Revista Rede edição 17 - Ministério Público do Estado de Minas

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Revista Rede edição 17 - Ministério Público do Estado de Minas
Mala Direta
Postal
9912234147/2009-DR/MG
PGJ
CORREIOS
IMPRESSO FECHADO
PODE SER ABERTO PELA ECT
Revista Institucional do Ministério
Público do Estado de Minas Gerais
Ano V- Edição 17- Julho de 2009
Cidade para
todos
Revista Institucional do Ministério Público do Estado de Minas Gerais
Editada pela Assessoria de Comunicação Social – Núcleo de Imprensa
Coordenação
Procurador de Justiça Fernando Antônio Fagundes Reis
Coordenação Assessoria de Comunicação Social
Miriângelli Rovena Borges
Editora Executiva
Neuza Martins da Cunha
Jornalistas
Eduardo Curi, Fernanda Magalhães, Flávio Pena, Giselle Borges, Meire Ana Terra e
Neuza Martins da Cunha
Repórter fotográfico
Alex Lanza
Projeto gráfico, arte e diagramação
Rúbia Oliveira Guimarães
Revisão
Ana Paula Rocha, Ivone Ribeiro da Silva, Josane Fátima Barbosa, Maria das Graças de
Souza Luz, , Nirley Aparecida de Oliveira
Administração Superior
Procurador-Geral de Justiça
Alceu Torres Marques
Corregedor-Geral do Ministério Público de Minas Gerais
Márcio Heli de Andrade
Ouvidor do Ministério Público de Minas Gerais
Mauro Flávio Ferreira Brandão
Procurador-Geral de Justiça Adjunto Jurídico
Geraldo Vasques
Procurador-Geral de Justiça Adjunto Administrativo
Paulo Roberto Moreira Cançado
Procurador-Geral de Justiça Adjunto Institucional
Fernando Antônio Fagundes Reis
Chefe-de-Gabinete
Paulo de Tarso Morais Filho
Secretário-Geral
Jairo Cruz Moreira
Diretor-Geral
Fernando Antônio Faria de Abreu
Nossa capa: redesenhando a cidade
Viaduto Santa Teresa, em Belo Horizonte
Foto de Alex Lanza e arte de Rúbia Guimarães
Tiragem: 2.000 exemplares
Impresso por Triunfal - Gráfica e Editora
Editorial
Nesta edição, a revista institucional do Ministério Público de Minas Gerais, além de abordar o assunto habitação
e urbanismo – tema que suscita muitas discussões e que está
diretamente ligado à inclusão social –, traz aos seus leitores uma reformulação de sua identidade e ganha um novo
nome: Rede. Essa nova marca expressa a modernidade e
cria a personalidade gráfica e conceitual que a Assessoria de
Comunicação pretende conferir à revista, além de simbolizar
a amplitude dos temas que vêm sendo tratados.
E é na busca por interligar e ampliar a abordagem sobre o cenário urbanístico e habitacional de Minas e do Brasil
que os nossos jornalistas entrevistaram especialistas renomados, os quais apontaram problemas, analisaram a situação
atual e projetaram soluções para que o país consiga resolver
as divergências jurídicas, sociais e estruturais que emperram
o processo de regularização fundiária. Nessas entrevistas
foram discutidos temas ligados à legislação urbanística, políticas públicas de habitação, acessibilidade, direito à moradia,
assentamentos informais, meio ambiente, mobilidade urbana,
exemplos de gestão eficiente e sustentável, plano de atuação
do Ministério Público e ampliação do trabalho dos promotores
de Justiça na área de habitação e urbanismo. Algumas das análises feitas pelos entrevistados convergem para um ponto comum: a necessidade de implementação de ações conjuntas e coordenadas, em que problemas
relacionados ao meio ambiente, à legislação urbanística e a
investimentos sociais devam ser observados pelos agentes
públicos e privados para que a transformação social possa ser
realizada de forma eficiente e ambientalmente sustentável.
Com isso, procura-se garantir o direito a uma moradia digna,
Exemplos de edições anteriores
dando à população a segurança jurídica
de seu imóvel e a possibilidade de usufruir
de serviços essenciais como água tratada,
saneamento básico, luz elétrica, transporte público, escola e posto de saúde.
A revista Rede ainda aborda uma
pesquisa feita sobre poluição luminosa nas
cidades e os reflexos dessa “luz intrusa”
no dia a dia da população, no trânsito e
na saúde da fauna e da flora. Revelações
como a de que “dois terços da humanidade vivem sob céus poluídos pela luz, sendo
que um quinto não consegue mais ver a
Via Láctea” são tratadas nesse artigo e
enriquecem o conteúdo da revista.
Finalmente, todas as informações
contidas nesta edição da revista Rede foram colhidas não apenas com o objetivo de
ampliar o campo de conhecimento sobre
o tema habitação e urbanismo, mas também para buscar uma reflexão sobre como
o Ministério Público vem atuando nessa
área, especialmente na defesa e na tutela do parcelamento do solo. E a pergunta
que a revista deixa é: Como promover a
inclusão social por intermédio do Direito?
Boa leitura!
Sumário
11
Entrevista
Jaime Lerner fala da importância
do “fazer acontecer” para uma boa gestão
urbana
14
Marta Larcher mostra atuação do
MP para interromper círculo vicioso do
crescimento urbano desordenado e sem
planejamento
27
Profissionais revelam caminhos
para ampliar direito à moradia e
combater desigualdades sociais
4
Edésio Fernandes interpreta as graves questões
Entrevista
urbanas e ambientais e os desafios de promover a inclusão
social pelo Direito
23
Promotores de Justiça buscam soluções para
36
Especialistas apontam o papel do planejamento
regulamentar loteamentos e preservar áreas verdes
urbano
42
Governança: equilíbrio entre estados e municípios
44
Transporte e acessibilidade como indutores do
crescimento
50
Grafite: arte ou vandalismo?
52
Boa Prática
Exemplos de ações judiciais e extrajudiciais realizadas
56
Opinião
pelas Promotorias de Justiça
Leonardo Castro Maia discorre sobre os males da
poluição luminosa nas cidades
Entrevista
Edésio Fernandes
Para o jurista, o Estatuto da Cidade consolidou a ordem
constitucional quanto ao controle jurídico do desenvolvimento urbano
Por Flávio Pena
Foto: Alex Lanza
“Promover a inclusão social pelo Direito. Eis o desafio colocado para os juristas brasileiros.
Não é mais possível interpretar as graves questões urbanas e ambientais exclusivamente com a
ótica individualista do Direito Civil, nem buscar tão somente no Direito Administrativo tradicional os
fundamentos para as novas estratégias de gestão municipal”. Essas palavras traduzem um pouco do
pensamento urbanístico do professor Edésio Fernandes, jurista e especialista em Direito Urbanístico.
Numa entrevista esclarecedora, com exclusividade para a Revista Rede, ele fala sobre assentamentos
informais, regularização fundiária, atuação do Ministério Público e legislação urbanística brasileira.
No livro A lei e a ilegalidade na produção do espaço urbano, o senhor cita pesquisa que aponta
parcela entre 40% e 70% da população urbana das grandes cidades residindo em espaços
urbanos ilegais. O que o senhor tem a dizer sobre isso?
Não é um fenômeno novo. Em cidades como o Rio de Janeiro, há favelas com mais de cem
anos que ainda não são plenamente reconhecidas pela ordem jurídica. Mas é inegável que a escalada
do processo e a diversidade de manifestações – favelas antigas, cada vez mais densas, novas favelas formadas nas periferias, velhos e novos loteamentos irregulares e clandestinos, proliferação de
casas de frente-e-fundo, aumento dos cortiços, etc. – tem crescido enormemente nos últimos trinta
anos. As taxas de crescimento da informalidade têm sido mais altas do que as taxas de crescimento
urbano e de crescimento da pobreza, o que indica que há outros fatores a serem considerados. Por
exemplo, os governos, sobretudo, na esfera municipal, têm organizado os territórios e formulado as
políticas habitacionais e urbanas sempre de forma dissociada da estrutura fundiária.
4
Há muitos problemas nas políticas de
ordenamento territorial no Brasil?
Outro problema seria o da especulação
imobiliária?
De modo geral, não há nas cidades
brasileiras políticas de ordenamento territorial que criem condições adequadas de acesso
regular ao solo urbano, com serviços e equipamentos para grande parte da população. O
mercado formal não tem oferecido opções para
os grupos mais pobres. Ao longo de décadas
do processo de urbanização, políticas habitacionais não têm sido implementadas de forma
suficiente, adequada e acessível. Leis urbanísticas são, na sua maioria, elitistas e tecnocráticas e não reservam espaço para os pobres
nas áreas centrais. A cultura jurídica dominante ainda não reconhece plenamente o princípio
constitucional da função social da propriedade.
Nesse contexto, a informalidade passou a ser
a única opção de moradia para grande parcela
da população.
Diferentemente do que muitos pensam, a informalidade não é uma opção barata. Moradores de assentamentos informais
pagam preços cada vez maiores para viverem
em condições precárias. O metro quadrado
em favelas centrais chega a tetos absurdos, e
recentemente o processo de especulação tem
se reproduzido com força também em muitos
assentamentos informais, especialmente com
o aumento das práticas de aluguel. Cidades
produzidas informalmente são profundamente
fragmentadas, irracionais, ineficientes e caríssimas. Programas de regularização de assentamentos consolidados são caríssimos, lentos
e complexos. Seria muito mais fácil e barato
prevenir o problema com a ampliação das condições de acesso regular ao solo.
A informalidade gera que tipo de problema
para a população dessas áreas?
Nesse jogo, quem perde? E como
resolver essa situação?
Além de viver em condições de grande
precariedade, a enorme população dos assentamentos informais não tem segurança jurídica
da posse, ficando à mercê de despejos e remoções, de pressões de proprietários, políticos,
bandidos, traficantes e especuladores. Sem
endereço, essas pessoas, em muitos casos,
ficam sem acesso aos benefícios da urbanização, ao crédito formal e às condições básicas
de cidadania. Ao longo de décadas, o clientelismo político tem se renovado ao manter tantas pessoas na condição de vulnerabilidade,
reproduzindo ambiguidades e contradições, e
sem que se reconheçam os direitos individuais,
coletivos, civis e políticos dessa enorme parte
da população brasileira.
Todos perdemos. E, para resolver essa
situação, devemos enfrentar o problema de
duas maneiras combinadas. Primeiro, com
ações preventivas que articulem políticas fundiárias, urbanas, habitacionais, ambientais e
fiscais, sobretudo na esfera local, envolvendo
terras privadas e públicas, imóveis vazios e
subutilizados privados e públicos, bem como
envolvendo as administrações públicas, o setor privado, as comunidades organizadas (cooperativas, ONGs, movimentos, etc.) e outros
setores, como universidades, que possam ajudar dando assistência técnica e jurídica. Em
segundo lugar, com políticas curativas de regularização das situações de assentamentos
informais já consolidados.
Vista noturna de Belo Horizonte
5
O que os governos municipais devem fazer para
solucionar o problema dos assentamentos informais?
Precisam interferir com urgência na estrutura de ordenamento territorial, e o meio mais adequado de fazerem
isso é através de seus planos diretores e leis de uso e ocupação do solo, para assim criarem as condições de um novo
pacto socioespacial que seja socialmente inclusivo e ambientalmente sustentável. É necessário também que os municípios promovam o controle do processo de desenvolvimento
urbano, por meio de políticas de ordenamento territorial em
que os interesses individuais de proprietários de terras e
de construções urbanas possam coexistir com interesses
sociais, culturais e ambientais de outros grupos e da cidade.
Para tanto, o poder público pode, com leis e com diversos
instrumentos urbanísticos, determinar um equilíbrio possível
entre interesses individuais e coletivos quanto à utilização do
solo urbano. E também promover a materialização do novo
paradigma de função social e ambiental da propriedade e da
cidade por meio da reforma da ordem jurídica, urbanística e
ambiental municipal. E assim interferir e reverter o padrão
e a dinâmica dos mercados imobiliários produtivos formais,
informais e, sobretudo, especulativos que hoje têm determinado o processo crescente de exclusão social e segregação
espacial nas cidades brasileiras.
Qual a importância do Estatuto da Cidade para o
desenvolvimento urbano?
O Estatuto da Cidade se propôs a dar um suporte
jurídico mais consistente e inequívoco à ação daqueles governos municipais que têm se empenhado em enfrentar as
graves questões urbanas, sociais e ambientais que afetam
a vida da enorme parcela (83% da população total) de brasileiros que vivem em cidades. Essa lei consolidou a ordem
constitucional quanto ao controle jurídico do desenvolvimento urbano, visando a reorientar a ação do poder público, a do
mercado imobiliário e a da sociedade de acordo com novos
critérios econômicos, sociais e ambientais.
Quais inovações jurídicas o Estatuto da Cidade trouxe
para o ordenamento jurídico?
Além de regulamentar os institutos já existentes do
usucapião especial urbano e da concessão de direito real de
uso, que são utilizados, respectivamente, para a regularização das ocupações em áreas privadas e em áreas públicas,
a nova lei avançou no sentido de admitir a aplicação desses
institutos de forma coletiva. Dispositivos importantes também foram aprovados para garantir o registro de tais áreas
nos cartórios imobiliários, que em muitos casos têm colocado
sérios obstáculos às políticas de regularização. Devem-se
ressaltar também as repetidas menções feitas à necessidade
de que tais programas de regularização fundiária se pautem
por critérios ambientais.
6
O governo
tem a obrigação
constitucional de
reconhecer o
direito à moradia
adequada para
os pobres, mas as
classes média e
alta que burlaram
a lei precisam ser
responsabilizadas”
Como o Estatuto trata os temas
ambientais?
Como município e cidadãos podem, em conjunto,
ajudar numa gestão democrática das cidades?
O Estatuto da Cidade encampou de
maneira exemplar a proposta de integração entre o Direito Urbanístico e o Direito
Ambiental no contexto da ação municipal,
compatibilizando a “agenda verde” com a
“agenda marrom” das cidades, e, por isso,
tem sido aclamado internacionalmente por
refletir as bases centrais do debate sobre
as condições de materialização do paradigma do desenvolvimento sustentável. Mas
sua efetivação em estratégias e programas
de ação urbano-ambiental vão depender da
ação dos municípios e da sociedade brasileira dentro e fora do aparato estatal.
Por meio de mecanismos como audiências públicas, consultas, conselhos, estudos de impactos de vizinhança, estudos
de impacto ambiental, iniciativa popular na propositura de leis e,
sobretudo, a prática do orçamento participativo são tidos pelo
Estatuto da Cidade como essenciais para a promoção da gestão democrática das cidades. Também é necessário estabelecer
novas relações entre os setores estatal, privado e comunitário,
especialmente com parcerias, consórcios e operações urbanas
consorciadas, além da criação de mecanismos transparentes de
controle fiscal e social.
Os municípios estão preparados para
utilizar os instrumentos jurídicos
previstos no Estatuto?
A utilização de tais instrumentos e
as novas possibilidades de atuação dependem da definição de uma estratégia e de
um planejamento de ação que expressem
um projeto de cidade. É fundamental que
os municípios promovam uma reforma de
suas ordens jurídicas de acordo com os novos princípios constitucionais e legais, de
forma a aprovar um quadro de leis urbanísticas e ambientais condizentes com o novo
paradigma da função social e ambiental da
propriedade e da cidade. Hoje, aproximadamente 1.500 municípios, dos cerca de 1.650
que têm a obrigação legal de implantar um
plano diretor, já o aprovaram ou estão em
fase de discussão das leis.
Como os planos diretores abordam as
políticas habitacionais e urbanas?
De modo geral, os planos diretores
não propõem utilização adequada de terras
públicas e de edifícios vazios, e as políticas
habitacionais e urbanas não são articuladas
com políticas fundiárias, fiscais e ambientais. A regularização acaba sendo a política
de habitação social por excelência, o que
é uma aberração, agravada por políticas
de subsídios habitacionais e propostas de
desregulação e flexibilização urbanística
para atrair o mercado. Há vários estudos
mostrando que prevenir a informalidade é
mais rápido, fácil e barato do que regularizar. Mas não há grande capital político na
adoção de políticas preventivas.
O que tem sido feito em matéria de legislação para
regularizar os assentamentos informais?
Além do Estatuto da Cidade, a Lei Federal no 11.48
facilitou a transferência de terras públicas da União para que
municípios possam fazer a regularização fundiária de interesse
social. A Lei Federal no 11.888 reconheceu o direito das comunidades de baixa renda à assistência técnica pública gratuita para
o projeto e a construção de habitação de interesse social. Essas
ações romperam a tradição histórica que inicialmente invisibilizava as favelas e os assentamentos, que nem constavam das
plantas e dos mapas das administrações municipais até recentemente. O princípio jurídico subjacente básico é garantir que
as comunidades fiquem onde estão, naturalmente em condições
melhores, e que tenham seus direitos reconhecidos.
Como programas de regularização devem atuar?
Os programas devem promover a segurança jurídica da
posse e da integração socioespacial das áreas e das comunidades. As duas dimensões têm que ser articuladas e seu sucesso
requer também políticas de geração de emprego e de renda.
Para ser sustentável, legalização e urbanização têm de caminhar
juntas. Os governos e a população brasileira têm que reconhecer que a informalidade não é mais a exceção, é a regra. Não
bastam políticas isoladas, setoriais, erráticas e sem recursos.
A legalização dos assentamentos informais de interesse
social tem avançado?
Com mais dificuldade, devido aos muitos problemas jurídicos ainda existentes, especialmente os decorrentes das legislações urbanística, ambiental, cartorária e processual em vigor.
Por isso, no âmbito da revisão da Lei Federal de Parcelamento
do Solo Urbano (Lei no 6.766/79), encontra-se no Congresso
Nacional o Projeto de Lei no 3.057/00, e desde 2003 uma ampla discussão tem buscado encontrar as melhores maneiras de
superar os problemas jurídicos para facilitar a regularização dos
assentamentos informais de interesse social. Já há diversos
acordos e pactos entre vários setores para que isso aconteça.
7
Qual a opinião do senhor sobre a matéria
da regularização fundiária prevista na
Medida Provisória no 459, convertida na
Lei no 11.977, que institui o Programa
Minha Casa, Minha Vida?
Na formulação do programa, possivelmente devido às críticas, que diziam que as
propostas iniciais somente consideravam novas construções e não tocavam na questão da
regularização dos assentamentos irregulares
existentes, os formuladores da Lei no 11.977
buscaram no PL no 3.057/00 a seção da regularização fundiária de interesse social e a inseriram na Medida Provisória. Espera-se que seja
possível avançar na legalização dos assentamentos informais com mais rapidez e eficiência
a partir das mudanças que foram feitas pela MP
na legislação urbanística, ambiental, cartorária
e processual.
Um ponto menos feliz da Lei no 11.977
foi ter tratado, e de maneira inadequada, de regularização fudiária de interesse específico, que
não cabe no objetivo dessa Medida Provisória,
o de abordar a questão da moradia de interesse
social. Além das situações de assentamentos
informais envolvendo grupos socioeconômicos
desfavorecidos, há no Brasil inúmeros casos de
informalidade urbana envolvendo grupos privilegiados. Por exemplo, loteamentos fechados e
condomínios urbanísticos, que não têm base jurídica plena na ordem jurídica em vigor, além de
casos de ocupações e parcelamentos de terras
públicas, como os falsos condomínios do Distrito
Federal.
E como devem ser tratadas as infrações
fundiárias provocadas por esses “grupos
privilegiados” ?
O governo tem a obrigação constitucional de reconhecer o direito à moradia adequada
para os pobres, mas as classes média e alta que
burlaram a lei precisam ser responsabilizadas.
Se a legislação em vigor permite a transferência
de terras públicas para os ocupantes, quando se
trata de interesse social, o mesmo princípio não
deve ser estendido a grupos sociais privilegiados que ocuparam terras públicas. A discussão
sobre essa forma de regularização, no contexto
do PL no 3.057, está longe de ter chegado a um
pacto adequado, e a inserção desses dispositivos na MP no 459 criou uma aberração. A Lei no
11.977 deveria se concentrar no seu objetivo – o
de moradia de interesse social – e deixar que
a discussão sobre a regularização de interesse
específico continue acontecendo no Congresso
Nacional.
8
Qual sua análise sobre o sistema de registro de
imóveis e sobre o usucapião coletivo ?
Houve um esforço de simplificar e baratear os
procedimentos de registro imobiliário, já que o registro é constitutivo da propriedade e se propõe a garantir a segurança jurídica das transações imobiliárias.
É preciso transformar os cartórios em parceiros dos
programas de regularização, para buscar soluções jurídicas criativas que sejam viáveis, distribuir o ônus e
as responsabilidades dos envolvidos. De mais difícil
equacionamento é a questão das ações de usucapião
coletivo. As dificuldades são inúmeras e os custos gigantescos – e o que se tem chamado de ações coletivas na sua maioria são ações plúrimas. Por exemplo,
no caso do Rio de Janeiro, tem transcorrido uma média
de sete anos para que ocorra a citação inicial. Não tem
sentido o reconhecimento de direitos coletivos, se os
canais processuais para seu reconhecimento também
não forem coletivizados. Não basta o rito sumário, é
preciso criar procedimentos judiciais coletivos ágeis
que levem em conta a natureza da demanda.
Um tema antigo é o da função social da
propriedade. O que o senhor pensa sobre isso?
Historicamente, a noção da função social da
propriedade foi em grande medida uma figura de retórica por muitas décadas, já que, de modo geral, a
ação efetiva dos setores privados ligados ao processo
de desenvolvimento urbano se pautou pelo direito de
propriedade individual, considerado por muitos como
irrestrito. A base jurídica dessa noção, ao longo do século XX, foi dada pelo Código Civil de 1916 – aprovado
quando apenas cerca de 10% de brasileiros viviam em
cidades e num contexto de um país ainda fundamentalmente agrário, mas que vigorou até 2002. O Código Civil defendia a noção da propriedade individual de
maneira quase que absoluta. E a ação do poder público
no controle do desenvolvimento urbano encontrou obstáculos nessa interpretação distorcida dos princípios
civilistas, que ainda orientam grande parte da doutrina
jurídica e da jurisprudência dos tribunais.
O que os moradores de áreas informais devem
fazer para conseguir a legalização de suas
moradias?
O avanço vai depender da mobilização da população, que precisa propor um número maior de ações
judiciais que demandem reconhecimento dos direitos
de usucapião e de concessão de direito real de uso, já
reconhecidos pela ordem jurídica. Mesmo reconhecendo as dificuldades envolvidas nos processos judiciais,
as comunidades não podem mais ficar à mercê das
pressões de todo tipo e das mudanças políticas constantes.
Como o poder público deve equacionar
pressão imobiliária e interesse público?
