Capítulo Dois Regras – No Direito e em Outros Âmbitos 2.1. Das

Transcrição

Capítulo Dois Regras – No Direito e em Outros Âmbitos 2.1. Das
Capítulo Dois
Regras – No Direito e em Outros Âmbitos
2.1. Das Regras em Geral
Raciocinar com regras talvez seja a imagem mais comum daquilo que advogados e juízes
fazem. Segundo uma disseminada concepção popular, advogados
sustentam suas posições
recorrendo a regras obscuras, não compreensíveis por pessoas comuns, e que juízes tomam suas
decisões consultando livros cheios dessas regras. Tendo encontrado a regra certa, assim se pensa,
o juiz procede a aplicá-la mecanicamente ao caso em pauta, e esse é o fim da questão.
Juristas sofisticados comumente zombam dessa imagem, que, aos iniciados no direito,
soa muito distante da realidade da prática vigente. E, por uma série de razões, ela de fato o é,
pelo menos porque a maioria das controvérsias ou eventos envolvendo a aplicação direta das
regras existentes sequer chegará aos tribunais1. Apesar da falta de precisão e dos exageros
embutidos nessa caricatura ubíqua daquilo que advogados e juízes fazem, ela ainda assim captura
uma parte genuinamente importante do direito. Regras de fato ocupam uma grande parte do
direito e do raciocínio jurídico. Advogados frequentemente as consultam, e juízes
frequentemente tomam decisões seguindo-as. O direito pode não ser só uma questão de regras,
mas ele certamente tem muito a ver com regras, da Proibição de Perpetuidade de Direitos Reais
(Rule Against Perpetuities), no direito de propriedade, à “regra da caixa de correio”
*
(mailbox
rule), no direito contratual, à felony murder rule**, no direito penal, Federal Rules of Civil
Procedure, a inúmeras outras. E, porque as regras pairam de maneira tão abrangente sobre aquilo
que o direito faz e sobre o modo como ele faz o que faz, entender de forma não caricata o que
1
Porque as aplicações diretas ou fáceis das regras jurídicas raramente são objeto de litígio, os casos que chegam às
corte são predominantemente e desproporcionalmente difíceis em alguma medida. Os casos difíceis objeto de litígio
representam, assim, uma amostra parcial de todos os eventos jurídicos, um fenômeno tipicamente referido como
efeito de seleção. Ver George L. Priest & William Klein, The Selection of Disputes for Litigation, 13 J. Legal Stud. 1
(1984). Nós iremos tratar do efeito de seleção e suas consequências na próxima seção deste Capítulo, e retornar a
ele nos Capítulos Sete e Oito.
*
Regra conforme a qual um contrato é firmado tão logo o ofertado envie sua aceitação da oferta, antes que o
ofertante receba o aceite [Nota do Tradutor].
**
Regra segundo a qual qualquer morte que ocorra durante o cometimento de um crime de maior potencial ofensivo
(felony) é homicídio qualificado, e todos os participantes deste crime podem ser acusados e considerados culpados
por assassinato [Nota do Tradutor].
são as regras e como elas funcionam nos levará a compreender melhor o raciocínio jurídico, o
argumento jurídico e a tomada de decisão jurídica.
Considere o típico limite de velocidade, que é um exemplo bastante simples de uma
regra. A placa diz LIMITE DE VELOCIDADE 55, e nossa primeira reação é que o limite de
velocidade é de 55 quilômetros por hora2. Mas por que 55? Presumivelmente, o limite de
velocidade foi estabelecido em 55 porque alguém com autoridade – possivelmente o legislador,
mas mais provavelmente o Departamento de Estradas, os conselhos municipais ou a polícia do
estado – pensou que dirigir acima de 55 nessa rodovia não seria seguro. Tudo muito bem, e
provavelmente correto para a maioria das circunstâncias, mas uma característica importante da
placa de limite de velocidade é que ela está lá o tempo todo. E igualmente importante é o fato de
que o limite de velocidade se aplica praticamente a todo mundo3. O limite de velocidade é 55
quando está chovendo e 55 quando o céu está claro. É 55 quando o tráfego está intenso e 55
quando não há tráfego. É 55 para carros feitos para alcançar 120 e é 55 para carros que começam
a chacoalhar quando atingem 50. E, embora 55 seja o limite de velocidade para motoristas
cautelosos, também é o limite de velocidade para os imprudentes e inexperientes. O limite de
velocidade de 55 é estabelecido para se alcançar segurança, mas em algumas circunstâncias, 55
pode ser muito alto para alcançar tal objetivo, e em outras, pode ser desnecessariamente baixo.
Então, suponha que você esteja dirigindo o seu carro novo, com a manutenção
cuidadosamente em dia, em uma manhã de domingo de céu claro, sem chuva e sem tráfego.
Suponha que você seja um motorista experiente e cuidadoso. Na verdade, você nunca esteve em
um acidente e nunca recebeu uma multa de trânsito. Como você é um bom motorista e as
condições são ideais, você decide dirigir – de forma perfeitamente segura – a 70. Tendo tomado
essa decisão, contudo, você olha no seu espelho retrovisor e fica perturbado ao ver as luzes do
carro de polícia piscando, sinalizando para você encostar. Em seguida, o policial informa que o
2
Algumas pessoas irão responder a esse exemplo apontando que quando o limite de velocidade postado é de 55, o
limite de velocidade “real” é um pouco maior. Para muitos motoristas, talvez até para a maioria deles, “Limite de
Velocidade de 55” significa que você não deveria dirigir acima de sessenta e quatro porque eles sabem que
tipicamente a polícia não irá te parar a menos que você exceda o limite de velocidade em ao menos dez quilômetros
por hora. A discussão sobre o Realismo Jurídico no Capítulo Sete abordará esta questão, examinando mais
cuidadosamente as implicações do fato de que a prática oficial muitas vezes diverge do significado literal de uma
regra escrita. Essa divergência levanta questões importantes e complexas, mas o limite de velocidade típico é mais
direto. A maioria dos motoristas sabe qual é a margem de manobra aceitável, e quase todo o ponto do exemplo do
texto é preservado mesmo quando existe um conhecimento generalizado de que o limite de velocidade atual é o
limite de velocidade postado acrescido de nove quilômetros por hora.
3
Não precisamos nos preocupar por enquanto com caminhões de bombeiros, ambulâncias e carros de polícia.
radar móvel o flagrou dirigindo a 70 quilômetros por hora, em uma zona em que o limite
permitido é de 55. “Eu sei”, você diz para o policial, “mas deixe-me explicar. O limite de 55
quilômetros por hora é estabelecido para garantir segurança, mas, na realidade, estou dirigindo
de forma muito segura. Não tem tráfego. O céu está claro. A pista está seca. Meu carro está em
boas condições. E eu tenho um histórico de direção impecável. O senhor pode checar. O senhor e
eu sabemos que cinquenta e cinco é só uma média para todos os motoristas em todas as
condições, mas o verdadeiro objetivo do limite de velocidade é garantir que as pessoas dirijam
com segurança, e o senhor não pode negar que eu estava dirigindo de forma muito segura”.
Todos nós sabemos o que ocorreria na sequência. O policial apontaria para a placa do
limite de velocidade, se ela estivesse visível, e então diria algo como: “O limite de velocidade
nesta rodovia é de cinquenta e cinco. Cinquenta e cinco quer dizer cinquenta e cinco, e não o que
você pensa que seja dirigir de forma segura”. E esse seria o fim do assunto. Você receberia uma
multa por excesso de velocidade, e você receberia a multa muito embora o objetivo da regra do
limite de velocidade fosse fazer com que as pessoas dirigissem de maneira segura e, mais
importante, você receberia a multa muito embora estivesse dirigindo de forma segura.
Esse exemplo pode parecer trivial ou até mesmo bobo, mas ilustra o aspecto central da
própria ideia de regra. Toda regra possui uma justificação subjacente – às vezes chamada de
“razão de ser” (rationale) – que é o objetivo para o qual a regra é desenhada4. Assim como o
limite de velocidade típico é desenhado para promover a segurança nas rodovias, também o
objetivo da Proibição de Perpetuidade de Direitos Reais é limitar a um tempo plausível o período
de incerteza na posse e disposição de propriedades. O objetivo do Artigo 56 das Federal Rules of
Civil Procedure – a regra de julgamento sumário – é eliminar, antes mesmo do julgamento,
aqueles casos nos quais não há uma demanda juridicamente séria e passível de ser sustentada em
fatos. O objetivo da regra de exclusão de prova oral e prévia (parol evidence rule) é implementar
a intenção das partes no sentido de consolidar seu acordo por escrito. E assim por diante. Toda
regra tem uma razão de ser ou justificação subjacente desse tipo e, portanto, toda regra pode ser
vista como uma tentativa de promover a sua justificação subjacente.
