Revista Brasileira de Direito Civil

Transcrição

Revista Brasileira de Direito Civil
Revista
Brasileira
de Direito
Civil
ISSN 2358-6974
VOLUME 3
Jan/Mar 2015
Doutrina Nacional / Leonardo Estevam de Assis Zanini / Ricardo
Lucas Calderon / Michele Mayumi Iwasaki / Thaís Fernanda Tenório Sêco
Pareceres / Luiz Edson Fachin / Luiz Gastão Paes de Barros Leães
Atualidades / Vivianne da Silveira Abílio
Resenha / Gustavo Tepedino
Vídeos e Áudios / Anderson Schreiber
APRESENTAÇÃO
A Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil tem por objetivo fomentar o
diálogo e promover o debate, a partir de perspectiva interdisciplinar, das novidades
doutrinárias, jurisprudenciais e legislativas no âmbito do direito civil e de áreas
afins, relativamente ao ordenamento brasileiro e à experiência comparada,
que valorize a abordagem histórica, social e cultural dos institutos jurídicos.
A RBDCivil é composta das seguintes seções:




Editorial;
Doutrina:
(i)
doutrina nacional;
(ii)
doutrina estrangeira;
(iii) jurisprudência comentada; e
(iv) pareceres;
Atualidades;
Vídeos e áudios.
Endereço para contato:
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EXPEDIENTE
Diretor
Gustavo Tepedino - Doutor em Direito Civil pela Università degli Studi di Camerino,
Professor Titular de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Brasil
Conselho Editorial
Francisco Infante Ruiz - Doutor em Direito Civil e Internacional Privado pela
Universidad de Sevilla, Professor Titular de Direito Civil (Direito Privado
Comparado) na Universidad Pablo de Olavide (Sevilla), Espanha.
Gustavo Tepedino - Doutor em Direito Civil pela Università degli Studi di
Camerino, Professor Titular de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Brasil.
Luiz Edson Fachin – Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, Professor Titular de Direito Civil da Universidade Federal do Paraná, Brasil.
Paulo Lôbo - Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo, Professor
Titular da Universidade Federal de Pernambuco, Brasil.
Pietro Perlingieri - Professor Emérito da Università del Sannio. Presidente da
Società Italiana Degli Studiosi del Diritto Civile - SISDiC. Doutor honoris causa da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Coordenador Editorial
Aline de Miranda Valverde Terra
Carlos Nelson de Paula Konder
Conselho Assessor
Eduardo Nunes de Souza
Fabiano Pinto de Magalhães
Louise Vago Matieli
Paula Greco Bandeira
Tatiana Quintela Bastos
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SUMÁRIO
Editorial
Contratos empresariais na unidade do ordenamento – Gustavo
6
Tepedino
Doutrina nacional
O surgimento e o desenvolvimento do right of privacy nos Estados
9
Unidos – Leonardo Estevam de Assis Zanini
Usucapião familiar: quem nos salva da bondade dos bons? –
28
Ricardo Lucas Calderon e Michele Mayumi Iwasaki
Prescrição e decadência no direito civil: em busca da distinção
55
funcional – Thaís Fernanda Tenório Sêco
Pareceres
Contrato de seguro de vida e o agravamento do risco – Luiz Edson
80
Fachin
O contrato EPC e o princípio do equilíbrio econômico – Luiz Gastão
109
Paes de Barros Leães
Atualidades
A questão da configuração de fraude nas alienações envolvendo bem
135
de família e suas consequências: análise da jurisprudência do
Superior Tribunal de Justiça a partir do Recurso Especial nº
1.227.366 – Vivianne da Silveira Abílio
Resenhas
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Resenha a Arnoldo Wald (organizador), Doutrinas Essenciais –
151
Mediação e Arbitragem, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais,
2014 – Gustavo Tepedino
Vídeos e áudios
Direito e Mídia – palestra proferida pelo Professor Anderson
--
Schreiber na Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro
(EMERJ) em 03/11/2014
Submissão de artigos
Saiba como fazer a submissão do seu artigo para a Revista Brasileira
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de Direito Civil - RBDCivil
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EDITORIAL
CONTRATOS EMPRESARIAIS NA UNIDADE DO ORDENAMENTO
Gustavo Tepedino
Nos dias 26 e 27 de fevereiro de 2015, o Conselho da Justiça Federal e a
Escola Nacional de Formação de Magistrados (ENFAM), sob a liderança dos Ministros
Humberto Martins e João Otávio de Noronha, promoveram a II Jornada de Direito
Comercial, destinada à discussão e elaboração de Enunciados Interpretativos relacionados
ao direito empresarial, contratual e societário. O evento reuniu professores, magistrados e
profissionais do Direito de todo o Brasil, propiciando riquíssima discussão sobre os temas
atuais do direito comercial.
Ao lado da excelência de diversos Enunciados aprovados, amplamente
divulgados e destinados a exercer papel central na prática jurídica, vale refletir sobre a
superação da consumida controvérsia acerca da autonomia do direito comercial e da
unicidade do direito obrigacional. Isto porque a classificação didática dos diversos ramos do
direito não exclui o tratamento interpretativo unitário de todas as disciplinas jurídicas,
especialmente no caso de matérias afins, que se sobrepõem inevitavelmente no direito
obrigacional. Verifica-se, a mais não poder, na jurisprudência e, notadamente, na utilização
intensa dos princípios normativos pelo Superior Tribunal de Justiça, que as peculiaridades
dos diversos ramos do direito não afastam a construção dogmática informada por valores
comuns que tornam o direito empresarial integrado à teoria das obrigações.
Afinal, a unidade do direito decorre não de suposta dogmática monolítica
do direito obrigacional e empresarial, mas da dinâmica funcional do sistema jurídico,
articulado em ordenamento complexo sob a regência de Texto Constitucional rígido.
Compreende-se, assim, que a livre iniciativa tenha foro constitucional, assim como a
dignidade humana, a isonomia substancial e a solidariedade social (art. 1º, III e IV; e art. 3º,
I e III, C.R.), fundamentos e objetivos fundamentais da República. Do mesmo modo, na
linguagem do constituinte, a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho e na livre
iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme ditames da justiça social,
observados numerosos princípios socializantes prescritos pelo art. 170 e por seus incisos.
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Trata-se de ordem econômica que estimula e promove, a um só tempo, a liberdade e a
solidariedade; a autonomia privada e a igualdade.
Longe de trazer incerteza, essa opção do constituinte de conectar a
atividade econômica a interesses existenciais e sociais serve de suporte para a estabilidade
do sistema, de modo a evitar guetos setoriais isolados, erigidos ao sabor de pressões
econômicas. Cabe à magistratura, mediante suficiente fundamentação de suas decisões,
depurar a nova concepção de segurança jurídica, firme na legalidade constitucional e em
parâmetros objetivos que permitam a transparência e o controle social da atividade
jurisdicional. Na esteira dessa perspectiva de segurança, os princípios e cláusulas gerais não
devem ser tomados como opção ideológica ou redacional, e sim como fenômeno cada vez
mais frequente nos países da civil law (e mesmo nos países da common law), a traduzir
técnica legislativa própria da era tecnológica: a iniciativa privada caminha em velocidade
frenética, tornando impossível disciplinar a atividade econômica senão mediante o recurso
a princípios e cláusulas gerais.
Nesse cenário, com o propósito de estabelecer padrões hermenêuticos
coerentes, assume relevância a distinção estabelecida pelo constituinte, fundamentada não
mais em aspectos estruturais e estáticos, mas em critérios funcionais e dinâmicos, que aparta
as relações existenciais das patrimoniais. Nestas últimas privilegia-se, sem ruptura do
sistema, o legítimo escopo econômico dos titulares, justificando-se assim o tratamento
igualitário das partes nos contratos empresariais, em que há simetria de informações entre
os contratantes. Não há aqui fuga do sistema mas reconhecimento da legitimidade da
autonomia privada no âmbito do mesmo sistema jurídico que agrega e concilia valores
sociais e existenciais.
De fato, o contrato constitui-se no principal instrumento para a realização
da autonomia privada, que se expressa no acordo de vontade. Há de ser prestigiada a
atividade empresarial sem prejuízo do respeito a valores extrapatrimoniais alcançados pelos
negócios jurídicos. Nessa mesma linha de análise, a preocupação constitucional com o meio
ambiente equilibrado, a tutela do consumidor, a livre concorrência e a integridade psicofísica
dos trabalhadores corrobora o valor social da livre iniciativa, mostrando-se equívoca a
percepção de que as disposições normativas que extrapolem a letra regulamentar da lei sejam
fonte de insegurança.
Na mesma linha de análise, os princípios da função social, da boa-fé
objetiva e do equilíbrio econômico das prestações, longe de intimidarem os atores jurídicos
ou reduzirem a atividade empresarial, refletem a dimensão axiológica estabelecida pela
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ordem constitucional. Mostra-se assim plenamente compatível com os contratos
empresariais o controle de merecimento de tutela das cláusulas negociais, assim como, nos
termos da previsão do Código Civil, a repressão a cláusulas abusivas; a possibilidade de
resolução e revisão de obrigações tornadas excessivamente onerosas; a maior proteção do
aderente, e assim por diante.
Na legalidade constitucional, as peculiaridades dos contratos empresariais
encontram plena justificação axiológica, sendo inconcebível, por exemplo, a leitura dos
princípios acima mencionados associados à pretensa vulnerabilidade em relações paritárias.
Tais singularidades, contudo, compatíveis com a pluralidade das fontes normativas e
diversidade de cenários econômicos, não afastam a unidade do ordenamento e a necessidade
de se rejeitar a fragmentação do sistema jurídico – e de sua tábua de valores – em que se
manifesta a identidade cultural da sociedade.
G.T.
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SEÇÃO DE DOUTRINA:
Doutrina Nacional
O SURGIMENTO E O DESENVOLVIMENTO DO RIGHT OF PRIVACY NOS
ESTADOS UNIDOS
The emergence and development of the right of privacy in the United States
Leonardo Estevam de Assis Zanini
Pós-doutorado em Direito pelo Max-Planck-Institut für ausländisches und
internationales Strafrecht (Alemanha). Doutor em Direito Civil pela USP, com estágio de doutorado na
Albert-Ludwigs-Universität Freiburg (Alemanha). Mestre em Direito Civil pela PUC-SP. Juiz Federal.
Professor universitário.
Resumo: O artigo aborda o surgimento e a evolução do right of privacy nos Estados Unidos.
Analisa a publicação de Warren e Brandeis e sua influência na doutrina, na jurisprudência e
na legislação. Cuida das construções doutrinárias posteriores ao artigo de Warren e Brandeis,
como é o caso dos estudos de Prosser e Bloustein. Trata da distinção entre o right of privacy
e o right of publicity, bem como da formulação do privacy constitucional. Por fim, examina
a relação existente entre os direitos da personalidade e o right of privacy.
Palavras-chave: Right of privacy; Right of publicity; Direitos da personalidade; Dignidade
da pessoa humana; Common law.
Abstract: The article discusses the emergence and evolution of the right of privacy in the
United States. It analyzes the publication of Warren and Brandeis and its influence in
doctrine, case law and legislation. It examines the doctrinal constructions subsequent to the
article of Warren and Brandeis, such as the studies of Prosser and Bloustein. It seeks to trace
the differences between the right of privacy and right of publicity, as well as the formulation
of the constitutional privacy. Finally, it examines the relationship between the personality
rights and the right of privacy.
Keywords: Right of privacy; Right of publicity; Personality rights; Human dignity;
Common law.
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Sumário: Introdução – 1. O surgimento do right of privacy e a contribuição de Warren e
Brandeis – 2. O reconhecimento do right of privacy nos tribunais dos Estados Unidos – 3.
As dificuldades para o desenvolvimento do privacy até a década de 1950 – 4. O right of
publicity – 5. A difícil distinção entre o privacy e o publicity – 6. O privacy na construção
doutrinária de Prosser – 7. O privacy como tutela da dignidade e da individualidade – 8. A
formulação do privacy constitucional – 9. A consolidação do entendimento do caso Griswold
– 10. A relação entre o right of privacy e os direitos da personalidade – 11. Considerações
finais
Introdução
O right of privacy surgiu nos Estados Unidos e difundiu-se para os países
que adotam o sistema da common law. Tais países, entretanto, apresentam um grau bastante
variado de proteção da personalidade humana, valendo notar, por exemplo, que no Direito
inglês não haveria uma espécie de proteção geral, mas apenas uma tutela indireta,
relacionada com elementos constitutivos de determinados delitos.1
Desta feita, considerando sua origem e os grandes avanços de seu sistema
protetivo, bem como que se trata de modelo utilizado por outros países de common law e
mesmo de civil law, objetivamos realizar um breve estudo sobre o right of privacy nos
Estados Unidos, passando pelas diversas fases de seu desenvolvimento até seu
reconhecimento no âmbito constitucional.
Nossa análise, ao lado do estudo do privacy, também buscará a
compreensão dos principais pontos de divergência e convergência entre o sistema dos
Estados Unidos e o dos direitos da personalidade, tradicionalmente reconhecido pelos países
de direito continental, como é o caso do Brasil.
1. O surgimento do right of privacy e a contribuição de Warren e Brandeis
A ideia de privacy, conforme asseveram muitos autores, já estava presente
no sistema jurídico dos Estados Unidos no século XIX, sendo possível o reconhecimento de
uma primeira manifestação do interesse individual de “ser deixado só” no caso Wheaton v.
Peters, decidido pela Suprema Corte no ano de 1834. No entanto, o conceito de privacy não
1
LÉVY, Vanessa. Le droit à l’image: définition, protection, exploitation. Zürich: Schulthess, 2002, p. 152.
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chegou a receber reconhecimento formal da comunidade jurídica como um right, o que
somente ocorreu com a publicação do artigo de Samuel D. Warren e Louis D. Brandeis. 2;3
Antes do artigo de Warren e Brandeis, vamos encontrar na obra do juiz
Thomas Cooley, publicada em 1880, sob o título “A Treatise on the Law of Torts”, a primeira
utilização da expressão “right to be let alone”. Apesar de ter cunhado a expressão, Cooley
não a relacionou com a noção de privacy,4 mencionando-a em seu trabalho sobre
responsabilidade civil (torts) como parte do seguinte trecho: “The right to one’s person may
be said to be a right of complete immunity: to be let alone”.5
A expressão forjada por Cooley somente ganhou relevo com a publicação,
em 15 de dezembro de 1890, na Harvard Law Review, do artigo de autoria de Samuel D.
Warren e Louis D. Brandeis, intitulado “The Right to Privacy”. Nele os autores colocam em
evidência a ocorrência de transformações sociais, políticas e econômicas, bem como o
surgimento de novos inventos, como a fotografia, que contribuíram para a ocorrência de
violações da vida privada das pessoas.6;7
Partindo desses problemas, os autores analisam um bom número de
decisões de tribunais ingleses e americanos, deduzindo então a existência de um princípio
geral na common law, o right of privacy. Assim, utilizando o termo “right to be let alone”,
propõem um novo “tort”, a invasão do “privacy”, que constituiria uma profunda ofensa, que
2
SOMA, John T. Privacy law. St. Paul: Thomson/West, 2008, p. 11.
Apesar de muitos estudiosos admitirem na common law o reconhecimento jurisprudencial do right of privacy
antes do artigo de Warren e Brandeis, o tema não é, entretanto, isento de discussões. De fato, há um grupo
considerável de estudiosos que vê nos casos apontados pelo artigo como de reconhecimento do privacy apenas
a admissão de outros institutos, como o direito de propriedade, a quebra de contrato, a violação de confiança
ou mesmo a ocorrência de difamação, sendo a eventual proteção do privacy apenas incidental. Afirma-se ainda
que os argumentos utilizados por Warren e Brandeis para a construção do privacy partiram da errônea
compreensão dos precedentes examinados. FESTAS, David de Oliveira. Do conteúdo patrimonial do direito
à imagem. Coimbra: Coimbra, 2009, p. 156-157.
4
RIGAUX, François. La protection de la vie privée et des autres biens de la personnalité. Bruxelas: Bruylant,
1990, p. 272.
5
COOLEY, Thomas McIntyre. A treatise on the law of torts. Chicago: Callaghan, 1880, p. 29.
6
Warren e Brandeis consideram a proteção do privacy uma necessidade: “The intensity and complexity of life,
attendant upon advancing civilization, have rendered necessary some retreat from the world, and man, under
the refining influence of culture, has become more sensitive to publicity, so that solitude and privacy have
become more essential to the individual; but modern enterprise and invention have, through invasions upon
his privacy, subjected him to mental pain and distress, far greater than could be inflicted by mere bodily
injury.” WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D. The Right to Privacy. Harvard Law Review, v. 4, n. 5,
p. 193-220, dez. 1890, p. 196.
7
Há muito debate em torno da motivação de Warren e Brandies para a publicação do artigo dedicado ao
privacy. Alguns estudiosos especulam que foi uma resposta ao aumento de sensacionalismo da imprensa em
geral. Outros apontam que seria uma reação direta aos abusos cometidos pela imprensa contra a família de
Warren, uma das mais influentes na sociedade de Boston do final do século XIX. Seja como for,
independentemente das razões que levaram ao artigo, é certo que ele causou muito impacto no âmbito da
common law, sendo ainda hoje inegável a sua importância. WAGNER, Wienczyslaw J. Le “droit à l’intimité”
aux Etats-Unis. Revue Internationale de Droit Comparé, v. 17, n. 2, p. 365-376, abr.-jun. 1965, p. 366.
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lesionaria o senso da própria pessoa sobre sua independência, individualidade, dignidade e
honra.8
Nessa linha, o direito em questão garantiria ao indivíduo uma ampla
liberdade contra intromissões não desejadas em sua vida, tutelando seus pensamentos,
sentimentos, emoções, dados pessoais e até mesmo o nome.9 A imagem também foi incluída
no âmbito de proteção do privacy,10 destacando-se que os avanços da fotografia tornaram
possível a captação de forma oculta dos traços pessoais, pelo que se fazia necessária a
utilização da lei de torts diante dos riscos inerentes ao progresso técnico.11
Para fundamentar o privacy, os autores recorreram ao direito à vida,
expressamente enunciado na declaração de independência dos Estados Unidos e
formalmente reconhecido pela quinta emenda da Constituição. Acrescentaram ainda que
apesar de a Constituição não fazer qualquer menção à palavra privacy, seus princípios já
faziam parte da common law, particularmente no que diz respeito à proteção do domicílio,
tendo o desenvolvimento tecnológico apenas tornado necessário reconhecer expressamente
e separadamente esta proteção sob o nome de privacy.12
Outrossim, apresentam no artigo limitações ao privacy, como por
exemplo: a permissão de publicação de material de interesse geral e público, a possibilidade
de publicação de fatos danosos quando o indivíduo consente, bem como a inexistência de
defesa quando se alega que o fato é verdadeiro ou então que não houve “malícia” na
publicação.13
O artigo de Warren e Brandeis vai provocar um impacto considerável no
sistema jurídico norte-americano, mas isso não vai ocorrer de maneira imediata. De fato, em
um primeiro momento ocorreu hesitação por parte da doutrina quanto ao privacy, pois
8
SOMA, John T, op. cit., p. 11.
PLACZEK, Thomas. Allgemeines Persönlichkeitsrecht und privatrechtlicher Informations- und Datenschutz.
Hamburg: LIT, 2006, p. 46-47.
10
É importante observar, já de início, que o termo “privacy” não pode ser confundido com a expressão
“privacidade” da língua portuguesa. De fato, deflui tanto do artigo de Warren e Brandeis como das primeiras
decisões sobre a matéria que o privacy assumiu, desde o início, vocação para ampla tutela dos valores da
personalidade, não se limitando apenas à tutela da privacidade (FESTAS, David de Oliveira. Do conteúdo
patrimonial do direito à imagem, p. 32). Desse modo, considerando a dificuldade na tradução do termo, que
não se confunde com a privacidade e nem com os direitos da personalidade, preferimos utilizar nesse trabalho,
para não incorrermos em nenhuma imprecisão, a expressão em inglês.
11
WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D., op. cit., p. 211.
12
SOMA, John T., op. cit., p. 13-14.
13
Ibidem, p. 14.
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12
muitos autores negaram energicamente as novas ideias, enquanto que outros defenderam o
instituto com entusiasmo.14
Nos tribunais o efeito da publicação do artigo também não foi imediato,
uma vez que os primeiros casos julgados não reconheceram a existência do privacy.
Contudo, a ideia foi aos poucos sendo adotada e até expandida pelos tribunais estaduais e
federais, valendo ainda notar que nas primeiras décadas de existência o right of privacy foi
defendido ao abrigo da property theory, mas depois passou a ser progressivamente abordado
como um direito pessoal.15
De qualquer forma, é interessante notar que para o sistema da common law
dos Estados Unidos é bastante incomum que um artigo publicado em uma revista tenha sido
decisivo para desenvolvimento de um direito. Também é muito supreendente o fato de que
um artigo publicado em 1890 ainda continue a ser considerado hodiernamente como a obra
fundamental sobre o tema, sem tem perdido sua validade, especialmente se levarmos em
conta a importância e atualidade da matéria.16
2. O reconhecimento do right of privacy nos tribunais dos Estados Unidos
Os casos Schuyler v. Curtis (1891)17 e Marks v. Jaffa (1893) são
normalmente apontados, por um grande número de doutrinadores, como aqueles que teriam
iniciado as discussões a respeito do right of privacy nos tribunais dos Estados Unidos. Apesar
da precedência, mais célebres se tornaram outros dois casos, que foram julgados de forma
diversa e coincidentemente envolveram lesão ao direito à imagem.18
O primeiro deles, o caso Roberson v. Rochester Folding Box Co.,
conhecido como “Flour of the Family”, diz respeito à inserção da fotografia de uma moça
14
PROSSER, William Lloyd. Handbook of the law of torts. 4 ed. St. Paul: West, 1971, p. 802.
FESTAS, David de Oliveira, op. cit., p. 164-165.
16
KAMLAH, Ruprecht. Right of privacy. Köln: Carl Heymanns, 1969, p. 58-59.
17
O caso Schuyler v. Curtis é particularmente interessante, pois além de apresentar um problema que
abrangeria o reconhecimento do direito à imagem, também levanta a questão da imagem da pessoa falecida. A
demanda foi iniciada por Philip Schuyler, sobrinho de Mary Hamilton Schuyler, que se opôs à construção e
exposição de uma estátua de sua falecida tia em um evento em Chicago. A Supreme Court de Nova Iorque
(primeira instância), em 1891, apoiada no artigo de Warren e Brandeis, acolheu o pedido, sustentando que a
falecida tinha mantido em vida uma postura reservada, que não seria compatível com a pretendida exposição.
A Court of Appeals, entretanto, asseverou que não era relevante o desejo da falecida, pois eventual right of
privacy não teria sobrevivido à morte da senhora Schuyler. HAND, Augustus N. Schuyler against Curtis and
the Right to Privacy. The American Law Register and Review, Philadelphia, vol. 45, n. 12, p. 745-759, dez.
1897, passim.
18
FESTAS, David de Oliveira, op. cit., p. 161-165.
15
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13
em um cartaz publicitário divulgado por um fabricante de farinha. A ação foi rejeitada em
1902 pela Court of Appeals de Nova Iorque, mas a existência do right of privacy
aparentemente tinha sido reconhecida pelas duas cortes inferiores.19
Na decisão da Court of Appeals, tomada por estreita maioria de quatro
votos a favor e três contra, foi negada a existência do direito em questão pela falta de
precedente, pelo caráter puramente mental da lesão, pela dificuldade de se estabelecer a
distinção entre natureza pública e privada, bem como pela indevida restrição à liberdade de
imprensa e liberdade de expressão.20
Em seguida, três anos mais tarde, o caso Pavesich v. New England Life
Ins. Co. foi levado à Suprema Corte da Georgia. Nele foi debatida a reprodução não
autorizada em um jornal do retrato do senhor Pavesich, que foi colocado ao lado da foto de
um homem em farrapos, tendo sido atribuída a prosperidade do primeiro ao fato de ter
contratado uma apólice de seguro.21
Na decisão, proferida em 1905, a corte rejeitou os argumentos levados
anteriormente ao caso Roberson, pelo que acabou aceitando o entendimento de Warren e
Brandeis. Assim, os juízes consideraram que a publicação da imagem de uma pessoa, sem
seu consentimento e com o propósito de exploração comercial, configuraria uma violação
do right of privacy, o que não demandaria da pessoa retratada prova especial do dano.22
A decisão do caso Pavesich v. New England Life Ins. Co. foi então sendo
paulatinamente seguida por tribunais de vários outros estados americanos, de modo que na
década de 1950 a oposição ao right of privacy já tinha praticamente desaparecido.23
Por conseguinte, fica evidente que as duas últimas decisões mencionadas
são extremamente importantes para o desenvolvimento do privacy nos Estados Unidos,
motivo pelo qual são reiteradamente analisadas nos manuais. Também é interessante
observar que os casos apresentados estão associados à defesa de valores patrimoniais, ainda
que ligados a valores pessoais. Ademais, vale ainda destacar que apesar de no caso Roberson
v. Rochester Folding Box Co. ter sido rejeitada a concepção de Warren e Brandeis, não
19
RIGAUX, François, op. cit., p. 278.
PROSSER, William Lloyd, op. cit., p. 803.
21
Ibidem, p. 803.
22
Os juízes se pronunciaram nos seguintes termos: “The publication of a picture of a person, without his
consent, as a part of an advertisement, for the purpose of exploiting the publisher’s business, is a violation of
the right of privacy of the person whose picture is reproduced, and entitles him to recover, without proof of
special damage”. LÉVY, Vanessa, op. cit., p. 150.
23
KAMLAH, Ruprecht, op. cit., p. 59-60.
20
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14
podemos nos esquecer que tal julgado contou com opiniões divergentes, bem como deu
causa à promulgação de uma lei sobre privacy no Estado de Nova Iorque.24
3. As dificuldades para o desenvolvimento do privacy até a década de 1950
O período que vai do início até a metade do século XX não apresentou
evolução aparente da doutrina do privacy, registrando apenas decisões que confirmaram a
concepção desenvolvida por Warren e Brandeis. Perdeu-se então a oportunidade de incluir
os avanços tecnológicos do período na proteção.25
A estagnação do desenvolvimento do privacy provavelmente está
associada à apresentação aos tribunais de um reduzido número de casos com novos pontos
de vista, bem como pelo fato de que os tribunais não estavam dispostos a avançar no tema
sem apoio em figuras jurídicas tradicionais, como a proteção da honra ou da propriedade.26
A problemática é muito bem representada pela decisão do caso Olmstead
v. United States, que pode ser considerada como uma das corresponsáveis pela referida
estagnação da doutrina do privacy. O processo envolvia escutas telefônicas feitas pelo FBI
contra Roy Olmstead e muitas outras pessoas, que teriam transportado e vendido bebidas
alcoólicas em violação à lei nacional.27
O tribunal decidiu que as escutas telefônicas realizadas, que constituíam o
principal meio de prova, não tinham sido feitas com invasão da propriedade privada, já que
os cabos telefônicos interceptados se localizavam na rua, em áreas próximas das casas e dos
escritórios investigados. No voto vencedor, o juiz Taft esclareceu que a escuta por meios
eletrônicos não poderia ser considerada como busca, no sentido empregado pela
Constituição, uma vez que não houve invasão física, e que não teria ocorrido apreensão
inconstitucional, na medida em que não envolveu nenhum bem tangível.28
Desse modo, como os locais investigados não foram fisicamente
invadidos, as interceptações telefônicas não violariam a Quarta Emenda da Constituição, que
garante a inviolabilidade da pessoa, da sua casa, de seus documentos e dos seus bens contra
a realização de buscas e apreensões ilegítimas. Assim, foi dada interpretação literal à Quarta
24
Ibidem, p. 59-60.
Ibidem, p. 61.
26
Ibidem, p. 61.
27
MCWHIRTER, Darien Auburn; BIBLE, Jon D. Privacy as a constitucional right: sex, drugs, and the right
to life. New York: Quorum Books, 1992, p. 92.
28
O’BRIEN, David M. Privacy, law, and public policy. New York: Praeger, 1979, p. 51-52.
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Emenda constitucional, que seria aplicável somente na hipótese de busca envolvendo
invasão física e de apreensão de objetos tangíveis.29
Apesar do entendimento da Suprema Corte dos Estados Unidos, o juiz
Brandeis, coautor do famoso artigo já mencionado, apresentou voto em sentido contrário,
propugnando por uma aplicação liberal da Quarta Emenda constitucional, que protegeria o
cidadão contra qualquer violação injustificada do privacy, seja qual for o meio utilizado.
Asseverou ainda que o governo deveria ter obtido um mandado de busca antes de ter
invadido a privacidade alheia, mesmo porque a Constituição protege os cidadãos não apenas
em aspectos materiais, mas também em suas crenças, pensamentos, emoções e sensações.30
Nessa linha, Brandeis, usando na decisão linguagem similar àquela do
artigo publicado muitos anos antes, ampliou o foco do privacy, destacando que o right to be
let alone encontra proteção não somente na common law, mas também na Constituição.
Também identificou o Estado como um potencial ofensor desse direito.31
Nos anos que se seguiram, a posição defendida por Brandeis foi
continuamente sustentada por outros juízes, mas a Suprema Corte dos Estados Unidos,
apesar de pronunciamentos ousados em muitos julgados, manteve reserva ao right of privacy
quando se discutia seu reconhecimento constitucional e a admissão de provas em processos
criminais.32
Assim, também não foi reconhecida a ocorrência de violação ao privacy
no caso Goldman v. United States (1942), em que a conversa do acusado foi gravada por um
microfone instalado na parede do apartamento contíguo, uma vez que a prova não teria sido
obtida com invasão física.33 O posicionamento foi mais uma vez confirmado no caso On Lee
v. United States (1952), quando o tribunal admitiu as provas colhidas pela escuta de
conversações entre On Lee e um agente infiltrado, que estava com um microfone. O mesmo
pode ser constatado em Silvermann v. United States (1961), que, confirmando a regra do
caso Olmstead, apenas condenou a utilização de microfones pelo fato de ter ocorrido invasão
de propriedade.34
29
Ibidem, p. 51.
MCWHIRTER, Darien Auburn; BIBLE, Jon D., op. cit., p. 93.
31
SOLOVE, Daniel J.; ROTENBERG, Marc; SCHWARTZ, Paul M. Privacy, information, and technology.
New York: Aspen, 2006, p. 28-29.
32
KAMLAH, Ruprecht, op. cit., p. 61-63.
33
DIONISOPOULOS, Allan; DUCAT, Craig R. The Right to Privacy: Essays and Cases. St. Paul: West, 1976,
p. 18.
34
O’BRIEN, David M., op. cit., p. 54-55.
30
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16
4. O right of publicity
Em 1953 mais um passo importante é dado no julgamento do caso Haelan
Laboratories Inc v. Topps Chewing Gum Inc, que colocou em evidência a falta de adaptação
e a insuficiência do privacy para a resolução de problemas relativos a interesses patrimoniais,
estabelecendo novos limites para esse direito.35
A demanda envolveu a celebração de vários contratos entre a empresa
Haelan Laboratories Inc e jogadores profissionais de baseball, nos quais foi estabelecido um
direito exclusivo de utilização da imagem, do nome e de elementos biográficos dos jogadores
para a venda de produtos da empresa. Conhecendo a existência do contrato, a empresa
concorrente Topps Chewing Gum Inc procurou os mesmos jogadores e obteve, em violação
à obrigação contratual anterior, semelhante autorização para utilização da imagem, o que
deu ensejo à demanda judicial por parte da primeira empresa.36
Em sua defesa, a ré asseverou que os contratos celebrados entre a autora e
os jogadores não poderiam transferir o right of privacy, visto que tal direito tinha natureza
pessoal e intransferível. Também argumentou que nos contratos não havia previsão de
nenhum property right que pudesse ser invocado.37
Entretanto, o tribunal rejeitou os argumentos da defesa, considerando, sem
nenhuma preocupação teórica, a necessidade de se destacar uma parte do right of privacy e
reconhecer a existência de um right of publicity. Tal direito foi considerado independente do
privacy e garantiria um privilégio exclusivo à pessoa quanto ao aproveitamento econômico
de sua notoriedade, o que poderia ser considerado um property right, na medida em que teria
valor pecuniário.38
Assim sendo, apesar de guardar suas origens históricas no right of privacy,
o surgimento do right of publicity não decorreu de um processo evolutivo, mas é resultado
de uma radical ruptura do right of privacy, que produziu um direito transmissível, inclusive,
na opinião da doutrina majoritária, por herança.39
Após a decisão do caso Haelan, a nova figura jurídica foi rejeitada por
alguns tribunais e aceita por outros. A mesma diversidade de entendimentos pôde ser vista
35
ROUVINEZ, Julien. La licence des droits de la personnalité. Zürich: Schulthess, 2011, p. 81.
RIGAUX, François, op. cit., p. 395.
37
FESTAS, David de Oliveira, op. cit., p. 176.
38
RIGAUX, François, op. cit., p. 393 e 396.
39
GÖTTING, Horst-Peter. Persönlichkeitsrechte als Vermögensrechte. Tübingen: Mohr Siebeck, 1995, p. 191.
36
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na doutrina, que contou, entre os defensores do right of publicity, com Grodin e Nimmer.
Este último acabou fixando os contornos do novo instituto, destacando que o right of privacy
não era adequado para a integral proteção do cidadão na segunda metade do século XX, em
especial pela presença maciça da publicidade.40
No âmbito da Suprema Corte dos Estados Unidos, o right of publicity
somente foi reconhecido em 1977, no julgamento do caso Zacchini v. Scripps-Howard
Broadcasting Company, quando se admitiu a existência de interesse econômico na
apresentação de um “homem-bala” que foi transmitida pela televisão sem sua autorização.41
Na demanda, o tribunal atribuiu ao right of publicity um interesse análogo
à propriedade (propietary interest) e afirmou ainda que a finalidade de tal direito é muito
próxima à de uma patente ou de um copyright, na medida em que é protegido o direito de
colher os frutos de uma atividade individual, que nada tem a ver com a proteção dos
sentimentos ou da reputação.42
Depois dessa decisão o right of publicity foi sendo progressivamente
admitido pelos Estados do país, muitos deles consagrando até mesmo uma legislação
específica sobre o tema.43
Portanto, a proteção do direito à imagem na common law passou a
compreender um modelo dualista, composto tanto pelo right of privacy como pelo right of
publicity. O primeiro voltado para a tutela de valores pessoais, enquanto que o segundo se
destina à proteção de valores patrimoniais.44
5. A difícil distinção entre o privacy e o publicity
Como foi visto, o right of publicity pode ser concebido, em linhas gerais,
como o direito que cada pessoa tem de controlar o uso comercial de sua identidade, dirigindo
sua tutela para aspectos meramente patrimoniais. O instituto é visto como uma espécie do
gênero da concorrência desleal, uma vez que garante o privilégio exclusivo quanto à
exploração da identidade, particularmente no que toca à publicação de fotografias.45
40
FESTAS, David de Oliveira, op. cit., p. 179.
FREEDMAN, Warren. The Right of Privacy in the Computer Age. Nova Iorque: Quorum, 1987, p. 28.
42
RIGAUX, François, op. cit., p. 393-394.
43
ROUVINEZ, Julie, op. cit., p. 82.
44
LÉVY, Vanessa, op. cit., p. 151.
45
FREEDMAN, Warren, op. cit., p. 28.
41
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Ocorre que o fato do right of publicity ser mencionado em ligação com a
identidade não significa que a sua proteção está relacionada apenas com os bens da
personalidade. Na verdade, essa tutela vai muito além, abrangendo todas as formas de
identificação da pessoa, como a imagem, o nome ou a voz, bem como objetos materiais.46
Nessa linha, a despeito da definição doutrinária aparentemente clara do
right of publicity, bem como do estabelecimento de suas diferenças em relação ao privacy,
na prática a distinção não é tão simples, mesmo porque existe uma grande afinidade entre
esses direitos.
Normalmente um dos critérios utilizados na distinção é o comportamento
anterior da vítima. Assim, se a pessoa, como ocorreu no caso Zacchini, não se opõe à
publicidade, contanto que ela receba as vantagens financeiras pela exposição, estaríamos
diante do publicity. Também ocorrerá atentado apenas ao right of publicity quando uma
pessoa autoriza a publicação de seu nome ou de sua imagem em um determinado periódico,
mas não em um outro, ou quando a extensão da utilização publicitária excede o que foi
previsto contratualmente.47
Por outro lado, estaremos diante de invasão do privacy se os fatos em
análise indicam que o indivíduo jamais explorou o valor associado a sua reputação ou a sua
atividade profissional, bem como que não houve qualquer consentimento no que toca à
utilização do seu nome ou de sua imagem.48
A partir daí, parte da doutrina e da jurisprudência passaram a considerar,
de modo geral, que a utilização do nome ou da imagem de pessoas célebres, sem autorização,
em uma propaganda, somente afeta o right of publicity. De contrário, tratando-se de uma
pessoa não conhecida do público, a defesa da utilização não autorizada do nome e da imagem
deve ser feita pelo right of privacy.49
Outrossim, podemos arrolar ainda a distinção no que toca à
patrimonialidade e à transmissibilidade do interesse protegido. Assim sendo, considerando
a patrimonialidade do publicity, a doutrina reconhece que ele faz parte do próprio patrimônio
da pessoa (estate) e admite a possibilidade de sua cessão contratual ou transmissão
hereditária. O mesmo não valendo para o right of privacy, que se volta para a proteção de
interesses ideais e não permite a transmissão.50
46
FESTAS, David de Oliveira, op. cit., p. 166.
RIGAUX, François, op. cit., p. 394-396 e 407.
48
Ibidem, p. 394-396.
49
GÖTTING, Horst-Peter, op. cit., p. 243.
50
ROUVINEZ, Julien, op. cit., p. 82.
47
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Por conseguinte, deve-se admitir que são poucas as situações em que a
delimitação se apresenta tão evidente. A despeito disso é sem dúvida sempre conveniente
analisar o comportamento anterior da vítima, investigar a natureza da agressão, bem como
buscar interpretar o consentimento do sujeito para que se possa chegar à conclusão se
estamos diante de um caso de privacy ou publicity, sobretudo quando foi contratualmente
autorizada a exploração do nome ou da imagem.51
6. O privacy na construção doutrinária de Prosser
Somente na década de 1960 é que vai ser visto o surgimento de novas
discussões doutrinárias e jurisprudenciais a respeito do privacy. No que toca à doutrina,
inicia-se então um debate contrapondo pontos de vista favoráveis e opostos às ideias de
Warren e Brandeis.
Entre as críticas dirigidas à concepção, podem ser distinguidas diversas
orientações, como a que substitui o conceito de privacy por outro considerado mais
adequado, a que censura a utilização de um vocábulo único para diversos atos ilícitos e a que
contesta a definição do privacy como o “direito de ser deixado só”.52
Entretanto, vamos aqui destacar o embate mais célebre, que envolveu
Prosser e Bloustein, tendo exercido, como será visto, indiscutível influência nos
desenvolvimentos posteriores do privacy.53
William Prosser, aclamado professor da California School of Law
(Berkeley) e à época uma das maiores autoridades em responsabilidade civil (tort law),
apresentou em 1960 um estudo bastante preciso acerca das decisões prolatadas sobre o right
of privacy. Nele o estudioso procurou evidenciar as regras emanadas de cada caso e os
desenvolvimentos jurídicos daí decorrentes54-55.
