A arte do blefe: Montaigne e o "mito do bom selvagem"

Transcrição

A arte do blefe: Montaigne e o "mito do bom selvagem"
A arte do blefe:
Montaigne e o "mito do bom selvagem"
José Alexandrino de Souza Filho
José Alexandrino de Souza Filho é professor de língua e literatura francesas
da Universidade Federal da Paraíba. É doutor em literatura francesa
pela Université Michel de Montaigne (Bordeaux 3), onde defendeu a
tese "Civilisation et Barbarie en France au temps de Montaigne", sob
orientação de Prof. Claude-Gilbert Dubois.
JOSÉ ALEXANDRINO DE SOUZA FILHO
i Étienme Jodelle (1532?-1573)
escreveu uma . Ode >, em
homenagem a André Thevet,
o autor das Singularidades da
França Antartica (1557), onde
exalta a figura o selvagem livre
e nu em oposição ao civilizado
hipócrita, em versos como
esses: "Ces barbares marchent
tout nus, Et nous, nous
marchons inconnus, Fardés,
masqués". Ver THEVET,
André. Op. cit. Edition
intégrale, établie, présentée &
annotée par Frank Lestringant.
Paris, Editions Chandeigne,
1997. pp. 311-313.
Pierre de Ronsard (15241585) fez o elogio da vida
simples do indígena brasileiro
em seu DIscours contre
fortune (1560), em termos
semelhantes aos de Jodelle:
"(...) le peuple inconnu, Erre
innocemment tout farouche
et tout nu, D'habits tout aussi
nu qu'il est nu de malice". Ver
RONSARD, P. de. auvres
complètes. Edition établie,
présentée et annotée par Jean
Céard, Daniel Ménager et
Michel Simonin. Tome II, pp.
777-779.
2
3 Ver reprodução em MELO
FRANCO, Afonso Arinos de.
O Índio brasileiro e a Revolução
francesa. As origens brasileiras
da teoria da bondade natural.
Rio de Janeiro, José Olympio
Editora, 1976.
244
Este artigo é dedicado, num primeiro momento, à análise
e discussão do episódio da visita dos índios canibais brasileiros à
França, tal como o escritor e filósofo Michel de Montaigne o descreve
no ensaio "Dos Canibais". Nosso objetivo é demonstrar que ele foi
inventado a partir de determinados fatos históricos, os quais o ensaísta
alterou em prol dos seus objetivos literários, intelectuais e políticos.
Historicamente falando, a visita e, sobretudo, a "conversação" com
os indígenas é um blefe; literariamente, é uma pequena obra-prima
de sagacidade e imaginação criadora. Num segundo momento,
propomo-nos trazer à luz, com base em documentos, as verdadeiras
circunstâncias históricas que serviram de inspiração ao ensaísta francês,
qual o suporte bibliográfico de que se serviu e como esses elementos
aparecem no texto.
Montaigne não foi o primeiro francês a elogiar a vida natural e
despreocupada dos índios brasileiros. Os poetas Jodelle' e Ronsard 2,
expoentes de um movimento cultural de valorização da língua e
literatura francesas, a Plêiade, o precederam nesta seara. Em 1580,
Montaigne publicou, no livro I dos Ensaios, um capítulo inteiramente
consagrado a descrever a vida, os costumes e os valores dos povos
"primitivos" do Brasil. Montaigne escreve o ensaio propondo ao
seu leitor um exercício de reflexão que começa pela relativização do
conceito de "bárbaro" e "selvagem", ilustrado por uma anedota (no
sentido de "relato sucinto de um fato curioso"), passa pela descrição
do meio-ambiente local, o tipo de moradia, a alimentação, as crenças,
o modo de vida e os valores da sociedade indígena, e se encerra com
a descrição da visita de um grupo de indígenas brasileiros à cidade
francesa de Rouen. Este episódio contribuiu grandemente para a
fortuna literária do ensaio e Montaigne entrou para a história como
um dos precursores de idéias de caráter "socialista" e revolucionário,
na medida em que denunciou, pela voz dos canibais, a injustiça social.
Um exemplo disto é o quadro pintado por Moreau le Jeune, no século
da Revolução Francesa, representando a chegada de Jean-Jacques
Rousseau aos Campos Elíseos, o paraíso da sociedade perfeita e da
felicidade coletiva, onde é recebido, com um aperto de mão, por Platão,
o ideólogo da República, tendo a seu lado Montaigne 3.
Montaigne escreveu, oito anos depois, quando do lançamento
do livro III, outro ensaio chamado "Dos coches" (III, 6), em que trata
da colonização do Novo Mundo. Neste, embora o escritor se detenha
no trágico fim das civilizações do México e do Peru, aniquilados pela
barbárie espanhola, Montaigne retoma a mesma idéia exposta no
ensaio sobre os índios brasileiros: esses povos são ingênuos e puros
como as crianças, pois ainda não haviam sido corrompidos por nós
e nossa civilização. Uma das chaves interpretativas utilizadas pelos
A ARTE DO BLEFE: MONTAIGNE E O "MITO DO BOM SELVAGEM"
humanistas consistia em associar os ameríndios aos homens da idade
do ouro de que falava o mito pagão celebrado por Hesíodo, Platão e
os poetas latinos Catulo, Ovídio e Virgílio, em razão da semelhança
imaginada entre as condições de vida daqueles povos (simplicidade,
abundância de recursos naturais, suposta longevidade, sociedade
igualitária etc.) e o tempo, na narrativa mitológica grega, em que os
homens viviam numa espécie de paraíso, em harmonia e bem-estar
coletivos. Os "selvagens" do Novo Mundo foram também comparados
aos cristãos primitivos, por terem supostamente a alma pura e serem
receptivos à doutrina cristã.
No contexto intelectual da época, os ensaios "americanos" de
Montaigne pretendem se contrapor àqueles que diziam serem os
índios intelectualmente e moralmente inferiores aos europeus, o que
poderia justificar sua eliminação física ou escravidão. Nesse sentido, ele
apresenta provas da "suficiência" intelectual dos índios, citando duas
canções" que, segundo ele, nada têm de "bárbaro", pois revelariam, ao
contrário, uma rica imaginação e dotes "literários" que nada ficariam
a dever às européias.
Quando geralmente se faz alusão ao ensaio de Montaigne,
costuma-se citar o episódio da "conversação" com os índios como
sendo um fato verídico, um exemplo do choque de culturas advindo
da descoberta da América. Alguns especialistas, porém, já observaram,
há muito, que o conteúdo da conversação foi inventado pelo escritor, o
qual teria posto na boca dos canibais brasileiros palavras que ele próprio
gostaria de proferir. Um caso clássico de "engenharia literária", de
criação de um artifício retórico para, pela voz de outrem, fazer passar
suas próprias idéias, como Montesquieu faria depois com Usbek, seu
porta-voz nas Cartas Persas.4 Essa interpretação, que pressupõe um
olhar crítico "não ingênuo", não apresentava, porém, elementos de
provas ou indícios objetivos que fundamentassem um julgamento
circunstanciado. A explicação se deve talvez ao fato de Montaigne ser
muito persuasivo, como aliás já observara Afonso Arinos, um crítico
atento às "armadilhas" do charme literário do escritor :
((
Se nos libertarmos da influência feiticeira que este mago das
idéias exerce sobre quem o lê, se nos defendermos contra o
prodigioso encantamento que das suas páginas imortais se
desprende, que encontramos em Michel de Montaigne ?
Um cerebral, que olhava a natureza como se ela fosse um
sistema, cuja chave reveladora fosse o raciocínio, e que via no
homem apenas o instrumento dócil desse sistema superior.
Um revolucionário para quem a ereção da natureza em
sistema lógico equivalia à elaboração de uma teoria subversiva
Cf. ATKINSON, Geoffrey.
Les Nouveaux Horizons dela
Renaissance Française. Paris,
Librairie Droz, 1935, pp.
355-356.
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JOSÉ ALEXANDRINO DE SOUZA FILHO
e vitoriosa, porque inevitável e fatal. Artifício semelhante
serviria, depois, aos marxistas hegelianoss .
A partir do momento em que são investigadas as circunstâncias
históricas relativas aos fatos narrados no ensaio, começa-se a perceber
que há elementos contraditórios, os quais criam certo embaraço
crítico, mas estimulam a pesquisa. Comecemos por apontar as
inverossimilhanças históricas do texto.