4
Para uma discussão mais longa, ver Frederick Schauer, Playing By the Rules: A Philosophical Examination of
Rule-Based Decision-Making in Law and in Life (1991). Ver também Larry Alexander & Emily Sherwin, The Rule
of Rules: Morality, Rules, and the Dilemmas of Law (2001).
Em tese, seria frequentemente possível que a regra fosse simplesmente uma reafirmação
da sua justificação subjacente. Alguns anos atrás, por exemplo, o estado de Montana eliminou
todos os limites fixos de velocidade, solicitando apenas que a direção fosse “razoável e
prudente”5. Mas os motoristas têm ideias divergentes sobre o que é razoável e o que é prudente,
assim como os policiais e os juízes. Como resultado, desenvolveu-se uma ampla variação na
aplicação do limite de velocidade, tendo como consequência uma grande incerteza dos
motoristas em relação a quão rápido eles poderiam dirigir sem que estivessem infringindo a lei.
Tamanha incerteza foi demais para a Suprema Corte do Estado de Montana, que derrubou a regra
do “razoável e prudente” por ser excessivamente vaga. Na verdade, mesmo que a regra não
tivesse sido declarada inconstitucional sob a Constituição do Estado de Montana, é provável que
o próprio legislativo tivesse reinstituído limites de velocidade numéricos e eliminado a regra do
“razoável e prudente”. Em Montana, assim como em outros lugares, pessoas entendem que as
próprias justificações subjacentes frequentemente são vagas demais para serem úteis, nebulosas
demais para fornecerem às pessoas o tipo de orientação que elas esperam do direito e sujeitas
demais à manipulação e a interpretações variadas para serem capazes de limitar as ações de
quem exerce poder. Então, embora teoricamente um limite de velocidade pudesse simplesmente
reafirmar estas razões de ser abstratas – Dirija de Forma Segura, Dirija de Forma Prudente ou
Dirija com Cuidado – na prática as razões de ser abstratas ou justificações subjacentes são
tipicamente consolidadas como regras concretas. Essas regras concretas são desenhadas para
servir às justificações subjacentes, mas é a própria regra que possui força de lei, e é a própria
regra que comumente dita o resultado jurídico. É por isso que o motorista cauteloso recebe a
multa quando está dirigindo de forma segura a 110 quilômetros por hora, e esse exemplo é
apenas um de muitos que ilustram a maneira pela qual é a manifestação concreta de uma regra, e
não a justificação abstrata subjacente a ela, que normalmente representa aquilo que o direito
exige.
Considere, para tomar um outro exemplo, a regra – um pouco mais técnica - (Artigo 16
(b) do Securities Exchange Act de 1934) do direito americano sobre regulação de títulos, que
proíbe certos insiders do mundo empresarial de comprar e depois vender (ou vender e depois
5
Mont. Code Ann. 61–8–303 (1996), foi invalidado por conter uma vagueza excessive em State v. Stanko, 974 P.2d
1132 (1998). Ver Robert E. King & Cass R. Sunstein, “Doing Without Speed Limits,” 79 B.U. L. Rev. 155 (1999).
comprar) ações de sua própria empresa dentro de um período de seis meses ou menos 6.
Subjacente a essa regra existe o propósito – sua razão de ser – de impedir que insiders, que
presumivelmente possuem informação privilegiada tipicamente indisponível para o público e
desconhecida por aqueles com quem esses insiders poderiam negociar, façam uso dessa
informação. Mas a própria regra nada diz sobre a efetiva posse de informação privilegiada. Em
vez disso, simplesmente proíbe qualquer executivo, diretor, ou acionista com 10% ou mais das
ações da empresa de comprar e depois vender ou vender e depois comprar as ações dessa
empresa dentro de um período de seis meses. O raciocínio que produziu uma regra tão específica
foi aquele segundo o qual, por meio da proibição de certas pessoas de se engajarem nas
chamadas transações “short-swing”****, a regra seria capaz de tornar mais difícil para os insiders
lucrarem a partir do conhecimento adquirido somente em função da posição que ocupam. A
regra faz o seu trabalho, portanto, por meio da proibição das transações short-swing sem
considerar se a pessoa engajada na transação de fato possui informação privilegiada, assim como
a regra do limite de velocidade proíbe dirigir a uma velocidade que exceda o limite sem
considerar se o motorista está de fato dirigindo de forma perigosa. O comprador ou vendedor
short-swing qualificado como insider nessa definição altamente precisa terá violado a regra e
será obrigado a devolver os lucros ainda que não possua qualquer informação privilegiada. E,
embora uma pessoa que negociasse com base em informações privilegiadas sem ser um insider,
conforme definido por essa regra, pudesse ter problemas em função de alguma outra regra7, é
digno de nota que ela não seria responsabilizada por essa regra, assim como a pessoa dirigindo
de forma perigosa, mas abaixo do limite de velocidade, não violou a regra do limite de
velocidade.
Ainda um outro exemplo vem das leis, comuns em diversas jurisdições, proibindo a posse
de ferramentas de arrombamento8. O direito não se preocupa realmente com ferramentas de
arrombamento – ele se preocupa com arrombamentos e com a diminuição de sua frequência.
Mas, apesar de a regra servir à justificação subjacente de prevenção de arrombamentos, ela
6
5 U.S.C. §78p(b) (2000).
Negociação de ações realizada por executivos, conselheiros, diretores e principais acionistas de uma empresa em
qualquer período de seis meses (Nota do Tradutor).
7
Em particular, Regra 10b-5 promulgada pela Securities and Exchange Comission, 17 C. F.R. §240.10b-5 (2007), a
qual entre outras coisas, torna ilegal em muitas transações de títulos se omitir de declarar um fato material aos outros
participantes da transação..
8
Por exemplo, Conn. Gen. Stat. Ann. 53A-106 (West, 1999); Cal. Penal Code 466 (West, 1999).
****
implementa sua justificação subjacente ao prescrever algo mais específico. A regra proíbe
possuir ferramentas de arrombamento e não qualquer coisa que pudesse aumentar o risco de
arrombamento, assim como o limite de velocidade típico é uma regra numérica explícita e não
uma ordem para que todos dirijam de forma segura ou prudente, e assim como a regra de
transação short-swing proíbe todas as transações por parte daqueles que são definidos como
insiders em um período de tempo definido, e não todas as transações, nem somente aquelas
transações nas quais a pessoa negocia tendo informação privilegiada.
A lição a ser tirada desses exemplos é que uma das principais características das regras –
e a característica que as faz serem regras – é que aquilo que a regra diz realmente importa. É por
isso que o policial vai multá-lo se você estiver dirigindo acima do limite de velocidade, mesmo
se você estiver dirigindo cuidadosamente e de forma segura, e é por isso que executivos e
acionistas de empresas são responsáveis por danos se negociarem as ações de sua empresa dentro
de um período de seis meses, mesmo quando não possuem qualquer informação privilegiada.
Lembre-se da discussão do Capítulo 1 sobre o caso United States v. Locke9, no qual a Suprema
Corte aplicou a regra de protocolo da Agência de Gestão de Terras que estabelecia como prazo
“antes do dia 31 de dezembro”, muito embora fosse óbvio que o que o Congresso realmente quis
dizer havia sido algo como “antes ou no dia 31 de dezembro”. Para alguns comentadores, a
decisão no caso Locke parece se equivocar ao levar a importância da linguagem da regra a
extremos absurdos10, e talvez isso seja verdade, mas o fato de que seis ministros da Suprema
Corte estavam dispostos a aplicar literalmente a linguagem da regra “antes do dia 31 de
dezembro” demonstra como uma grande parte da “regridade”***** da regra está amarrada à
linguagem na qual a regra é escrita. O cerne do que são regras e de como elas funcionam é que
aquilo que a regra diz é o fator crucial, mesmo se aquilo que a regra diz soa errado ou
inconsistente com a justificação subjacente à regra, e mesmo se seguir o que a regra diz produzir
um resultado ruim em alguma ocasião particular. Quando enfrentarmos a questão da
interpretação das leis, no Capítulo 8, nos aprofundaremos nesses assuntos, incluindo as
considerações das circunstâncias sob as quais aquilo que a lei literalmente diz não constitui a
9
471 U.S. 84 (1985).
Richard A. Posner, Legal Formalism, Legal Realism, and the Interpretation of Statutes and the Constitution, 37
Case West. Res. L. Rev. 179 (1986); Nicholas S. Zeppos, Legislative History and the Interpretation of Statutes:
Toward a Fact-Finding Model of Statutory Interpretation, 76 Va. L. Rev. 1295, 1314-16 (1990).