Após a análise de substancial amostra do repertório jurisprudencial
disponível, Prosser admitiu a existência de confusão e inconsistências no desenvolvimento
do privacy, mas tentou sistematizar a matéria. Asseverou que não se estava diante de apenas
um tort, mas sim de quatro grupos diversos, vendo em cada um deles a lesão de diferentes
51
RIGAUX, François, op. cit., p. 395.
Ibidem, p. 630.
53
DIONISOPOULOS, Allan; DUCAT, Craig R., op. cit., p. 25-26.
54
KAMLAH, Ruprecht, op. cit., p. 71.
55
O trabalho de Prosser foi ampliado e atualizado por Keeton, contando com última edição (5. ed.) publicada
em 1984 sob o título Prosser and Keeton on the Law of Torts.
52
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20
tipos de interesses protegidos. Nessa linha, destacou que os interesses tutelados pelo privacy
não teriam quase nada em comum, exceto que todos eles representariam uma interferência
no right to be let alone.56
Prosser passa então a classificar o privacy nas seguintes espécies: 1)
invasão em assuntos privados da pessoa (intrusion); 2) publicação de fatos embaraçosos
relativos à vida privada de determinada pessoa (public disclosure); 3) publicação que leve a
opinião pública a uma falsa compreensão (false light), o que se assimila à difamação
(defamation), mas enquanto esta requer que a informação seja falsa, no privacy a informação
geralmente é verdadeira, mas cria uma falsa impressão e; 4) abuso do nome ou da imagem
de outrem para benefício próprio (appropriation),57 conceito que se aproximaria do right of
publicity, no entanto, este direito protege a pessoa contra a exploração comercial não
autorizada (property right), enquanto que o privacy diz respeito à tutela de valores pessoais
da personalidade.58
O estudioso não foi, obviamente, o primeiro a apresentar uma classificação
do right of privacy em diferentes tipos. Na verdade, o que torna seu trabalho relevante, a
ponto de ser considerado por muitos como leitura obrigatória para as discussões sobre
privacy, não é somente o fato de ter desenvolvido uma classificação que impôs ordem e
clareza à matéria, mas também por ter identificado o bem jurídico protegido em cada uma
das hipóteses apresentadas.59
Destarte, ainda que de forma implícita, pode-se deduzir do pensamento de
Prosser que não existe unidade na tutela do privacy, visto que não estaríamos diante de um
valor independente, mas sim de uma composição de interesses que vai abranger a reputação,
a tranquilidade emocional e a propriedade imaterial.60
7. O privacy como tutela da dignidade e da individualidade
Os ensinamentos de Prosser não ficaram isentos a críticas, como a
apresentada pelo professor Harry Kalven, no artigo intitulado “Privacy in Tort Law – Were
Warren and Brandeis Wrong?”, publicado em 1966. Nele o estudioso questiona a proteção
56
PROSSER, William Lloyd, op. cit., p. 804.
KAMLAH, Ruprecht, op. cit., p. 72.
58
FESTAS, David de Oliveira, op. cit., p. 179.
59
KAMLAH, Ruprecht, op. cit., p. 72.
60
BLOUSTEIN, Edward J. Privacy as an aspect of human dignity: an answer to dean Prosser. New York
University Law Review, v. 39, p. 962-1007, 1964, p. 962.
57
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21
do privacy por meio da legislação de torts, concluindo que, com exceção dos casos de
apropriação, a tentativa de proteger o privacy no âmbito da responsabilidade civil é um
erro.61
Edward Bloustein, em trabalho publicado em 1964, assevera que a análise
em grupo de casos, apresentada por Prosser, contrariou o que Warren e Brandeis defendiam,
uma vez que acabava indicando a incapacidade dos tribunais de continuarem o
desenvolvimento do privacy sem que fosse necessário o apoio em figuras jurídicas
tradicionais, como a propriedade e a honra.62
Nessa linha, Bloustein destaca a existência de uma considerável confusão
no que toca à natureza do bem jurídico protegido pelo privacy, entendendo que Prosser
remete esse direito novamente às antigas instituições jurídicas, o que estaria em contradição
com o pensamento de Warren e Brandeis, na medida em que viam no privacy uma figura
jurídica nova e unitária.63
Partindo desses problemas, Bloustein propõe em seu artigo uma teoria
geral do privacy, levando em conta, para tanto, o bem jurídico protegido em todos os casos.
Considera então que a dignidade humana seria esse bem jurídico, que ligaria o right of
privacy do direito privado ao direito público, vínculo este totalmente ignorado por Prosser.
Acrescenta ainda que o privacy não é limitado à common law, abrangendo o direito como
um todo, inclusive as disposições de direito processual penal.64
Outrossim, Bloustein lembra da existência de muitas leis mais recentes,
que regulam o uso de sistemas eletrônicos de vigilância ou que proíbem a interceptação
telefônica de conversas, exemplos que seriam suficientes para comprovar a proteção do right
of privacy de forma independente, não somente como uma proteção civil contra atos
ilícitos.65
Além disso, outra questão que se colocava era a respeito dos
desenvolvimentos futuros do privacy. De acordo com o estudioso, a influência do trabalho
de Prosser era patente, já que nos anos que se seguiram à sua publicação quase toda decisão
sobre privacy mencionava sua concepção, bem como também refletiu na elaboração do
Restatement of Torts. Assim sendo, nas palavras de Bloustein, se seu posicionamento não
61
FREEDMAN, Warren, op. cit., p. 8.
KAMLAH, Ruprecht, op. cit., p. 73.
63
Ibidem, p. 74.
64
Ibidem, p. 74.
65
Ibidem, p. 74.
62
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estivesse correto, então seria importante demonstrar suas falhas e apresentar uma teoria
alternativa.66
Desse modo, em suma, sugere Bloustein que o raciocínio de Prosser não
estava correto, pois o privacy envolveria o mesmo interesse na preservação da dignidade e
da individualidade do ser humano, falando-se então em apenas um tort, que garantiria uma
proteção abrangente e sem lacunas.67
Alguns autores americanos concordaram com Bloustein, especialmente
diante dos fortes argumentos lançados contra Prosser no sentido de que sua visão se limitava
à common law, bem como que a classificação por ele proposta não era exaustiva e ainda
apresentava distinções insuficientemente esclarecidas.68
Contudo, boa parte dos estudiosos acabou seguindo o posicionamento de
Prosser, sendo certo que alguns deles, como é o caso de Wade, até avançaram em suas
ideias.69 De qualquer forma, é interessante notar que as ideias de Bloustein em muito se
assemelham à concepção em vigor no direito continental, especialmente pela menção à tutela
da dignidade humana.
Por conseguinte, o fato é que as ideias de Prosser acabaram saindo
vitoriosas e sua sistemática passou a exercer uma influência tão grande que foi seguida de
forma quase unânime pela doutrina e pela jurisprudência, ecoando ainda no Second
Restatement of Torts, de 1977, bem como na constituição, nas leis e na common law de vários
estados.70 E o resultado não poderia ser diverso, uma vez que independentemente da
denominação utilizada, o fato é que o conceito de privacy procura realmente dar uma visão
unitária a um grande número de situações ou de relações que são heterogêneas,71 isso sem
falar na ampla e já tradicional aceitação pela jurisprudência da inclusão desse instituto entre
os torts.72
66
BLOUSTEIN, Edward J., op. cit., p. 964.
Ibidem, p. 1005.
68
RIGAUX, François, op. cit., p. 633.
69
KAMLAH, Ruprecht, op. cit., p. 75.
70
GÖTTING, Horst-Peter, op. cit., p. 185-186.
71
RIGAUX, François, op. cit., p. 632.
72
FREEDMAN, Warren, op. cit., p. 8-9.
67
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23
8. A formulação do privacy constitucional
Paralelamente ao debate doutrinário, viu-se que ao longo do tempo o right
of privacy, desenvolvido como um conceito da common law, passou a aparecer em casos
envolvendo a Constituição dos Estados Unidos. Todavia, apesar do início dos debates ter
ocorrido ainda na primeira metade do século XX, o reconhecimento do right of privacy na
Constituição somente veio com o caso Griswold v. Connecticut, decido em 1965 pela
Suprema Corte dos Estados Unidos.73
Na demanda foi debatida uma lei de Connecticut, que tornou ilegal o uso
ou a distribuição de anticoncepcionais, o que configuraria ingerência do Estado no privacy.
A lei deu causa à condenação de um médico, que examinou uma mulher casada e prescreveu
métodos contraceptivos, bem como do senhor Griswold, diretor da clínica onde o referido
médico trabalhava.74
Na Suprema Corte dos Estados Unidos o juiz Douglas, que tinha assumido
a cadeira de Brandeis, redigiu o voto do caso Griswold v. Connecticut, que se tornou célebre.
Nele o magistrado declarou a inconstitucionalidade da lei e reconheceu a existência de um
direito geral de privacy, que decorreria das seguintes emendas à Constituição dos Estados
Unidos: primeira (liberdade de expressão), terceira (restrição ao aquartelamento de soldados
em casas particulares), quarta (busca e apreensões ilícitas), quinta (autoincriminação) e nona
(declara que os direitos não especificados na Declaração de Direito são também protegidos
por ela).75
A decisão ainda destaca o caráter sacro da união conjugal e o respeito que
merece a intimidade do casal, considerando, por conseguinte, inadmissível que a polícia
pudesse estender suas investigações ao quarto do casal (“the sacred precincts of marital
bedrooms”).76
Dessa forma, somente a partir do caso Griswold v. Connecticut que vai ser
reconhecido constitucionalmente, pela primeira vez, o right of privacy, que apesar de não
ser expressamente mencionado pela Constituição, estaria localizado, conforme o voto do
73
RIGAUX, François, op. cit., p. 167.
MCWHIRTER, Darien Auburn; BIBLE, Jon D., op. cit., p. 93.
75
Ibidem, op. cit., p. 97.
76
RIGAUX, François, op. cit., p. 167.
74
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24
juiz Douglas, no interior das penumbras ou zonas de liberdade criadas por uma interpretação
mais abrangente da declaração de direitos.77
9. A consolidação do entendimento do caso Griswold
Em 1967 a Suprema Corte dos Estados Unidos vai finalmente superar a
doutrina Olmstead, analisando o caso Katz v. United States, no qual policiais, sem
autorização judicial, interceptaram conversações telefônicas realizadas de uma cabine
telefônica.
O voto vencedor foi proferido pelo juiz Stewart, que mencionou o
posicionamento do tribunal no caso Griswold e reconheceu a violação do privacy decorrente
de injustificada medida de busca e apreensão, na hipótese envolvendo bem imaterial. O
magistrado ainda acrescentou em sua decisão que Katz tinha uma razoável expectativa de
privacy quando entrou na cabine telefônica e fechou a porta, estando assim resguardado pela
Quarta Emenda, que protege pessoas e não lugares (the Fourth Amendment protects people,
not places).78
Em seguida, em 1969, no caso Stanley v. Georgia, novamente foi colocada
em prova a solução dada ao caso Griswold. A demanda envolveu a realização de busca e
apreensão na casa de Stanley, estando a polícia munida do respectivo mandado, deferido
para que fossem encontradas provas da atividade de agenciamento de apostas. Todavia,
durante o procedimento, foram encontrados vídeos obscenos no quarto de Stanley, que foi
acusado de violação da legislação da Georgia.79
Pois bem, na Suprema Corte dos Estados Unidos todos os juízes estavam
de acordo com a absolvição de Stanley, mas houve divergência quanto aos fundamentos.
Nesse particular, vale destacar o voto do juiz Marshall, que citou tanto a manifestação
proferida pelo juiz Brandeis no caso Olmstead quanto o entendimento acolhido pelo tribunal
no caso Griswold, argumentando ainda que a Constituição protege os cidadãos contra
invasões não esperadas em seu direito de privacy.80
Por derradeiro, as decisões posteriores ao caso Griswold permitiram então
a construção e consolidação do privacy constitucional, que foi ainda dividido em duas
77
SOLOVE, Daniel J.; ROTENBERG, Marc; SCHWARTZ, Paul M., op. cit., p. 28-29.
KAMLAH, Ruprecht, op. cit., p. 71.
79
MCWHIRTER, Darien Auburn; BIBLE, Jon D., op. cit., p. 99.
80
Ibidem, p. 99.
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25
espécies: a primeira com fundamento na Quarta Emenda e nas “penumbras” de outras
emendas (primeira, terceira, quarta, quinta e nona), enquanto que a segunda está voltada para
o devido processo substantivo.81
10. A relação entre o right of privacy e os direitos da personalidade
No Direito dos Estados Unidos, como foi exposto, não é comum a menção
a bens da personalidade, mesmo porque não existe a figura dos direitos da personalidade,
como é conhecida nos países de tradição continental. Para a solução de eventuais demandas
relacionadas com os bens da personalidade, os norte-americanos desenvolveram então o
right of privacy, que constitui uma categoria de direitos que não é equivalente aos direitos
da personalidade.82
De fato, o right of privacy apresenta inúmeros pontos de divergência,
abarcando, por um lado, aspectos que não se incluem no âmbito dos direitos da
personalidade, bem como deixando de tutelar temas que são evidentemente abrangidos pelos
direitos da personalidade.
Em linhas gerais, apresentamos a evolução do right of privacy naquele
país, cuja origem doutrinária foi lentamente sendo consagrada na jurisprudência, na
legislação de um grande número de estados e, finalmente, foi elevado ao nível constitucional
pela Suprema Corte.
Nesse contexo, pode-se notar que há um paralelo entre o desenvolvimento
do privacy e dos direitos da personalidade. É que para problemas muito semelhantes,
surgidos no decorrer do século XX e início do século XXI, foram apresentadas pelos dois
sistemas soluções muitas vezes bastante parecidas, não obstante a diversidade da
fundamentação.
Todavia, é certo que os norte-americanos levam o individualismo ao
extremo, bem como possuem uma mentalidade pouco solidária, o que, somado ao raciocínio
da common law sustentado pela técnica de solução de casos pelos precedentes,83 acaba por
deixar claro que é bastante complicada qualquer aproximação teórica entre o right of privacy
e os direitos da personalidade. A isso deve ser acrescido o fato de que há uma grande
81
Ibidem, p. 100.
FESTAS, David de Oliveira, op. cit., p. 166.
83
ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Civil: Teoria Geral. Vol. 1. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 60.
82
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dificuldade de se estabelecer uma definição adequada entorno do privacy, havendo
diferentes formas de se ver o instituto.84
Realmente, esses institutos apresentam origem, natureza jurídica,
abrangência, fundamentação e limites bastante diversos. Todavia, considerando a similude
dos problemas enfrentados pelos países da civil law e da common law, não nos parece
despropositada a constante análise do direito dos Estados Unidos, que sempre poderá
contribuir com soluções criativas para a inovação da civil law.
Por fim, no que toca especificamente ao direito à imagem, vale lembrar
que o sistema jurídico dos Estados Unidos é bastante particular, uma vez que reconhece dois
direitos distintos para a sua proteção, conforme o atentado diga respeito a um aspecto da
vida privada ou à utilização comercial da imagem. Assim, tal solução apresenta o
inconveniente da dificuldade de delimitação do conceito e das fronteiras entre o privacy e o
publicity, o que, a nosso ver, não aconselha sua adoção no direito pátrio.
11. Considerações finais
Reputamos ser sempre interessante o conhecimento de outros sistemas
jurídicos, tanto que nos propusemos a estudar o privacy, no entanto, a mera transposição de
institutos da common law para a seara dos direitos da personalidade, sem um aprofundado
exame da matéria, em especial no que toca à tutela da imagem, não parece apresentar grandes
vantagens. Ao contrário, tal tentativa pode representar uma ameaça aos direitos da
personalidade, cuja proteção já conta com legislação, doutrina e jurisprudência bastante
sólidas nos países de tradição romano-germânica.
Portanto, consideramos ser sempre necessária muita cautela ao se tentar
uma aproxição do privacy aos direitos da personalidade, pelo que vemos com certa restrição
a conduta daqueles estudiosos, entusiastas do Direito dos Estados Unidos, que procuram,
sem maiores cuidados, a transposição para o direito continental de institutos da common law.
Recebido em 23/01/2015
1º parecer em 24/02/2015
2º parecer em 24/02/2015
84
SOMA, John T., op. cit., p. 16.
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USUCAPIÃO FAMILIAR: QUEM NOS SALVA DA BONDADE DOS BONS?
Family’s Adverse Possession: who save us from good’s goodness?
Ricardo Lucas Calderon
Mestre em Direito Civil pela Universidade Federal do Paraná-UFPR.
Pós-graduado em Teoria Geral do Direito e em Direito Processual Civil.
Professor dos cursos de pós-graduação da Fundação Getúlio Vargas – FGV/ISAE e da
Universidade Positivo.
Coordenador da especialização em Direito das Famílias e Sucessões da Academia
Brasileira de Direito Constitucional. Professor dos cursos de Graduação da UNIBRASIL. Pesquisador do
grupo de estudos e pesquisas de Direito Civil “Virada de Copérnico”, vinculado ao PPGD-UFPR. Membro
do Instituto Brasileiro de Direito Civil. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família-IBDFam.
Membro do Instituto dos Advogados do Paraná. Membro da Comissão de Educação Jurídica da OAB/PR.
Advogado em Curitiba.
Michele Mayumi Iwasaki
Mestre em Direito Civil pela Universidade Federal do Paraná-UFPR.
Pós-graduada em Sociologia Política-UFPR. Pesquisadora do grupo de estudos e
pesquisas de Direito Civil “Virada de Copérnico”, vinculado ao PPGD-UFPR. Advogada em Curitiba.
Resumo: Em 2011 foi introduzida no Brasil a denominada usucapião familiar (art. 1.240-A
do Código Civil). O texto legal dispõe que o ex-cônjuge ou ex-companheiro poderá adquirir
a propriedade total do imóvel objeto do lar conjugal, desde que demonstrada posse superior
a dois anos ininterruptos, agregada ao abandono do lar pelo outro consorte. Nesse trabalho,
parte-se da premissa que esse instituto pretende, em última ratio, tutelar a família e o direito
à moradia, o que lhe garantiria guarida constitucional. A partir disso, procura contribuir na
apuração do seu significado hodierno, que deve resultar de uma interpretação sistemática
que leve a sua escorreita tradução. Nesse mister, importa imprimir uma hermenêutica críticoconstrutiva que permita extrair um sentido do instituto que reverbere, muito mais do que
apenas a sua estrutura, a sua função naquelas dadas situações fáticas.
Palavras-chave: Usucapião familiar; Família; Propriedade; Abandono; Moradia.
Abstract: In 2011 a new form of acquisition of property was introduced in Brazilian law:
the family adverse possession (Civil Code’s article 1.240-A). The legal text determines that
the ex-spouse or ex-partner may acquire the total property to the real estate of the conjugal
home as long as he/she proves possession of more than two years without interruption and
the abandonment of the home by the other consort. In this paper we part from the premise
that this institute seeks, ratio ultima, to support the family and the fundamental right to
housing, which guarantees a certain level of constitutional protection. Aside from this, it
seeks to contribute to the comprehension of its hodiernal meaning, which should result a
systematic interpretation that leads to its more perfect translation. In this manner it is
important to make use of critical-constructive hermeneutics, which allow for the extraction
of the institute that resounds much further than the structure, to its function in those factual
situations.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015
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Keywords: Family adverse possession; Family; Property; Abandonment; Housing.
Sumário: Introdução – 1. Constitucionalidade do dispositivo – 2. Requisitos legais e
questões controversas da usucapião familiar – 3. O sentido funcionalizado da expressão
abandono do lar – 4. Considerações Finais.
Introdução
A celeridade das mutações fáticas do líquido cenário contemporâneo acaba
por apresentar novas questões ao Direito, não raro com complexos e intricados fatores
envolvidos.1 O afã de procurar respostas imediatas para alguns destes intrigantes litígios do
presente acaba, muitas vezes, por levar a uma precipitação que nem sempre é recomendável
aos juristas.
É o que se percebe na introdução no direito brasileiro da denominada
usucapião familiar,2 novel modalidade aquisitiva da propriedade que decorre do abandono
do lar por um dos cônjuges ou companheiros, agregado a outros requisitos descritos na regra
que o instaurou. Tal usucapião extraordinária urbana foi regulada pela incorporação do art.
1.240-A no Código Civil,3 criando um instituto sem qualquer prévia discussão doutrinária
ou jurisprudencial a respeito.
Em um primeiro momento, pode-se vislumbrar uma provável boa intenção
do legislador ao procurar tutelar um problema social muitas vezes reiterado: o imbróglio
resultante de um fim conflituoso de uma relação de conjugalidade4 sem a resolução das
“Num mundo em que as coisas deliberadamente instáveis são a matéria-prima das identidades, que são
necessariamente instáveis, é preciso estar constantemente em alerta; mas acima de tudo é preciso manter a
própria flexibilidade e velocidade de reajuste em relação aos padrões cambiantes do mundo ‘lá fora’.”
(BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. p. 100).
2
Também denominada usucapião conjugal, usucapião por abandono afetivo, ou, ainda, usucapião
extraordinária por abandono do lar. Parece que a definição mais adequada é efetivamente usucapião familiar.
3
“Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com
exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade
divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua
família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou
rural. (Incluído pela Lei nº 12.424, de 2011). § 1o O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo
possuidor mais de uma vez.§ 2o (VETADO).” (Incluído pela Lei nº 12.424, de 2011, que alterou a Lei 11
977/2009 – reguladora do programa federal Minha Casa, Minha Vida).
4
Utiliza-se neste trabalho da expressão conjugalidade como significante que engloba tanto as relações
consagradas pelo matrimônio como as relações mantidas sob a forma de união estável.
1
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questões patrimoniais relativas ao imóvel que serve de moradia para os integrantes daquele
núcleo familiar. Isso porque, com a separação de fato, usualmente um dos membros do casal
permanece no lar conjugal (muitas vezes a mulher com filhos) enquanto o outro dali se retira
(nestes casos, o homem). E o posterior pleito de partilha do bem pelo cônjuge ou convivente
que se afastou pode, em muitos casos, trazer dificuldades de moradia e subsistência para
aqueles que restaram no imóvel, implicando em problemas de diversas ordens.
É possível que o legislador tenha tentado tutelar situações fáticas como
essas, amparando o consorte abandonado que permaneceu no imóvel (a mulher com a prole,
na imagem que foi retratada como corriqueira nos debates legislativos sobre o tema) e que
então necessitaria do bem para sua moradia.5 Observa-se, assim, primeiramente, uma certa
preocupação em tutelar a família abandonada e garantir o seu direito de moradia, o que pode
parecer justificável.
Contudo, em que pese uma provável boa intenção na origem da inclusão
desta nova modalidade da usucapião familiar, calha aqui o célebre questionamento de
Agostinho Ramalho Marques Neto: quem nos salva da bondade dos bons?6 Isso porque, a
regulação posta com o referido dispositivo legal não é muito clara nas expressões que elegeu
para retratá-lo. Diversas inconsistências técnicas são observadas e, quiçá, não proteja nem
mesmo o bem jurídico que pretendeu (proteção da família e do direito à moradia), de modo
que a norma resultante da leitura desse dispositivo pode levar a algumas situações não
previstas e certamente não desejadas nem mesmo por quem a aprovou. A precipitação e a
generalização praticada com a imposição da usucapião familiar exige um esforço
hermenêutico dos civilistas, com o objetivo de evitar um inadmissível retrocesso e permitir
uma significação jurídica alinhada ao estágio atual da nossa literatura jurídica e da nossa
jurisprudência.7
5
Ao comentar o trâmite do projeto de lei nas casas legislativas do Congresso, Ricardo Aronne assevera:
“Dentro das comissões, no debate das propostas ao Minha Casa Vida, um dos pontos em que os iluminados
legisladores do planalto se detiveram, foi que não raro os casais constituintes das famílias simples da planície,
para os quais o programa se dirige, tinham sua união dissolvida. Que em razão disso, a mulher, normalmente,
era abandonada e ficava vulnerável; enquanto o homem depois, ao divórcio, separação ou dissolução, viria a
postular a sua meação. E mais, que esse era mais um problema que atribulava o Judiciário, sendo desejável um
mecanismo que lograsse aliviar-lhe tal peso.” ARONNE, Ricardo. A usucapião por abandono familiar e o
cinismo: ligeiro ensaio cínico de longo título sobre o que não é, mesmo que digam ser o que jamais será. p. 4.
Artigo atualmente no prelo.
6
MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. O Poder Judiciário na Perspectiva da Sociedade Democrática: O
Juiz Cidadão. In: Revista ANAMATRA. São Paulo, n. 21, p. 30-50, 1994: “Uma vez perguntei: quem nos
protege da bondade dos bons? Do ponto de vista do cidadão comum, nada nos garante, ‘a priori’, que nas mãos
do Juiz estamos em boas mãos, mesmo que essas mãos sejam boas. (...)”.
7
Como se perceberá a seguir, não são poucos os questionamentos apresentados a referida usucapião, muitos
deles contundentes. Ademais, a literatura jurídica e o conjunto de decisões dos nossos tribunais consolidaram
conquistas que não podem ser renunciadas pelos civilistas.
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O intuito do presente artigo é contribuir com a apuração do sentido civilconstitucional desse dispositivo, adequado a este momento do direito privado, averiguando
qual sua função no nosso ordenamento jurídico, sempre com especial atenção para os
princípios constitucionais incidentes na hipótese, com observância da funcionalização do
direito das coisas e sem descurar da estatura do pulsante direito de família brasileiro
hodierno.
Anteriormente à análise dos aspectos jurídicos envolvidos na temática,
importa anotar ao menos uma percepção prévia que salta aos olhos ao apreciar o texto legal
da usucapião familiar: os sociólogos afirmam que, dentre as principais características dos
relacionamentos afetivos atuais, estão a flexibilidade e a efemeridade, as quais levaram
Zygmunt Bauman a denominar o período como a era do amor líquido.8 Para Gilles
Lipovestky “tão flexíveis são as características da família pós-moralista hodierna, que já é
possível fazer a montagem ou desmontagem da mesma segundo a preferência de cada um”.9
Não deixa de ser sintomático que, justamente no momento de maior
liberdade e permissividade para dissoluções e recombinações dos relacionamentos afetivos,
entre em voga uma reiterada busca jurídica por uma ‘tutela do abandono’. Prova disso é que
um dos temas mais discutidos no direito de família atualmente é o abandono afetivo.10
Paralelamente, segue o abandono elencado no Código Civil como uma das hipóteses de
impossibilidade da comunhão de vida conjugal11 e, agora, com repercussão também no
direito das coisas, de forma até mesmo surpreendente, nota-se que um aspecto relevante da
locução que instituiu a usucapião familiar está na expressão abandono do lar.12 Essa
“Pode-se supor (mas será uma suposição fundamentada) que em nossa época cresce rapidamente o número
de pessoas que tendem a chamar de amor mais de uma de suas experiências de vida, que não garantiriam que
o amor que atualmente vivenciam é o último, que têm expectativa de viver outras experiências como essa no
futuro. Não devemos nos surpreender se essa suposição se mostrar correta. Afinal, a definição romântica do
amor como ‘até que a morte nos separe’ está decididamente fora de moda, tendo deixado para trás seu tempo
de vida útil em função da radical alteração das estruturas de parentesco às quais costumavam servir e de onde
extraía seu vigor e sua valorização.” (BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido: Sobre a Fragilidade dos Laços
Humanos. Op. cit., p. 19).
9
LIPOVETSKY, Gilles. A Sociedade Pós-Moralista: o crepúsculo do dever e a ética indolor dos novos tempos
democráticos. Trad. Armando Braio Ara. Barueri: Manole, 2005. p. 139.
10
CALDERON, Ricardo Lucas. Abandono Afetivo: reflexões a partir do entendimento do Superior Tribunal
de Justiça. IN: RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. et all (orgs.) A ressignificação da função dos institutos
fundamentais do Direito Civil contemporâneo e suas consequências. Florianópolis: Conceito Editorial, 2014.
(p. 545-564)
11
O Código Civil de 2002 também refere ao abandono nos relacionamentos familiares no seu art. 1.573, IV:
“Art. 1.573. Podem caracterizar a impossibilidade da comunhão de vida a ocorrência de algum dos seguintes
motivos: (.;..) IV - abandono voluntário do lar conjugal, durante um ano contínuo.”
12
Cujo sentido não é descrito pela regra, o que pode levar (e já tem levado) a questionamentos quanto ao seu
significado atual.
8
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centralidade que pretende ser conferida às consequências jurídicas das situações fáticas
decorrentes do abandono é merecedora de percepção e reflexão.
Para além disso, o histórico do direito brasileiro exige que o significante
abandono do lar mereça especial atenção dos juristas na extração do seu significado atual,
visto não ser indicado, neste momento, retomar o sentido que a denominação já teve
outrora.13 A partir desta percepção, um dos pontos centrais da análise ora proposta se
debruçará na tradução atual para o termo abandono do lar previsto na regra da usucapião
conjugal, pois esse parece ser um dos pontos nevrálgicos do tema em comento. Outro aspecto
que será tratado diz respeito à necessária imbricação que o direito à moradia deverá ter no
momento da concretização do referido instituto.
Para melhor clareza do que se propõe, dividiu-se a análise em quatro
pontos: o primeiro discorrerá sobre a constitucionalidade do dispositivo; o segundo sobre os
aspectos centrais desta modalidade aquisitiva; o terceiro sustentará o sentido que deve ser
conferido a expressão abandono do lar com a necessária tutela da família; e, por derradeiro,
considerações finais são apresentadas com destaque no perfil funcional que deve ser
conferido à usucapião familiar.
1. Constitucionalidade do dispositivo
O processo legislativo de aprovação da Lei 12.424 de 2011 (que introduziu
o art. 1.240-A no Código Civil) está repleto de peculiaridades que, para alguns autores,
maculariam o dispositivo de insanável inconstitucionalidade, a qual sustentam ser também
13
Isto porque, durante grande parte do século passado o abandono do lar como descumprimento dos deveres
do casamento acabou por servir de embasamento para situações de repressão e até mesmo dominação da
mulher, com um viés totalmente equivocado, incompatível com a igualdade de gêneros garantida pela atual
Constituição: “No regime originário do Código Civil de 1916 o desquite litigioso deveria caber em uma das
causas especificadas no art. 317: ‘ adultério, tentativa de morte, sevícias ou injúria grave, abandono
voluntário do lar por mais de dois anos’. A jurisprudência do passado procurou alargar esse aparente numerus
clausus, entendendo que o abandono do lar por menos de dois anos poderia constituir injúria grave,
expandindo o conceito de injúria.” VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil – Direito de Família. 14 ed. v.6.
São Paulo: Atlas, 2014. p. 197. Quem aponta a direção a ser seguida neste particular é Ana Carla Harmatiuk
Matos: “Desta maneira, objetivamos não reproduzir uma dogmática ultrapassada, comprometida com ideais
dominantes de uma classe social, artificial, excludente, discriminatória à condição feminina, a qual não
abrange as diferentes espécies de relações familiares. Tal modelo foi erigido em um determinado momento
histórico, entretanto, os valores atuais estão a exigir novas estruturas jurídicas de respostas.” MATOS, Ana
Carla Harmatiuk. As famílias não fundadas no casamento e a condição feminina. Rio de Janeiro: Renovar,
2000. p.164.
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de ordem material, por tratar equivocadamente como usucapião uma situação que afronta
aspectos basilares desta modalidade aquisitiva.14
No âmbito formal, a referida lei teve como ponto de partida uma Medida
Provisória que atualizava as regras do programa do governo federal Minha Casa Minha
Vida,15 que originariamente nada falava sobre a nova modalidade de usucapião. No decorrer
do debate desta Medida Provisória nas comissões do Congresso Nacional, foi suscitada a
possibilidade de introdução desta usucapião familiar, o que acabou prevalecendo no projeto
final que foi aprovado. Entretanto, não houve discussão no plenário sobre tal novel
usucapião, que não constou nem mesmo da exposição de motivos do referido projeto de lei.
Por tudo isso, há quem alegue “que o próprio processo legislativo resta contaminado”.16
Essas inconsistências formais do atabalhoado processo de aprovação da lei
que implantou o art. 1.240-A no Código Civil podem, efetivamente, maculá-lo por completo,
visto que são relevantes os questionamentos apresentados (o que não se ignora). Apesar
disso, até este momento nenhuma medida que o retire do ordenamento (ou suspenda sua
eficácia) foi proferida, de modo que segue em vigência e, ainda, vem sendo aplicado
reiteradamente pelos nossos tribunais. Apesar da possibilidade até mesmo de uma declaração
incidental de inconstitucionalidade no julgamento dos casos concretos, fato é que até este
momento a majoritária corrente doutrinária e jurisprudencial aponta no sentido de sua
validade e constitucionalidade, o que tem feito avançar o debate relativo ao seu conteúdo
material e a forma da sua concretização.
A partir da premissa de que a Constituição é a bússola que deve orientar a
interpretação do Código Civil (e não o contrário) entende-se possível extrair um sentido da
usucapião familiar que seja adequado ao texto constitucional.17 Diante disso, com esta
observação prévia, sem deixar de anotar a pertinência de muitas das objeções formais que
14
Por todos, as contundentes observações de: ARONNE, Ricardo. A usucapião por abandono familiar e o
cinismo: ligeiro ensaio cínico de longo título sobre o que não é, mesmo que digam ser o que jamais será. p. 4.
Artigo atualmente no prelo.
15
Medida Provisória 514 de 2010.
16
Ob. Cit. p. 5.
17
“É verdade que a boa hermenêutica deve impedir retrocessos, na medida em que a Constituição Federal é
que deve conformar a disciplina do Código Civil. Nunca o contrário. Não é menos verdade, todavia, que em
um campo no qual o político e o jurídico encontram-se tão próximos, o texto do Novo Código referencia um
posicionamento teórico diverso daquele conquistado a partir da paulatina construção doutrinária e
jurisprudencial consolidada.” LEONARDO, Rodrigo Xavier. A função social da propriedade: em busca de
uma contextualização entre a Constituição Federal e o Novo Código Civil. IN: Revista da Faculdade de Direito
de São Bernardo do Campo. A. 8. N. 10. São Paulo, 2004. (p. 271-287). p. 285-286.
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lhe são postas, passa-se a análise das questões materiais do dispositivo, pois é este o objetivo
central do presente trabalho.
Ao lado do aspecto formal, como antes mencionado, alguns autores
questionam também uma suposta inconstitucionalidade material da usucapião familiar,
entendendo haver afronta injustificada a segurança jurídica e o direito de propriedade, por
não demonstrar uma função social compatível com a expropriação pretendida e, ainda, não
atentar para as atuais diretrizes constitucionais sobre direito de família.18
Nesse particular, não parecem se sustentar os argumentos dos defensores
da inconstitucionalidade material, pois é possível encontrar guarida constitucional para uma
adequada interpretação desse instituto, sem embargo dos diversos equívocos terminológicos
que ele apresenta. Em outras palavras, pode-se identificar uma leitura do dispositivo
adequada aos princípios e valores constitucionais incidentes na hipótese, o que faria reluzir
sua constitucionalidade.
O princípio basilar da nossa Constituição é o da dignidade da pessoa
humana,19 que aponta no sentido de proteção desta esfera dos particulares com a maior
efetividade possível. A escorreita atenção ao princípio não abarca apenas a proteção contra
tratamentos degradantes ou desumanos, mas se circunscreve em um invólucro que pode
assumir inclusive relevos patrimoniais.20 Uma especial proteção da dignidade daqueles
integrantes do núcleo familiar que restaram desamparados e necessitam do uso do imóvel
para sua subsistência pode dar suporte a constitucionalidade da modalidade aquisitiva ora
apreciada.21
“Nessa linha, não se descarta a inconstitucionalidade do novel artigo 1240-A.” DONIZETTI, Elpídio.
Usucapião do lar serve de consolo para o abandonado. Artigo publicado na Revista Consultor Jurídico de 20
de setembro de 2011. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2011-set-20/consolo-abandonadousucapiao-lar-desfeito>. Acesso em 02 de agosto de 2014.
19
Art. 1º da CF/88. Sobre o tema: MORAES, Maria Celina Bodin de. O conceito de dignidade humana:
substrato axiológico e conteúdo normativo. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, Direitos
Fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 116
20
“[...] o princípio constitucional visa a garantir o respeito e a proteção da dignidade humana não apenas no
sentido de assegurar um tratamento humano e não degradante, e tampouco conduz ao mero oferecimento de
integridades físicas ao ser humano. [...] Neste ambiente, de um renovado humanismo, a vulnerabilidade
humana será tutelada, prioritariamente, onde quer que ela se manifeste. De modo que terão precedência os
direitos e as prerrogativas de determinados grupos considerados, de uma maneira ou de outra, frágeis e que
estão a exigir, por conseguinte, a especial proteção da lei.” (MORAES, Maria Celina Bodin de. O conceito de
dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo normativo. Op. cit., p. 116)
21
“A proteção jurídica à dignidade da pessoa humana, valor fundamental do ordenamento brasileiro, abrange,
como se sabe, a tutela dos múltiplos aspectos existenciais da pessoa: nome, imagem, privacidade etc. Inclui
também a garantia dos meios materiais razoavelmente necessários – em não apenas mínimos – para o pleno
desenvolvimento da personalidade humana. Tal garantia decorre logicamente da própria tutela da dignidade
humana, que se converteria em fórmula vazia não fosse dever do Estado, das instituições e da sociedade civil
assegurar os meios necessários ao pleno exercício desta dignidade.” SCHREIBER, Anderson. Direito à
18
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Outro princípio que assume densidade na análise da constitucionalidade
da usucapião familiar é o da solidariedade,22 também previsto expressamente pela
Constituição de 1988.23 A diretriz que impele a um tratamento solidário assume especial
destaque quando do trato de conflitos entre cônjuges ou conviventes, podendo inclusive
resultar em obrigações específicas decorrentes de tais relações de conjugalidade, com
extensão até mesmo para após o término do relacionamento (como o exemplo da obrigação
alimentar). Assim, a destinação da propriedade do imóvel apenas a apenas um dos
integrantes da respectiva relação pode se justificar em um espectro de prevalência do
princípio da solidariedade, no sentido concreto de que o patrimônio de um dos consortes
acolha, naquele momento, o outro.
O direito à moradia24 também pode contribuir para uma densificação
constitucional da usucapião familiar, desde que sua materialização vise tutelar essa premente
questão habitacional. Na perspectiva do direito italiano Pietro Perlingieri assevera que:
A inegável relevância jurídica do interesse à moradia permitiu à Corte
Constitucional argumentar a existência de um ‘direito à moradia’, a ser
elencado ‘entre os requisitos essenciais que caracterizam a socialidade a
que se conforma o Estado democrático descrito na Constituição’ e a ser
qualificado como ‘fundamental direito social voltado para contribuir para
que a vida de cada pessoa reflita a cada dia e sob qualquer aspecto, a
imagem universal da dignidade humana’.25
A Constituição Federal brasileira possui expresso dispositivo que aponta
na proteção do direito à moradia, art. 6º, devidamente incluído no rol dos direitos sociais,
com aplicação direta e imediata, de modo que “fazem-se necessários novos instrumentos
moradia como fundamento para impenhorabilidade do imóvel residencial do devedor solteiro. IN: RAMOS,
Carmem Lucia Silveira. et. al. (org.) Diálogos sobre direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 84.
22
Art. 3º da CF/88.
23
LÔBO, Paulo Luiz Netto. O princípio constitucional da solidariedade nas relações de família. In:
CONRADO, Marcelo (Org.). Direito Privado e Constituição: ensaios para uma recomposição valorativa da
pessoa e do patrimônio. Curitiba: Juruá, 2009. p. 327.