Mudar esse quadro significa promover
uma intervenção direta nas dinâmicas do mercado, não apenas através das limitações administrativas de que fala o Direito Administrativo,
mas pela combinação de índices urbanísticos
regulatórios com obrigações impostas a proprietários e promotores imobiliários, que vão da
reserva de terras para habitação de interesse
social e outros fins públicos até a captura da
valorização imobiliária. Não se trata de regular
mais ou de desregular, trata-se de regular aquilo que precisa ser regulado, sobretudo aquilo
que as forças de mercado não consideram.
Qual sua opinião sobre o impasse entre
ocupação de áreas de preservação
permanente e direito à moradia?
Trata-se de um falso conflito. Os dois
valores são constitucionalmente protegidos e
têm como raiz a função socioambiental da propriedade e da cidade. De imediato, é preciso
separar situações atuais consolidadas de situações futuras. Todo o esforço deve ser feito para
minimizar futuras ocupações em áreas ambientais. Para isso, é necessário não apenas fiscalizar, mas, sobretudo, ofertar adequadas opções
de acesso ao solo e à moradia para os pobres,
seja pelas políticas públicas, ou pelas forças de
mercado. É necessária, ainda, a formulação de
uma política de preservação e de conservação,
devidamente territorializada, com estratégias
de manejo e monitoramento. A tarefa requer o
máximo de mitigação e compensação de danos
ambientais, mas com remoção da população
apenas em casos extremos e com alternativas
aceitáveis.
Como enfrentar os problemas
relacionados com as moradias em área
de risco?
Novas ocupações nessas áreas não
devem ser ignoradas ou toleradas. Opções
aceitáveis de relocalização devem ser
concebidas e discutidas com as comunidades
antes que os assentamentos se consolidem.
Sobre os já consolidados, há que se enfatizar
que, tecnicamente, são poucas as áreas de
risco que não podem de forma alguma ser
objeto de ocupação humana. Com maior
frequência, o problema não diz respeito a um
risco intrínseco, mas à falta de manejo dele. Há
vários estudos e experiências (Medellin, por
exemplo) que indicam que o manejo do risco é
mais viável – inclusive em termos financeiros –
do que qualquer outra opção de relocalização da
população. Estratégias de permeabilização do
solo, limpeza de bueiros, educação ambiental,
plantio de árvores etc, são algumas das muitas
possibilidades existentes.
Quais agentes devem participar dessa
mudança?
Destaque especial deve ser dado para
os operadores do Direito: advogados, juízes,
promotores de Justiça, defensores públicos, registradores de imóveis. Eles precisam superar
os obstáculos jurídicos à legalização das áreas
informais e fazer valer a MP no 459. O sucesso
ou não da nova lei vai depender da ação dos
juristas brasileiros. O Estatuto da Cidade, a
Medida Provisória no 2.220/01 e a própria Lei
no 11.977 têm seus problemas jurídicos – que
vão da má técnica legislativa em alguns casos à
imprecisão de certos conceitos – e com certeza
vão gerar interpretações doutrinárias e judiciais
contraditórias. O grande desafio é conseguir
colocar o Direito no mundo da vida, é construir
um discurso jurídico sólido que faça uma leitura teleológica dos princípios constitucionais e
legais, integrando os novos direitos sociais e
coletivos à luz do marco conceitual consolidado
pelo Estatuto, de forma a dar suporte jurídico
adequado às estratégias político-institucionais
de gestão urbano-ambiental.
Promover a inclusão social pelo Direito é
uma tarefa fácil?
Esse é o desafio colocado para os juristas brasileiros. Não é mais possível interpretar
as graves questões urbanas e ambientais exclusivamente com a ótica individualista do Direito Civil, nem buscar tão somente no Direito
Administrativo tradicional – que com freqüência
reduz a ordem pública à ordem estatal – os
fundamentos para as novas estratégias de gestão municipal e de parcerias entre os setores
estatal, comunitário, voluntário e privado. O
papel dos juristas construindo as bases sociais
e coletivas do Direito Urbanístico é de fundamental importância nesse processo de reforma
jurídica e urbana, que passa necessariamente
pela regularização dos assentamentos informais, para que sejam revertidas as bases dos
processos de espoliação urbana e destruição
socioambiental que têm caracterizado o crescimento urbano no Brasil e para que conceitos
de práticas de desenvolvimento sustentável
sejam efetivamente materializados.
9
Como o senhor vê a atuação do Ministério
Público na defesa da habitação e do
urbanismo?
Vou ser franco e provocativo. Sem me referir a este ou àquele promotor de Justiça, ou a
este ou aquele Estado, confesso que, ao longo
dos anos, fui ficando menos impressionado com a
ação do Ministério Público nessa área de políticas
públicas de regularização fundiária e de políticas
habitacionais de interesse social. No começo, parecia que o MP iria ocupar esse espaço. Em alguns
Estados, até houve uma mobilização importante,
o que certamente exigiu dos promotores um esforço de superação, já que nem mesmo o Direito
Administrativo dá conta desse assunto complexo.
Pouco a pouco, parece que o Ministério Público de
Habitação e Urbanismo foi perdendo espaço para
o MP Ambiental. Um discurso ambientalista, excessivamente naturalista, na minha visão, foi sendo cada vez mais usado para colocar obstáculos ao
avanço dos programas de regularização. Um falso
conflito foi acirrado entre preservação ambiental
e direito social à moradia. Minha impressão é de
que o Ministério Público, pouco a pouco, deixou
de ser parceiro das comunidades pobres, expressando com maior facilidade valores mais próximos
das classes média e alta. O vazio deixado pelo MP
tem sido progressivamente ocupado por uma categoria menos valorizada e que possui poucos recursos: a
Defensoria Pública. Hoje, são os Defensores Públicos
que estão levando, com mais força, a bandeira da
regularização fundiária. Seria importante promover
um debate dentro do MP para superar falsos conflitos
e articular uma postura de apoio aos programas de
regularização fundiária. Isso é importante para uma
enorme parcela da população e crucial para o aprofundamento da democracia no País.
Quais mecanismos jurídicos o promotor de
Justiça pode usar em sua atuação? Cite algum
caso específico.
Cito, sempre como referência fundamental das
possibilidades de avanço na construção do que chamo
de cenários possíveis, um TAC proposto e coordenado em São Bernardo do Campo pela promotora
de Justiça Rosangela Staurenghi. Foi um documento
impressionante, que resultou de um processo abrangente envolvendo mais de dez participantes, com uma
distribuição justa de ônus e responsabilidades entre
eles. Além do papel na condução do litígio, acho que
o MP pode ter um papel crucial na busca de resolução
extrajudicial de conflitos.
Edésio Fernandes
Divulgação
Mineiro, natural de Belo Horizonte, é bacharel em Direito pela
Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG); especialista em Urbanismo
pela UFMG; mestre ( LL.M. in Law in
Development,Warwick University, UK)
e doutor em Direito (Ph.D., Warwick
University). Atualmente, é professor
do Development Planning Unit/DPU
da University College London (Inglaterra) e da Teaching Faculty do Lincoln
Institute of Land Policy em Cambridge
MA (EUA); membro do Grupo Consultivo sobre Despejos Forçados da
ONU-Habitat; professor visitante em
duas universidades brasileiras, entre
outras funções.
10
Entrevista
A cidade no olhar de
Jaime Lerner
O arquiteto e urbanista Jaime Lerner foi duas vezes prefeito de Curitiba e duas vezes governador do
Paraná. Referência mundial em planejamento urbano, já presidiu a União Internacional de Arquitetos
(UIA). Atualmente é consultor de urbanismo da ONU. Em entrevista à revista Rede, Lerner mostra a
importância do “fazer acontecer” para uma boa gestão urbana.
Por Meire Ana Terra
Divulgação
Inovar é
começar! Não
podemos ser
tão arrogantes e
querermos ter todas
as respostas antes
de iniciar algo”
11
O senhor foi responsável por uma revolução
urbanística que projetou a cidade de Curitiba
internacionalmente. Como o senhor iniciou
esse processo?
Curitiba logrou se estabelecer como referência
em boas práticas urbanas adotando como premissa
fundamental a concepção da cidade como uma estrutura de vida e trabalho, juntos. A compreensão desse
binômio é de suma importância. A adoção de diretrizes articuladas de usos do solo, transporte e sistema
viário, o investimento em um sistema de transporte
público de qualidade, a busca de soluções criativas,
simples e econômicas para os desafios ambientais, a
valorização das referências da história e da memória
urbana merecem destaque como formas de se concretizar essa concepção.
Qual o reflexo dessa mudança na
população?
A população é um agente fundamental de
transformação da cidade. A cidade que é boa
para se viver é aquela que é boa para as pessoas,
onde o ser humano é a medida de todas as coisas. A partir do momento em que a população se
sente parte valorizada do processo de construção
do sonho coletivo que é a cidade, há ganhos de
eficiência das políticas públicas e em qualidade
de vida. Os espaços públicos, como os parques
por exemplo, quando entendidos não como uma
“terra de ninguém”, mas como um espaço de todos, passam a ser um patrimônio coletivo prezado e usufruído.
Divulgação
A população
é um agente
fundamental de
transformação da
cidade. A cidade
que é boa para
se viver é aquela
que é boa para as
pessoas, onde o ser
humano é a medida
de todas as coisas”
Parque Birigui e embarque de passageiros no sistema de
transporte coletivo, em Curitiba: exemplos do trabalho
desenvolvido por Lerner na cidade
12
O senhor fez mudanças polêmicas em Curitiba,
como a transformação de uma área para pedestres
em apenas 72 horas. Essas mudanças devem ser
rápidas? Por quê?
“Fazer acontecer” é essencial para a boa gestão
urbana. É necessário estabelecer o efeito demonstração
que torna possível consolidar diretrizes estratégicas de
planejamento a longo prazo. Ademais, inovar é começar!
Não podemos ser tão arrogantes e querermos ter todas as
respostas antes de iniciar algo. Da “origem” ao “destino”,
a trajetória sempre pode ser ajustada...
Hoje prefeitos de outros países o procuram para
ajudar na criação de projetos de urbanismo. Como
está sendo esse viés do seu trabalho?
Hoje me dedico a aplicar “acupunturas urbanas”,
pensar junto com as cidades quais são aquelas intervenções que, tal como a acupuntura na medicina, podem ajudar
o organismo urbano como um todo a funcionar melhor, de
forma mais consistente e saudável. Definir quais intervenções estratégicas podem fomentar a sinergia necessária
para alimentar processos de planejamento, de construção
do projeto de cidade e da definição/consolidação de um
desenho é fundamental para que a cidade se desenvolva
não como uma metástase desordenada, mas como uma
estrutura integrada de vida e trabalho.
Quais as mudanças necessárias no que se refere à
habitação e ao urbanismo no Brasil?
Como falei acima, temos que fazer acontecer. Temos que evitar de nos perdermos no discurso dos “vendedores de complexidade” e atuarmos com os instrumentos
que já estão disponíveis – Estatuto da Cidade, linhas de
financiamento, boas práticas, entre outros. O que não podemos é ficar paralisados, inoperantes, porque não conseguimos resolver um déficit habitacional de décadas todo
de uma vez. Há que se começar!
O senhor, como consultor em urbanismo da ONU,
pode dar um exemplo de país que desenvolve um
modelo ideal de urbanismo?
Não acredito em receitas; acredito, contudo, na
possibilidade de qualquer cidade melhorar significativamente sua qualidade de vida em três anos, a partir de
ações focadas nas questões fundamentais para a qualidade
da vida urbana que são a mobilidade, a sustentabilidade e
a identidade/coexistência.
Qual seria o modelo ideal de
desenvolvimento urbanístico
sustentável para uma metrópole
como Belo Horizonte?
Não há um modelo ideal. O que
há é a possibilidade concreta de se estabelecer uma visão estratégica, um sonho
concebido e construído de forma compartilhada, e um desenho, uma estrutura de
crescimento que oriente as ações presentes e futuras. Além das questões básicas
de saúde, educação, atenção à criança, as
metrópoles precisam construir boas equações de corresponsabilidade para enfrentar
os desafios de mobilidade, sustentabilidade e coexistência.
O Brasil vai sediar a Copa do Mundo
em 2014 e enfrenta um problema
que é o transporte urbano. O senhor
é a favor ou não da ampliação de
linhas de metrôs, a exemplo da
proposta feita para Belo Horizonte?
Enquanto a superfície não for bem
operada, não se poderá pensar em ampliação do metrô. São Paulo por exemplo, tem
4 linhas de metrô, mas 84% dos deslocamentos são em superfície.
Em termos de mobilidade, primeiramente, há que haver um compromisso
inequívoco com a oferta de transporte público de qualidade, que permita aos usuários utilizá-lo com dignidade, conforto,
segurança e eficiência.
Como balancear essa equação é
um dos principais desafios das cidades
contemporâneas. Conquanto todos os modos de transporte – ônibus, trens, metrô,
transporte individual – devam ser utilizados
de forma inteligente naquilo que podem
oferecer de melhor dentro das possibilidades de cada cidade, acredito que o futuro
do transporte urbano está na superfície,
pela imensa economia de custos, facilidade e rapidez de implantação e flexibilidade
que permite.
As características que distinguem
o metrô podem ser incorporadas ao sistema de transporte em superfície. É a isso
que me refiro no conceito de ‘metronizar’ o
ônibus: rapidez, embarque e desembarque
pré-pago e em nível, e, sempre que possível, prioridade na circulação.
13
Habitação e
14
urbanismo
Ministério Público quer
interromper círculo vicioso
do crescimento urbano
desordenado e sem
planejamento
Por Neuza Cunha
Foto: Alex Lanza
15
A crescente violação da ordem urbanística,
não só na região metropolitana de Belo Horizonte,
como na maioria dos municípios mineiros, é resultado da prática, pelos Poderes Públicos e particulares, de atos comissivos e omissivos semelhantes e
prejudiciais ao direito à terra urbana, à moradia, ao
saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao
transporte público. É o que explica a coordenadora
da Promotoria de Justiça Metropolitana de Habitação
e Urbanismo (PJMHU), promotora de Justiça Marta
Alves Larcher.
E, portanto, afirma Marta Larcher, que a atuação do Ministério Público deve caminhar no sentido
de compelir os municípios a se estruturar administrativamente e a capacitar seus agentes para o cumprimento de todos os instrumentos previstos no Estatuto
da Cidade, entre eles o plano diretor, a regularização
fundiária, o planejamento do desenvolvimento e da
expansão urbana, a gestão democrática das cidades,
a ordenação e o controle do uso do solo.
Essa é uma das metas estabelecidas pela
PJMHU para este ano, mas que também servirá de
norte para as demais Promotorias de Justiça de Habitação e Urbanismo em todo o Estado. Isso porque,
desde 1º de maio deste ano, a Promotoria de Justiça
Metropolitana de Habitação e Urbanismo adquiriu
mais uma atribuição: a de orientar e dar apoio técnico-jurídico às demais Promotorias de Justiça nessa
área de atuação no Estado.
A Promotoria Metropolitana, segundo informou a coordenadora Marta Larcher, já vem identificando as prioridades específicas da ação institucional na proteção da ordem urbanística, por meio da
integração e do intercâmbio com organizações não
governamentais e comunidade, bem como buscando o apoio de órgãos públicos cujas funções estejam
relacionadas com a defesa do direito coletivo à ordem urbanística. “O nosso maior desafio consiste em
conscientizar os gestores públicos e a sociedade da
necessidade urgente de obediência às normas de uso
e ocupação do solo urbano, para evitar o prosseguimento da degradação ambiental nas cidades e para
garantir a qualidade de vida da população”, assevera
a promotora de Justiça.
Mudança de postura
No último dia 14 de fevereiro, comemoraramse os dezesseis anos da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, cuja sanção se deu em solo mineiro,
pelo então presidente da República Itamar Franco. A
Lei Orgânica Nacional veio para consolidar as garantias previstas na Constituição Federal de 1988, que
deram ao Ministério Público um novo perfil, passando
os membros da Instituição a ser os verdadeiros defensores dos direitos dos cidadãos.
Se a Lei Orgânica está na sua fase adolescente – dezesseis anos –, o Ministério Público encontra-se maduro. E, entre os instrumentos postos à
disposição do Ministério Público para o exercício de
suas atribuições legais, há a recomendação, o termo
de ajustamento de conduta e a ação civil pública, normalmente usados frente a uma violação de disposição
legal, em uma atuação que se caracteriza pela ação
repressiva – ou seja, diante de um dano concretizado, o promotor de Justiça procura atuar em busca da
punição do infrator e da reparação do dano. Entretanto, segundo ressalta a promotora de Justiça Marta
Larcher, mesmo com os êxitos e avanços obtidos em
prol da sociedade brasileira nos últimos vinte anos,
há que se defender a tese de que já é hora de novos
avanços e de mudança de postura dos membros do
Ministério Público.
Pró - ativa
A sugestão da promotora de Justiça Marta
Larcher é passar da simples atuação reativa, quando
provocada, para a atuação pró-ativa, buscando atuar
antes do surgimento dos conflitos e danos, precisamente influenciando na formação das políticas públicas. “Não queremos, com essa postura, assumir a
posição do administrador público, definindo políticas
públicas. Diante de tantos problemas a enfrentar e
da escassez de recursos, devemos, sim, participar da
16
definição de prioridades, procurando garantir recursos
orçamentários necessários para atender às necessidades mais prementes da sociedade”, defende.
Essa nova postura, segundo Marta Larcher, é
especialmente importante quando se tem por escopo
a implementação de políticas públicas referentes aos
direitos à terra urbana, à moradia, ao saneamento
ambiental, à infraestrutura urbana e ao transporte
coletivo.
Alex Lanza
Direito social à
moradia
São metas prioritárias do Ministério Público de Minas
para 2009, através da PJMHU e demais Promotorias de Justiça
de Urbanismo e Habitação, os seguintes temas: ajustar com pelo
menos 50% dos municípios da região metropolitana de Belo Horizonte (RMBH) a implantação de Planos de Redução de Risco e
do Sistema Municipal de Defesa Civil; promover a regularização
fundiária de, pelo menos, três assentamentos precários existentes na RMBH, implantados em áreas públicas, em atenção ao disposto no Estatuto da Cidade e da MP no 2.220/2001, que criou
a concessão de uso especial de imóveis públicos urbanos para
fins de moradia; promover, com auxílio das entidades parceiras,
a estruturação administrativa de 50% dos municípios da RMBH
nos setores de análise e aprovação dos projetos de parcelamento
do solo urbano e de fiscalização durante sua implementação,
bem como a capacitação dos agentes públicos responsáveis por
essas atividades.
“A implementação dos princípios, regras e instrumentos
do Estatuto da Cidade é imprescindível para a concretização do
direito às cidades sustentáveis”, realça a coordenadora Marta
Larcher, pois sabidamente o processo de urbanização brasileira,
a partir da década de 1950, deu-se de forma totalmente improvisada e sem critérios legais. “À ausência inicial de um regramento
legal, somou-se posteriormente a contumaz omissão dos poderes
públicos no exercício de seu poder-dever de polícia. O resultado
é um enorme passivo ambiental e social”, revela.
Além disso, comenta Marta Larcher, são inúmeras as áreas de risco ocupadas por população de baixa renda, os chamados
assentamentos urbanos precários
e informais, o que coloca essas
pessoas em situação de extrema
vulnerabilidade. Para a promotora
de Justiça, a solução do problema
habitacional não se resolverá num
passe de mágica. “Infelizmente,
não podemos ficar alheios a esse
estoque de moradias precárias, que
de uma forma ou de outra garantem
a significativa parcela da população
urbana o direito social à moradia”,
diz.
Para Marta Larcher, esse
contexto torna necessária a implantação de um sistema, ainda
que transitório, de convivência
com o risco controlável, mediante
monitoramento permanente. Daí
a importância da implantação dos
Planos Municipais de Redução de
Risco (PMRR), que consistem basicamente no diagnóstico das áreas
de risco e na definição das intervenções prioritárias, com posterior
previsão anual das verbas orçamentárias necessárias para execução
das prioridades eleitas.
17
Desigualdade
histórica
De acordo com a promotora de Justiça, ao lado da elaboração e implantação do PMRR, está a efetivação das Coordenadorias Municipais de Defesa Civil, de modo a integrar o
município ao Sistema Nacional de Defesa Civil. “A realidade de
nossas cidades nos mostra também que nossos espaços urbanos dividem-se em dois: de um lado, a cidade legal, composta
pelos loteamentos regulares aprovados pelo Poder Público, na
forma da lei e dotados da infraestrutura urbana básica e serviços públicos, a exemplo de água, luz, saneamento básico,
transporte coletivo, segurança pública, entre outros; de outro
lado, a cidade ilegal ou informal, composta pelos loteamentos clandestinos, pelas ocupações irregulares, pelas vilas e
favelas, entre outras modalidades de ocupações precárias cuja
população é totalmente alijada dos benefícios decorrentes do
processo de urbanização”, explica.
Raquel Bandeira
Acampamento bairro Céu Azul, em BH
18
Para eliminar essa desigualdade histórica, o Estatuto da Cidade (Lei Federal no 10.257/2001)
estabeleceu diversas diretrizes
para a política urbana de desenvolvimento das funções sociais da
cidade e da propriedade urbana,
entre elas a regularização fundiária
e a urbanização de áreas ocupadas
por população de baixa renda, mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso
e ocupação do solo e edificação,
considerada a situação socioeconômica da população e as normas
ambientais. A regularização fundiária é um direito das populações residentes em ocupações precárias,
cabendo ao Poder Público realizar
um planejamento concreto nessa
direção.
“Não devemos nos esquecer de que a falta da regularização
fundiária nas ocupações precárias
é consequência direta da ausência
de planejamento urbanístico ao longo de décadas e também do despreparo do Poder Público municipal
para exercer o seu papel legal de
gestor do solo urbano, e, ainda,
para realizar a devida fiscalização
durante a implantação dos empreendimentos e atividades desenvolvidos no espaço urbano”, afirma
Marta Larcher.
Segundo ela, esse despreparo se origina da ausência de uma
estrutura administrativa adequada,
baseada numa legislação (lei de uso
e ocupação do solo, plano diretor,
entre outros) e apoiada em um corpo técnico formado por servidores
com habilitação legal para análise
e aprovação dos projetos, considerados os aspectos urbanísticos e
ambientais.
Para Marta Larcher, além de
buscar garantir o mínimo existencial
às populações de baixa renda ocupantes de assentamentos urbanos
precários, através da regularização
fundiária, a atuação do Ministério
Público deve caminhar no sentido
de fazer com que os municípios se
estruturem para a adequada gestão
do solo urbano, visando interromper o círculo vicioso do crescimento
urbano desordenado e sem planejamento.
Regularização
Alex Lanza
fundiária
Não é novidade que grande
parte das cidades brasileiras cresceram e se desenvolveram sem nenhum planejamento, possibilitando
o surgimento de inúmeros assentamentos precários, a exemplo de
vilas, favelas, loteamentos clandestinos e irregulares, carentes da
mínima infraestrutura urbana.
Segundo informações do
Censo 2000, do IBGE, um quarto
dos domicílios brasileiros está em
situação de irregularidade.