O embaraço crítico
Antes de submeter o texto montaigniano à análise histórica, é
oportuno transcrever aqui o episódio de que vamos tratar. Ao final do
ensaio, Montaigne conta como se deu a "visita" dos índios canibais,
segundo seu próprio testemunho:
'MELO FRANCO, A. A. de.
Op. cit., pp. 121-122.
MONTAIGNE, Michel
de. Les Essais. Edition de
Pierre Villey. Paris, Presses
Universitaires de France,
1999, pp. 213-214. As
diferentes camadas do texto
montaigniano são indicadas,
respectivamente, pelas letras:
[A], correspondente à primeira
edição dos Ensaios, de 1580,
[B], referente à segunda edição,
de 1588, e [C], que remete
aos numerosos acréscimos
manuscritos feitos pelo autor
em seu exemplar pessoal (hoje
conhecido com "Exemplar
de Bordeaux", conservado
na Biblioteca Municipal da
cidade) e incorporados às
edições posteriores.
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[A] Trois d'entre eux, ignorans combien coutcra um jour à
leur repos et à leur bon heur ia connoissance des corruptions
de deça, et que de ce commerce naistra leur ruyne, comme
je presuppose qu'elle soit desjà avancée, bien miserables de
s'estre laissez piper au desir de la nouvelleté, et avoir quitté la
douceur de leur ciel pour venir voir le nostre, furent à Roüan,
du temps que le feu Roy Charles neufiesme y estoit. Le Roy
parla à eux long temps; on leur fit voir nostre façon, nostre
pompe, la forme d'une belle ville. Apres cela quelqu'un en
demanda leur advis, et voulut sçavoir d'eux ce qu'ils y avoient
trouvé de plus admirable: ils respondirent trois choses, d'ou j'ay
perdu la troisiesme, et en suis bien marry; mais j'en ay encore
deux en memoire. Ils dirent qu'ils trouvoient en premier lieu
fort estrange que tant de grands hommes, portans barbe, forts
et armez, qui estoient autour du Roy (il est vray-semblable
que ils parloient des Suisses de sa garde), se soubsmissent à
obeyr à un enfant, et qu'on ne choisissoit plus tost quelqu'un
d'entr'eux pour commander; secondement (lls ont une façon de
leur langage telle, qu'ils nomment les homrnes moitié les uns
des autres) qu'ils avoyent aperçeu qu'il y avoit parmy nous des
hommes pleins et gorgez de toutes sortes de commoditez, et
que leurs moitiez estoient mendians à leurs portes, décharnez
de faim et de pauvreté; et trouvoient estrange comme ces
moitiez icy necessiteuses pouvoient souffrir une telle injustice,
qu'ils ne prinsent les autres à la gorge, ou missent le feu à leurs
maisons. 6
A ARTE DO BLEFE: MONTAIGNE E O "MITO DO BOM SELVAGEM"
Existem dois tipos de dificuldade para dar credibilidade
histórica ao relato, tal qual Montaigne o apresenta no ensaio "Dos
Canibais" (I, 31). O primeiro deles se refere às circunstâncias em que os
eventos teriam acontecido. Os especialistas e biógrafos de Montaigne
que detiveram-se nos detalhes desse episódio se confrontaram com
o problema de validá-lo historicamente, uma vez que o escritor situa
na cidade de Rouen o encontro dos índios brasileiros com o rei
francês Carlos IX. Do nosso conhecimento, apenas três estudiosos
investigaram a questão. Após minuciosa pesquisa, Alphonse Grün
concluiu: o Maintenant, comment expliquer le passage des Essais,
la presence simultanée à Rouen de Charles IX, de Montaigne et
des sauvages ? Je ne sais; dans l'impossibilite de concilier les faits, je
ne puis que risquer des conjectures 0 7 . Marcel Françon, em artigo
publicado no Bulletin de la Société des Anis de Montaigne, examinou
a questão, mas deixou perguntar no ar: "Il y eut bien des sauvages, à
l'entrée de Charles IX, à Troyes, le 23 mars 1564, et à Bordeaux, le 9
avril 1565 ; mais je n'en ai pas vu de mentions eu 1562, ai à Rouen.
Montaigne a-t-il confondu ces différentes « entrées royales » (en 1550,
1564 et 1565) ? A-t-il utilisé des descriptions de sauvages, plus qu'il
n'ait vu lui-même des Brésiliens ? »8 . Finalmente, Michel Simonin,
especialista em Montaigne e biógrafo de Charles IX, se confrontou
com os mesmos problemas que seus predecessores: "Quand cette
entrevue, à laquelle Montaigne dit avoir assiste et même participé
puisqu'il nous apprend un plus loin qu'il s'est lui-même entretenu
avec leur truchement, c'est-à-dire leur interprete, a-t-elle réellement
eu lieu? Ii ne sernble pas qu'elle ait été à ce jour rnise en doute. Mais oi
la placer? II est difficile de la fixer aux jours suivants la chute de la
ville en 1562, mais tout aussi onéreux de l'imaginer l'année suivante,
comme nous le verrons. L'auteur des Essais a-t-il commis ici une
confusion et devons-nous lire « Bordeaux » plutôt que « Rouen »,
lorsque Charles IX fit étape dans cette ville au cours de son grand
tour et ou des Indiens lui furent presentes ? » 9. Não há nenhum
outro registro, à parte o de Montaigne, dando ciência da presença de
índios brasileiros no ano de 1562, durante parte do qual a cidade de
Rouen esteve sitiada. Além disso, o contexto em que o escritor situa o
encontro parece não corresponder à descrição feita pelo mesmo. Uma
das inverossimilhanças históricas do texto montaigniano, admitindose por um instante a implausível possibilidade que nenhum outro
testemunho desses fatos tenha chegado até nós, posto que o rei se
fazia acompanhar de expressivo número de nobres e cortesãos letrados,
deve-se ao fato dele ter situado o encontro em uma "bela cidade". Não
que a capital da Normandia e epicentro do comércio do pau-brasil
não fosse uma bela cidade. Era sim, e mais: Rouen era a segunda mais
GRÜN, Alphonse. La
vie publique de Michel de
Montai gne. Etude biographigue.
Geneye, Slatkine Reprints,
1970, pp. 143-144. Primeira
edição: 1855.
FRANCON, Marcel.
Montaigne et les Brésiliens.
Notes sur les Chansons
bresiliennes BSAM,
série, n° 16, oct-dée 1975, pp.
73-75. A citação encontra-se
à p. 74.
SIMONIN, Michel. Charles
IX Paris, Fayard, 1995, pp.
105-106. Grifo nosso
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JOSÉ ALEXANDRINO DE SOUZA FILHO
importante, mais populosa e próspera cidade francesa do século XVI,
depois de Paris". Mas o cenário de uma cidade semi-destruída, após
mais de seis meses de violentos confrontos armados entre o exército
católico francês e as milícias de insurgentes protestantes, parece não
se adequar, naquele momento, à descrição que dela se dá. Montaigne
fala também de "nossa pompa" e "nossas maneiras", o que sugere uma
ambientação de luxo e uma atmosfera solene. Ora, essas informações
remetem a um acontecimento típico da época: as entradas reais.
O segundo tipo de inverossimilhança aparece no próprio
ensaio, quando confrontamos alguns elementos da narrativa com os conhecimentos históricos de que se dispõe sobre as entradas reais.
Montaigne conta que os índios brasileiros se escandalizaram diante
do espetáculo da desigualdade social na França, em que os pobres
mendigavam à porta dos ricos. As entradas reais eram espetáculos
grandiosos, minuciosamente preparados com antecedência, e um dos
procedimentos consistia em evacuar os mendigos para fora dos muros
da cidade antes da chegada do rei. Ora, como poderia ser possível
que os índios brasileiros pudessem ter notado desigualdades sociais
na França se essas haviam sido temporariamente abolidas? Como
poderiam ter visto mendigos se eles não estavam lá? Investiguemos
primeiramente o que se passou em Rouen "no tempo em que o re;
Carlos IX lá estava", segundo Montaigne.
O sítio de Rouen
" Ver BENEDICT, Philip.
Rouen during lhe Wars of
Religion. Cambridge University
Press, 1981, pp. 1-45, e
MOLLAT, Michel (dir.).
Histoire de Rouco. Toulouse,
Edouard Privat Editeur, 1979.
