LIBERALISMO E EDUCAÇÃO PROTESTANTE NO BRASIL: O

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LIBERALISMO E EDUCAÇÃO PROTESTANTE NO BRASIL: O
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LIBERALISMO E EDUCAÇÃO PROTESTANTE NO BRASIL: O SISTEMA
EDUCACIONAL ADVENTISTA QUE SE INSTALOU EM CURITIBA EM FINS DO
SÉCULO XIX
Maria Elisa Leite Corrêa
Maria Elisabeth Blanck Miguel
PUCPR
RESUMO
Liberalismo e educação protestante no Brasil: o sistema educacional Adventista que se instalou em
Curitiba em fins do século XIX é um artigo que resultou da pesquisa O propósito dos Adventistas: a
transformação de uma ideologia religiosa em sistema educacional, sob a influência dos ideais liberais,
e seu transplante para o Brasil, em Curitiba, em fins do século XIX e início do século XX. Este artigo
objetiva mostrar as influências da doutrina liberal sobre a educação protestante Adventista de origem
norte- americana que se instalou em Curitiba em 1896. A investigação se deu pelo método históricobibliográfico e documental, com fontes primárias e secundárias, que possibilitaram examinar a
doutrina Adventista e a proposta pedagógica de seu sistema educacional a fim de verificar se há uma
relação entre o liberalismo e a educação confessional veiculada pelo protestantismo Adventista. Para
se alcançar os objetivos propostos, serviu-se da teoria liberal como marco de referência, bem como da
história do protestantismo no Brasil e dos fundamentos da filosofia da educação Adventista de origem
norte-americana. Os resultados permitiram constatar que a hipótese apresentada se confirmou porque a
educação Adventista reflete os ideais que nutriram a teoria liberal. Essa constatação só foi possível
porque, para que se pudesse estabelecer as aproximações entre o liberalismo e a prática pedagógica
Adventista, as principais categorias do liberalismo foram elencadas em número de sete, a saber: a
liberdade, o individualismo, a propriedade, o trabalho, a igualdade, a democracia e o progresso. O que
também possibilitou a confirmação de que a educação protestante Adventista está alinhada aos ideais
do liberalismo foi a análise dos escritos de Ellen White, a grande profetiza do Advento, a mais
prolífica escritora norte-americana e a mais traduzida em todo o mundo. Estes escritos whiteanos
forneceram as bases educacionais e filosóficas da educação Adventista e mostram que White também
fora passiva das influências do liberalismo através dos estudos que fez de Comênio, Rousseau,
Pestalozzi, Herbart, Froebel e principalmente de Horace Mann. Este educador liberal norte-americano
foi considerado o pai das escolas públicas nos Estados Unidos. Após identificadas as categorias
liberais na proposta pedagógica Adventista, foi possível buscar em sua prática educacional a forma
como as mesmas aí aparecem. Resumidamente, podem ser assim descritas: a liberdade, está
fundamentada na filiação divina, se define como a faculdade de transgredir ou não as ordens do
Criador e, portanto, trata-se de ser responsavelmente livre; o individualismo, está baseado na revelação
que Deus fez de Si mesmo e nos ensinamentos individuais de Cristo e, por isso, a realização da
individualidade é pessoal e se dá através da razão e da fé individuais; a propriedade, é considerada
benção que Deus, o verdadeiro e legítimo possuidor de todas as coisas, disponibilizou aos homens; o
trabalho, a educação Adventista o exorta como método para o acúmulo de riquezas tanto materiais
como espirituais; a igualdade, para a pedagogia Adventista, se encontra no fato de que todos os
homens foram criados igualmente por Deus e com os mesmos direitos de ascender espiritual e
materialmente; a democracia, na educação Adventista, está na administração de suas instituições a
partir de seu projeto de construir uma sociedade mais justa e igualitária; o progresso, se dá em todo
ramo essencial do conhecimento que, conseqüentemente, leva ao êxito individual que é o gerador do
progresso de toda a sociedade. Assim, estabelecidas essas aproximações, se percebe que a educação
Adventista de origem norte-americana, por ter pautado seu programa educacional nos preceitos
liberais ditados por Ellen White, de fato assimilou e difundiu os valores do liberalismo norteamericano que, em fins do século XIX e início do século XX, também agitavam o cenário cultural da
recente República brasileira.