A regularização fundiária
dos assentamentos urbanos precários tem por objetivo melhorar
as condições de habitação, por
meio de implantação de ações de
urbanização e recuperação ambiental, promovendo a regularização da
posse e da propriedade mediante
titulação respectiva, bem como
promovendo a integração plena dos
moradores dessas ocupações à cidade formal, começando por lhes
garantir um endereço.
Grande parte dos assentamentos precários se estabeleceu
a partir da ocupação gradativa de
imóveis públicos ociosos ou subutilizados nas cidades, às margens
de rodovias, às margens de linhas
férreas, entre outros locais. “Além
da afronta aos padrões urbanísticos
do município, esses assentamentos
são causa de enormes danos ao
meio ambiente, seja pela retirada
de vegetação natural, seja pela
disposição inadequada do lixo e
do esgoto”, lembra Marta Larcher.
“Além do mais, a impossibilidade
de essas populações adquirirem a
propriedade dos imóveis ocupados
pelo usucapião, aliada à absoluta
precariedade de infraestrutura urbana nesses assentamentos, sempre gerou uma situação de instabilidade e exclusão social para seus
moradores”, conclui.
Marta Larcher
A implementação
dos princípios, regras e
instrumentos do Estatuto da
Cidade é imprescindível para
a concretização do direito às
cidades sustentáveis”
19
Gestão
do solo urbano
Conforme descrito no artigo 30, capítulo VIII, da Constituição, cabe aos
municípios promover o adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano. Em
resumo, é dever legal do município exercer a gestão do solo urbano, disciplinando as atividades que ali ocorrem.
“A competência municipal para gestão do solo urbano começa pela
obrigatoriedade de editar seus planos diretores, leis de uso e ocupação do
solo, código de posturas, entre outros diplomas, que estabelecem os parâmetros legais para a disciplina das atividades exercidas na cidade”, ressalta
Marta Larcher.
Segundo a promotora de Justiça, entre as diversas atividades que se
verificam no espaço urbano, o parcelamento do solo para implantação de loteamentos, dando origem a novos bairros, é sem dúvida a que maior impacto
causa na vida da população da cidade e no meio ambiente, por implicar o
adensamento populacional e a necessidade de implantação da infraestrutura
urbana pertinente, tais como equipamentos urbanos e comunitários, além de
gerar demanda pela prestação de serviços públicos, como transporte coletivo,
saúde, educação, segurança pública, iluminação pública, saneamento básico.
“Por aí, já se constata a necessidade de que a expansão urbana se dê
de forma planejada, sob pena do surgimento de novos núcleos habitacionais
precários, informais e marginalizados do restante da cidade”, argumenta Marta
Larcher.
A Lei Federal no 6.766/1979, norma geral em matéria urbanística, que
disciplina o parcelamento do solo para fins urbanos, em consonância com os
ditames constitucionais, confere ao município papel importantíssimo na análise
e aprovação de projetos de parcelamento do solo urbano. Portanto, cabe ao
município estabelecer as diretrizes para elaboração dos projetos de parcelamento, aprová-los, ouvindo previamente o estado, nas hipóteses definidas no
artigo 13 da Lei no 6.766/1979.
Essa lei prevê duas modalidades de parcelamento: o loteamento –
quando há a subdivisão da gleba em lotes destinados à edificação, com abertura de novas ruas ou prolongamento, modificação ou ampliação das vias existentes; e o desmembramento – quando ocorre a subdivisão da gleba em lotes
destinados à edificação, com aproveitamento do sistema viário existente.
“A etapa de análise e aprovação de projetos de parcelamento do solo é
uma atividade complexa e demanda a atuação simultânea de profissionais habilitados em diversas áreas. O município deve contar com equipe multidisciplinar
composta, no mínimo, por engenheiro florestal, para verificação de eventuais
restrições ambientais à ocupação da área parcelanda; advogado, para confronto do projeto do empreendimento com as leis federais, estaduais e municipais
(plano diretor, lei de uso e ocupação do solo, entre outros); e arquiteto, para
análise dos aspectos urbanísticos”, explica Marta Larcher.
Por ser considerada uma atividade potencialmente degradadora do
meio ambiente, o parcelamento do solo está obrigado ao prévio licenciamento
ambiental, nos termos da Resolução Conama no 237/1997.
No Estado de Minas Gerais, o parcelamento do solo é regrado pela
deliberação normativa Copam no 58/2002.
“O trabalho do município não acaba com a aprovação do projeto, cabendo-lhe acompanhar a sua implantação para, assim, evitar discrepâncias entre
as obras e o que foi aprovado”, lembra Marta Larcher.
A promotora de Justiça destaca ainda que, se ao final do prazo estipulado nos cronogramas as obras de infraestrutura urbana estiverem concluídas,
o município expedirá termo de recebimento do loteamento, que passará a
integrar formalmente a cidade como um novo bairro, ficando o Poder Público,
a partir daí, responsável pela manutenção dos espaços públicos e prestação
dos serviços públicos diretamente ou por seus concessionários.
20
Aglomerado em Belo Horizonte
Foto: Alex Lanza
21
Plano
de redução de riscos
O objetivo do Plano Municipal de Redução de Riscos (PMRR)
é diagnosticar e dimensionar as áreas de risco existentes no território
municipal, bem como servir de guia
para o planejamento de ações preventivas e estruturais necessárias
para, aos poucos, controlar e eliminar esses riscos.
De acordo com Marta Larcher, o surgimento de áreas de risco no Brasil está relacionado com a
remoção da vegetação natural para
ocupação desordenada de encostas
e margens de rios, comprometendo
a estabilidade do solo, especialmente nos períodos de chuvas intensas
e prolongadas.
“Além dos enormes prejuízos
materiais, os deslizamentos e inundações costumam acarretar a morte
de centenas de pessoas, fatos que
poderiam ser evitados se houvesse,
por parte dos municípios, um conhecimento prévio das áreas de risco”,
destaca.
Prevenção
e autodefesa
Para Marta Larcher, o gerenciamento dos riscos se dá através
de quatro estratégias: identificação
e análise de riscos (diagnóstico);
adoção de medidas estruturais
(obras) para a prevenção de acidentes e a redução dos riscos; adoção de medidas não estruturais (por
exemplo, limpeza de bueiros), com
implantação de planos preventivos
de defesa civil para os períodos das
chuvas mais intensas, monitoramento e atendimento das situações de
emergência (plano de contingência)
e divulgação das informações e capacitação da população moradora
da área de risco para prevenção e
autodefesa.
22
A promotora de Justiça acredita que a repetição desses
desastres a cada período anual de chuvas, como se fossem
inesperados e inevitáveis, exige que os municípios se preparem adotando uma política preventiva, permanente e eficaz
de controle e gestão dos riscos, baseada na mobilização ativa das comunidades envolvidas, em intervenções estruturais,
somadas a políticas municipais de habitação, saneamento e
planejamento urbano.
Para se analisar uma “situação de risco”, deve-se primeiro identificar que processos naturais ou da ação humana
estão produzindo o perigo, em que condições a sua evolução
poderá ocasionar um acidente e qual a probabilidade de esse
fenômeno físico ocorrer.
O perigo pode ser causado pela atuação de vários fatores no meio físico: por exemplo, o escorregamento de taludes,
o deslizamento de blocos e de lixo, o solapamento de margens
de córregos, entre outros. “Entender exatamente qual tipo de
processo pode ocorrer num determinado local é fundamental
para avaliar o perigo, ou seja, o que pode ocorrer, em que condições e com que probabilidade”, ressalta Marta Larcher.
As consequências do perigo não afetam de forma igual
todo o território do município; as áreas urbanizadas, por exemplo, dotadas de toda a infraestrutura de escoamento das águas
pluviais, sofrem menos com as chuvas do que vilas e favelas.
A promotora de Justiça ressalta que os assentamentos
precários são mais suscetíveis aos riscos de deslizamentos e
desabamentos, porque normalmente estão localizados em áreas mais frágeis do ponto de vista geológico, e suas construções foram erguidas sem observação das técnicas construtivas
adequadas. Além disso, a infraestrutura urbana é incompleta
e os serviços públicos inexistentes, como coleta de lixo e saneamento básico.
“É muito importante a participação da sociedade civil
no monitoramento dos riscos”, destaca Marta Larcher, que
complementa ainda ser fundamental que o Poder Público esteja preparado para atuar em casos de emergência, definindo
antecipadamente algumas ações, como as atribuições e procedimentos a serem executados pelos funcionários e órgãos da
administração pública envolvidos (Defesa Civil, técnicos das
áreas de Engenharia, Geologia, Serviço Social, Saúde, Gerenciamento de Abrigos, Segurança Física e Guarda de Bens em
caso de necessidade de remoção, eventual controle de trânsito,
equipes para reabilitação dos locais públicos e coletivos afetados); os equipamentos necessários; as estruturas de apoio
(Corpo de Bombeiros, Polícia Militar, Serviço de Atendimento
Móvel de Urgência, etc.); as redes de comunicação; as formas de registro de ocorrência e de notificação; as equipes de
socorro e resgate; as formas de contato com a imprensa; a
avaliação de impactos e danos; as providências para reabilitação, isolamento ou interdição do local acidentado; os recursos
materiais necessários para as equipes operacionais; refúgios ou
abrigos para os casos de necessidade de remoção temporária
ou definitiva e suporte para seu funcionamento (atenção social,
suprimentos, alimentação); o suporte legal para a operação
(notificação, definição legal das atribuições e procedimentos e
apoio jurídico, se necessário).
Desenvolvimento
sustentável
Promotores de Justiça buscam soluções para
regulamentar loteamento e preservar áreas verdes
O Ministério Público Estadual (MPE) ajuizou inúmeras ações buscando fazer cumprir a legislação
de parcelamento do solo urbano, bem como garantir nas áreas de empreendimentos estrutura urbana,
funções urbanísticas que auxiliem no desenvolvimento sustentável das cidades e que formem espaços
públicos destinados à recreação, à composição paisagística e ao equilíbrio ambiental. Seguindo esse
conceito, a Promotoria de Justiça de Pará de Minas propôs Ação Civil Pública (ACP) para regularizar
um loteamento implantado em 1979 naquela cidade. O loteamento encontra-se no local conhecido como
Retiro e Audiência, no bairro Esplanada, e faz divisa com propriedades particulares e um terreno municipal. Em Ipatinga, por sua vez, a Promotoria de Justiça obteve decisão judicial garantindo a proteção
de cerca de dois milhões e quinhentos mil metros quadrados de áreas verdes e de especial interesse
ambiental e paisagístico, e que estavam ameaçadas pelo Plano Diretor do Município.
Loteamento em Pará de Minas
Segundo dados levantados pelo autor da ACP, promotor de Justiça Charles Daniel França Salomão, o empreendedor, mesmo não sendo o proprietário do imóvel, dividiu e vendeu inúmeros lotes
no local, sem a prévia regularização do empreendimento, agindo, desse modo, em desacordo com a
Lei 6.766/79. Por isso, mesmo recebendo pagamento das pessoas que adquiriram os lotes, não pode
lavrar a escritura definitiva.
Pedidos
A Promotoria de Justiça de Pará de Minas, requer na ACP, em caráter liminar, que seja
determinado ao loteador que se abstenha de vender lotes e de realizar ou de permitir que outros
realizem qualquer tipo de edificação na área do
loteamento, bem como de praticar atos de parcelamento material enquanto o empreendimento não estiver regularizado. Solicita também que
seja determinado aos requeridos providenciarem,
no prazo de dez dias, a colocação de aviso ostensivo na entrada do imóvel parcelado, informando
a clandestinidade do loteamento, sob pena de
multa diária a ser fixada pela Justiça.
Requer, além disso, que, ao final, seja
julgado procedente o pedido para condenar os
requeridos a regularizar e adequar o loteamento
às exigências da legislação obtendo as licenças e
aprovações necessárias e também o registro do
parcelamento no Ofício de Registro de Imóveis
bem como a realizar as obras de infraestrutura
indispensáveis à urbanização dos lotes, corrigindo as irregularidades apontadas na ação.
O empreendedor também deverá, segundo pedido na ação do Ministério Publico, executar
as obras de pavimentação de todas as ruas do
loteamento e implantar a infraestrutura necessá-
23
ria, prevista nos projetos aprovados pelos órgãos competentes, a fim de adequar o empreendimento à legislação.
Além disso, deverá apresentar a respectiva licença fornecida pelos órgãos ambientais competentes; adotar as
medidas indenizatórias e compensatórias indicadas pelo
órgão ambiental; fornecer aos compradores dos terrenos
do loteamento as escrituras definitivas de
compra, com registro imobiliário e apresentar certidão de registro imobiliário do loteamento fornecida pelo Cartório de Registro
de Imóveis, sob pena de multa diária a ser
fixada pela Justiça.
Entenda o caso
Alguns moradores buscaram a Justiça para compelir o empreendedor a lhes outorgar a escritura definitiva de compra dos lotes adquiridos, obtendo sentença
judicial que homologou um acordo entre as partes, porém
inexequível. Por outro lado, o real proprietário do imóvel
onde se realizou o loteamento já faleceu, e os herdeiros
não demonstraram interesse em resolver a situação, impedindo os moradores de registrar seus imóveis.
Quando foi requerida a aprovação desse loteamento por meio de processo administrativo, que nunca
foi finalizado, o Município recebeu diversos lotes como
doação do empreendedor. Em 2004, foi sancionada a
Lei Municipal n.º 4.417, autorizando o Município de Pará
de Minas a aprovar, nas condições em que se encontra, o loteamento. Entretanto, constatou-se que a divisão de áreas do bairro, constantes da Lei Municipal n.º
4.417/2004, não coincide com a situação real e atual do
empreendimento. Analisando as áreas do bairro Esplanada, constantes da Lei n.º 4.417/2004, em comparação com o projeto urbanístico apresentado no Inquérito
Civil Público que precedeu a ACP, pelo empreendedor,
verificam-se divergências relativas ao dimensionamento
de áreas. Foram loteados 4.545,79 m2 a mais do que a
área aprovada pela referida lei.
Essas áreas, somadas a 8.025,61 m2 de área ver-
de, transformaram-se em ruas e 35 lotes
com área média de 330 m2. Logo, não há
como o Município aprovar o loteamento do
bairro Esplanada nos moldes da Lei Municipal 4.417/04, tendo-se em vista a divergência relativa ao dimensionamento das áreas
constantes na referida lei com o projeto
urbanístico do empreendimento. Soma-se
a isso o evidente descaso por parte dos
requeridos, que não procuram empreender
medidas necessárias à regularização efetiva
do loteamento. Os herdeiros firmaram Termo de Ajustamento de Conduta e concordaram em proceder ao desmembramento
da área do loteamento a fim de constituir o
título de propriedade em nome do loteador,
não o fazendo até o presente momento.
Por esses motivos, afirma o promotor de Justiça Charles Daniel França Salomão, não restou outra alternativa senão
a propositura da ACP, com o objetivo de
compelir os requeridos a regularizar definitivamente o loteamento, garantindo aos
munícipes o direito de registrar os imóveis
adquiridos de boa-fé.
Função social
Após vistoria realizada pelo Ministério Público,
constataram-se algumas irregularidades que dizem respeito ao não cumprimento da legislação de parcelamento
do solo urbano. O promotor de Justiça Charles Daniel
França Salomão lembra que o artigo 4º da Lei Federal
6.766/79 prevê os requisitos urbanísticos mínimos a serem observados na elaboração do projeto de loteamento,
que deverá atender também as diretrizes estabelecidas
pelo município para o uso do solo, traçados dos lotes, do
sistema viário, dos espaços livres e das áreas reservadas
para o equipamento urbano e comunitário. De acordo com
essa lei, são requisitos urbanísticos para um loteamento a
indicação das áreas destinadas a sistemas de circulação
e a implantação de equipamento urbano e comunitário,
bem como de espaços livres de uso público, proporcionais
à densidade de ocupação prevista pelo plano diretor ou
aprovada por lei municipal para a zona em que se situe.
24
O Plano Diretor do Município de
Pará de Minas determina, conforme relata o
promotor de Justiça na ACP, que partes dos
loteamentos devem ser transferidas para
o patrimônio público – 10% para praças,
jardins e áreas verdes; 20% para vias de
circulação e 5% para equipamentos públicos
e comunitários. Áreas verdes são aquelas
reservadas ao uso público, para atividades
cívicas, esportivas e de lazer da população,
tais como praças, bosques, parques e jardins. Essas áreas apresentam, na estrutura
urbana, funções urbanísticas que auxiliam
no desenvolvimento sustentável das cidades, formando espaços públicos destinados
à recreação, à composição paisagística e ao
equilíbrio ambiental.
Áreas verdes
O Ministério Público constatou que no
loteamento do bairro Esplanada apenas 1,52%
de sua área está destinado a áreas verdes. Além
disso, as áreas verdes existentes não possuem
projeto paisagístico implantado e algumas se
encontram ocupadas. O loteamento também
não possui área destinada a equipamento
comunitário, infringindo assim o disposto na
Lei Federal 6.766/79.
Infraestruturas básicas também precisam ser disponibilizadas, como equipamentos
urbanos de escoamento das águas pluviais,
iluminação pública, redes de esgoto sanitário,
abastecimento de água potável e energia elétrica pública e domiciliar e as vias de circulação
pavimentadas ou não.
Para Charles Daniel, em regra, os loteamentos clandestinos geram influência direta
sobre o meio ambiente, uma vez que não são
observadas as normas urbanísticas, o que acarreta também consequências para a segurança
e a salubridade da população.
Ipatinga: proteção de 2,5 milhões de
m2 de área verde
O Ministério Público obteve, na Justiça, decisão judicial garantindo a proteção de
cerca de 2,5 milhões de m2 de áreas verdes
e de especial interesse ambiental e paisagístico do município de Ipatinga, e que estavam
ameaçadas pelo Plano Diretor da cidade. A
decisão já transitou em julgado e não cabe
mais recurso.
Foi imposta obrigação de não fazer
ao Município, impedindo-o de expedir atos
administrativos com o objetivo de implantar
expansões urbanas e de efetuar alterações
Divulgação
que comprometam o caráter paisagístico do Parque das Mangueiras e, ainda,
a imposição de obrigação de não fazer à
Usiminas, vedando intervenções em determinadas áreas de sua propriedade sem
os respectivos licenciamentos ambientais.
Caso a decisão seja descumprida, os infratores serão multados em R$ 100 mil a
cada ato realizado.
O trânsito em julgado da decisão
judicial foi determinado por Termo de
Ajustamento de Conduta (TAC) firmado
pelo Ministério Público com a Usiminas
e com o Município de Ipatinga, em que
os réus reconheceram a procedência
da sentença, desistiram das apelações
interpostas e renunciaram ao direito de
impetrar novos recursos. “Tal decisão implica consequências altamente relevantes
para o futuro do município de Ipatinga,
pois a destinação, para fins de proteção
ambiental e urbanística, das áreas protegidas pela sentença transitada em julgado não poderá mais ser alterada por
qualquer tipo de ato do Poder Legislativo
ou do Executivo, estando a execução da
sentença garantida por pesadas multas”,
declarou o promotor de Justiça Walter
Freitas de Moraes Júnior.
Walter Freitas de Moraes Júnior
25
Interesse ambiental e paisagístico
O Plano Diretor do Município, elaborado na administração passada, determinava que áreas incluindo o cinturão
verde da Usiminas, o Parque Zoobotânico da Usipa, áreas de
preservação nas margens do Rio Piracicaba, áreas do Parque
Estadual do Rio Doce, e o Parque das Mangueiras deveriam ser
destinadas à expansão urbana e comercial. Estudo realizado
pela Universidade Federal de Ouro Preto indicou que a urbanização de tais áreas iria implicar grave dano à vida, saúde e
qualidade de vida da população do Município, uma vez que tais
áreas possuem importante função ecológica, funcionando como
instrumento de controle de poluição. Algumas áreas também
foram consideradas como de especial interesse ambiental e
paisagístico, inclusive áreas de preservação permanente nas
margens do Rio Doce e Piracicaba.
Conforme destacado na decisão, “a urbanização das
áreas verdes não é benéfica nem mesmo aos cidadãos que se
dispuserem a adquirir os lotes próximos à fonte emissora de
poluição atmosférica, sonora e visual. Ao determinar a urbanização de tais áreas, o município satisfará o direito à habitação dos
munícipes em detrimento de outro mais importante no caso em tela: o direito à saúde.
Todas as áreas citadas devem ter o interesse ambiental declarado, pois houve omissão
do poder estatal em fazê-lo, eis que não as
incluiu no Plano Diretor como áreas cuja necessidade de proteção ambiental é patente. Frente a tal omissão cabe ao Ministério
Público, instituição responsável pela defesa
da sociedade, pleitear o reconhecimento de
tal interesse”.
Com a decisão transitada em julgado, segundo o promotor de Justiça, foi, de
fato, instituída pelo Poder Judiciário uma
Área de Proteção Ambiental englobando as
áreas ameaçadas pelo Plano Diretor, que foram declaradas como de especial interesse
ambiental e paisagístico, estabelecendo-se
um regime jurídico para a sua proteção.
Fotos: divulgação
Relembrando
O promotor de Justiça Walter Freitas de Moraes Júnior
propôs, em 29 de janeiro de 2007, uma Ação Civil Pública, com
pedido de tutela antecipada, a qual foi deferida pela Vara de Fazenda Pública de Ipatinga, garantindo a proteção das referidas
áreas verdes, impedindo-se assim, a pretensão da Prefeitura de
derrubar 2,5 milhões m2 quadrados de área verde, para implantar no lugar residências, comércio e equipamentos públicos.
A Prefeitura pretendia devastar 21 regiões de área verde, que abrangem quase todos os bairros da cidade. Dessas,
13 áreas compõem o cinturão verde da Usiminas, principal adversária da implementação do projeto do prefeito.
A própria Usiminas fez a representação ao Ministério
Público visando barrar o desmatamento. Na ocasião, os representantes da Usiminas anunciaram que a supressão vegetal
seria nociva para a sociedade e para a imagem da empresa,
26
uma vez que a atividade siderúrgica é poluidora e a Usiminas sempre foi conhecida
por propagar o verde. Cerca de 29 entidades de proteção ambiental da região, além
de ongs, associações esportivas e culturais
se uniram para defender a preservação das
áreas verdes.
Na ACP do Ministério Público ficou comprovado também que somente os
926 mil metros quadrados de área verde
do Centro de Biodiversidade da Usipa (Cebus), braço ecológico da Usiminas que a
prefeitura pretendia extinguir, abrigam 598
animais, a maioria deles de fauna nacional e
ameaçados de extinção. (Eduardo Curi)
Alex Lanza
Sonho da
casa própria
Especialistas tentam explicar por que é tão complicado resolver o
déficit habitacional no Brasil, que ultrapassa seis milhões de moradias
Por Giselle Borges
Lançado em 25 de março deste ano, o
programa do governo federal Minha Casa Minha Vida, que prevê investimentos de R$ 34
bilhões e a construção de um milhão de moradias para famílias com renda de até 10 salários mínimos, colocou na ordem do dia o tema
habitação, já há tempos sem merecer prestígio
dos governos. Destaque deve ser dado para o
impressionante número de 6,273 milhões de
moradias que compõem o déficit habitacional
no país.