*****
No original, ruleness. Expressão utilizada por Schauer para designar “o caráter de regra”, isto é, o conjunto de
propriedades distintivas que fazem de uma regra o que ela é (N. T.).
10
última palavra na interpretação de seu significado e na sua aplicação. Mas, mesmo quando a
regra não é a última palavra, ela quase sempre é a primeira palavra, e entender o que as regras
são e como elas funcionam implica entender que a regra, conforme escrita, é importante em si
mesma, em vez de ser meramente uma janela transparente para a justificação subjacente da regra.
2.2 O Núcleo e a Margem
Apesar de uma grande parte do funcionamento das regras depender do que as palavras
das regra dizem, com frequência é difícil para advogados e juízes, e mais ainda para os
estudantes de direito, valorizarem essa característica das regras. Isso ocorre porque muito do que
juízes, advogados e estudantes de direito fazem, acontece nas margens das regras e não em seus
centros. O filósofo do direito inglês H.L.A. Hart tornou famosa a distinção entre o centro claro
da regra (que Hart chamou de “núcleo”) e suas margens controversas (que Hart chamou de
“penumbra”), e, ao fazê-lo, ofereceu um exemplo hipotético que se tornou lendário11. Neste
exemplo, Hart nos pediu para imaginar uma regra proibindo “veículos” em um parque público.
Essa regra, observou Hart, nitidamente proibiria automóveis, porque automóveis claramente
contam como veículos de acordo com o significado amplamente aceito da palavra “veículo”. E
Hart certamente teria chegado à mesma conclusão no que diz respeito a caminhões, ônibus e
motocicletas, todos sendo exemplos nucleares de “veículos” também. Mas, indagou Hart, e se
estivéssemos considerando se bicicletas, patins, ou automóveis de brinquedo também seriam
proibidos pela regra “É proibido veículos no parque”? E carrinhos de bebê - poderia ter também
indagado Hart? E, nos dias de hoje, o que ocorreria com skates e cadeiras de rodas motorizadas?
Agora não temos mais tanta certeza. Não estamos mais no núcleo da regra, onde as coisas
parecem ser mais diretas. Em vez disso, mudamos para a fronteira nebulosa ou região de
penumbra da regra, onde talvez seja necessário olhar para o propósito por trás da regra para ver
se uma aplicação marginal particular deve ser incluída ou não. Se a justificação subjacente da
regra tivesse sido promover a segurança para pedestres, por exemplo, então talvez carrinhos de
bebê, mas não bicicletas ou patins, fossem permitidos no parque. Mas se, em vez disso, a regra
11
H.L.A. Hart, The Concept of Law 125-26 (Joseph Raz & Penelope Bulloch eds., 2d ed., 1994). O exemplo
apareceu pela primeira vez em H.L.A. Hart, Positivism and the Separation of Law and Morals, 71 Harv. L. Rev.
593, 608-15 (1958). Para uma análise estendida, ver Frederick Schauer, A Critical Guide to Vehicles in the Park, 83
N.Y.U. L. Rev. 1109 (2008). Nós iremos retornar ao exemplo no Capítulo Oito quando tomarmos o sujeito da
interpretação legal.
tivesse almejado evitar o barulho, então talvez não houvesse razão para excluir bicicletas, patins,
ou carrinhos de bebê, embora talvez existissem boas razões para querer deixar de fora carros de
brinquedo elétricos ou movidos à gasolina12.
Não é novidade para os advogados que as regras possuem margens contestáveis quando
há bons argumentos nos dois lados da questão sobre se a regra deve ou não ser aplicada. De fato,
tais disputas compõem grande parte do dia-a-dia do advogado. Mas o núcleo claro e
incontestável de uma regra é frequentemente deixado de lado por advogados e estudantes de
direito porque essas aplicações claras ou fáceis raramente vão parar nos tribunais superiores. Na
verdade, elas raramente chegam aos tribunais ou mesmo aos advogados. Se o motorista de uma
pick-up com a família na caçamba levando um piquenique chegasse ao parque e visse a placa É
PROIBIDO VEÍCULOS NO PARQUE, esperaríamos que, em condições normais, ele
simplesmente fizesse a manobra para voltar e que dirigisse para outro lugar, sem criar qualquer
tipo de controvérsia. De modo semelhante, apesar de poder haver questões difíceis e
controvertidas nas margens até mesmo de uma regra especificando um limite de tempo preciso,
no curso normal das coisas, um réu em uma corte federal vai contestar uma ação proposta contra
ele ou requerer uma extensão antes do período de expiração de vinte e um dias especificado na
Regra 12(a)(1)(A)(i) das Federal Rules of Procedure. Essas aplicações tranquilas das regras
jurídicas raramente aparecem nos casebooks e em aulas nas faculdades de direito. Como
resultado, muito do que é importante sobre as regras jurídicas tende a operar de forma invisível
para os estudantes de direito, para os advogados e, especialmente, para os juízes13.
A distinção entre núcleo claro e limite nebuloso de uma regra pode ser ilustrada por meio
de um caso real decidido pela Suprema Corte dos Estados Unidos alguns anos atrás – um caso
curiosamente semelhante ao exemplo hipotético de Hart sobre os veículos no parque. Em Stewart
v. Dutra Barge Company14, a questão diante do Tribunal era se uma grande draga chamada
“Super Scoop” era uma “embarcação”, conforme essa palavra é usada na legislação federal sobre
12
Em um debate memorável nas páginas da Harvard Law Review, Lon Fuller, contemporâneo Americano de Hart,
desafiou a ideia de que o significado claro das palavras por si só poderia produzir um resultado claro sem qualquer
consulta ao propósito subjacente da regra. L. Fuller, Positivism and Fidelity to Law – A Reply to Professor Hart, 71
Harv. L. Rev. 630 (1958), respondendo a H.L.A. Hart, Positivism and the Separation of Law and Morals, 71 Harv.
L. Rev. 593 (1958). A relação entre texto e propósito e importante, e estará entre os temas centrais com que lidamos
no Capítulo Oito.
13
Ver Frederick Schauer, Easy Cases, 58 S. Cal. L. Rev. 636 (1985).
14
125 S. Ct. 1118 (2005).
Direito Marítimo. Na realidade, a Super Scoop era a maior draga do mundo naquele tempo e
estava sendo utilizada para escavar o Porto de Boston, como parte do projeto conhecido como a
Grande Escavação (Big Dig). Willard Stewart, um operário do Super Scoop, feriu-se em serviço
e processou os donos da draga, alegando que seus ferimentos teriam sido causados pela
negligência da companhia. Contudo, saber se Stewart poderia ou não ajuizar tal ação dependia de
a Super Scoop ser considerada uma “embarcação”. Se fosse, então uma lei federal chamada
Jones Act15 forneceria a base jurídica para a ação. Mas se a Super Scoop não fosse uma
embarcação, então outra lei federal – a Longshore and Harbor Workers’ Compensation Act16 até permitiria que pessoas como Stewart exigissem o equivalente a pagamento de indenização a
trabalhadores, mas obstaria uma ação por negligência contra a companhia. Então, o direito de
Stewart de propor uma ação por negligência contra a companhia dependia de a Super Scoop ser
uma embarcação.
Esse foi um caso difícil. Apesar de a Super Scoop passar a maior parte do seu tempo
numa posição estacionária enquanto dragava o canal, e apesar de sua quase total falta de
capacidade para autopropulsão exigir que fosse rebocada de uma localização para outra, ela tinha
um capitão e uma tripulação e flutuava, tanto enquanto dragava como enquanto estava sendo
movida de um lugar para outro. Consequentemente, Stewart apresentou o argumento plausível de
que a posição normal de flutuação da Super Scoop, combinada com o fato de ter um capitão e
uma tripulação, tornava-a uma embarcação, enquanto a companhia ofereceu o argumento
igualmente plausível de que a falta de autopropulsão da Super Scoop e sua semelhança em
aparência e função a um equipamento de construção terrestre estacionário tornava-a algo
diferente de uma embarcação. No final das contas, a Suprema Corte decidiu por unanimidade
que a Super Scoop era de fato uma embarcação. Mas o real resultado não importa. O que é
importante aqui é que, apesar de o caso diante da Suprema Corte ter sido um caso difícil, para o
qual existiam argumentos não triviais de ambos os lados, tal caso tende a pintar uma falsa
imagem da operação rotineira, não levada a juízo, desse conjunto particular de regras jurídicas.