24
Art. 6º da CF/88. Sobre o tema: “A moradia como direito, formalizado em texto normativo, somente aparece
em 2000, com a inclusão realizada via Emenda Constitucional 26, no art. 6º. O que significa dizer desde logo
que, assim como o direito não acompanhou a idéia da questão social e da política pública, a moradia também
não figurou no rol das ‘novas’ regulações fundamentais e sociais estabelecidas inicialmente no período da
redemocratização.” PONTES, Daniele Regina. Direito à Moradia: entre o tempo e o espaço das apropriações.
Curitiba: Juruá, 2014. p. 129-130
25
PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Trad. Maria Cristina de Cicco. Rio de
Janeiro: Renovar, 2008. p. 888. Em nota de rodapé.
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jurídicos destinados a garantir a efetiva tutela do direito à moradia”. 26 Nesse contexto, é
possível vislumbrar uma áurea de constitucionalidade desta nova modalidade de usucapião
caso sua interpretação priorize a consagração do constitucional direito à moradia.27
Os questionamentos quanto a eventual desrespeito ao direito de
propriedade e à segurança jurídica podem ser respondidos com a observância da sua
funcionalização, que também é reverenciada constitucionalmente. Norberto Bobbio
preconiza que o direito deve atentar para além da estrutura dos institutos jurídicos, dedicando
especial relevo para a sua função.28 O movimento de repersonalização do direito civil
também conferiu uma nova coloração a muitos destes conceitos.29
A função social é elemento estrutural da propriedade, obriga o proprietário
e deve restar atendida no caso concreto, sob pena até mesmo de fulminar a titularidade desse
direito na sua esfera jurídica.30 Conforme afirma Eroulths Cortiano Junior, a adequada
função social da propriedade aponta na melhor utilização do bem no específico caso concreto
26
SCHREIBER, Anderson. Direito à moradia como fundamento para impenhorabilidade do imóvel residencial
do devedor solteiro. IN: RAMOS, Carmem Lucia Silveira. et. al. (org.) Diálogos sobre direito civil. Rio de
Janeiro: Renovar, 2002. p.85.
27
Nessa perspectiva a posição de Nelson Nery Junior, para quem o sentido finalístico da usucapião familiar
deve estar atrelado ao direito à moradia: “É mecanismo de incentivo à aquisição de imóveis urbanos para
famílias com pequena renda mensal, bem como visa proteger aquele que rompeu união estável ou sociedade
conjugal, mais que ainda reside no imóvel, dividindo-o com o ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou
o lar. (...) O elemento finalísitico da utilização do imóvel como sua moradia própria, individual, ou de sua
família, deve estar presente para que possa ser declarado proprietário pela usucapião.” NERY JUNIOR,
Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. 10 ed. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2013. p. 1162.
28
“Sem fazer concessões a rótulos, sempre perigosos por mais úteis que sejam, acredito ser possível afirmar
com certa tranqüilidade que, no seu desenvolvimento posterior à guinada kelseniana, a teoria do direito tenha
obedecido muito mais a sugestões estruturalistas do que funcionalistas. Em poucas palavras, aqueles que se
dedicaram à teoria do direito se preocuparam muito mais em saber ‘como o direito é feito’ do que ‘para que o
direito serve’. A conseqüência disso foi que a análise estrutural foi levada muito mais a fundo do que a análise
funcional.” (BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Barueri: Manole,
2007. p. 53-54.
29
“Neste sentido se julga oportuna a «repersonalização» do direito civil – seja qual for o invólucro em que esse
direito se contenha –, isto é, a acentuação da sua raiz antropocêntrica, da sua ligação visceral com a pessoa e
os seus direitos.” (CARVALHO, Orlando de. A Teoria Geral da Relação Jurídica. 2. ed. Coimbra: Centelha,
1982. p. 90)
30
“Diante de tais reflexões críticas, construiu-se o entendimento de que a função social da propriedade consiste
em elemento interno do direito de propriedade, aspecto funcional que integra o conteúdo do direito, ao lado do
aspecto estrutural. A partir daí, transforma-se a concepção segundo a qual o proprietário deteria amplos
poderes, limitados apenas externa e negativamente, na medida em que o legislador imponha confins para o
regular exercício dos direitos. Diversamente, os poderes concedidos ao proprietário adquirem legitimidade na
medida em que o exercício concreto da propriedade adquire legitimidade na medida em que o exercício
concreto da propriedade desempenhe função merecedora de tutela, tendo em conta os centros de interesse extraproprietários alcançados pelo exercício do domínio, a serem preservados e promovidos na relação jurídica da
propriedade, como expressão de sua função social.” TEPEDINO, Gustavo. A Função Social da Propriedade e
o Meio Ambiente. IN: Temas de Direito Civil. v. III. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 187.
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Na apreciação da função social da propriedade, o operador do Direito tem
de atentar para a concretude da situação proprietária, levando em conta a
posição ocupada pelo sujeito proprietário – na sua vida de relações e na sua
relação com o bem apropriado -, as características do bem sobre o qual
incide a propriedade e a forma do exercício dos poderes proprietários. A
função social da propriedade remete, sempre, a uma visão concreta das
relações em que incide o fenômeno proprietário, cujo balizamento será
feito a partir da normativa, mas cujo objetivo é garantir a melhor utilização
social da propriedade. Aqui se dá a ruptura do modelo proprietário.31
Nesta perspectiva, mostra-se viável sustentar a constitucionalidade da
usucapião familiar como instrumento que vise proteger a mais adequada utilização concreta
do imóvel, o que retrataria o atendimento escorreito da sua função social, apontando,
inequivocamente, para a prevalência do direito à moradia como acesso ao direito de
propriedade32.
No campo das titularidades é inequívoco que nossa Constituição Federal
assegura o direito a um mínimo existencial,33 o que pode vir a justificar a aquisição da
propriedade na forma do art. 1.240-A do Código Civil.34 Exemplificativamente: na hipótese
de um dos consortes necessitar do imóvel para sua moradia, como condição vital para sua
mantença e de seus familiares, viável a sua proteção também em observância do direito ao
mínimo existencial.
Ainda sob a ótica constitucional, percebe-se uma especial tutela da família,
ao ser descrita como base da sociedade e merecedora de especial proteção do Estado (art.
226), de maneira que latente a constitucionalidade dos institutos que pretendam efetivar essa
proteção.35 Na esteira disso, uma leitura da usucapião familiar que objetive proteger a esfera
31
CORTIANO JUNIOR, Eroulths. O Discurso Jurídico da Propriedade e suas rupturas. Rio de Janeiro:
Renovar, 2002. p. 146-147.
32
“O direito à moradia, como direito ao acesso à propriedade da moradia, é um dos instrumentos, mas não o
único, para realizar a fruição e a utilização da coisa.” PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade
constitucional. Op. Cit. p. 888.
33
“Há um direito às condições mínimas de existência humana digna que não pode ser objeto de intervenção do
Estado e que ainda exige prestações estatais positivas”. TORRES, Ricardo Lobo. O direito ao mínimo
existencial. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p.8.
34
“A guarida a essa esfera patrimonial básica acentua a consideração de valores que denotam interesses sociais
incidentes sobre as titularidades. Tais valores recaem, ainda que de modo diverso, sobre a posse a propriedade.”
FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo. 2 ed. atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p.
285.
35
“Em verdade a grande reviravolta surgida no Direito de Família com o advento da Constituição Federal foi
a defesa intransigente dos componentes que formulam a inata estrutura humana, passando a prevalecer o
respeito à personalização do homem e de sua família, preocupado o Estado Democrático de Direito com a
defesa de cada um dos cidadãos. E a família passou a servir como espaço e instrumento de proteção à dignidade
da pessoa, de tal sorte que todas as esparsas disposições pertinentes ao Direito de Família devem ser focadas
sob a luz do Direito Constitucional.” MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. 4. ed., rev. atual. amp.
Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 42.
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37
patrimonial da família se afigura claramente constitucional, visto que também no direito
brasileiro “o direito à moradia é da pessoa e da família; isso tem consequências notáveis no
plano das relações civilísticas”.36 Há sólida corrente doutrinária nesse sentido. Luiz Edson
Fachin é um dos defensores da constitucionalidade do art. 1.240-A do Código Civil
Apreende-se que o novo dispositivo legal encartado ao Código Civil é
adequado aos vetores que esteiam o ordenamento jurídico brasileiro, sendo
possível o acolhimento sistemático ao art. 1240-A em leitura orientada
pelas determinantes principiológico-constitucionais.37
A partir das considerações acima, afigura-se possível sustentar a
constitucionalidade de uma leitura da usucapião familiar ao afiná-la com tais pressupostos
constitucionais, que devem, inexoravelmente, reverberar na definição das balizas de
aplicação de referido instituto.
2. Requisitos legais e questões controversas da usucapião familiar
Inegável que faltou ao legislador uma precisão terminológica para a
definição do instituto da usucapião familiar, o que já vem sendo observado por parte da
doutrina e alguns precedentes nos tribunais.38
Nesse contexto, na apuração do sentido do instituto não se pode perder de
vista a essência da necessária hermenêutica com a superação da simples subsunção conforme
apregoa Gustavo Tepedino
[...] se o ordenamento é unitário, moldado na tensão dialética da argamassa
única dos fatos e das normas, cada regra deve ser interpretada e aplicada a
um só tempo, refletindo o conjunto das normas em vigor. A norma do caso
concreto é definida pelas circunstâncias fáticas na qual incide, sendo
36
PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Trad. Maria Cristina de Cicco. Rio de
Janeiro: Renovar, 2008. p. 888.
37
FACHIN, Luiz Edson. A constitucionalidade da usucapião familiar do art. 1.240-A do Código Civil. In:
Revista
Carta
Forense,
de
2
de
outubro
de
2011.
Disponível
em:
<http://www.cartaforense.com.br/conteudo/artigos/a-constitucionalidade-da-usucapiao-familiar-do-artigo1240-a-do-codigo-civil-brasileiro/7733>. Acesso em: 02 de agosto de 2014.
38
No caso da usucapião familiar há dificuldade ainda maior devido ao curto lapso temporal entre a aprovação
da norma e a de vigência da lei que a criou. Além disso, há dificuldade de acesso a amostragem mais ampla de
julgados em vários de tribunais devido a tramitação em segredo de justiça nos processos de famílias (art. 155,
II, CPC). Essa pesquisa tem por base a pesquisa de jurisprudência no Supremo Tribunal Federal, Superior
Tribunal de Justiça e Tribunais de Justiça das unidades da federação de Alagoas, Rondônia, Mato Grosso do
Sul, Distrito Federal e Territórios, Minas Gerais, São Paulo, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná.
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38
extraída do conjunto normativo em que se constitui o ordenamento como
um todo.39
Com a vigência da Lei Federal 12.424 de 16.06.2011 foi incluído no
Código Civil o denominado instituto da “usucapião familiar” (art. 1.240-A, CC), pelo qual
se passa a admitir a exceção de hipótese de prescrição aquisitiva da posse entre ex-cônjuges
ou ex-companheiros (art. 197, I, CC).
Da letra fria da lei extrai-se tratar de instituto aplicável a imóvel urbano
com até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados), objeto de partilha de bens em que
uma das partes abandona o lar em detrimento do exercício da posse pela outra, que utiliza o
bem para sua moradia ou de sua família, sem que esta seja proprietário de outro imóvel,
urbano ou rural:
Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e
sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até
250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida
com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para
sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que
não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
A primeira controvérsia em torno do tema parece estar praticamente
superada e diz respeito ao marco temporal inicial da contagem do prazo da prescrição
aquisitiva pela incidência do instituto em razão da sua eficácia no tempo. Para delimitar a
prazo inicial da usucapião familiar prevalece o entendimento da sua ocorrência a partir da
vigência da Lei 12.424/2011, que visa assegurar a segurança jurídica das relações jurídicas
previamente estabelecidas.
Esse é o entendimento firmado por muitos tribunais e que vêm sendo
acompanhado em uma razoável quantidade de precedentes,40 assim como foi deliberado na
39
TEPEDINO, Gustavo. O ocaso da subsunção. Disponível em: <http://www.tepedino.adv.br/wp/wpcontent/uploads/2012/09/RTDC.Editorial.v.034.pdf>. Acesso em 28.07.2014.
40
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - USUCAPIÃO FAMILIAR - LEI 12.424/11 - VIGÊNCIA - PRINCÍPIO
DA SEGURANÇA JURÍDICA. O prazo de 02 anos da prescrição aquisitiva, exigido pela Lei nº 12.424/11,
deve ser contado a partir da sua vigência, por questões de segurança jurídica, vez que antes da edição da nova
forma de aquisição da propriedade não existia esta espécie de usucapião. (Apelação Cível 1.0177.11.0014343/001, Relator(a): Des.(a) Antônio de Pádua , 14ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 07/03/2013, publicação
da súmula em 19/03/2013). No mesmo sentido: TJ/MG Apelação Cível 1.0702.12.035148-2/001, Apelação
Cível 1.0702.11.079218-2/001, Apelação Cível 1.0598.11.002678-1/001; TJ/SP Apelação 001236017.2013.8.26.0032, Apelação 0707317-31.2012.8.26.0020, Apelação 0001253-55.2013.8.26.0426, Apelação
0040665-69.2011.8.26.0100, Apelação 0052438-14.2011.8.26.0100, Apelação 0023846-23.2012.8.26.0100;
TJ/RS Apelação Cível Nº 70050616598; TJ/PR Apelação Cível 3201-90.2011.8.16.0002, Apelação Cível
0007120-30.2011.8.16.0021).
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39
V Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal:41 “Enunciado 498 - A fluência
do prazo de 2 (dois) anos previsto pelo art. 1.240-A para a nova modalidade de usucapião
nele contemplada tem início com a entrada em vigor da Lei n. 12.424/2011”.
Assim, independentemente do exercício prévio da posse de forma
exclusiva por um dos cônjuges ou companheiro (a), segundo a decisão reiterada dos
tribunais, a data inicial a qual se aplica a usucapião familiar é 16.06.2011, quando passou a
vigorar o dispositivo em tela no Código Civil.
Outra questão que em princípio se evidenciava mais tortuosa na
caracterização do começo do prazo da prescrição aquisitiva está na definição da data
separação do casal, o que não implica, necessariamente, na existência de separação judicial,
medida cautelar de separação de corpos ou até mesmo do divórcio.
O texto legal faz referência a condição subjetiva de ser “ex-cônjuge ou
companheiro” e a ocorrência de “abandono do lar”. Na medida em que a coabitação
prescindível à constituição da entidade familiar, a data da separação fática do casal será o
marco para a contagem do período aquisitivo, sendo irrelevante o seu prévio reconhecimento
formal (seja pela via judicial ou por escritura pública).
Nessa linha é a interpretação dada pelo Enunciado 501 da V Jornada de
Direito Civil: “As expressões “ex-cônjuge” e “ex-companheiro”, contidas no art. 1.240-A
do Código Civil, correspondem à situação fática da separação, independentemente de
divórcio”42;43.
Nota-se a necessária adequação dos termos empregados na redação do art.
1.240-A, CC pela interpretação sistemática da concepção de ex-cônjuge ou companheiro,
tendo em vista a dignidade constitucional para a pluralidade de entidades familiares. Vide o
Enunciado 500 da V Jornada de Direito Civil: “A modalidade de usucapião prevista no art.
41
Jornadas de direito civil I, III, IV e V: enunciados aprovados / coordenador científico Ministro Ruy Rosado
de Aguiar Júnior. – Brasília: Conselho da Justiça Federal, Centro de Estudos Judiciários, 2012. In:
<http://www.cjf.jus.br/cjf/CEJ-Coedi/jornadas-cej/enunciados-aprovados-da-i-iii-iv-e-v-jornada-de-direitocivil/compilacaoenunciadosaprovados1-3-4jornadadircivilnum.pdf>. Acesso em: 28.07.2014.
42
Jornadas de direito civil I, III, IV e V. Op. cit.
43
No mesmo sentido julgou o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: Ementa: APELAÇÃO CÍVEL
Usucapião familiar, com fundamento no artigo 1.240-A do Código Civil Ação de extinção do feito, sem
resolução do mérito, afastada. O evento a quo para o início da contagem do prazo prescricional é a
separação de fato do casal, com o abandono do lar por um dos cônjuges. Ação em condições de ser julgada
(art. 515, § 5º, do CPC). Lapso temporal não verificado. Pedido improcedente. (Apelação 002384623.2012.8.26.0100, Relator(a): Des.(a) José Carlos Ferreira Alves, 2ª Câmara de Direito Privado, julgamento
em 03.12.2013) (grifo nosso)
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40
1.240-A do Código Civil pressupõe a propriedade comum do casal e compreende todas as
formas de família ou entidades familiares, inclusive homoafetivas”.44
Outro requisito legal da usucapião familiar que merece atenção é da “posse
direta” sobre o bem, que não se confunde com aquela definida no art. 1.197 do Código Civil:
“Enunciado 502 - O conceito de posse direta referido no art. 1.240-A do Código Civil não
coincide com a acepção empregada no art. 1.197 do mesmo Código”.45
Conforme leciona Pontes de Miranda, o conceito e natureza jurídica da
posse, por essência é suporte fático da relação inter-humana de poder exercido entre o
possuidor e o alter, ou seja, a comunidade. Não se trata de poder ou o seu exercício relativo
ao domínio ou à propriedade (usus, fructus, abusos). 46 Assim, a posse pertence ao mundo
dos fatos e pode ingressar no plano jurídico em razão de ato, negócio, ato-fato ou fato
jurídico puro. O exercício da posse, ainda que acrescida de algum direito, é do plano fático
e o que importa ao titular.47 Fundada na sua natureza fática, a teoria clássica da posse admite
distintas gradações e uma consequente pluralidade de sujeitos que variam do possuidor
imediato (posse direta) ao mediato (posse indireta), adotada pelo Código.
Assim, dispõe o texto legal que a usucapião familiar poderá ser concedida
àquele que exercer a posse direta por 02 (dois) anos ininterruptos, sem oposição e com
exclusividade. Nesse contexto, é preciso registrar que a finalidade do instituto não pode
restringir o direito a aquisição originária da propriedade àquele que permanece na posse
efetiva do lar conjugal, devendo ser contextualizada com as múltiplas vicissitudes que
motivam a saída de uma das partes.
Darcy Bessone há muito já sustentava a necessidade de uma releitura
contemporânea do instituto e do Direito das Coisas
Não estamos a refletir apenas a figura complexa da posse. Queremos saltar
para fora de um círculo tão estrito para vermos todo o descompasso entre
o Direito e a vida, especialmente no campo do Direito privado. Tem faltado
imaginação e criatividade aos cientistas do Direito. Não conseguem
vincular-se à evolução resultante das novas descobertas e inventos. De
ordinário, viram-se para trás, em lugar de volverem-se para frente.48
44
Jornadas de direito civil I, III, IV e V. Op. cit.
Jornadas de direito civil I, III, IV e V. Op. cit.
46
MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. Parte Especial, Tomo 10, Direito das Coisas: Posse.
Atualizado por Vilson Rodrigues Alves. 2ª ed. Campinas: Bookseller, 2001. p. 31.
47
MIRANDA. Ibid. p. 32-33.
48
BESSONE, Darcy. Da Posse. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 7.
45
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41
Por estar diretamente atrelada à proteção da família e à concretização da
dignidade da pessoa humana, há que se garantir uma “interpretação tecnicamente mais
branda do termo posse direta”49 para evitar situações concretas de injustiça. Por isso, em
alguns casos é possível a concessão da usucapião familiar até mesmo para o consorte que
não está na posse efetiva do bem.50
Uma sociedade desigual na qual persistem condições de desigualdade de
gênero e de altos índices de violência doméstica, não se pode limitar a conferir apenas a
aplicação do instituto àquele cônjuge ou companheiro que permaneceu fisicamente no
imóvel.
É necessária uma reinterpretação dos institutos do direito das coisas em
sintonia com o Direito de Família hodierno. Exemplo da insuficiência das teorias
possessórias clássicas51 para a correta aplicação da usucapião familiar pode ser verificada na
situação abaixo
DIREITO CIVIL. UNIÃO ESTÁVEL. IMÓVEL ADQUIRIDO
DURANTE PERÍODO DE CONVIVÊNCIA. PERDA DA MEAÇÃO
PELO COMPANHEIRO. ART. 1.240-A. APLICAÇÃO ANALÓGICA.
COMPANHEIRA VÍTIMA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E
FAMILIAR. INAPLICABILIDADE. PARTILHA NECESSÁRIA.
Segundo dispõe o art. 1.725 do Código Civil, reconhecida a união estável,
aplica-se o regime da comunhão parcial de bens. Não comprovado, na
hipótese, os requisitos para usucapião nos termos do art. 1.240-A, em
especial o abandono do lar e a posse sem oposição, inviável aplicação
analógica deste dispositivo à companheira anteriormente vítima de
violência doméstica e familiar a partir da interpretação dos justos objetivos
da Lei Maria da Penha, ainda mais quando já reparada financeiramente por
tal ocorrência (Acórdão n.690599, 20120310272384APC, Relator:
CARMELITA BRASIL, Revisor: WALDIR LEÔNCIO LOPES JÚNIOR,
2ª Turma Cível, Data de Julgamento: 03/07/2013, Publicado no DJE:
10/07/2013. Pág.: 122).
Não raro as vítimas de violência doméstica não representam seus
agressores por temer o agravamento do conflito familiar, e, com o intuito de proteger a si e
49
FACHIN, Luiz Edson; GONÇALVES, Marcos Alberto Rocha. 10 anos do Código Civil: o ser e o ter no
direito de família a partir da aquisição pela permanência na morada familiar. In: Direito civil constitucional e
outros estudos em homenagem ao Prof. Zeno Veloso. Coordenação Pastora do Socorro Teixeira Leal. Rio de
Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014. p. 646.
50
SIMÃO, José Fernando; TARTUCE, Flávio. Direito Civil. v. 4 . Direito das Coisas. São Paulo: Método,
2013. p. 172.
51
Em que pese a velocidade das enormes transformações sociais ocorridas no século passado e início deste, as
teorias objetiva e subjetiva de Ihering e Savigny, respectivamente, que datam do século XIX, permanecem
bastante fortes na codificação vigente.
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42
eventual prole, saem do lar conjugal. Assim, a interpretação acerca do requisito da posse
direta deve ser orientada para a finalidade de tutelar a entidade familiar e o conjunto de
direitos que compõe a sua esfera existencial mínima, não para coagi-la a permanecer onde
sequer a sua integridade física e moral é respeitada.52
Outro ponto controvertido sobre o tema diz respeito ao foro competente
para julgar as ações relativas à usucapião familiar. Como pertine tanto ao Direito das Coisas
como ao Direito de Família, atualmente discute-se qual o foro competente para o julgamento
dessas demandas: se o foro cível comum ou as varas especializadas de família.
Nessa questão vislumbra-se uma tendência dos tribunais a decidir pela
competência cível:
AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO DE DIVÓRCIO RECONVENÇÃO - USUCAPIÃO FAMILIAR - ART. 1240-A DO
CC/02 - COMPETÊNCIA PARA JULGAMENTO - DIREITO REAL COMPETÊNCIA DA VARA CÍVEL - DECISÃO MANTIDA. Na
usucapião familiar, prevista art. 1240-A do CC/02, a existência de
instituição familiar, seja o casamento ou a união estável, é apenas um dos
requisitos necessários para a sua constituição. A questão de fundo nela
contida refere-se a constituição de domínio sobre imóvel, constituindo-se,
portanto, ação de cunho patrimonial. Tendo em vista que a usucapião
familiar não se refere a estado de pessoas, mas sim a aquisição originária
de propriedade imobiliária, cujos efeitos poderão atingir terceiros, a
competência para seu julgamento é dos Juízes da Vara Cível, e não da Vara
de Família. (TJMG, Agravo de Instrumento Cv 1.0024.13.206443-7/001,
Relator(a): Des.(a) Afrânio Vilela, 2ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em
11/03/2014, publicação da súmula em 21/03/2014)53
Sendo a aquisição da propriedade uma consequência do abandono
familiar, questão que diz muito mais com o direito de família, a competência para o
processamento do pedido deve ser atribuída às varas de família.54
52
Nessa linha, José Fernando Simão e Flávio Tartuce sustentam que o abandono do lar não tem vinculação
necessária com a posse direta do imóvel: “Desse modo, o requisito do abandono do lar merece uma
interpretação objetiva e cautelosa. (...) Como incidência concreta desse enunciado doutrinário, não se pode
admitir a aplicação da nova usucapião nos casos de atos de violência praticados por cônjuge ou companheiro
para retirar o outro do lar conjugal. Em suma, a expulsão do cônjuge ou companheiro não pode ser comparada
ao abandono.” In: SIMÃO, José Fernando; TARTUCE, Flávio. DIREITO CIVIL. v. 4 . Direito das Coisas.
São Paulo: Método, 2013. p. 172.
53
No mesmo sentido TJ/SP Conflito de competência nº 0180277-60.2013.8.26.0000 e TJ/PR AGRAVO DE
INSTRUMENTO n.º 966031-5.
54
LIMA, Susana Borges Viegas de Lima. Usucapião familiar. In: Direito das famílias por juristas brasileiras.
Organizadoras Joyceane Bezerra de Menezes e Ana Carla Harmatiuk Matos. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 805821.
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Conforme se verá adiante, a usucapião familiar tem caráter principalmente
existencial, pois visa tutelar a família e o seu direito à moradia, de modo que sua análise é
matéria que deve restar sob a incumbência dos juízos de família.
3. O sentido funcionalizado da expressão abandono do lar
O dispositivo legal que introduziu a usucapião familiar traz como um dos
seus requisitos o ‘abandono do lar’, expressão consignada no texto do art. 1240-A do Código
Civil. Infeliz a escolha deste significante pelo legislador, como já exposto, pois a figura do
abandono do lar desempenhou outro papel no direito brasileiro recente, atualmente já
totalmente superado.
Como o instituto visa tutelar um aspecto patrimonial de uma relação
familiar, deve, necessariamente, corresponder ao momento atual do direito de família
brasileiro, sob pena de incorrer em inadmissível retrocesso. As alterações neste ramo do
direito foram tantas que alguns autores até preferem referir a um direito das famílias,55 no
plural, para bem demarcar esse multifacetado sentido contemporâneo.
Quem descreve com clareza a alteração que se processou é Maria Celina
Bodin de Moraes
Esse processo foi acompanhado de perto pela legislação e pela
jurisprudência brasileiras que tiveram nas duas últimas décadas,
inegavelmente, um papel promocional na construção do novo modelo
familiar. Tal modelo vem sendo chamado, por alguns especialistas em
sociologia, de ‘democrático’, correspondente, em termos históricos, a uma
significativa novidade, em decorrência da inserção, no ambiente familiar,
de princípios como igualdade e liberdade.56
A partir dessas diretrizes constitucionais o trato atual das relações
familiares fez emergir, dentre outros, os princípios da responsabilidade57 e da afetividade58,
que conferem outra coloração às diversas categorias do direito de família. Para proteção
55
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 4. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2007.
56
MORAES, Maria Celina Bodin de. A Família Democrática. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Org.). Anais
do V Congresso Brasileiro do Direito de Família. São Paulo: IOB Thomson, 2006. p. 615.
57
SANCHES, Fernanda Karam de Chueiri. A Responsabilidade no Direito de Família Brasileiro
Contemporâneo: Do Jurídico à Ética. Dissertação. (Mestrado em Direito) - Programa de Pós-Graduação em
Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2013. p. 157.
58
CALDERON, Ricardo Lucas. Princípio da Afetividade no Direito de Família. Rio de Janeiro: Renovar,
2013. p. 320.
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44
dessa família democrática hodierna, inviável a utilização de figuras jurídicas que
incompatibilizem com o momento alcançado.59
Importa destacar que uma adequada tutela das relações jurídicas familiares
existenciais não se compatibiliza com meras técnicas subsuntivas, exigindo muito mais do
intérprete.60 Essa especialidade das situações familiares já era sustentada por José Lamartine
de Oliveira e Francisco Muniz
Poderíamos dizer, pois, que os direitos de família, por razões éticas e pelo
caráter eminentemente pessoal da relação, exigem formas próprias de
tutela, inteiramente distintas das que caracterizam a defesa dos direitos de
crédito, dos direitos reais e dos próprios direitos da personalidade.61
Diante disso, ao significante abandono do lar deve ser conferido um
significado adequado com a tutela da relação familiar subjacente. Ou seja, compatível com
um retrato civil-constitucional contemporâneo da família brasileira, de modo que sua
significação se circunscreva aos contornos constitucionais e às categorias vigentes do nosso
atual direito privado.
Consequentemente, se mostra inconcebível qualquer interpretação da
expressão abandono do lar que busque retomar a averiguação da culpa na dissolução do
vínculo conjugal, visto ser esta uma questão já superada no direito de família brasileiro,
máxime após a Emenda Constitucional 66/2010. Do mesmo modo, não se pode vislumbrar
na figura do abandono do lar uma mera sanção a um dos cônjuges ou conviventes. Calha,
aqui, a alteração de enfoque que se percebe na própria responsabilidade civil: muito mais do
que se sancionar um culpado, o que na maioria das vezes não é simples, o foco atual visa a
recomposição da vítima. Embora não se ignore que existam autores que sustentem que a
“Não se pode esquecer que a família, nas últimas décadas e neste início de milênio, busca mecanismos
jurídicos diversos de proteção para seus membros, o respeito às diferenças, necessidades e possibilidades.”
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. v. 5. 22 ed. atual. Tânia da Silva Pereira. Rio de
Janeiro: Forense, 2014.
60
“Più che mai dunque nel diritto familiare risulta evidente la necessita di rinnovare le tecniche di
interpretazione e di qualificazione con il superamento di qualsiasi operazione argomentativa di tipo
sillogistico che pretenda di fermarsi alla lettera del legislatore e di espungere dall’analisi, che è a fondamento
del convincimento giuridico, il profilo funzionale rappresentato dagli interessi e dai valori.” (PERLINGIERI,
Pietro. La persona e i suoi diritti: problemi del diritto civile. Napoli: Edizione Scientifiche, 2004. p. 378). Em
tradução livre: “Mais do que nunca, portanto, no direito de família resulta evidente a necessidade de renovar
as técnicas de interpretação e de qualificação com a superação de qualquer operação argumentativa de tipo
silogístico que pretenda se deter nas palavras do legislador e afastar da análise, que é o fundamento do
convencimento jurídico, o perfil funcional representado pelos interesses e pelos valores.”
61
OLIVEIRA, José Lamartine de; MUNIZ, Francisco José Ferreira. Curso de Direito de Família. 4 ed.
Curitiba: Juruá, 2008. p. 14.
59
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45
perda da propriedade pelo cônjuge que abandona o lar simbolize uma verdadeira sanção pelo
descumprimento dos deveres do casamento ou da união estável (a utilização da expressão
abandono do lar como elemento desta usucapião inicialmente reforça essa visão, pois é a
mesma que é descrita como um dos deveres do casamento).62
Como se pode perceber, é complemente inviável a restauração da figura
do abandono do lar com uma interpretação quase literal, que possa inicialmente induzir a um
retrocesso que busque requentar questões já superadas. A busca de um culpado pelo fim do
relacionamento somente aumenta a litigiosidade, sem nada agregar, de modo que a solução
das controvérsias só tende a agravar dada a infinita quantidade de motivos que ambas as
partes podem trazer em seu favor. Esta leitura é incompatível com o estádio do nosso direito
jusfamiliar.
Por outro lado, também o direito das coisas assumiu uma feição
constitucionalizada. A partir desta percepção não parece adequado atribuir ao abandono do
lar um sentido meramente objetivo de ausência de vínculo efetivo com o imóvel, de ausência
de posse, ausência de relação direta de uso do bem, como é usual nas demais modalidades
de usucapião. Diversos autores estão a sustentar que a expressão abandono do lar para fins
desta usucapião deve ser entendida de modo objetivo, com um sentido que indique apenas
vínculo efetivo com o uso do imóvel.63
Novamente aqui as vicissitudes das relações familiares impedem que se
denote ao abandono do lar um significado que retrate meramente a ausência de vínculo
“A nova modalidade de usucapião inserida no Código Civil pela Lei 12.424/2011 consiste em sanção civil
pelo descumprimento dos deveres do casamento e da união estável. Aquele que abandona voluntária e
injuriosamente o domicílio familiar, nas condições descritas neste dispositivo legal, descumpre gravemente os
deveres conjugais e os deveres oriundos da união estável e fica sujeito à perda do direito de propriedade em
favor do consorte que ali permanece durante dois anos e sem oposição. Este é mais um dos artigos do Código
Civil que oferece proteção ao consorte inocente e punição ao culpado pelo descumprimento dos deveres
familiares, reforçando essas normas de conduta após a Emenda Constitucional 66/2010. Recordemos que dever
sem sanção não é norma de conduta, mas sim, mera recomendação ou simples conselho, o que seria
inadmissível, por inconstitucional, ou seja, por violar principalmente o art. 226, caput, da Constituição Federal,
que impõe ao Estado proteção especial à família e, por conseguinte, aos seus membros.” FIUZA, Ricardo;
TAVARES DA SILVA, Regina Beatriz. Código civil comentado. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 1171.
Ainda: “O abandono do lar pelo cônjuge consiste em infração grave para a relação jurídica de casamento. O
art. 1.566, II, do CC estabelece que (...) ‘são deveres de ambos o cônjuges (...) II – vida em comum, no domicílio
conjugal; (...)’. O casamento ou a união estável marcam a opção da vida conjugal, que pode ser consolidada
pelo contrato de casamento ou pela união estável.” MEDINA, José Miguel Garcia; ARAÚJO; Fábio Caldas
de. Código Civil Comentado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 781.
63
“É mecanismo de incentivo à aquisição de imóveis urbanos para famílias com pequena renda mensal, bem
como visa proteger aquele que rompeu união estável ou sociedade conjugal, mais que ainda reside no imóvel,
dividindo-o com o ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar. (...) O elemento finalístico da utilização
do imóvel como sua moradia própria, individual, ou de sua família, deve estar presente para que possa ser
declarado proprietário pela usucapião.” NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código
Civil Comentado. 10 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 1162.
62
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efetivo com a coisa (de uso concreto do imóvel). Isto porque, em muitos casos, o consorte
que resta no imóvel não é o que necessita dele para a moradia, não é o que está com a prole,
não é o que foi desamparado pelo outro, não é o que está fazendo frente às responsabilidades
parentais; por tudo isso, não é o que será merecedor da titularidade plena do lar conjugal.
Corolário disso, por envolver relações familiares que possuem infinitas
delineações, se mostra totalmente descabida a fixação, a priori, de um critério objetivo e
singelo como este: que identifique a expressão abandono do lar com o mero distanciamento
físico do imóvel.
Um exemplo hipotético concreto pode auxiliar na compreensão do que se
está a sustentar: não raro muitas das mulheres vítimas de violência doméstica simplesmente
saem do lar com seus filhos para parar de sofrer tais sevícias; grande parte delas não ajuíza
as competentes ações judiciais no exíguo prazo de dois anos e sequer registra os competentes
boletins de ocorrência (pois muitas vezes estão mais preocupadas com a segurança e
subsistência - sua e dos seus filhos - naquele difícil momento da vida, ainda mais quando o
pai-agressor está sem emprego e possui ainda vícios de drogas ou álcool). Também não é
incomum que o agressor que restou fisicamente no lar não faça frente as suas
responsabilidades parentais: não pague alimentos, não visite os filhos, não exerça sua
autoridade parental, não permita que a mulher entre em contato e que sequer volte ao lar
pegar os seus pertences e os dos filhos. Este quadro sombrio ocorre com mais frequência em
famílias de baixa renda, desestruturadas e com diversos problemas sociais, mas atualmente
muitas delas são proprietárias de imóvel pelo referido programa federal Minha Casa, Minha
Vida. Sobrevinda uma ação real, imagine-se que tais fatos se comprovem facilmente (até
com confissão de ambas as partes: o pai das agressões e descumprimentos das obrigações
com os filhos; a mãe com seu distanciamento do local por mais de dois anos sem ajuizar
qualquer demanda). Pois bem, seria sustentável no atual direito civil-constitucional
brasileiro afirmar que o consorte-agressor que restou fisicamente no lar por dois anos
seguidos, mas abandonou por completo sua família neste período, descumprindo in totum
sua responsabilidade familiar e parental, venha a receber a propriedade total do imóvel pelo
mero atendimento objetivo dos requisitos formais da usucapião familiar?
Parece que não.
Conceder a aquisição da propriedade a este pai-agressor apenas porque foi
ele quem restou fisicamente no imóvel pelo prazo de dois anos afrontaria justamente os
princípios constitucionais que conferem guarida à usucapião familiar: dignidade,
solidariedade, função social, direito à moradia e direito a um mínimo existencial. Este é um
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dos pontos nodais da presente proposta: exaltar que a significação da usucapião familiar não
pode descurar dos princípios constitucionais que a sustentaram. Ou seja, a caracterização
dos requisitos do instituto não pode olvidar dos comandos que advém dos valores
constitucionais que o fundamentam e, com isso, o integram. Impensável sustentar a
constitucionalidade da usucapião familiar com base na dignidade da pessoa humana,
solidariedade, função social, direito à moradia e, no momento da aplicação concreta dos seus
requisitos, virar as costas para tais questões e se ater apenas aos elementos estruturaisformais, contrariando os supracitados valores constitucionais.64
Há que se apurar a adequada função contemporânea desta recente
modalidade de usucapião familiar, de acordo com uma análise unitária do ordenamento,
sempre a partir da Constituição Federal e do Código Civil, com o intuito de constatar o papel
que este instituto deve desempenhar naquela dada situação jurídica. Gustavo Tepedino
esclarece a relação entre o aspecto estrutural e funcional dos bens jurídicos
Como se pode observar, a disciplina dos bens jurídicos, delineada de
maneira minuciosamente tipificadora e abstrata no Código Civil, embora
tradicionalmente difundida em seu aspecto estrutural, a desenhar
classificação aparentemente neutra de objetos sujeitos ao tráfego jurídico,
adquire renovada dimensão e importância no direito contemporâneo. Para
tanto, há que se deslocar a análise para perspectiva funcional, de tal modo
que a qualificação do bem jurídico se encontre sempre associada à sua
função, investigando-se, na dinâmica da relação jurídica em que se insere,
a destinação do bem de acordo com os interesses tutelados.65
A percepção da dimensão funcional da usucapião familiar demonstrará,
sem maiores dificuldades, qual o seu efetivo papel na relação jurídica subjacente e
evidenciará mais facilmente qual o bem jurídico que deve ser tutelado. Consequentemente,
nessas condições, impõe-se buscar um sentido compatível de abandono do lar, que exalte
essa função e o permita transitar tanto no direito das coisas como no direito de família,
densificando as normas constitucionais que o fundamentam.
Resta patente que este sentido não pode significar nem a busca por um
culpado pelo término da relação, nem restar adstrito à mera retirada física do imóvel,
“Desse modo, o requisito do abandono do lar merece uma interpretação objetiva e cautelosa. (...) Como
incidência concreta desse enunciado doutrinário, não se pode admitir a aplicação da nova usucapião nos casos
de atos de violência praticados por cônjuge ou companheiro para retirar o outro do lar conjugal. Em suma, a
expulsão do cônjuge ou companheiro não pode ser comparada ao abandono.”. SIMÃO, José Fernando;
TARTUCE, Flávio. DIREITO CIVIL. v. 4 . Direito das Coisas. São Paulo: Método, 2013. p. 172.