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TRABALHO COMPLETO
Este artigo visa apresentar alguns resultados da pesquisa pautada pelo tema “o liberalismo e
sua influência sobre a educação Adventista em Curitiba, nos fins do século XIX e início do século
XX”. A apresentação deste tema se justifica porque o início da República foi um período de grande
agitação sócio-político-econômica no Brasil, na virada do século XIX para o século XX. No panorama
cultural se verificaram transformações que aconteceram no bojo das novas idéias que chegaram da
Europa e dos Estados Unidos e acabaram por conduzir a sociedade brasileira a uma nova visão de
mundo, visto que o sistema até então estabelecido não mais atendia às necessidades humanas1 da
população. Assim, fundamentado nesse novo modelo de perceber as relações entre as sociedades que
as sustém, o Brasil assimila essas novas idéias e as adapta à sua realidade.
Passivo das novas idéias que se infiltraram na cultura, o sistema educacional brasileiro sofreu
suas influências e as refletiu na política da educação nacional e nas práticas pedagógicas. Isso fez com
que, nas últimas décadas do Império, o ensino no Brasil recebesse impulso novo com o surgimento das
primeiras escolas protestantes de iniciativa particular que, trazendo as inovações da pedagogia
progressista e libertadora, propunham a emancipação intelectual em substituição ao autoritarismo e ao
conservadorismo educacional jesuítico católico praticado no País.
O Paraná também não passou imune às transformações havidas. Embora no princípio da
República Curitiba ainda tivesse uma rede escolar precária que, segundo TRINDADE e
ANDREAZZA (2001), em 1893, contava com apenas três edificações destinadas exclusivamente ao
ensino, o Estado, com seu ambiente cultural marcado pelo grande número de imigrantes,
especialmente os alemães, viu propagarem-se escolas primárias de estrangeiros que procuravam
também o ensino público secundário propedêutico e, principalmente, o profissionalizante. Este chega
como nova prática educacional objetivando a preparação do cidadão para o trabalho, conforme
tendência liberal e positivista da época.
Dentre outros imigrantes protestantes que afluíram para o Brasil nas últimas décadas do
Império e nos primeiros anos da República, encontravam-se os missionários e educadores norteamericanos de origem germânica da denominação Adventista. Enviados ao Sul do País (em 1892)
fundam em Curitiba, em 1896, sua primeira escola no Brasil, à qual deram o apropriado nome de
Colégio Internacional, uma vez que, embora instituído num país de língua portuguesa, fazia uso da
língua germânica para ministrar suas aulas e difundir os valores da cultura norte-americana de língua
inglesa aos seus alunos que, no caso de Curitiba, eram oriundos da colônia germânica, em sua maioria.
À época da implantação da educação Adventista no Brasil, a educação pública no Paraná se
integrava ao conjunto nacional alinhado ao modelo educacional liberal, que somente nos discursos e
na letra das leis é que privilegiava a educação escolar. Segundo MIGUEL (1977, p.22), “Esse
liberalismo literal, que dava arcabouço para a educação pública, constituía-se em uma das formas de
expressão, também no Estado, de como se articulavam as classes sociais e do modo como eram
distribuídos os bens materiais e culturais, socialmente produzidos.”
Objeto de pesquisa que se fez pelo método histórico bibliográfico, o sistema educacional
Adventista apresentou-se como rico campo favorável à identificação das principais categorias da
doutrina liberal e, assim, possibilitou responder ao problema proposto: “Há uma relação entre o
liberalismo e a educação Protestante Adventista que se instalou em Curitiba no final do século XIX e
início do século XX?”
Após uma rigorosa investigação do Protestantismo Adventista2 e de seu sistema educacional
solidamente embasado nos preceitos religiosos e filosóficos enunciados pela profetiza do advento, a
escritora norte-americana Ellen White (1827-1915), o principal objetivo deste estudo foi levantar as
condições históricas em que a educação Adventista se estabeleceu na sociedade paranaense. Para
tanto, foram necessárias algumas ações específicas, tais como: o resgate histórico das principais idéias
da doutrina liberal; a verificação do contexto brasileiro e paranaense da época; o levantamento da
história da Educação Protestante Adventista e de seus fundamentos pedagógicos para, finalmente,
estabelecer a relação entre o liberalismo e a educação Adventista.