Problemas nessa área não são recentes,
visto que uma das primeiras políticas habitacionais do país, a Fundação da Casa Popular, é de
1946. Desde então, vários modelos, órgãos e
programas entraram na história sem, contudo,
conseguirem equacionar dificuldade da moradia
para a população de baixa renda. Banco Nacio-
nal de Habitação (BNH), Caixa Econômica Federal, Ministério
da Habitação e do Bem-Estar Social (MBES), Habitar Brasil,
Morar Município, Secretaria Especial de Habitação e Ação
Comunitária (Seac), Plano Nacional de Habitação (PlanHab)
são alguns dos nomes que refletem as mudanças na concepção e no modelo de intervenção do poder público no setor.
Análise publicada no portal do Ministério das Cidades
(www.cidades.gov.br), órgão criado em 2003 pelo governo
Luiz Inácio Lula da Silva com o propósito de combater as
desigualdades sociais, a partir da transformação das cidades
em espaços mais humanizados, é direta ao dizer o que havia
ocorrido no setor habitacional “foi mais fruto de uma descentralização por ausência, sem uma repartição clara e institucionalizada de competências e responsabilidades, sem que
o governo federal definisse incentivos e alocasse recursos
significativos para que os governos dos estados e municípios
pudessem oferecer programas habitacionais de fôlego para
enfrentar o problema”.
27
Pela análise “o governo federal manteve
um sistema centralizado, com linhas de crédito
sob seu controle, sem uma política definida para
incentivar e articular as ações dos estados e municípios no setor de habitação. O que se observa
nesse período é a desarticulação institucional ou
até mesmo a extinção de várias Companhias de
Habitação (COHAB) estaduais e a dependência quase completa dos recursos federais pelos
governos para o enfrentamento dos problemas
habitacionais, verificando-se, inclusive, quase ou
nenhuma priorização por parte de muitos estados à questão habitacional”.
Apuração
do déficit
O Déficit Habitacional no Brasil é uma
publicação da Fundação João Pinheiro, elaborada
em parceria com o Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento (Pnud), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e a Secretaria
Nacional de Habitação do Ministério das Cidades.
Ele aborda as necessidades habitacionais a partir
de metodologia que distingue a necessidade de
construção de novas moradias (o déficit habitacional) do segmento dos domicílios inadequados. O
número estimado em 2006 foi de 7,935 milhões de
domicílios, a maioria – 6,543 milhões – localizada
nas áreas urbanas. Já a Pnad 2007 apontou um
total de 7,288 milhões de moradias.
Essa ineficácia de políticas não é suficiente para
entender o atual déficit habitacional quando confrontado
com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) 2007 do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) que apontam a existência de 7,351
milhões de domicílios vagos no país, sendo 5,396 milhões
nas áreas urbanas. Números da Pnad, juntamente com os
do estudo sobre o déficit habitacional 2007 da Fundação
João Pinheiro, que apontam que chegam a 6,273 milhões,
têm sido usados pelo governo, por meio do Ministério
das Cidades, para todas as ações voltadas à área, inclusive para a elaboração do Plano Nacional de Habitação
(PlanHab).
O mais recente estudo da Fundação João
Pinheiro, publicado em junho de 2009, calcula em
6,273 milhões de moradias o novo déficit habitacional. A diferença entre os dados reflete o uso
de nova metodologia, pois a antiga, segundo a secretária nacional de Habitação do Ministério das
Cidades Inês da Silva Magalhães, vinha sendo
alvo de críticas por incluir toda coabitação como
déficit.
A coabitação familiar compreende a soma
das famílias conviventes secundárias que vivem
com outra família em um mesmo domicílio e das
que vivem em cômodos, com exceção dos cedidos
por empregador. As famílias conviventes secundárias são constituídas por, no mínimo, duas pessoas
ligadas por laço de parentesco, dependência doméstica ou normas de convivência e que residem
no mesmo domicílio com outra família denominada
principal. O responsável pela família principal é
também o responsável pelo domicílio.
Fonte: Fundação João Pinheiro
Por que é tão complicado resolver essa
equação? A secretária nacional de Habitação
do Ministério das Cidades, Inês da Silva Magalhães, diz que, antes de tudo, é importante entender como esse déficit surgiu. “Ele é produto
de um crescimento, principalmente nas grandes
metrópoles, sem o planejamento adequado com
a infraestrutura necessária para dar conta da
produção habitacional. Esse é um componente.
Outro é a questão dos mecanismos de financiamentos para a baixa renda. Os recursos têm que
ser adequados ao perfil do déficit. Esse é um dos
atributos com o qual acreditamos que o Minha
Casa Minha Vida vai contribuir. O enfrentamento
do problema só pode ser feito a longo prazo. O
Plano Nacional de Habitação prevê a necessidade de 27 milhões de novas moradias até 2023.
O Minha Casa Minha Vida é o pontapé disso.
Ele traz instrumentos estruturais como o fundo
garantidor para as famílias de até 10 salários
mínimos”.
28
O principal problema das cidades, entretanto, pode não ser a cidade propriamente dita. É o que
pensa Teodoro Alves Lamounier, que era presidente da
Companhia de Habitação do Estado de Minas Gerais
(Cohab/MG), quando concedeu a entrevista. Segundo
ele, o principal problema do país é o fato de haver uma
vasta camada da população em situação de pobreza e
miséria absoluta. “Por isso mesmo, os municípios são
pobres. Essa população, em sua maioria, não tem empregos adequados nem renda para arcar com os custos
de tarifa de abastecimento de água, coleta de lixo. O
grande problema da cidade é, na verdade, do país, o fato
de se ter essa grande proporção de pobres e miseráveis
vivendo na nossa cidade, em condições subumanas e
em casas improvisadas”. Sociólogo, administrador e com
a experiência de quem já foi secretário de Estado de
Desenvolvimento Regional e Política Urbana de Minas
Gerais, Teodoro Lamounier ressalta que a falta de moradia adequada influencia outros problemas como falta
de saneamento básico, drenagem e coleta e destinação
do lixo, de forma correta.
Nessa linha, é possível ampliar a discussão
e analisar a habitação como o grande empecilho da
falta de planejamento urbano, uma vez que 70%
do espaço das cidades é constituído pela área residencial. “A maneira como a moradia é resolvida,
em todos os níveis de renda, é muito importante
para dizer como é a cidade. Exatamente porque
nós temos no Brasil uma maioria de população de
baixa renda e a moradia desse grupo, historicamente, ocorreu com a autoprodução em situações
marcadas pela informalidade, pela irregularidade,
pela ilegalidade. Isso tem um impacto tremendo
sobre a forma de urbanização das cidades e é por
isso que intervir sobre esse tema é tão fundamental”, defende a relatora internacional do direito à
moradia adequada do Conselho de Direitos Humanos da ONU, professora Raquel Rolnik.
Rodrigo Nunes/MCidades
Direito
à cidade
Para Rolnik, o tema gera efeitos sobre a
mobilidade, criando contratempos na circulação,
entre outros. “Por exemplo: exportamos todos os
pobres para a periferia e todos os dias temos que
trazê-los para o centro. Isso gera um problema
no sistema de circulação. Aí se fala que há um
problema enorme de transporte. O problema não
é o transporte, é de moradia. Há também muitas áreas de preservação que hoje são ocupadas
irregularmente. Não é problema ambiental, é de
moradia”.
Inês Magalhães une à mobilidade à questão da moradia, para listá-las como os maiores
desafios do planejamento urbano. Ela diz que a
grande dificuldade hoje é garantir o direito à cidade, pois moradia adequada não se limita a casa
com paredes e teto, mas pressupõe, em termos
urbanos, um lugar na cidade a partir do qual o
indivíduo possa acessar as oportunidades de desenvolvimento humano econômico que as cidades
oferecem como educação, lazer e emprego. Esse
acesso é o que caracteriza o direito à cidade, entendimento que ganhou destaque com a criação e
a implementação do Estatuto da Cidade.
Como isso seria possível? Segundo a secretária nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades, Maria Teresa Jucá, “inicialmente é fundamental construir um amplo programa de
urbanização e regularização fundiária dos assentamentos precários, estendendo a eles as redes de
infra-estrutura urbana, equacionando as situações
de risco, promovendo o acesso aos equipamentos
públicos, implementando a regularização fundiária. Mas não basta adotar políticas curativas se
continuarmos a produzir cidades excludentes. O
direito à cidade requer novas formas de produção
e transformação do espaço urbano para que neste
processo a população de baixa renda não fique excluída e usufrua dos serviços urbanos básicos.”
Inês Magalhães
Mudança
cultural
Há quase 10 anos entrou em vigor a Lei Federal
nº 10.257, conhecida como o Estatuto da Cidade. Ele
regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988, que tratam especificamente da Política
Urbana. Coube ao Estatuto definir o que significa cumprir
a função social da cidade e da propriedade urbana. Esse
papel foi delegado, principalmente, aos municípios que
passaram a contar com vários instrumentos de intervenção sobre seus territórios.
Os instrumentos propostos estão condensados
em três áreas: regularização fundiária e urbanização de
áreas ocupadas por população de baixa renda; melhora
na distribuição dos benefícios e dos ônus do processo de
urbanização; combate à retenção especulativa de terras
na cidade, para melhorar a oferta de lotes e reduzir o
preço dos imóveis.
Entretanto, o que o Estatuto trouxe de mais
interessante foi a possibilidade de se pensar de forma
inovadora sobre planejamento e gestão urbanos. Além
dos instrumentos voltados para as formas de ocupação
do solo e as possibilidades de regularização das posses
urbanas, a “nova” lei propôs uma estratégia de gestão
com a participação direta do cidadão.
Da lei para a prática, sabe-se que há um longo
percurso que, nesse caso, começou com um pequeno entrave: o Estatuto da Cidade ficou vinculado à elaboração
dos planos diretores, o que deu um certo encaminhamento para a sua implementação, pois os planos diretores já
eram conhecidos, mas restringiu a aplicação do Estatuto,
pois levou as discussões sobre a função social da cidade
e da propriedade para um âmbito muito técnico.
29
A Secretaria Nacional de Programas Urbanos
está coordenando o projeto Rede Nacional Planos
Diretores Participativos realizado em parceria com
a Universidade Federal do Rio de Janeiro e com o
Conselho Nacional das Cidades para analisar os planos diretores elaborados no Brasil após o Estatuto
da Cidade, principalmente no que se refere à capacidade de aplicação dos instrumentos do Estatuto nos
municípios. O estudo ainda não foi concluído, mas,
segundo a professora Raquel Rolnik, já se constatou
que a maioria dos municípios incluiu os instrumentos do Estatuto no plano, mas eles não estão sendo
implementados. “É como se esses instrumentos do
Estatuto fossem um adendo. Eles não transformaram
radicalmente a estratégia de pensar a cidade a partir
do Estatuto. Então é quase como uma formalidade. E
não aconteceu uma transformação radical da natureza
do plano e da sua maneira, da sua forma de apresentação. Mas nem poderia acontecer, porque de onde
ele surgiria? Temos uma cultura, uma história, temos
uma prática”, diz Rolnik.
Lamentável, pois a ideia era de que, com o Estatuto, o plano diretor deixaria de ser um documento
puramente técnico para se transformar, por meio de
um processo participativo, em um pacto socioterritorial na cidade. “Mas também não dá para desqualificar
todos os processos. Não foi tudo assim. No Brasil
inteiro há casos de cidades onde houve ações importantes de discussão pública. Temos que entender isso
como processo. Você não rompe toda essa cultura de
uma hora para outra”, ressalta.
Controle
Luiz Alonso
Raquel Rolnik
Rodrigo Nunes/MCidades
social
Justamente para promover essa mudança cultural voltou-se o foco para a atuação dos municípios.
É necessário esse nível de proximidade com o cidadão
para promover a participação e o controle social. O
local onde esse controle tem melhores condições para
ocorrer é nos municípios, dada a proximidade com os
moradores e com os agentes promotores da transformação do espaço urbano. A opção pelos municípios
pode ser a mais acertada, mas resta saber se eles
estão conseguindo colocar a proposta em prática.
Para Raquel Rolnik, essa situação não poderia
ter sido diferente, mas ela enfatiza que os municípios
do país, especialmente na área de desenvolvimento
urbano, não são autônomos. “Eles dependem 100%
de transferências voluntárias, não obrigatórias e não
constitucionais de outros entes da federação para
poder investir na área de desenvolvimento urbano.
E, o que é mais importante: o acesso hoje a esses recursos não tem absolutamente nada a ver e nem leva
em consideração esses processos de planejamento
local que os municípios fazem. Portanto esses planos
diretores com os instrumentos do Estatuto acabam
virando exercícios retóricos pura e simplesmente porque não é através deles que de fato o investimento
30
Teresa Jucá
no desenvolvimento urbano se dá”.
Segundo a relatora da ONU, nem os processos decisórios, nem os recursos financeiros passam
pelos planos. Ela pensa que, hoje, as transferências
na área de desenvolvimento urbano são 100% mediadas politicamente. “O que está por trás disso é a
ideia de uma reforma urbana, uma reforma de estado
que só se completará quando nós desenvolvermos o
nosso modelo de federação e nosso sistema político
para que a esfera local passe a ser verdadeiramente
autônoma inclusive do ponto de vista da sua autossustentação financeira e no momento também em que
esses instrumentos de controle do desenvolvimento
urbano, de exercício do controle da cidade e da propriedade forem considerados regra básica e mínima
para se poder intervir no desenvolvimento urbano.
Porque são instrumentos que têm a oposição daqueles que usufruem da cidade não em sua função social,
mas em sua função de geração de renda, de constituição de patrimônio, de enriquecimento, então essas
pessoas evidentemente sempre reagiram à aplicação
de instrumentos para garantir a função social.”
Vagner Luiz
Políticas
públicas
Para o ex-presidente da Cohab/MG, Teodoro
Lamounier, tem havido uma boa vontade por parte
dos governos nas questões relativas à moradia. Ele
diz que, depois da extinção do BNH, que se deu em
1985, não houve política habitacional no país e só nos
últimos anos é que começaram a surgir programas
específicos para o provimento de habitação digna à
população. “Isso ainda é muito incipiente. Ainda está
numa fase em que o déficit habitacional não foi reduzido de maneira significativa, mas temos que registrar
avanços importantes nessa área como a criação de
fundos próprios para habitação, para a destinação de
recursos que propiciem subsídios à população de baixa
renda, para acesso a uma habitação digna. Durante os
últimos 20 anos, nós vivemos com a premissa de que
o mercado podia resolver e que iria resolver inclusive
o problema da habitação. Não é verdade. Assistimos,
durante esse período, à ausência de políticas voltadas para a habitação e uma compreensão equivocada.
Custou a surgir uma consciência de que a população
de baixa renda e a miserável só podem ter acesso a
uma moradia digna se ela for subsidiada”.
É justamente essa demora que tem desanimado aqueles que sonham com a casa própria. Vera
Cristina de Sousa, 43 anos, cadastrou-se no programa
do governo federal Minha Casa Minha Vida (MCMV),
mas conta que, há seis anos, participa de um grupo de
sem casa que se reúne periodicamente. “O governo
vai lá, os prefeitos, todo mundo, mas ninguém resolve nada. Eu acho muita humilhação a gente passar
por isso. Moro de favor no bairro Betânia, com cinco
filhos. O mais novo tem um mês. Minha mãe cedeu a
casa pra mim, mas na hora que ela quiser, ela me tira
de lá” (sic).
Teodoro Lamounier
Giselle Borges
Vera Cristina de Sousa
31
Durante uma das reuniões, ficou sabendo do
MCMV e decidiu se cadastrar. Ela diz que está cansada do lugar onde mora por ser muito perigoso e
inadequado para os filhos. Vera Cristina é ambulante
e a renda da família gira em torno de R$ 600,00, contando com o Bolsa Escola. Ela está esperançosa com
o novo programa, embora não saiba nenhum detalhe.
“Até o momento não entendi bem, mas eu tenho esperança de que ele beneficie a gente muito rápido
porque tem muita terra por aí. E, quando fizerem as
casas, espero umas casinhas boas pra gente morar,
e não essas casas aí, pra entrar quatro, têm que sair
três” (sic).
O Brasil tem uma Política Nacional de Habitação elaborada em 2004 cujo objetivo é retomar o
processo de planejamento do setor e garantir condições institucionais para promover o acesso à moradia
digna a toda a população. Essa política conta com um
conjunto de instrumentos para sua efetivação, entre
eles o Plano Nacional de Habitação (PlanHab), que
deve estabelecer as metas de médio e longo prazo, as
linhas de financiamento e os programas que serão implementados. O PlanHab começou a ser elaborado em
agosto de 2007 e tem como horizonte de planejamento o ano de 2023, com suas revisões correspondentes
aos anos de elaboração dos Planos Plurianuais: 2011,
2015 e 2019.
A secretária nacional de Programas Urbanos
do Ministério das Cidades, Maria Teresa Jucá, afirma
que, nos últimos anos, houve aumento dos recursos
habitacionais do governo federal destinados a famílias
com renda familiar mensal menor do que seis salários
mínimos e que isso permitiu conter a expansão do
déficit habitacional. “Com a efetiva implantação do
Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social,
que prevê que os estados e municípios constituam
seus fundos estaduais e municipais de habitação de
interesse social articulados com o Fundo Nacional de
Habitação de Interesse Social já em funcionamento,
teremos um aumento considerável nos investimentos
públicos nesta área”, destaca.
O programa Minha Casa Minha Vida é, de
acordo com Tereza Jucá, o projeto de maior destaque
atualmente. “Além de viabilizar recursos federais para
a construção de um milhão de moradias para faixas de
renda de até 10 salários mínimos, institui o subsídio
de mais de 95% para as famílias com renda mensal
de até três salários mínimos, cria um fundo federal
de seguro para garantir os financiamentos, evitando
as análises de risco que excluem os mais pobres dos
financiamentos e diminuindo sensivelmente o valor
das prestações, garante descontos significativos de
mais de 80% nos custos do registro imobiliário, entre
outras medidas que vão efetivar a destinação dos
imóveis produzidos para camadas da população de
menor renda”.
Minha Casa
Minha Vida
Giselle Borges
Aposentada, 69 anos, Joana Gonçalves Silva
nunca morou em uma casa própria. Ela conta que
também nunca participou de programas habitacionais, mas, quando assistiu a uma notícia pela televisão sobre o programa Minha Casa Minha Vida,
decidiu se inscrever. Atualmente, ela vive com um
filho, a nora e dois netos: um de sete e outro de 13
anos. A moradia, no bairro Minas Brasil, é emprestada ao filho.
Dona Joana pretende conseguir uma casa
para morar sozinha, mas com a renda mensal de
um salário mínimo, reza para ser beneficiada pelo
programa. “Eu vim porque não tenho casa. Hoje ganhei um jornalzinho e lá vi que era o último dia para
inscrever. To garrada com Deus que vou conseguir”
(sic). A aposentada se inscreveu no programa e deixou o posto da Prefeitura de Belo Horizonte sem
nenhuma informação sobre o processo de escolha
dos beneficiados, valores subsidiados pelo governo
ou o tipo de moradia a que se candidatou.
Como a aposentada, milhares de brasileiros
se inscreveram no programa. Só em Belo Horizonte
foram aproximadamente186 mil pessoas, até o final
de junho. A maior parte, sem dúvida, não deverá
ser atendida.
32
Joana Gonçalves Silva
Veridiene Patrícia de Sousa Cirilo de Freitas, 21 anos
Giselle Borges
“Fiquei sabendo, pela televisão,
que o Lula estava falando que ia dar um
milhão de casas e quem quisesse participar tinha que preencher o formulário.
Eu pago aluguel e tenho vontade de ter
uma casa própria. Moro com meu marido
e meu filho de três anos, no bairro Betânia. Sempre morei de aluguel e pago R$
180,00 por mês. A renda da minha família
é mais ou menos R$ 700,00. Estou com
esperança de conseguir e, se Deus me
proporcionou essa oportunidade, quem
sabe eu posso ganhar”.
Wagner Gouveia Passos, 25 anos
Giselle Borges
“O programa é uma boa oportunidade para conseguir minha casa própria,
sair do aluguel. Moro com minha esposa
e um filho de um ano e dez meses. Pago
R$ 200,00. Juntando minha renda de técnico em controle de pragas e a da minha
esposa, que é salgadeira, a renda é R$
1.150,00. Vi a propaganda na televisão e
estou fazendo no escuro, ainda não sei certinho os detalhes do programa. Não estava
com tempo de olhar certinho e nem sabia
que o último dia era hoje. Fiz meio na correria, depois vou olhar com calma”.(sic)
Luiz Carlos Horsth Fonseca, 36 anos
Giselle Borges
“Não tenho casa própria. Atualmente estou morando com meus pais. Tinha um
casamento que não deu certo. Voltei para
a casa dos meus pais. Querendo admitir ou
não, infelizmente, moro de favor. Então estou lutando aí para ter meu espaço, minha
casa própria. Esse é um dos motivos, até
pelo fato de eu ter essa esperança. Trabalho
com vendas e a renda mensal é mais ou menos R$ 600,00. Um amigo meu passou essa
informação, para participar desse programa
do governo para as pessoas mais carentes,
que têm mais necessidade, que moram de
aluguel. Aproveitando o espaço, eu vim correndo”. (sic)
33
Teodoro Lamounier explica que o
MCMV foi motivado por uma compreensão
do governo de que era preciso reativar rapidamente a economia. Ele diz que o setor
mais adequado para produzir esse efeito é o
da construção civil, que gera muitos empregos e tem efeitos ao
longo da cadeia produtiva. “Ao lado disso acoplou-se a idéia de
reduzir o déficit habitacional. Essa compreensão é importante,
mas tem um lado inconveniente dessa medida: ela reforça a
concentração nos grandes centros”.
Falhas
e descompassos
Raquel Rolnik, que ocupou o cargo
de secretária nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades entre 2003
e 2007, reforça o coro defendendo como
única possibilidade o subsídio direto para
a população de baixa renda, mas questiona
outros pontos do programa como o fato de
não permitir a reforma ou a reabilitação de
imóvel vazio e subutilizado. “Quem disse
que tem que ser casa própria e na planta?
Esse modelinho é muito perverso. Existe
um descompasso mesmo de uma população
que não tem renda para comer ser proprietária de um bem que vale R$ 60 ou R$ 70
mil. Eu venderia no dia seguinte para comer.
Existem várias opções para atender uma
moradia adequada além da casa própria individual, como o subsídio ao aluguel”.
A relatora da ONU defende que
os recursos do MCMV também poderiam
apoiar a produção social de moradia, melhorando a assistência técnica e a infraestrutura em processos de autoconstrução. Ela é
taxativa ao dizer que a origem do programa
foi salvar as construtoras que abriram capital em bolsa e se prepararam para entrar no
mercado de classe média, mas, em razão da crise econômica,
estavam quebrando, além de uma aposta no investimento público para gerar emprego rapidamente e como medida anticrise.
