva e impulsionadora do ser humano; o intuito é claro: elaborar um panorama da história das religiões no mundo.73 Um dos exemplos mais representativos neste esforço de debuxar uma geografia religiosa encontra-se na obra de Alexander Ross Religions=Spiegel. Intitulado Der Welt unterschiedlicher Gottes Dienst/ oder Beschreibung aller Religionen vnd Ketzereyen in Asia, Africa, America vnd Europa..., este compêndio, apresenta os credos, as religiosidades e os serviços religiosos de todo o orbe terráqueo desde o início do mundo até ao momento da publicação. O seu autor, partindo do princípio de que nenhum povo será tão selvagem ou barbáro que não acredite vivamente na existência de um ente supremo, considera fundamental e imperioso distinguir as diferentes opiniões em torno do conceito divino, bem como as diversas maneiras encontradas para o servir. Segundo Ross, a luz inerente à palavra de Deus ainda não iluminou todos os homens, e mesmo aqueles que a viram nem sempre a reconhecem no seu dia-a-dia. O seu Religions=Spiegel propõe-se, por isso, ajudar nesta questão, informando sobre a verdade divina. Não obstante esteja consciente de que muitos prefeririam não ter conhecimento da pluralidade e diversidade de religiões, o autor acha que é necessário conhecê-la, pois, como afirma no prólogo: "A Sagrada Escritura refere muitos pecados, ídolos, ou deuses falsos; deverá, por este íncomodo ser castigada" e continua afirmando que se poderá aprender muito com as "ideias hereges", pois "[...] como poderíamos reconhecer a magnificência da claridade se não 73. Recordemos as obras de E.W. Happel e Erasmus Francisci, onde os autores debuxam autênticos inventários culturais de todo o globo, sendo a religião um dos tópicos a aflorar. DEUS E AS CRENÇAS ALHEIAS 227 conhecessemos a escuridão [...] o caminho para o céu estaria cheio de ladrões e assassinos, mas isso não significa que os sigamos e nos modifiquemos. Como os poderemos evitar se não os conhecemos, e como conhecê-los, se eles nos ficam ocultos".74 O propósito deste seu livro é revelar ao leitor os diversos seres divinos, mesmo os mais cruéis, uma vez que a religiosidade, mais do que a razão, é um predicado humano. No seu entender, ajudando a reconhecer o erro, o conhecimento dos diferentes serviços religiosos mostra o verdadeiro caminho para a salvação. Como num manual geográfico, Alexander Ross percorre as várias regiões do globo e apresenta-as, não nas suas características físicas, mas nas suas vivências religiosas. Inicia o seu debuxo com a Ásia, onde destaca os primeiros passos do culto. Seguindo os testemunhos do Antigo Testamento fala do primeiro sacríficio oferecido por Moisés, do templo de Salomão, da construção da primeira catedral e dos profetas, isto é, práticas ilustrativas do nascimento de uma religião. Num pequeno excerto analisa os judeus de "hoje", que considera, severamente, tratar-se de um povo cego e teimoso que, como o Apóstolo diz, se revoltou contra o Espírito Santo.75 Ross que ainda não abdicou de acreditar que alguns se venham a converter, entende que se deverá aceitar judeus numa comunidade cristã na esperança da sua conversão. Depois de percorrer a Ásia, desde a antiga Babilónia até ao Japão, passa ao continente africano e ao americano no mesmo intento de salientar as diferentes zonas de influência do judaísmo, paganismo, maometanismo e cristianismo. Por fim, retem-se na Europa para traçar o seu percurso hierático desde a simples adoração do sol até ao momento presente. Neste contexto, informa-nos detalhadamente sobre a segunda religião europeia: a maometana. Este Religions=Spiegel, entendido como uma obra de consulta, traça o espírito religioso nas suas diferentes variantes e vertentes. Recolhendo as diferentes facetas de manifestações de fé, este espelho não visa apenas localizar e classificar cada uma delas segundo a sua adesão às principais 74. "Die Schrift nennt viel Sünden/ Götzen/ vnd falsche Götter/ soll darumb dieselbe einiger Ungelegenheit halben bestrafft werden? e mais "[...] wie würden wir die Herrlichkeit des Liechts kennen/ wan keine Finsternüsse wäre [...] Der Weg zum Himmel ist beseßt mit allzu viel dieben vnd mördern/ darumb müssen wir auff demselben nicht wandeln. Wie wollen wir aber dieselbe meiden/ wan wir sie nicht kennen/ vnd wie sollen wir sie kennen/ wan sie verborgen werden?". Alexander Ross, Die Welt unterschiedlicher Gottes Dienst/ oder Beschreibung aller Religionen vnd Ketzereyen in Asia, Africa, America vnd Europa, von Anbeginn der Welt/ biß auff gegenwertige Zeit, Heidelberga, 1665, prólogo. 