O que se obteve como resultado confirmou a hipótese de que, por ser originária da imigração
norte-americana, a educação protestante no Brasil sofreu as influências liberais, cujos ideais tão bem
se desenvolveram em solos da América do Norte. Assim, a educação Adventista espelha os ideais
liberais pelas influências3 que sofreu de Comênio (1592-1670), de Rousseau (1712-1778), de
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Pestalozzi (1746-1827), Herbart (1776-1841), Froebel (1782-1852) e de Horace Mann (1796-1859)
que mais diretamente influenciara o pensamento de Ellen White, a grande sistematizadora da
Educação Adventista.
Isso torna importante conhecer alguns traços da história de Horace Mann. Grande educador
norte-americano, considerado o pai da instrução pública em seu país, era de família pobre e se formou
em direito com grandes sacrifícios. Foi professor na Universidade de Brown, deputado estadual,
senador da República e secretário da Educação de Massachusets. Como senador, participou da criação
do Congresso Escolar Estadual, em 1837 e sua designação para a direção das escolas públicas de
Massachusets, em 1837, é considerado o fato mais significativo para o desenvolvimento da educação
norte-americana do século XIX, por seus relatórios publicados anualmente, durante doze anos, onde
discutia as necessidades e o aperfeiçoamento do sistema escolar.
Em 1843, Mann dedicou cinco meses ao estudo das escolas de vários países europeus, e suas
conclusões e observações foram publicadas no 7º relatório anual, que acabou por se tornar um clássico
educacional, cujos apontamentos podem ser assim resumidos: a educação deve ser popular e universal;
deve ser livre de discriminação étnica, social e religiosa; deve ser ministrada por professores
capacitados e dotados de conhecimentos pedagógicos; cada escola, e também a comunidade, devem
ter sua própria biblioteca, os melhores prédios e equipamentos; métodos aperfeiçoados; insistia na
pontualidade e na regularidade da freqüência que deve ser obrigatória; reivindicava remuneração mais
alta para os professores; leis rigorosas contra o trabalho infantil; dez meses letivos; mais escolas
secundárias estaduais; o abandono do castigo corporal e providências para a educação de crianças
desamparadas e com defeitos físicos.
Em 1838, Mann fundou o Jornal da Escola Comum e, por sua influência foram fundadas 3
escolas normais para formação de professores. Ele acreditava que a grandeza da escola comum estava
em seu poder de livrar as crianças do crime, o que, para ele, era melhor do que tentar corrigi-las
depois. Com essa crença elaborou sua grande tese que divulgou por todos os meios de expressão: “A
Escola Comum é a maior descoberta feita pelo homem.”
Após deixar a Secretaria da Educação para assumir uma cadeira no Congresso Nacional,
Mann se integrou à campanha abolicionista e, quando perdeu a eleição para Governador, assumiu a
direção do Colégio Antioch, Ohio, onde permaneceu por 6 anos até sua morte.
Este breve resgate da trajetória de Horace Mann, ao mostrar suas principais idéias, permite
compreender a extensão de sua influência sobre o pensamento de Ellen White e, por conseguinte,
sobre o sistema educacional Adventista que reflete os mesmos ideais liberais encontrados em Mann e
na educação norte-americana, conforme se pode constatar.
Para viabilizar o estudo da Educação adventista em sua relação com os ideais liberais, se
buscou identificar a proposta pedagógica Adventista, sua filosofia, objetivos e princípios
metodológicos, assim como também, construir um quadro mostrando como a teoria liberal se
expressou nos discursos protestantes e nas suas práticas educacionais através das principais categorias
do liberalismo: a liberdade, o individualismo, a propriedade, o trabalho, a igualdade, a democracia e o
progresso.
LIBERALISMO E EDUCAÇÃO
Tendo como um dos marcos teóricos a doutrina liberal, o estudo mostrou que, como expressão
da weltanschauung4 individualista, o liberalismo surgiu no século XVI e alcançou o auge no século
XVIII, vindo a se refletir na educação do século XIX através do conceito de indivíduo, o qual passa a
ser considerado uma entidade moral com direitos inalienáveis por decorrência de sua própria
humanidade e que, por isso, só pode desenvolver suas potencialidades sendo um ser humano livre.
Trata-se de liberdade com responsabilidade, pois um indivíduo livre, autônomo, não pode
impor sua vontade, arbitrariamente, para sujeitar a dignidade humana de um outro indivíduo igual em
valor. WARDE (1984, p.33), cita Hallowell para mostrar como a responsabilidade garante a liberdade
na doutrina liberal: “A fim de que cada indivíduo tenha liberdade, todos os indivíduos devem
reconhecer alguma autoridade comum e alguma responsabilidade comum. Essa autoridade, acima de
tudo, deve ser impessoal, calculável e objetiva. Apenas através da aceitação pelos indivíduos de uma
autoridade comum impessoal, racional e objetiva, pode cada um deles ser tido como livre.”