“Casa não é geladeira. Não basta produzir um monte e cada
um comprar e levar. Fazer casa é fazer cidade. É por isso que
tenho insistido em medidas necessárias para complementar o
programa. A condicionalidade do uso dos recursos por municípios que implementem seus planos diretores com instrumentos
do Estatuto da Cidade, coibindo a especulação imobiliária, é
uma dessas medidas. O simples anúncio da existência de R$
34 bilhões para investimento em produção de moradia, imediatamente aumenta os preços dos terrenos. Com isso, boa parte
do subsídio vai para o dono do terreno”.
No MCMV, as próprias construtoras encaminham à
Caixa Econômica Federal as propostas de empreendimentos.
Assim, o que se viu inicialmente foi um certo desinteresse das
construtoras para a faixa de renda de zero a três salários mínimos. As Cohabs podem ser parceiras apropriadas, uma vez
que já trabalham com esse mercado. Segundo o presidente da
Cohab/MG, o órgão já está em negociação com a Caixa para
isso. Outro destaque foi a falta de terrenos nas grandes cidades
que, segundo a secretária nacional de Habitação do Ministério
das Cidades, Inês Magalhães, não é um problema do programa
MCMV. “É um problema da cidade, urbano. Na verdade o que
está sendo negociado é que os recursos possam ser complementados ou que sejam usados imóveis públicos”.
Moradia e preservação ambiental
Na busca de garantir a todo cidadão
o direito de usufruir a cidade com acesso
aos recursos oferecidos, inclusive a moradia
adequada, o Ministério Público tem avançado em suas ações na área de habitação
e urbanismo.
De acordo com a professora e relatora internacional do direito à moradia adequada da ONU, Raquel Rolnik, o Ministério
Público foi parceiro importante no processo
da campanha dos planos diretores, assegurando processos públicos de discussão, e
tem sido ativo na implementação do Estatuto da Cidade. “Agora, fazendo um balanço
34
mais geral do Ministério Público no Brasil, e, se estamos falando
de interesses coletivos e difusos, eu sinto que ele é muito mais
ativo na questão ambiental do que no direito à moradia e à
cidade”, lamenta.
Ela diz que espera ver o Ministério Público mais presente
na situação do despejo, por exemplo. “Todos os dias ocorre
despejo no Brasil e despejos que vão desde situações de urbanização em que se retiram todos e são mandados embora
ou situações de demoliçã de áreas inteiras da cidade para se
construírem outras e mandarem as pessoas embora. Eu gostaria de ver o Ministério Público implementando o que já está
assegurado não só na nossa Constituição, mas em uma série de
resoluções e tratados internacionais sobre a moradia adequada,
dos quais o Brasil é signatário”.
Usucapião coletivo
O Ministério Público de Minas Gerais tem ampliado sua atuação nessa área promovendo, inclusive,
a interlocução entre as várias entidades e órgãos envolvidos com o tema. Em agosto deste ano, deve ser
proposta a primeira ação, no Estado, de usucapião
coletivo, instrumento inovador criado com o Estatuto
da Cidade.
O objeto é um grupo de pessoas na cidade de
Campo Florido, a cerca de 60 km de Uberlândia, no
Triângulo Mineiro. São mais de 100 famílias que moram em uma área sem proprietário conhecido. Como
não há documentação, o poder público não reconhece a área como loteamento, nem como um bairro e,
consequentemente, não há infraestrutura urbana no
local.
O promotor de Justiça Carlos Alberto Valera
iniciou procedimento que está em fase de investigação. “Nós vamos ouvir assistentes sociais do município, funcionários da prefeitura que vão atestar há
quanto tempo essas pessoas estão nesses terrenos.
Se elas estiverem lá, há mais de cinco anos, de forma mansa e pacífica e se esses terrenos localizados
na área urbana forem inferiores a 250m², é possível
a propositura de ação de usucapião urbano-constitucional de forma coletiva. Ou seja, através de uma
ação civil pública, nós vamos pleitear junto ao Poder
Judiciário que, de uma única vez, reconheça em favor
dessas famílias, que são famílias hiposuficientes, a
escritura desses imóveis através de usucapião”.
Com a ação, o Ministério Público de Minas
pretende resolver um grave problema social, pois,
além de regularizar a documentação no cartório de
registro de imóveis vai propor ao município um Termo
de Ajustamento de Conduta (TAC) para que o local
passe a existir juridicamente e que seja urbanizado
com a ligação de água e energia elétrica, rede coletora, asfalto, entre outros benefícios.
O usucapião coletivo é um tipo raro de ação
porque, normalmente, as pessoas optam por ações
individuais.
Alex Lanza
Carlos Alberto Valera
Assentamento
Na mesma cidade, Campo Florido, fica também o assentamento denominado Santo Inácio Ranchinho. Ele existe há cerca de oito anos e envolve 115
famílias. A Promotoria de Justiça recebeu a informação de que eles estavam ocupando indevidamente
as áreas de reserva legal e as áreas de preservação
permanente. Isso foi comprovado e as medidas cabíveis começaram a ser aplicadas quando a associação
do assentamento entrou em contato com o Ministério
Público.
Eles se dispuseram a resolver a situação e,
dessa forma, foram celebrados TACs com todos os
assentados. O Instituto Estadual de Florestas (IEF)
está vistoriando lote por lote e fazendo a demarcação
das áreas de preservação permanente e das áreas de
reserva legal. Assim, os assentados mantêm a exploração em seus respectivos lotes, mas cumprem
integralmente a legislação ambiental.
O promotor de Justiça Carlos Valera explica
que as áreas estão sendo isoladas para evitar que o
gado as pisoteie. O processo de licenciamento está
sendo agilizado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
“Com o licenciamento e essas medidas, o
assentamento passará a ser o único no território
nacional com todas as questões resolvidas de uma
única vez. O movimento é criticado, mas é possível
um assentado viver, com dignidade, do seu lote, mas
preservando o meio ambiente”, alega o promotor de
Justiça.
35
Vida urbana:
planejar para incluir
Por Fernanda Magalhães
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 82% da população
brasileira vive nas cidades. Um outro dado, ainda mais impressionante, dá conta de que 40% dos
brasileiros estão concentrados nas regiões metropolitanas do país. Esse cenário é o resultado de um
processo de urbanização altamente concentrador, que tem suas raízes no final do século XIX e se
intensifica a partir da segunda metade do século XX.
Durante quatro séculos, a rede urbana brasileira foi sendo construída lentamente à medida
que se expandia a exploração do território. No final do século XIX, o fim da escravidão e a entrada de
grandes contingentes de imigrantes aceleram o ritmo de urbanização. Para se ter uma ideia, a cidade
de São Paulo, que, em 1870, tinha cerca de 30 mil habitantes, salta, em 1900, para uma população
de 265 mil.
Nessa época, São Paulo havia se tornado a capital do café, o que permitiu que se
iniciasse um processo de industrialização, ainda
que incipiente. De acordo com a professora do
Departamento de Urbanismo da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Jupira Gomes de Mendonça, “no
Brasil, a industrialização veio primeiro nas regiões que produziram capital excedente suficiente
para alavancar esse processo de crescimento
econômico e, portanto, de urbanização”.
Nas primeiras décadas do século XX,
consolida-se no país uma indústria de bens de
consumo mais simples e, entre os anos 1940 e
1970, são instalados setores tecnologicamente
mais avançados, que exigem investimentos de
grande porte e levam a um segundo surto de
crescimento urbano.
Mas, de acordo com Jupira, na América
Latina como um todo, não houve acumulação
suficiente para o desenvolvimento capitalista
industrial nos moldes dos países de economia
avançada. Por aqui, a industrialização se deu
com uma participação muito forte do Estado
como criador de condições e investidor no setor
de bens básicos para a produção (siderurgia,
combustível, eletricidade).
Em razão disso, segundo a professora,
tivemos que conviver com uma informalidade
36
econômica e urbana, importante para permitir
a concentração do investimento na produção
industrial. “Isso explica, em parte, a enorme
concentração geográfica da produção industrial e, portanto, da urbanização nas metrópoles
latino-americanas. De certa maneira, faz parte
da nossa história de economia periférica”.
Nas décadas de 60 e 70, a mecanização da produção agrícola gera um grande êxodo
rural, e os fluxos migratórios mais intensos vão
justamente em direção às cidades com maior
grau de industrialização. Em três décadas,
1950, 1960 e 1970, 39 milhões de brasileiros
migram para as cidades. “Esse foi o período de
maior crescimento populacional urbano, quando,
pela primeira vez, mais da metade da população
brasileira aparece nas cidades”, afirma Jupira.
São Paulo, a maior cidade do país, chega ao ano 2000 com 10 milhões de habitantes
no município e, se considerarmos toda a região
metropolitana, com 17 milhões. Como vimos,
esse processo não decorreu somente do aumento da população, mas também da sua mobilidade. As regiões com maior concentração
econômica atraem muitas pessoas que buscam
oportunidades, e desses aglomerados populacionais decorrem problemas como a precariedade habitacional, o desemprego, a segregação
social, a desigualdade.
Alex Lanza
37
O entorno e o centro
Um processo mais recente, posterior ao inchaço das metrópoles,
é o espraiamento desses aglomerados populacionais, com o esvaziamento dos núcleos centrais.
Nas duas últimas décadas, Belo Horizonte, por exemplo, cresceu
1,1% ao ano, o que, segundo Jupira, significa que o saldo migratório do
município está se tornando negativo. “O crescimento vegetativo, que é
a diferença entre quem nasce e quem morre, mantém-se positivo, mas
a cidade está perdendo população para os municípios do entorno. Isto
é uma constante nas regiões metropolitanas do Brasil: o núcleo central
crescendo menos e os municípios mais periféricos crescendo mais”.
Para a professora do Departamento de Ciências Sociais da
PUC-Minas Luciana Teixeira de Andrade, há um certo esgotamento das
cidades-polo, que também se tornaram muito caras. “As cidades mais
periféricas ainda têm lotes baratos e, por isso, ainda recebem migrantes
mais pobres”.
Modelo perverso
Mas esse padrão de crescimento gera problemas. Luciana explica que “quando se constroem conjuntos habitacionais ou quando o
mercado imobiliário começa a oferecer lotes baratos em locais distantes,
logo depois, há uma demanda para que o Estado leve infraestrutura até
esse local. Isso é caro para o Estado e para a população que precisa
se deslocar até o centro”. Além disso, “geralmente, as áreas que ficam
vagas entre a região mais central e essa periferia são valorizadas e depois ocupadas por uma população que não é de baixa renda”. Ou seja, o
Estado investe para levar infraestrutura até a população mais pobre, a
área intermediária se valoriza, o mercado imobiliário tira vantagem disso,
e essas áreas mais próximas do centro são ocupadas por populações de
renda mais alta.
Por isso, segundo Luciana, hoje há uma crítica a esse modelo, que
se revelou perverso e muito caro. A ideia é aproveitar áreas centrais.
Ela cita São Paulo como exemplo de cidade que tem muitos projetos de
transformar prédios vazios em habitação popular. De acordo com ela, isso
é interessante, porque o centro tem uma infraestrutura muito boa, que
é subutilizada. “No centro de Belo Horizonte, por exemplo, há prédios
que estão abandonados e que poderiam ser revitalizados. Essa seria uma
forma de se usufruir um espaço que tem uma ótima infraestrutura, em
vez de insistir em um modelo de cidade dispersa e cara”.
Mas não apenas os mais pobres estão se deslocando em direção
ao entorno das grandes cidades. A partir dos anos 1990, os condomínios
fechados surgem no mundo inteiro como uma alternativa de moradia e
contribuem para a dispersão de uma população das classes média e alta
para áreas periféricas.
Mesmo assim, de acordo com dados de pesquisas de origem e
destino realizadas pela professora Jupira de Mendonça, o movimento
predominante é o seguinte: entre os que vêm para dentro de Belo Horizonte, principalmente nos espaços centrais e pericentrais, predominam
as pessoas de renda mais alta; ao contrário, entre os que saem desses
lugares para outros mais distantes, predominam as pessoas de renda
mais baixa.
Nesses movimentos a cidade vai se dividindo, o espaço vai sendo
ocupado de acordo com a renda das pessoas e com o acesso permitido
pelo mercado imobiliário.
38
Desigualdade e
segregação social
Alex Lanza
Luciana Andrade
Alex Lanza
Jupira Gomes de Mendonça
Luciana Andrade, que é doutora em Sociologia
pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), acredita que a mistura de pessoas de
classes sociais diferentes é muito positiva, mas, geralmente, a interação se resume à prestação de serviço pouco especializado dos mais pobres para os mais
ricos.
Além da divisão dos espaços de moradia, há
uma tendência de quem vive nas metrópoles de circular apenas em um espaço restrito. “Isso, por um lado,
é importante, porque precisamos e procuramos uma
certa familiaridade. Por outro lado, o encontro com o
diferente, com a diversidade, possibilitado pela cidade,
acaba não se realizando”, diz Luciana.
As escolas e os espaços públicos poderiam ser
lugares de interação, assim como, por exemplo, os
eventos culturais, que poderiam acontecer em lugares
diferentes, fora da região central, fazendo com que as
pessoas interessadas se deslocassem pela cidade. Para
Luciana, o ideal da vida urbana seria a possibilidade
de “se viver o espaço do bairro, esse espaço de convivência diária, que você conhece, mas que também
houvesse estímulo para ir a lugares diferentes, que tudo
não acontecesse no mesmo lugar. O Poder Público tem
a função de fazer com que os grupos se encontrem”.
A segregação da população no espaço urbano
fica ainda mais evidente quando se trata da favela. Hoje
existem projetos para se levar infraestrutura para as
favelas. Mas, de acordo com Luciana, apesar de esse
ser um aspecto importante, não é suficiente. “O nome
favela muitas vezes não é só uma descrição do espaço
físico, é descrição de um grupo social e traz um estigma
muito forte, o de ser favelado. Por isso é preciso haver
um programa que vá além da urbanização e que integre
os moradores na cidade”.
Algumas favelas estão em áreas com vizinhança
de alto poder aquisitivo, e as comunidades não conversam entre si. Luciana explica que, “para que se integrem socialmente, a urbanização é importante, torna
o lugar mais acessível, mais agradável, mas também
tem que haver programas de melhoria de renda, escola
de boa qualidade, políticas para se tentar diminuir a
desigualdade”.
A criminalidade é outro fator de segregação, já
que “o medo limita muito a exploração da cidade e, na
medida em que não há convivência, os estereótipos são
reforçados de ambos os lados”, salienta Luciana.
Ela acredita que há como controlar a criminalidade, desde que haja políticas efetivas. “O homicídio,
por exemplo, está muito concentrado entre homens jovens de bairros mais pobres, muitas vezes relacionado
ao tráfico de drogas. São eles que estão morrendo e
matando. A presença maior do Estado e a urbanização
são formas de tornar o espaço mais público e menos
privatizado pelo tráfico”, conclui.
39
Urbanização e o aspecto social
O problema da exclusão social no espaço
urbano não é novo. Já está presente na origem da
cidade moderna, quando a industrialização cria oportunidades de trabalho, e um grande contingente migra
do campo para a cidade. Desde então, a aglomeração
de pessoas anônimas, o desemprego, a criminalidade
fazem com que as elites dirigentes olhem a população
das cidades como uma fonte de desordem social e
política a ser controlada.
No século XIX, o padrão de intervenção urbanística se dá através dos chamados planos de melhoramentos, embelezamento e expansão. A cidade era
vista como expressão do atraso brasileiro diante das
metrópoles internacionais, e o objetivo era criar uma
nova imagem em conformidade com modelos estéticos europeus. Para tanto, a modernização devia ser
material e simbólica com a exclusão de tudo aquilo
que negasse a modernidade.
Foi nessa época que muitas capitais brasileiras
como Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, Salvador e
Porto Alegre foram remodeladas, e Belo Horizonte
construída, de acordo com os princípios do urbanismo
moderno.
O Rio de Janeiro, que havia passado de corte
a capital da República, é o exemplo mais significativo.
Era preciso modernizar a cidade colonial e, para isso,
empreendeu-se uma ampla reforma urbana e sanitária.
Os antigos cortiços do centro da cidade foram postos
abaixo, e seus moradores, expulsos dessa área. Uns
tomaram o caminho dos subúrbios, ao longo da linha
férrea. Outros subiram as encostas dos morros, onde
construíram moradias precárias. O Morro da Favela,
um dos mais populosos na época, acabou dando nome
a todos os morros habitados pelos pobres.
A cidade havia se tornado possível instrumento do progresso moral e material da sociedade, sendo
necessário, para tanto, reorganizar o seu território e
regular as práticas sociais. Belo Horizonte é criada
para atender a esses propósitos. O projetista Araão
Reis, adepto do positivismo, estruturou sua proposta
em sintonia com os avanços da ciência e da técnica de
seu tempo. No dia da inauguração, 12 de dezembro de
1897, uma nota do jornal Capital revela o desejo de
alinhamento com os preceitos da modernidade: “Belo
Horizonte surge no colo do quase deslumbramento
de magia. É a chama que, enfim, se nos oferece. É a
capital digna de Minas Republicana, escrevendo no
seu escudo a palavra progredir.”
O professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal
do Rio de Janeiro Luiz César Queiroz Ribeiro, no texto
“Transformação geofísica e explosão urbana”, capítulo
do livro Brasil: um século de transformações, explica
que, depois disso, nos anos 1930, o populismo do
Estado Novo leva a uma política de tolerância da ilegalidade na ocupação do solo, e o acesso aos serviços
urbanos é usado como moeda de troca no mercado
político. Nos anos 1950, a formulação da questão urbana desloca-se para o eixo econômico do nacionaldesenvolvimentismo. De acordo com ele, somente nas
últimas décadas do século XX, os problemas urbanos
foram incorporados à questão social.
Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte (APCBH)
Praça Raul Soares,
em Belo Horizonte,
na década de 40
40
O papel do planejamento urbano
É comum ouvirmos dizer que as cidades brasileiras crescem de forma desordenada, mas, de
acordo com Jupira, que é doutora em Planejamento
Urbano pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), a urbanização brasileira tem uma lógica, a da
desigualdade, necessária ao modelo escolhido pelas
elites. “O papel do planejamento é subverter essa lógica. Até agora, o crescimento das cidades aconteceu
privatizando todos os ganhos e socializando todos os
ônus desse processo de urbanização”.
Esse quadro tem mudado, pelo menos no papel. De acordo com Jupira, o ideário da reforma urbana e princípio básico do Estatuto da Cidade é, por
um lado, que o Estado capte a valorização que gera
e invista na promoção de um outro tipo de cidade e,
por outro, que tenha um papel mais decisivo na regulação da expansão urbana, na produção do espaço
da cidade. Outra diretriz da reforma urbana é a implementação de uma gestão democrática, já que temos
uma história de gestão realizada pelas elites.
No entanto, para a professora, “isso é algo
que estamos aprendendo. Há problemas que estão
nas raízes da nossa própria cultura política. É muito
comum vermos lideranças populares que reproduzem
a cultura patrimonialista e clientelista. O caminho é
inverter essa lógica, mas isso não se faz da noite para
o dia. Há um conflito de interesses muito grande”.
Jupira conta que, de 2006 em diante, houve
uma corrida aos planos diretores em função da obrigatoriedade estabelecida pelo Estatuto da Cidade para
alguns municípios. De acordo com ela, em muitos lugares, esses planos foram feitos por equipes de fora
da cidade, com pouca participação das equipes locais.
“O resultado são muitos planos semelhantes e sem
análise da realidade local que imprima uma especificidade nos instrumentos. Um plano diretor que não
é feito de forma participativa pode ser considerado
nulo, sem efeito”.
Um outro erro apontado pela professora é o
de acreditar que, feito o plano diretor, o planejamento
está pronto. “O planejamento é uma atividade meio,
não é uma atividade fim. O plano diretor é um dos
instrumentos do planejamento urbano, que é um processo permanente de compreensão da cidade e de
discussão das transformações pelas quais a cidade
passa. O plano em si é um objeto de luta permanente,
na medida em que é o lugar da exposição dos conflitos
de interesses dentro da cidade”.
A cidade não é simples amontoado de pessoas, ruas e edificações, é o palco no qual se encena a
vida social, tomam-se decisões políticas, elabora-se
e se representa a cultura. Enfim, a cidade é o lugar
que as pessoas escolhem voluntária ou compulsoriamente para habitar, trabalhar, viver. É preciso pensar a
cidade tanto em termos de sua infraestrutura quanto
das questões sociais. É preciso pensar o que se quer
para o futuro: o agravamento da segregação social
e a continuidade da precariedade para a maior parte
da população ou a inclusão de todos nos benefícios
da vida urbana.
Alex Lanza
Mesmo local,
em 2007
41
Hora de repensar a questão
metropolitana
O processo de metropolização derruba
barreiras territoriais e intensifica as trocas entre
os municípios. Muitos dos cidadãos metropolitanos deslocam-se entre municípios para trabalhar,
estudar, se divertir, buscar algum tipo de serviço
ou produto. Por isso, a gestão dessas regiões
precisa ser compartilhada, especialmente, no
que diz respeito às funções públicas de interesse comum, ou seja, aquelas que não podem ser
realizadas por um município isoladamente ou
que causem impacto nos outros municípios da
região metropolitana, como saúde, habitação,
transporte e sistema viário intermunicipal, defesa civil, saneamento básico, limpeza urbana e
meio ambiente.
A intensificação da urbanização e o crescimento das regiões periféricas das metrópoles
trouxeram como consequências a fragmentação
da malha urbana e o aumento da precariedade
das periferias metropolitanas. Esse processo,
segundo a professora da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG) Jupira Gomes de Mendonça, tem levado autoridades de todo o país a um esforço
de repensar a questão metropolitana.
Nesse sentido, ela diz que Minas Gerais saiu um pouco na frente quando, em 2004,
aprovou a Emenda Constitucional nº 65, que
redefiniu a estrutura de gestão metropolitana reequilibrando forças. A professora explica
que, quando as regiões metropolitanas foram
criadas institucionalmente no Brasil pela Lei
Complementar nº 14 de 1973, a estrutura de
governança era centralizada e monopolizada
pelo governo do Estado. “No Brasil, a formação
das regiões metropolitanas começa na década
de 50 e se efetiva na década de 60, mas sua
institucionalização vem no início da década de
70, com a criação de uma estrutura de gestão
metropolitana que, naquele momento, refletia a
própria estrutura institucional ditatorial do país”,
esclarece Jupira.
A abertura política e o processo de democratização do país no final da década de 1980
resultaram num movimento contrário: o da municipalização a todo custo ou o que alguns estudiosos chamaram de neolocalismo. A Constituição
Federal de 1988 delegou aos Estados a instituição das regiões metropolitanas. A Constituição
mineira, por sua vez, criou um modelo de gestão
centrado nos municípios, o que não se mostrou
muito eficaz. “O município foi alçado à condição
de ente federativo, e a política urbana foi completamente municipalizada. A questão metropolitana praticamente desaparece da Constituição
Federal. Durante toda a década de 90, as experiências de gestão metropolitana são absolutamente horizontalizadas”, relata Jupira.