65
TEPEDINO, Gustavo. Regime Jurídico dos Bens no Código Civil. IN: Silvio de Salvo Venosa; Rafael Villar
Gagliardi e Paulo Magalhães Násser (Org.). Dez anos do Código Civil: desafios e perspectivas. São Paulo:
Atlas, 2012. p. 30.
64
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conforme exposto acima (visões que têm sido difundidas). Nenhuma dessas duas opções
permite a consagração das diretrizes da Constituição que incidem sob a matéria e muito
menos destacam o aspecto funcional da inovadora modalidade aquisitiva.
Diante dessas considerações, o que se mostra indicado é que se traduza a
expressão abandono do lar como um abandono familiar, no sentido de um desamparo da
família por um daqueles que deveria ser seu provedor. Em outras palavras, retrate o não
atendimento das responsabilidades familiares e parentais incidentes no caso concreto, um
desassistir que venha a trazer dificuldades materiais e afetivas para os familiares que
restaram abandonados. Exemplificando: não prestar alimentos, não contribuir para as
despesas do lar, não manter os vínculos afetivos com os demais integrantes da família, dentre
outros.
O foco de análise deve ser a partir da situação jurídica dos entes familiares
que restaram desamparados e podem vir a merecer certa proteção patrimonial. Substitui-se
eventual busca pelo sancionamento de um ofensor pela priorização na recomposição das
vítimas do desamparo.66 Este abandono familiar equivaleria ao sentido contemporâneo de
abandono do lar para fins da usucapião e permitiria a averiguação dos seus demais requisitos
legais.67
Consequentemente, só faria jus à aquisição da propriedade quem cumpriu
com suas responsabilidades familiares, ou seja, quem fez frente a sua obrigação alimentar
(ainda que não fixada judicialmente), exerceu efetivamente sua autoridade parental, visitou
os filhos, não agrediu fisicamente o outro consorte ou demais integrantes da família, dentre
outros critérios a apurar na situação concreta. Com tal sentido de abandono do lar o exemplo
hipotético acima descrito estaria sanado, pois aquele pai-agressor não seria agraciado com a
propriedade.
“Essa espécie de usucapião visa à proteção do cônjuge que, abandonado ou, mesmo, privado de assistência
material e do sustento e da moradia, mantém-se no imóvel e se responsabiliza pelos respectivos encargos,
situação que justifica a aquisição da propriedade por usucapião e a alteração do regime de bens quanto ao
respectivo imóvel.” CHALHUB, Melhim Namem. Direitos Reais. 2 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora
Saraiva, 2014. p. 90-91.
67
Alguns autores sustentam nesse sentido, como Priscila Maria Pereira Correa da Fonseca: “O abandono que
rende ensejo às consequências previstas no art. 1.240-A é aquele efetivado de má-fé, aquele claramente levado
a efeito com o intuito de relegar à família repudiada ao signo de desamparo moral e/ou material. Insista-se:
não é apenas a falta de assistência financeira daquele que se desligou do antigo lar que proporcionará o
pedido de aquisição do domínio nos moldes do comando sub examine. Há, por igual, de configurar o abandono
referido pelo art. 1240- A, aquele praticado pelo ex-cônjuge ou ex-companheiro que, não obstante diligencie
satisfatoriamente à mantença dos componentes da família, a eles volta às costas, passando a ignorar o
atendimento assistencial necessário, ainda que não de ordem moral.” FONSECA, Priscila Maria Pereira
Correa da. Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões. Porto Alegre, Magister/Belo Horizonte,
IBDFAM, v. 23,ago./set. 2011. p. 120.
66
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49
Uma leitura de abandono do lar próxima ao que se descreveu como um
abandono familiar já foi retratada, de algum modo, no enunciado 499 da V Jornadas de
Direito Civil
499 - A aquisição da propriedade na modalidade de usucapião prevista no
art. 1.240-A do Código Civil só pode ocorrer em virtude de implemento de
seus pressupostos anteriormente ao divórcio. O requisito “abandono do
lar” deve ser interpretado de maneira cautelosa, mediante a verificação de
que o afastamento do lar conjugal representa descumprimento simultâneo
de outros deveres conjugais, tais como assistência material e sustento do
lar, onerando desigualmente aquele que se manteve na residência familiar
e que se responsabiliza unilateralmente pelas despesas oriundas da
manutenção da família e do próprio imóvel, o que justifica a perda da
propriedade e a alteração do regime de bens quanto ao imóvel objeto de
usucapião.
Nas entrelinhas do enunciado é possível perceber as questões materiais
atinentes ao cumprimento das responsabilidades familiares (assistência material, sustento do
lar), em consonância com o que se ora defende.68
Muito mais do que simplesmente vincular o abandono do lar a um requisito
objetivo de uso do imóvel há que se edificar um sentido ético para a expressão, único passível
de bem retratar a sua função. A própria nomenclatura de “usucapião familiar” para designar
este instituto, ao invés de outras nominações, pode contribuir para destacar o aspecto que
ora pretende se jogar luz (a tutela da família).
Referir a um sentido de abandono familiar como pressuposto para a
usucapião familiar permite uma aproximação com todos os princípios e valores
constitucionais que foram justificadores da aplicação do dispositivo e, ainda, atenta para a
sua devida função na respectiva relação jurídica. Já há quem defenda uma leitura arejada e
atualizada de abandono do lar, com vistas a bem retratar a adequada função do instituto
No seio desta perspectiva não se pode aproximar a locução abandono do
lar às matizes de um tempo no qual a dissolução das relações era
exclusivamente pelo desfazimento do casamento, sempre a partir da
conduta culposa de um dos cônjuges. (...) Não parece correto interpretar o
termo abandono, nesta singra, como mera saída temporária do lar ou
mesmo mudança de endereço, mormente pela flexibilidade da estrutura
familiar antes explicitada. O abandono é, efetivamente, o movimento
peremptório e unidirecionalmente manifestado de abdicar por ação ou
omissão aos vínculos afetivos, cindindo-se a conexão com núcleo
intersubjetivo de convergência afetiva. Compreende-se assim como a
68
Uma única observação quanto a redação do enunciado: prefere-se aqui referir a um desatendimento da
responsabilidade familiar pelo abandonador do que descumprimento dos deveres conjugais, como constou na
ementa.
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interrupção do projeto de vida constituído pela coletividade de sujeitos
ligados pelo afeto, retirando-se aquele que abandona o lar de todos os
vínculos que o conectavam, seja eles financeiros, afetivos ou mesmo de
íon livre que se desatrela do papel desempenhado naquele conteúdo
coletivo de direitos. Deve-se interpretar a norma, quanto a este tema, em
convergência com sentido mais benéfico aos direitos fundamentais que,
mediatamente, pretende-se tutelar. Não há que se falar em conceito
apriorístico de abandono, demandando-se interpretação casuística
construtiva.69
A presente proposta de leitura do abandono do lar como um verdadeiro
abandono familiar, retratado pelo desatendimento da responsabilidade familiar inerente ao
caso concreto, permite ir ainda mais longe, de modo até mesmo a vislumbrar a possibilidade
de se conceder a propriedade para um dos cônjuges ou conviventes que teve que deixar o
imóvel, mas restou desamparado pelo outro (com a sua prole) por dois anos ou mais, e está
a necessitar do lar conjugal para moradia. Dito de outro modo, eventualmente conceder a
usucapião aquisitiva mesmo para aquele que não está na posse efetiva do bem, mas que tenha
sido abandonado pelo outro e que necessite do bem para sua moradia e sobrevivência (muitas
vezes com os filhos). Acaso presente os demais requisitos, se afigura possível esta hipótese.
Com isso se permitiria o desacoplamento pontual da usucapião da posse efetiva do bem.70
Outra questão a ser observada é que sendo a usucapião um modo de
aquisição originário da propriedade, em regra, adere a esfera jurídica do novo titular sem os
gravames que pendiam anteriormente sobre o bem. Face às peculiaridades desta usucapião,
inclusive pela lei vir com o Programa Minha Casa, Minha Vida parece recomendável se
adotar o entendimento de que para esta modalidade de usucapião permanecem hígidas e
plenas as garantias reais que pendiam anteriormente sobre o bem (até mesmo para se evitar
um incentivo à fraude e preservar o interesse de terceiros).
Estas considerações ressaltam a necessidade de uma hermenêutica críticoconstrutiva na apuração do sentido civil-constitucional da usucapião familiar que seja,
sempre, harmônica com os tempos presentes.
4. Considerações Finais
FACHIN, Luiz Edson; GONÇALVES, Marcos Alberto Rocha. “10 Anos do Código Civil: O ser e o ter no
Direito de Família a partir da aquisição pela permanência na moradia familiar” IN: LEAL, Pastora do Socorro
Teixeira (coord.). Direito Civil Constitucional e outros estudos em homenagem ao Prof. Zeno Veloso. Rio de
Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014. (p.632-648) p. 641.
70
“Nesse contexto, não há necessidade de que o imóvel esteja na posse direita do ex-cônjuge ou excompanheiro, podendo ele estar locado a terceiro; sendo viável do mesmo modo a nova usucapião pelo
exercício da posse indireta.” SIMÃO, José Fernando; TARTUCE, Flávio. Direito Civil. v. 4 . Direito das
Coisas. São Paulo: Método, 2013. p. 172.
69
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O esforço exigido para conceder contornos adequados a esta nova
modalidade aquisitiva da propriedade é prova maior do desacerto do legislador na colocação
do instituto, visto que os equívocos não foram poucos. Ainda assim, parece possível se
extrair um significado constitucional para o dispositivo.
Ciente que uma norma não nasce norma, mas sim se faz norma no dia-adia dos embates jurídicos doutrinários e jurisprudenciais, entende-se possível a edificação
de um sentido funcionalizado da usucapião familiar.
Ainda assim, não sem deixar de anotar as críticas pertinentes. Uma delas,
a descabida escolha da usucapião para proteger os bens jurídicos pretendidos (tutela da
família e do direito à moradia), pois acabou mantenedora do discurso proprietário que impera
no direito brasileiro.71 Isto porque, a forma eleita para tutelar àquelas situações jurídicas foi
a concessão do status proprietário ao consorte abandonado, o que demonstra a prevalência
da outorga da apropriação das coisas ao invés da garantia do seu uso, uma lógica de mercado
que segue presente no nosso imaginário coletivo.72
Para preservação da família e garantia do uso do imóvel muito mais
razoável seria se o legislador tivesse conferido apenas a garantia do direito de moradia, sem
ônus, para o membro da família abandonado; ao invés de o permitir usucapir a totalidade do
bem e lhe entregar a propriedade plena. Bastava que conferisse guarida similar ao ‘direito
real de habitação’ – já de há muito conhecido dos civilistas - que estaria suficientemente
protegido o bem jurídico que se pretendia tutelar. Com tal proceder priorizaria o uso ao invés
da apropriação. Entretanto, a mentalidade proprietária reinante certamente ofuscou tal
alternativa. O equívoco na eleição da usucapião como solução para estes casos concretos
pode acabar por não proteger nem mesmo um dos seus objetos centrais (como a garantia da
moradia), visto que com o regramento atual nada impede que quem tenha adquirido o bem
71
CORTIANO JUNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas. Rio de Janeiro:
Renovar, 2002. p. 259.
72
“Proprietà privata e autonomia privata, dunque, sono i due principi cardine attorno ai quali il diritto
moderno organizza i rapporti giuridici individuali, dando ad essi la forma tipica dei rapporti di mercato: il
diritto di appropriarsi in via esclusiva di una quota della ricchezza sociale non può non comportare anche il
diritto di realizzarne il controvalore mediante un libero atto di scambio, istituendo cioè con chi è disposto a
convenirlo un libero rapporto contrattuale.” (BARCELLONA, Pietro. Diritto privato e Società Moderna.
Napoli: Jovene Editore, 1996. p. 320) Em tradução livre: “Propriedade privada e autonomia privada, então, são
os dois princípios cardinais em torno dos quais o direito moderno organiza as relações jurídicas individuais,
dando a elas a forma típica das relações de mercado: o direito de apropriar-se de forma exclusiva de uma parte
da riqueza social deve comportar também o direito de realizar a contrapartida mediante um ato livre de
escambo, estabelecendo, com quem estiver disposto a celebrá-la, uma livre relação contratual.”
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com a usucapião o coloque a venda a seguir, ao invés de permanecer com o mesmo para
moradia da família.
Com estas ressalvas, defende-se a tese que é viável prospectar uma
definição contemporânea adequada para esta usucapião familiar, desde que se perceba a
exata dimensão da influência que as vicissitudes jusfamiliares terão nesta configuração (daí
a recomendação para que o foro adequado seja sempre o do juízo das varas de família). O
tratamento desta relevante questão patrimonial dos litígios familiares não pode, mais do que
nunca, ignorar a necessária prevalência do ser sobre o ter.73
A regra posta pelo legislador é apenas o marco inicial da norma que será
erigida, pois mesmo quando o legislador ordinário permanecer inerte, deve o juiz e o jurista
proceder ao inarredável trabalho de adequação da legislação civil, através de interpretação
dotadas de particular ‘sensibilidade constitucional’, que, em última análise – e sempre –
vivifiquem o teor e o espírito da Constituição.74 Com observância desta orientação o trabalho
construtivo deixado aos civilistas poderá ser exitoso.
As dificuldades que se apresentam na adequada significação da usucapião
familiar comprovam que:
será íngreme e necessária, imprescindível mesmo, a tarefa hermenêutica
para reconhecer, na investigação teórica e na aplicação prática, o Código
Civil que o Século XXI da sociedade brasileira está a demandar, clamando
por justiça e igualdade substancial. Impende, pois, nessa quadra,
subscrever uma hermenêutica construtiva apta a realizar, na doutrina e na
jurisprudência que seguir-se-ão, esse mister.75
As direções apontadas pela bússola da Constituição são as que deverão
orientar a consolidação de um adequado sentido para a usucapião familiar, que observe sua
função no ordenamento e esteja afinado com atual estágio do direito civil-constitucional
brasileiro.
“O evidente artificialismo da noção clássica faz alargar a distância entre o que a lei civil estabelece como
sendo pessoa e o indivíduo homem, este a merecer proteção não pelo que tem, mas pelo que é. Por certo, não
deve a proteção patrimonial suplantar a proteção dos seres humanos”. (MEIRELLES, Jussara. O ser e o ter na
codificação civil brasileira: do sujeito virtual à clausura patrimonial. In: FACHIN, Luiz Edson (Coord.).
Repensando Fundamentos do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 9293)
74
MORAES, Maria Celina Bodin de. Na Medida da Pessoa Humana: estudos sobre direito civil. Op. cit., p.
20.
75
FACHIN, Luiz Edson. Comentários ao Código Civil. Direito das Coisas. (art. 1277 a 1368). Antonio
Junqueira de Azevedo (coord.). São Paulo: Saraiva, 2003. p. 374.
73
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53
Bem no fundo
No fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto
a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo
extinto por lei todo o remorso,
maldito seja quem olhar pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais
mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos
saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas.
Paulo Leminski
Recebido em 22/01/2015
1º parecer em 27/02/2015
2º parecer em 27/02/2015
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PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA NO DIREITO CIVIL: EM BUSCA DA
DISTINÇÃO FUNCIONAL1
Lapsing and prescription in civil law: seeking a functional distinction
Thaís Fernanda Tenório Sêco
Mestre em direito civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Professora permanente no curso de pós-graduação lato sensu em direito civil da
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e
Advogada.
Resumo: Pela ausência de previsão da distinção entre prescrição e decadência na sistemática
do Código Civil de 1916, e pela previsão flexibilizada no sistema atual, entende-se que a
questão da distinção entre os prazos passou por um processo de “positivação tardia” que
afeta a compreensão doutrinária sobre o tema. Outros institutos há muito passaram do
jusnaturalismo à exegese chegando, por fim, às metodologias contemporâneas, como o
direito civil-constitucional. Quanto à distinção entre prescrição e decadência vigora a
perplexidade de não se saber se o poder do legislador sobre o tema é total ou nenhum. O
trabalho pretende inscrever a temática nas premissas metodológicas do direito civilconstitucional pela investigação de um possível aspecto funcional da distinção a partir da
revisitação ao legado doutrinário sobre o tema.
Palavras-chave: Prescrição; Decadência; Funcionalização; Fireito civil-constitucional.
Abstract: As there is no distinction between lapsing and prescription on 1916 Brazilian civil
code, and for the flexible distinction there is in the actual system, we sustain that a “late
positivation” happened in what concerns this question with impacts on the way doctrine sees
it. Other institutes came over the jusnaturalism to the exegese, getting on to contemporaneous
methods, as the civil-constitutional approach. About the distinction between lapsing and
prescription, although, prevails some astonishment since we cannot know if the legislator
power on the theme its full or no. The study seeks to attract the problem to the civilconstitutional assumptions investigating its possible function, trying to comprehend it from
the doctrinal legacy on the subject.
Keywords: Prescription; Lapsing; Functionalization; Civil-constitutional law.
1
Com minha gratidão ao Prof. Gustavo Tepedino que por duas vezes oportunizou enriquecedora discussão
sobre a abordagem ora apresentada do problema, com caras observações, suas e dos colegas, sobre conteúdo e
forma de exposição.
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Sumário: Introdução – 1. Efeitos da positivação tardia da distinção entre prescrição e
decadência no direito civil nacional – 2. A inscrição do problema em uma metodología
constitucionalizada (e a insuficiencia do criterio topográfico da distinção) – 3. O legado
civilista com relação à distinção entre os prazos: os criterios empírico e científico de
distinção – 4. Um balanço teórico: os criterios de distinção e sua crítica rumo a uma
compreensão funcional – 5. Conclusão: uma proposta funcional de distinção – 6.
Considerações finais.
Introdução
A consulta imediata ao Código Civil de 1916 daria a impressão de que a
decadência não constava na sistemática civil nacional. Por um conhecido equívoco da
técnica legislativa aplicada pela Comissão de revisão extraparlamentar, os prazos de
decadência previstos pontualmente na Parte Especial do Código Beviláqua foram
inteiramente reunidos na Parte Geral juntamente do dispositivo que tratava da prescrição,
pensando-se obter com isso um implemento da clareza adequada a um projeto de
codificação.
Como se sabe, equipararam-se, assim, os prazos de decadência com os
prazos de prescrição no texto legal. No entanto, a doutrina e a jurisprudência não se
conformaram com a diluição dos institutos, o que consistiria em “um erro manifesto de
classificação”,2 sendo pois mantida com base no entendimento de que à lei não é dado
“contrariar a natureza das coisas”.3
Fato é que diante da carência de previsão legal que distinguisse os prazos,
o ambiente da aplicação do direito quanto a eles se mostrava assistemático.4 Careciam
fundamentos que permitissem estabelecer com segurança a distinção entre os prazos, ainda
que esforços doutrinários não faltassem para favorecer uma solução isonômica do
AMORIM FILHO, Agnelo. ‘Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar
as ações imprescritíveis’. Revista dos Tribunais. n.836. jun. 2005. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais.
(Originalmente publicado em out. de 1960).
3
THEODORO JR., Humberto. ‘Alguns aspectos relevantes da prescrição e da decadência no novo código
civil’. Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil, n. 23, mai., 2003, p. 3.
4
Assim se expressa REALE, Miguel. ‘Visão geral do projeto de código civil’. Revista dos Tribunais, v. 752,
São Paulo, jun. 1998, p. 23. “Assisti uma vez, perplexo, num mesmo mês, a um Tribunal de São Paulo negar
uma apelação interposta por mim e outros advogados, porque entendia que o nosso direito estava extinto por
força de decadência; e, poucas semanas depois, ganhávamos, numa outra Câmara, por entender-se que o prazo
era de prescrição, que havia sido interrompido! Por isso, o homem (sic) comum olha o Tribunal e fica
perplexo.”
2
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problema.5 Ainda assim, a distinção permaneceu sendo afirmada e a discussão não dizia
respeito a haver ou não uma distinção, e sim a como identificar a distinção – que obviamente
existiria.
Por tratar-se de um ato de “franca rebeldia à lei”,6 a doutrina buscou seu
embasamento na teoria filosófica disponível para tanto, o jusnaturalismo, aduzindo tratar-se
a distinção de algo necessário, atinente a alguma metafísica dos prazos que não poderia ser
contrariada. Posteriormente, com a positivação da distinção pelo Código Civil de 2002 e sua
flexibilização no direito positivo, o paradigma filosófico antitético do formalismo jurídico,
em confronto com o paradigma metafísico anterior tem provocado perplexidade na
abordagem do tema. Tratando-se de uma distinção por tanto tempo afirmada a despeito da
lei, não se sabe como lidar com as flexibilizações legais atuais, notadamente quando o
argumento metafísico não se faz mais aceito.
O tema tem permanecido, então, aprisionado em uma espécie de “Id”
jurídico; um inconsciente que o afirma e a ele se apega ainda que não se possa conhecer
precisamente porque razões. A doutrina contemporânea do direito civil tem encontrado
dificuldades para vislumbrar o caminho pelo qual a temática poderá ser compreendida
conforme as premissas do método civil-constitucional, buscando compreender em que pode
ser importante à concreção dos interesses humanos.
Neste escopo, a investigação apresentada parte da premissa segundo a qual
a toda distinção estrutural deve corresponder uma distinção funcional, encontrando-se na
função, e não propriamente na estrutura, o que pode melhor explicitar a diferença entre
prescrição e decadência.
Acredita-se que a afirmação relutante da distinção entre os prazos mesmo
quando a lei os equiparava pode ser um ponto de partida importante para formular uma base
funcional de diferenciação. Esta pode ser um passo para o desenvolvimento das temáticas
que dizem respeito aos prazos, tanto para as situações dúbias, ainda carentes de paradigmas
interpretativos, quanto para as inovações ou reformas legislativas relativas à questão, as
quais devem também promover e preservar a coerência no sistema jurídico.
Dignos de destaque são os trabalhos de AMORIM FILHO, Agnelo. ‘Critério científico para distinguir a
prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis’. cit.; e CAMARA LEAL, Antônio Luís da
Da prescrição e da decadência: teoria geral do direito civil. 2ª Ed (1ª Ed. Publicada em 1939). Atualizada por
José Aguiar Dias. Forense: Rio de Janeiro, 1959.
6
AMORIM FILHO, Agnelo. ‘Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar
as ações imprescritíveis’. cit.
5
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1. A positivação tardia da distinção entre prescrição e decadência no direito civil
nacional e seus efeitos doutrinários
Prescrição e decadência são institutos assemelhados em relação aos quais
são apresentadas distinções quanto ao objeto e quanto aos efeitos.
Diz-se que a prescrição é a perda da ação, ou, como se propagou adiante,
da “pretensão”, enquanto a decadência seria a perda do próprio direito. Quanto às diferenças
de tratamento jurídico, já ensinava Santiago Dantas que:
Enquanto a prescrição geralmente consiste no decurso de um prazo, que se
interrompe, que se suspende, que pode, por conseguinte, recomeçar a
contar, muitas vezes e que as partes interessadas processam alegar para que
o juiz dela tome conhecimento, as decadências, são aquelas que, na
linguagem forense, costuma-se chamar de prazos fatais. Nada os
interrompe, nada os suspende e quando decorrem, o juiz pronuncia a
decadência de ofício sem ser necessário que ninguém alegue.7
Além dessas, tem-se ainda que a prescrição pode ser alvo de renúncia de
quem dela se beneficia depois de exaurido o prazo, enquanto a decadência não comporta
essa faculdade.
Como se pode constatar, tais distinções não dizem respeito propriamente
aos efeitos, já que neste ponto é que se observa a maior semelhança entre os prazos: ambos
provocam uma extinção de algum tipo. As diferenças dizem respeito, antes, aos pressupostos
fáticos para que se opere a extinção e, por tudo, se inscrevem em aspectos estruturais dos
institutos.8
Essas clássicas diferenças sempre estiveram na base das distinções
concebidas para os dois prazos. A diferença, por exemplo, em relação à possibilidade de
reconhecimento de ofício é o argumento pelo qual Humberto Theodoro Jr. entende que existe
uma distinção quanto ao objeto dos respectivos prazos. Para ele, se a prescrição extinguisse
o direito não precisaria necessariamente ser arguida em Juízo para o seu reconhecimento.9
DANTAS, San Tiago. ‘Prescrição e decadência’. Programa de direito civil: Parte Geral. 4ª Tiragem. Rio de
Janeiro: Editora Rio, 1942, p. 396.
8
Nesse sentido, também Antônio Luís da Câmara Leal entende ser a extinção de um direito ou de uma ação o
efeito da decadência ou da prescrição. Já as típicas diferenças relativas à possibilidade de interrupção,
suspensão ou impedimento e à possibilidade de renúncia e conhecimento de ofício pelo juiz, são classificadas
por Câmara Leal como “diversidades de consequência”. (CÂMARA LEAL, Antônio Luís da. Da prescrição e
da decadência: teoria geral do direito civil. cit. p. 394, 395.)
9
THEODORO JR, Humberto. ‘Alguns aspectos relevantes da prescrição e da decadência no novo código civil’
cit. p. 13: “A simples consumação do prazo prescricional não priva, de imediato e de todo, o interesse do credor
7
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Não havendo, porém, qualquer distinção entre os prazos na lei, e adotandose, ainda assim, a ideia de que a prescrição extingue a ação e a decadência extingue o direito,
observa-se que a construção doutrinária correspondente ao período de vigência do Código
Civil de 1916 adotava implicitamente um pressuposto filosófico jusnaturalista, base para
afirmação de uma distinção metafísica dos prazos.10
Essa visão pode ser percebida na mais importante obra sobre o tema no
Brasil, em que Agnelo Amorim Filho se propôs, em 1960, a estabelecer um critério científico
de distinção, lamentando a equivocada equiparação entre os prazos, do que resultou “ao
invés do planejado melhoramento, um erro manifesto de classificação”.11
Posto em xeque de forma indefensável o pressuposto da racionalidade do
legislador que fundamenta uma afirmação exegética da lei, optou a doutrina por afirmar a
qualquer custo a manutenção da decadência no sistema civil, havendo no jusnaturalismo o
único recurso filosófico para resistir ao desacerto:
Ou se adota essa atitude de franca rebeldia contra o texto legal, ou ter-se-á
que chegar a conclusão ainda mais absurda, isto é, admitir que certos
prazos classificados pelo Código como sendo de prescrição (mas que são,
indiscutivelmente, de decadência), podem ser objeto de suspensão, de
interrupção e de renúncia.12
da tutela jurisdicional. O efeito extintivo não opera ipso iure, pela mera ultrapassagem do termo fixado em lei.
Para que a pretensão do credor seja paralisada é indispensável que o devedor, quando demandado, argúa a
prescrição como meio de defesa (art. 193). O que esta, na verdade, gera é uma exceção que o devedor usará,
ou não, segundo suas conveniências.” A construção é interessante, e atende à visão metodológica que vai “da
estrutura à função”, embora tenha se esvaziado depois da reforma processual de 2006 (Lei 11.280/2006).
10
V. BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. São Paulo: Ícone, 2003, p. 15: “a contraposição entre
‘positivo’ e ‘natural’ é feita relativamente à natureza não do direito mas da linguagem: esta traz a si o problema
(que já encontramos nas disputas entre Sócrates e os sofistas) da distinção entre aquilo que é por natureza
(physis) e aquilo que é por convenção ou posto pelos homens (sic) (thésis). O problema que se põe pela
linguagem, isto é, se algo é ‘natural’ ou ‘convencional’, põe-se analogamente também para o direito.”
11
AMORIM FILHO, Agnelo. ‘Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar
as ações imprescritíveis’. cit., p. 734. O mesmo fato também foi lamentado por THEODORO JR., Humberto:
“Sobre essa esdrúxula e confusa unificação não chegou a haver debate, de sorte que o planejado melhoramento
acabou por redundar, para os aplicadores do Código num dificílimo problema, pois o que efetivamente se deu
foi um ‘erro manifesto de classificação’”. (‘Distinção científica entre prescrição e decadência. Um tributo à
obra de Agnelo Amorim’. In Revista dos Tribunais. n.836. jun. 2005. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais.
p. 50).
12
AMORIM FILHO, Agnelo. ‘Critério científico para distinguir a prescrição da decadência’, cit. p. 735. No
mesmo sentido, Humberto Theodoro Junior justificou a postura doutrinária contra legem adotada em relação
à distinção entre prescrição e decadência sob a égide do Código de 16: “Como a lei não pode contrariar a
natureza das coisas, doutrina e jurisprudência tiveram de assumir a tarefa de joeirar entre os prazos ditos
prescricionais no texto da lei os que realmente se referiam a prescrição e os que, embora assim rotulados,
representavam, na verdade, casos de decadência”. (‘Alguns aspectos relevantes da prescrição e da decadência
no novo código civil’. cit., p. 3.).
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Por essa argumentação fica claro que a afirmação de uma distinção entre
os prazos de prescrição e decadência exigiu uma tomada de posição filosófica, ainda que
inconsciente, pois afirmações como essa alimentaram uma premissa metafísica na
abordagem da distinção entre os prazos. 13
Resta aí configurada a perplexidade atual no estudo do tema da distinção
entre prescrição e decadência, pois trata-se de um positivismo tardio que desafia as
construções bem assentadas de um jusnaturalismo igualmente tardio.14
Se, por exemplo, a impossibilidade de reconhecimento de ofício da
prescrição é tão determinante para a compreensão da distinção, como retratar
doutrinariamente a reforma processual da Lei 11.280/06 pela qual o §5º, do art. 219, do
Código de Processo Civil passou a prever que: “o juiz pronunciará, de ofício, a prescrição”?
Ter-se-ia por este detalhe alterado toda a natureza da prescrição, que assim passou a referirse à extinção de um direito? (Ou não poderia valer a alteração por contrariar a “natureza das
coisas”?)
Em contradição à fala de Amorim, em que mais absurdo do que descumprir
a lei é aplicar a interrupção, impedimento e suspensão a prazos que são sabidamente de
decadência, o próprio Código Civil de 2002 em seu art. 207 diz ser possível aplicá-los à
decadência se disposição legal expressa o determinar. Mas se justamente por inadmitir-se
essa possibilidade a distinção foi afirmada ainda que contrariamente à lei, que distinção se
preserva diante dessa flexibilização legal? (Ou não poderá a lei valer nestes termos?)
13
Cabe realçar, novamente, o mérito da formulação de Camara Leal a respeito da distinção, o qual,
diferentemente de outros autores de seu tempo, não justificou em alguma base metafísica a existência da
decadência apesar de sua exclusão do texto da lei, e, sim, em uma autêntica interpretação sistemática que
chamava a atenção para a existência da decadência com base no pressuposto de coerência do sistema: “Não
houve, porém, a eliminação da decadência de nosso Código, porque há, em contraposição a regras gerais,
preceitos especiais estabelecidos pelo legislador, cuja contradição com essas regras só poderá ser explicada
pela sua atinência a um instituto diverso daquele a que as mesmas dizem respeito. Assim, não obstante a regra
geral que veda a prescrição entre cônjuges, na constância do casamento, a ação do marido contra a mulher para
contestar legitimidade do filho prescreve, diz o Código, em dois meses da data do nascimento do filho, se o
marido estava presente, e em três meses da data de seu regresso, se estava ausente, ou da data da ciência do
nascimento se este lhe foi ocultado. Deixará de haver antinomia entre esse preceito especial e a regra geral, se
o legislador assim preceituou atendendo a que, no caso, não se trata de prescrição, rediga pela regra geral, mas
de decadência, não subordinada àquela regra.” (CAMARA LEAL, Antonio Luiz da. Da prescrição e da
decadência. cit. p. 396.)
14
Conforme ensina Norberto Bobbio, o termo “positivismo” é dual, podendo referir-se tanto ao movimento
filosófico-metodológico que buscava conferir cientificidade às Ciências Humanas e Sociais nos idos do século
XX, quanto pode referir-se ao registro escrito da lei tradicional por uma autoridade considerada legítima para
tanto. Em ambos os casos, a palavra comunica a ideia muito comum e aproximada de que a lei deve ser seguida
a qualquer custo, identificando com a norma jurídica o próprio direito. É assim que, havendo dois sentidos para
o termo positivismo, os dois sentidos exprimem uma mesma ideia de cumprimento da lei positivada – escrita
– tomada como fonte privilegiada do direito, senão como única fonte. (V. BOBBIO, Norberto. O positivismo
jurídico. cit., p. 15).
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O jusnaturalismo, como se sabe, está na base da formação dos conteúdos
típicos do direito privado. Entendeu-se, por muito tempo, que a positivação do direito
privado – no momento da codificação – consistia estritamente em recepcionar os conteúdos
prévios contidos na “natureza das coisas”, e não de criá-los ou de formulá-los com vistas a
atingir propósitos externos ao direito.15 Diante da positivação tardia da distinção entre os
prazos de prescrição e decadência, tratou a doutrina, portanto, de afirmar a distinção a
despeito do direito positivo, dando entender que a questão remonta a valores fundamentais
que não podem ser contrariados.
Passando-se por uma distinta mentalidade sobre o direito, uma visão
positivista estrita afirmaria, pelo contrário, que não haveria qualquer distinção entre
prescrição e decadência na sistemática do Código Civil de 1916, a qual seria resgatada com
o Código Civil de 2002. Mas o positivismo jurídico é uma abordagem que opta
conscientemente por ignorar alguns aspectos do direito (que para os positivistas não são
propriamente jurídicos).16
Por opção metodológica, uma abordagem positivista toma como
irrelevante o fato de que o resgate da positivação da prescrição e da decadência como prazos
distintos no Código Civil de 2002 se deu justamente por causa de sua afirmação insistente
na jurisprudência e na doutrina a despeito de sua negação na lei.17 Neste ponto, tem-se um
V. BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. cit., p. 29: “Todas estas relações sociais [do estado de
natureza] eram reguladas por normas jurídicas (tinha-se, assim, os direitos reais, o direito das obrigações, o
direito de família e aquele das sucessões). Segundo os jusnaturalistas a intervenção do Estado limita-se a tornar
estáveis tais relações jurídicas. Por exemplo, segundo Kant, o direito privado já existe no estado de natureza e
a constituição do Estado determina apenas o surgimento do direito público; contrapõe o modo de ser do direito
privado no estado de natureza àquele característico do mesmo direito na sociedade política, afirmando que no
primeiro momento tem-se um ‘direito provisório’ (isto é, precário) e no segundo momento um ‘direito
peremptório’ (isto é, definitivamente afirmado graças ao poder do Estado).”
16
Há nas teorias juspositivistas um corte epistemológico que estabelece a partir de que ponto ou de que plano
se estabelece uma análise propriamente jurídica, e não de outros fatores ideológicos, políticos, etc. Na teoria
de Hans Kelsen, o corte é dado pela enigmática Norma Fundamental, mas não só nela. Vê-se, a teor de suas
considerações sobre a teoria da interpretação, que foram conscientemente eliminados outros dados que
sabidamente interferem na aplicação da norma atribuindo-se somente um poder de preenchimento da “normaquadro” conforme entendimentos até certo ponto discricionários, na medida em que as razões que podem
fundamentar a escolha do juiz pela interpretação em um ou outro sentido não podem ser apreendidas pela
Ciência Jurídica e seriam estranhas ao seu objeto. (V. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 1ª edição
publicada em 1934. São Paulo: Martins Fontes, 2009). Seria quase como afirmar que a hermenêutica não
compõe a Ciência Jurídica.
17
Importa lembrar o papel da doutrina e da jurisprudência, senão como fonte de direito – a depender do sistema
jurídico –, de base para a institucionalização de normas jurídicas. Vale dizer que o papel da doutrina não é
somente o de inspirar a jurisprudência, mas também o de, conjuntamente a ela, inspirar a legislatura. A
abordagem funcional da distinção parece relevante não só para a compreensão sistemática do ordenamento
civil, como também para orientar o legislador a respeito da natureza das escolhas feitas no momento da
proposição das leis. Sobre a temática da institucionalização das normas jurídicas a partir de sua cognição e
propagação cultural, veja-se o ensaio esclarecedor de PEREIRA, Flávio Henrique Silva. ‘Ordem normativa e
15
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paralelo com a visão jurídica do momento imediatamente posterior à codificação no século
XIX que reproduziu substancialmente o direito afirmado ao longo da Idade Média, em um
esforço de enunciação de quais são as regras que regem a vida privada pelo registro estático
e codificado dos entendimentos há muito aplicados e jurisprudencialmente construídos.18
A percepção da positivação tardia da distinção entre os prazos, atrelada a
um jusnaturalismo igualmente tardio induziria o intérprete, hoje, a retratar o tema da
prescrição e da decadência em suas bases estritamente legais, ou legalistas, despertando
dúvidas somente no que diz respeito ao convincente legado civilista que, no entanto,
abordava o problema em bases jusnaturalistas. Por tudo, a temática tem sido ainda mantida
imune a recursos metodológicos recentes de compreensão do direito civil, como a
consideração do aspecto dinâmico das situações subjetivas, a superação do dualismo entre
norma e fato, e o delineamento do perfil funcional dos institutos jurídicos.19
Haveria uma questão complicada em torno da indagação sobre estar a lei
contrariando alguma “natureza das coisas” quando, no entanto, já não se adota um paradigma
filosófico pelo qual exista uma “natureza das coisas” a ser respeitada ou contrariada. 20 Por
isso, há ímpetos de afirmação de alguma ilegitimidade da reforma processual procedida pela
Lei 11.280/2006, por exemplo, querendo identificar nela uma inconstitucionalidade que não
institucionalização’. In: LACERDA, Bruno Amaro; FERREIRA, Flávio Henrique; FERES, Marcos Vinício
Chein (org.). Instituições de direito. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2011.
18
V. VAN CAENEGAN, R. C. Uma introdução histórica ao direito privado. São Paulo: Martins Fontes, 2000,
p. 8: “As fontes imediatas usadas pelos autores do Code civil de 1804 foram o direito comum francês tradicional
do século XVIII, que era um amálgama dos direitos eruditos e consuetudinário, parte do qual era bem antiga;
e, em segundo lugar, as inovações feitas durante a Revolução. Essa mistura do velho e do novo adequava-se
ao clima político da nação e, depois da queda do ancien régime, mostrou-se também bastante adequada à
sociedade pequeno-burguesa do século XIX.”
19
Sobre os referidos recursos metodológicos, ver, por todos, PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na
legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008; BODIN DE MORAES, Maria Celina. ‘A caminho
de um direito civil-constitucional’. In: Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional.
Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 3 – 20 (originalmente publicado em Direito, Estado e Sociedade, n. 1. Rio
de Janeiro, 1991); TEPEDINO, Gustavo. ‘Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito
civil’. In: Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 1 – 22 (aula inaugural do ano acadêmico de
1992, proferida no salão nobre da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro).
20
Ver, por exemplo, a visão da distinção entre prescrição e decadência contida em NEVES, Gustavo Kloh
Müller. Prescrição e decadência no direito civil. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008: “hoje, diante do
avanço da ciência jurídica e da sofisticação da atividade legislativa, acrescidos do fato de que o CC/2002
diferencia expressamente a prescrição da decadência, cabe ao legislador, em especial, determinar se um prazo
é de prescrição ou de decadência. Em se tratando de um diploma legislativo de elaboração antiga, no qual não
haja diferenciação precisa entre prescrição e decadência, podemos nos valer desses critérios [propostos por
Agnelo Amorim]; se um diploma, todavia, distingue os institutos, não consideramos possível a interpretação
que um prazo de prescrição, assim denominado no texto da lei, seja de decadência, e vice-versa.” Embora o
autor tenha construído uma base principiológica para a abordagem do tema da prescrição, fundando-o no
princípio da segurança jurídica, que, por sua vez, atrai a legalidade, trata-se, no que diz respeito à temática da
distinção, do brocardo in claris non fit interpretatio, já que o critério científico de Agnelo Amorim seria usado
somente de forma supletiva às lacunas deixadas pela lei. Do ponto de vista filosófico, tem-se claramente
reconhecida a mudança de paradigma, pela qual anteriormente valeria uma abordagem jusnaturalista do tema,
a qual deveria ser dispensada no momento subsequente à positivação.