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Essa concepção liberal de lei faculta uma aproximação entre o liberalismo e o protestantismo,
como constatou WARDE (1984, p.34) em Hallowell: “a uma concepção anárquica da sociedade como
composta de unidades individuais autônomas, o liberalismo opunha a concepção de uma ordem que
transcendia os indivíduos e colocava a responsabilidade pela realização dessa ordem, potencialmente
corporificável em termos de verdades eternas, na razão individual e na consciência. O laço entre a
vontade subjetiva e a ordem objetiva que transcende os indivíduos era a razão e a consciência.”
Para essa racionalidade liberal que transcende a subjetividade, a educação era considerada
uma atividade de interesse geral e, portanto, um direito do indivíduo e um dever do Estado, ao qual
cabe intervir em todas as suas questões visando facilitar, encorajar e até obrigar a sociedade a desfrutar
da educação que oferece através de dois mecanismos fundamentais: a criação e manutenção de escolas
e uma legislação própria para a educação elementar de boa qualidade. Interessante observar que,
contraditoriamente, embora de caráter liberal, essa legislação tornava obrigatório o ensino elementar
como forma de preparar indivíduos para ofícios mais baixos, mesmo antes de começarem a trabalhar.
Centrada no indivíduo, a educação liberal vê a sociedade como um conjunto de indivíduos
que, em nome da ordem social e econômica, devem se manter livres pela tolerância de uns em relação
aos outros, sem se negarem o direito de divergir e pensar diferente, mas que agindo em cooperação
conjunta devem definir interesses comuns. Daí decorre a principal função da educação liberal que é
formar o indivíduo capaz de praticar sua ação livremente, para, desse modo, participar da construção
de um mundo melhor para todos – liberal, democrático e igualitário.
Por este modelo de ordenamento social, o educador liberal acredita que quanto mais educação
pública, mais o Estado está agindo em prol de uma sociedade cada vez mais livre e mais democrática,
e que a maior responsabilidade da educação liberal é, conseqüentemente, participar da construção
dessa sociedade livre e democrática.
Essa weltanschauung liberal fundamentou seus princípios em algumas categorias que podem
ser encontradas no protestantismo e na educação protestante da virada do século XIX para o século
XX, o que permite identificá-las na educação veiculada pela denominação protestante Adventista de
origem norte-americana.
A EDUCAÇÃO ADVENTISTA EM SUA RELAÇÃO COM OS IDEAIS LIBERAIS
A história da educação protestante no Brasil foi outro marco de referência que fundamentou a
pesquisa e possibilitou constatar que chegando ao Brasil em fins do século XIX, quando em 1896
funda em Curitiba seu primeiro colégio, a Educação Adventista expressa os ideais liberais que ditavam
a tendência do pensamento não só educacional, como também sócio-político-econômico e até mesmo
religioso da Primeira República brasileira. Construída no bojo dos ideários do liberalismo e do
positivismo, que influenciaram nas importantes mudanças havidas na sociedade, a República se tornou
mais complexa com a abolição da escravatura, a separação entre Igreja Católica e Estado (1890), a
imigração européia que deveria substituir a mão-de-obra escrava, e a imigração missionária
protestante, dentre outros tantos fatos que contribuíram para as transformações pelas quais o País
passava.
Mas, não só o Brasil sofria as influências liberais, conforme já visto em relação à educação
norte-americana. Segundo MENDONÇA (1990, p.63), “o universo das idéias do século XIX é o
liberalismo (...) O chamado espírito da civilização moderna” se evidenciava pelo desejo de
secularização da sociedade, pela valorização do povo em vez das elites, pelo livre espírito científico,
pela laicização do Estado e pela concepção evolutiva que tinha da sociedade. Assim, na modernidade,
as lutas do homem pela conquista da liberdade cristalizaram-se na teoria liberal que acrescentou novos
modos de se ver o mundo: conhecimento e domínio da natureza para segurança, conforto e lazer do
homem; certeza de que as mudanças se faziam como prenúncio de um mundo melhor, garantido pela
confiança no progresso da humanidade.