Diferentemente da questão referente à Super Scoop na ação de Willard Stewart, a maioria das
questões – praticamente todas as questões – sobre se algo seria ou não uma embarcação com
certeza quase absoluta nunca chegariam à Suprema Corte, provavelmente não chegariam aos
15
16
46 U.S.C. App. §688(a)(2000).
33 U.S.C. §902 (2000).
tribunais de apelação e possivelmente sequer seriam levadas a juízo. Se a questão tivesse sido se
um navio cruzeiro com mil passageiros seria uma embarcação, não haveria qualquer argumento
sério em sentido contrário, e nenhum advogado competente argumentaria de outra forma. Talvez
pudesse haver outros bons argumentos disponíveis na disputa como um todo, mas é improvável
que uma corte fosse requisitada para decidir se um transatlântico é uma embarcação. A regra
seria aplicada, mas ela nunca veria o interior de uma sala de audiência judicial. De forma
semelhante, se a beirada de uma baía estivesse sendo escavada por uma máquina de escavação
baseada na terra e que não estava, nem poderia estar na água, o status da máquina como algo
distinto de uma embarcação muito provavelmente seria incontroverso e, novamente, essa questão
sequer apareceria diante de um tribunal.
Por ser tão raro que casos genuinamente fáceis e aplicações claras de regras jurídicas
sejam objeto de disputa nos tribunais, , o conjunto de litígios que vão parar nos tribunais
representam uma amostra distorcida de eventos jurídicos. O efeito, conhecido como efeito de
seleção17 (sellection effect), é tal que os casos que vão parar nos tribunais são somente – ou
quase exclusivamente – aqueles nos quais há duas partes antagônicas, possuindo visões
mutuamente excludentes sobre alguma questão jurídica, e ambas acreditam que possuem chances
razoáveis de vencer. Se uma das partes pensasse que não teria chances razoáveis de prevalecer
no caso como um todo ou mesmo
em um ponto específico, então não iria contestar
judicialmente a questão, a não ser em circunstâncias pouco usuais18. Ela seguiria a lei, ou
pagaria o que foi demandado, ou chegaria a um acordo, ou faria uso de outro argumento durante
o litígio. Os casos e argumentos que são seriamente contestados nos tribunais, portanto, são
aqueles nos quais ambas as partes pensam que poderiam vencer, e essa situação tipicamente
ocorre somente quando ambas possuem argumentos juridicamente plausíveis. No que diz
respeito às regras jurídicas, portanto, ambas as partes estarão razoavelmente seguras de que
17
Existe uma grande literatura sobre o efeito de seleção no direito, mas o artigo seminal é George L. Priest &
William Klein, The Selection of Disputes for Litigation, supra note 1. Ver também Richard A. Posner, Economic
Analysis of Law §21 (3rd ed. 1986); Frederick Schauer, Judging in a Corner of the Law, 61 S. Cal. L. Rev. 1717
(1988). Uma excelente visão global das questões e da literature é o de Leandra Lederman, Which Cases Go to
Trial?: An Empirical Study of Predictions of Failure to Settle, 49 Case West. Res. L. Rev. 315 (1999). E vale a
pena notar que a observação muito anterior de Karl Llewellyn de que os casos objetos de litígio suportam a mesma
relação com o conjunto subjacente de controvérsias “as does homicidal mania or sleeping sickness, to our normal
life.” Karl N. Llewellyn, The Bramble Bush: On Our Law and Its Study 58 (1930).
18
Uma dessas circunstâncias incomuns ocorre quando uma parte litiga ou ameaça litigar, mesmo quando sabe que a
lei é contrária, simplesmente com o propósito de desgastar um adversário pelo atraso ou despesa. Em teoria, o
sistema jurídico tem dispositivos para evitar isso - o julgamento sumário, por exemplo – mas, na prática, as partes de
fato perseguem causas perdidas por razões estratégicas mais do que a teoria pura do efeito de seleção poderia prever.
poderão vencer quando, tipicamente, a questão relevante residir nas fronteiras e não no núcleo da
regra pertinente. Assim, o efeito de seleção recebe esse nome porque os incentivos do sistema
jurídico criam um mundo no qual somente certas aplicações do direito e das regras são
selecionadas para serem litigadas, e aquelas selecionadas possuem a característica especial de
estarem nas margens das regras jurídicas, ou, de uma forma mais geral, nas fronteiras do direito.
O efeito de seleção é o principal fator determinando quais disputas ou eventos regulados
pelo direito serão litigados, mas o efeito é ainda maior conforme galgamos os degraus recursais.
No Período de 200719, por exemplo, a Suprema Corte dos EUA, que possui um poder quase que
absoluto para decidir quais casos quer ouvir, foi demandada para ouvir mais de nove mil casos
pelos tribunais recursais federais e pelos tribunais de justiça dos Estados, mas concordou em
receber e decidir, com apresentação completa de relatos, argumentos e votos, somente setenta e
um20. Quase todos dos setenta e um eram casos para os quais não havia uma resposta jurídica
clara, e tomar esses setenta e um casos como sendo representativos do modo como o direito
funciona, ou como as regras funcionam, seria um tremendo erro.
Praticamente a mesma dinâmica é aplicada aos casos selecionados para os casebooks
usados nas faculdades de direito. O que faz com que esses casos sejam interessantes e
pedagogicamente valiosos é, usualmente, o fato de serem casos difíceis, para os quais advogados
de ambos os lados da questão podem construir argumentos fortes e nos quais estudantes podem
analisar e avaliar posições opostas. Como esses são casos difíceis, os votos dos juízes que os
decidem podem quase sempre serem questionados, e isso é boa parte do que se faz em aulas que
usam o método de ensino baseado em casos. Não existe nada de errado nisso por si só. Aprender
como preparar bons argumentos para ambos os lados é parte do processo de se tornar um
advogado, assim como aprender a expor a fraqueza de uma decisão judicial. Contudo, é um erro
supor que todos ou mesmo a maioria dos casos são difíceis, que a maior parte dos eventos
jurídicos podem ser objeto de disputa judicial, e que regras nunca ou raramente fornecem
19
A Suprema Corte ouve e decide casos durante o chamado “Período” [Term], que tradicionalmente começa na
primeira segunda-feira de outubro, e termina quando o Tribunal decidir os casos nos quais já foi feita sustentação,
normalmente em junho. O Período é designado pelo ano em que começa - por isso às vezes é chamado de Período
de outubro 2006, por exemplo, e às vezes apenas de Período de 2006.
20
A contagem exata é que a Corte recebeu 8922 recursos, decidiu 278 desses recursos de maneira sumária sem
publicar votos, e aceitou ouvir e decidir 77, dos quais 73 terminaram sendo de fato decididos, após sustentação oral
das partes, com a publicação de votos completos. The Supreme Court, 2006 Term: The Statistics, 121 Harv. L. Rev.
436 (2007).
respostas claras. Tribunais recursais e faculdades de direito têm boas razões para trabalhar nas
áreas cinzentas das regras – nas fronteiras nebulosas. Mas é um grande erro assumir que regras
não passam de áreas cinzentas e fronteiras nebulosas.
2.3
A Generalidade das Regras
Embora a aplicação das regras jurídicas ao mundo seja caracterizada pelos casos fáceis, a
adjudicação é dominada, pelas razões já examinadas, pelos casos difíceis. Esses casos difíceis,
porém, aparecem de formas variadas. Há o caso na fronteira nebulosa de uma regra, o qual
Stewart v. Dutra Barge Company é um exemplo típico. Um tipo bem diferente de caso difícil,
entretanto, parece mais com o cenário do limite de velocidade do que o caso do Super Scoop.