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tem, ou uma contrariedade a princípios e valores jurídicos tais que não contraria em
momento algum, ou acabando por afirmar escatologicamente, no outro extremo, que já não
existe mais distinção entre prescrição e decadência.
2. A inscrição do problema em uma metodologia constitucionalizada (e a insuficiência
do critério topográfico de distinção)
Atrair a temática da distinção entre os prazos de prescrição e decadência
ao método civil-constitucional significa inscrevê-lo na legalidade constitucional. Não se trata
de afirmar, como há muito tem sido feito, que o tema não está à disposição do legislador,
mas ao mesmo tempo em que a legalidade não é reduzida a legalismo.
Deve a legalidade ser entendida de forma conectada à igualdade e ao
sentido aristotélico de justiça que, na formulação de Claus Wihelm Canaris, está na base do
pensamento sistemático aplicado à Ciência do Direito.
A ordem interior e a unidade do Direito (...) pertencem (...) às mais
fundamentais exigências jurídicas e radicam na própria ideia de Direito.
Assim, a exigência de ‘ordem’ resulta diretamente do reconhecido
postulado de justiça, de tratar o igual de modo igual e o diferente de modo
diferente, de acordo com a medida da sua diferença. (...) A regra da
‘adequação valorativa’, retirada do princípio da igualdade, constitui a
primeira indicação decisiva para a aplicação do pensamento sistemático na
Ciência do Direito.21
Segundo Canaris, a sua referência com relação aos critérios de ordem e
adequação valorativa se reporta a um sentido interno de sistema jurídico e não em um sentido
externo que “se reporta aos conceitos de ordem da lei; pois este não visa, ou não visa em
primeira linha, descobrir a unidade de sentido interior do Direito, antes se destinando, na sua
estrutura, a um agrupamento da matéria e à sua apresentação tão clara e abrangente quanto
possível”.22
Dessas premissas teóricas, parte, em primeiro lugar, a consideração básica
para uma distinção funcional no sentido de que, inscrevendo-se a temática nas noções de
ordem e adequação valorativa, parte-se do princípio de que à distinção estrutural deve
corresponder uma distinção funcional.
21
CANARIS, Claus-Wihelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na Ciência do Direito. 3ª ed.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. p. 18.
22
CANARIS, Claus-Wihelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. cit. p. 26.
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Vislumbra-se, assim, a insuficiência do primeiro critério de distinção entre
prescrição e decadência, e que diz respeito ao aspecto “topográfico”, ou seja, à sua
localização no código. Este foi apontado por Miguel Reale como apto a eliminar as dúvidas
e perplexidades que pendem sobre o assunto:
Quem é que no Direito Civil brasileiro ou estrangeiro, até hoje, soube fazer
uma distinção nítida e fora de dúvida entre prescrição e decadência? Há as
teorias mais cerebrinas e bizantinas para se distinguir uma coisa da outra.
(...) Ora, quisemos por um termo a essa perplexidade, de maneira prática,
porque o simples é o sinal da verdade, e não o bizantino e o complicado.
Preferimos, por tais motivos, reunir as normas prescricionais, todas elas,
enumerando-as na Parte Geral do Código. Não haverá dúvida nenhuma: ou
figura no artigo que rege as prescrições ou então se trata de decadência.23
A proposta, em verdade, não é inovadora. Esse tipo de organização era já
o pretendido no projeto do código de Beviláqua. Era também o tipo de organização constante
em códigos predecessores, como o Code Napoleon que regulamenta em um mesmo
dispositivo a prescrição e a usucapião (chamada prescrição aquisitiva) e nada aduz, em
termos gerais, sobre a decadência. Mas o fato de não ser uma estratégia nova não chega a
ser uma crítica. Convém, de fato, que o sistema externo do direito facilite a assimilação do
sistema interno, de forma que a divisão consiste ao menos em aplicação de boa técnica
legislativa. Entretanto, o problema hermenêutico da distinção entre os prazos não se resolve.
Não é, pois, que se trate de um critério equivocado, mas insuficiente.
A insuficiência do critério repercute na prática por não explicitar, por
exemplo, quais são as situações subjetivas que não se sujeitam a prazo algum, sendo
imprescritíveis, e quais são as situações que se sujeitam ao prazo decenal do art. 205, ou
porque também não esclarece qual a natureza dos prazos previstos em outros diplomas que
não o Código Civil, como o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto da Criança e do
Adolescente. Por fim, o critério não pode ser tomado como definitivo sequer para a
classificação dos prazos previstos no próprio Código Civil. Dentro de uma abordagem
sistemático-valorativa do direito não é a localização do prazo que permite dizer se o prazo é
de prescrição ou de decadência, mas o fato de dever ser de prescrição ou de decadência,
REALE, Miguel. ‘Visão Geral do Projeto do Código Civil’. In Revista dos Tribunais, v. 752, São Paulo, jun.
1998, p. 23. Na verdade, o critério topográfico não diz respeito, propriamente, à localização do prazo na Parte
Geral ou na Parte Especial, pois há prazos na Parte Geral. O prazo para anulação do negócio jurídico, por
exemplo, embora esteja na Parte Geral, é de decadência. A ideia do critério topográfico é de distinguir os prazos
que são previstos juntamente das situações que visam extinguir, dos prazos que são previstos em geral, nas
disposições dos art. 205 e 206 do Código.
23
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64
conforme o distinto perfil funcional em cada caso, é que deverá servir a identificar qual é ou
qual deveria ser sua melhor localização no código.
3. O legado civilista com relação à distinção entre os prazos: os critérios empírico e
científico de distinção
A partir da distinção prévia quanto ao objeto, os civilistas brasileiros
tributários do Direito Romano ou influenciados pelo direito alemão, herdeiro direto da
Pandectística, adotaram a visão da prescrição como perda da ação. É esse o caso de Antônio
Luís da Camara Leal, responsável pela formulação do chamado critério empírico.24
A questão se reporta à polêmica entre Windcheid e Müther sobre a função
que a ação (actio nata) cumpria no Direito Romano. Como naquele sistema não existisse a
figura do direito subjetivo, discutia-se se a actio nata cumpria esse papel.25 O
desenvolvimento dessas discussões gerou no direito processual uma teoria da ação que
repercutiu no direito material para transformar a teoria sobre a prescrição. Anteriormente,
vigorava a chamada teoria imanentista da ação, propugnada por Savigny, sendo, depois,
substituída pela teoria autonomista da ação.
Na teoria imanentista, não há direito sem ação nem ação sem direito.26
Pensavam os partidários da prescrição como perda da ação que fazia sentido estabelecer que
o que se extingue é a ação, consequência do direito, e não o próprio direito, asseverando que
o direto só é atingido de forma indireta.
Para outros autores, porém, esses ligados à tradição ítalo-francesa, a
ligação entre ação e direito seria tão próxima que não faria sentido falar-se da manutenção
do segundo diante da extinção do primeiro. Para Caio Mário da Silva Pereira, por exemplo,
a distinção não estaria no objeto, mas no fundamento:
24
CÂMARA LEAL, Antônio Luís da. Da Prescrição e da Decadência. cit. p. 23. Foi Agnelo Amorim Filho
quem denominou empírico esse critério já em vias de criticá-lo.
25
Em Roma, um cidadão que buscasse a tutela do Estado precisava, antes, por meio da editio, requerer a
fórmula da ação (actio nata). Essa fórmula designava qual regime jurídico deveria ser aplicado ao caso a ser
pleiteado. Junto dessa designação nomeava-se também um juiz para avaliar o caso que se apresentava a partir
da fórmula que se concedia. Foi da nomeação desse juiz que se passou a conceber a prescrição. No termo
praescriptio está contida, justamente, a ideia do “pré-escrito” que seria uma fórmula prévia dada ao caso
segundo a qual o interessado deve promover o processo em certo tempo, sujeitando-se, caso contrário, a perder
o direito de ver sua demanda apreciada. CARREIRA ALVIM, J. E. Teoria Geral do Processo. – 11ª Ed. – Rio
de Janeiro: Forense, 2007, passim.
26
V. CARREIRA ALVIM, J. E.. Teoria Geral do Processo. cit. p. 116. Essa teoria foi assumidamente adotada
pelo Código de 16 que dizia em seu art. 75 que “a todo direito corresponde uma ação, que o assegura.”
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O fundamento da prescrição encontra-se (...) em um interesse de ordem
pública em que se não perturbem situações contrárias, constituídas através
do tempo. O fundamento da decadência é não se ter o sujeito utilizado de
um poder de ação dentro dos limites temporais estabelecidos à sua
utilização.27
Com a prevalência da teoria autonomista da ação na Teoria Geral do
Processo, ao invés de perder importância a distinção entre os prazos quanto ao objeto, foi
apenas criada uma modalidade intermediária de situação subjetiva, a pretensão, para explicar
que é essa que se extingue com o exaurimento do prazo de prescrição, e não propriamente a
ação.
Essa é a claramente a visão adotada no texto do código de 2002, como
explicitado por Moreira Alves, responsável direto pela redação da Parte Geral:
Adotou-se [para a prescrição], à falta de uma nomenclatura melhor,
a figura da pretensão, que vem do Direito germânico. Violado o
direito, nasce para o titular a pretensão que se extingue pela
prescrição dos prazos. Pelo sistema do Projeto, há direitos e poderes
que dão margem à violação, em decorrência da qual – foi a posição
doutrinária que se adotou – surge esse instituto da pretensão.28
Muito embora a adoção do critério de Camara Leal tanto quanto a adoção
do critério de Agnelo Amorim não estejam vinculadas a uma posição quanto à perda do
direito ou à perda da ação ou pretensão, a partir da distinção ou não quanto ao objeto podem
ser despertadas reflexões distintas.
Assim se deu quanto ao critério empírico de Camara Leal, segundo o qual
os prazos são distinguidos casuisticamente, identificando-se se o seu “nascimento” se dá
juntamente com um direito ou com a violação de um direito – ou, seja, com a ação (ou
pretensão) voltada a sua tutela. Nessa proposta, o direito que decai nasce já tendo em seu
próprio conteúdo um prazo de exercício. O prazo, porém, que surge de forma sucessiva a
uma violação (e nasce posteriormente ao surgimento do próprio direito) é de prescrição.29
27
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Intituições de Direito Civil, Vol. I. 19ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002,
p. 435. Assim, também GOMES, Orlando. Introdução do Direito Civil. 17ª ed. Atualizações e notas de
Humberto Theodoro Júnior. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 496.
28
MOREIRA ALVES, José Carlos. ‘A parte geral do projeto do Código Civil’. Revista CEJ, v. 3, n. 9, p. 511, set./dez., 1999.
29
CÂMARA LEAL, Antônio Luís da. Da Prescrição e da Decadência. cit., p. 37: “Há [entre a decadência e a
prescrição] uma substancial diversidade de objetos, recaindo a decadência sobre o próprio direito, que já nasce
condicionado, e recaindo a prescrição sobre a ação, que supõe um direito atual e certo. A prescrição tem como
uma de suas condições a que ação tenha nascido, isto é, se tenha tornado exercitável; ao passo que a decadência,
extinguindo o direito antes que ele se fizesse efetivo, impede o nascimento da ação. Tendo por objetivo proteger
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Para explicitar com mais clareza o critério, o autor apontou duas regras que seriam capazes
de solucionar “todas as dificuldades apontadas pelos escritores nacionais e estrangeiros”:
1.ª – Focalizar a atenção sobre estas duas circunstâncias:
se o direito e a ação nascem, concomitantemente, do mesmo fato;
se a ação representa o meio de que dispõe o titular, para tornar efetivo o
exercício de seu direito.
2.ª – Se essas duas circunstâncias se verificarem, o prazo estabelecido pela
lei para o exercício da ação é um prazo de decadência, e não de prescrição,
porque é prefixado, aparentemente, ao exercício da ação, mas, na realidade,
ao exercício do direito representado pela ação.30
Agnelo Amorim Filho rejeitou o critério proposto por Câmara Leal. Para
atingir seu anseio de estabelecer um critério científico de distinção, utilizou em sua
abordagem as teorias que buscaram a sistematização e a categorização dos direitos como
marco teórico e estabeleceu um fundamento racional com pretensões científicas para a
distinção. Valeu-se da classificação de direitos pensadas por Chiovenda. A partir delas,
defendeu que a prescrição se refere a direitos subjetivos que têm por finalidade um bem da
vida a ser obtido por meio de uma prestação; enquanto que a decadência diria respeito aos
chamados direitos potestativos ou poderes formativos. Segundo tal classificação, ao direito
subjetivo corresponderia, para sua tutela, uma sentença condenatória, e a extinção da ação
pelo prazo de prescrição; ao direito potestativo, por sua vez, corresponderia uma sentença
constitutiva, e sua subordinação ao prazo de decadência; por fim, ações imprescritíveis
seriam aquelas que buscam sentença declaratória.
O critério proposto por Amorim segue hegemônico na doutrina brasileira,
não se tendo apresentado razão ou argumentação doutrinária que merecesse superá-lo,31
tendo sido claramente o orientador da positivação subsequente da distinção no Código Civil
de 2002, como se infere da leitura de Moreira Alves:
e garantir o direito, a ação tem uma individualidade própria, distinta do direito, em benefício do qual exerce a
sua atividade, e, por isso, diferentes são as suas origens. É assim que o direito nasce do fato que o gera, jus
oritur ex facto; e ação, da violação por ele sofrida. Enquanto nenhuma perturbação sofre o direito, nenhuma
ação existe que possa ser posta em atividade pelo seu titular.” Sobre a decadência: “Todo direito nasce de um
fato a que a lei atribui eficácia para gerá-lo. Esse fato ou é um acontecimento natural, alheio à vontade humana,
ou é um ato, dependente dessa vontade (...). Em ambos esses casos, a lei ou o agente pode subordinar o direito,
para se tornar efetivo, à condição de ser exercido dentro de um certo período de tempo, sob pena de caducidade.
Se o titular do direito assim condicionado deixa de exercitá-lo dentro do prazo estabelecido, opera-se a
decadência, e o direito se extingue, não mais sendo lícito ao titular pô-lo em atividade.” (p. 119)
30
Ibid. p. 397.
31
THEODORO JR., Humberto. ‘Distinção científica entre prescrição e decadência. Um tributo à obra de
Agnelo Amorim’. cit.
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Não há pretensão justamente porque são direitos não susceptíveis de
violação, mas pode haver a necessidade de prazo para o exercício deles, e
mais, de prazo para o seu exercício por via judicial, a fim de que se
demonstre neles não a sua violação, mas a sua existência para o efeito de
seu exercício, como é o caso, por exemplo, da anulação de casamento e,
em face do Projeto, da anulação de negócio jurídico. Nesses casos, o que
ocorre é a decadência.32
Segundo essa visão, se o objeto da prescrição, que é a pretensão, surge da
violação de um direito, esse direito só pode ser daquele tipo que possui em sua correlação
na relação jurídica um dever de prestação, o que está ao encontro das construções de
Amorim. Os direitos sujeitos à decadência, por outro lado, seriam insusceptíveis de violação.
4. Um balanço teórico: os critérios de distinção e sua crítica rumo a uma compreensão
funcional
Sendo inegável a clareza da técnica metodológica usada por Amorim, e
ainda que suas bases teóricas tenham sido recepcionadas na sistemática do Código de 2002,
não é certo, ainda assim, que a caracterização da situação jurídica como direito subjetivo ou
potestativo interfira realmente sobre a caracterização do prazo para o seu exercício.
Tome-se, por exemplo, o inc. II, do art. 1.814 do Código Civil, que prevê
a possibilidade de exclusão da sucessão em face da calúnia praticada pelo herdeiro contra o
autor da herança. Essa prerrogativa pode realmente ser entendida como direito potestativo,
mas não há razões para se dispensar automaticamente a possibilidade de ser vista como uma
pretensão nascida da violação de um direito outro, no caso o direito à honra.
Se a exclusão da herança é insusceptível de violação – o que, como se verá
à frente, não é propriamente verdadeiro –, isso não interfere no fato de que a honra é
susceptível de violação e de que a partir de uma violação ao direito à honra nasce a faculdade
de se promover a exclusão da herança. Neste caso, dever-se-ia inferir que o prazo do art.
1.815 do Código Civil é de prescrição ou de decadência?
A situação subjetiva está sujeita a compreensões variáveis, conforme o
realce ao seu perfil dinâmico, funcional, etc. e pode, inclusive, assumir conotações especiais
em face do caso concreto. A classificação da situação subjetiva como direito subjetivo ou
potestativo e a classificação de um prazo como de prescrição ou de decadência se reportam
MOREIRA ALVES, José Carlos. ‘A parte geral do projeto do Código Civil’. Revista CEJ, v. 3, n. 9, p. 511, set./dez., 1999.
32
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a reflexões de tipo diverso – possivelmente (mas não necessariamente) conectado. Por tudo,
o que se mostraria especialmente equivocado seria cristalizar o entendimento sobre a
exclusão da herança, aduzindo tratar-se notoriamente de direito potestativo, ante o fato de
que se sujeita a prazo de decadência.33
Em uma abordagem dinâmica e funcional das situações jurídicas
subjetivas, e tendo em vista o tipo de valoração que subjaz à juridicidade dos fatos, é tênue
a variação pela qual se diz que um prazo nasce juntamente do direito, ou posteriormente a
um direito, com sua violação, uma vez que a função cumprida em ambas as hipóteses
permaneceria a mesma. Pode-se dizer que a faculdade de excluir da herança nasce com a
calúnia, tanto quanto se pode dizer que nasce pela violação à honra. Não se trata
necessariamente, neste caso, do resultado de uma profunda reflexão sobre estrutura e função
da exclusão da herança. Trata-se, antes, de uma escolha quanto à organização das palavras
que condiz mais com uma variação de significantes do que de significados.
Não parece, então, funcionalmente adequado estabelecer uma alteração do
tipo de prazo com base apenas em uma alteração das palavras selecionadas para tratar da
situação subjetiva que por ele se extinguiria. Neste sentido, é o entendimento de Pietro
Perlingieri, que a respeito do paralelismo entre a classificação da situação subjetiva e a
classificação dos prazos aduziu:
Por vezes, procurou-se individuar uma distinção nítida entre o direito
subjetivo e o direito potestativo no fato que somente este último poderia se
extinguir por decadência. Uma das distinções que a doutrina apresenta
entre o instituto da decadência e o instituto da prescrição extintiva
consistiria justamente no objeto dos dois institutos: enquanto a prescrição
(não exercício de um direito por um determinado período de tempo)
extinguiria os direitos subjetivos, a decadência seria o modo de extinção
típico dos poderes formativos. Prescindindo da distinção entre prescrição
e decadência, é necessário esclarecer que não é o objeto – direito subjetivo
de um lado, direito potestativo do outro – o elemento diferenciador entre
os dois institutos. Nem mesmo sob este perfil é útil uma construção unitária
do direito potestativo, o qual às vezes se extingue porque a situação mais
complexa se extingue por prescrição ou por decadência, às vezes se
Veja-se que, nos termos da proposta do critério científico, se estabelece uma relação lógica do tipo “se e
somente e se”. Quer dizer, embora Amorim faça parecer que a relação é do tipo “Se direito subjetivo, então
prescrição”, e “Se direito potestativo, então decadência”, a ordem inversa do enunciado é também autorizada
por suas análises, de forma que “Se prescrição, então direito subjetivo” e “Se decadência, então direito
potestativo”. A questão está em que, como diz o art. 189 do Código: “Violado o direito, nasce para o titular a
pretensão.” E casos há em que se pode discutir se o direito potestativo em questão não é, na verdade, uma
pretensão, nos moldes do que define o próprio artigo. Ou mesmo se a pretensão não é, por si só, um direito
potestativo.
33
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extingue autonomamente porque ele mesmo se submete à prescrição ou à
decadência.34
Observe-se, ademais, que, em que pese a visão comum da exclusão da
herança como direito potestativo, essa pode perfeitamente ser vista como pretensão. Aliás, a
pretensão, por si, não deixa de ser um direito potestativo, conforme a visão do próprio
Chiovenda:
A ação é, pois, no meu entender, um direito potestativo e até se pode dizer
um direito potestativo por excelência. Até aqui, a categoria de direitos
potestativos foi agrupada em torno da característica comum, isto é, da
tendência de produzir um estado jurídico novo perante um adversário.35
Sendo possível substituir ação por pretensão também neste caso, estará
agravada a dificuldade teórica de se distinguir um prazo como sendo de prescrição ou
decadência conforme a caracterização da situação subjetiva por ele extinta, seja ela o direito
potestativo, seja a pretensão. Assim é que, aduz o autor: “O direito potestativo não tem
nenhuma relação especial com a prescrição; inclusive comumente o que se prescreve é um
direito potestativo – a ação.”36
Mediante a classificação de Chiovenda, também a regra sobre a
imprescritibilidade não se sustenta. Ao explicar porque entende ser a ação um direito
potestativo, Chiovenda cita como exemplo outro direito que ele classifica também como
potestativo, qual seja, o direito de impugnar a legitimidade do filho. Embora esse direito se
sujeite a prazo, no entendimento de Chiovenda, a sentença que resulta do pedido de
impugnação não é constitutiva, mas declaratória.37
Aduz-se, portanto, que os critérios de Amorim e de Camara Leal não
saturam o problema da distinção e, levados ao extremo, não deixam de apresentar falhas
comuns – sendo notável, aliás, uma semelhança tal entre eles, que é possível inferir que se
reportam a uma mesma compreensão da distinção, embora sob perspectivas diversas.
É certo, todavia, que tanto a proposta de Camara Leal quanto a proposta
de Agnelo Amorim foram representativas para o sistema civil. A verdade é que sendo o
34
Assim, PERLINGERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. cit. p. 689, 690.
CHIOVENDA, Giuseppe. A ação no sistema dos direitos, cit, p. 31.
36
Ibid. p. 33.
37
“Quando entre os direitos potestativos estiver compreendido o direito de impugnar a legitimidade do filho,
já se abrem as portas dessa categoria para a ação. O direito de impugnar a legitimidade não é mais do que pura
ação, e, exatamente, uma ação de declaração de certeza, que é direito subjetivo por si própria, mas não exercício
de algum outro direito subjetivo” (Ibid, p. 32)
35
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70
critério de Camara Leal anterior ao de Amorim, este, ao estabelecer a sua distinção científica,
não deixou de reproduzir a distinção que já era aplicada no ordenamento jurídico e que, por
sua vez, operava segundo a proposta empírica.38
Como é possível compreender atualmente (através de um paradigma
científico pós-moderno)39 enunciados de investigação jurídica não são descritivos, mas
propositivos e, embora Amorim pretendesse sinceramente a cientificidade de seu estudo, não
poderia se dar conta do seu papel de participante, e não de observador, na ordem jurídica.
Assim, ambas as teorias, embora assumissem implicitamente uma postura metodológica de
cientista-observador e embora buscassem proceder com uma descrição do sistema ou de uma
abordagem do “ser” dos prazos, proferiram, na verdade, uma proposição e uma abordagem
do “dever ser” característica da postura de participante – colaborador na construção dos
entendimentos sobre o direito.40
Por trás da questão da “metafísica dos prazos”, está claro que o esforço
essencial de Amorim foi de identificação e articulação de algo que já se encontrava presente
entre os juristas. Tal como Camara Leal, tudo que ele fez foi dar uma das articulações
possíveis para a questão, argumentando, não obstante, que era a única articulação correta.
Uma articulação interessante, na medida em que se baseava em critérios que faziam sentido,
mas ainda assim, uma articulação de certo modo contingente que, somente por sua própria
intervenção como jurista que, pensando revelar o “ser” estabelece um “dever ser”, se
transformaria de contingente em necessária no sistema do ordenamento nacional.
CAHALI, Yussef Said. Prescrição e Decadência – 2ª Ed. – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 31:
“A pretendida distinção científica entre os dois institutos não passa, na essência, de um desdobramento
dinâmico da distinção segundo a origem da ação, a que completaria: nos direitos potestativos, o poder
outorgado ao respectivo titular origina-se com o próprio direito; se estabelecido prazo para o seu exercício,
será de decadência; nos direitos subjetivos, a pretensão condenatória nasce posteriormente, com a lesão
representada pelo descumprimento da prestação; assim será de prescrição o prazo para a respectiva ação.”
39
A respeito de um paradigma científico pós-moderno e sua relevância para a Ciência do Direito, v. SANTOS,
Boaventura de Sousa. ‘Um discurso sobre as ciências na transição para uma ciência pós-moderna’. Estudos
avançados. 1988, vol.2, n.2, pp. 46-71.
40
Conforme os ensinamentos de Boaventura de Souza Santos, pode-se perceber que a postura de participante
é mais do que uma opção metodológica que se reporta à superação do positivismo. Ela é um fato tão verdadeiro
com relação à Ciência do Direito, quanto com relação até mesmo a Ciências Naturais ditas “exatas” como a
Física. A superação do paradigma newtoniano na Física diz respeito a uma limitação de que da nem mesmo
Newton poderia se dar conta, já que aprisionado às suas experiências pessoais acerca da natureza. Na
Modernidade, a incerteza é uma preocupação metodológica das Ciências Sociais que, assim, tentam se valer
ao máximo dos métodos precisos das Ciências Naturais. Simbólico da alteração dessa dinâmica é a
comprovação do princípio da incerteza de Heisenberg. Ficou então demonstrado que nem mesmo na Física,
Ciência Natural cujo desenvolvimento teórico é digno de destaque, é possível eliminar a incerteza em uma
experimentação. Lidar com a incerteza é um desafio para a metodologia da ciência, mas a incerteza sempre
esteve lá. A diferença do paradigma pós-moderno é que se trata de um paradigma consciente da incerteza, e
que procura lidar com ela. (SANTOS, Boaventura de Sousa. ‘Um discurso sobre as ciências na transição para
uma ciência pós-moderna’. cit.).
38
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71
Camara Leal e Agnelo Amorim, então, não elucidaram a distinção que não
era pré-existente. Eles propuseram uma maneira de enxergar a distinção, a qual, tendo sido
aceita, passou a ser aplicada e tornou-se efetivamente a distinção existente. De tal forma que,
como dito, a proposta de Amorim foi acatada por Moreira Alves na redação da Parte Geral
do Código Civil de 2002.
Por tudo, a manutenção dos critérios hoje não significa o reconhecimento
de sua validade, mas a assunção de uma postura segundo a qual neles está prevista uma
maneira adequada e conveniente de retratar a questão.41 Já não parece, entretanto, ser o caso
de manter-se esse mesmo entendimento, havendo a necessidade de inscrever-se a abordagem
do tema no método civil-constitucional.
5. Conclusão: uma proposta funcional de distinção
Na linha do que foi acima exposto, vale destacar que uma distinção
funcional a ser proposta a respeito dos prazos de prescrição e decadência não pode se afastar
sobremaneira da distinção científica, tal qual a distinção científica também não se afastava
da empírica. Isso se dá, em primeiro lugar, porque, de fato, para se chegar a uma distinção
funcional foi revisitado o legado civilista sobre a questão, sendo o trabalho de Agnelo
Amorim a mais importante referência sobre o assunto no direito civil nacional. Além disso,
afastar-se o critério completamente da proposta de Amorim seria descaracterizar os próprios
institutos no direito nacional, já que veem sendo entendidos e aplicados de acordo com a
construção pregressa sobre o tema. A diferença em relação à distinção funcional que se
constrói e a distinção científica de Amorim, portanto, estará, ao menos, com relação ao
enfoque dado para a questão (mas não só aí, como em breve será exposto).
Realçar o perfil funcional de um instituto jurídico no ordenamento atual,
em que a dignidade humana é o valor unificador do sistema, é revelar a maneira pela qual o
instituto se presta à realização de propósitos humanos e à proteção da pessoa. Descarta-se,
desde já, a visão pela qual seria a prescrição ou a decadência uma sanção aplicada a quem
tenha se quedado inerte no exercício de um direito, simplesmente porque, neste caso, não
41
A esse respeito, é inspiradora a passagem conclusiva da obra de DWORKIN, Ronald. O império do direito.
São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 492: “A atitude do direito é construtiva: sua finalidade, no espírito
interpretativo, é colocar o princípio acima da prática para mostrar o melhor caminho para um futuro melhor,
mantendo a boa-fé com relação ao passado. É, por último, uma atitude fraterna, uma expressão de como somos
unidos pela comunidade apesar de divididos por nossos projetos, interesses e convicções. Isto é, de qualquer
forma, o que o direito representa para nós: para as pessoas que queremos ser e para a comunidade que
pretendemos ter.”
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haveria sujeito de direito a ser protegido por meio dessa sanção, nem mesmo algum interesse
público estaria sendo preservado.
A função da prescrição e da decadência deve ser buscada em seu aspecto
positivo, em relação ao indivíduo que se beneficia desses institutos. São, pois, mecanismos
de proteção do interesse daquele que ocupa o polo (predominantemente) passivo de uma
relação jurídica e que, assim, se liberta de uma situação de incerteza. Para Chiovenda, por
exemplo, o direito de impugnar o contrato por um vício de vontade “está sujeito, ainda que
seja um direito potestativo, à prescrição ou à decadência, ou como se queira dizer, porque o
estado jurídico indeciso deve cessar o mais rápido”.42
A passagem do tempo somada à inércia do titular constitui um fato
juridicamente valorado de uma forma específica. Onde se pensava haver um interesse
jurídico, a inércia do titular indica haver razões para crer que não há interesse de fato,
deixando de ter sentido o interesse que se atribuía àquela pessoa. Diante dos fatos, ficam
caracterizadas as razões para se retratar os prazos como um mecanismo de assimilação dos
fatos da vida pelo direito.
Bem mais adequada, portanto, é outra perspectiva que trata desses dois
institutos como mecanismo de se promover a segurança e a estabilidade das relações. Fraçois
Ost retrata a prescrição, mais do que isso, como uma manifestação do perdão na ordem
jurídica:
Como para o desuso, a prescrição extintiva surge, assim, como um
mecanismo de adaptação do direito ao fato: na falta de ter podido se
realizar conforme a sua prescrição, o direito (aqui entendido como direito
subjetivo) alinha-se na situação de fato contrária que se consolidou no
intervalo. De novo, ou se pode lamentar o revés do direito que, por
preocupação com efetividade e realismo, acaba por consagrar uma
injustiça, ou, ao contrário, admirar as capacidades de autoadaptação de
uma regulamentação jurídica que consegue finalmente inscrever qualquer
fato ou ato à série ininterrupta do tempo, e consagra, assim, uma outra ideia
de justiça que quer que se esqueça o que durou demais sem chegar a se
realizar.43
Mas para compreender, propriamente, em que consiste a distinção
funcional que se propõe haver entre prescrição e decadência, vale visualizar o esquema
abstrato da relação jurídica, pelo qual existe um polo (predominantemente) ativo
correspondente a um polo (predominantemente) passivo.
42
CHIOVENDA, Giuseppe. A ação no sistema dos direitos, cit, p. 33 (sem grifos no original).
OST, François. ‘Perdão. Desligar o Passado’. In O Tempo do Direito. Tradução de Élcio Fernandes. Bauru:
Edusc, 2005.
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No esquema de compreensão da função dos prazos de prescrição e
decadência, ao polo ativo é conferido um poder tal que sujeita o polo passivo, seja para
constranger-lhe ao cumprimento de uma prestação, seja para submeter-lhe, de qualquer
forma, às consequências de uma decisão que incumbe predominantemente à vontade do polo
ativo e independe da vontade do polo passivo. Fica então o polo passivo acoplado a uma
definição que incumbe ao polo ativo, restando aprisionado em um estado de incerteza e
descontrole de sua própria sorte.
Se não houvesse um prazo para o exercício desse poder ou faculdade
atinente ao polo ativo, o estado de incerteza seria absoluto e no mínimo angustiante, pois
somente em seu desfavor poderia ter desfecho, podendo este se passar em qualquer momento
até a eternidade.44 Por isso mesmo, é comum que a lei preveja um prazo para o exercício
dessa faculdade “definidora” a ser exercida pelo polo ativo.
Assim, o estado de incerteza pode cessar (i) pelo exercício da faculdade
que incumbe ao polo ativo, se o fizer, ou, se não o fizer, (ii) pelo decurso do tempo, conforme
a previsão de um prazo legal. O prazo em questão é variável, tanto no aspecto quantitativo
(pelo tempo fixado) quanto no aspecto qualitativo (pelo tipo de prazo previsto, ou pelas
regras fixadas para sua contagem). De qualquer modo, a variedade de formas pelas quais são
previstos os prazos corresponde a uma distinta valoração do estado de incerteza a que põe
termo.
Há casos, porém – talvez a maioria deles – em que existirá ainda uma
terceira forma de cessar o estado de incerteza, a qual poderá se dar (iii) pela prática de um
ato jurídico específico que compete ao próprio polo passivo da relação. Trata-se do
adimplemento ou de outros atos que o equivalham. Neste caso, a condição de incerteza do
polo passivo é qualitativamente distinta da sua condição no caso em que não se lhe faculta a
prática de qualquer ato hábil a liberar-lhe dessa condição.
O que distingue funcionalmente a prescrição da decadência, conforme a
proposta ora apresenta, é a condição para a liberação do polo passivo nesses dois casos. No
primeiro caso, em que ao polo passivo não é atribuída a legitimidade para praticar qualquer
Fala-se, neste caso, em “angústia” e não se entende haver aí uma falha metodológica, mas, pelo contrário,
uma observância estrita ao sentido de uma abordagem funcional. A funcionalização das situações jurídicas
subjetivas se reporta, em último grau, à dignidade da pessoa humana, enquanto a consciência da necessidade
de tornar concreta essa funcionalização exige também a consideração de um parâmetro de alteridade que leve
em conta um ser humano concreto, e não um padrão abstracionista de pessoa. Toma-se sempre por referência
a crítica de Costas-Douzinas que aduziu: “O sujeito jurídico, o conceito-chave sem o qual os direitos não podem
existir, é, por definição, altamente abstrato, uma estrutura ou esqueleto que será preenchido com a carne fraca
dos deveres e o sangue desbotado dos direitos. A metafísica jurídica não tem tempo para dor das pessoas reais.”
(DOUZINAS, Costa. O fim dos direitos humanos. 1ª Ed. São Leopoldo: Unisinos, 2009, p. 165).
44
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ato hábil a provocar sua liberação o prazo é de decadência. No segundo caso, em que ao polo
passivo é dado praticar um ato correspondente à satisfação do interesse do polo ativo na
relação jurídica o prazo é de prescrição.
A incerteza neste último caso é, aliás, compartilhada entre os polos ativo e
passivo da relação. Enquanto o polo passivo pode desconhecer a intenção do polo passivo
de constranger-lhe ou não à prática do ato que lhe caberia praticar, o polo ativo, por sua vez,
pode desconhecer a intenção do polo passivo de fazê-lo espontaneamente ou não. Isso
justifica, por exemplo, as hipóteses em que a prescrição se interrompe por um ato tal do polo
ativo que demonstre inequivocamente a intenção de constranger o polo passivo à prática do
ato em questão, ou pela afirmação inequívoca, por parte deste, seja da existência da relação
jurídica, seja de sua intenção de adimpli-la. A interrupção do prazo não deixa de
corresponder a uma renovação das expectativas quanto ao adimplemento ou à intenção de
exigi-lo, seguindo o impedimento e a suspensão a mesma lógica.
O mesmo não se passa com as circunstâncias em que o prazo previsto é o
de decadência. Como neste não é dado ao polo passivo a prática de qualquer ato, nem ato
algum dele se espera, não faz sentido pensar-se em interrupção, suspensão ou impedimento
do prazo, tanto quanto não faz sentido pensar-se em renúncia. A renovação do prazo no caso
da prescrição faz sentido porque significa a reafirmação da relação jurídica e da expectativa
de que o ato a ser praticado pelo polo passivo efetivamente o será. Se nenhum ato se espera
do polo passivo, por outro lado, nem a ele é atribuído qualquer outro papel senão o de se
sujeitar ao que ficar decidido pelo polo ativo, não faz sentido estabelecer uma renovação do
prazo que, assim, toma seu curso linear.
A renúncia, nos casos de prescrição faz sentido, porque importa uma
manifestação da intenção do polo passivo de fazer extinguir a sua condição de devedor, não
pelo decurso do prazo, mas pela prática do ato de adimplemento que lhe incumbe praticar.
No caso da decadência, porém, nenhum ato incumbia ao polo passivo, nem qualquer poder
lhe foi conferido com relação a sua condição de polo passivo na relação, de maneira que
também exaurido o prazo – que era o único meio de resolver-se o estado de incerteza em seu
benefício – este não condiz com alguma renúncia.
Adota-se, pois, uma visão aproximada à de Moreira Alves que por sua vez
inspirou-se em Agnelo Amorim, mas de forma desprendida dos modelos do direito subjetivo
ou do direito potestativo; atendo-se ao perfil dinâmico das situações subjetivas (embora não
tenha se expressado nesses termos) que se distinguem pelo fato de serem ou não passíveis
de violação.
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É de se observar, então, que essa divisão poderia corresponder em linhas
gerais à mesma distinção que se faz entre direito subjetivo e potestativo, nos moldes em que
se baseou Agnelo Amorim.45 Via de regra, será mesmo possível observar-se um paralelo, já
que o objeto prestacional do direito subjetivo é o que se põe em destaque para afirmar que
se conecta a prescrição. No entanto, o paralelismo, neste caso, não é necessário, mas
contingente.
No caso do divórcio, por exemplo, tem-se um direito potestativo que não
se sujeita a prazo. Deveras, entre pessoas casadas, o estado de incerteza é uma constante que
não pode ser suprimida por qualquer regra legal. Em contrariedade à proposta de Agnelo
Amorim (se bem que esta fosse anterior à legalização do divórcio) ainda que seja este um
direito potestativo, não se submete a qualquer prazo.
Não apenas isso, direitos potestativos podem, sim, estar ligados a um prazo
de prescrição. Pense-se o caso em que um vendedor, ou adquirente inviabiliza, por qualquer
expediente, o exercício de um direito de preferência. Trazendo-se a incidência dos deveres
anexos de boa-fé, tem-se que ao polo passivo, titular da situação jurídica de sujeição
(correlata à situação de direito potestativo), não é dado obstaculizar o exercício do poder
atribuído pelo ordenamento ao polo ativo.46 Se o faz, viola o livre exercício do direito
potestativo. “Violado o direito, nasce para o titular a pretensão”, no caso, talvez, uma
responsabilização civil, a qual se submeterá a prazo de prescrição.
Valendo lembrar que a pretensão por si é também um direito potestativo,
o que, sem dúvida pode provocar confusões, vale também lembrar que se extingue por
prescrição, e não por decadência. De fato, embora seja a pretensão um direito potestativo,
pode perfeitamente ser extinta com base em um ato que o polo passivo é legítimo a praticar.