Sabendo-se que para compreender uma prática pedagógica se deve analisá-la no contexto da
sociedade em que se insere, no caso do protestantismo de confissão Adventista de origem norteamericana, o resultado da investigação permitiu percebe que suas bases, em particular seus
fundamentos educacionais, estão solidamente edificados sobre os preceitos religiosos e filosóficos que
Ellen White enunciou e que, como parte desse universo de idéias liberais da modernidade, refletem as
influências que recebera da doutrina liberal.
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Assim sendo, foi possível buscar na proposta pedagógica Adventista as principais categorias
que nutriram a teoria liberal, conforme elencadas anteriormente, e verificar como se expressam em sua
prática educativa, para que se pudesse estabelecer algumas aproximações entre a educação Adventista
e o Liberalismo, como segue:
1- A primeira categoria liberal elencada, a liberdade, para o liberalismo ela é
individual e norteia as liberdades intelectual, religiosa, econômica e política, sendo que cada
indivíduo é tão livre quanto outro por seus talentos e dons individuais que concorrem para o
progresso da sociedade.
Aos olhos do protestantismo, a liberdade deve ser responsável e corresponde ao livre
arbítrio que garante ao crente a livre interpretação das Escrituras e lhe permite o acesso direto
a Deus.
A educação Adventista fundamenta a liberdade no princípio de filiação divina, de
acordo com o que escreveu WHITE (1968, p.23): “Posto que fossem criados inocentes e
santos, nossos primeiros pais não foram colocados fora da possibilidade de fazer o mal. Deus
poderia tê-los criado sem a faculdade de transgredir Suas ordens, mas em tal caso não poderia
haver desenvolvimento de caráter; serviriam a Deus não voluntariamente, mas constrangidos.
Portanto Ele lhes deu o poder de escolha, a saber, o poder de prestar ou não obediência.”
Por essa fundamentação, a educação Adventista reconhece o ser humano como dotado
da capacidade de aprender e livre para optar por desenvolver, ou não, essa faculdade da
aprendizagem, mas que deve ter a responsabilidade de conhecer a verdade como forma de
conquistar a liberdade e a individualidade. Portanto, trata-se de liberdade com
responsabilidade, conforme as palavras de WHITE (1996, p.297): “Os estudantes devem sentir
sua responsabilidade na questão de tornar sua vida escolar um sucesso (...) A vida é um
problema que devemos resolver individualmente por nós mesmos. Ninguém pode formar um
caráter para outrem: cada um de nós tem uma parte a desempenhar quanto a decidir seu
próprio destino, Somos livres e responsáveis agentes de Deus.”
Assim, cabe à educação Adventista formar o indivíduo capaz de “desenvolver a
capacidade de raciocinar, julgar e escolher responsavelmente. Posicionar-se de maneira crítica,
responsável e construtiva, nas diferentes situações sociais e morais, utilizando o diálogo como
forma de mediar conflitos e de tomar decisões coletivas.” (USB, 1999, p.38), para que se torne
livre e responsável. Então, orientada por seus próprios preceitos, que neste caso estão em
consonância com a teoria liberal, a educação Adventista, apresentando coerência entre seu
discurso e sua prática, se mostra como exemplo de liberdade responsável frente aos jovens que
busca formar.
2- A segunda categoria liberal tratada, o individualismo, apresenta cada indivíduo
como um sujeito que deve ser respeitado por seus próprios talentos e aptidões, atualizados ou
em potencial, e que é responsável por suas próprias condições.
O protestantismo acredita que a salvação é individual e de responsabilidade pessoal,
pois a graça divina da salvação é alcançada através do encontro pessoal com Deus.
A educação Adventista, baseada na revelação que Deus fez de Si mesmo, vê no
desenvolvimento das faculdades mentais o caminho para a realização da individualidade, uma
vez que a salvação sendo pessoal, só pode ser alcançada pelos conhecimentos apropriados
individual e pessoalmente, mas sem o risco de se incorrer no individualismo porque a
produção do conhecimento secular vem do Conhecimento Verdadeiro5 que conduz à
solidariedade do Amor ao próximo e da Regra Áurea6.