Quando você está argumentando para o policial que não estava de fato dirigindo de forma pouco
segura, você não está afirmando que a regra não é clara nessa aplicação, como estaria fazendo
caso tivesse sido parado por não ter seus faróis acesos depois de escurecer, dirigindo após o sol
se pôr, ou se tivesse sido parado em Montana na vigência do regime do limite de velocidade
“razoável e prudente”. Inversamente, a tentativa típica de um motorista para escapar de uma
multa envolve o reconhecimento de que a regra, de acordo com seus termos literais, seria
plenamente aplicável a ele – ele estava realmente a 70 em uma zona de 55 quilômetros por hora
– contudo, ele alega que a aplicação dos termos da regra a esse caso não serviria às justificações
subjacentes à regra. Ele admite que estava indo a mais de 55, mas ele certamente não estava
dirigindo de forma pouco segura. Ou pelo menos é o que alega o motorista.
Tais conflitos entre o resultado que os termos de uma regra indicam e o resultado
indicado pela razão de ser dessa mesma regra são ubíquos. A Sétima Emenda à Constituição
prevê o direito a um julgamento por júri em qualquer caso civil de common law em um tribunal
federal sempre que o valor da causa seja “vinte dólares,” por exemplo, e é óbvio que o propósito
por trás do mínimo de vinte dólares era limitar os julgamentos por júri a casos envolvendo somas
substanciais. Mas, embora vinte dólares fosse uma quantia substancial em 1791, quando a Sétima
Emenda foi adotada, dificilmente poderia sê-lo hoje em dia. O mesmo pode ser dito sobre a
exigência, prevista no Artigo II da Constituição, de que o Presidente tenha alcançado a “Idade de
trinta e cinco Anos,” criada quando a expectativa de vida ao nascer para um homem (ninguém
àquela época contemplara que mulheres poderiam sequer votar, quanto mais ser Presidente) era
abaixo de quarenta anos, comparada com a atual expectativa de vida, para homens e mulheres
americanos, de mais de setenta e cinco anos. 21 Mas, assim como o efeito da inflação sobre o
limiar de vinte dólares para julgamentos por júri, o fato de que o significado literal da regra de
“idade de trinta e cinco anos” falha em servir o propósito subjacente dessa mesma regra não
muda o significado da regra em si, um significado que se mantém amarrado ao significado dos
termos nas quais a regra foi escrita. Se você tiver apenas trinta e dois anos de idade, você não
pode ser Presidente, e beira o fantástico imaginar circunstâncias nas quais isso não deveria ser
verdade, independentemente da razão de ser por trás da regra.
22
O mesmo ocorre com uma
exigência mais controversa, também prevista no Artigo II, de que o presidente seja um “cidadão
nato”. Essa regra, que impediu Secretários de Estado como Madeline Albright e Henry Kissinger
e governadores como Arnold Schwarzenegger e Jennifer Granholm de seriamente contemplarem
uma candidatura à Presidência, é quase certamente uma personificação pobre da justificação
21
Muitas crianças morreram em uma idade precoce pela doença no século XVIII, por isso os números brutos podem
ser um pouco enganadores, porque a maioria dos homens adultos de fato viveram até seus anos cinquenta e sessenta.
Mas mesmo para aqueles que chegaram à idade adulta, as diferenças entre 1787 e agora ainda são substanciais.
22
Não está claro qual idade em 2008 seria equivalente a 35 em 1787. Em uma época em que é possível - em virtude
da televisão, da Internet, dos avanços tecnológicos na publicação, e das viagens aéreas, por exemplo - para aprender
muito mais muito antes do que era possível anteriormente, pode-se argumentar que o objetivo por trás da regra dos
35 anos seria servido por redução da idade mínima. Mas, se os autores da Constituição queriam garantir que o
presidente fosse escolhido dentro do segmento mais velhos e experiente da população, então talvez a lógica
subjacente iria aconselhar agora uma idade limite substancialmente maior do que 35.
subjacente original de se garantir lealdade e comprometimento com o país. Ainda assim, os
termos da regra prevalecem.
Embora os termos de uma regra triunfem sobre o seu propósito nessas e em várias outras
instâncias, não é sempre assim. Um exemplo frequentemente citado de propósito prevalecendo
sobre o significado literal é o do caso United States v. Church of the Holy Trinity. 23 Neste caso,
uma igreja havia sido processada por violar uma lei federal que proibia qualquer empregador
americano de pagar a passagem, de um país estrangeiro para os Estados Unidos, de um
empregado estrangeiro com a finalidade de obtenção de emprego. A igreja ré havia feito
exatamente isso. Pagamento havia sido parte de um processo de contratação de um novo pastor,
e, assim a igreja violara literalmente da lei. Contudo, a Suprema Corte sustentou que a lei não
deveria ser aplicada literalmente nesse caso. A lei, justificou o Ministro Breyer, tinha por alvo os
empregadores que estavam importando grandes quantidades de trabalho estrangeiro barato para
dentro dos Estados Unidos. E, porque o pagamento da Igreja da travessia oceânica de seu novo
pastor estava bem distante do que a Corte considerava ser o propósito do Congresso ao aprovar a
lei, concluiu-se que o significado literal dos termos do estatuto deveria ceder à razão subjacente
do estatuto. Como resultado, a igreja foi julgada inocente de violação da regra.
Ao atingir essa conclusão, o Ministro Breyer se apoiou em um caso anterior na mesma
direção, United States v. Kirby. 24 Em Kirby, o réu era um policial de Kentucky que havia sido
condenado com base em uma lei federal que torna crime interferir na entrega de
correspondências. E
havia sido
exatamente
isso
o que Kirby fizera. Ele havia
inquestionavelmente interferido na entrega da correspondência, mas o fizera no processo de
embarque de um barco à vapor
23
24
143 U.S. 457 (1892).
74 U.S. (7 Wall.) 482 (1868).
para prender um carteiro chamado Ferris que tinha sido
validamente indiciado por homicídio por um tribunal de Kentucky. Assim como em Church of
the Holy Trinity vinte e quatro anos depois, a Suprema Corte em Kirby alegou que os termos
literais da lei não deveriam ser aplicados quando, como no caso, a sua aplicação dificilmente
serviria ao propósito subjacente da lei.
Nós iremos examinar outros exemplos de tensão entre linguagem e propósito no Capítulo
Oito, quando enfrentarmos questões de interpretação legal. Por ora, porém, esses poucos
exemplos são suficientes para ilustrar uma característica importante das regras – sua
generalidade. Em contraste com comandos específicos – você leve para fora esse saco de lixo
agora – regras não falam meramente a um indivíduo engajado em um ato num dado momento.
Ao invés, regras tipicamente são endereçadas a várias pessoas envolvidas em múltiplos atos
durante um período estendido de tempo. O limite de velocidade se aplica a todos os motoristas
em todos os dias e sob quaisquer circunstâncias, assim como a regra promulgada pela Agência de
Segurança Ocupacional e Saúde (OSHA) [Occupational Safety and Health Administration]
exigindo o uso de proteção auditiva para trabalhadores se aplica a todas as fábricas de um certo
tipo e a todos os empregados daquelas fábricas.
Regras são caracterizadas por serem gerais exatamente nesse sentido, mas, como a
maioria das generalizações – mesmo as que possuem um mínimo fundamento estatístico – elas
podem não acertar o tempo todo. É uma boa generalização a de que o queijo suíço tem buracos,
mas alguns deles não têm. E poucas pessoas iriam discordar da generalização de que é frio em
Chicago em Janeiro, mas se conhece casos de dias de Janeiro quentes em Chicago. E o mesmo
acontece com as generalizações que são parte das regras. Mas, precisamente porque regras são
gerais, existe sempre um risco de que a generalização que a regra incorpora não será aplicável a
algum caso particular. Mesmo que seja verdade na maioria dos casos que motoristas não
deveriam dirigir a mais do que 55 quilômetros por hora, existirão alguns casos nos quais a
generalização de que dirigir a mais
de 55 é perigoso não será aplicável, e, quando essa
eventualidade surgir, pode-se dizer que a regra é sobre-inclusiva. A regra inclui ou abrange
situações que a justificação subjacente à regra não abarcaria, como nos casos de Kirby e Church
of the Holy Trinity, assim como com o motorista dirigindo de forma segura à 70, e como no caso
de uma ambulância que pode cair dentro do escopo literal da regra de “É proibido veículos no
parque”. Em tais casos, o alcance da regra é mais amplo do que o alcance de sua justificação
subjacente e, assim, nós podemos dizer que a regra é sobre-inclusiva.