No caso da violação de um direito, por exemplo, como um acidente de trânsito que tenha
sido causado pelo polo passivo, pode esse se dispor a arcar com todos os custos de reparos
Vale observar, ainda mais uma vez, que não se trata, neste ponto, de uma proposta “inaugural” de distinção,
nem poderia valer uma proposta deste tipo. A linha adotada, aliás, se assemelha bastante à abordagem de
Moreira Alves sobre o tema, mais do que qualquer outra, mas somente por um comprometimento com o
propósito de identificar uma distinção funcional foi possível formar um entendimento sobre a adequação dessa
construção. (V. MOREIRA ALVES, José Carlos. ‘A parte geral do projeto do Código Civil’. Revista CEJ.
cit.).
46
V. PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. cit., p. 687: “Se for verdade, porém,
que o titular da sujeição não pode impedir a produção dos efeitos na própria esfera, é também verdade que ele
é titular de um dever específico (obbligo) ou, se se preferir, de um dever genérico de não impedir ao titular do
poder não somente de realizar o ato, mas também de alcançar o resultado. O titular da situação de sujeição
deve também cooperar para que o titular do poder formativo possa exercê-lo utilmente. Não se trata de simples
sujeição: é, ao revés, presente um dever de cooperação. A sujeição é a situação de um momento: o efetivo
exercício por parte do titular do direito potestativo.”
45
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daí advindos. Com o acidente, nasceu a pretensão, a qual pode ser extinta pelo adimplemento
espontâneo e pelo acordo entre as partes, podendo também ser exercida pelo ajuizamento da
respectiva ação de reparação de danos se necessário e podendo, por fim, se extinguir pela
prescrição.
Retomando-se a citação a François Ost, é possível vislumbrar ainda mais
uma distinção funcional entre os institutos. Ao titular de um direito possivelmente violado
atribui-se um interesse jurídico que este não se mostrou realmente interessado em exercer.
O interesse atribuído não se mostra real ou, se for real, adiou-se por um tempo tal que já se
mostraria excessivamente prejudicial ao polo passivo o seu exercício. A prescrição se volta
a consolidar uma situação de fato oposta ao que se pensava corresponder à efetivação de um
direito. Trata-se de um processo de assimilação jurídica dos fatos sociais.47
A decadência, porém, não se enquadra neste papel, mas diz respeito,
precisamente, a um dos aspectos regulamentares que compõem a própria situação jurídica
subjetiva que visa extinguir.
Essa noção está em sintonia com o próprio critério topográfico, em que a
decadência é prevista juntamente da fattispecie que por ela se extingue, possivelmente na
Parte Especial, devendo ser entendida como parte componente dessa mesma fattispecie.
Assim, não só existe um direito de pedir a anulação do negócio jurídico, como esse direito
existe precisamente quatro anos (art. 178, Código Civil) e nada mais, o que seria uma das
pretendidas distinções entre negócio nulo e anulável – ultrapassado um termo temporal, a
anulabilidade se convalida.
Essa noção está em sintonia também com critério empírico em que a
decadência nasce juntamente ao direito que com ela se extinguiria. O nascer juntamente ao
direito é compor intrinsecamente o direito e integrar sua própria estrutura. Seria parte
imanente do direito de arrependimento previsto no Código de Defesa do Consumidor (art.
49) que ele seja exercido no prazo de sete dias. O prazo compõe completamente o conteúdo
do direito de arrependimento no caso e não condiz com uma expressão externa limitadora
47
Tais considerações são hábeis a fortalecer a tese da imprescritibilidade do dano moral, ou ao menos de sua
flexibilização, tendo em vista que tais presunções não se fazem igualmente lógicas na hipótese de danos à
pessoa humana. A prescrição, via de regra, diz respeito à situações precisas. Um inadimplemento, por exemplo,
advém de uma obrigação que deveria ter sido paga em certo tempo e não o foi. Fica clara a natureza da violação
tanto quanto as circunstâncias jurídicas que dela surgem. O dano moral, como decorrente da cláusula geral de
tutela da pessoa humana, se sujeita a formas variáveis e mesmo subjetivas de assimilação. Sua configuração
perante o direito depende de argumentação e ponderação. Sua configuração perante a pessoa depende de um
processo muitas vezes lento de racionalização do trauma. A previsão de prazo – ainda por cima tão exíguo –
para o dano moral é possivelmente contrário ao imperativo de tutela da pessoa humana, provocando um
obstáculo disfuncional.
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do seu exercício. Simplesmente, não poderia haver direito de arrependimento se este não
contivesse um prazo para o seu exercício, sendo adequado que seja um prazo curto.
A decadência, dessa forma, embora possua, por si, uma função que diz
respeito a excluir um estado gravoso de incerteza, é extremamente afetada pela função da
situação jurídica que integra, estando aí o mais relevante aspecto de sua adequação
valorativa. Esse aspecto explica, por exemplo, a inexistência de prazo para o exercício do
divórcio, já que um prazo seria incompatível com a própria função do direito.
Analisada em concreto, vê-se que, diferentemente da prescrição que é um
instituto jurídico, funcionalizado à instituição de uma modalidade de perdão, a decadência
não se atribui uma função própria, senão residual. É elemento componente e integrante da
situação jurídica que extingue, e revela mais sobre o aspecto funcional desta situação
subjetiva do que de si mesma, como detalhe isolado e reduzido da situação que se investiga.
Por outro lado, o que a decadência revelará da respectiva situação é, justamente, que ela
provoca um estado de incerteza a outrem, o qual, salvo exceções, não deve durar
eternamente.
6. Considerações finais
Por fim, vale destacar que prescrição e decadência não são modalidades
estanques de prazos, os modelos não reduzem as possibilidades pensáveis de fixação de um
termo temporal. São modelos e, como tais, são referências úteis às quais pode ser válido
recorrer em circunstâncias diversas, tendo em vista que sobre eles já se produziu um legado.
Mas o ordenamento jurídico é um sistema móvel e aberto e se não há qualquer metafísica
dos prazos também não há porque restringir os prazos a esses modelos.
Pode-se, por exemplo, prever um prazo tal que, diante de determinado fato
jurídico, reduz-se à metade ou prolonga-se ao dobro se assim se mostrar conveniente para a
regulamentação de alguma situação jurídica. Não se terá, por isso, qualquer falha de técnica
legislativa. Será possível dizer deste prazo que é de prescrição ou de decadência, como será
possível dizer que é sui generis. A discussão será, não sobre a compreensão do sistema
jurídico, mas sobre o significado das palavras.
Prescrição e decadência são, sobretudo, palavras. Palavras que expressam
algum sentido que aqui se procurou investigar, mas que não limitam os sentidos todos que
são possíveis e que não foram captados por algum outro significante. E, ainda assim, como
palavras que são, estão também sujeitas à transformação de seus sentidos, conforme os
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sentidos variados que assumem ao longo do tempo. Sendo palavras que expressam normas,
estão sujeitas à variações de sua compreensão, seja como palavras, seja como normas.
Tem-se nelas, hoje, distinções estruturais bem conhecidas e ministradas,
mas que não se ofendem diante de alguma flexibilização, como a prevista no art. 207 do
Código Civil.
É possível dizer que com a possibilidade de impedimento, deixa-se de ser
decadência para ser prescrição, mas isso não é certo. O prazo de quatro anos para impugnar
o reconhecimento de paternidade do filho menor se conta a partir de sua maioridade do filho,
sendo exemplo de impedimento aplicado a um prazo de decadência. Será possível dizer que
não se trata propriamente de um impedimento com fins de manter-se cristalizado o sentido
da decadência, mas isso será uma escolha sobre palavras e não sobre normas, pois o
regramento da questão será o mesmo.
É possível dizer que, com a possibilidade de impedimento, o prazo não é
de decadência, mas de prescrição. Isso, porém, à custa da melhor compreensão sobre as
normas jurídicas, pois o direito de impugnar o reconhecimento de paternidade não sofre
nenhum dos outros fenômenos atinentes à prescrição, como a suspensão, a interrupção e o
impedimento em todas as demais hipóteses, além da impossibilidade de renúncia.
Com a reforma processual de 2006 (Lei 11.268/2006) alterou-se
substancialmente o regime da prescrição, que passou a poder ser conhecida de ofício. Isso,
sem dúvida diminui a distinção entre prescrição e decadência, mas tantas mútuas
particularidades se mantêm que não há razões para pensar-se ter havido uma diluição entre
os institutos. Apenas, por essa mudança das estruturas, vislumbram-se escolhas distintas a
respeito das funções a serem ou não promovidas.
Vale dizer que para novas funções ou para funções distintas devem ser
concebidas novas estruturas, ou devem ser adaptadas as estruturas pré-concebidas. Os prazos
para o exercício de situações jurídicas estão à disposição da legalidade, para fazer tratar
igualmente aos iguais, e desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualem –
sendo essa “medida” avaliada pelo legislador conforme o juízo que se faça de cada caso.
Nisso consiste a superação de uma visão jusnaturalista sobre o tema sem decair, por isso, em
um formalismo jurídico.
Recebido em 17/09/2014
1º parecer em 07/01/2015
2º parecer em 02/03/2015
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PARECER
CONTRATO DE SEGURO DE VIDA E O AGRAVAMENTO DO RISCO
Life insurance contract and risk management
Luiz Edson Fachin
Professor Titular de Direito Civil na Faculdade de Direito da Universidade Federal do
Paraná. Pós Doutor. Pesquisador convidado do Instituto Max Planck, de Hamburg (DE). Professor Visitante
do King’s College, London. Advogado.
Resumo: O cerne deste parecer cinge-se às reflexões teóricas acerca do contrato de seguro
de vida e de circunstâncias que autorizem às seguradoras ao não pagamento do capital
contratado em sede de seguro de vida. Debruçar-se-á sobre a análise do agravamento do
risco e a necessidade de sua intencionalidade quanto à percepção do capital contratado, em
especial diante das disposições do art. 768 do Código Civil pátrio, bem como sobre o sentido
que se deve atribuir a essa intencionalidade. Analisar-se-á a natureza da prova necessária à
eventual desconstituição do direito dos beneficiários à percepção da prestação da seguradora,
bem como a quem caberia o onus probandi pertinente à intencionalidade no agravamento do
risco objetivo do contrato. Ponderar-se-á, por fim, sobre a existência ou não, nos documentos
submetidos à presente análise, de prova dessa estirpe no presente caso que tenha condão de
afastar o pagamento do seguro contratado, fornecendo, então, respostas aos quesitos.
Palavras-chave: contratos; seguro de vida; agravamento do risco.
Abstract: The core of this legal opinion is the theoretical reflections on the life insurance
contract and the circunstamces that permit insurers to non-payment of capital engaged in life
insurance range. We will look into the analysis of risk management and the need for its
intentions regarding the perception of capital employed, particularly on the provisions of art.
768 of the Civil Code, and about the meaning to be attributed to this intention. It will be
examined the nature of the evidence necessary for eventual deconstitution of the right of
beneficiaries to the perception of the compensation, as well as who would take the onus
probandi about the intentionality on increasing risks of the contract. It will be considered,
finally, the documents submitted to this analysis, leading to the answer that the evidence of
this type in this case has power to ward off the payment of the compensation.
Keywords: contracts; life ensurance; risk management.
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Sumário: 1. Da consulta – 2. Dos quesitos – 3. Do objeto do Parecer – 4. Breve escorço
fático – 5. Reflexões teóricas preambulares: do contrato de seguro de vida – 6. Inteligência
e aplicabilidade do art. 768 do Código Civil: da necessária vinculação da intencionalidade
de agravamento do risco – 7. Da prova e do ônus probatório da intencionalidade de
agravamento do risco – 8. Das circunstâncias concretas: ausência de prova que corrobore a
intencionalidade de agravamento do risco – 9. Resposta aos quesitos apresentados
1. Da consulta
Consultam-nos acerca da repercussão jurídica de questões pertinentes ao
pagamento de capital decorrente de contratos de seguro de vida em face de passamento.
Apresenta-se cópia de documentos, em especial daqueles oficiais atinentes
à investigação da morte e as respostas negativas de cobertura (e consequente pagamento do
valor do capital contratado) de diversas seguradoras com as quais o de cujus mantinha
relação contratual.
2. Dos quesitos
Diante de interesses legítimos decorrentes de contratos de seguro de vida
firmados pelo falecido Sr. X, vêm de nos consultar seus beneficiários, solicitando análise e
a apresentação de parecer a respeito do seguinte:
(i) À luz dos fatos, como deve ser a aplicação do artigo 768 do Código
Civil ao presente caso?
(ii) O que configura o “agravamento do risco” elencado no artigo 768 do
Código Civil?
(iii) A quem cabe o ônus probatório da intencionalidade do segurado
dirigida ao agravamento do risco e que prova é apta para atender a esse
ônus?
(iv) No presente caso, pode-se dizer que há prova que sustente a alegação
do agravamento do risco por parte do Sr. X, consoante narram as respostas
negativas de pagamento das seguradoras?
3. Do objeto do Parecer
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Em decorrência dos questionamentos erigidos, o cerne deste parecer cingese às reflexões teóricas, em cotejo com a matéria fática desenhada in casu, acerca do contrato
de seguro de vida e de circunstâncias que autorizem às seguradoras ao não pagamento do
capital contratado em sede de seguro de vida.
Preambularmente, far-se-ão breves considerações teóricas acerca dos
contratos de seguro de vida. Na sequência, ainda em sede de delineamentos teóricos,
debruçar-se-á sobre a análise do agravamento do risco e a necessidade de sua
intencionalidade quanto à percepção do capital contratado, em especial diante das
disposições do art. 768 do Código Civil pátrio, bem como sobre o sentido que se deve atribuir
a essa intencionalidade.
Em um segundo momento, à luz das normas atinentes à distribuição do
ônus da prova e ao sistema de proteção ao consumidor, analisar-se-á a natureza da prova
necessária à eventual desconstituição do direito dos beneficiários à percepção da prestação
da seguradora, bem como a quem caberia o onus probandi pertinente à intencionalidade no
agravamento do risco objetivo do contrato.
Por final, já aportando nas linhas conclusivas deste parecer, ponderar-se-á
sobre a existência ou não, nos documentos submetidos à presente análise, de prova dessa
estirpe no presente caso que tenha condão de afastar o pagamento do seguro contratado,
fornecendo, então, respostas aos quesitos.
4. Breve escorço fático
Narra-se que X faleceu aos 38 (trinta e oito) anos de idade, em vinte e
quatro de maio no hotel Y, na cidade de W.
Conforme se depreende da documentação apresentada, mormente
inquérito policial, de acordo com depoimento prestado à polícia local pelo Sr. Z, amigo do
de cujus que o acompanhava, o Sr. X chegou naquela localidade no dia vinte e três daquele
mês, motivado por questões de trabalho. Ambos hospedaram-se naquela localidade no hotel
KK.
Verifica-se do inquérito policial a informação de que o Sr. X foi
encontrado morto pela Sr.ª GG, que o conheceu em W. A morte foi declarada no quarto de
hotel da referida senhora, no estabelecimento Y, por volta das seis horas da manhã, do dia
vinte e quatro.
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De acordo com o laudo policial oficial das autoridades de W a causa mortis
foi o “envenenamento acidental por exposição a narcóticos e psicodisléticos”.
Dos documentos recebidos, dentre os quais se destacam declarações
pessoais de saúde complementar feitas de próprio punho pelo de cujus quando da contratação
do seguro, depreende-se que o Sr. X não era usuário de quaisquer substâncias químicas que
causem dependência.
O Sr. X era titular de alguns seguros de vida no Brasil.
De modo sistemático, as seguradoras, diante da requisição de pagamento
feita pela viúva beneficiária, em face do contido em seu atestado de óbito, negaram-se ao
pagamento haja vista que a conduta do de cujus supostamente teria agravado o risco,
elevando-o a patamares que fogem à cobertura contratada.
Da documentação entregue infere-se que companhias de seguros
consideraram indevido o pagamento, nos termos do artigo 768 do Código Civil, alegando
suposto agravamento do risco provocado pela conduta do Sr. X.
Eis a base fática narrada, que se depreende da documentação apresentada,
e que informa a análise a ser efetuada no presente parecer.
A partir desses pressupostos de fato, à luz dos quesitos formulados, passo
a examinar as questões jurídicas que vêm à tona como instrumentais à adequada
compreensão da matéria. Principie-se, nessa toada, com um necessário conjunto de reflexões
preliminares acerca do contrato de seguro de vida, de modo a aferir quais as consequências
jurídicas que dele podem derivar diante das circunstâncias de fato objeto da Consulta.
5. Reflexões teóricas preambulares: do contrato de seguro de vida
A compreensão da matéria a que se refere este parecer pressupõe reflexões
preliminares que situem o tema à luz da espécie de relação obrigacional de que se está a
tratar.
Cabe versar a respeito do conceito e dos caracteres fundamentais do
contrato de seguro, de modo a construir os subsídios necessários para a investigação das
repercussões jurídicas que advêm dos fatos narrados na Consulta.
O contrato de seguro, como se sabe, é modalidade contratual típica no
contexto do direito obrigacional pátrio.
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Mister advertir que em que pese o objeto das reflexões no presente parecer
seja especificamente o seguro de vida, a especificação do objeto não o faz diferir da
disciplina geral da regulação dos contratos securitários no direito brasileiro.1
Não há consenso ao redor de definição una para os contratos de seguro,
todavia, de modo geral, poder-se-ia apontar, como um delineamento a título de definição
precária, os elementos que conformam esta modalidade contratual, quais sejam: o interesse
segurável, a prestação do segurador, o prêmio e o risco.
Conforme explica Pontes de Miranda:
Contrato de seguro, segunda a definição corrente, é o contrato pelo qual o
segurador se vincula, mediante pagamento de prêmio, a ressarcir ao
segurado, dentro do limite que se convencionou, os danos produzidos por
sinistro, ou a prestar capital ou renda quando ocorra determinado fato,
concernente à vida humana, ou ao patrimônio. Aí a falta de unidade na
definição resulta de se ter em vista a distinção entre os seguros.2
Nessa moldura especial destaque tem o risco. A aleatoriedade é elemento
essencial das relações securitárias e consiste na superveniência de episódio futuro, incerto,
involuntário, todavia, possível – ou, no caso do seguro de vida acontecimento certo (morte)
de data incerta.
Acerca desse elemento preponderante nos contratos de seguro, a doutrina
clássica colhe o que ensina Ascarelli asseverar que “o risco é imanente”3 vez que, ocorrido
o sinistro, nenhum prejuízo advirá ao contratado.
Ademais, o contrato de seguro é essencialmente aleatório vez que não há
equivalência entre as prestações e sua execução, em face da dependência de evento futuro e
incerto. Por meio desta relação contratual entabulada há o translado do risco do segurado à
seguradora em virtude do pagamento de um prêmio.
A matéria geral das relações contratuais de seguro é regida
legislativamente de modo dual: de um lado, apóia-se nas previsões previstas nos artigos 757,
O Código Civil anterior trazia no seu artigo 1.471 definição específica sobre o seguro de vida, a saber: “O
seguro de vida tem por objeto garantir, mediante o prêmio anual que se ajustar, o pagamento de certa soma a
determinada ou determinadas pessoas, por morte do segurado, podendo estipular-se igualmente o pagamento
dessa soma ao próprio segurado, ou terceiro, se aquele sobreviver ao prazo de seu contrato”. O código vigente
trata de maneira genérica o contrato de seguro.
2
PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. Vol. XLV. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1964.
3
ASCARELLI, Túlio. Panorama do Direito Comercial. São Paulo: Saraiva, 1947. p. 173.
1
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e seguintes do Código Civil, por outro, está albergada dentro do sistema de proteção ao
consumidor, com especial atenção ao Código de Defesa do Consumidor.4
As previsões do Código Civil têm o condão de fixar as linhas gerais do
instituto, definindo-o e contextualizando-o dentro de acordo com os pilares que inspiram o
codex.
Nessa toada, eis o artigo 757 do CC que fixa: “pelo contrato de seguro, o
segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do
segurado, relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos predeterminados”.
Em que pese a manutenção dos padrões estruturais do Direito Civil
herdado da tradição moderna, o r. diploma legal aponta a necessidade, já presente no Código
de Bevilacqua, da observância dos princípios gerais informativos da ordem contratual, a
exemplo da boa-fé, consoante preceitua o art. 765: “O segurado e o segurador são obrigados
a guardar na conclusão e na execução do contrato, a mais estrita boa-fé e veracidade, tanto
a respeito do objeto como das circunstâncias e declarações a ele concernentes”.
Pondere-se que o esteio civilístico é apenas parcela do que suporta a
temática.
Consoante já ressaltado, ao lado da previsão do Código Civil, deve o
direito securitário ser mirado, concomitante e harmonicamente, também sob as lentes do
sistema nacional de proteção legal ao consumidor.
Tal baldrame bipartido deve-se às características das relações de seguro,
em especial no que tange à possível diferenciação de posicionamento entre as partes
contratantes, e pelas relações econômicas e sociais que encerram. Por tais razões os contratos
de seguro devem possuir ordenação especial.
No contexto consumeirista, o contrato de seguro encontra-se imerso em
paradigma distinto daquele presente na codificação civil hodierna que, em que pese alguns
avanços – a exemplo do artigo 765 supra transcrito – em grande medida, prestou-se a repetir
o modelo codificado anterior, fixando-se no dogma da autonomia da vontade e do pacta sunt
servanda.
A esse respeito, Fernando Noronha anota que:
A teoria jurídica construída pela ideologia liberal assentava em alguns
dogmas, que hoje estão em crise: a irredutível oposição entre indivíduo e
sociedade (o Estado seria um mal necessário cujas atividades era
4
É complexa a legislação específica que se espraia, para além dos diplomas indicados, em decretos-leis, leis,
portarias e medidas provisórias.
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necessário restringir ao mínimo; o princípio moral da autonomia da
vontade (a vontade humana seria o elemento essencial na organização do
Estado, na assunção de obrigações, etc.); o princípio da liberdade
econômica (laissez faire, laissez passer) e, finalmente, a concepção
formalista, meramente teórica, da igualdade e da liberdade política
(afirmava-se que os homens eram livres e iguais em direitos, sem se curar
de saber se a todos eles seriam proporcionadas as condições concretas para
exercitarem tais liberdades).5
Neste paradigma contratual renovado, o Código de Defesa do Consumidor
dispõe expressamente sobre as relações securitárias dentre aquelas por ele abarcadas. Nessa
senda, o § 2° do artigo 3º Código de Defesa do Consumidor fixa que:
Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada,
nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que
desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção,
transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização
de produtos ou prestação de serviços.
§ 1° Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial.
§ 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo,
mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de
crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter
trabalhista.
Nota-se a expressa referência às atividades de seguro como forma de
ressaltar a natureza híbrida – civil e consumidor – de seu alcance legal. Acerca do referido
dispositivo, Rizzatto Nunes aponta que “o legislador foi precavido, em especial, no caso
preocupado com que os bancos, financeiras e empresas de seguro conseguissem, de alguma
forma, escapar do âmbito de aplicação do CDC”6.
Pelo exposto não restam dúvidas que no segmento de seguros podem-se
entabular relações jurídicas de natureza tipicamente de consumo. Complementa Claudia
Lima Marques ressaltando o caráter consumerista das relações securitárias:
Resumindo, em todos estes contratos de seguro podemos identificar o
fornecedor exigido pelo art. 3º do CDC, e o consumidor. Note-se que o
destinatário do prêmio pode ser o contratante com a empresa seguradora
(estipulante) ou terceira pessoa, que participará como beneficiária do
seguro. Nos dois casos, há um destinatário final do serviço prestado pela
5
NORONHA, Fernando. O Direito dos Contratos e seus Princípios Fundamentais. São Paulo: Saraiva, 1994.
p. 94.
6
NUNES, Rizzatto. Curso de Direito do Consumidor. 4ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 95.
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empresa seguradora. Como vimos, mesmo no caso do seguro-saúde, em
que o serviço é prestado por especialistas contratados pela empresa
(auxiliar na execução do serviço ou preposto), há a presença do
‘consumidor’ ou alguém a ele equiparado, como dispõe o art. 2º e seu
parágrafo único.7
É certa, portanto, da localização do contrato de seguro como modalidade
típica que se assenta, respectiva e concomitantemente, na codificação civil pátria e no
microssistema de defesa do consumidor, que tempera a herança oitocentista do Direito Civil
com sua lógica diferenciada e princípios protetivos.
A vinculação dos contratos de seguro à tutela especial de defesa do
consumidor, busca suavizar, por meio da vertente material do princípio da isonomia
constitucional,8 o desequilíbrio entre as partes pertencentes a um contrato não paritário.
Destarte, a hermenêutica da compreensão do contrato de seguro deve
guardar proximidade teleológica com a ótica protetiva inerente ao Código de Defesa do
Consumidor, destinado este ao abrigo da parte mais vulnerável no contexto de determinada
relação contratual que, pelo desequilíbrio econômico e financeiro, não se coloca em pé de
igualdade em face do outro fornecedor contratante.
Esta proteção diferenciada deriva também da natureza de contrato por
adesão da qual o seguro é legítima espécie. Esta modalidade contratual caracteriza-se por
apresentar conteúdo preestabelecido por uma das partes apenas. Resta a outra parte
contratante a “faculdade” diminuta de concordar e aceitar as cláusulas já formuladas, sem
possibilidade de discussão sobre situação contratual previamente definida.
O consentimento dado pelo segurado contratante é manifestação de sua
adesão ao conteúdo contratual, restando-lhe somente à opção de acatar o contrato nas
condições que lhe é ofertado pelo fornecedor.
Nesse passo, concernente aos contratos por adesão, lança Maria Helena
Diniz:
Os contratos por adesão constituem uma oposição à idéia de contrato
paritário, por inexistir a liberdade de convenção, visto que excluem a
7
MARQUES, Claudia Lima. Contratos do Código de Defesa do Consumidor. 4ª edição. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2002. p. 141.
8
Nesse trajeto de sistemas interdependentes, impende registrar o sentido dessa travessia: “el cambio más
significativo del tránsito Del Estado de derecho al Estado social de derecho lo constituye la superación de
uma concepción formal por uma concepción material de la igualdad. La realización de la igualdad ya no
queda librada así únicamente a las fuerzas del mercado, sino que depende de la contínua y deliberada
intervención de las autoridades públicas para promover personas, grupos, y sectores desfavorecidos”.
ARANGO, Rodolfo. La jurisdicción social de la tutela. In: BETANCUR, Carlos M. Molina. Corte
Constitucional. Bogotá: Centro Editorial de la Universidad del Rosario, 2003. p. 108.
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possibilidade de qualquer debate e transigência entre as partes, uma vez
que um dos contratantes se limita a aceitar as cláusulas e condições
previamente redigidas e impressas pelo outro, aderindo a uma situação
contratual já definida em todos os seus termos. Esses contratos ficam,
portanto, ao arbítrio exclusivo de uma das partes – o policitante –, pois o
oblato não pode discutir ou modificar o teor do contrato ou as suas
cláusulas. É o que ocorre com: os contratos de seguro; os de venda das
grandes sociedades; os de transporte; os de fornecimento de gás,
eletricidade, água; os de diversões públicas; os de consórcio; os de
financiamento bancário. Eis por que preferimos denominar o contrato de
adesão de contrato por adesão, verificando que se constitui pela adesão da
vontade de um oblato indeterminado à oferta permanente do proponente
ostensivo.9
Categoricamente afirma a referida ilustre autora que a modalidade
contratual securitária “é um contrato por adesão, formando-se com a aceitação pelo
segurado, sem qualquer discussão, das cláusulas impostas ou previamente estabelecidas pelo
segurador na apólice impressa”10.
O consentimento indiscutido conferido pelo segurado, marca dos contratos
por adesão, é elemento que consolida o desequilíbrio contratual e a posição de
hipossuficiência que o segurado assume diante da seguradora uma vez que não há
possibilidade ordinária de se alterar o estabelecido.
Pode-se dizer que nos contratos por adesão, ainda que exista a liberdade
“de contratar”, ou seja, de escolha entre celebrar ou não o contrato, carece uma das partes da
efetiva liberdade “contratual”, que consiste na definição dos termos do contrato.
Enquanto a parte que formula o contrato exerce plenamente sua autonomia
privada, ao aderente resta sujeitar-se ao disposto previamente na proposta, sem efetiva
possibilidade de modificação das cláusulas que lhe são submetidas.
Há, portanto, claro desequilíbrio entre as partes contratuais nesses casos,
ainda que ambos sejam entes privados. Diante da questão concernente ao desequilíbrio
contratual presente nos contratos de adesão, parece possível – e, no mais das vezes,
necessário – regular nos casos concretos, de acordo com os parâmetros legais
constitucionais, o conteúdo e a interpretação das cláusulas contratuais. Isto porque a
existência da liberdade negocial não afasta a atuação estatal protetiva da ordem
constitucional e, em consequência, de um conjunto de direitos fundamentais.
No mesmo sentido a paradigmática jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal aponta que:
9
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 3° volume. 23. Ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 89.
Ibidem, p. 520.
10
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88
As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das
relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas
entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos
fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não
apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos
particulares em face dos poderes privados.11
Eis, portanto, em breves linhas, alguns dos alicerces constitutivos da
disciplina jurídica dos contratos de seguro da qual o presente parecer parte.
6. Inteligência e Aplicabilidade do art. 768 do Código Civil: da necessária vinculação
da intencionalidade de agravamento do risco
Consoante o acima exposto, a problemática que abrolha das relações
securitárias deverá ser mirada sempre no cotejo civilístico-consumeirista para conformação
de hermenêutica que melhor atenda aos anseios jurídicos contemporâneos.
É nesse influxo que o artigo 768 do Código Civil deve ser analisado. O r.
dispositivo consigna que: “o segurado perderá o direito à garantia se agravar
intencionalmente o risco objeto do contrato”.
Sublinhe-se que, consoante acima destacado, o risco é a essência do
contrato de seguro de vida, sendo ônus de o segurador assumi-lo, diante do pagamento do
prêmio como acontecimento futuro e incerto, tanto no que se refere à concreta realização,
quanto ao momento em que ocorrerá.
Para uma melhor interpretação do artigo ora em foco, mister sublinhar que,
nos termos legais do artigo 757 também do Código Civil, pela análise do risco apresentado
na proposta de seguro (“riscos predeterminados”), o segurador calcula e cobra o prêmio que
considera devido, proporcionalmente.
Em Silvio Rodrigues se explana de forma concisa a maneira de análise do
referido cálculo de proporcionalidades entre o prêmio e os riscos apresentados:
O cálculo das probabilidades é o elemento a que recorre o segurador para
fixar, de antemão, o prêmio que será pago pelo segurado. Pelo exame das
estatísticas, observando por vários anos e incidência dos sinistros num
determinado risco, verifica o analista, com extraordinário grau de precisão,
qual será a referida incidência no ano em estudo. É a aplicação da lei dos
grandes números. Um exemplo. Ainda que elementar, servirá para
esclarecer a hipótese: examinando os casos de homicídios culposos
resultantes de atropelamentos automobilísticos, durante alguns anos, e
11
STF, Segunda Turma, RE nº 201.819/RJ, Relator p/ acórdão Ministro Gilmar Mendes, DJ 27.10.2006.
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tendo em vista, digamos, dez mil segurados, verifica-se que sua incidência
é de determinada razão percentual. Daí deduz o calculista que todas as
coisas remanescendo as mesmas, tal razão deve perdurar no ano seguinte.
Com base nessa lei estatística, fixa o segurador a taxa de seguro, taxa que
será suficiente não só para pagar todas as indenizações, como também para
proporcionar um lucro razoável àquele.12
Isto posto, a fixação do valor a ser pago pelo prêmio leva em sua base
constitutiva a equação risco/valor e deve ser estipulada com base em juízos de probabilidade.
A importância paga leva em consideração o risco médio previsto para
aquele conjunto de variáveis não podendo ser revisto consoante flutuações para mais ou para
menos conforme o desenrolar da vida humana, salvo em hipóteses quantitativamente
expressivas nos termos do artigo 769 do Código Civil. Episódios singulares, portanto, não
devem ser considerados para este fim.
O segurador, em face do prêmio recebido, assume os riscos inerentes à
pessoa ou bens do segurado e, por sua vez, calcula o valor de sua remuneração em função
dos riscos assumidos.
Segundo Silvio Rodrigues, “o risco é elemento medular do seguro, pois
constitui o seu próprio objeto. (...) No seguro de vida o risco consiste no fato de a pessoa vir
a morrer mais cedo ou mais tarde”.13
Conclui-se, portanto, o dever de suportar o risco assumido pelo segurador
em razão do acordado entre as partes contratantes. Neste sentido, poder-se-ia sustentar que
“na interpretação do pacto securitário, é o alcance do risco que, pelo seguro, o contratante
transfere à seguradora, e não as circunstâncias de sua ocorrência”.14
Orlando Gomes confirma tal pensamento e alude:
A noção de seguro pressupõe a de risco, isto é, o fato de estar o indivíduo
exposto à eventualidade de um dano à sua pessoa, ou ao seu patrimônio,
motivado pelo acaso. Verifica-se quando o dano potencial se converte em
dano efetivo. Quando o evento que produz o dano potencial é infeliz,
chama-se sinistro. Assim, o incêndio. Tal evento é aleatório, mas o perigo
de que se verifique sempre existe. Por isso se diz, com toda procedência,
que o contrato de seguro implica transferência de risco, valendo, portanto,
ainda que o sinistro não se verifique, como se dá, alias, as mais das vezes.15
12
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. Volume 3. 28. Ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 331 e 332.
Ibidem, p. 336.
14
TJ-PR, 9ª Câmara Cível, AC nº 0485604-0, Relator Des. Sérgio Luiz Patitucci, DJ 11.01.2010.
15
GOMES, Orlando. Contratos. Atualizadores Antônio Junqueira de Azevedo e Francisco Marino. São Paulo:
Forense, 2008. p. 505.
13
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90
A fixação do prêmio e a análise dos riscos devem observar o dever de boafé e veracidade que as partes contratantes guardam entre si. A esse respeito, ensina Caio
Mário:
O segurado e o segurador são obrigados a observar, tanto na fase das
tratativas, quanto na conclusão e execução do contrato, a mais estrita boafé e veracidade. A boa-fé objetiva é elemento essencial deste tipo de
contrato, em razão de a fixação do prêmio depender de informações
prestadas pelo segurado, e em razão de sua aleatoriedade, tendo em vista
sempre haver a possibilidade de agravamento da álea do contrato durante
a sua execução, por fato que possa ou não ser imputado ao segurado.16
É com esteio no dever de boa-fé que o agravamento do risco pode ser
excludente do dever de pagamento da garantia, em circunstâncias que estejam preordenadas
à obtenção, em favor do beneficiário, do capital a que se obrigou a seguradora. Isto porque
o agravamento intencional do risco, após a celebração do contrato, acaba por acarretar
prejuízos financeiros para com o segurador.
Todavia, impende esclarecer, em primeiro lugar, que consoante a proteção
do consumidor nos contratos de seguro, cabe à seguradora contratada, com base nas
probabilidades, sopesar os riscos e a eles atribuir valor respectivo do prêmio. Em segundo
lugar, importa ressaltar que, com base na equação risco/valor, o cálculo do prêmio é feito
com base em risco médio previsto, sem levar em conta circunstâncias pontuais para além
deste padrão. Haja vista a natureza de adesão dessa forma contratual, não há, via de regra,
possibilidade de discussão material por parte do contratado.
O dever de boa-fé exposto no artigo 765 do Código Civil impõe que se
leve em consideração, na interpretação do contrato, a situação díspar existente entre as
partes, pois, tratando-se de contrato por adesão, a liberdade contratual é evidentemente
reduzida ou, quiçá, eliminada no que tange ao aderente. Com efeito, a presença de liberdade
“de contratar”, como liberdade de optar pela celebração ou não do contrato, ainda que esteja
presente, não é suficiente para permitir a afirmação da presença da liberdade “contratual”,
ou seja, a liberdade de definir o conteúdo do contrato.
Daí porque a boa-fé objetiva, em sua função integrativa, impõe em
contratos dessa natureza especial dever de proteção ao aderente imposto ao contratante que
formula as cláusulas.
16
PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil. 11. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 457
e 458.
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91
Demais disso, não se pode olvidar que no âmbito dos contratos por adesão,
mormente tratando-se de relação de consumo, nem sempre é atendido em sua plenitude o
dever de informação e clareza imposto às seguradoras.
À luz dessas premissas é que se deve analisar a expressão “agravar
intencionalmente o risco” incrustada na disposição supramencionada.
Não é qualquer majoração a que se refere este artigo. Note-se que o próprio
artigo 768 afirma que o agravamento em questão não é de qualquer risco, mas sim daquele
“risco objeto do contrato”. Ou seja, colhe-se da mens legis o liame entre majoração do risco
e o contrato de seguro.
Pelo exposto resta claro que o próprio legislador vinculou o risco agravado
em tela ao contrato de seguro.
Portanto, a elevação da alea apta a afastar o pagamento do valor previsto
na apólice é aquela relacionada a obtenção desta mesma garantia – ou seja, obtenção do
pagamento relativo ao contrato de seguro.
Destarte, deve haver, para a finalidade prática de aplicação do artigo 768,
um nexo causal17 que oriente o agravamento do risco ou, genericamente, a conduta do
segurado, à percepção do pagamento atinente ao contrato de seguro pactuado.
Para que a seguradora exonere-se do pagamento, nos termos do r. artigo,
há de haver conduta que importe no voluntário e consciente agravamento do risco por parte
do segurado para receber a quantia indenizatória acordada.
No vocabulário jurídico a intencionalidade a que faz referência o artigo
deve ser compreendida como “vontade voltada para um fim colimado ou desejado. É o que
se quer de modo consciente, de modo voluntário, sem nenhuma pressão ou coerção de
qualquer força externa”.18
Isso significa que não basta que a conduta tenha sido praticada
voluntariamente pelo segurado, ainda que com culpa grave: mister é que haja a intenção
preordenada de obtenção do capital (objeto do dever da seguradora) em favor do
beneficiário, e que essa conduta tenha, nessa medida, ensejado incremento do risco segurado.
Não é qualquer conduta culposa que enseja aumento do risco, e, do mesmo
modo, não é qualquer elevação do risco por conduta, ainda que voluntária, que permite à
Acerca da necessidade da comprovação do “nexo de causalidade” da intenção do segurado com o sinistro
eis, a título exemplificativo, a jurisprudência do TJ/PR nas apelações cíveis nº 0461452-4; 0403914-9 e
0293542-6.
18
DELGADO, José Augusto. Comentários ao Novo Código Civil. Volume IX. Tomo I. Coordenador Sálvio
de Figueiredo Teixeira. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 247.
17
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seguradora eximir-se do pagamento da indenização ou do capital constantes da apólice. É o
direcionamento do elemento subjetivo da conduta do segurado à obtenção da indenização ou
do capital, para si ou para outrem, que qualifica a hipótese de afastamento do dever de
prestação da seguradora.
Esta interpretação que exige tal liame – agravamento do risco/percepção
da indenização – mostra-se mais adequada porque, em primeiro plano, deriva da própria
literalidade de sentido colacionada no r. dispositivo legal que menciona “agravar
intencionalmente o risco objeto do contrato”19. Em segundo plano, a senda hermenêutica
aqui esposada é mais apropriada à observância constitucional. Supor que todas as atitudes
praticadas em vida interviriam no contrato de seguro geraria intromissão indevida à esfera
da liberdade individual.
Isto porque a liberdade de agir dos sujeitos, em todas as searas de sua
existência, restaria condicionada pelo pacto econômico securitário celebrado, configurando,
destarte, violação injustificada a direitos fundamentais.