Objetivando habilitar o indivíduo para o uso das faculdades que Deus deu a cada um
individualmente, a obra educacional Adventista segue a orientação de WHITE (1968, p.231),
que diz:
Em todo verdadeiro ensino o elemento pessoal é essencial. Cristo, em Seu ensino,
tratava com os homens individualmente. Foi pelo trato e convívio pessoal que Ele
preparou os doze. Era em particular, e muitas vezes a um único ouvinte, que dava
Suas preciosas instruções (...) Mesmo a multidão que tantas vezes Lhe dificultava
os passos não era para Cristo uma massa indistinta de seres humanos. Falava
diretamente a cada espírito e apelava para cada coração.
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Por seus fundamentos cristãos whiteanos, a pedagogia Adventista tem razão e fé como
questões de foro individual, pois, segundo WHITE (1968, p. 231), “a capacidade de discernir
entre o que é reto e o que não é, podemos possuí-la unicamente pela confiança individual em
Deus. Cada um deve aprender por si, com auxílio dEle (...)”.
3- Em terceiro lugar se analisou a categoria da propriedade. Inevitavelmente ligada ao
liberalismo, a propriedade aparece como direito natural do indivíduo, cuja noção pressupõe o
homem que detém sua posse, e é imprescindível à liberdade individual. Para LASKI (1973,
p.13), indivíduo livre é o proprietário que “dispõe sempre de liberdade, por assim dizer, para
comprar a sua liberdade na sociedade que construiu (...)” e o Estado liberal deve proteger a
propriedade porque está a serviço dos homens que estão na condição de proprietários.
No protestantismo, o indivíduo livre é considerado proprietário de si próprio e
responsável individual e pessoalmente por suas ações e posses, inclusive os conhecimentos
secular e religioso.
O sistema educacional Adventista considera que a questão da propriedade deve ser
abordada como uma providência especial em favor da educação dos homens. WHITE (1968,
p.43), discorre ampla e profundamente sobre a propriedade da terra, mas aqui se reproduz
apenas a principal noção da qual ela lançou mão para embasar suas idéias: “Distribuindo a
herança a Seu povo, era intento de Deus ensinar-lhes, e por meio deles o povo das gerações
vindouras, princípios corretos a respeito da posse da terra (...) Conquanto qualquer pudesse
por algum tempo dispor de suas posses, não poderia transferir a herança de sues filhos. Ficava
na liberdade de redimi-la em qualquer tempo que o pudesse fazer.”
Também considerou a respeito da propriedade de Deus, a Quem é devido um décimo
de toda a renda auferida, assim como se deve destinar igual valor para auxilio dos mais
necessitados, para que se mantenha vivo na consciência do povo que Deus é o verdadeiro e
legítimo possuidor de todas as coisas e as disponibiliza aos homens como bênçãos. Para
WHITE (1968, p.44), a função deste ensinamento é “extirpar toda a estreiteza egoísta, e
cultivar largueza e nobreza de caráter.”
4- Quanto à quarta categoria, o trabalho, a teoria liberal o considera, juntamente com o
talento, um instrumento legítimo para aquisição de riquezas, propriedades e de ascensão
social, mesmo dos pobres.
O trabalho, para os protestantes, resulta do dom divino da vocação, dado a cada
indivíduo como meio de se obter o êxito que leva à riqueza e permite elevar o padrão social do
indivíduo e, por conseqüência, de toda a sociedade a que pertence.
Relevante nos aspectos morais, a riqueza auferida através do trabalho não é condenada
eticamente pelo protestantismo que, aliás, até a recomenda como espelho de sucesso tanto no
mundo material quanto no espiritual, conforme se verifica em WEBWR (1996, p.126), ao citar
o pastor metodista John Wesley:
Porque a religião deve necessariamente produzir tanto a operosidade como o
senso de economia, e essas só podem produzir riqueza (...) Os metodistas
tornaram-se laboriosos e econômicos em toda parte; conseqüentemente, aumenta a
sua riqueza. E, proporcionalmente, crescem deles o orgulho, as paixões, os
apetites da carne e do mundo, e a sabedoria da vida. Assim, embora permaneça a
forma da religião, seu espírito rapidamente se desvanece. Não haverá algum meio
para evitar essa decadência da pura religião? Não devemos deixar de recomendar
às pessoas que sejam laboriosas e econômicas. Devemos exortar todos os cristãos
a ganhar tudo o que for possível, e a economizar o máximo possível; aqueles que
ganham tudo o que podem e poupam quanto podem, devem dar tudo o que podem
(...)