Noutros momentos, a generalização da regra será sub-inclusiva, falhando em atingir
situações que a direta aplicação da justificação subjacente iria abranger. Se o propósito da regra
“É proibido veículos no parque” é prevenir o barulho, então ela será sobre-inclusiva em relação
aos silenciosos carros elétricos (que certamente são veículos), mas será sob-inclusiva em relação
aos instrumentos musicais, comícios políticos e rádios portáteis de alto volume – todos dos quais
são barulhentos, mas nenhum dos quais é um veículo. O mesmo acontece com a regra em
questão no caso Kirby, pois podemos imaginar todos os tipos de impedimentos para um serviço
postal confiável que não iriam contar como uma “obstrução” às correspondências.
Um exemplo moderno tanto de sobre-, quanto de sub-inclusividade pode ser visto nos
esforços de um número crescente de estados de proibir dirigir enquanto se fala no telefone
celular.25 A justificação para essas leis, que aparentemente se sustenta nas evidências
disponíveis, é de que pessoas que estão falando em seus telefones celulares ao volante prestam
menos atenção à direção do que se não estivessem ao telefone, e que essa prática é uma causa
significativa de acidentes automobilísticos. Mas aqueles que se opuseram a tais leis dizem que
25
Ver, por exemplo, Cal. Stat. Ch. 290 (2006), Cal. Vehicle Code § 23123 (2006); N.J. Stat. Ann. 39:4-97.3 (West
2004); N.Y. Vehicle & Traffic Law § 1225-c (Consol. Cum. Supp. 2004).
elas são sobre-inclusivas em relação aos motoristas que estão falando ao telefone mas continuam
prestando atenção. Portanto, os opositores da lei insistem que o alcance de uma regra “nada de
telefone celular” é mais amplo do que a sua justificação “nada de distração”. Além disso, os
críticos afirmam, as proibições propostas são sub-inclusivas em relação a outras fontes de
distração ao volante, tais como comer ou ouvir a um empolgante evento esportivo no rádio.
Essas objeções por vezes prevaleceram, às vezes não,26 mas é importante reconhecer a maneira
pela qual, assim como ilustrado no exemplo relativamente incontroverso do limite de velocidade,
ao menos algum grau de sobre- e sob-inclusividade é uma inevitável parte da tentativa de se
reger o comportamento humano por meio de regras gerais. 27
O fato de que as regras podem produzir resultados ruins em casos particulares devido à
sua intrínsieca generalidade foi noticiado por Aristóteles muito antes de existirem telefones
celulares e muito antes da Suprema Corte ter decidido casos como Kirby e Church of the Holy
Trinity. Ao explicar porque é necessário haver uma maneira de se evitar erras de sobre- e sobinclusão, Aristóteles assinalou que “toda lei é universal”, e que “a lei considera o caso mais
usual, se bem que não ignore a possibilidade de erro. E nem por isso tal modo de proceder deixa
de ser correto, pois o erro não está na lei, nem no legislador, mas na natureza da própria coisa, já
que os assuntos práticos são dessa espécie por natureza.28
26
Ver Note, The 411 on Cellular Phone Use: An Analysis of the Legislative Attempts to Regulate Cellular Phone
Use By Drivers, 39 Suffolk U.L. Rev. 233 (2005); Note, Driving While Distracted: How Should Legislators
Regulate Cell Phone Use Behind the Wheel, 28 J. Legis. 185 (2002).
27
Um exemplo ainda mais controverso vem dos esforços de algumas municipalidades de banir determinadas raças
de cães – pit bulls, mais comumente – alegando que algumas delas tendem a ser mais agressivas e perigosas do que
outras. Como a maioria dos pit bulls não é perigosa, entretanto, o banimento iria ser sobre-inclusiva, e como
cachorros de outras raças podem ser perigosos, o banimento também seria sub-inclusivo. Em relação a isso, o
banimento de pit bull é ligeiramente diferente das regras em geral, porque os oponentes do banimento de raças
específicas tem tido considerável sucesso, muitas vezes pegando emprestado a linguagem dos direitos civis e
recusando, por exemplo, o “racismo” [“breedism”] ou o “racismo canino”. Para uma discussão e análise mais ampla
da controvérsia, ver Frederick Schauer, Profiles, Probabilities, and Stereotypes 55-78 (2003).
28
Aristóteles, Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Os Pensadores), p.96
A solução de Aristóteles para esse problema – equidade – irá ocupar parte de nossa
atenção no Capítulo Seis. Por ora, é importante apenas que se entenda que regras são
inevitavelmente gerais. Regras funcionam precisamente por causa de sua generalidade, e mesmo
se fosse possível antecipar toda possível aplicação de uma regra e incorporar o resultado certo
para toda aplicação à regra, tal regra seria complexa demais para fornecer o tipo de orientação
que esperamos das regras. E, mesmo que estivéssemos dispostos a sacrificar a inteligibilidade e a
orientação útil pela precisão, nós ainda seríamos incapazes de prever perfeitamente o futuro.
Assim como não podemos culpar os autores originais das leis de patente por serem incapazes de
antecipar, no início do século XVIII, que organismos vivos poderiam ser criados em
laboratório,29 também devemos reconhecer que mesmo o mais cuidadoso dos legisladores não
poderia possivelmente prever o que aconteceria no futuro, ou prever como nós iríamos querer
lidar com aquele futuro quando chegássemos nele. É precisamente na inevitável generalidade das
regras, portanto, que nós somos forçados a enfrentar a tensão entre o que a regra diz e o que
poderia ser interpretado como o melhor a ser feito, uma tensão que permeia o uso de regras tanto
no direito como fora dele.
2.4
A Formalidade do Direito
Não existe uma resposta uniforme sobre se e quando a linguagem de uma regra irá ou
deveria ceder ao objetivo de se atingir o melhor resultado em um caso particular. Nem o direito
sempre dá a mesma resposta quando existe um conflito entre o resultado que seria produzido
pela justificação subjacente à regra e o resultado indicado pelo sentido literal dos termos da
regra. Embora casos como United States v. Locke demonstrem que tomar os termos pelo seu
valor nominal, mesmo sacrificando o atingimento do melhor resultado para o caso particular, é
29
Ver Diamond v. Chakrabarty, 447 U.S. 303 (1980).
algo comum no direito americano (e ainda mais comum em outros lugares30), o mesmo vale para
o resultado oposto. Sim, seria um erro ignorar os numerosos casos como Locke, nos quais o que
os termos da regra literalmente dizem prevaleça na tomada de decisão jurídica. Mas é igualmente
errado ignorar a importância descritiva, nos Estados Unidos e mesmo em outros lugares, do
princípio de Church of Holy Trinity de que se atingir o propósito da regra mesmo com algum
sacrifício do sentido literal é o curso de ação apropriado. 31 De fato, se entendermos essa
caracterização das duas posições como uma outra maneira de descrever a tensão freqüente entre
a letra e o espírito da lei, é impossível concluir, especialmente nos Estados Unidos, que uma
abordagem é mais dominante do que outra.
Argumentos jurídicos para se preferir a letra ao espírito do direito são geralmente
criticados como formalistas, e decisões judiciais como Locke rotineiramente atraem acusações de
formalismo. No entanto, embora seja verdade que, nos dias de hoje, chamar um juiz, ou um voto,
ou uma decisão, de formalista raramente seja um elogio, não é inteiramente claro o que é ser um
formalista, nem o que há de errado com isso. 32
Muitas vezes, a acusação de formalismo é dirigida àqueles que parecem negar a
existência de algum grau de escolha disponível para um juiz em alguma controvérsia jurídica.
Nessa visão, juízes estão sendo formalistas quando acreditam estarem operando no núcleo de
uma regra jurídica, embora na realidade estejam na sua fronteira. Quando, em Lochner v. New
York, 33 por exemplo, o Ministro Peckham concluiu que o termo “liberdade” na Décima-Quarta
30
No Reino Unido, por exemplo, é um pouco menos provável que os tribunais ignorem as palavras da regra jurídica
mesmo quando isso for necessário para servir às justificações subjacentes da regra. Ver Patrick Atiyah & Robert S.
Summers, Form and Substance in Anglo-American Law: A Comparative Study in Legal Reasoning, Legal Theory
and Legal Institutions (1987). Para uma análise comparative mais abrangente, ver D. Neil MacCormick & Robert S.
Summers, Interpreting Statutes: A Comparative Study (1991).
31
Ver em geral Aharon Barak, Purposive Interpretation in Law (2005).