Há ocorrências da vida humana que naturalmente geram insegurança – tais
como viajar de avião, trafegar de automóvel, utilizar-se de transporte rodoviário, submeterse a serviços médicos e de odontologia, entre outros – nem por isso podem ser consideradas
como agravadoras de risco para fins de seguro. Não se pode, a conta de suposto agravamento
do risco, tolher indivíduo contratante de seguro da prática de tais atividades, ainda mais se
não se configuram como habitualidade.
Nesse sentido, “não se há de exigir do segurado que esteja
angustiosamente atento a todo perigo, para evitá-lo. Ele contrata, em regra, o seguro para
mais tranqüilo enfrentar o perigo”.20
É correto concluir, dessarte, que “o risco agravado pelo segurado é o risco
causado por vontade própria, isto é, com intenção de se beneficiar do valor da garantia”.21
Segundo entendimento jurisprudencial, “para que a seguradora se exima do pagamento do
seguro, é necessário que comprove que houve voluntário e consciente agravamento do risco
por parte do segurado e, mais ainda, que esta conduta foi a causa determinante do sinistro”.22
“O legislador deu ênfase à intencionalidade do agravamento do risco, de onde se depreende que, na falta
desse elemento de vontade, sobrevive o espírito do artigo 1.453 do Código Civil”. In: CASES, José Maria
Trepat. Comentários ao Código Civil. Vol. VIII. Coord. Álvaro Vilaça de Azevedo. São Paulo: Atlas, 2003. p.
240.
20
BEVILACQUA, Clóvis. Código Civil Comentado. Volume V, p. 215.
21
DELGADO, José Augusto, op. cit., p. 247.
22
TJ/PR, 9ª Câmara Cível, AC nº 651148-6, Relator Des. Francisco Luiz Macedo Junior, julgado em
29.04.2010.
19
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O risco apto a sustentar extinção do dever de prestação do capital por parte
da seguradora é aquele gerado de forma preordenada pelo segurado para o fim de
desencadear o pagamento da prestação devida. Não se caracterizando a intencionalidade, a
partir desse baldrame interpretativo pautado no nexo causal entre conduta de agravamento
de risco e obtenção do pagamento do capital contratado, o dever da seguradora se mantém
hígido e íntegro.
Deve, consequentemente, ser restritiva a interpretação deste artigo que
apenas pode ser levado a efeitos práticos quando da existência de prova cabal que demonstre
vontade preordenada do segurado em dolosamente obter o pagamento da seguradora.
Eis o sentido que se pode atribuir à culpa grave ou ao dolo do segurado:
não se trata de culpa grave ou de dolo direcionados à conduta em si, mas ao resultado dessa
conduta frente ao contrato celebrado. Vale dizer: não se afere culpa ou dolo do segurado
com base na vinculação do seu elemento subjetivo ao resultado material do ato por ele
praticado, como fato da vida, mas, sim, no liame entre esse resultado e eventual intenção de
impor à seguradora o pagamento do capital contratado.
O liame entre conduta e resultado, na apreciação da existência ou não de
dolo ou culpa grave, está pautado no resultado jurídico, qual seja, o desencadeamento do
dever de prestação da seguradora. Se na prática da conduta pelo segurado, seja ela voluntária
ou acidental, não há a intenção dirigida ao resultado jurídico pertinente à obtenção, para si
ou para outrem, da indenização ou do capital a ser pago, não se apresenta hipótese apta a
desobrigar a seguradora do seu dever contratual.
A jurisprudência majoritária aponta a necessidade dessa ligação entre o
agravamento do risco, intencionalmente, e voltado à percepção do valor pago pela
seguradora. Eis o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, naquilo que é relevante para
o caso em tela:
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO. OFENSA AO ART. 535 DO
CPC. INEXISTÊNCIA. SEGURO. MORTE. SUICÍDIO NÃO
PREMEDITADO. ACIDENTE PESSOAL. SÚMULA 83/STJ.
INCIDÊNCIA. PRECEDENTES. I. Os embargos declaratórios, ainda que
opostos com a intenção de prequestionamento, devem ater-se às hipóteses
de cabimento do art. 535 do CPC. II. Esta Corte Superior firmou seu
entendimento no sentido de que o suicídio não premeditado encontra-se
abrangido pelo conceito de acidente pessoal, sendo nula, porque abusiva
cláusula excludente da responsabilidade da seguradora, à qual cabe,
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94
ademais, o ônus de provar eventual premeditação. III. Agravo
desprovido.23
DIREITO CIVIL. CONTRATO DE SEGURO. ACIDENTE PESSOAL.
ESTADO DE EMBRIAGUEZ. FALECIMENTO DO SEGURADO.
RESPONSABILIDADE DA SEGURADORA. IMPOSSIBILIDADE DE
ELISÃO. AGRAVAMENTO DO RISCO NÃO-COMPROVADO.
PROVA DO TEOR ALCÓOLICO E SINISTRO. AUSÊNCIA DE NEXO
DE CAUSALIDADE. CLÁUSULA LIBERATÓRIA DA OBRIGAÇÃO
DE INDENIZAR. ARTS. 1.454 E 1.456 DO CÓDIGO CIVIL DE 1916.
1. A simples relação entre o estado de embriaguez e a queda fatal, como
única forma razoável de explicar o evento, não se mostra, por si só,
suficiente para elidir a responsabilidade da seguradora, com a consequente
exoneração de pagamento da indenização prevista no contrato. 2. A
legitimidade de recusa ao pagamento do seguro requer a comprovação de
que houve voluntário e consciente agravamento do risco por parte do
segurado, revestindo-se seu ato condição determinante na configuração do
sinistro, para efeito de dar ensejo à perda da cobertura securitária,
porquanto não basta a presença de ajuste contratual prevendo que a
embriaguez exclui a cobertura do seguro. 3. Destinando-se o seguro a
cobrir os danos advindos de possíveis acidentes, geralmente oriundos de
atos dos próprios segurados, nos seus normais e corriqueiros afazeres do
dia-a-dia, a prova do teor alcoólico na concentração de sangue não se
mostra suficiente para se situar como nexo de causalidade com o dano
sofrido, notadamente por não exercer influência o álcool com idêntico grau
de intensidade nos indivíduos. 4. A culpa do segurado, para efeito de
caracterizar desrespeito ao contrato, com prevalecimento da cláusula
liberatória da obrigação de indenizar prevista na apólice, exige a plena
demonstração de intencional conduta do segurado para agravar o risco
objeto do contrato, devendo o juiz, na aplicação do art. 1.454 do Código
Civil de 1916, observar critérios de eqüidade, atentando-se para as reais
circunstâncias que envolvem o caso (art. 1.456 do mesmo diploma). 5.
Recurso especial provido.24
O Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Paraná já se pronunciou a
respeito deste assunto no sentido de que:
APELAÇÃO CÍVEL - SEGURO DE ACIDENTES PESSOAIS PREVISÃO DE INDENIZAÇÃO POR MORTE ACIDENTAL HIPÓTESE DE COBERTURA CONFIGURADA - EMBRIAGUEZ E
PORTE DE ARMA DE FOGO - NEXO DE CAUSALIDADE NÃO
COMPROVADO - INCUMBÊNCIA DO RÉU - AGRAVAMENTO DO
RISCO - ATO INTENCIONAL - NÃO COMPROVAÇÃO - DISPARO
ACIDENTAL - INABILIDADE DO SEGURADO - DEVER DE
INDENIZAR RECONHECIDO. 2. CLÁUSULA EXCLUDENTE DO
RISCO - PRÁTICA DE ATO ILÍCITO - NULIDADE RECONHECIDA MATÉRIA ABRANGIDA PELO EFEITO DEVOLUTIVO. APELAÇÃO
DESPROVIDA. 1a. A nominação do contrato como sendo de seguro por
acidentes pessoais não afasta o dever de indenizar diante da expressa
23
24
STJ, Quarta Turma, AgRg no Ag 647568/SC, Relator Ministro Aldir Passarinho Junior, DJ 26.06.2006.
STJ, Quarta Turma, REsp 780757/SP, Relator Ministro João Otávio de Noronha, DJ 14.12.2009.
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previsão de cobertura de morte acidental. 1b. Constitui ônus da seguradora
a comprovação da existência de nexo de causalidade entre o evento e os
fatores que seriam determinantes para a sua ocorrência. 1c. O estado de
embriaguez e o disparo de arma de fogo, ainda que o porte fosse ilegal, não
configuram hipótese de agravamento intencional do risco, especialmente
quando o disparo decorre de mera inabilidade do segurado no manuseio do
revolver. 2. É nula a cláusula contratual que prevê como excludente de
responsabilidade da seguradora, de forma genérica, a prática de ato ilícito,
pois coloca o consumidor em posição de desvantagem exagerada,
deixando-o ao alvedrio do fornecedor.25
No entendimento sumular do STF, súmula nº 105, a ausência de
premeditação, até mesmo em casos de suposto suicídio, não exclui o dever de pagamento.
Não é outro o entendimento do STJ que pacificou jurisprudência na súmula nº 61 que o
seguro de vida cobre o suicídio não premeditado que deve ser interpretado como morte
acidental26.
A lógica em que se pauta o dever da seguradora em caso de suicídio é a
mesma em que deve se compreender qualquer outra conduta que enseje risco de morte. Com
efeito, se a produção do evento morte pelo próprio segurado, como fato objeto do seguro,
não afasta o dever de prestação do capital contratado se não for preordenado ao percebimento
desse capital, com maior razão deve-se entender que se mantém hígido o dever da seguradora
em outras hipóteses que não a prática voluntária de suicídio.
Mister destacar caso análogo ao narrado na Consulta, relacionado à
intoxicação exógena do segurado, em que a Corte de Justiça do Estado do Paraná fixou este
entendimento sumulado, a saber:
AÇÃO DE COBRANÇA. CONTRATO DE SEGURO. MORTE DO
SEGURADO. INTOXICAÇÃO EXÓGENA AGUDA POR COCAÍNA
(OVERDOSE). EQUIPARAÇÃO A SUICÍDIO INVOLUNTÁRIO E
NÃO PREMEDITADO QUE, PARA FINS DE SEGURO, É
ABRANGIDO PELO CONCEITO DE ACIDENTE. MÁ-FÉ DO
SEGURADO. NÃO COMPROVAÇÃO. 1. A morte por overdose de
cocaína equipara-se a suicídio involuntário, ou seja, a vítima não
premeditou sua morte, não desejou o resultado e não tinha intenção
consciente e racional de matar-se. 2. A jurisprudência é pacífica ao
considerar, para fins de seguro, o suicídio involuntário e não premeditado
como acidente. (Súmulas n° 105 do STF e n° 61 do STJ) 3. A má-fé do
segurado traduz-se na omissão de informações que estava obrigado a
prestar. Não tendo sido questionado acerca do uso de drogas, não se pode
25
TJPR, 8ª Câmara Cível, AC 0396020-9, Relator: Juiz Subst. Gil Francisco de Paula Xavier F Guerra, DJ
15.05.2008.
26
Precedentes do STJ nesse sentido: Ag. Inst. nº 1150431/RS; AgRg no RESP nº 1047594/RS; AgReg no Ag
nº 632735/RS; RESP nº 472236/RS et ali.
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concluir que agiu
DESPROVIDO.27
de
má-fé.
RECURSO
CONHECIDO
E
Por todo exposto, diante da melhor interpretação, não há que se falar na
hipótese de agravamento de risco ligada à conduta involuntária e não planejada – e, portanto,
de boa-fé – do segurado, visto que a essência do contrato de seguros é a aleatoriedade.
É a intenção de fraudar o seguro que afasta a responsabilidade da
seguradora. Consoante já demonstrado, as Cortes Jurisdicionais têm unissonante, em prol da
equidade das partes e da defesa do consumidor, sustentado que “para a configuração de
hipótese de exclusão da cobertura securitária, exige-se que o segurado tenha agido
propositada e diretamente de forma a aumentar o risco contratual (colocando-se
deliberadamente frente à morte ou ao risco concreto de morte)”.28
A possibilidade de um risco futuro e incerto para com o segurado,
resultando na morte não voluntária nem premeditada deste, autoprovocada ou não, é o cerne
do contrato de seguro transferido à seguradora mediante o pagamento do prêmio. Exonerála do pagamento, nestas hipóteses, gera descumprimento contratual e desequilíbrio da
relação entabulada.
Ainda, cumpre registrar que eventual cláusula de exclusão da cobertura
contida no contrato de seguro per se não possuí o condão de afastar o dever de pagamento
da seguradora haja vista que seus contornos estão juridicamente vinculados pelo modelo de
adesão na contratação e pela assimetria marcante em sua formação e execução.
Neste influxo, impende registrar o enunciado nº 370, aprovado na 4ª
Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, 29 que afirma que os riscos
avençados, nos contratos de seguro por adesão, devem ser interpretados de acordo com o
princípio da dignidade humana, a função social dos contratos, a boa-fé objetiva e, em
especial consonância, com o artigo 424 do Código Civil que afiança que “nos contratos de
adesão, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do aderente a direito
resultante da natureza do negócio”.
É legítimo concluir, à luz do paradigma traçado, que apenas se admite o
não pagamento da indenização, independente da literalidade contratual, nos casos em que
27
TA/PR, 4ª Câmara Cível, Ap. Civ. 0155998-2, Rel. Juiz Fernando Wolf Bodziak, Julg. 11.12.2002.
TA-PR, 10ª Câmara Cível, AC 0214875-0, Relator Des. Lauri Caetano da Silva, D.J. 12.09.2003. No mesmo
sentido os precedentes: AC 0426882-0; 0281770-9; 0393482-7; 0311081-8 et ali.
29
A literalidade do enunciado afiança: “Nos contratos de seguro por adesão, os riscos predeterminados
indicados no artigo 757, parte final, devem ser interpretados de acordo com os artigos 421, 422, 424, 759 e 799
do Código Civil e 1º, inc. III da Constituição Federal”.
28
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for constatada claramente a premeditação juntamente com a má-fé do segurado. Tais
situações nem sempre são fáceis de serem provadas e trazem a lume importante questão
atinente ao ônus probatório nas relações de consumo, consoante considerações que seguem.
7. Da prova e do ônus probatório da intencionalidade de agravamento do risco
Examinada a questão atinente ao sentido da intencionalidade do
agravamento do risco, impende analisar o tema pertinente à prova do que se pode denominar
de agravamento intencional, de modo a aferir se no caso concreto há ou não demonstração
de fato hábil a eximir as seguradoras do pagamento do capital contratado.
Cabe, porém, preliminarmente, examinar com a devida atenção em que
consiste o thema probandum derivado da distribuição do ônus probatório entre as partes.
Com efeito, antes de se analisar a prova a respeito da intencionalidade do
agravamento do risco, impende aferir a quem cabe a produção dessa prova.
Trata-se de investigação que vai além da qualificação desse tema como
objeto de prova, mas, sobretudo, a quem caberia produzir prova sobre a existência ou
inexistência do fato apontado pela seguradora como supostamente apto a eximi-la do dever
de pagamento do valor da apólice.
A matéria atinente à prova do fato jurídico transita entre o direito material
e o direito processual, uma vez que diz respeito ao emprego dos meios legal e moralmente
admissíveis para o convencimento do magistrado sobre afirmações de fatos formuladas pela
parte, as quais, a seu turno, dizem respeito aos fatos que servem de suporte à formação da
relação jurídica.
É do convencimento ou não do magistrado sobre as afirmações de fato
formuladas pela parte que pode defluir a conclusão sobre a quem assistem ou não direitos
ou atribuem-se deveres – dependendo, por evidente, da eficácia da norma que incide sobre
os fatos.
A inserção da questão da prova na seara processual a vincula
inexoravelmente às alegações formuladas pelas partes como causas de pedir ou defesas
pautadas no direito material. Trata-se, aqui, menos de prova do fato propriamente dito, mas,
sim, prova sobre alegações de fato, como sustentam Luiz Guilherme Marinoni e Sergio
Arenhart, sendo que são essas alegações que definem qual será o thema decidendum.30
30
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sergio. Curso de Processo Civil: Processo de Conhecimento.
vol. 2. São Paulo: RT, 2008, p. 265.
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Tema relevante que emerge da questão atinente da prova é aquele
pertinente à distribuição, no âmbito do processo, do ônus de sua produção.
Aquele que a quem cabe formular a afirmação de fato como causa de pedir
ou como defesa é aquele que, em regra, tem o ônus de provar a veracidade da afirmação.
Ônus, como se sabe, não se confunde com obrigação: quem tem o ônus de
provar um fato e não o cumpre não viola dever, mas arca com as conseqüências negativas
do descumprimento: no caso, a impossibilidade de se tomar por verdadeira uma afirmação
de fato realizada pela parte que não se desincumbiu de seu ônus probatório.
A lógica da distribuição desse ônus é, portanto, a mesma que define aquilo
que é matéria de alegação quando da dedução da pretensão e aquilo que integra a defesa a
ser formulada pelo réu.
Tem-se, nessa toada, a incidência do artigo 333 do Código de Processo
Civil, que dispõe:
Art. 333 - O ônus da prova incumbe:
I - ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito;
II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo
do direito do autor.
Emerge da norma em comento que cabe ao autor fazer prova do fato
constitutivo do seu direito, e ao réu fazer prova de fato modificativo ou extintivo desse
mesmo direito. Ou, na lógica antes explicitada, cabe ao autor provar suas afirmações acerca
dos fatos constitutivos do seu direito, e ao réu, as afirmações sobre fatos modificativos ou
desconstitutivos.
Coloca-se em pauta, a partir dessa premissa, a questão concreta pertinente
à Consulta formulada, em que ocorreu o fato morte do segurado com negativa de pagamento
do capital contratado por parte da seguradora, sob a alegação de agravamento do risco
segurado.
Trata-se de investigar se a exceção oposta extrajudicialmente pela
seguradora para negar-se ao pagamento do valor contratado seria ou não bastante para impor
à parte autora em eventual demanda (vale dizer, a quem ocupar a posição de beneficiário do
seguro de vida) um recrudescimento do seu ônus probatório, por meio da imposição ao pólo
ativo do ônus de provar a ausência de agravamento intencional do risco.
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A resposta a essa questão é, à luz da adequada distribuição do onus
probandi, necessariamente negativa. Ou seja: não cabe ao beneficiário de seguro de vida
provar que o segurado não agravou intencionalmente o risco.
A alegação de agravamento intencional é matéria integrante do jus
defensionis atribuído à seguradora, e que pode ser apresentado como exceção de direito
material no âmbito do processo em que se venha a exigir o pagamento do capital contratado.
É o que explicam Marinoni e Arenhart:
Não há racionalidade em exigir que alguém que afirma um direito deva ser
obrigado a se referir a fatos que impedem o seu reconhecimento pelo juiz.
Isso deve ser feito por aquele que pretende que o direito não seja
reconhecido, isto é, pelo réu.31
O fato de a alegação ter sido levada a efeito como fundamento da negativa
de pagamento do seguro, em âmbito extrajudicial, não a desnatura como exceção a ser
apresentada e provada na seara processual. Em outras palavras: a alegação, por parte da
seguradora, de agravamento intencional do risco por parte do segurado, não impõe ao
beneficiário do seguro de vida o ônus de provar o fato negativo da não ocorrência desse
agravamento intencional do risco.
O ônus probatório que se impõe à parte autora de uma demanda que vise
ao recebimento do seguro de vida se restringe à demonstração (a) da existência do contrato
de seguro de vida; (b) da ocorrência do evento segurado; (c) da condição de beneficiário do
seguro de vida.
A articulação lógico-temporal do nascimento do direito e do exercício da
pretensão dele derivada é útil à compreensão do tema probandum integrante do ônus
atribuído à parte autora, a saber:
- Ocorrido o evento segurado (morte) nasce o direito subjetivo de o
beneficiário obter o pagamento do valor contratualmente previsto;
- Requerido o pagamento desse capital contratado, caso venha a ocorrer a
negativa por parte da seguradora, restará caracterizada a violação do direito subjetivo, com
a caracterização da pretensão a ser deduzida em juízo;
- Deduzida em juízo a pretensão, cabe à parte autora fazer prova do fato
constitutivo do seu direito, que consiste no evento segurado mediante contrato, bem como
sua condição de beneficiário;
31
Ibidem, p. 266.
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- Caso a seguradora entenda que o valor contratado não é devido, deve
fazer prova de fato extintivo do direito afirmado e provado pela parte autora, valendo-se da
defesa que entender cabível – e que pode consistir na exceção oposta extrajudicialmente
como justificativa para o não pagamento da indenização.
Tem-se, aqui, conclusão que deflui da correta aplicação do inciso II do
artigo 333 do CPC, a prova da ausência de agravamento intencional do risco não integra o
fato constitutivo do direito do beneficiário do seguro, mas, ao contrário, a prova da eventual
existência do agravamento intencional é precisamente o que se subsume à dicção da norma
processual quando se refere a fato extintivo do direito do autor.
Trata-se de entendimento respaldado pela jurisprudência:
SEGURO DE VIDA. MORTE ACIDENTAL. CARACTERIZAÇÃO.
AUSÊNCIA DE AGRAVAMENTO DO RISCO PELO SEGURADO.
EMBARGOS DESACOLHIDOS NESSE PONTO. APELAÇÃO NÃO
PROVIDA. É da companhia seguradora o ônus de provar o agravamento
do risco pelo segurado, por se constituir o comportamento incorreto do cocontratante fato extintivo do direito à indenização ou ao capital segurado.
Apelação não provida.32
APELAÇÃO CÍVEL - EMBARGOS À EXECUÇÃO DE TÍTULO
EXECUTIVO EXTRAJUDICIAL - SEGURO DE VIDA EM GRUPO ADICIONAL POR MORTE ACIDENTAL - MORTE DO SEGURADO ACIDENTE DE TRÂNSITO - ALEGAÇÃO DE AGRAVAMENTO DO
RISCO, DEVIDO À EMBRIAGUEZ DO SEGURADO CIRCUNSTÂNCIA QUE, POR SI SÓ, NÃO ENSEJA EXCLUSÃO DA
RESPONSABILIDADE DA SEGURADORA, PREVISTA NO
CONTRATO - PRECEDENTES DO STJ E DESSA CORTE - NEXO DE
CAUSALIDADE ENTRE A EMBRIAGUEZ DO SEGURADO E O
ACIDENTE NÃO COMPROVADO - ÔNUS DA PROVA QUE
INCUMBIA À SEGURADORA - REFORMA DA SENTENÇA QUE SE
IMPÕE RECURSO PROVIDO.33
Reforça esse entendimento a relação entre boa-fé subjetiva e boa-fé
objetiva que se pode identificar no âmbito dos contratos de seguro.
A boa-fé subjetiva deverá presumir-se nos contratos de seguro de vida, até
que consiga se provar o oposto.
Vale dizer: não se presume má-fé do segurado, cabendo à seguradora, se
entender que esta estaria presente, dela fazer a prova cabível.
32
33
TJPR, 10ª Câmara Cível, AC 0612049-0, Rel. Juiz Albino Jacomel Guerios, DJ 11.03.2010.
TJPR, 9ª Câmara Cível, AC 0590916-0, Rel. Des. José Augusto Gomes Aniceto, DJ 10.12.2009.
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Para além da boa-fé subjetiva (pertinente ao estado de boa-fé), há, como
se sabe, a boa-fé dever, ou boa-fé princípio, que se impõe a ambos os contratantes tanto no
momento de celebração do contrato, quanto no momento em que ocorrer – se vier a acontecer
– o sinistro. À luz do art. 765, do código civil vigente, temos o exposto que: “o segurado e o
segurador são obrigados a guardar na conclusão e na execução do contrato, a mais estrita
boa-fé e veracidade, tanto a respeito do objeto como das circunstâncias e declarações a ele
concernentes”.
Há, aqui, o encontro entre o proceder conforme a boa-fé objetiva e o estado
de boa-fé subjetiva: do dever de agir conforme a boa-fé emergem tanto a presunção de boafé (subjetiva) do segurado como a exigibilidade frente à seguradora de condutas que atendam
aos deveres laterais decorrentes do princípio.
A repercussão da presunção de boa-fé para a matéria em comento é
evidente: o ônus de provar eventual ausência de boa-fé cabe a quem afirma a má-fé.
Se para eximir do dever de indenizar a seguradora tem de demonstrar máfé por parte do segurado na realização do risco segurado, é evidente que a ela cabe o ônus
probatório respectivo.
Releva atentar para o fato de que, se fosse necessária para fazer prova dos
fatos constitutivos do direito do autor, seria viável a inversão do ônus da prova, haja vista
tratar-se de relação de consumo.
Demonstrada a verossimilhança das alegações ou, alternativamente, a
hipossuficiência do consumidor, cabível é a inversão do onus probandi¸ de modo a tomaremse como presumidos os fatos que constituem o direito do autor (com base na afirmação de
fato por ele formulada), impondo-se ao réu (fornecedor) o ônus de desconstituir a presunção
de veracidade dessa afirmação de fato.
Respaldando esse entendimento, Rizzatto Nunes explana a respeito desta
inversão do ônus da prova em face do fornecedor:
A possibilidade de inversão do ônus da prova está prevista no inciso VIII
do art. 6º do CDC. Ela é norma adjetiva que se espalha por todas as
situações em que, eventualmente, o consumidor tenha que produzir alguma
prova. Logo, respondendo à questão: é ao consumidor a quem incumbe a
realização da prova do dano, do nexo de causalidade entre o dano e o
serviço, com a indicação do responsável pela prestação do serviço.
Contudo, o ônus de produzir essa prova pode ser invertido nas hipóteses
do inciso VIII do art. 6º. Concluída pelo consumidor essa fase da prova do
dano, do nexo de causalidade entre o dano sofrido e o serviço prestado,
com a indicação do responsável pela prestação de serviço, deve este último
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pura e simplesmente pagar o valor da indenização que for apurada, sem
praticamente possibilidade de defesa.34
Conforme já se demonstrou, todavia, a correta aplicação da distribuição do
onus probandi levada a efeito pelo Código de Processo Civil já seria bastante, por si só, para
atribuir à seguradora o ônus de provar aquilo que reputa fato desconstitutivo do direito dos
beneficiários do seguro.
Mediante o exame da doutrina e de entendimento jurisprudencial, é,
portanto, evidenciado que em casos de alegação de agravamento de risco, para afastar o
dever de prestação do capital contratado, é ônus da seguradora provar a má-fé e
desvinculação dos princípios basilares norteadores do contrato de seguro de vida. Cabe a
quem tiver interesse provar o contrário, de modo a destruir tal presunção. Trata-se, conforme
exposto, de decorrência direta da distribuição do ônus da prova advindo do inciso II do artigo
333 do Código de Processo Civil.
Cabe, assim, identificar os critérios nos quais deve se pautar operador do
direito, mormente o magistrado, no intuito de aferir o atendimento ou não desse ônus
probatório por parte do segurado.
A chave para a compreensão do tema reside na constatação de que a recusa
do pagamento da indenização ou do capital importa na frustração do programa obrigacional
derivado do contrato de seguro. Ou seja, o não pagamento da indenização mesmo diante da
ocorrência do sinistro importa a não realização do telos contratual.
Embora não se afaste a matéria da regra geral atinente à admissibilidade
de qualquer meio de prova moral e legalmente admitido, não se pode olvidar que, a par da
questão atinente à admissibilidade está o tema da apreciação da prova.
Em outras palavras: a prova pode ser admissível, por não ser proibida (ou
por não haver previsão legal de prova específica sobre certo fato ou dada alegação de fato),
mas pode não ser idônea à sua primordial finalidade, que é o convencimento do magistrado
a quem se dirige – matéria que diz respeito, portanto, à apreciação da prova.
A apreciação da prova, em hipótese de afirmação de fato apto a gerar a
frustração do programa obrigacional, não pode conduzir a uma prevalência prima facie do
não atendimento do telos obrigacional. Isso significa que a prova apta a demonstrar a
eventual ausência do direito à indenização ou do capital securitário deve ser robusta, cabal,
não bastando a mera presença de dados indiciários.
34
NUNES, Rizzatto, op cit., p. 314.
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A formação do convencimento, não se pode olvidar, pressupõe a prova
prévia a respeito da ocorrência do sinistro e da condição de beneficiário do seguro, da qual
decorre, em princípio, o direito ao capital contratado. Para afastar esse direito, necessário se
faz que se prove cabalmente o agravamento preordenado e de má-fé do risco contratado.
Não basta, nessa toada, que o risco tenha sido elevado por conta de conduta
do segurado: é necessário provar que essa conduta estava dirigida à obtenção do pagamento
do capital pactuado. Não se trata essa intenção de algo que se possa presumir ipso facto de
uma conduta que realize o risco segurado, mesmo que ela seja voluntária (como já se
demonstrou mais acima ao se examinar a questão atinente ao dever das seguradoras mesmo
em hipóteses de suicídio, o que não é o caso presente).
A exigência de prova cabal é reconhecida pela jurisprudência, como se
colhe do pronunciamento abaixo transcrito:
AÇÃO DE COBRANÇA - SEGURO DE ACIDENTES PESSOAIS AMPUTAÇÃO DO DEDO POLEGAR ESQUERDO - COBERTURA
CONTRATUAL - INDENIZAÇÃO DEVIDA - APELAÇÃO 01 RELAÇÃO TÍPICA DE CONSUMO - INVERSÃO DO ÔNUS DA
PROVA - ALEGAÇÃO DE FRAUDE E AGRAVAMENTO DE RISCO
POR PARTE DO AUTOR - AUSÊNCIA DE PROVA CABAL RECURSO DESPROVIDO - APELAÇÃO 2 - PREVISÃO
CONTRATUAL DE INDENIZAÇÃO PELA PERDA 'TOTAL' DO USO
DE UMA DAS MÃOS - PRETENSÃO DE COBERTURA
PROPORCIONAL AO GRAU DE GRAVIDADE - IMPOSSIBILIDADE
- PEDIDO ALTERNATIVO - REALIZAÇÃO DE PERÍCIA PRECLUSÃO - RECURSO DESPROVIDO - APELAÇÃO 3 COMPENSAÇÃO DE HONORÁRIOS - POSSIBILIDADE - SÚMULA
304, DO STJ E ART. 21, DO CPC - SENTENÇA MANTIDA RECURSOS A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. "A seguradora só
pode negar o pagamento da cobertura do seguro com prova inequívoca de
que tenha o segurado agido com culpa grave, dolo ou má-fé" (TJPR - Nona
Câmara Cível- AC nº 358749-5, Rel. Juiz Sergio Luiz Patitucci, j.
16/11/2006). 2. Não há que se falar em cobertura proporcional ao grau de
gravidade, como pretendido, vez que o contrato prevê apenas indenização
pela perda 'total' do uso de uma das mãos. 3. "É defeso à parte discutir no
curso do processo, as questões já decididas, a cujo respeito se operou a
preclusão" (Art. 473 do Código de Processo Civil). 4. Possível a
compensação de honorários de sucumbência, a teor da Súmula 304, do
STJ, e do art. 21, do CPC.35
Assim, a prova da natureza do elemento subjetivo da conduta do segurado
(ou seja, se havia ou não a intenção de realizar o risco segurado para fins de obtenção do
35
TJPR. 8ª C.Cível, AC 0392154-4, Rel. Des. Carvilio da Silveira Filho, DJ 13.11.2008.
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pagamento do seguro), e de seu nexo causal frente ao resultado consumado (realização do
risco) integram o thema probandum que pertinente ao ônus atribuído à seguradora.
Em suma: qualquer alegação das seguradoras pertinente à conduta do
segurado que tenha por escopo eximi-las do dever de pagamento do seguro impõe a elas,
inexoravelmente, o ônus de comprovar que a conduta do segurado estava preordenada à
realização do risco segurado, com o manifesto intuito de obtenção do capital contratado em
favor dos beneficiários. Assim, indispensável a comprovação de que a conduta, seja ela
eivada ou não de culpa, foi realizada de má-fé, com a intenção de desencadear o surgimento
do dever por parte da seguradora.
Assentadas essas premissas, cabe, por derradeiro, examinar o material
probatório disponível até o momento em que é exarado este parecer, de modo a aferir se as
afirmações de fato formuladas extrajudicialmente pelas seguradoras para se negarem ao
pagamento do capital contratado encontram ou não respaldo probatório.
8. Das circunstâncias concretas: ausência de prova que corrobore a intencionalidade
de agravamento do risco
Após a análise pertinente à repercussão do direito probatório sobre o
exame da matéria em comento, cabe investigar se, diante da documentação apresentada com
a Consulta, seria ou não sustentável a negativa das seguradoras em pagar o capital contratado
com base em argumento centrado na conduta do segurado.
À luz desse escopo, e considerando que a eventual demonstração das
afirmações das seguradoras se qualifica como prova de fato desconstitutivo do direito ao
capital contratado, principio pelo exame da prova dos fatos constitutivos do direito dos
beneficiários dos seguros.
Com efeito, o que existe até o momento é requerimento formulado junto a
seguradoras visando ao pagamento do capital contratado pelo segurado, com respostas
negativas da seguradora que, sem embargo, em momento algum negam a condição da
beneficiária nem, por evidente, o fato (morte, comprovada por laudo de necropsia e certidão
de óbito) que desencadeia o dever de prestar. Tampouco há controvérsia sobre o pagamento
do prêmio, do que decorre da apreciação da documentação a nós submetida.
O que se observa é que não há controvérsias acerca dos fatos que, abstraída
a exceção formulada extrajudicialmente pelas seguradoras, ensejariam o direito da
beneficiária ao recebimento do capital.
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Há, entretanto, como exposto, múltiplas negativas por parte das
seguradoras quanto ao pagamento da prestação contratada, todas elas centradas na
qualificação da conduta do segurado como ilícita e apta a gerar agravamento do risco.
Ocorre que, como exaustivamente exposto, não basta para eximir a
seguradora de seu dever de prestação, a qualificação da conduta como culposa, ou mesmo
ilícita, nem, tampouco, a demonstração de sua aptidão para gerar incremento nos riscos. É
indispensável a prova cabal do elemento subjetivo da conduta do agente, direcionada à
produção do evento que gera o dever de pagamento do capital contratado.
Antecedeu esse exame daquilo que integra o ônus probatório da
seguradora a constatação, já afirmada em passagens anteriores deste parecer, de que a
conduta do segurado somente pode ser apta a afastar o dever de prestar da seguradora se for
intencionalmente dirigida à produção do evento que enseja o pagamento do seguro. Se não
houver esse liame causal como marca inafastável da intencionalidade, pouco importa a
qualificação que se dê à conduta, se foi culposa ou não, lícita ou ilícita, apta ou não a agravar
os riscos.
O que é determinante para a exclusão do dever de pagar o capital é a
intenção preordenada e de má-fé de encetar a realização do evento que desencadeia o dever
por parte da seguradora. Se essa intenção preordenada não estiver provada, o capital deverá
ser pago aos beneficiários.
Assim, passando ao exame da prova dos fatos extintivos do direito dos
beneficiários, tem-se óbice preliminar: as alegações das seguradoras se restringem ao
agravamento do risco, sem, todavia, qualificá-lo como agravamento intencional, ao menos
nos termos aqui explicitados. Vale dizer, todas as negativas se limitam a afirmar que a morte
decorreu do uso de substância ilícita o que teria agravado o risco de morte.
Não há nas negativas, porém, sequer a afirmação de que teria havido a
intenção de gerar a morte para o fim de obter o pagamento do capital contratado ou, mesmo,
o intuito consciente de agravar esse risco de morte.
Vale dizer: eventual prova sobre o que se alega nas negativas de
pagamento, nos termos estritos ali explicitados, não tem o condão de afastar o dever de
indenizar, pela ausência de prova cabal da intenção maliciosa, da preordenação da conduta
do segurado que se tem por necessária ao afastamento do dever da seguradora.
Para atender ao escopo deste parecer, todavia, é necessário investigar se
haveria na documentação apresentada, mormente o inquérito policial, algum meio de prova
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a respeito de preordenação ou de má-fé por parte do segurado que pudesse qualificar a
intencionalidade nos termos aqui expostos.
O que se observa dos depoimentos tomados pelas autoridades de W, e que
constam do inquérito policial, inexiste qualquer espécie de indício de que o consumo da
substância cujos efeitos adversos conduziram à morte tenha se dado com o fim de produzir
a morte nem, tampouco, para a obtenção de pagamento do capital contratado.
As narrativas convergem para a utilização episódica da substância que
conduziu à morte, sem estar caracterizado histórico de abuso de drogas – conforme deflui
do laudo de necropsia. Não houve, portanto, violação de dever de informação por parte do
segurado a respeito desse tema.
Ausentes, pois, até mesmo indícios de intencionalidade dirigida seja à
morte seja à obtenção do pagamento do seguro à beneficiária. À luz do inquérito policial,
por conseguinte, não há elementos aptos a sustentar a recusa no pagamento do capital
contratado.
Cabe enfatizar, por oportuno, que tampouco a pluralidade de contratos de
seguro teria qualquer aptidão para, sequer, qualificar-se como indício de intencionalidade.
A existência de múltiplos seguros no caso concreto não tem o condão de per se comprovar
intencionalidade ou preordenação de agravamento do risco para percepção da garantia.
A esse respeito apregoa Orlando Gomes: “a vida do segurado pode ser
objeto de seguro quantas vezes aprouver”.36 Assim, também quanto a esse aspecto não há
qualquer demonstração, nem mesmo indiciária, de intencionalidade dirigida à obtenção do
capital em favor dos beneficiários.
De tudo o que se pôde examinar, tem-se que o dever de pagamento do
capital contratado não é elidido pelo material fático-probatório submetido a este parecer.
9. Resposta aos quesitos apresentados
(i) À luz dos fatos, como deve ser a aplicação do artigo 768 do Código Civil ao presente
caso?
Resposta: A adequada aplicação do dispositivo legal em comento importa afirmar que não é
qualquer majoração do risco que enseja a exclusão do dever de pagamento pela seguradora,
mas apenas aquela voltada à percepção da prestação do capital contratado. Ainda, apenas
36
GOMES, Orlando, op. cit., p. 512.
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pode ser levado a efeitos práticos o presente dispositivo quando existir prova cabal que
demonstre vontade preordenada do segurado em dolosamente obter o pagamento da
seguradora.
(ii) O que configura o “agravamento do risco” elencado no artigo 768 do Código Civil?
Resposta: A fim de configurar o agravamento do risco previsto no artigo 768 do Código
Civil é necessário que o ato de majoração praticado pelo segurado seja fruto de sua vontade
consciente, sem nenhuma coerção exógena, predeterminada à obtenção da finalidade do
pagamento pela seguradora. Imperativo ressaltar que deve de haver liame que oriente o
intencional agravamento do risco à percepção do pagamento atinente ao contrato de seguro
pactuado.
(iii) A quem cabe o ônus probatório da intencionalidade do segurado dirigida ao
agravamento do risco e que prova é apta para atender a esse ônus?
Resposta: À luz da distribuição do ônus probatório à luz do artigo 333 do Código de Processo
Civil, corroborado pelas regras a respeito do direito probatório nas relações de consumo, à
seguradora cabe produzir essa prova. A prova apta a comprovar agravamento de risco seria
a prova cabal a respeito de conduta do segurado dirigida especificamente a esse
agravamento, não bastando, para tanto, meros indícios ou circunstâncias indicativas.
(iv) No presente caso, pode-se dizer que há prova que sustente a alegação do
agravamento do risco por parte do Sr. X, consoante narram as respostas negativas de
pagamento das seguradoras?
Resposta: Do rol documental apresentado a este subscritor, composto pelo inquérito policial
pertinente às investigações sobre a morte de X e pelas negativas de pagamento do capital
pelas seguradoras contratadas, depreende-se não haver meio de prova hábil a sustentar a
posição das seguradoras em negar-se ao pagamento do valor contratado, haja vista inexistir
prova cabal de agravamento intencional nem, tampouco, indícios de que tal intencionalidade
estaria presente, nos termos expostos neste parecer.