A educação Adventista também exorta o trabalho como método para acúmulo de
riquezas materiais e espirituais, como se pode apreender desta passagem de WHITE (1996,
p.317): “Na atualidade, poucos são realmente laboriosos e econômicos. A pobreza e a dor se
encontram em toda a parte. Há homens que trabalham arduamente, e obtêm muito pouco por
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seu trabalho. É necessário muito mais amplo conhecimento acerca da preparação do terreno.
Não há suficiente largueza de visão no tocante ao que se pode obter da terra.” Em outro trecho
(p.314), ela comenta: “necessitamos neste país de escolas para educar crianças e jovens, a fim
de que sejam senhores do trabalho e não escravos dele. A ignorância e a ociosidade (...) não
aliviará a sorte do que trabalha arduamente. Repare o trabalhador no beneficio que pode obter
na ocupação mais humilde, fazendo uso da capacidade que Deus lhe deu. Deste modo pode
tornar-se um educador, ensinando a outros a arte de trabalhar inteligentemente.
Legatário da noção liberal de trabalho, o sistema educacional Adventista o entende
como uma importante ação para o desenvolvimento de alguns aspectos morais, tais como a
honestidade, a austeridade e a temperança dos indivíduos que buscam o êxito.
5- A igualdade, quinta e importante categoria para a compreensão da doutrina liberal,
não significa que todos tenham a mesma condição material. Como não são iguais em talentos
e capacidades, também não o são em riquezas, logo, não são iguais socialmente, pois uma
sociedade onde todos são iguais desrespeita a individualidade de cada um. Portanto, a
igualdade está no direito de todos de ter as mesmas oportunidades e não as mesmas condições
materiais.
No protestantismo, a igualdade está na universalidade da graça de Deus, isto é, apesar
das diferenças sociais, todos foram criados igualmente por Deus, com os mesmos direitos de
ascender espiritual e materialmente.
Coerente com a igualdade protestante, para a pedagogia Adventista todos são iguais
aos olhos do criados porque assim como “Cristo discernia possibilidade em todo ser humano”
(WHITE, 1968, p.231), também “discernimos a verdade mediante o tornar-se, nós mesmos,
participantes da natureza divina” (WHITE, 1995, p.27), de tal forma que podemos ver que
“em cada jovem e criança há o poder de, mediante o auxílio de Deus, formar um caráter
íntegro e viver uma vida de utilidade.” (WHITE, 1968, p.189), porque “duma maneira cada
vez mais plena nos tornamos participantes da natureza divina.” (WHITE, 1968, p.16).
6- A democracia, sexta categoria do liberalismo, aponta para a soma das partes como
constitutiva de um todo onde cada indivíduo igualmente é livre para buscar seu interesse
próprio e o de toda a sociedade que se faz presente na administração da coisa pública através
do parlamento que representa a maioria, já que a todos não é possível.
Para o protestantismo, a democracia está na forma de administrar os negócios da
igreja sem que nenhuma autoridade eclesiástica possa revogar uma decisão sua, e na eleição
de pastores e diáconos sem atribuir-lhes funções que não possam ser pleiteadas por todos os
crentes de maneira democrática.
Espelhando a democracia liberal, essa posição de que a todos os crentes pertence a
função sacerdotal é conhecida, no protestantismo, como sacerdócio universal de todos os
crentes, e torna a cada um deles um evangelizador apto a agir em todos os momentos e
situações da vida.
Sob o ponto de vista da educação Adventista, para que a democracia seja facultada ao
aluno “as regras que governam a sala de aulas devem quanto possível representar a voz da
escola. Todo princípio nelas envolvido deve ser posto diante do estudante de tal maneira que
ele possa convencer-se de sua justiça. Assim ele sentirá a responsabilidade de fazer com que
as regras que ele próprio ajudou a formular, sejam obedecidas” diz WHITE (1968, p.290).
Ao lado da democracia liberal, a prática educacional Adventista administra suas
instituições a partir de seu projeto de construir uma sociedade mais igualitária.
7- O progresso foi a sétima e última categoria liberal a ser analisada. Para o
liberalismo, o progresso constante da sociedade está condicionado ao de cada indivíduo que
tem êxito e ao da classe social que obtém maior sucesso material. Quanto mais livre o
indivíduo, maior sua chance de êxito individual e maior sua responsabilidade pelo progresso
da sociedade porque, somadas, suas realizações exitosas representam o sucesso da
coletividade, que não deve cessar de buscá-lo.