32
Ver Brian Bix, Jurisprudence: Theory and Context 179-90 (4th ed., 2006); Robert S. Summers, Form and Function
in a Legal System: A General Study (2006); Frederick Schauer, Formalism, 91 Yale L.J. 571 (1987).
33
198 U.S. 45 (1905).
Emenda necessariamente abrangia a liberdade de um empregado de padaria de concordar, sem a
interferência do estado, em trabalhar por mais do que sessenta horas por semana ou dez horas por
dia, ele agiu como se nenhum outro significado de “liberdade” fosse sequer possível. Hoje somos
capazes de dar respostas melhores, é claro, e mesmo aqueles que concordariam com a conclusão
do Ministro Peckham provavelmente não acreditariam, como o Ministro Peckham aparentemente
acreditou, que o resultado do caso foi determinado somente pelo simples significado do termo
“liberdade”. Quando tomadores de decisão jurídica como o Ministro Peckham, que estão de fato
(e talvez, como nesse caso, necessariamente) fazendo uma escolha política ou de política pública,
agem como se não houvesse qualquer escolha a ser feita – isto é, quando tratam uma escolha
política como uma simples tarefa de saber o significado claro de uma palavra – seu
comportamento é por vezes descrito como formalista. Eles agem como se a forma fosse o que
importa, mas, na verdade, é a substância que está fazendo o trabalho. E é difícil de negar que
essa forma de engano judicial – ou de auto-engano – seja digna de crítica.
O formalismo do Ministro Peckham é o formalismo da ingenuidade e merece plenamente
o estigma que atraiu. Mas, quando olhamos para outra concepção de formalismo, a do Ministro
Thurgood Marshall em United States v. Locke, por exemplo, não é tão claro que o formalismo
mereça ser tratado como um vício no fim das contas. É certamente ser formalista tomar o
significado literal dos termos “antes de 31 de Dezembro” em United States v. Locke como
ditando um resultado outro que não o mais razoável, porque isso é tratar a forma de uma regra
jurídica como mais importante que seu propósito último, ou mais importante do que se atingir o
melhor julgamento possível, levando-se tudo em consideração, em um contexto particular de um
caso particular. Mas embora a decisão do caso Locke seja, por essa perspectiva, formalista, ela
também é formalista exatamente no mesmo sentido de usar o limite de velocidade de 55
quilômetros por hora para se penalizar o motorista que está dirigindo de forma segura a 70, de
penalizar o negociante “short swing” que na verdade não tem qualquer informação privilegiada,
de permitir àqueles com causas acima de vinte e um dólares de demandarem um julgamento por
júri, e de proibir de se tornar presidente alguém de trinta de quatro anos e qualificado em todos
os sentidos possíveis. Em todos esses casos, o direito opera formalisticamente ao tratar o
significado dos termos de uma regra como mais importante do que o atingimento do propósito
último da regra e como mais importante do que o atingimento do resultado ideal no caso
particular. Isso pode ser formalista, mas formalismo é, e esses e outros incontáveis exemplos o
demonstram, uma característica central do que torna o direito algo distinto. 34
Que o formalismo é uma parte do legalismo parece claro o suficiente, mas isso não
significa que o formalismo seja sempre desejável. Nem significa que a abordagem formalista da
interpretação de regras seja algo que nós sempre esperamos ou deveríamos esperar de todos os
tomadores de decisões jurídicas. Ainda assim, se pudermos superar o fato de que o termo
“formalismo” é tipicamente usado para criticar, poderemos ver que formalismo – no sentido de
se preferir o resultado ditado pelos termos das páginas impressas ao resultado que seria o melhor
se levássemos tudo em consideração – muitas vezes há muito a ser dito em seu favor. Considere,
por exemplo, os numerosos casos envolvendo mandados de busca que acabam contendo um
endereço errado dos locais a serem revistados. Embora em muitos desses casos o mandado com
esse tipo de erro menor seja considerado válido pelo juiz, 35 existem muitos outros em que se
34
"De todas as críticas levantadas contra o textualismo, a mais estúpida é a de que ele é" formalista ". A resposta
para isso é, é claro que ele é formalista! O Estado de Direito diz respeito à forma. " Antonin Scalia, A Matter of
Interpretation: Federal Courts and the Law 25 (1997). [No original: “Of all the criticisms leveled against textualism,
the most mindless is that it is ‘formalistic.’ The answer to that is, of course it is formalistic! The rule of law is
about form.” ]
35
Por exemplo, United States v. Lora-Sorano, 330 F.3d 1288 (10th Cir. 2003).
chega à conclusão oposta. Como United States v. Kenney, 36 por exemplo, no qual o Tribunal do
Distrito Federal [United States District Court for the District of Columbia] invalidou uma busca
realizada no número 2124 da Rua 8, em Washington, porque o mandado tinha especificado o
número 2144 da Rua 8. Ou como United States v. Constantino,37 no qual o contrabando de fato
encontrado em uma busca no número 710 da Rua Jacksonia foi similarmente desconsiderado
como prova porque o mandado espeficara o número 807 da Rua Jacksonia. Para os tribunais que
decidiram esses casos, a abordagem formal, técnica, e literal de interpretação do mandado era
justificada porque a questão real não era se os oficiais de polícia tinham procurado no prédio
certo, mas sim se os oficiais de polícia deveriam ser habilitados a decidir sozinhos quais
instalações deveriam realmente ser revistadas, não obstante a exata linguagem do mandado.
Se o formalismo de se tratar mandados de busca de forma literal é visto como no mínimo
plausível, então o próprio formalismo não é necessariamente um vício ou não deveria ser
considerado sempre como um vício. Ao contrário, as virtudes do formalismo são parte de uma
consideração maior sobre se um certo tipo de tomadores de decisões deveriam ser habilitados a
decidir quando a linguagem literal de uma regra (a que a descrição do local no mandado de
busca, embora não exatamente uma regra, é análoga) deveria dar espaço para uma determinação
menos limitada de propósito, razoabilidade, ou senso comum, por exemplo. Aqueles que
defendem o resultado em United States v. Locke,38 por exemplo, não afirmam que rejeitar a
demanda do Sr. Locke porque ele a apresentou em 31 de dezembro ao invés de antes de 31 de
dezembro seja o melhor ou o mais razoável resultado naquele caso. Ao contrário, eles
argumentam que a questão real diz respeito a se e quando devemos permitir que juízes decidam
36
164 F. Supp. 891 (D.D.C. 1958).
201 F. Supp. 160 (W.D. Pa. 1962). See also United States v. Ellis, 971 F.2d 701 (11th Cir. 1992).
38
Incluindo esse autor. Ver Frederick Schauer, The Practice and Problems of Plain Meaning, 45 Vand. L. Rev. 715
(1992).
37
quando a linguagem literal de uma decisão do Congresso deve ser posta de lado em prol do que
os juízes acreditam ter sido a intenção do Congresso ou o resultado que o Congresso teria
preferido. Quando a questão é reformulada dessa maneira, não está mais tão claro que uma
abordagem formal das regras jurídicas seja necessariamente criticável ou deva ser sempre
criticada, mesmo que os resultados desse formalismo em casos particulares por vezes possam
parecer estranhos e algumas vezes até mesmo ridículos.
Nada disso é para dizer que o direito é sempre formal dessa maneira, nem que ele
deveria sê-lo. Como vimos, os tribunais muitas vezes ignoram ou circunavegam a linguagem
literal da regra quando ela é inconsistente com o óbvio propósito legislativo, e é um erro
argumentar que United States v. Locke seja mais representativo da análise jurídica do que
Church of the Holy Trinity ou United States v. Kirby. Ambas as abordagens, formal e não-formal
(ou finalística), são respeitáveis alternativas profissionais para um juiz ou um advogado no
sistema jurídico americano, e exemplos incontáveis podem ser encontrados para dar suporte a
ambas. Como resultado, não é incomum ver casos nos quais uma das partes está argumentando
na base da letra da lei e a outra está se apoiando no espírito, no propósito, na razão subjacente da
lei. Mas mesmo quando o espírito, ou propósito, ou razão subjacente prevalece, o direito
continua sendo predominantemente [pervasively] formal. É comum que a linguagem literal dê
lugar ao propósito último de uma regra jurídica particular, como em Church of the Holy Trinity,
mas é consideravelmente mais raro que o propósito por trás da regra também ceda quando um
juiz determina que até mesmo a aplicação daquele propósito seria inconsistente com a justiça, ou
com concepções maiores de igualdade ou do que é uma boa política [good policy]. Quando um
tribunal rejeita o pedido [denies relief] de um litigante com uma reivindicação válida em todos os
outros aspectos porque ele não cumpriu uma regra de procedimento, por exemplo, o tribunal está
reconhecendo que seu trabalho não é meramente decidir qual das partes, levando tudo em
consideração, é mais digna.39 Da mesma forma, quando é permitido a uma parte escapar de uma
obrigação contratual por causa da ausência de uma formalidade contratual necessária, 40 ou
quando, antes da ascensão da doutrina da negligência comparada [comparative negligence
doctrine], o requerente que era ligeiramente culpado teve seu pedido negado contra um réu que
agiu com culpa substancial.41 Em todos esses casos, a formalidade generalizada do direito, sua
tendência de levar suas regras e as palavras delas a sério mesmo quando em alguns casos elas
possam produzir uma injustiça, é o que distingue o direito de muitos outros contextos de tomada
de decisão.