A professora explica que isso aconteceu
no momento de um certo refluxo do papel do
Estado, relacionado ao movimento neoliberal. “A
estrutura horizontalizada de gestão metropolitana coincidia com estratégias de competição
entre os municípios. No lugar de gestão compartilhada, via-se o contrário, a guerra fiscal. Se
antes o planejamento metropolitano era autoritário, passamos a um momento de esgarçamento, de uma completa crise.”
Equilíbrio entre Estados e municípios
Nos últimos anos, a questão da governança metropolitana volta a ter um certo equilíbrio entre Estados e municípios. Para Jupira,
é importante respeitar a autonomia dos municípios, mas os governos estaduais têm papel
importante na articulação e no estabelecimento
de um planejamento que seja referência para as
políticas municipais, por se situar numa esfera
hierárquica acima e por ter uma capacidade fi-
42
nanceira maior. “Têm sido feitos alguns esforços no sentido de se repensar essa estrutura. O
Governo de Minas Gerais, por exemplo, acabou
redefinindo a sua estrutura, criando uma Secretaria de Estado de Desenvolvimento Regional e
Política Urbana (Sedru), que tem uma Subsecretaria de Desenvolvimento Metropolitano. A
própria sociedade civil se rearticulou em torno
dessa questão.”
A Sedru é responsável pela gerência do Projeto
Estruturador da Região Metropolitana de Belo Horizonte
(RMBH), cujo objetivo é a gestão integrada. Outras instituições como a Associação dos Municípios da Região
Metropolitana de Belo Horizonte (Granbel), criada na década de 1970, também têm como finalidade a integração
dos municípios e a interlocução destes com os governos
estadual e federal, com o Legislativo, com órgãos como o
Ministério Público e com a sociedade civil organizada.
Rogério Avelar, prefeito de Lagoa Santa e atual
presidente da Granbel, diz que “a missão da associação
é apoiar as administrações municipais, qualificando gestores e servidores públicos, além de buscar soluções
consensuais para os diversos problemas, contribuindo
para diminuir a desigualdade social e para melhorar a
qualidade de vida dos moradores desta importante região
do nosso Estado”.
Rogério, que assumiu a presidência da Granbel
no início deste ano, explica que o foco desta gestão é o
entendimento entre os municípios da RMBH para solucionar conflitos e problemas comuns. “Estamos priorizando a criação dos consórcios municipais para equacionar
problemas relacionados ao meio ambiente, saúde pública,
educação, mobilidade urbana, gestão de resíduos sólidos,
entre outros.”
Gestão integrada
De acordo com informações do Conselho Regional
de Engenharia, Arquitetura e Agronomia de Minas Gerais
(Crea-MG), em 2006, as Leis Complementares Estaduais
nº 88 e nº 89 regulamentam a Emenda Constitucional nº
65, de 2004, e estabelecem um novo marco legal para
gestão metropolitana em Minas Gerais.
Essa legislação prevê a seguinte estrutura: uma
Assembleia Metropolitana, órgão de decisão superior e
de representação do Estado e dos municípios; um Conselho Deliberativo de Desenvolvimento Metropolitano,
que tem entre suas atribuições a aprovação do Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado; e uma Agência de
Desenvolvimento Metropolitano, que elabora, propõe e
implementa estudos técnicos, projetos, normas e planos
relativos à região metropolitana, bem como dá suporte
aos municípios da região.
A legislação também criou instrumentos de planejamento metropolitano: o Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado, que traça diretrizes relativas às funções
públicas de interesse comum; e o Fundo de Desenvolvimento Metropolitano, cuja finalidade é financiar planos e
projetos da região metropolitana.
O presidente da Granbel considera adequado o
atual modelo de governança metropolitana em Minas
Gerais. “A criação da Assembleia e da Agência Metropolitana representam um marco para uma integração
efetiva dos municípios, estabelecendo mecanismos de
gestão integrada e de planejamento estratégico. Neste
contexto, a Granbel contribui para levantar as demandas
municipais dentro de uma visão microrregional e metropolitana, criando fóruns de discussão qualificada e buscando
soluções conjuntas para os problemas comuns”, conclui
Rogério.
Regiões
metropolitanas
de Minas Gerais
A Região Metropolitana
de Belo Horizonte (RMBH) foi
instituída pela Lei Complementar
nº 14 de 1973, que também estabeleceu as regiões metropolitanas de São Paulo, Salvador, Porto
Alegre, Recife, Curitiba, Fortaleza
e Belém. A do Rio de Janeiro viria
a ser criada pela Lei Complementar nº 20, de 1974, após a fusão
dos Estados do Rio de Janeiro e
da Guanabara.
Na época, 14 municípios
compunham a RMBH: Belo Horizonte, Betim, Caeté, Contagem,
Ibirité, Lagoa Santa, Nova Lima,
Pedro Leopoldo, Raposos, Ribeirão das Neves, Rio Acima, Sabará, Santa Luzia e Vespasiano.
Hoje, a RMBH tem uma
população de aproximadamente
5 milhões de pessoas distribuídas
em 34 municípios. Além dos já citados, formam a Grande BH: Baldim, Brumadinho, Capim Branco,
Confins, Esmeraldas, Florestal,
Igarapé, Itaguara, Itatiaiuçu,
Jaboticatubas, Juatuba, Mário
Campos, Mateus Leme, Matozinhos, Nova União, Rio Manso,
São Joaquim de Bicas, São José
da Lapa, Sarzedo e Taquaraçu de
Minas.
Outros municípios do entorno afetados pelo processo de
metropolização formam o chamado colar metropolitano: Barão de
Cocais, Belo Vale, Bonfim, Fortuna de Minas, Funilândia, Inhaúma,
Itabirito, Itaúna, Moeda, Pará de
Minas, Prudente de Morais, Santa Bárbara, São José da Varginha
e Sete Lagoas. A Constituição
do Estado determina que eles
sejam incluídos no planejamento,
na organização e na execução de
funções públicas de interesse comum.
A Região Metropolitana
do Vale do Aço (RMVA), instituída pela Lei Complementar nº 90,
de 2006, é composta por Coronel
Fabriciano, Ipatinga, Santana do
Paraíso e Timóteo.
43
ACM/BHTrans
Paraciclo e bicicletário são opções para integrar a bicicleta a outro tipo de transporte
A cidade para as
pessoas
Por Eduardo Curi
Qual a cidade que queremos? Queremos caminhar nas calçadas, sem nos preocupar com
buracos e degraus à nossa frente; pegar uma bicicleta e pedalar com segurança em uma ciclovia
até a estação de ônibus ou metrô mais próxima, com um local seguro para guardá-la, e ir de transporte coletivo, que passará por uma via exclusiva, sem concorrência com o resto do trânsito, até ao
trabalho; ou queremos nos locomover em carros e motos, entupindo as vias com veículos que mal
conseguem andar por falta de espaço, poluindo o ar, aumentando a poluição sonora e degradando
o meio ambiente?
São dois cenários possíveis. O primeiro requer uma mudança de cultura. O segundo é real e
está nas ruas das grandes cidades brasileiras e de várias outras ao redor do mundo. É comum surgirem manchetes nos noticiários sobre cidades com mais de 200 km de engarrafamentos nas ruas.
Para especialistas na área, são várias as causas desse cenário, entre elas a qualidade do transporte
coletivo, o desrespeito às leis de trânsito, o estado de conservação das calçadas, a acessibilidade
e as alternativas de transporte que a cidade oferece.
44
“Existe um conceito chamado mobilidade urbana sustentável, que está sendo adotado
para se pensar os deslocamentos na cidade”,
ressalta o gerente de Coordenação da Mobilidade Urbana da Empresa de Transportes e
Trânsito de Belo Horizonte, BHTrans, Rogério
Carvalho. Esse conceito tem como objetivo tirar o foco dos carros no planejamento urbano,
como era feito anteriormente, e passá-lo para
as pessoas. “O deslocamento primordial das
pessoas é o a pé”, afirma Rogério Carvalho,
responsável pela gestão do trânsito na capital.
Ele explica que, tendo-se isso em mente, é necessário que se desenvolvam alternativas de
transporte que permitam às pessoas usarem
meios não poluentes de transporte.
A subsecretária de Desenvolvimento Metropolitano da Secretaria do Estado de
Desenvolvimento Regional e Política Urbana,
Maria Madalena Franco Garcia, reforça que
mobilidade urbana sustentável é ter uma série
de modos de transporte que sejam ambientalmente limpos, que possam conviver no mesmo
espaço urbano e que sejam integrados de todas as formas.
O ponto de partida para que isso
ocorra é a priorização do transporte a pé. “O
deslocamento a pé nunca foi considerado um
modo de transporte, mas é o modo primordial
da gente, a gente nasceu para andar”, afirma
Rogério Carvalho. Maria Madalena complementa a fala de Rogério ao afirmar que “as
nossas cidades são, cada dia, mais voltadas
para o automóvel, para o privado, cada vez
menos para o pedestre, cada vez menos para
o coletivo”.
Falta acessibilidade
No entanto, caminhar pelas ruas com
segurança ainda é uma tarefa árdua. Degraus
nas calçadas, obstáculos à frente, veículos estacionados sobre o passeio, mesas de bares
impedindo as passagens, motoristas ignorando pedestres são algumas das dificuldades
que as pessoas encontram todos os dias ao
caminhar pelas ruas. Além disso, a falta de
acessibilidade impede que pessoas com deficiência ou dificuldade de locomoção usufruam
da cidade como um todo.
Não é por falta de leis que isso ocorre. “Existe uma legislação tão extensa sobre
acessibilidade que já era para tudo ser acessível”, afirma a promotora de Justiça de Defesa das Pessoas com Deficiência e Idosos,
Maria Inês Rodrigues de Souza. Segundo ela,
práticas que visam à acessibilidade, mas que
parecem ter a estética como principal preocupação podem causar vários problemas, como
a padronização das calçadas que está sendo
feita na área central de Belo Horizonte com
pedras portuguesas.
Laudo da Promotoria de Justiça de
Defesa das Pessoas com Deficiência e Idosos
aponta que as calçadas padronizadas na área
central de Belo Horizonte estão em desacordo com as normas definidas pela Associação
Brasileira de Normas Técnicas, pois as pedras
portuguesas tornam a superfície irregular; podem se soltar, abrindo buracos nas calçadas;
formam padrões visuais que causam sensação
de profundidade, dificultando o caminhar de
pessoas com baixa visão; são escorregadias e
causam trepidações em cadeiras de rodas.
A BHTrans, por meio de sua assessoria
de imprensa, informou que a norma da ABNT
que define parâmetros de acessibilidade urbana é aplicada aos projetos das calçadas padronizadas e que a implantação do mosaico
português, desde que corretamente executada, pode ter durabilidade extrema. Segundo a
empresa, deve-se considerar que a utilização
das calçadas por veículos compromete qualquer revestimento, resultando no desgaste,
deslocamento e desprendimento das pedras.
Ressalta ainda que as próprias condições de
execução envolvendo pessoal não qualificado,
deficiente preparação do solo, pressão dos
prazos e valores associados à execução das
empreitadas contribuem para a ocorrência dos
problemas.
No que se refere aos eventuais contrastes que podem confundir quem tem baixa
visão, a BHTrans ressalta que houve especial
cuidado na definição de padrões que evitem
a falsa sensação de profundidade, tendo sido
realizados testes em calçadas já implantadas
envolvendo usuários diversos, inclusive, pessoas com baixa visão, que possibilitaram a
revisão dos padrões propostos.
A empresa completa, afirmando que
não existe nenhuma referência legal que contraindique a utilização do material. Para ela,
o que ocorre é que o calçamento do tipo português envolve uma técnica apurada que, se
utilizada adequadamente, garante condições
de conforto e segurança nos deslocamentos,
preservando, ainda, as características estéticas.
45
Preferência pelo coletivo
Para o gerente de Coordenação da Mobilidade Urbana da Empresa de
Transportes e Trânsito de Belo Horizonte, BHTrans, Rogério Carvalho, a mobilidade urbana sustentável não significa demonizar o carro como a fonte de
todos os problemas da cidade, mas usar, racionalmente, os meios de transporte
disponíveis. Deslocamentos cotidianos, como da residência para o trabalho,
devem ser feitos, preferencialmente, em meios coletivos de transporte. Com
isso, há redução do número de veículos em circulação – muitas vezes, carros
conduzindo apenas uma pessoa –, poluição e necessidade de espaço nas ruas.
Mas, ao se sair à noite para ir ao cinema e depois jantar, por exemplo, por que
não se usar o carro, já que há pouco trânsito e é mais fácil estacionar?
O problema está no uso do carro para todos os deslocamentos, hábito
adquirido, às vezes, por falta de opção, como também por desconhecimento
do sistema de transporte disponível e, ainda, por comodismo. “Pouca gente
deixa de usar o automóvel porque vai encontrar dificuldade de estacionar ou
coisa que o valha”, afirma Rogério Carvalho.
O transporte pode ser individual, mas o problema se torna coletivo,
lembra Rogério Carvalho. Gera-se mais poluição, desgaste nas vias e reduz-se
o espaço disponível, prejudicando o transporte público, usado pela maioria da
população. Com esse desgaste causado por veículos privados, a administração
pública acaba por subsidiar o uso do automóvel ao ter que recapear ruas, por
exemplo, enquanto os passeios, destinados aos pedestres (leia-se a maioria da
população), são de responsabilidade dos proprietários do imóvel, pelo menos
em Belo Horizonte.
Resolver essa questão não é uma tarefa simples. “As pessoas só vão
deixar o veículo privado em casa quando elas se sentirem seguras no sistema
de transporte”, constata Maria Madalena. E a segurança não se resume apenas
ao veículo, mas também passa pela confiabilidade no sistema de segurança
pública.
A promotora de Justiça Maria Inês acentua que é preciso lembrar que
um bom sistema de transporte deve ser acessível às pessoas com deficiência e
mobilidade reduzida. A acessibilidade no transporte coletivo ainda não é total,
mas já é melhor do que há alguns anos, com a adoção de ônibus adaptados
e obrigação legal de realização de, no mínimo, 30% das viagens feitas com
veículos acessíveis.
Acessibilidade, no entanto, não se dá apenas com a implantação de
elevadores nos veículos. Em Belo Horizonte, por exemplo, com o novo leiaute previsto, os ônibus terão os números identificadores das linhas reduzidos.
“Depois da redução dos números, hoje não se enxerga mais o ônibus, você não
precisa ter uma baixa de visão acentuada; com o mínimo de astigmatismo, você
não está mais enxergando o número do ônibus, e até agora isso é uma novidade
para a gente, as reclamações são imensas e nós não temos uma justificativa, se
é que isso é justificável. O que a gente vê é que todos os ônibus reduziram os
números e não se sabe por quê”, adverte a promotora de Justiça Maria Inês.
A BHTrans justifica as alterações informando que a Prefeitura de Belo
Horizonte definiu nova padronização visual da frota, que será implantada até
2010. Segundo a empresa, essa padronização atende na íntegra a legislação em
vigor que trata de acessibilidade em veículos urbanos para o transporte coletivo
de passageiros, além de dar mais flexibilidade ao permitir que o mesmo ônibus
opere em diferentes linhas, nos vários horários do dia. Além disso, todos os
ônibus passarão a ter dois quadrados coloridos na parte superior do parabrisa,
indicando os corredores por onde a linha circula, o que pode auxiliar os usuários
com baixa visão ou analfabetos na identificação de sua linha. A BHTrans informa
ainda que está monitorando os resultados com os novos letreiros e, caso seja
verificado que eles representam mais prejuízo do que benefício para os usuários, haverá nova especificação dos dispositivos atualmente previstos.
46
BRT em Uberlândia:
ônibus com lógica
de metrô
Fotos: Alex Lanza
Trânsito caótico,
pedestres fora da faixa,
calçadas quebradas
são problemas
comuns em BH
Soluções de transporte
O automóvel é considerado pela sociedade
símbolo de status e ascensão social, além de estar ligado à independência pessoal. O gerente da BHTrans
comenta que o Brasil adotou um modelo de transporte sobre rodas em detrimento de modos mais limpos
e de maior capacidade, como trens e metrô. Ainda,
ressalta Rogério, a exposição à publicidade do automóvel faz com que ele se torne o objeto de desejo de
todas as pessoas. Um dos maiores ícones brasileiros da preferência pelo transporte por automóvel é
Brasília, com suas vias largas, construções distantes
umas das outras e poucos espaços adequados para
o pedestre caminhar.
O gerente da BHTrans relata que, hoje em dia,
tenta-se resolver esses problemas, implantando-se
projetos que priorizam meios mais limpos e coletivos
de transporte, colocando os pedestres em primeiro
plano. Bogotá, na Colômbia, é considerada exemplo
na América do Sul na aplicação desses conceitos. “Lá,
foi implantado o Transmilenium, que é a adoção de
vias exclusivas para o transporte coletivo com pagamento da tarifa antes do embarque, feito no nível do
ônibus, agilizando a operação do serviço e diminuindo
o tempo das viagens”, diz.
Esse sistema é conhecido como BRT, sigla
para Bus Rapid Transit, algo como “trânsito rápido
por ônibus”. No Brasil, também há ações nesse sentido. O exemplo mais conhecido está em Curitiba, no
Paraná, cidade pioneira na implantação do sistema.
Em Minas Gerais, Uberlândia adota sistema parecido,
e também há a intenção de se implantar algo semelhante em Belo Horizonte.
A segregação de espaço nas vias é uma das
formas de restringir o uso do automóvel, mas não é
a única. Para a BHTrans, pode-se adotar o rodízio de
placas, que tem efeito imediato, mas que, se não for
feito aliado a alguma outra ação, terá seus resultados
anulados em alguns anos. Outra solução é o pedágio
47
urbano, ou taxa de congestionamento, adotado
em Londres e Estocolmo, por exemplo. Essa taxa
é o pagamento de uma tarifa para que se possa
andar de carro em determinadas áreas da cidade.
Em Londres, onde o sistema já é adotado desde
o início desta década, a receita gerada é usada
para melhorar o sistema de transporte. Mais uma
alternativa é a restrição de circulação de veículos
de carga nas zonas mais congestionadas da cidade, em determinados horários. Belo Horizonte já
adota essa restrição na área central.
Entre as alternativas de transporte coletivo que podem ser adotadas estão soluções das
mais variadas. O metrô, apesar de alta capacidade para acomodar passageiros (cerca de 80
mil por hora) e confiabilidade, não é uma solução
tão adequada quanto parece devido ao seu custo,
cerca de R$ 300 milhões por quilômetro construído. Outra solução é o veículo leve sobre trilhos (VLT), uma espécie de bonde moderno, que
transporta cerca de 20 mil passageiros por hora
e custa cerca de R$ 30 milhões por quilômetro.
Entretanto, segundo Rogério Carvalho, esse veículo está mais ligado a projetos de requalificação
urbana do que ao transporte em si. Também cita
como exemplo a implantação da última linha de
VLT em Paris, que, do seu valor total, teve dois
terços destinados a projetos de reurbanização. O
BRT, implantado em Bogotá, é uma solução com
tecnologia e concepções brasileiras e custa de R$
5 a R$ 10 milhões por quilômetro construído, com
capacidade de 40 mil passageiros por hora.
Uso misto das cidades
Segundo Rogério Carvalho, “o ideal seria
o não transporte”. Ele explica que o transporte
é consequência do planejamento urbano e que,
portanto, as nossas necessidades de deslocamento variam de acordo com a localização dos
serviços de que precisamos em vários pontos da
cidade. Se as cidades têm um uso flexível do solo,
é possível criar centros regionais, onde as pessoas trabalhem, façam compras e estudem mais
perto de casa, reduzindo a necessidade de transporte. “Os primeiros planos diretores surgiram na
década de 70, 80 e foram cidades construídas de
forma bastante segmentada, onde você tem uma
área hospitalar, uma área de serviços e comércio,
uma área industrial e uma residencial, e isso gera
necessariamente o deslocamento das pessoas”,
diz Maria Madalena, da Secretaria de Desenvolvimento Urbano.
Segundo a subsecretária, será elaborado
o Plano Diretor Metropolitano, “que tem como diretriz a criação de novas centralidades na região
metropolitana para evitar a grande concentração
que a gente tem hoje na cidade-polo que é Belo
Horizonte, principalmente na sua área central”,
explica. “A partir do momento em que você oferece uma boa infraestrutura de transporte para
outras regiões da cidade, certamente haverá o
crescimento dessas áreas com instalação de universidades, serviços e comércio, e as pessoas
passam a ocupar essas áreas de outra forma,
tendo-se em vista a facilidade de deslocamento”,
completa Maria Madalena.
Transporte como indutor do crescimento
“Mobilidade também induz o crescimento
econômico”, observa a subsecretária. À medida que se facilita o deslocamento, as pessoas
tendem a circular mais e, consequentemente, a
movimentar a economia. Soma-se a isso o fato
de que regiões com sistemas de transporte desenvolvidos são mais valorizadas.
Um exemplo em prática é a Linha Verde.
Com ela, está havendo um boom de crescimento
no Vetor Norte de Belo Horizonte. Para a Secretaria de Desenvolvimento Urbano, a maior
preocupação é a forma como se dá a ocupação
do território. Segundo Maria Madalena, é preciso
pensar em uma forma de ocupação que seja sustentável, que promova o desenvolvimento econômico e que preserve o meio ambiente. Devido às
características da região, a ocupação tem que
se dar de forma controlada e criteriosa para ser
sustentável.
48
Uma experiência que está se iniciando é
a construção do Centro Administrativo do governo estadual, que vai mudar a matriz de origem
e destino na região metropolitana. Hoje ocorre
um grande deslocamento da população do Vetor Norte para a área central no pico da manhã
e, no sentido inverso, no pico da tarde. Maria
Madalena explica que o novo centro vai mudar
essa matriz, reequilibrando o uso do sistema de
transporte, pois, ao invés de haver ônibus vazios
de manhã voltando para aquela região, esses
mesmos ônibus levarão pessoas para trabalhar
no Centro Administrativo. Maria Madalena cita
ainda o polo eletrônico e o aeroporto industrial,
que estão sendo implantados, como fatores que
desenvolverão o Vetor Norte de BH. “Está havendo um investimento muito grande naquela região
e isso é uma forma de a gente descentralizar a
cidade”, explica.
Os carros dessas
pessoas precisam
de todo este espaço
na via se estiverem
transportando
apenas o motorista...
Fotos: divulgação BHTrans
... sendo necessário
apenas um ônibus
para transportar o
mesmo número
de pessoas
confortavelmente
49
Arte ou
vandalismo?
