Depoimento de Ruth Arons

Transcrição

Depoimento de Ruth Arons
Depoimento de Ruth Arons
outubro 29, 2003
OS JUDEUS EM PORTUGAL AQUANDO DA 2ª GUERRA
MUNDIAL: depoimento
No âmbito dos conteúdos apresentados e a apresentar relativamente aos
judeus em Portugal aquando da 2ª Guerra Mundial, deixamos hoje o
depoimento de Ruth Arons, refugiada judia, de origem alemã. Tinha 14 anos
quando chegou a Portugal, na companhia dos pais e irmã.
Depoimento extraído de:
MARTINS, Maria João- O paraíso triste. O quotidiano em Lisboa
durante a II Guerra Mundial. Lisboa: Vega, 1994, p. 139-140.
Saí da Alemanha, com os meus pais e irmã, em 1936. Três anos antes, com a
chegada dos nazis ao poder, tinham começado a surgir as leis racistas. O meu
pai,
que
exercia
advocacia,
foi
proibido
de
trabalhar.
O ambiente era muito pesado. Os nossos pais tiraram-nos do liceu oficial e
levaram-nos para uma escola de freiras, pois os católicos pareciam ser mais
brandos. Mas mesmo aí já havia discriminação. As meninas recebiam indicações
em casa para não se darem com alunas judias. Fiquei muito contente quando saí
da Alemanha.
A integração em Portugal foi difícil porque era tudo muito diferente. Os meus
pais que, antes, tinham uma vida social e cultural muito intensa, não
encontraram logo pessoas com quem conviver. Os refugiados que chegavam
eram pessoas muito diferentes e bastante mais novas do que eles. Os
portugueses, em contrapartida, eram muito amáveis, mas também muito
fechados. Só a partir de 1941 é que se começaram a criar círculos de refugiados.
Chegaram a aparecer velhos conhecidos nossos e até um tio e primos, que
estiveram
cá
durante
três
meses.
O meu pai não conseguiu voltar a exercer a advocacia, uma vez que, para o fazer,
teria de recomeçar os estudos de Direito. Dedicou-se, com um sócio, a um
negócio de exportação, mas a sua visão jurídica do mundo era incompatível com
o comércio. Os meus pais viveram dificilmente e nós também. Tivemos de
aprender a língua e voltar a fazer a admissão ao liceu. O que não foi fácil porque
o ensino era totalmente diferente. Ao contrário do que acontecia na Alemanha,
fazia-se muito à base da memória. Aqui, até as contas eram diferentes. Tive de
estudar muito. Na escola, a guerra parecia longínqua. As minhas colegas nem
sequer falavam disso.
O meu pai nunca deixou que comprássemos o que quer que fosse no mercado
negro. Mas o pão fazia-nos muita falta (só era permitido comprar dois
pãezinhos por dia). Estávamos sempre atentos às notícias da Guerra, difundidas
pela BBC, à espera que o Hitler atravessasse os Pirinéus. Nesse caso- previa o
meu pai- partiríamos de Lisboa para a Madeira e daí para o Brasil.
Os refugiados mudaram vários hábitos de Lisboa. Antes deles, por exemplo,
ninguém se lembrava de se sentar numa esplanada. Lembro-me que, no
primeiro ano em que estive no colégio, a minha mãe foi-me buscar às aulas e
sentou-se num banco da Avenida enquanto esperava. No dia seguinte, uma
colega veio-me perguntar porque estava ela sentada num banco e sem chapéu.
As lisboetas não saíam para a rua nesses preparos. Nós estávamos habituados a
uma sociedade onde as pessoas viviam mais descontraídas.
Na Alemanha raramente íamos ao cinema. Em Portugal, para grande espanto
nosso, as minhas colegas iam todos os domingos. Mais tarde, começámos a fazer
o mesmo. Não víamos, claro está, aqueles célebres filmes alemães com a Marika
Rokk. Mas lembro-me do grande êxito de E Tudo o Vento Levou. Eu gostava
mais do Leslie Howard do que do Clark Gable. Era muito mais romântico.l
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