"-Sobre o cerco de Rouen, ver
CHERUEL, André. "Siege
de Rouen en 1562". Revoe
de Rouco et de Normandie.
Dix-huitième année. Rouco,
Imprimerie de A. Péron, 1850,
pp. 169-179 ; BEAURAIN,
Narcisse. La Porte SaintHilaire. Episodes d'Histoire
Locale. Rouen, Imprimerie
Léon Deshays, 1880, pp. 1929 ; FLOQUET, A. Histoire
du Parlement de Normandie.
Rouen, Edouard Frere Editeur,
MDCCCXL, Tome II, pp.
380 ssq. ; MOLLAT, Michel
(dir). Op. cit., pp. 179-203.
248
O cenário em que Montaigne situa os curiosos fatos narrados
em seu ensaio era catastrófico. Quando a regente Catarina de Médicis
decidiu enviar seu filho, o rei Carlos IX, à época um garoto de 12 anos,
a Rouen, havia cerca de seis meses que a cidade fora tomada pelos
protestantes, causando uma série de problemas à coroa". Em primeiro
lugar, a sedição dos habitantes protestantes da capital da Normandia
era uma ameaça à politica de tolerância religiosa que a rainha tentava
implantar na França, com a ajuda do Chanceler Michel de L'Hospital;
em segundo lugar, o cerco à cidade custava caro aos cofres reais, pois
tnn número expressivo de soldados e armamentos havia sido enviado
para combater os insurgentes, sem sucesso; finalmente, o longo sítio
à cidade provocava problemas de abastecimento em Paris, em razão
das dificuldades de navegação sobre o rio Sena, o mesmo que passava
por Rouen. Após frustradas tentativas de armistício, o exército real
investiu violentamente sobre a cidade até conseguir abrir uma brecha
no muro, na altura da porta Saint Hilaire, no dia 25 de outubro de
1562. Três dias depois, o rei entra na cidade, simbolizando a retomada
do poder político, militar e religioso. Todos os testemunhos oculares
A ARTE DO BLEFE: MONTAIGNE E O "MITO DO BOM SELVAGEM"
O sítio de Rouen em 1562. Gravura
atribuída a André Thevet. Inverossímel
cenário do encontro e "conversação"
entre o rei Carlos IX e os índios
canibais brasileiros, segundo conta
Montaigne
249
JOSÉ ALEXANDRINO DE SOUZA FILHO
12 « Le 1" novembre 1562,
jour de la Toussaint, le otite
catholique interrompu depuis
le 3 mai, recommence ; on
célebre à Notre-Dame une
grande messe à laquelle
assistait Charles IX et toute sa
cour. Nudité déplorable de la
cathédrale de Rouen, lors de la
cérémonie ”. FLOQUET, A.
Op. cit., p. 468.
"D'AUBIONE, Agrippa.
Histoire universelle. Editée avec
une introduction et des notes
par André Thierry, Tome II,
Livre III, Chapitre X, p. 93.
250
da queda de Rouen são unânimes em afirmar que a cidade estava
semi-destruída; no dia 1° de novembro, o rei compareceu à missa na
imponente catedral da cidade, mas o estado dela era de uma "nudez
deplorável"" ; alguns estimaram em 4.000 o número de mortos".
Montaigne fazia parte dos membros da corte que acompanhavam
o rei até Rouen. Na época, ele era conselheiro do Parlamento de
Bordeaux e havia sido enviado em missão à capital, onde prestou
juramento de fé católica no Parlamento de Paris, no dia 12 de junho,
antecipando-se aos seus colegas bordeleses. Se não há indícios que
permitam confirmar as informações do ensaio, em contrapartida, o sítio
de Rouen parece ter fornecido outros elementos para a composição,
pois um dos personagens citados estava presente naquela ocasião. É
possível que Montaigne tenha avistado, e talvez mesmo conversado
com Nicolas Durand de Villegagnon, durante o cerco à cidade. O excomandante da França Antártica participou ativamente das batalhas
contra os protestantes locais, mas saiu ferido por um disparo de arma
de fogo. Ao seu lado, encontrava-se Antoine de Bourbon, um dos
chefes militares da operação e pai do futuro rei Henrique IV, que veio
a falecer. Montaigne diz no seu ensaio que colheu as informações sobre
os índios brasileiros através de um empregado seu, que teria vivido
"dez ou doze anos" no Brasil e que teria participado da aventura da
França Antártica, sob o comando de Villegagnon. Este homem, que
ele define como "simples e rude", poderia lhe fornecer, de maneira
mais pura e fidedigna, as informações de que precisava, justamente
porque era ignorante. Os iletrados, dizia Montaigne, os que não têm
pretensões intelectuais, eram mais confiáveis do que os relatos dos
viajantes e os livros dos cosmógrafos, pois eles não têm geralmente
preconceitos ou interesse em alterar aquilo que efetivamente viram.
Eles não teorizavam, apenas descreviam objetivamente aquilo que
viram com seus próprios olhos. Os cosmógrafos, por pretenderem tudo
descrever, freqüentemente alteravam as informações ou as deturpavam,
segundo suas opiniões pessoais ou preconceitos. Ao tecer esses
comentários, Montaigne pensava certamente no cosmógrafo André
Thevet, o primeiro historiador do Brasil, autor das Singularidades da
França Antártica (1557). Jean de Léry, um dos protestantes enviados
por Calvino à pedido de Villegagnon, acusava Thevet, no seu livro
Historia de uma viagem feita à terra do Brasil (1578), de ser falsário e
de "mentir cosmograficamente". Não é possível afirmar com segurança
que este empregado que Montaigne diz ter tido existiu de fato, ou
se foi mais uma invenção do escritor para dar credibilidade ao seu
discurso. Vários críticos já observaram que a maioria das informações
apresentadas por Montaigne estavam disponíveis em livros publicados
sobre o Brasil, sobretudo os de Thevet e Léry. Afonso Arinos de Melo
A ARTE DO BLEFE: MONTAIGNE E O "MITO DO BOM SELVAGEM"
Franco, por exemplo, fez um minucioso trabalho de cotejo entre o
texto de Montaigne e a florescente literatura "geográfica" sobre o Novo
Mundo, mostrando de onde provavelmente o ensaísta colheu essa ou
aquela informação". A presença de Villegagnon durante o sítio de
Rouen poderia dar margem a especulações extremadas, como pensar
que ele se fizesse acompanhar de alguns "selvagens" brasileiros. Sabese que o ex-comandante da França Antártica regressou à França, em
meados de 1559, acompanhado de um grupo de índios, os quais teriam
sido "ofertados" a personalidades da corte, amigos e parentes, como
seu irmão Philippe Durand, prefeito de Provins, sua cidade natal".
Embora teoricamente possível, a hipótese carece de fundamentação
histórica, em razão, como já dissemos, da inexistência de testemunhos
(tanto mais em se tratando de uma presença tão inusitada), e também
pelo fato de Villegagnon estar preocupado em limpar sua imagem e
recuperar prestígio junto à corte. Ele era objeto de uma campanha de
difamação pelos protestantes, que o comparavam ao ciclope Polifermo,
em razão da sua personalidade violenta e do tratamento desumano
dado aos reformistas no Brasil. Além disso, ele teve que prestar contas
ao rei pelo fracasso da colônia. Ainda assim, Villegagnon conseguiu
uma indenização do rei de Portugal pelos prejuízos sofridos". É pouco
crível que ele se fizesse acompanhar de índios brasileiros, pobres
guerreiros armados apenas de arco e flecha para combater numa guerra
feita à base de armas de fogo, além de se expor ao ridículo perante o
rei e a corte.
As dúvidas levantadas pelas inverossimilhanças do texto
montaigniano começam a ser esclarecidas a partir do momento em
que sabemos que os personagens envolvidos nessa história — o rei
francês, os canibais brasileiros e Montaigne — estiveram realmente
presentes em outra ocasião, cerca de três anos depois, na cidade de
Bordeaux, onde Montaigne nasceu e morava, durante a entrada real de
Carlos IX. Diferentemente do inverossímil encontro em Rouen, o de
Bordeaux é fartamente documentado. A análise dessa documentação
ajuda a esclarecer passagens obscuras do ensaio ao mesmo tempo em
que mostra as reais circunstâncias do encontro, desvelando o blefe.