Por Eduardo Curi
Por Eduardo Curi
Fotos: Alex Lanza
Pichação e grafite caminham juntos em
todos os sentidos. Grafite é o termo usado para
definir as inscrições e os desenhos feitos em
paredes e muros, desde a época do Império Romano. Pichação designa um jeito brasileiro de
grafitar, em que os autores (também chamados
de “pichadores”) assinam seus codinomes como
uma forma de marcar território ou chamar atenção para si.
A prática de conspurcar (nome técnico
para o ato de sujar ou manchar algo) edifícios
ou monumentos urbanos é crime definido pela
Lei de Crimes Ambientais (9.605/98) e implica
pena de detenção de três meses a um ano, além
do pagamento de multa por parte do autor. O
Ministério Público de Minas Gerais, no combate
a essa prática, atua por meio da Promotoria de
Justiça de Habitação e Urbanismo, responsável
pela transação penal dos autores – a maioria menor de 21 anos – desse tipo de prática, de forma
a buscar a reparação do dano. Segundo o promotor de Justiça Cristovam Joaquim Fernandes
Ramos Filho, eles podem ser denunciados até
50
mesmo por formação de quadrilha, já que se juntam
para a prática de crime.
Uma forma de coibir a ação dos pichadores,
segundo o promotor de Justiça, é evitar dar publicidade aos atos praticados por eles. “Você pega uma
foto e põe no jornal, eles são promovidos a ‘coronel’”, afirma. Outra forma de conseguirem notoriedade entre eles é a dificuldade do objeto pichado.
Para Cristovam, as pichações sujam a cidade, tirando a beleza das formas urbanas e aumentando a poluição visual.
Há outros posicionamentos considerando
que nem toda pichação tem o objetivo de sujar a
paisagem. O grafite, pintura artística de espaços
públicos, é derivado das pichações, já que utiliza elementos destas em suas composições. Podem variar
de uma simples assinatura a até mesmo uma obra
complexa, com variadas texturas e nuanças.
O grafite e sua história
O DJ Roger Dee, codinome usado por Roger Cândido de Oliveira, explica as diferenças entre
pichação e grafite e conta um pouco da história do
grafite em Belo Horizonte.
A pichação, segundo Roger foi a primeira forma de grafite, ou seja, traços conhecidos como tags
(assinatura). Ele conta que inicialmente as pessoas
escreviam os nomes e essa pichação foi evoluindo
para uma forma artística. “A pichação seria a pintura
rupestre do grafite artístico que existe hoje, mas eles
são ligados”, diz.
Para DJ Roger, a pichação se torna grafite
quando o autor se volta para o contexto artístico, podendo coexistirem no universo do grafite trabalhos
realizados legalmente e ilegalmente. Ele defende a
forma legal, o grafite executado mediante autorizações.
Roger Cândido comenta que desde criança
começou a desenhar e a dançar break, para ele a
primeira forma da cultura hip hop que veio para o
Brasil. “A cultura hip hop são quatro elementos o BBoy / B-Girl, grafite, MC, que é o cantor e o DJ que
faz as músicas”. Ele lembra que na época sempre via
os desenhos nas jaquetas dos grupos que dançavam
na rua e que só depois, lendo revistas, descobriu que
era grafite e que, segundo ele, fazia parte da cultura.
Depois, afirma Roger, surgiu um filme que se chama
“Beat Street”. “Foi a primeira vez que vi um pessoal
grafitando mesmo um trem, o vagão de metrô e pintando os muros. A partir dai entusiasmei em fazer
grafite nos muros. Até então fazíamos grafite em capa
de fita k7, pintava as jaquetas de roupa com nome dos
grupos, mas não arriscávamos a fazer no muro”.
Roger conta que o primeiro grafite da região
de Belo Horizonte foi feito em 85, no bowl (pista de
skate) do Anchieta, “que na verdade não era um grafite e sim um throw up (desenho feito rapidamente),
que é uma das formas da evolução do grafite. Eu e
um colega chamado Ulisses fomos nesse bowl e pin-
tamos tudo, fizemos vários throw ups”. Roger ainda
lembra que a partir daí conheceu outra pessoa que já
fazia pichação. “Ele cresceu de uma forma espantosa
e foi o primeiro realmente a fazer os murais aqui em
BH que é o Ângelo, ele assinava AJ”. Na opinião de
Roger, Ângelo, em Belo Horizonte, revolucionou o grafite, nos anos 80. Ele era o único que “fedia a tinta”
realmente, afirma.
Roger acredita que houve uma grande evolução, especialmente por causa da tecnologia e do
uso do material. “A latinha de spray que usávamos
antigamente era muito dura, a tinta era ruim, não era
legal. Antigamente o dedo da gente ficava duro, cheio
de calos, era difícil. Hoje as latas parecem até que
têm um amortecedor, a tinta já sai mais leve”, diz.
Para ele, o Estado de Minas tem o reconhecimento
internacional por seus grafites. Cita, a propósito, o
encontro do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) realizado em Belo Horizonte, em 2006,
durante o qual participantes de diversas partes do
mundo reconheceram a capital mineira como celeiro
de bons grafiteiros.
Bienal de grafite
A importância da bienal, ocorrida em Belo
Horizonte em 2008, segundo Roger, foi possibilitar
o diálogo não só entre os brasileiros mas também
destes com estrangeiros. “ Não podemos nos iludir
de que o grafite vai ficar só na galeria. O grafite não
tem que sair da rua. A galeria é um outro suporte para
se usar as técnicas de rua. “A bienal foi importante
para ter essa comunicação, movimentar a cidade,
as pessoas entenderem mais sobre o grafite. Mas
os grafiteiros têm que se conscientizar de que não
podem ficar entre quatro paredes. Têm que ficar na
rua, porque senão vai perder o sentido. O sentido do
grafite está na rua, é a arte do povo. O povo tem que
ver,” conclui.
Alex Lanza
A fachada do Grupo Escolar D.
Pedro II, em Belo Horizonte, hoje em
processo de reforma e restauração,
já foi alvo de pichadores
51
Boa prática
O Ministério Público de Minas Gerais, por meio das
Promotorias de Justiça que atuam na defesa da habitação
e urbanismo em todo o estado, promoveu várias ações e
obteve decisões judiciais com o objetivo de proporcionar um
bom funcionamento das cidades para as pessoas.
Destacamos nesta coluna alguns exemplos de atuação nessa área.
Fiscalização de estabelecimentos comerciais
A Promotoria de Justiça da Comarca de São João del-Rei, firmou, em fevereiro deste ano, Termo de Ajustamento de
Conduta (TAC) com o Município, buscando regularizar a concessão de alvarás de
funcionamento aos estabelecimentos comerciais e profissionais daquela cidade,
levando-se em conta o cumprimento do
Código de Posturas municipal, além da
legislação sanitária e de prevenção a incêndio e pânico.
O TAC – assinado pelo promotor
de Justiça Rodrigo Ferreira de Barros, pelo
prefeito, Nivaldo José de Andrade, e pelo
procurador-geral do Município, Paulo Jorge Procópio – obriga a Prefeitura a conceder alvará de localização e funcionamento
apenas aos estabelecimentos que apresentarem laudos de liberação pelo Corpo de
Bombeiros, pelo Órgão de Vigilância Sanitária Municipal e pelo Setor de Engenharia do Município, e que tenham Certidão
Negativa emitida pelo Procon da cidade.
O município ficou obrigado ainda
a fiscalizar, no prazo máximo de doze meses, todos os estabelecimentos comerciais
e profissionais, exigindo deles a apresentação dos laudos e certidões citados, o atendimento às normas do Código de Posturas
municipal e a regularidade no recolhimento
dos tributos. Além disso, o Poder Executivo
comprometeu-se a retirar dos locais públicos os vendedores ambulantes, apreendendo todos os produtos de origem ilícita.
Vale do Sereno terá licenciamento
As Promotorias de Justiça Metropolitana de Habitação e Urbanismo e de
Nova Lima, por meio das promotoras de
Justiça Marta Alves Larcher e Andressa
de Oliveira Lanchotti, firmaram, em fevereiro de 2009, um Termo de Ajustamento
de Conduta (TAC) com as empresas EPO
Engenharia, Planejamento e Obras Ltda.,
EPO Empreendimentos, Participações e
Obras Ltda. e Alberto Carlos de Freitas
Ramos, responsáveis pelo loteamento Vale
do Sereno, localizado em Nova Lima.
Os principais objetivos do TAC são
o licenciamento ambiental corretivo do empreendimento e a implantação de um Plano
52
de Gestão Ambiental (PGA), para garantir
a preservação dos recursos naturais e o
desenvolvimento sustentável daquele bairro.
O TAC, que teve a participação da
Associação dos Moradores e Condomínios
do Vale do Sereno, prevê ainda a obrigação
de os empreendedores apresentarem ao
Instituto Estadual de Florestas (IEF) um estudo de formação de corredores ecológicos,
bem como de incluírem cláusula referente
ao cumprimento do Termo de Ajustamento de Conduta nos contratos de compra e
venda que vierem a ser celebrados, tendo
por objeto imóveis situados no bairro.
Portal Sul: medidas compensatórias
O Ministério Público firmou em abril deste
ano um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC)
com os empreendedores do Portal Sul, estabelecimento comercial que está sendo construído às
margens da BR-356, na divisa de Belo Horizonte
com Nova Lima, para que seja regularizado o licenciamento ambiental feito pela empresa responsável por sua implantação. Como o empreendimento
está na divisa de dois municípios, ele deve ser
obtido em nível estadual e não em nível municipal,
como havia sido feito.
Para isso, eles deverão executar as várias
condicionantes e medidas compensatórias nos
prazos determinados. O não cumprimento das
obrigações assumidas implicará pagamento de
multa diária no valor de R$ 20 mil. Entre as medidas que deverão ser tomadas estão a obtenção
de licenciamento ambiental estadual e a execução
de ligações rodoviárias.
Durante a execução da obra, o empreendedor deverá adotar ações para minimizar o consumo de energia, de água, de materiais naturais e a
produção de entulho assim como para maximizar
a eficiência da construção. O projeto e a construção dos abrigos de resíduos sólidos deverão
ser executados de acordo com as normas técnicas
da Superintendência de Limpeza Urbana de Belo
Horizonte (SLU).
Pacto pela acessibilidade de Bom Despacho
Com o objetivo de garantir acessibilidade
nos espaços públicos ou de uso público da cidade
de Bom Despacho, o Ministério Público Estadual
(MPE) e a prefeitura do município assinaram no último dia 28 de maio um acordo denominado Pacto
pela Acessibilidade de Bom Despacho.
Até o final de 2012, conforme o acordo,
todos os prédios públicos municipais deverão ser
plenamente acessíveis. As obras devem começar
pelo conjunto da praça da Matriz de Bom Despacho; em dois anos, todas as unidades públicas de
saúde sob a responsabilidade do Município deverão se tornar acessíveis; em três anos, as instituições públicas de ensino municipais já deverão
ter suas instalações adaptadas. Além disso, os
espaços urbanos e as edificações que forem construídas a partir da data do Pacto e destinadas ao
uso público deverão obedecer às normas legais
em vigor que estabelecem os requisitos mínimos
de acessibilidade.
Assinaram também o acordo três instituições da sociedade civil: a Associação de Pais e
Amigos dos Excepcionais (Apae), a Associação
dos Deficientes Físicos de Bom Despacho (Adefis)
e a Paróquia Nossa Senhora do Bom Despacho.
Para acompanhar as intervenções, “será organizada, uma comissão composta por servidores
do município e por representantes da sociedade
civil organizada com o objetivo de definir ações,
prioridades e acompanhar a execução do projeto
de acessibilidade no município”, declararam os
representantes do MPE em Bom Despacho, promotores de Justiça Luciano Moreira de Oliveira e
Ana Carolina Gomes.
Ficou acordado ainda que o município encaminhará à Câmara Municipal proposta para o
Plano Plurianual, com o intuito de assegurar recursos necessários às intervenções.
Loteamento irregular I
A Sorte Construções S.A., de Belo Horizonte, firmou Compromisso de Ajustamento de
Conduta com o Ministério Público Estadual (MPE),
comprometendo-se a pagar R$ 232 mil, em doze
meses, por ter iniciado as obras de implantação
de um loteamento em Confins (RMBH), junto aos
municípios de Lagoa Santa, Pedro Leopoldo e Matozinhos, em Área de Proteção Especial, destinando apenas 35% da área para fins institucionais, em
vez de, pelo menos, 50%, conforme determina o
Decreto Estadual n° 20.591/80.
Como se trata de medida compensatória
ambiental, o Compromisso de Ajustamento de
Conduta estabelece que o valor deverá ser utilizado exclusivamente para financiar projeto ambiental de interesse do município de Confins, a
critério do MPE.
O Decreto Estadual n° 20.591/80 declara como área de preservação permanente as
florestas e demais formas de vegetação natural
existentes na região de Pedro Leopoldo, Lagoa
Santa e Matozinhos, e estabelece que “em caso
de parcelamento permitido, as porcentagens das
áreas públicas não poderá ser inferior a 50% da
área de gleba, de acordo com a Lei Federal n°
6.766/79”.
O Compromisso de Ajustamento de Conduta foi assinado pelos promotores de Justiça
Spencer dos Santos Ferreira Junior, da comarca
de Pedro Leopoldo, Marcos Paulo de Souza Miranda, coordenador das Promotorias de Defesa
do Patrimônio Histórico, Artístico, Cultural e Turístico de Minas Gerais (CPPC) e Luciana Imaculada de Paula, coordenadora das Promotorias
das Sub-Bacias dos Rios das Velhas e Paraopeba
(PJSF), tendo sido homologado pela Justiça de
Pedro Leopoldo. O empreendimento já se encontra
regularizado.
53
Loteamento irregular II
Loteamento irregular III
O Ministério Público do Estado de
Minas Gerais, por meio da promotora de
Justiça Andressa de Oliveira Lanchotti,
propôs uma Ação Civil Pública (ACP),
com pedido de liminar, para suspender a
implantação do loteamento denominado
Vila Castela, etapa II, em Nova Lima. A
promotora de Justiça ressaltou a importância da liminar diante do perigo de grave e irreversível dano ao meio ambiente
– direito indisponível e difuso, inclusive
garantido às futuras gerações na Constituição Federal. A representação foi feita
pela Associação Civil Condomínio Residencial Vila Castela, que argumentou que
os responsáveis pela etapa II estão levando a cabo atividade de desmatamento de
trecho da Mata Atlântica, sem possuírem
autorização para tanto, gerando grande e
irreversível dano ambiental. Além disso, o
loteamento estaria sendo implantado em
área de preservação ambiental
O Ministério Público entendeu que
o local em que se pretendia abrir logradouro iria atingir a cobertura vegetal de forma drástica. Observou-se a presença de
curso d’água próximo à rua Grandolfo, o
que seria prejudicial ao abastecimento não
só de Nova Lima, mas de toda a Região
Metropolitana de Belo Horizonte, por ser
Nova Lima considerada o reservatório natural de água de Belo Horizonte e região.
O Ministério Público Estadual propôs ação civil
pública com pedido de tutela antecipada contra o Município de Itaúna e as empresas Florestal Santanense e
Planear Empreendimentos, em setembro de 2008. De
acordo com a ação, as empresas são responsáveis pelo
loteamento Bairro Tropical. A Florestal Santanense era a
proprietária do terreno loteado e assumiu as obrigações
de infraestrutura e urbanização juntamente com a Planear Empreendimentos, que também ficou encarregada da
comercialização dos lotes.
O Município aprovou o loteamento, que fica no
entorno de nascente e de curso d’água, sem exigir licença
ambiental. Além disso, a existência de lotes em área de
preservação permanente inviabiliza a construção de residências no local, prejudicando os compradores.
Liminar - A Justiça concedeu liminar determinando a suspensão imediata dos efeitos do ato administrativo
de aprovação e do registro do loteamento e proibindo que
os cartórios de registro de imóveis procedam a qualquer
registro ou averbação relativos ao empreendimento até o
final do processo. Quanto às empresas, determinou que
não recebam as prestações ou pratiquem nenhum ato referente à implantação do loteamento e, no prazo de 30
dias após a intimação, notifiquem os compradores para
que não construam no local. As empresas terão 90 dias
para apresentar projeto de recuperação da erosão existente na área e 120 dias para executá-lo.
De acordo com a promotora de Justiça Fernanda
Hönigmann Rodrigues, são 54 lotes em área de preservação permanente, parte deles já vendida, o que causa
prejuízo aos compradores, que poderão ter suas obras
embargadas, caso iniciem uma construção ilegal.
Loteamentos clandestinos
A busca por um desenvolvimento sustentável e uma vida digna aos moradores, como
prevê a Constituição, levou o MPE a assinar um
Termo de Ajustamento de Conduta com o município de Ribeirão das Neves, a Companhia de
Saneamento de Minas Gerais (Copasa) e a Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig). O
objetivo foi conter os loteamentos clandestinos
e irregulares que proliferam na cidade e assim
garantir a infraestrutura básica aos seus moradores.
Pelo TAC, o Município não poderá aprovar a implantação de loteamentos ou desmembramentos sem que haja um cronograma prévio
para execução e conclusão de obras básicas de
infraestrutura tais como: equipamentos urbanos
de escoamento e drenagem das águas pluviais;
rede de iluminação pública; rede coletora de es-
54
gotos sanitários; rede de abastecimento de água
potável, incluindo subadutora de alimentação e
rede de distribuição e pavimentação das vias
públicas.
O Município terá, ainda, de exigir dos
empreendedores que pretendem implantar loteamentos a apresentação de projetos de implantação de rede de esgoto sanitário e abastecimento
de água potável dos loteamentos devidamente
aprovados pela Copasa; projetos de iluminação
pública, devidamente aprovados pela Cemig e
licença ambiental para implantação do empreendimento, devidamente emitida após o trâmite
de processo administrativo de licenciamento ambiental perante a Superintendência Regional de
Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável
(Supram), quando necessário e exigível pelo ordenamento jurídico.
Poluição sonora I
Poluição sonora II
A poluição sonora causada pelas
locomotivas da empresa MRS Logística
– concessionária de transporte de carga
na malha ferroviária Sudeste – levou a
Promotoria de Justiça de Conselheiro
Lafaiete a propor a assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC).
O acordo foi firmado por representantes
da empresa e pelo promotor de Justiça
Glauco Peregrino.
Os moradores do bairro Carijós
eram prejudicados com o barulho causado pela sinalização da passagem de
nível (cruzamento entre ferrovia e via pública), situada na Rua Marechal Floriano
Peixoto. Diante de várias reclamações, a
Promotoria de Justiça constatou, através
de uma perícia técnica, que os ruídos das
manobras eram superiores ao permitido
pela legislação.
Pelo TAC, ficou definido que
a MRS Logística implantará um novo
projeto de manobras de composições
e de sinalização na passagem de nível,
adequando o nível de ruídos no momento do trânsito de locomotivas e vagões
pelo local aos parâmetros estabelecidos
pela NBR 10.151 da ABNT. A empresa
também se comprometeu a apresentar
à Prefeitura Municipal um estudo que
apresente soluções para a travessia de
portadores de deficiência física.
O acordo proposto pelo Ministério Público Estadual também prevê o pagamento de uma indenização por danos
morais coletivos no valor de R$50 mil,
que deverão ser repassados à Associação Regional de Proteção Ambiental do
Alto do Paraopeba e Vale do Rio Piranga
(Arpa).
O Ministério Público Estadual (MPE), por
meio do promotor de Justiça em Boa Esperança,
Fernando Muniz Silva, firmou Termos de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Município, alguns
clubes e associações e uma igreja evangélica, com
objetivo de amenizar a poluição sonora na cidade.
Pelo acordo, as associações e os clubes
que pretendem realizar eventos noturnos com frequência ficam obrigados a adotar, gradativamente,
medidas que diminuam a produção de barulho. Em
um prazo de até três anos, deverão contar com
isolamento acústico. Os estabelecimentos precisam obter laudo de vistoria do Corpo de Bombeiros e da Vigilância Sanitária e implementar as medidas apontadas. Sem o documento, não poderão
realizar eventos abertos ao público.
Caso o Município proíba a comercialização
de bebidas em recipientes de vidro, os próprios estabelecimentos serão responsáveis pela fiscalização e cumprimento da norma. O não cumprimento
do TAC implicará multa de R$ 5 mil, acrescida de
50% se duas ou mais obrigações forem violadas.
O Município de Boa Esperança deve cassar todas as autorizações para atividades de propaganda, publicidade e serviços de sonorização,
que serão concedidas apenas em situações excepcionais. Essa mídia também não poderá ser
usada para a publicidade dos atos, programas e
serviços públicos.
Tanto o horário final para o desligamento
do som, quanto o limite máximo de barulho a ser
produzido deverão ser fixados pelo Município, sendo permitidos 60 decibéis no horário diurno, 55 no
vespertino e 50 no noturno.
A igreja com a qual o Ministério Público
Estadual (MPE) também firmou um TAC fica obrigada a respeitar a legislação sobre a produção de
barulho e a implementar todas as medidas que se
fizerem necessárias nesse sentido.
Poluição sonora III
O promotor de Justiça de Leopoldina, Sérgio Soares da Silveira, firmou
compromisso de ajustamento de conduta
com a Danceteria Evolution, localizada
no centro da cidade, em decorrência de
reclamações da população local quanto
ao barulho proveniente da citada casa
notura.
No TAC foi fixado prazo para a
elaboração de laudo de acústica, visando adequar o estabelecimento às normas
ambientais de controle de poluição sonora, respeitando os limites máximos de ruído estipulados pela NBR
10.151 (“Avaliação do Ruído em Áreas Habitadas Visando o Conforto da Comunidade”, da Associação
Brasileira de Normas Técnicas - ABNT).
Para o promotor de Justiça, com a exposição à
poluição sonora, as pessoas podem desenvolver distúrbios do sono, estresse, perda da capacidade auditiva, surdez, dores de cabeça, alergias, distúrbios
digestivos, falta de concentração e aumento dos batimentos cardíacos.
55
Opinião
Poluição luminosa
nas cidades
Um dos efeitos negativos do constante crescimento das cidades, relacionado com
o desenvolvimento da civilização, da tecnologia e com a redistribuição das populações das
zonas rurais para assentamentos urbanos, é a
poluição luminosa, definida por José Roberto
Marques, como a “causada pelo excesso de
luz artificial ou pelo seu uso inadequado (luz
para cima, paralela ao solo ou para além da
área útil), que excede ao uso racional e atinge
áreas que ultrapassam o limite da necessidade
(luz intrusa)” 1.
Embora tal modalidade de poluição
não seja objeto de uma definição específica
na legislação federal brasileira, a exemplo do
que se dá na República Tcheca – que editou o
chamado Decreto de Proteção da Atmosfera,
em vigor desde 1o de junho de 2003, segundo
o qual a poluição luminosa “é toda luz artificial que se propaga além das zonas onde ela
é necessária e notadamente além da linha do
horizonte” 2 – ou no Chile – cuja CONAMA
(Comisión Nacional del Medio Ambiente) definiu “contaminación lumínica” como “el resplandor o brillo producido por la difusión de la
luz artificial, que disminuye la oscuridad de la
Divulgação
noche haciendo que se reduzca y desparezca
progresivamente la luz de las estrellas y demás
astros”3 – a noção de poluição luminosa encontra amparo na nossa Lei de Política Nacional do
Meio Ambiente (Lei n. 6.938/81), verdadeira
pedra de roseta para a solução das questões
jurídico-ambientais.