Por vezes, porém, o direito age de outra forma. Um exemplo proeminente é Riggs v.
Palmer,42 no qual Elmer Palmer, nomeado como beneficiário no testamento de seu avô, tentou
acelerar o recebimento de sua herança com a conveniente estratégia de assassinar o testador. O
caso não envolvia a condenação criminal de Elmer pela morte de seu avô. Em relação a isso
Elmer tinha pouca defesa e foi devidamente condenado a uma longa pena de prisão. Elmer
alegou, no entanto, que mesmo tendo sido condenado e cumprindo a pena por homicídio, ele
ainda tinha o pleno direito à herança. A regra relevante, a Lei de Testamentos de Nova York [the
New York Statute of Wills], não dizia nada sobre beneficiários assassinos. Dispunha apenas que,
com a morte do testador, o beneficiário sob um testamento válido tinha direito pleno à herança.
Esse era o caso aqui, argumentou Elmer, e, embora soubesse que tinha de ir à prisão, ele também
acreditava que tinha pleno direito à propriedade de seu avô.
39
Ver, por exemplo, General Mills, Inc. v. Kraft Foods Global, Inc., 495 F.3d 1378 (Fed. Ct. 2007); Speiser, Krause
& Madole, P.C. v. Ortiz, 271 F.3d 884 (9 th Cir. 2001).
40
Ver Robert S. Summers, Why Law is Formal and Why It Matters, 82 Cornell L. Rev. 1165 (1997).
41
Ver, por exemplo, Miller v. United States, 196 F. Supp. 613 (D. Mass. 1961); Co-Operative Sanitary Baking Co.
v. Shields, 70 So. 934 (Fla. 1916).
42
115 N.Y. 506 (1889).
O Tribunal de Apelação [Court of Appeals] famosamente43 rejeitou a alegação de Elmer,
concluindo que a linguagem literal da Lei de Testamentos deveria ceder ao princípio de que
nenhuma pessoa deve lucrar com sua própria torpeza. Mas, mesmo nesse caso, houve um voto
vencido, e não é de forma alguma claro que deixar de lado o resultado indicado pela regra
concreta em função de concepções de justiça maiores e menos concretas seja uma caracterização
acurada da natureza típica da tomada de decisões jurídicas. Em casos extremos, de que Riggs v.
Palmer parece ser um exemplo óbvio, regras específicas são muitas vezes deixadas de lado, mas
em casos menos extremos do que esse é muito mais comum que uma regra seja aplicada mesmo
quando parece que, com isso, alguma injustiça está sendo cometida. De fato, há muitos casos em
que se permite que beneficiários responsáveis pela morte do testador recebam a herança,
incluindo um em que o beneficiário foi condenado por homicídio voluntário de uma pessoa com
cuja morte ele iria lucrar, 44 outro no qual o beneficiário foi declarado culpado por ser cúmplice
[acessory] no assassinato do testador,45 ainda outro em que um herdeiro havia matado o titular de
uma propriedade para que o assassino pudesse ter a propriedade mais cedo, 46 e, finalmente, um
caso em que se permitiu que uma mulher “egoísta, irritada, ressentida, indignada, amarga,
egocêntrica, rancorosa, vingativa, paranoica e avarenta”
47
, e cuja negligência grave serviu a
“encurtar a vida do falecido”, recebesse sua herança mais cedo do que de outra forma teria sido o
caso.
Assim como existem casos em que se permite que uma regra prevaleça mesmo quando
isso significa cometer uma injustiça, também há ainda mais casos nos quais tribunais tem
43
O caso é analisado extensivamente pelo filósofo jurídico Ronald Dworkin em ‘Levando os Direitos à Sério (1977)
e O Império do Direito (1986). Dworkin aplaude de forma retumbante o resultado, e o toma como um exemplo
altamente típico da abordagem americana (que, para ele, é a melhor) de tomada de decisão.
44
Bird v. Plunkett, 95 A.2d 71 (Conn. 1953).
45
Reynolds v. American-Amicable Life Ins. Co., 591 F.2d 343 (5th Cir. 1979).
46
Blanks v. Jiggetts, 64 S.E.2d 809 (Va. 1951).
47
Cheatle v. Cheatle, 662 A.2d 1362 (D.C. 1995).
aplicado regras que consideram ruins porque mudanças em regras ruins, ao menos naquelas
regras ruins que vieram de um órgão legislativo, devem ser feitas por uma legislatura e não por
um tribunal. Em Blanchflower v. Blanchflower,48 por exemplo, a Suprema Corte de New
Hampshire se deparou com a questão de se adultério com alguém mesmo sexo poderia contar
como adultério para os propósitos da Lei de Divórcio de New Hampshire (New Hampshire atfault divorce statute), uma lei cuja linguagem tornava claro que o adultério só poderia ser
cometido com uma pessoa do sexo oposto. O tribunal pareceu acreditar que a lei era, ao mesmo
tempo, anacrônica e moralmente duvidosa em termos de igualdade, mas concluiu que qualquer
mudança na lei deveria ser feita por um órgão legislativo e não por um tribunal. Para a Suprema
Corte de New Hampshire, assim como para o juiz dissidente em Riggs, para os tribunais que
divergiram de Riggs e permitiram que pessoas lucrassem com sua própria torpeza, e como a
Suprema Corte em Locke, o que a regra de fato diz em linguagem clara ou literal de seus termos
fez uma diferença substancial. A letra da regra pode nem sempre fazer toda a diferença, , como o
voto da maioria em Riggs e as decisões de Church of the Holy Trinity e Kirby,, ou nem mesmo
fazer alguma diferença. Mas ignorar a ubíqua importância do que a regra jurídica literalmente diz
é ignorar algo importante sobre as regras.
A importância do que o que uma regra de fato diz não é apenas um elemento sobre
regras. Mais incisivamente, ignorar a ainda mais ubíqua importância do que as regras fazem
mesmo quando elas realmente parecem injustas é ignorar algo muito importante sobre o próprio
direito. Não é o propósito do direito, é claro, ser injusto só pelo bem de ser injusto [for the sake
of being unfair]. Mas existe um grupo importante de valores – previsibilidade do resultado,
uniformidade de tratamento (tratar casos semelhantes de maneira semelhante), e o medo de
concessão irrestrita de discricionariedade para os indivíduos tomadores de decisão, ainda que
48
834 A.2d 1010 (N.H. 2003).
eles estejam usando togas pretas – que o sistema jurídico, em particular, pensa valer a pena
preservar. Esses valores muitas vezes passam pelo nome de Estado de Direito, e muitas das
virtudes do estado de direito são aquelas que se atinge ao se levar as regras a sério. Ao fazer isso,
o direito permanece irredutivelmente formal, e, assim, por vezes parecerá injusto em casos
particulares. Mas o direito está mais do que simplesmente fazendo a coisa certa para cada caso
individual. Às vezes, a falta de vontade do direito de fazer exatamente isso pode parecer um
equívoco, mas o que faz do direito o que ele é – geralmente para o melhor, mas, às vezes, para o
pior – é tomar como importantes valores institucionais e sistêmicos maiores, mesmo se,
ocasionalmente, às custas da justiça ou de se adotar uma política sábia [wise policy], ou da
eficiência no caso individual. Existem várias maneiras nas quais o direito faz isso, mas a
principal delas é levar as regras a sério, e entender quando, por que, e quais regras – enquanto
regras – são importantes no direito nos fará avançar bastante na compreensão do direito em si.

Documentos relacionados