Existem outras informações relevantes e que parecem confirmar
as suspeitas. Montaigne conta, logo após a passagem do encontro
dos índios com o rei, a conversa que ele próprio teria tido com os
canibais. Segundo o ensaísta, a comunicação não se estabeleceu
satisfatoriamente por causa das limitações intelectuais (bestise) do
seu intérprete (truchement) francês. Montaigne perguntou aos índios
como seu chefe ("roi") era acolhido pelos moradores das aldeias sob seu
comando, quando as visitava. Ou seja, como eram as "entradas reais"
no país dos canibais. Esta informação é fornecida en passant, mas se
m MELO FRANCO, Afonso
Arinos. op. cit., pp. 113-118.
IS Sobre a participação
de Villegagnon no sitio
de Rouen, ver o relato do
pároco de Provins, Claude
HATON. Mémoires. Le récit
des événements arco nplis de 1553
à 1582, principalement dans la
Champagne et la Brie. Publiés
par M. Félix Bourquelot.
Paris, Imprimerie Impériale,
MDCCCLVII, Tome 1, p.
287.
Ver HEULHARD, Arthur.
Villegagnon, roi d'Anzérique.
Un homme de mer au XVI' siècle
(1510 1572). Paris, Ernest
-
Laroux, 1897, pp. 241-242.
251
JOSÉ ALEXANDRINO DE SOUZA FILHO
revela preciosa para nós, pois tal curiosidade não poderia se explicar
se o cenário real do encontro com os canibais não fosse uma entrada
real, com tudo o que isso implicava em luxo e cerimonial.
Je parlay à l'un d'eux fort long temps; mais j'avois un
truchement qui me suyvoit si mal, et qui estoit si empesché
à recevoir rnes imaginations par sa bestise, que je n'en peus
tirer guiere de plaisir. Sur ce que je luy demanday quel fruir
ii recevoit de la superiorité qu'il avoit parmy les siens (car
c'estoit un Capitaine, et nos matelots le nommoient Roy),
il me dict que c'estoit marcher le premier à la guerre ; de
combien d'hommes II estoit suyvy, il me montra une espace de
lieu, pour signifier que c'estoit autant qu'il en pourroit en une
telle espace, ce pouvoit estre quatre ou cinq mille hommes ;
si, hors la guerre, toute son authorité estout expirée, ii dict qu'il luy
eu restoit cela que, quand ii visitoit les vilages qui dependoient de
luy, ou luy dressoit des sentiers au travers des hayes de leurs bois,
par ofl ilpeutpasser bien à l'aise"
MONTAIGNE, Michel de.
Op. cit., p. 214. Grifo nosso.
17
" MONTAIGNE, Michel
de. (Euvres computes. Textes
établis par Albert Thibaudet et
Maurice Rat. Introduction et
notes par Maurice Rat. Paris,
Gallimard, 1962, pp. 13471360.
'9 Ver GRAHAM, Victor
E. 8c McALLISTER
JOHNSON, W. The royal
tour of France by Charles IX
and Catherine de' Médici.
Festivais and Entries. Toronto,
Un iversi ty of Toronto
Press, 1979; BOUTIER,
Jean, DEWERPE, Alain 8c.
NORDMAN, Daniel. Un tour
de France royal — Le voyage de
Charles IX (1564-1560. Paris,
Editions Aubier Montaigne,
1984.
2" JOUAN, Abel. Recuei!
et Discours da voyage da roy
Charles IX [etc.]. A Paris,
Pour Jean Bonfons Librairie,
en la rue neufve nostre Dame,
à l'enseigne S. Nicolas.
m.D.Lxvi. Avec privilege
du roy.
252
A entrada de Carlos IX em Bordeaux
Para contextualizar essa entrada, é necessário lembrar as
circunstâncias que a motivaram. Elas nos remeterão uma vez mais a
Rouen. Depois da retomada em 1562, Catarina de Médicis escolhera
essa cidade para que seu filho Carlos IX declarasse sua maioridade.
A cerimônia se deu no dia 17 de agosto de 1563, no Parlamento
da Normandia. A esse respeito, é necessário descartar qualquer
possibilidade de Montaigne ter estado presente à mesma, já que
ele vivia nessa época uma dolorosa experiência: a agonia e a morte,
acontecida em Germignan, perto de Bordeaux, no dia 18 de agosto
de 1563, do seu grande amigo Etienne de La Boétie. Em 1571, ele
publicou a carta que enviou ao pai descrevendo as duas angustiantes
semanas passadas junto ao leito de seu querido amigo'''. Após a
declaração da maioridade do seu filho, Catarina de Médicis organizou
uma espécie de "tour de France" real, cujos objetivos eram mostrar aos
franceses seu novo rei, resolver problemas políticos, administrativos e
religiosos em diferentes regiões e cidades do país, além de encontrarse com sua filha Elizabeth, rainha da Espanha, e tratar de questões
politicas com o duque d'Albe, representante de Felipe II, em Bayonne,
perto da fronteira espanhola.' 9 A grande viagem durou mais de dois
anos (de 24 de janeiro de 1564 a 1° de maio de 1566), durante os quais
o sommelier do rei, Abel Jouan, manteve um diário narrando os fatos
acontecidos em cada etapa e as distâncias percorridas 20. Conforme já
A ARTE DO BLEFE: MONTAIGNE E O "MITO DO BOM SELVAGEM"
dissemos, dentre os preparativos para a visita do rei, estava a evacuação
dos mendigos e desocupados para fora dos muros da cidade. O
Parlamento de Bordeaux deliberou, então, "purger la Ville de tous
vagabons 8c. mal vivans" 21 . O rei fez sua entrada em Bordeaux no dia
9 de abril de 1565, e os "Registros secretos" do parlamento da cidade
atestam a presença, entre seus membros, do conselheiro Michel de
Montaigne, que desfilou diante do palanque do rei, juntamente com
seus colegas magistrados 22.
Durante o desfile, Montaigne pôde certamente assistir ao
encontro dos representantes das "nações estrangeiras" com o reiadolescente Carlos IX (então com 15 anos). Era costume das entradas
reais da época exibir grupos de estrangeiros exóticos, que desfilam
na condição de cativos. O costume se explica pelo fato das entradas
reais francesas terem sido inspiradas no modelo dos "triunfos"
romanos que eram celebrados por ocasião do retorno dos generais
(Julio César, Paulo Emilio etc.) à Roma, depois de terem vencido
os bárbaros". Dessas campanhas militares, eles traziam, além das
riquezas do butim de guerra, alguns nativos como prova do sucesso.
Durante o Renascimento francês, este costume pagão foi adaptado à
cultura cristã, de maneira que se fixou em doze o número de grupos
de estrangeiros cativos. O objetivo era criar uma associação entre o rei
francês e a figura do Cristo (e seus doze apóstolos) ou do Messias (e as
doze tribos de Israel), com base numa ideologia de caráter nacionalista
fabricada por humanistas a serviço da monarquia, como justificativa
para o projeto francês de expansão geopolítica, em âmbito americano,
e de proeminência política, em âmbito europeu 24.
Dentre os grupos de "nações estrangeiras" exibidos em Bordeaux
naquela ocasião, havia três formados por índios brasileiros. O encontro
se deu da seguinte maneira: o representante de cada um dos doze
grupos subiu ao palanque do rei e fez, em sua lingua nativa, uma
arenga" ao monarca francês. Esses discursos eram traduzidos por
intérpretes franceses. Os testemunhos oculares desse fato não fazem
nenhuma alusão ao conteúdo dos discursos e nem mencionam qualquer
reação inusitada dos presentes aos mesmos. O primeiro escrivão do
Parlamento de Bordeaux, maitreJacques de Pontac, fez uma descrição
minuciosa da entrada. Ele registrou, por exemplo, pouco antes do
início do desfile do corpo social da cidade, um incidente envolvendo
o primeiro presidente do Parlamento de Bordeaux, Jacques Benoist de
Lagebaston, e o próprio rei, o adolescente Carlos IX, então com quinze
anos. Entediado com o longo e cansativo discurso de boas-vindas que
Lagebaston pronunciava, Carlos IX interrompeu-o bruscamente e,
levantando-se de sua poltrona, fez uma breve mas incisiva declaração
2 ' Cf. GODEFROY,
Théodore &Denys. Le
Ceremonialfrançois, tomo I,
p. 912.
« Registre secret du
Parlement de Bordeaux »
(cópia Verthamon), tomo 16,
pp. 570-574.