O protestantismo associa o progresso à idéia de evolução, ação contínua que se
perpetua uniformemente, do princípio ao fim que é a perfeição cristã. Noção de
progressividade contínua e ilimitada, de acordo com a democracia liberal, remete à idéia de
aperfeiçoamento constante.
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À educação Adventista, quanto ao progresso, WHITE (1985, p.425), orienta:
“cumpre-lhes ter como objetivo fazer os estudantes progredirem em todo ramo essencial do
conhecimento”. À sociedade que almeja a perfeição cristã, WHITE (1968, p.238), preconiza:
“muito melhor é aprender, à luz da profecia de Deus, as causas que determinam o surgimento
e queda de reinos. Estudem os jovens estes relatos e vejam como a verdadeira prosperidade
das nações tem estado relacionada com a aceitação dos princípios divinos.”
Assim, coadunando-se com a idéia liberal de que o sucesso individual leva ao
progresso da sociedade em geral, a educação Adventista está voltada para o desenvolvimento
integral, corpo, mente e espírito, do indivíduo como fórmula que levará ao crescimento
pessoal, base do êxito social, solidário e amoroso, conforme a vontade divina do Criador.
Quanto à contradição que pode ser encontrada entre o liberalismo e o protestantismo, já que
este impõe seu credo cerceando a liberdade de consciência, ela vai ser conciliada através da educação
protestante que, por sua fundamentação na religiosa, orienta para uma vida responsável e livre, digna e
útil, tendo como exemplo os próprios professores. Objetivando difundir os valores cristãos, tanto o
protestantismo quanto a educação confessional se fundamentam nos princípios do liberalismo e, de tal
forma, a educação protestante centra seus ensinamentos no indivíduo livre, mas cristão. Assim,
coincidem liberalismo e protestantismo: o indivíduo livre, proprietário de si próprio, é o representante
do cristianismo individualista.
Para concluir, se observa que na sociedade democrática, livre e evolutiva, que segundo os
princípios positivistas progride constantemente e permite aos indivíduos ascender dentro de uma
ordem social, a educação protestante assimilou e difundiu os valores do liberalismo norte-americano
que, em fins do século XIX e início do século XX, chegara ao Brasil juntamente com as várias
denominações protestantes que para cá vieram nessa mesma época, inclusive a Igreja Adventista do
Sétimo Dia que, vinda dos Estados Unidos, espelha as categorias do liberalismo que também agitavam
o cenário cultural brasileiro.
NOTAS
1
Necessidades humanas, aqui, são compreendidas como aquelas que concorrem para a manutenção da vida, tais
como: educação, segurança e trabalho para o provimento econômico e de moradia.
2
Sobre a história do Adventismo, consultar MAXWELL, 1982.
3
Para compreender as influências que White sofreu, ver GROSS, 1999.
4
Weltanschauung, no alemão, significa uma mentalidade, uma atitude racional, uma visão de mundo.
5
Para os Adventistas, o Conhecimento Verdadeiro é a revelação que Deus fez de Si mesmo.
6
Dentro da moral do viver cristão Adventista a Regra Áurea é fazer aos outros aquilo que desejas que façam
contigo.
REFERÊNCIAS
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Globo, 1973.
GROSS, J. S. Paulo Freire e Ellen White. Encontros e desencontros e os seus reflexos no ensino
superior da Faculdade Adventista de Educação. Dis. Mestrado em Educação, Pontifícia universidade
Católica do Paraná. 1999
LASKI, H. O liberalismo europeu. SP: Mestre Jou, 1973
MAXWELL, C. M. História do Adventismo. Santo André: Casa Publicadora Brasileira, 1982.
MENDONÇA, A. G.; VELASQUES Fº, P. Introdução ao protestantismo no Brasil. SP: Loyola, 1990.
MIGUEL, M. E. B. A formação do professor e a organização social do trabalho. Curitiba: Editora
UFPR, 1977.
TRINDADE, E. M. de C.; ANDREAZZA, M. L. Cultura e educação no Paraná. Curitiba: SEED,
2001. (Coleção História do Paraná).
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Adventista. Maringá:PR: Sthampa, 1999.
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WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. SP: Pioneira, 1996
WHITE, E. G. Educação. SP, Santo André: Casa Publicadora Brasileira, 1968.
4037
________ Fundamentos da educação Cristã. SP, Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 1996.
________ O maior discurso de Cristo. 9ª ed. Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 1995.
_________ Testemunhos seletos. 5ª ed. Tatuí: Casa publicadora Brasileira, 1985. v.2.