Em consonância com o inciso II e suas
alíneas, do art. 3º, da Lei n. 6.938/81, a poluição luminosa pode ser definida como a degradação da qualidade ambiental resultante da
emissão de luz, criada por humanos, capaz de,
direta ou indiretamente: (a) prejudicar a saúde,
a segurança e o bem-estar da população; (b)
criar condições adversas às atividades sociais
e econômicas; (c) afetar desfavoravelmente a
biota; (d) afetar as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente; ou, simplesmente,
que se dê pelo (e) lançamento de energia em
desacordo com os padrões ambientais estabelecidos pelos órgãos competentes.
A poluição luminosa está por toda parte
e não é difícil constatarmos que, na maioria das
cidades, parecem ter esvaziado o céu de suas
estrelas, deixando no lugar uma névoa pálida
que, como bem observado em artigo publicado
na National Geographic de novembro de 2008,
lembra a claridade urbana das distopias de ficção científica 4.
De fato, como destaca Eduardo Turiel
do Nascimento, “no ambiente urbano, são várias as fontes de luz. Estas fontes podem ser
a iluminação externa dos prédios residenciais
ou comerciais, as placas luminosas comerciais
e a iluminação pública de praças, monumentos
e vias, entre outras” 5.
Diante dessa profusão de fontes de luz
artificial, “dois terços da humanidade vivem sob
céus poluídos pela luz, sendo que um quinto
não consegue mais ver a Via Láctea” 6.
Não por acaso, a astronomia destacase como uma atividade especialmente prejudicada pela poluição luminosa, sendo também
Leonardo Castro Maia
Promotor de Justiça em Governador Valadares
56
responsável pelos primeiros esforços cívicos para
controlar essa forma de poluição, a exemplo do
que se deu em Flagstaff - Arizona, nos Estados
Unidos, que em 2001 foi declarada a primeira Cidade Internacional Sob Céu Escuro, após meio
século de iniciativas empreendidas para a proteção
do Observatório Lowell, situado nas proximidades
da cidade 7.
Em artigo dedicado ao tema “poluição luminosa”, publicado no número 30 da Revista de
Direito Ambiental, Guilherme José Purvin de Figueiredo noticia a edição da Lei n. 10.850/01 do
Município de Campinas, que criou Área de Proteção Ambiental (APA) naquela cidade, dispondo
sobre o combate à poluição luminosa no entorno do
Observatório Municipal de Campinas Jean Nicolini
(Observatório de Capricórnio) 8.
A par das condições adversas para as
atividades dos astrônomos e, por que não dizer,
da privação autoimposta pela sociedade ao livre
exercício de um direito de ver as estrelas, o uso
inadequado da luz também compromete a regularidade de nosso ritmo circadiano, influenciando
negativamente o metabolismo humano, que, normalmente, aproveita a escuridão noturna para o
repouso, alternando-o com o estado de vigília que
se dá durante o dia. Vale lembrar, a propósito, o
que ocorre quanto ao hormônio do crescimento ou
GH - cuja liberação ocorre em picos durante a noite
de sono -, sendo importante para o crescimento
das crianças até o fechamento das cartilagens de
crescimento dos ossos, assim como no aumento
da síntese de proteínas, redução da deposição de
gorduras, aumento das necessidades de insulina,
retenção de sódio e eletrólitos, aumento de absorção intestinal e eliminação renal do cálcio 9.
Assim, ao invadir as casas, a poluição luminosa acaba por dificultar, em muitos casos, o
necessário desfrute de uma boa noite de sono,
causando fadiga visual e até mesmo alterações
no sistema nervoso central 10.
Além disso, a coletividade ainda se vê prejudicada sob o aspecto econômico, já que a luz em
excesso ou mal direcionada (leia-se: desperdiçada)
significa ainda prejuízo para o responsável pelo seu
custeio: em última análise, o contribuinte, quando
se trata de iluminação pública; ou, nos casos de
poluição causada a partir de atividades sem o caráter público, o particular.
Obviamente, maior desperdício de energia
também demanda maior geração, com conhecidos prejuízos para o meio ambiente decorrentes
da instalação e operação de usinas hidrelétricas,
termoelétricas, nucleares, entre outras, inclusive
com o aumento das emissões e concentrações de
carbono na atmosfera.
Guilherme José Purvin de Figueiredo menciona a incrível estimativa, segundo a qual “aproximadamente 50% até 60% da energia elétrica
gerada atualmente é desperdiçada para o céu em
forma de energia luminosa” 11.
Noutro passo, Watila Shirley Souza Campos cita a experiência da cidade de Tucson, nos
Estados Unidos, que adotou uma política de iluminação planejada, por meio da edição de normas
que regulamentaram o uso de qualquer luminária
externa, inclusive as instaladas em propriedades
privadas, o que se traduziu em uma economia de
U$3 milhões por ano 12.
Outro impacto econômico da poluição luminosa (ou social, conforme a análise que se faça
do caso) diz respeito à segurança do trânsito, que
pode ser prejudicada, já que luzes mal direcionadas
podem dificultar a visualização do tráfego, das vias
e da sinalização de trânsito.
É bem de ver que nosso Código de Trânsito (Lei n. 9.503/97) já disciplinou a questão, ao
preceituar que:
Art. 81. Nas vias públicas e nos imóveis, é proibido colocar luzes, publicidade, inscrições,
vegetação e mobiliário que possam gerar confusão, interferir na visibilidade da sinalização e comprometer
a segurança do trânsito.
Os patrimônios cultural, histórico, artístico,
paisagístico e arqueológico, assim como os bens e
espaços protegidos que materializam tais valores,
também são especialmente sensíveis à poluição
luminosa. Em emblemático caso julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, deu-se
provimento à apelação manejada pelo Ministério
Público nos autos de ação civil pública ambiental, impondo-se a retirada de letreiro luminoso
instalado no Pico do Ibituruna, símbolo maior da
cidade de Governador Valadares e sobre a qual
se destaca de forma majestosa, a ponto de haver
sido tombado como monumento natural do Estado
de Minas Gerais (art. 84 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias do Constituição Estadual). O julgado em questão, publicado no n. 31 da
Revista de Direito Ambiental, recebeu a seguinte
ementa:
“AÇÃO CIVIL PÚBLICA - PICO DO IBITURUNA - DANO AO MEIO AMBIENTE - RISCO DE INCÊNDIO E POLUIÇÃO VISUAL - PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO. A Constituição do Estado de Minas Gerais, no art.
84 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias tombou e declarou monumento natural, dentre outros,
o Pico do Ibituruna, situado em Governador Valadares. Deve ser julgado procedente pedido veiculado em a
ação civil pública se os elementos de prova demonstram o risco de incêndio na área e a poluição visual decorrentes da presença de fios elétricos e equipamentos de letreiro luminoso, instalados em área de preservação
57
ambiental, sem o necessário estudo de impacto ambiental e conseqüente licença. O princípio da prevenção
está associado, constitucionalmente, aos conceitos fundamentais de equilíbrio ecológico e desenvolvimento
sustentável; o primeiro significa a interação do homem com a natureza, sem danificar-lhe os elementos essenciais. O segundo prende-se à preservação dos recursos naturais para as gerações futuras. A “”Declaração
do Rio de Janeiro””, votada, à unanimidade, pela Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o
Desenvolvimento (1992), recomendou a sua observância no seu Princípio 15.” 13
Mas não é só. A natureza urbana, especialmente a fauna e a flora que elegeram as cidades
como habitat (ou a elas se adaptaram) ou com elas
interagem, assim como tantos outros espécimes que
vivem ou transitam por seu entorno, também sofrem
com os impactos causados pela poluição luminosa,
sendo esta capaz de afetar aspectos da vida animal,
tais como migração, reprodução, alimentação, assim
como da vegetal, que, como se sabe, emprega a luz
em processos fundamentais, como a fotossíntese.
Dessarte, os efeitos da poluição em comento
sobre a fauna e a flora, embora ainda pouco estudados, vêm sendo, gradativamente, observados e
apontados por cientistas nas mais diversas partes
do globo.
No trabalho intitulado Análise Legal dos Efeitos da Poluição Luminosa do Ambiente, Gargaglioni
destaca que:
“A poluição luminosa causa vários impactos ambientais, podendo levar a alterações na biologia dos
ecossistemas (MIRANDA, 2003). Os trópicos podem ser especialmente sensíveis às alterações dos padrões
naturais de claro:escuro, devido à constância dos ciclos diários (GLIWICZ, 1999). A poluição luminosa pode
ocasionar mudanças na orientação e atração dos organismos em locais com iluminação ambiental alterada, que
podem afetar a reprodução, migração e comunicação das espécies. Em relação à orientação dos organismos, o
aumento da iluminação pode estender comportamentos diurnos e crepusculares, para o período noturno por aumentar a habilidade do animal de se orientar (LONGCORE & RICH, 2004). Por exemplo, algumas aves e répteis
que são usualmente diurnos caçam a noite na presença de luz artificial. Esse comportamento pode ser benéfico
para estas espécies, mas não para suas presas (HILL, 1990); (SCHWARTZ & HENDERSON, 1991).
“Os canhões de luz lançados diretamente ao céu (utilizados em discotecas) ocasionam problemas na
migração das aves, sendo causa de grande mortalidade pela perda de orientação e batendo em obstáculos
devido ao brilho. Outros pássaros atraídos pela luz dos prédios, torres de transmissão, monumentos e outras
construções, voam sem cessar em torno da luz até caírem de cansaço ou pelo impacto em alguma superfície
(CHARRO, 2001).
“Para encontrar soluções para este problema com os pássaros, foi fundada em 1993 a FLAP (Fatal
Lighting Awareness Programme). Os sócios da FLAP, entre outras atividades, patrulham o centro financeiro
de Toronto recolhendo os pássaros vivos após acidentados e que depois são liberados quando curados. Além
disso, controlam o número de pássaros que morrem devido a poluição luminosa. Em um fim de semana, em
particular, foram encontrados 10.000 casos (CHARRO, 2001).
“A iluminação constante pode causar também a desorientação de alguns organismos que dependem
de um ambiente escuro para se locomoverem. Um dos exemplos mais conhecidos é os dos filhotes de tartarugas marinhas que saem dos ninhos nas praias. Normalmente, os filhotes movem-se em sentido contrário
de ambientes escuros e baixos (por exemplo, as vegetações das dunas) e vão em direção ao oceano. Com
a presença de luzes artificiais na praia, os filhotes não conseguem diferenciar os ambientes, resultando em
desorientação. Adicionalmente, a poluição luminosa pode afetar o comportamento de postura de ovos das
tartarugas (SALMON et al., 1995).
“Alterações nos níveis de luz podem também prejudicar a orientação de animais noturnos. De acordo
com PARK (1940), estes animais possuem adaptações anatômicas que possibilitam a visão noturna e rápidos
aumentos de luz podem cegá-los. Algumas rãs têm a capacidade visual reduzida quando ocorre um repentino
aumento da iluminação e podem levar minutos ou horas para se recuperar (BUCHANAN, 1993).
“Invertebrados também podem sofrer os efeitos da poluição luminosa, particularmente insetos como
mariposas, que são atraídas pela luz. As fêmeas dos vagalumes atraem os machos a 45 m de distância com
flashes de bioluminescência, mas a presença de luz artificial reduz a visibilidade, prejudicando a comunicação
(LONGCORE & RICH, 2004).
“Os comportamentos reprodutivos também podem ser alterados pela iluminação artificial. As rãs da
espécie Physalaemus pustulosus são menos seletivas na escolha dos machos quando o nível de iluminação está
elevado, provavelmente preferindo acasalar-se rapidamente e evitando o risco de predação (RAND et al., 1997).
A reprodução nas aves é controlada fotoperiodicamente, e o aumento artificial do dia podem induzir alterações
hormonais, fisiológicas e comportamentais, iniciando a procriação (HOUSE OF COMMONS, 2003). Algumas
evidências também sugerem que a luz artificial pode afetar a escolha do local do ninho de aves (LONGCORE
& RICH, 2004).
“Adicionalmente, luzes brilhantes como a das torres de telecomunicações, faróis e outras construções
altas podem atrair e desorientar aves, especialmente em noites sem lua, resultando em mortalidade (HOUSE
OF COMMONS, 2003).
58
“Outra situação no meio-ambiente é que a luz artificial provoca danos em locais não tão conhecidos
e evidentes como ocasionado na alteração dos ciclos de subida e descida do plancton marinho, que afeta a
alimentação das espécies marinhas que habitam próximo à costa. São encontradas também evidências desfavoráveis no equilíbrio das espécies, pois algumas enxergam em certos comprimentos de onda e outras não, e
as predadoras podem até extinguir determinadas espécies por conta desta situação (CHARRO, 2001).
“Em relação à flora os principais efeitos são que plantas não florescem se a duração da noite é mais
curta do que o período normal, enquanto outras florescerão prematuramente como resultado da exposição ao
fotoperíodo necessário para o florescimento (HOUSE OF COMMONS, 2003). A diminuição dos insetos que
realizam a polinização de certas plantas pode afetar a produção de determinados cultivos. A fotossíntese induzida pela luz artificial produz um crescimento anormal e uma defasagem nos períodos de floração e descanso
da planta (CHARRO, 2001).” 14
Na mesma linha, vários impactos da poluição luminosa sobre a vida
animal são relacionados na excelente reportagem de capa da edição brasileira
de novembro de 2008 da revista National Geographic, na qual se lê:
“Nós acendemos a noite como se ela fosse um território desabitado, o que não poderia estar mais longe
da verdade. Considerando apenas os mamíferos, o número de espécies noturnas é impressionante. A luz é uma
força biológica atuando para muitos animais feito um imã, através de um processo que vem sendo estudado
por pesquisadores, como Travis Longcore e Catherine Rich, co-fundadores do Urban Wildlands Group (Grupo
dos Sertões Urbanos), baseado em Los Angeles. Esse efeito é tão poderoso que os cientistas mencionam
aves canoras e marinhas sendo ‘capturadas’ por holofotes em terra ou pelas chamas de gás nas plataformas
petrolíferas, circulando sem parar em torno da luz até cair. Ao migrar à noite, os pássaros se expõem à colisão
com edifícios altos e iluminados.
Os insetos, como se sabe, aglomeram-se em torno das luminárias públicas, e o hábito de devorá-los
tornou-se inerente à vida de muitas espécies de morcego. Em alguns vales suíços, o morcego-de-ferradurapequeno começou a sumir depois de instaladas luminárias nas ruas, desalojados, talvez, pela invasão do
morcego-pipistrela, que se alimenta dos insetos. Outros mamíferos noturnos, como gambá e texugo, saem à
cata de alimentos de forma mais cautelosa sob a permanente lua cheia da poluição luminosa, pois se tornaram
alvo fácil de predadores.
Algumas aves, como pássaro-preto e rouxinol, cantam em horas incomuns na presença de luz elétrica.
Os cientistas estabeleceram que os longos dias artificiais – bem como as correspondentes noites curtas – induzem ampla gama de pássaros à reprodução precoce. O dia mais longo leva a uma alimentação mais prolongada,
e isso afeta cronogramas migratórios. Uma população de cisnes-de-bewick que costuma invernar na Inglaterra
adquiriu peso mais rápido que o normal, levando os animais a empreenderem sua migração siberiana mais cedo.
A migração, como na maioria dos outros aspectos da vida dos pássaros, é um comportamento biológico que
obedece uma precisa demarcação temporal. Partir mais cedo pode significar uma chegada muito precoce ao
destino, antes que as condições para a nidificação sejam ideais.
As tartarugas marinhas, que fazem ninhos e demonstram predileção natural por praias escuras, têm
cada vez mais dificuldade de encontrá-las. Seus filhotes, que gravitam em direção a um horizonte marinho mais
refletivo e luminoso, confundem-se com as luzes artificiais das praias urbanas. Só na Flórida, as perdas de
filhotes contam-se em centenas de milhares todos os anos. Rãs e sapos que vivem perto de rodovias enfrentam
níveis de luminosidade noturna que chegam a ser 1 milhão de vezes mais intensos que o normal, desregulando
todos os aspectos de seu comportamento, inclusive os coros noturnos de acasalamento das rãs.” 15
No Brasil, o problema das tartarugas
com a poluição luminosa até ensejou a edição
de uma norma ambiental infralegal sobre a matéria, a Portaria IBAMA n. 11, de 30 de janeiro
de 1995, que proibiu fontes de iluminação de
intensidade luminosa superior a zero LUX em
determinadas áreas que especificou, especialmente diante das dificuldades das tartarugas
fêmeas de realizarem postura na presença de
iluminação direta e das interferências da poluição luminosa na orientação de filhotes recém-
nascidos no seu trajeto praia/mar.
Em outro caso digno de nota, em que a
empresa USINAS SIDERÚRGICAS DE MINAS
GERAIS S. A. - USIMINAS postulava licença
prévia para instalação de aeroporto na zona
de amortecimento do Parque Estadual do Rio
Doce, a mais expressiva Unidade de Conservação do bioma Mata Atlântica do Estado de
Minas Gerais, a ausência de estudos sobre a
poluição luminosa gerada a partir do empreendimento constituiu fundamento de voto-vista
59
contrário à concessão da licença em questão, proferido pelo representante do Ministério Público junto ao
Conselho de Política Ambiental do Estado de Minas
Gerais (COPAM), que sustentou ser o caso típico
exemplar de aplicação do princípio da precaução 16.
Como se faz sentir, a poluição luminosa está
em toda parte e não pode ser totalmente eliminada,
manifestando-se nas formas conhecidas como sky
glow (brilho no céu), glare (ofuscamento) e light trespass 17 (luz intrusa), com significativos impactos ambientais, podendo dificultar a pesquisa astronômica,
atingir a saúde e a segurança do ser humano, resultar
no comprometimento de recursos naturais e em fortes
e desnecessárias pressões sobre a atmosfera terrestre, acarretar prejuízos de ordem social e econômica
à coletividade difusamente considerada, danos aos
patrimônios cultural, histórico, artístico, paisagístico
e arqueológico, assim como à fauna e à flora.
Paradoxalmente e não obstante a quase inexistente regulação normativa do tema, o direito am-
biental vem se mostrando preparado para a pronta
tutela ambiental das questões envolvendo poluição
luminosa, seja de lege lata, pela utilização de seus
princípios específicos, a exemplo da precaução, e de
seus mecanismos de polícia administrativa, de tutela
civil coletiva (ações civis públicas) e de persecução
criminal (crime do art. 54 da Lei n. 9.605/98); seja de
lege ferenda, pela possibilidade de rápida evolução,
especialmente através da adoção/imposição, via normas infralegais, de padrões de iluminação eficiente e
ambientalmente adequados, capazes de aproveitar ao
máximo a luz e evitar o desperdício.
Ainda ofuscada por uma onipresente bruma
alaranjada noturna que remete aos chamados progressos da urbanização e à sensação de aparente
segurança proporcionada pelas cidades e por sua iluminação artificial, a humanidade começa a despertar
para a imensidão da natureza celestial e da percepção
cósmica que o vislumbre de um céu estrelado parece
trazer consigo.
Referências
1 MARQUES,
2 HOLLAN,
José Roberto. Poluição luminosa. Revista de Direito Ambiental, São Paulo n. 38, ano 10, p. 121 abr./jun. 2005.
J. How should the light pollution be controlled – an experience from the Czech Republic. N. Copernicus Observatory and Plane-
tarium in Brno lecture at Ecology of the Night, Brno, República Tcheca, 2003. Apud GARGAGLIONI, Saulo Roberly. Análise legal dos efeitos
da poluição luminosa do ambiente. Itajubá, [s.n.], 2007, p. 22; Vide, ainda, KLINKENBORG, Verlyn. A noite esvai-se – Como a poluição
luminosa nos afasta da escuridão. National Geographic, ano 9, n. 104, , p. 57, nov. 2008.
3 GOBIERNO
DE CHILE. Contaminacíon lumínica. Santiago: Comisión Nacional del Medio Ambiente, CONAMA. Disponível em: WWW. URL:
http://www.conama.cl/portal/1301/propertyvalue-15484.html. Acesso em 11 jun.2009.
4 KLINKENBORG,
Verlyn. A noite esvai-se – Como a poluição luminosa nos afasta da escuridão. National Geographic, ano 9, n. 104, p. 56,
nov. 2008.
5 NASCIMENTO,
Eduardo Turiel do. Poluição luminosa e saúde pública. Belém: UNAMA – Universidade da Amazônia, ps. 3/4. Disponível
em WWW. http://www.nead.unama.br/prof/admprofessor/file_producao.asp?codigo=122. Acesso em: 11 jun. 2009.
6 KLINKENBORG,
2008, p. 58.
7 KLINKENBORG,
2008, p. 56.
8 FIGUEIREDO,
Guilherme José Purvin de. Poluição Luminosa, . Revista de Direito Ambiental. São Paulo,n. 30, ano 8, p. 219, abr./jun.
2003.
9 NASCIMENTO,
10 CAMPOS,
2009, p. 8.
Watila Shirley Souza. Poluição Visual no Direito Brasileiro. Santos: Universidade Católica de Santos, 2006, p. 36. Disponível n
em WWW. URL: http://biblioteca.unisantos.br/tede/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=6. Acesso em: 11 jun. 2009.
11 FIGUEIREDO,
2003, p. 221.
12 CAMPOS,2006,
13 MINAS
p. 37.
GERAIS. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Apelação Cível no. 1.0000.00.295312-3/000(1) - 7ª Cam. Cível. Rela-
tor Des. Wander Marota. Belo Horizonte, 10 de fevereiro de 2003. Revista de Direito Ambiental, São Paulo, n. 31, ano 8, p. 133, jul./set.
2003.
14 GARGAGLIONI,
Saulo Roberly. Análise legal dos efeitos da poluição luminosa do ambiente. Itajubá: [s.n.], p. 13-15, 2007.
15 KLINKENBORG,
16 Sem
2008, p. 56.
embargo, a questão não chegou a ser apreciada pelo plenário do COPAM, ante a desistência do pedido formalizada pela citada em-
presa nos autos do Procedimento de Licença Prévia no. 14779/2008/001/2008.
17 HOUSE
OF COMMONS. Light Pollution and Astronomy. Science and Technology Committee Publications – Volume 1, Londres, Inglaterra,
2003, p. 17. Disponível em: WWW. URL: http://www.parliament.the-stationery-office.co.uk/pa/cm200203/cmselect/cmsctech/747/747.
pdf. Acesso em 11 jun. 2009.
60
Av. Álvares Cabral, 1740 - 4º andar - Santo Agostinho
Belo Horizonte - MG - CEP: 30170-001
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