Ver CHARTROU, JosepheMarie. Les Entrées Solennelles et
Triomphantes à la Renaissance
(1484 1551). Paris, Les Presses
-
Universitaires de France,
1928; GUENÉE, Bernard
&LEHOUX, Françoise. Les
entrées royalesfrançaises de 1328
à 1515. Paris, Editions du
CNRS, 1968.
Uma das mais significativas
ilustrações dessa ideologia
se deu durante a entrada
em Rouen de Henrique H
e Catarina de Médicis nos
dias 1° e 2 de outubro de
1550, através de alegorias
e de espetáculos como uma
encenação teatral em escala
natural (posteriormente
batizada de "festa brasileira"
pela historiografia francesa)
e uma naumaquia (simulação
de um combate naval). Pela
abundância de elementos
para analise e pela relevância
histórica do acontecimento,
considerado por especialistas
como a mais espetacular das
entradas franceses do século
XVI, o assunto merece que se
lhe dedique todo um artigo,
o que esperamos poder fazer
oportunamente.
24
253
JOSÉ ALEXANDRINO DE SOUZA FILHO
" Messire Jacques Benoist
de Lagebaston, premier
President, lui a fait une si
grande et longue harangue que
le Roy s'en fachant lui a coupé
propos et sans attendre ce qu'il
eut achevé a dit : Je lotie ma
justice du bon devoir qu'elle a
fait et si] y a aucun qui tienne
encore les armes en la maio,
j'en ferai telle justice qu'elle
sera exemplaire aux autres ;
ayant dit ceci, s'est leve de son
siege ensemble lesdits quatre
presidens, moi et le premier
huissier et avons demeuré
sur ledit echaffaut attendans
Ia Compagnie de la ville qui
passoient...... Registre secret
du Parlement de Bordeaux
(cópia Verthamon), tomo 16,
pp. 908-909.
L'Antiquité de Bourdeaus et de
Bourg, presentée au Roi Charle
neufiesme, le treziesmejour du
mais arAvri hm mille cing cens
soixante & cing, a Bourdeaus, &
lhors premierement publiée, mais
depuis reveza', & augmentée, &
a reste autres unun.ltion enrichie
de plusieurs figures, par son
aucteur Elie Vinet. A Bourdeaus,
Par Simon Millanges, rtie Saint
pres Ia maison de la ville,
1574. A primeira edição, de
1565, foi impressa em Poitiers
por Enguilbert de Marneuf,
pois Bordeaux ainda não tinha
editora.
Montaigne conta, no
capítulo De l'institution
des enfans (I, 26), que
representou papéis em algumas
dessas peças, quando aluno:
"[B] j'ai soustenu les premiers
personnages és tragedies latines
de Bucanan, de Guerente et de
Muret, qui se representerent en
nostre college de Guienne avec
digo ité ”. MONTAIGNE,
Michel de. Op. cit., p. 176.
27
254
sobre a proibição do porte de armas de fogo, uma das medidas
adotadas pelo Chanceler Michel de L'Hospital para tentar conter
a violência dos conflitos entre católicos e protestantes 25. Maitre De
Pontac apenas registra que o representante ("capitaine") dos gregos,
uma das "nações estrangeiras", "subiu ao palanque e fez ao rei sua
arenga", para acrescentar em seguida que "il faisoit beau voir" o desfile
dos povos exóticos. Outros testemunhos da cena (dos quais falaremos
adiante), disseram que todos os representantes discursaram diante
do rei. Tratava-se provavelmente de discursos formais, previamente
((
encomendados" pelo cerimonial com o objetivo de exaltarem a figura
do rei. A partir desse cenário inusitado, a imaginação de Montaigne
criou uma "conversação" que não existiu de fato, e o escritor pôde,
dessa maneira, emprestar voz aos canibais para mostrar a relatividade
das culturas e criticar o descaso das autoridades em relação aos mais
necessitados.
Por que Montaigne, afinal de contas, trocou o cenário do
encontro entre o rei francês e os canibais brasileiros, transferindo
para Rouen fatos que aconteceram em Bordeaux? Porque ao fazer a
ação se passar na capital da Normandia, Montaigne estava livre para
pôr na boca dos canibais suas próprias idéias e sentimentos, o que
não poderia se dar no caso de Bordeaux, em que a cena das arengas
das doze "nações estrangeiras" foi testemunhada por muitos dos seus
concidadãos, alguns dos quais poderiam eventualmente desmenti-lo.
Além do mais, quando ele publica o ensaio, em 1580, Carlos IX já
não era vivo.
Documentação impressa
A entrada de Carlos IX em Bordeaux suscitou a publicação de
duas obras. A primeira delas, escrita especialmente para a ocasião,
é a Antiquité de Bourdeaus, primeira história da cidade, escrita pelo
humanista Elie Vinet, diretor do Colégio da Guiana, onde Montaigne
estudou'''. No século XVI, floresceu na França, bem como em outros
países europeus, um novo gênero literário: as Antiguidades, que eram
a reconstituição erudita da história de uma cidade, tendo como base,
principalmente, os vestígios arqueológicos e os testemunhos de
geógrafos e historiadores gregos e latinos. A obra foi entregue ao rei
pelo próprio autor na sexta-feira, dia 13 de abril de 1565, conforme
consta do subtítulo da obra, quando da apresentação de "passetemps"
para divertimento do rei, em visita ao Colégito. Esses consistiam
em peças de teatro latinas escritas por ex-professores do Colégio,
como os humanistas Georges Buchanan e Marc-Antoine Muret, e
representadas pelos alunos 27. Como algumas semelhanças textuais
A ARTE DO BLEFE: MONTAIGNE E O "MITO DO BOM SELVAGEM"
Mapa da cidade de Bordeaux em 1548 à partir do qual Efie
Vinet elaborou o seu, apresentado ao rei Carlos IX em abril
de 1565.
O desfile do corpo social aconteceu fora dos muros da
cidade, em frente ao Convento dos Cartuxos (à direita). Lá
Montaigne pôde assistir ao encontro entre o rei francês e os
representantes das doze "nações estrangeiras", dentre as quais
três grupos de índios brasileiros. Este é o verdadeiro cenário
do "conto canibal".
255
JOSÉ ALEXANDRINO DE SOUZA FILHO
levam a crer, esta publicação talvez tenha servido de inspiração a
Montaigne para acrescentar, na edição de 1588, uma passagem em
que fala das areias do Médoc, região costeira a noroeste de Bordeaux,
caracterizada pela formação de dunas devido à ação dos ventos e das
correntes marítimas. Na sua Antiquité, Vinet reconstituiu também a
história do vilarejo galo-romano de Noviomagus, com o qual a antiga
Burdigala (futura Bordeaux) disputava a hegemonia comercial da
região, na época da ocupação romaria. Este vilarejo foi destruído em
conseqüência de um terremoto no século VI e foi, posteriormente,
encoberto pelas areias, com exceção de algumas cumeeiras mais
elevadas:
" MONTAIGNE, M. de.
Op. cit., p. 204. O texto de
Vinet que talvez tenha servido
de inspiração a Montaigne se
encontra no § 38 da Antiquité
de Bourdeaus.
Thomas Richard, au
Lecteur Salut.:Veu que le
debvoir de mon estat requiere
de satisfaire en partie à ia
grande cupidité de sçavoir,
laquelle est en toutes gens
qui n'ont point leur naturel
corrompo ou detourné par
autre vacation repugnante, j'ay
bico voulu imprirner quelque
chose de l'Entrée de Borde= :
comme j'ay peu sçavoir 8c
entendre par les lettres d'un
mico amy. (...) Ensemble
plusieurs autres choses tant
magnificques, qui ont esté
tãt aggreables à nostre Roy
Charles neufiesme, que toutes
les atures Entrées ne sont à
comparer à celle cy. Parquoy il
vous plaira avoir mon vouloir
en gré, faict te 3. jour de
Juing. 1565... Entrée do Roy
[B] En Medoc, le long de la mer, mon frère, sieur d'Arsac,
voit une sienne terre ensevelie soubs les sables que la mer
vomit devant ele ; le faste d'aucuns bastimens paroist encore ;
ses rentes et dornaines se sont eschangez en pasquages bien
maigres. Les habitants disent que, depuis quelques temps, la
mer se pousse si fort vers eux qu'ils ont perdu quatre lieuês de
terre. Ces sables sont des fourriers : [C] et voyons des grandes
montjoies d'arène mouvante qui marchent d'une demi lieue
devant elle, et gaignent pais. 25
" a
à Bordeaux, avecques lei Carmes
Latins qui luy ont esté presentez,
& au Cbancelier. A Paris, De
l'Imprimerie de Thomas Richard,
à la Bible d'or, devant le College
de Reims, 1565, fol. Ai (v°).