75. "[...] was haben wir dan/ belangend die heutige Juden zu mercken" e responde "[...] daß sie ein blindes/ hartneckoges, halsstarriges Volck seind/ welche wie der Apostel sagt/ dem H. Geist allezeit widerstanden, und in einem verkehrten Sinn übergehen seind". Idem, p. 71. 228 EM DIÁLOGO COM AS NOVIDADES formas de culto, mas intenta, com este mapa religioso, lançar os fundamentos para um debate sobre a essência de devoção. No final deste Religions=Spiegel disserta ainda reflexivamente sobre o papel da religião na vida de um povo. Alexander Ross considera que a crença, fundamento de um governo, será a base consolidadora de todas as repúblicas, bem como de todas as sociedades humanas,76 pelo que, no seu entender, os dirigentes políticos dever-se-iam preocupar com a vida religiosa dos seus cidadãos, tendo em atenção que mais do que um culto religioso num mesmo território poderá pôr em dúvida a segurança nacional. Segundo Ross a "polícia", pedra viva do grande edifício político, fundamentar-se-ia na harmonia, na unidade e na concórdia ditada pela religiosidade.77 Fundamento vital de ligação entre os homens, o espírito devoto é a mola articuladora e essencial de uma sociedade. Estimulados por uma sagaz curiosidade em conhecer outras crenças, os homens de letras chegariam, após um longo processo de classificação, a um novo estádio de reflexão. Aspirando a verdadeira religião, os eruditos europeus iniciam uma auto-reflexão sobre a sua condição de cristão. O facto de tal implicar um debate sobre credos alheios, capazes de reclamar certa atenção, lança algumas objecções e incertezas, originando o que se iria chamar de crise de consciência europeia. Como se poderia justificar ser o Deus cristão o verdadeiro;78 como explicar que muitos outros povos que não o conhecem seriam tão cristãos como os maiores crentes; qual a resposta da Sagrada Escritura à crescente autonomia individual? A abertura do horizonte conhecido, trouxe uma série de novidades, entre elas, de que as fronteiras de relacionamento com o divino não seriam tão claras e explícitas como se tinham julgado, pelo que cada vez seria mais difícil reconhecer "le dieu caché".79 76. Recordemos obras como as de Giovanni Botero; veja-se cap. 3.1.3. 77. "Das Wesen und Leben einer Republick besteht in der Liebe/ Einigkeit und Einträchtigkeit; diese aber werden durch die Religion, dan es ist kein Band so eng und so daurhafftig/ als das von der Religion, wodurchalle die lebendige Steine des grossen Gebäws der Königreichen und stände aneinander gemauret..". Alexander Ross, op. cit., p. 951. 78. Como, por exemplo, Spinoza reflecte no seu Tractatus Theologico-politicus (1600). Vejase Paul Hazard, Die Krise des europäischen Geistes 1680-1715, Hamburgo, 1939, p. 172181. 79. O Deus de Israel e de Jacob pode ser substituído por um deus abstracto, o regente da Ordem do Universo. Este é, contudo, incapaz de milagres. Quanto à tradição parece mentir e a lei de Moisés já não é a palavra que Deus ditou no Monte Sinai, mas sim uma lei humana que traz os vestígios dos Hebreus e dos Egípcios. A Bíblia é um livro similar a muitos outros, cheio de alterações e talvez de arrependimentos, onde se contam histórias e lendas, tal como os livros sagrados de outros povos. Veja-se Paul Hazard, op. cit., pp. 182-183, em especial, a análise do "dieu caché" de Pascal. Veja-se sobre esta temática, Lucien Goldmann, Der DEUS E AS CRENÇAS ALHEIAS 229 Ao descobrir outras vivências religiosas, o cristão procura certificar-se da verdade de Cristo e acredita que esta é verdadeira fé que se deve dar a conhecer ao mundo. O diálogo com os credos alheios interroga, contudo, a sua indelével doutrina, ao descobrir outras religiosidades e comportamentos. Alexander Ross a esta nova questão doutrinal, ainda responde inequivocamente: "[...] melhor uma religião falsa do que nenhuma; melhor uma religião idólatra do que ateísta".80 verborgene Gott, Studien über die tragische Weltanschauung in den "Pensées" Pascals und im Theater Racines, Frankfurt, 1985. 80. "[...] lieber eine falsche Religion als keine; lieber eine abergläubige Religion als die Atheisterey". Alexander Ross, op. cit., p. 876 critica ferozmente os ateístas que não aceitam a religião como fundamento da realidade humana e da polícia. No fim do seu depoimento, Ross define claramente dois grupos, de um lado os que acreditam que a realidade humana se baseia no divino e na salvação da alma, onde inclui os cristãos da igreja ocidental e oriental, os judeus, os maometanos, os gentios e, do outro lado, os ateístas e libertinos.