" Idem, ibidem. Grifo nosso.
256
A segunda publicação é uma brochura contendo a descrição
dos acontecimentos de abril de 1565. L'entrée du Roy à Bordeaux foi
publicada em Paris pelo impressor Thomas Richard, cerca de dois
meses depois, a partir de uma carta que um "amigo bordelês" lhe teria
enviado descrevendo os fatos relevantes da entrada, segundo conta no
prefácio29. Este documento nos é precioso, pois ilumina uma passagem
do relato de Montaigne em que ele, humoristicamente, diz não
lembrar-se de todas as "observações canibais". Além das lembranças
pessoais que os acontecimentos testemunhados ocularmente podiam
lhe fornecer, a passagem em questão parece ter estimulado a imaginação
do escritor no sentido de inventar um discurso e atribuí-lo aos canibais,
isentando-se assim de qualquer responsabilidade pelas opiniões ou
idéias que esse discurso pudesse suscitar. Comparemos os dois textos,
o de Thomas Richard e o de Montaigne, respectivamente:
J'ay bien voulu imprimer quelque chose de l'Entrée de
Bordeaux : comme j'ay peu sçavoir & entendre par les lettres
d'un mien am.y. Et suis bien marry que je n'ay peu recouvrer
les harangues que feirent au Roy douze Nations étrangeres
chascune en sa langue : laquelle diversité de langage est fort
familiere aux Matelots Bordelois:"
A ARTE DO BLEFE: MONTAIGNE E O "MITO DO BOM SELVAGEM"
[A] ils respondirent troischoses, d'oU j'ay perdu la troisiesme,
et
en suis bien many ; mais j'en ay encore deux en memoire.".
3
' MONTA1GNE, Michel de.
Op. cit., p. 213. Grifo nosso.
A relação publicada por Richard nomeia as três tribos de
índios brasileiros que desfilaram para o rei como sendo formadas por
"Ameriques", "Sauvaiges" e "Bresellans"". O historiador protestante,
Lancelot Voisin de La Popelinière, na sua Histoire de France (1581),
parece ter se baseado na relação precedente para fazer sua descrição
da entrada de Bordeaux, uma vez que ele repete, na mesma ordem,
as denominações dadas aos índios brasileiros pelo amigo bordelês
do impressor. Outro historiador protestante, Agrippa d'Aubigné, é
mais preciso quanto ao nome das tribos. Em sua Histoire universelle
(1612), ele dá nome aos três grupos de brasileiros: os "Cannibales",
os "Marjagats" e os "Thaupinambous"". Segundo a nomenclatura
da época, popularizada em parte graças à publicação do livro de
André Thevet sobre o Brasil, os "canibais" correspondiam aos índios
potiguara do nordeste brasileiro (assiduamente freqüentado pelos
contrabandistas franceses em busca do pau-brasil nordestino, de melhor
qualidade e maior cotação), os "marjagás" designavam os tupiniquins,
etnia indígena aliada aos portugueses e inimiga dos franceses, e os
"thaupinambous" eram, evidentemente, os tupinambás do sudeste
brasileiro, especialmente os do litoral paulista e fluminense.
A mercurial de Michel de L'Hospital
Os argumentos apresentados até aqui em favor da tese segundo
a qual Montaigne blefou ao escrever seu ensaio sobre os canibais
brasileiros, especialmente no que se refere ao cenário do encontro
dos índios com o monarca francês, encontram confirmação em outro
episódio acontecido durante a estadia do rei em Bordeaux. Aos 11
de abril de 1565, dois dias após a entrada propriamente dita, teve
lugar, em sessão solene no Parlamento de Bordeaux, uma cerimônia
conhecida como "lit de justice". Esta consistia em um encontro entre o
rei, autoridade máxima da justiça, e os magistrados locais, encarregados
de aplicar as leis e executar as ordenações e decretos reais. A cerimônia
foi instituída pelo avô de Carlos IX, Francisco 1, em 1527, e seu nome
deriva dos longos bancos ("/its") sobre os quais se sentava a audiência 34.
O rei se colocava acima de todos, sobre um estrado ricamente decorado
e sob o pálio que simbolizava suas prerrogativas divinas. A origem
da palavra se deve ao fato de que outrora as assembléias das cortes
de justiça se reuniam, duas vezes ao ano, numa quarta-feira, quando
o presidente fazia a crítica da justiça e dos juízes. A r alavra francesa
32 « Oultre ce y avoit le Roy
de Ia Bazoche bien en ordre
ayant ses gens à cheval &
grande compagnie de gens de
pied bien equippés. Lequel
suyvoient apres trois c tz
hommes bien armez qui
menoient douze Nations
estrangeres captives devant le
Roy : chascune Nation habillée
à sa mode. C'est à sçavoir les
Grecs à la grecque : Les Tures
à Ia turcoise : Les Arabes à
la arabesque : fEgyptiens à
l'egyptienne : Taprobains à
la taprobaine Ameriques
à l'amerisque : Indiens à
l'indienne : Canariens à la
canarique : Les Sauvaiges à
la sauvag-ine : Les Bresellans
à la bresellane : Les Mores à
la moresque : Les Eutopiens
à l'eutopienne. Et chascun
Capitaine de ces douze Nations
captives a faict harengue
au Roy eu son langaige :
qui estoit interprete par un
truchernent. ». L'entrée da Roy
Bordeaux, fol. A iii (r").
<, 11 n'y a eut rien de
remarquable jusques à
Bordeatuc, ois la despence et
les inventions surmonterent
toutes les atures. Là trois cens
chevaux se presenterent au
Roi, douze bandes de Grecs,
Turcs, Arabes, Egyptiens,
Canariens, Mores, Ethiopiens,
Indiens, Taprobaniens,
Cannibales, Margajats et
Thaupinambous ; desquels les
chefs firent leur interprete. II
y eut d'autres magnificences
moina dignes du mestier de
l'historien. ». D'AUBIGNÉ,
Agrippa. Histoire Universelle
[1612-1620]. Tome II, livre
quatriesme, chapitre V, p. 227.
34 Ver HANLEY, Sarah. Le
Lit de Justice des Reis de France.
Paris, Aubier, 1991.
,
257
JOSÉ ALEXANDRINO DE SOUZA FILHO
" Lagebaston era acusado pelos
católicos, que eram maioria
na região, de ser indulgente
com os protestantes e de não
aplicar corretamente as sansões
aos reformistas, previstas
em certos decretos reais,
Infringindo a autoridade do
presidente do Parlamento,
François de Peruse Descars,
grande senechal da Guiana,
interrompeu ruidosamente
uma assembléia do Parlamento
que Lagebaston presidia. Este
dissolveu a reunião e conseguiu
mandar evacuar o afrontador
e seu séquito. Dias depois, a
cena se repetiu. Lagebaston
acusou então um grupo de
parlamentares, que teriam se
aliado ao arcebispo da cidade e
a algumas lideranças políticas
da região, de tramarem sua
destituição, entre eles o
jovem conselheiro Michel de
Montaigne. Chamado para dar
explicações, Montaigne recua,
não sem antes fazer críticas
à gestão de Lagebaston. O
incidente é contornado, em
parte provavelmente devido
aos laços de amizade entre a
família de Montaigne (uma
das mais tradicionais daquele
parlamento) e Lagebaston.
Mas o assunto será
relembrado, sem declinação
de nomes, por L'Hospital
durante sua mercurial,
Ver o texto do discurso de
L'Hospital no tomo II do
Ceremonial françois, publicado
por Théodore e Denys
Godefroy, em 1674. Sobre a
intervenção de Montaigne,
ver HAUCHECORNE, F.
"Une intervention ignorée
de Montaigne au Parlement
de Bordeawc .. Bibliothèque
d'Humanisme et Renaissance,
tomo IX, pp. 164-168.
Montaigne estava noivo de
Françoise de La Chassaigne,
com quem iria casar-se pouco
tempo depois, no dia 23 de
setembro de 1565. L'Hospital
estava certamente a par dos
projetos matrimoniais das
duas famílias de parlamentares
bordeleses e faz alusão ao
258
mercuriak deriva do latim mercurialis, e foi tomada como adjetivo da
palavra mer credi (quarta-feira). O "lit de justice" de Carlos IX seguiu
a tradição, pois foi realizado numa quarta-feira. Durante a sessão,
o rei geralmente cobrava, através do seu porta-voz, o Chanceler, a
correta aplicação da justiça, arbitrava processos difíceis e também
ouvia as "remonstrances", que eram críticas e sugestões feitas para
o aperfeiçoamento das instituições judiciárias. Naqueles anos, a
monarquia encontrava dificuldade em fazer o Parlamento de Bordeaux
aplicar devidamente os decretos reais, em razão de divergências
políticas internas ligadas ao conflito entre católicos e protestantes. A
sessão foi aberta com um breve pronunciamento do rei, que passou em
seguida a palavra ao Chanceler Michel de L'Hospital, encarregado de
admoestar os parlamentares recalcitrantes. Montaigne estava presente
à sessão, enquanto conselheiro, e foi um dos alvos de L'Hospital.
Primeiramente, pelo fato de ter-se envolvido, dois anos antes, numa
querela entre o presidente Lagebaston e o lugar-tenente Descars,
autoridade militar em serviço na região", em seguida, pelo fato de estar
nos preparativos para o casamento com a filha de um dos presidentes
do Parlamento, Joseph de La Chassaigne, o que geralmente não
era bem-visto pela monarquia, na medida em que os casamentos
"arranjados" entre famílias de burgueses enobrecidos que ocupavam
cargos nos parlamentos, como era o caso dos Eyquem de Montaigne
e os De La Chassaigne, tendiam a fortalecer a influência política desse
segmento social já economicamente importante, em prejuízo dos
interesses reais 36. L'Hospital iniciou sua mercurial citando o exemplo
de antigos reis gregos, sucessores de Alexandre, os quais teriam
mudado de opinião a respeito da suposta "barbárie" dos romanos ao
observarem, do alto de um promontório, a inteligente ordenação das
fileiras de soldados do exército inimigo. Do mesmo modo, acrescenta
L'Hospital, se algum estrangeiro observasse a organização daquela
corte de justiça não diria que se tratava de uma corte de bárbaros,
como havia antigamente no país, mas de franceses, um povo civilizado.
A metáfora soava irônica aos ouvidos dos parlamentares bordeleses,
acusados posteriormente pelo chanceler de serem indisciplinados
e inconseqüentes, por quererem se colocar acima da autoridade do
rei, da rainha e do seu conselho, criando obstáculos à execução dos
decretos e interpretando-os da maneira que lhes convinha, além de
protagonizarem cenas que feriam o decoro parlamentar.
Ora, basta iriciar a leitura "Dos Canibais" (I, 31) para se dar
conta que essa mesma metáfora foi utilizada por Montaigne para incitar
seu leitor a refletir sobre a relatividade dos conceitos de "bárbaro" e
"selvagem". Antes de ir buscar na "Vida de Pyrrhus", biografia do rei
grego escrita por Plutarco 37, a metáfora de que precisava para iniciar
A ARTE DO BLEFE: MONTAIGNE E O "MITO DO BOM SELVAGEM"
sua defesa dos índios, Montaigne a ouvia primeiramente pela boca de
Michel de L'Hospital, no Palácio de l'Ombrière, sede do Parlamento
de Bordeaux. O chanceler iniciou assim sua mercurial:
Et incontinent ledis Chancelier, après avoir salué le Roy
et s'être remis en la chaire, a dis qu'aucun qui ons cydevant
tenu le lieu qu'il tient ons consommé leurs propos à louer la
justice, l'institution des Parlemens et l'autorité d'iceux, qui
étoit une chose louable, mais qu'il dirois ce qui lui semblerois
propre et convenable à celui; et qu'il y avois eu des grands
Roys successeurs d'Alexandre, [à] sçavoir le Roy des Epirotes
et le Roy de Massedonien, lesquels ont eu guerre contre les
Romains, et étant approchés prés le camp desdits Romains,
etant avertis par un découvreur qu'ils avoient au camp desdits
Romains, et iceux Romains marchoient en bataille, ils eurent
envie de les voir et à ces fins monterent en un lieu eminent
0111 ils virent marcher les dits Romains en si bon equipage et
ordre qu'ils dirent incontinent: Voila une armée qui marche
non à la Barbare mais à la grecque. Paulemile [Paulo Emílio]
après avoir vaincu les Massedoniens fis un grand banquet
lequel ordonna et fit sa place au milieu et disoit que c'étoit
vu meshuy d'ordonner une armée comme un festin, à pareille
raison s'il y avoit icy quelques Etrangers qui vissens cet ordre ils
diroient que ce n'est point une Cour des Barbares, comme ils
etoient anciennement en ce pays, mais une Cour des Français.
Les Roys predecesseurs ons eté imitateurs des Romains et faits
meilleures plusieurs de leurs François de faire."
fato dizendo que se alguém
quisesse saber dos nomes dos
parlamentares presentemente
implicados, ele poderia
informar : . Il y en a aussi qui
sont grandement scandalisez
de faire des mariages par
force, 8c quand on sçait
quelque heretiere, quant &
quant, c'est pour Monsieur
le Conseiller, on passe outre
nonobstant les inhibitions, je
ne nommeray pas ceux qui en
sant chargez à présent, mais si
vous voulez communiquer avec
moy je vous les nommeray ..
GODEFROY, Théodore e
Denys. Le Ceremonialfrançoá,
tomo II , p . 582. Grifo nosso.
" PLUTARCO. Les vice des
&mames ilustres. Traduction de
Jacques Amyot. Edition établie
et annotée par Gérard Walter.
Paris, Gallimard, 1951, p. 886.
Montaigne, por sua vez, iniciou seu ensaio com a mesma
metáfora :
[A]Quand le Roy Pyrrhus passa en Italie, apres qu'il eut
reconneu Fordonnance de l'armée que les Romains luy
envoyoient au devant : Je ne sçay, dit-il, quels barbares sont
ceux-ci (car les Grecs appeloyent ainsi toutes les nations
estrangieres), mais la disposition de cette armée que je voy,
n'est aucunement barbare. Autant en dirent les Grecs de celle
que Flaminius fit passer en leur pais, [Cl et Philippus, voyant
d'un tertre l'ordre et distribution du camp Romain en son
royaume, sous Publius Sulpicius Galba. [A] Voylà comment
il se faut garder de s'atacher aux opinions vulgaires, et les faut
juger par la voye de la raison, non par la voix comrnune."
8 . Registre secret du
Parlement de Bordeaux .
(copia Verthamon), Tomo
16, pp. 610-612. Ver também
GODEFROY, Th. &D. 0,p.
dr., Tomo II, pp. 580-584
,
'9
MONTAIGNE, Michel de.
Les Essa is, I, 31, p. 202.
259
JOSÉ ALEXANDRINO DE SOUZA FILHO
Montaigne e a injustiça social
" A carta foi descoberta pelo
arquivista Detcheverry e
publicada no Courrier de la
Gironde de 21 de janeiro de
1856.
4
260
Mesmo já tendo certeza de que as "observações canibais"
são de autoria do próprio Montaigne, assim corno o cenário do
encontro, nos parece oportuno fazer algumas considerações a respeito
da dificuldade em conciliar a suposta "revolução social" contida no
discurso canibal com o conservadorismo político do ensaísta. Já
dissemos que esse aspecto foi responsável, em grande parte, por
fazer figurar Montaigne na galeria dos ilustres precursores das idéias
de caráter "socialista". Trata-se de um mal-entendido, pois não há
nada mais estranho ao pensamento de Montaigne do que a idéia
de "revolução social". O escritor foi, tanto em política como em
religião, um conservador. Ele acreditava que era preferível manter a
ordem vigente, ainda que imperfeita, do que aventurar-se em idéias
reformistas ou revolucionárias, cuja eficácia era duvidosa. Na disputa
religiosa que dividiu a França em dois blocos antagônicos, ele não
hesitou e manteve-se fiel ao catolicismo. Politicamente falando, era
um monarquista convicto, sem deixar, porém, de ser crítico em relação
às obrigações e à responsabilidade do poder real. Montaigne escreveu
a segunda "observação canibal" à maneira de um aviso, mas que se
transformou em "profecia". Aviso, porque sua intenção era alertar
as autoridades do seu país sobre o perigo potencial representado
pela existência de uma parcela da população vivendo em condições
precárias, sem moradia, alimentação e roupas. Profecia, porque a
segunda "observação canibal" antecipou o grande movimento de
idéias que marcou profundamente, ao longo dos séculos seguintes, o
pensamento político e econômico.
O alerta lançado pelo escritor Montaigne encontra confirmação
em uma carta que o prefeito Montaigne enviou ao rei Henrique
III, irmão e sucessor de Carlos IX. Por dois mandatos consecutivos
(entre 1581 e 1585), Montaigne foi prefeito de Bordeaux, tendo
sido indicado para o cargo por nomeação real, pouco tempo depois
da publicação dos Ensaios (1580). Em carta datada de 31 de agosto
de 1583, Montaigne, juntamente com os membros do conselho
municipal da cidade, faz suas "remonstrances" ao rei, com a intenção
de assegurar o « repos universel de ce royaume >> e reclama da pesada
carga de tributos a que o povo era submetido 40. Ele lembra que as
antigas leis partiam do princípio de que « toutes impositions doibvent
estre faites esgalement sur toutes personnes, le fort portant le foible »
e que era « tres raizonnable que ceulx qui °nu les moiens plus grands,
se ressentent de la charge plus que ceulx qui ne vivent qu'avec hazard
et de la sueur de leur corps ». As coisas não aconteciam, porém, dessa
forma, diz o prefeito-escritor. Ele enumera os impostos pagos pelo
A ARTE DO BLEFE: MONTAIGNE E O "MITO DO BOM SELVAGEM"
povo, denuncia os privilégios fiscais dos ricos e se faz porta-voz da
insatisfação popular, em tom veemente:
De façon que désormais quand ii conviendra impozer quelque
dace ou imposition, II faudra qu'elle soit portée par le moindre
et le plus pouvre nombre des habitants des villes, ce qui est
du tout impossible. 41
Montaigne lembra ao rei Henrique III o que seu irmão Carlos
IX tinha feito em benefício dos mais pobres: a obrigação de cada
cidade de alimentá-los e assisti-los. O prefeito ajuda a entender por
que o escritor pôs na boca dos índios brasileiros questões que estavam
na ordem do dia:
Et de tant que la misere du ternps a este si grande puis le
malheur des guerres civilles, que pluzieurs personnes de tous
sexes et qualités sont réduicts, à la mendicité, de façon que on
ne veoid par les villes et champs, qu'une multitude effrennée de
pouvres, ce qui n'adviendroit sy l'édict faict par feu de bonne
memoire le Roy Charles, que Dieu absolve, estoit gardé :
contenant que chasque paraoisse seroit tenue nourrir ses
pauvres, sans qu'il leur feut loysible de vaguer ailleurs. 42
Montaigne não desejava absolutamente uma "revolução" nem
tampouco cria que a pobreza, o desequilíbrio econômico e a injustiça
social pudessem ser resolvidos colocando fogo nas casas dos ricos (dos
quais ele fazia parte). Ele faz um apelo ao bom senso e à inteligência
daqueles que estavam no poder, a fim de evitar uma revolta popular.
No "conto canibal", ele ousou elaborar um discurso incendiário, mas
este não traduz necessariamente a maneira como ele entendia que o
problema deveria ser resolvido. Por detrás da máscara dos canibais,
personagens de uma ficção elaborada conscientemente, Montaigne
pôde dar livre curso à sua indignação civil. Quando comparamos a
carta a Henrique III com a segunda "observação canibal", fica evidente
que ambas traduzem a mesma aspiração do escritor-prefeito por uma
sociedade justa e fraterna. Ele defende a causa dos pobres de Bordeaux,
não porque sonhe com uma sociedade igualitária ou utópica, mas antes
porque se preocupa em evitar a desordem e a ruína das instituições.
Montaigne não questiona absolutamente a organização social e as
diferenças de classe entre as pessoas, mas reclama uma assistência
digna aos mais necessitados, afim de que não se revoltem contra o
Estado e instaurem o caos na sociedade.
" MONTAIGNE, Michel de.
CEuvres complètes, p. 1374.
42
Idem,
p. 1377.
261
JOSÉ ALEXANDRINO DE SOUZA FILHO
Conclusão
43
COCCHIARA, Guiseppe.
//mito dei lnion selvaggio
Introduzione alla storia de//e
teorie etnologicbe. Messina, Casa
Editrice G. d'Anna, 1948, p. 7.
262
Ao cabo do nosso percurso através dos artifícios utilizados pelo
escritor para fazer sua defesa da humanidade dos índios, constamos
que a entrada e a estadia de Carlos IX em Bordeaux forneceram
os elementos a partir dos quais Montaigne escreveu seu ensaio.
Por um lado, a entrada ofereceu o cenário para a criação daquilo
que poderíamos chamar de "conto canibal", ou seja, o episódio da
[(
conversação" do rei francês com os canibais brasileiros, por outro,
a estadia forneceu, através da mercurial pronunciada por Michel de
L'Hospital, a metáfora com a qual Montaigne inicia seu ensaio. A
entrada forneceu ainda a documentação que serviu, por um lado,
como estímulo à imaginação criadora do escritor, através da passagem
citada da relação impressa por Thomas Richard, e, por outro, talvez
como inspiração para a passagem sobre as areias do Medoc, através
da Antiquité de Bourdeaus de Elie Vinet.
"O dito selvagem, antes de ser descoberto, foi inventado": com
essas palavras o historiador italiano Guiseppe Cocchiara sintetizou
a maneira como os europeus descreveram, representaram e julgaram
os povos ditos primitivos desde o século XVI 43 . O conhecimento
de sua existência estimulou a imaginação de certos humanistas
renascentistas que projetaram sobre eles idéias ou lhes emprestaram
voz e sentimentos, de acordo com suas intenções e engajamentos.
Talvez melhor do que seus colegas humanistas renascentistas ou
filósofos iluministas, Montaigne mereça ser chamado de "inventor"
do "bom selvagem". Vimos como ele habilidosamente construiu seu
ensaio, alterando datas, lugares e fatos, mesclando lembranças pessoais
e sugestões livrescas, para protestar e alertar pela voz dos canibais. O
blefe enaltece a figura do escritor, confirma sua arte, ao mesmo tempo
em que ilumina os "bastidores" de sua criação literária.
Num ensaio significativamente chamado "Da força da
imaginação" (I, 21), ele explica o uso que fazia de histórias fabulosas
ou inventadas. O que importava, dizia, não era se o fato tinha ou não
acontecido realmente, mas o conteúdo de verdade que ele pudesse
transmitir. As histórias fabulosas, desde quando teoricamente
possíveis, podiam ser tão edificantes quantos os exemplos fornecidos
pelas verdadeiras. O importante, afinal, era o efeito que elas pudessem
causar no leitor, em beneficio das ideias que o escritor desejava veicular.
Se atentarmos bem, aquilo que constamos ao longo da análise, já foi
dito pelo próprio escritor, que explica assim sua arte do blefe, tão
magistralmente exemplificada no ensaio sobre os índios brasileiros:
[C] Aussi en l'estude que je traitte de noz mceurs et
A ARTE DO BLEFE: MONTAIGNE E O "MITO DO BOM SELVAGEM"
mouvernens, les tesmoignages fabuleux, pourveu qu'il soient
possibles, y servent cornme les vrais. Advenu ou non advenu,
à Paris ou à Rome, à Jean ou à Pierre, c'est tousjours un tour
de l'humaine capacité, duquel je suis utilement advisé par ce
recit. Je le voy et en fay mon profit egalement en umbre qu'en
corps. Et aux diverses leçons qu'ont souvent les histoires, je
prends à me servir de celle qui est Ia plus rare et memorable.
Ii y a des autheurs, desquels la fim c'est dire les evenemens.
La mienne, si j'y sçavoye advenir, seroit dire sur ce qui peut
advenir. (...) [C] Aux exemples que je tire ceans, de ce que
j'ay °ui, faict ou dict, je me suis defendu d'oser alterer jusques
aux plus legeres et mutiles circonstances. Ma conscience ne
falsifie pas un jota, ma science je ne sçay."
44
MONTAIGNE, M..chel de.
Les Essais, I, 21, p. 106.
263