É o Parecer.
Professor Doutor Luiz Edson Fachin, Titular da Faculdade de Direito da UFPR.
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O CONTRATO EPC E O PRINCÍPIO DO EQUILÍBRIO ECONÔMICO
Título em inglês? The EPC contract and the Economical Balance Principle
Luiz Gastão Paes de Barros Leães
Professor Titular de Direito Comercial da Universidade de São Paulo; Visiting Scholar
in residence na Columbia University Law School New York, (1973-1974).
PARECER
I. OS FATOS
1/1. A Consulente - E (“E”) - é uma empresa brasileira, cujas sócias fazem
parte do grupo E, com atuação em diversos países, nas áreas de energia, engenharia,
transporte, logística e serviços. Por sua vez, A (“A”) - a outra protagonista da controvérsia
objeto do presente parecer - é uma sociedade de propósito específico (SPE), criada com a
finalidade de construir e explorar uma usina termoelétrica em Camaçari, Bahia, contando
inicialmente, com os seguintes acionistas: “C S/A”, com 50% das ações; “P S/A”P, com
30%; e “G Ltda.”, com 20%.
1/2. Em abril de 2011, a Agência Nacional de Energia Elétrica
(“ANEEL”) expediu Portaria, autorizando a A a estabelecer-se como produtora
independente de energia elétrica, prevendo um cronograma de implantação que permitiria
que as obras da usina se iniciassem, no máximo, “até 7 de janeiro de 2012”, e que esta
pudesse entrar em operação comercial “em janeiro de 2013”.
1/3. Antes dessa Portaria, já em janeiro de 2011, as empresas C e P se
movimentaram, dando início ao processo de “chamada de propostas” para a cotação de
preços, incluindo o fornecimento de moto-geradores e transformadores de potência, com
vista à construção, não de uma, mas de duas usinas termoelétricas, tomando por base o
detalhamento técnico preparado pela empresa XY Projetos. Naquela oportunidade, o termo
de referência previa que os motores seriam fornecidos pelas empresas M&M Diesel ou
W&T, razão pela qual tais empresas assumiram a iniciativa das negociações, alinhando-se
com a TT Engenharia S/A (“TT”) e com a E para atenderem ao restante dos serviços.
1/4. Depois de meses de negociação, E e W&T apresentaram uma proposta
conjunta, que seria a seguir alterada, em julho de 2011, com o fim de rever os prazos de
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entrega dos motores, incluindo a tancagem de combustível. Nessa ocasião, E foi informada
de que a proposta da TT teria triunfado. Tal informação seria, porém, logo no mês seguinte,
retificada, quando a E foi instada pela P a apresentar nova proposta, desta feita com motores
H, que seriam adquiridos diretamente pela A da H Co. Ltd. Convite idêntico foi estendido à
TT.
1/5. Também nesse caso a proposta apresentada pela TT, com a inclusão
dos motogeradores HH e transformadores de potência DEU, estava a indicar que, de novo,
se sagraria vencedora do certame, visto que o preço ofertado para a construção da referida
usina, excluído o fornecimento dos motores, girava em torno de R$ 73 milhões, abaixo da
cifra proposta pela E (R$ 75 milhões). Nessa altura, a TT começou a apresentar sinais de
debilidade financeira que a levaria, posteriormente, a requerer recuperação judicial. Diante
desse quadro, C e P convocaram E, quando lhe transmitiram o interesse em consagrá-la
vencedora do certame licitatório, desde que procurasse se avizinhar do patamar estabelecido
na proposta da TT.
1/6. Na realidade, E já fora anteriormente contratada para implantar duas
outras usinas na região nordeste, e, agora, a P se mostrava categórica em sua convocação
para a assunção das obras de Camaçari, sinalizando que eventual recusa por parte da E em
assumir os serviços, em termos aproximados aos da proposta da TT, poderia ser interpretada
como falta de cooperação em momento delicado, eis que a construção de Camaçari, segundo
a portaria da ANEEL, deveria iniciar-se em 7 de janeiro de 2012. Ademais, considerando o
peso da P em termos de Brasil, a reticência poderia colocar em risco a continuidade dos
serviços que a E vinha prestando, e almejava continuar a prestar, àquela empresa.
1/7. Nesse cenário, a convocação da P consubstanciava “fato necessário”
que compelia a E à aceitação do negócio, tanto mais que entre elas tinha havido,
paralelamente, consenso no sentido de que – dada a premência do tempo para reformulação
do orçamento – ambas as partes se dispunham a implementar os ajustes que se revelassem
indispensáveis para a execução do contratado. Nesse contexto, os entendimentos travados
com a P foram reduzidos a um documento escrito intitulado “termo de compromisso”,
quando, além da exigência de que fossem observados os mesmos prazos e condições
pactuados anteriormente com a TT, foi previsto um limite de preço da obra superior ao
oferecido por esta empresa, no valor de R$ 75.000.000,00.
1/8. Em 2 de outubro de 2011, a A “formalizou” a licitação privada e
promoveu a publicação de edital de chamada de propostas para construção da Usina
Termoelétrica, cerca de pouco mais de dois meses antes da data prevista para o início das
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obras, em 7 de janeiro de 2012. Em observância às condições do termo de compromisso, E
apresentou a sua proposta formal, que inicialmente não incluía serviços de terraplanagem,
mas que, ao depois, em nova redação, os incluiria, com acréscimo do valor do preço
combinado (de R$ 75 milhões para R$ 80.000.000,00). No final de outubro, as partes deram
início às tratativas finais para a contratação, que se prolongaram até o segundo mês de 2012
(quatro meses, portanto). Nessa altura, dado o exíguo prazo para a entrega da obra, a A se
antecipou, iniciando em dezembro de 2011 a disponibilização de recursos financeiros (cerca
de 20% do valor do Contrato, em duas parcelas, segundo consta da cláusula 6.2(1) do
Contrato) para que a E pudesse de imediato se condicionar para dar início às obras, antes
mesmo da assinatura do instrumento contratual.
1/9. Somente em 15 de fevereiro de 2012, foi celebrado o “Contrato de
Engenharia, Suprimentos e Construção”, tendo por objeto a execução, em regime de
empreitada total por preço global (“turn key”), no valor de R$ 80.000.000,00, de todos os
serviços que se fizessem necessários para que a A recebesse a usina na data aprazada, ou
seja, em 30 de novembro de 2012, devidamente testada, comissionada e apta a iniciar a sua
operação comercial (“Contrato”).
1/10. Mal firmado o Contrato, logo a E se deu conta de que havia sido
induzida em erro sobre as reais circunstâncias que constituiriam a “base do negócio” a que
se vinculara, pois, por injunção da A, viu-se envolvida com a introdução de alteração no
arranjo geral conceitual do empreendimento, para acolher a adequação do lay-out às
estruturas que comporiam a futura usina, como postulado pela A. Não bastasse isso, esta
ainda determinou a modificação das condições do acesso principal de caminhões e a
construção de ligação do pólo-plástico ao site da futura usina, com acréscimo de serviços de
terraplenagem, drenagem e pavimentação. Ora, como é curial, a alteração no lay-out da
usina, com tais ampliações, implicava modificação substancial de todo o empreendimento,
comprometendo, por consequência, a base sobre a qual fora o negócio pactuado. Com efeito,
a alteração no design da planta resultou em diferentes platôs, com declives acentuados,
impactando tanto o tempo para a execução das obras de formação dos taludes, quanto os
custos das mesmas, majorados com o significativo acréscimo de serviços e materiais.
1/11. A esses fatos, somou-se o atraso por mais de um mês por parte da A
na obtenção das licenças ambientais, municipais e estaduais, necessárias aos serviços de
terraplenagem, pois, para que as obras se iniciassem em 7 de janeiro de 2012, fazia-se mister
que tais licenças fossem obtidas até essa data. Foi necessário, ainda, implementar soluções
técnicas para contenção de deslizamentos e erosões dos taludes, sem falar que se mostrou
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imperiosa a aquisição de terra mais consistente para essas obras, proveniente de regiões
afastadas.
1/12. Definidas tais alterações no arranjo geral conceitual, a E foi ainda
surpreendida, no período de março a julho de 2012, com chuvas torrenciais imprevisíveis,
provocando grande incidência de deslizamentos durante a movimentação de terra. Nessa
altura, as partes decidiram contratar a SSSS Gerenciamento (“SS”) para acompanhar a
evolução da obra, realizando essa empresa a revisão de todos os trabalhos efetuados e
implantando nova forma de medição dos serviços; alteração esta que, além de retardar
também a obra, não foi formalizada em Aditivo. Isso não bastasse, verificou-se, nesse
período, aumento abrupto e imprevisível nos preços dos insumos (aço, concreto, cobre),
comprometendo profundamente o “equilíbrio econômico-financeiro do Contrato”. Tal
desequilíbrio tornou o cumprimento das obrigações “excessivamente oneroso” para a E.
Acresce ainda o fato de que a Hyundai igualmente atrasou na entrega dos equipamentos,
afetando o curso das obras.
1/13. A vista disso, a E, em 27 de agosto de 2012, cinco meses da
assinatura do Contrato, encaminhou à A a Proposta Técnica nº 000.001, com o objetivo de
promover a adequação do preço contratual, em valores calculados até aquele mês de
referência. Após a apresentação de mais duas versões da referida proposta, a A sinalizou que
concordaria em parte com os aspectos financeiros, os quais deveriam ser ajustados. Em
função disso e à luz do agravamento das circunstâncias, E formulou a a Proposta Técnica nº
000.003, em 3 de outubro de 2012, a qual não apenas reiterou os termos da proposta anterior,
mas também ressaltou as medidas necessárias para se buscar a recuperação dos atrasos
naquela altura.
1/14. Em reunião realizada em 9 de outubro de 2012, A acatou apenas
parcialmente o pleito financeiro de E, o que ficou registrado em ata que passou a ser
denominada “aditivo contratual”, através do qual pactuou um acréscimo no preço do
Contrato da ordem de R$ 25.000,000,00, majorando o valor contratado de R$ 80.000.000,00
para R$ 105.000.000,00 (“Aditivo”). O ajuste foi definido em reunião da qual participou
apenas um representante da E e, na ocasião, fez-se constar que dependeria da aprovação de
E até 13 de outubro de 2012. Esse fato importava, inegavelmente, por si só, no
reconhecimento cabal por parte da A de que erros e motivos imprevisíveis haviam tornado
a obra “excessivamente onerosa” para a E, justificando-se, por conseguinte, a sua
“correção”, que, infelizmente, não restou de todo materializada com essa majoração, como
logo se verificaria.
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1/15. Advirta-se que, no segundo semestre de 2012, quadra em que esses
eventos se desenrolavam, o aumento dos insumos persistia em níveis ainda mais
desnorteantes, em razão da crise econômica que assolava a economia mundial. Em meio a
essa conjuntura, eis que A solicitou a alteração da capacidade dos tanques de combustível
de 900m3 para 1.100m3, o que atrasaria ainda mais a construção da usina, demandando
acréscimo de mão-de-obra para cumprimento do prazo do Contrato a fim de atender a essa
nova modificação de escopo. Durante essa etapa, entre outubro e novembro de 2012, a E se
viu também na contingência de enfrentar movimentos grevistas, que, se não constituem, em
si, fatos imprevisíveis numa construção, assumiram, na ocasião, magnitude que fugia da
normalidade. Todos esses eventos foram acompanhados pela A através da presença do
“engenheiro do proprietário”.
1/16. Em dezembro de 2012, A e E acordaram que, não obstante os
percalços, o empreendimento teria condições de ser concluído, no cenário mais pessimista,
até março de 2013, já que mais de 80% das obras estava concluído, sendo necessário, no
entanto, reunir mais recursos adicionais para fazer frente à contratação de pessoal para
recuperar os atrasos - a que, de resto, a E, como apontado, não dera causa. Eis que, nesse
momento, foi a E surpreendida com a mudança de comportamento da A, a qual manifestou
a decisão de abandonar a idéia do novo cronograma e iniciar tratativas no sentido de realizar
um distrato amigável, visando a assumir, ela própria, a responsabilidade pela conclusão da
obra por sua conta e risco. Em reunião de 12 de dezembro de 2012, ficou acertado que a
partir dessa data a A assumiria os serviços, cabendo à E colaborar no período de transição.
1/17. Não obstante esse acerto, combinado em 15 de dezembro de 2012,
em meio a uma reunião em que se discutia dita transição, a A enviou notificação à E,
comunicando que considerava “resolvido” o Contrato, por conta de alegado inadimplemento
(atrasos) por parte da empreiteira de suas obrigações contratuais, ao mesmo tempo em que
notificava os diversos fornecedores indicados pela E, informando que havia rescindido o
Contrato e que estava assumindo a obra. Ao mesmo tempo em que participava a muitos
fornecedores que não tinha interesse em continuar contando com a prestação de seus
serviços. Numa conduta contraditória em relação às tratativas que vinha desenvolvendo,
desconsiderava o fato de que, em dezembro de 2012, a E já havia executado por volta de
80% da totalidade do Contrato, como o confirmariam as planilhas de medição da SS,
contratada por ambas as partes. Ademais, em vistoria realizada no local da obra, a pouco
mais de um mês dessa notificação, em 30 de janeiro de 2013, a ANEEL consignaria que a A
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lhe asseverara que “o empreendimento encontrava-se com avanço de aproximadamente
86%”.
1/18. Oito meses depois, em 14 setembro de 2013, a A, em lugar de quitar
os débitos ainda pendentes, enviou notificação à E, reclamando (i) multa diária por atrasos
nos marcos parciais e (ii) multa por atraso na entrada da operação da usina, e (iii) devolução
de valores que teriam sido pagos em excesso e pagamento de custos que defluiriam da
retomada da obra, incorridos até agosto de 2013. Nesse sentido, fez cobrança no valor de R$
98.642.242,95, sendo que R$ 80.643.568,99 a título de custos despendidos com a obra
remanescente realizada após a retirada da E - cifra que excedia o preço original pactuado
para a obra inteira, e só por si, evidenciaria que o Contrato, todo ele, estaria econômica e
financeiramente desequilibrado. Em 24 de setembro de 2013, a E respondeu, apresentando
contra-notificação.
1/19. Diante desse quadro, E resolveu submeter a controvérsia à
arbitragem, para que fosse declarada a improcedência das pretensões da A, arguindo que a
resilição do Contrato não decorreria de qualquer conduta a ela imputável, como alegado,
mas sim de decisão unilateral da A, que, sobre encontrar-se inadimplente em suas obrigações
contratuais, enriqueceu-se indevidamente com o desequilíbrio econômico-financeiro do
referido Contrato. Nesse sentido, fazia-se necessária a revisão do mesmo, restabelecendo
esse equilíbrio, comprometido pela ocorrência de fatos imprevisíveis e de força maior,
reconhecidos pela A e dos quais resultaria um crédito a favor da E.
1/20. Nesse sentido, requereu a E que o tribunal arbitral (i) declarasse a
ilicitude da resolução unilateral do Contrato por parte da A, à míngua de inadimplemento a
ela imputável, assim como das aplicações das penalidades por atrasos de marcos contratuais
suscitadas pela A, em manifesta contrariedade a comportamento anterior; (ii) condenasse a
A ao pagamento de reparação por danos morais no valor mínimo de R$ 1 milhão, em virtude
do aviltamento de sua imagem perante subcontratados e fornecedores; (iii) condenasse a A
ao pagamento de indenização por danos materiais, decorrentes da desmobilização antecipada
da obra, quando já se avizinhava a sua conclusão; (iv) condenasse a A ao pagamento de R$
10.477.189,00, relativos a serviços prestados e ainda não quitados à E, gerando
enriquecimento sem causa em favor da primeira ; (v) recompusesse o equilíbrio econômicofinanceiro do Contrato, condenando a A a reparar a E prejuízos por esta sofridos em
montante não inferior a R$ 21.386.071,35, que derivaria da diferença entre os custos orçados
e os valores realmente despendidos na execução do Contrato; e (vi) condenasse a A a
ressarcir custas, despesas processuais e honorários incorridos processo arbitral.
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1/21. Em sua resposta, a A salientou que a discussão do procedimento
prescindiria da qualificação dos argumentos fáticos e jurídicos aduzidos pela E, na medida
em que o cerne da controvérsia se concentraria, fundamentalmente, na natureza do Contrato
EPC, de sorte que o exame das razões deduzidas para justificar o aumento de preço e o atraso
da usina seria até dispensável. De qualquer forma, aduzia que tais razões não procederiam,
visto que as alegadas alterações no objeto original do Contrato foram expressamente aceitas
pela E por meio do Aditivo, sem que tivesse havido qualquer mudança no que toca ao prazo
de entrega da usina, livremente pactuado.
1/22. Abordando, no entanto, as questões fáticas e jurídicas alinhadas pela
E para esclarecer as circunstâncias em que se deu a celebração do Contrato e explicar os
atrasos ocorridos na conclusão da obra, a A arguiu, inicialmente, que a contratação da E para
a realização da obra da usina não se deu em substituição à da TT, como alega a E, visto que
não teria havido qualquer prévia contratação dessa empresa, mas meras tratativas comerciais
ocorridas anteriormente ao certame em que a E se sagrou vencedora. Por outro lado, o termo
de compromisso que E enviou por e-mail à A, e no qual não haveria a aposição das
assinaturas dos diretores desta última, é de 15.8.2011, data anterior, portanto, e não posterior,
ao processo de concorrência, no qual a E se sagraria vencedora, visto que este só teria sido
formalizado pela diretoria da A em reunião de 24.10.2011, e, dessa forma, não desfrutaria
de qualquer caráter vinculante.
1/23. Rejeita, a seguir, a alegação da E de que teria sido induzida em erro
pela A a respeito das condições básicas do negócio, já que não só foram promovidos
sucessivos encontros prévios entre todos os proponentes do certame e a H, fornecedora dos
equipamentos, como também as necessidades para a implantação da usina teriam sido
desenhadas em conjunto pela fornecedora e pela empreiteira, cabendo sempre aos
proponentes, supostos experts no assunto, detalhar o escopo do empreendimento, motivo
pelo qual não lhes assistiria o direito de suscitar tais questões. De resto, eventuais alterações
no projeto básico são normais, visto que, no referido plano, apenas se estabelecem as linhas
cardeais do empreendimento. Mas mesmo que assim não fosse, as alterações do lay-out
foram previstas no Aditivo e acordadas pelas partes contratantes, (a) com robusta majoração
do preço, e (b) sem que se admitisse outra data para a entrega da usina.
1/24. Ademais, não concorda a A com a alegação de que os serviços de
terraplenagem da nova área de tanques, objeto da negociação dos termos do Aditivo, tenham
comprometido o prazo pactuado para a entrega da usina, ou que tenha havido demora na
obtenção das licenças ambientais, até porque a obtenção dessas licenças era, pelo Contrato,
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da responsabilidade da empreiteira. Também não concorda com a invocação da ocorrência
de chuvas a índices pluviométricos extraordinários e do aumento abrupto nos preços de
insumos, encarados como casos de força maior que justificariam atrasos e alterações no
preço, pois que ainda que tivessem ocorrido tais eventos, houve expressa exclusão dos
mesmos em disposições contratuais na caracterização do fortuito (cláusula 6.4), sendo certo
que a A teria admitido a inclusão desses fatores na alteração de preço operada no Aditivo de
9 de outubro de 2012 por “mera liberalidade”, mantendo-se, porém, inalterado o prazo de
conclusão da obra.
1/25. Não aceita, também, a alegação de que o atraso na entrega de
equipamentos pela H e a alteração na capacidade dos tanques de combustíveis tenham
provocado prejuízos à E, já que, de um lado, a entrega de tais equipamentos teve de ser
postergada em razão de atrasos imputáveis à própria E que não providenciara, a tempo e
hora, espaço onde depositá-los, e, de outro, a alteração da capacidade dos tanques de
combustível fora contemplada no Aditivo, mantendo-se sempre nesse instrumento, repitase, inalterado o prazo de entrega da usina. Quanto aos movimentos grevistas, seria sabido
que não consubstanciam fatos imprevisíveis.
1/26. Conclui, por fim, asseverando que, em momento algum, acordou
com qualquer novo cronograma em que se tenha previsto a entrega da usina até março de
2013, registrando apenas, nas reuniões realizadas em dezembro de 2012, que, com base no
que se via nos canteiros, constatara que não seria possível à E entregar a usina no tempo
estipulado, não concebendo outra solução senão a rescisão do Contrato, avocando para si a
responsabilidade pelo término da obra. Rejeita também a alegação de que, quando da
rescisão do Contrato, as obras encontravam-se 86% concluídas, asseverando que o relatório
da SS, invocada pela E para chegar a esse percentual, apresenta graves inconsistências,
sendo que o estágio dos avanços nos marcos contratuais, por ela apontado, não guarda sequer
proporcionalidade com a tabela do mesmo relatório, nem levam em consideração critérios
de pesos adequados.
1/27. Nesse sentido, a A impugna todas as afirmações, pedidos e valores
que compõem as pretensões deduzidas pela E na notificação de instituição de arbitragem,
acima reproduzidas (item 1/20, supra), assim como aduz, em reconvenção, os seguintes
pleitos contrapostos: (i) requer a devolução dos valores pagos à E em razão de não ter sido
concluída a usina conforme obrigada, nas datas pactuadas, tendo esta, no entanto, recebido
a totalidade do valor global originalmente pactuado; (ii) o ressarcimento do quanto foi
necessário empregar para a conclusão dos trabalhos, por força do inadimplemento da E, por
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rescisão por justa causa do Contrato; (iii) a declaração do limite máximo de aplicação da
penalidade por atraso correspondente ao percentual de 20% sobre o valor global do Contrato,
correspondendo ao valor original, mais aditivo; (iv) condenação da E na indenização pelos
danos morais e materiais suportados pela A; (v) condenação da E nos ônus da sucumbência.
1/28. Levando em conta todos os fatos acima sumariados, que nos foram
apresentados pela Consulente e que defluem também de documentação que nos foram
presentes, fomos honrados com uma longa série de indagações que serão respondidas à
medida que forem sendo aqui reproduzidas.
II. OS PRINCÍPIOS
2/1. O cerne da controvérsia reside, segundo a A, na natureza do Contrato
firmado entre E e A. Trata-se de um ajuste complexo do tipo contratual conhecido pelo
acrônimo, em inglês, de EPC (“Engineering, Procurement and Construction Contract”),
consubstanciando um contrato de empreitada global, a preço certo e com data determinada
de conclusão de uma usina térmica, chave-na-mão (“turn-key”), ou seja, entregue em
condições de operar (Contrato, artigo 2).1 Como toda empreitada, trata-se de um contrato
comutativo, quer dizer, um contrato em que as prestações das partes são de antemão
conhecidas e guardam entre si uma relativa equivalência de valores. Nele não se exige
igualdade rigorosa entre as prestações recíprocas, mas é imperioso que aproximadamente se
correspondam. Por outro lado, como ambas as partes, desde o início, sabem a tarefa que será
desenvolvida por uma e quanto a outra irá receber por ela, estabelece a lei que, “salvo
estipulação em contrário”, o empreiteiro, que se incumbir de executar uma obra, segundo
plano aceito por quem a encomendou, “não” terá direito a exigir “acréscimo do preço”
(CC/2002, art. 619). Em princípio, portanto, a empreitada em questão era sem reajustamento.
2/2. Isso não quer dizer que na empreitada, seja qual for o tipo, não haja
sempre uma margem de risco para os contratantes. Projetando os seus efeitos para o futuro,
todas as relações contratuais duradouras ou sucessivas contêm uma “álea”, de impossível
determinação in abstracto, pois todo contrato comporta sempre riscos para as partes, muitos
deles exclusivos da operação concretamente considerada. Como acentua Mário Bessone, “Il
José Emílio Nunes Pinto, “O Contrato de EPC para construção de grandes obras de engenharia e o novo
Código Civil”, Revista Jus Vigilantibus, acesso segunda feira, 30 de dezembro de 2002; cf. modelo de Contrato
EPC proposto pela FIDIC (International Federation of Consulting Engineers), http://www.fidic.com.
1
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contratto stesso è um rischio”, posto que o risco é elemento inerente à atividade econômica.2
Mas como é corrente na doutrina italiana, a “álea normal do contrato” - conceito
introduzido pelo art. 1467 [2] do CC/italiano - é prioritariamente determinada pelo contrato
in concreto, fornecendo o tipo negocial apenas elementos circunstanciais para efeito de sua
configuração.3
2/3. Nos contratos de empreitada, mormente naqueles contratos a preço
global e fixo, em que há a aceitação de um plano prévio por parte do dono da obra, o risco
contratual se acentua e se reflete no preço contratual, que, regra geral, é pactuado sem
possibilidade de revisão (CC/2002, art. 619). A formação de um contrato de EPC deve,
portanto, procurar antever tanto os custos quantos os riscos a que empreitada, normalmente,
está sujeita e, consequentemente, otimizar a alocação de ambos no processo de definição
consensual do preço. Mas é curial que essa regra comporta exceções, relativos aos riscos que
extravasam a álea contratual normal, que ocorrem quando dizem respeito a eventos (i) que
sejam comprovadamente alheios à vontade do empreiteiro, de acordo com os princípios de
força maior e caso fortuito (CC/2002, artigos 625, I, c/c artigo 393, § único), ou (ii) que se
enquadrem nas hipóteses de imprevisibilidade e onerosidade excessiva, elevadas a categorias
legais pelos artigos 317 e 478 do CC/2002, inclusive na sua versão aplicada à empreitada
(CC/2002, artigo 625, II).
2/4. Em escólio ao artigo 625, II, do CC/2002, que admite que o
empreiteiro, em empreitada a preço fixo, “suspenda a obra”, quando, no decorrer dos
serviços, se manifestem dificuldades imprevisíveis na execução, Fátima Nancy Andrighi,
Sidnei Beneti e Vera Andrighi observam que essa regra é expressão do princípio do
equilíbrio econômico que deve prevalecer na maior parte dos contratos.4 E Ruy Rosado de
Aguiar Júnior acrescenta em comentário ao mesmo artigo que o dispositivo em referência
permite que o empreiteiro, nas aludidas circunstâncias, suste a obra e possa ir a juízo pleitear
a resolução do contrato, na via autorizada pelo artigo 478 do CC/2002. Ou a revisão das
cláusulas contratuais, já que quem pode o mais, pode o menos.5
2/5. Em suma, seja qual for o tipo de empreitada, com ou sem
reajustamento, é pressuposto que, no curso da execução da obra, deverá ser mantido o
equilibro econômico entre as prestações recíprocas, sem o qual o contrato, de matriz
2
Mario Bessone, Adempimento e rischio contrattuale, Milão, Giuffrè, 1975, p. 4.
Agostino Gambino, “Eccessiva onerosità della prestazione e superamento dell’alea normale del contratto”in
Rivista del diritto commerciale, n. 58, p. 448, 1960.
4
Fátima Nancy Andrighi e outros, Comentários ao novo Código Civil, Forense, 2008, v. IX, p. 347.
5
Ruy Rosado de Aguiar Júnior, Comentários ao novo Código Civil, Forense, 2011, v. VI, p. 324.
3
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comutativa, se desfigura, convertendo-se em negócio aleatório, com incerteza em relação à
verdadeira extensão das prestações. Pois é no contrato aleatório que a contraprestação tem a
chance de ser desproporcional ao valor da prestação, seja em relação às duas partes, seja
apenas a uma delas (CC/2002, artigo 458 usque 461). Assim, na empreitada sem
reajustamento, vedada a exigência de “acréscimo no preço”, caberia ao empreiteiro uma
álea ilimitada, não fosse sua submissão ao princípio geral do equilíbrio econômico do
contrato, que constitui um dos dogmas nucleares do direito contratual atual.
2/6. Na doutrina clássica, o contrato sempre seria “justo”, na medida em
que, sendo querido pelas partes, resultaria de uma livre apreciação dos respectivos interesses
pelos próprios contratantes, de onde lícito seria presumir o equilíbrio das prestações. Sendo
justo o contrato e presumido o equilíbrio, seguia-se que aos contratantes deveria ser
reconhecida ampla autonomia de vontade, limitada tão-somente por considerações de ordem
pública e pelos bons costumes.
2/7. Em torno dessa “autonomia de vontade”, fixaram-se, então, os três
princípios informativos do direito contratual: (i) o princípio da “liberdade de contratar”,
entendendo-se como tal a aptidão dos contratantes de auto-regulamentar os seus interesses,
estipulando o que lhes aprouver, dentro dos limites da lei: (ii) o princípio da “intangibilidade
do conteúdo”, pelos quais o contrato, uma vez firmado, adquire força de lei entre as partes,
só podendo ser alterado em sua substância por novo encontro de vontades: e (iii) o princípio
da “relatividade do contrato”, segundo o qual os efeitos do mesmo se produzem
exclusivamente entre as partes, não aproveitando, nem prejudicando terceiros.
2/8. A esses três princípios tradicionais, que gravitam em torno do conceito
de autonomia de vontade, foram acrescentados três outros, que, sem os eliminarem, vieram
amoldá-los às novas demandas. Operou-se uma mudança de paradigmas, fazendo emergir
(i) o princípio da “função social” do contrato, (ii) o princípio da “boa-fé objetiva” e (iii) o
princípio do “equilibro econômico” do contrato. O Código Civil de 2002 deu guarida,
explícita ou implicitamente, a esses novos princípios. Explicitamente, no caso da função
social do contrato, através do artigo 421, e da boa-fé objetiva, através do artigo 422,
combinado com os artigos 113 e 187. No que tange ao princípio do equilíbrio econômico do
contrato, embora não tenha sido exteriorizado em um dispositivo individualizado,
manifestou-se como elemento informativo dos institutos do “estado de perigo” (art. 156), da
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“lesão” (art. 157), da “onerosidade excessiva” (art. 478 usq. 480) e do “enriquecimento sem
causa” (art. 884 usq. 886).6
2/9. A autonomia de vontade já tinha, na teoria contratual clássica, como
pressuposto lógico, a “paridade dos contratantes”, visto que só haveria falar em liberdade
de contratar e imprimir força obrigatória ao ajuste quando uma das partes não se visse na
contingência de simplesmente se submeter à vontade exclusiva da outra, pois, caso contrário,
a sua autonomia de vontade seria apenas formal. Para que o contrato fosse livremente
concluído e executado, força seria que o mesmo resultasse de um encontro de vontades, de
partes que se mantivessem dentro de certo nível de paridade, ou seja, providas de iguais
poderes negociais. E é aqui que entra o “princípio do equilíbrio econômico do contrato”.
Esse princípio visa a impedir que as prestações contratuais expressem, seja na sua conclusão
seja na sua execução, um desequilíbrio real e injustificável entre as vantagens obtidas por
um e por outro dos contraentes. Ou, em outras palavras, que se desconsidere o “sinalagma
contratual”, encarado em seu perfil funcional.
2/10. Ora, como se depreende dos fatos narrados, é evidentemente que não
se observou, seja na celebração do Contrato, seja na sua execução, esse equilíbrio funcional
entre A e E, a que se alude. Primeiramente, cumpre recordar que a celebração do Contrato
entre a A e E foi precedida pela tentativa de contratação de outra empresa, a TT, sendo certo
que o processo de substituição “real” da mesma, pela E, consumiu meses, atropelado ainda
pela mudança dos fornecedores dos motores e transformadores da usina. Reduzido, por fim,
o “compromisso” entre as partes a um documento escrito, objeto da correspondência da E
de 15 de agosto de 2011, somente em 2 de outubro de 2011 a A formalizaria a licitação
privada, prevendo o início da obra para 7 de janeiro de 2012. Por seu turno, o Contrato da A
com a E, vencedora do certame, só seria firmado em 15 de fevereiro de 2012, com data
aprazada para a entrega da usina em 30 de novembro de 2012.
2/11. Sendo o prazo de entrega da usina, portanto, extremamente exíguo,
e prevendo a licitação um cronograma com início das obras no máximo em 7 de janeiro de
2012, a A se dispôs a disponibilizar substancial recursos financeiros (20% do preço original)
para que a E desse início imediato às obras, vale dizer, em 15 de dezembro de 2011, mesmo
antes de firmado o Contrato, o que somente ocorreria em 15 de fevereiro de 2012. Ao
acelerar o início das obras antes da formalização do Contrato, a fim de cumprir o
cronograma, adiantando os recursos à empreiteira, lícito é inferir que se firmou entre as
Cf. Antônio Junqueira de Azevedo, “Princípios do novo Direito Contratual e Desregulamento do Mercado”,
in Revista dos Tribunais 750/115.
6
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partes um consenso tácito no sentido de que – dada a premência do tempo para a formulação
do orçamento e para a realocação dos riscos de acordo com o prazo exíguo – ambas se
dispunham a implementar todos os ajustes que se fizessem necessários para a execução em
tempo das obras contratadas.
2/12. Tanto é verdade que, logo que apareceram os primeiros sinais de que
a falta de reexame da avença afetaria a execução das obras, as partes se movimentaram no
sentido de lograr uma composição, atestando a A, ao firmar com a E o Aditivo que majorava
com um acréscimo de quase 1/3 (um terço) do preço original do Contrato, que a E agira
sempre de boa-fé, mesmo diante dos infortúnios com os quais se deparava. Ao mesmo tempo
em que reconhecia, implicitamente, o desequilíbrio econômico intrínseco da avença,
passando o valor contratado, originalmente “fixo e global” de R$ 80.000.000,00, para R$
105.000.000,00.
2/13. Esse desequilíbrio econômico do Contrato ainda mais se acentuaria
com a superveniência de fatos e dificuldades imprevisíveis no curso de sua execução, que
subverteram as bases do negócio originalmente pactuadas. A própria A, aliás, corroboraria
esse entendimento ao cobrar, em sede de reconvenção, a vultosa quantia de R$
116.798.223,65 (inicialmente estimada em R$ 57.602.549,28) a título de supostos custos
adicionais que teria incorrido quando, rescindido o Contrato e já à testa da empreitada, dera
remate ao restante da obra (14% a 20%) – cifra esta que corresponde ao dobro do valor total
do Contrato original.
2/14. Ao empolgar a gestão das obras de construção da usina e tolher o
epcista de cumprir as suas obrigações para a entrega da obra, quando esta já se avizinhava
da sua finalização, negando-se a responder pelo aumento dos custos decorrente de fatos
extraordinários e de dificuldades imprevisíveis, resta evidente que a A abusou do seu poder
negocial. Com isso provocou uma mutação na natureza do Contrato, pois confinou todo o
risco do negócio, nele incidente, como de exclusiva responsabilidade da empreiteira,
emprestando, assim, caráter aleatório a um ajuste que se requer seja essencialmente
comutativo.7
2/15. À vista dessas observações, vejamos os quesitos formulados pela
Consulente, respondendo-os à medida que forem sendo reproduzidos.
7
Na vigência do CC/1916 houve quem sustentasse que a empreitada seria, acessoriamente, um contrato
aleatório (como E.V. de Miranda Carvalho, Contrato de Empreitadas, Rio, Freitas Bastos, 1953, p. 8), no que
era por outros contestado (Almeida Paiva, Aspectos do Contrato de Empreitada, Rio, Forense, 1955, p. 21).
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III. QUESITOS
1º) O contrato de engenharia, suprimento e construção em questão
(“Contrato”) pressupõe ser uma avença comutativa. Essa
comutatividade foi afetada pelo fato de a negociação do instrumento
contratual e sua assinatura ter ocorrido cerca de 4 (quatro) meses
após o fim da concorrência privada, durante as quais as partes
alteraram o projeto, mas não modificaram o preço e nem o
cronograma para a conclusão da obra?
3/1. Nos contratos comutativos, a relação entre vantagem e sacrifício entre
as partes é subjetivamente equivalente, havendo sempre certeza quanto às prestações. Quer
dizer, ambas são certas e se compensam (CC/2002, art. 441 e seguintes.). Na ideia de
comutatividade está implícita, portanto, a de equivalência das prestações, de antemão
conhecidas das partes, cada parte só consentindo num sacrifício se aquilo que obtém em
troca for do mesmo porte. Quer dizer, as partes comutam vantagens, guardando entre si um
nível razoável de igualdade de valores. E nessa composição de sacrifícios e vantagens
mútuas, a equivalência das prestações é determinada em função do volume relativo das
prestações recíprocas e do prazo para executá-las.8
3/2. No caso em exame, o prazo para a entrega da obra de Camaçari era
extremamente exíguo, em se considerando que se cogitava da construção e da entrega de
uma usina termoelétrica em condições de operar em 9 (nove) meses, a contar da data da
assinatura do Contrato. Esse instrumento foi firmado em 15 de fevereiro de 2012 e a data
para a entrega da usina em condições de operar findava em 30 de novembro de 2012. É
verdade que as primeiras tratativas entre as partes remontam aos primeiros meses de 2011 e
tiveram alinhamento final em 15 de agosto de 2011, depois de várias etapas, já narradas,
quando o resultado final foi reduzido a escrito em um compromisso informal. Em 2 de
outubro de 2011, a A formalizou a licitação privada, sagrando-se a E vencedora Contratos
do certame. Somente 4 (quatro) meses depois, ou seja, em 15 de fevereiro de 2012 é que
seria, por fim, celebrado o Contrato.
3/3. Ao longo desse intervalo que permeia a abertura dos resultados da
licitação e a assinatura do Contrato, foram introduzidas significativas alterações no projeto,
Domenico Rubino, L’Appalto, 2ª edição, Turim, 1951, PP. 129/132; Orlando Gomes, Contratos, Forense, 4ª
edição, 1973. P. 333.
8
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122
sem que essas alterações tenham se refletido em majoração do preço e em mudança do
cronograma de forma compatível com a realidade dos fatos, comprometendo, assim, a
comutatividade originalmente buscada pelo Contrato.
3/4. Advirta-se que as modificações introduzidas não pararam aí: uma vez
assinado o Contrato, a A decidiu promover uma mudança no projeto básico do
empreendimento, com a finalidade de operar a adequação da obra ao novo lay-out, de forma
a propiciar melhores condições de acesso à usina para os caminhões. Ao lado disso, obras
complementares foram adicionadas para permitir maior estocagem de combustível. Não
obstante preveja o Contrato a introdução de alterações desse naipe por parte da A (cláusula
9), é intuitivo que o “equilíbrio do negócio”, entendido como a equivalência entre prestações
e contraprestações das partes, foi severamente afetado, agravando-se a posição da E.
3/5. Por outro lado, o fato de a E ter concordado com a introdução de tais
alterações quando da assinatura do Contrato não elimina a existência de desequilíbrio
econômico na avença, tanto que, meses depois, as partes celebrariam Aditivo, majorando o
preço “fixo e global”, originalmente pactuado, em cerca de um terço do valor contratado,
passando de R$ 80.000.000,00 para R$ 105.000.000,00, embora sem alteração da data
prevista para a conclusão da obra. A comutatividade fora, portanto, abalada e é indiscutível
que através desse Aditivo se procurava simplesmente restaurá-la.
2º) A realização de serviços preliminares antes da assinatura do
Contrato, inclusive com o pagamento de adiantamentos pela
Contratante, implica que o cronograma deve ter efeitos retroativos
a outubro de 2011, inclusive para responsabilizar a parte
Contratante pelo não cumprimento de marcos contratuais? As
modificações de projeto solicitadas pela Contratante entre outubro
de 2011 e março de 2013 impõem que esta assuma o ônus desse
atraso?
3/6. Uma vez firmado, todo e qualquer contrato passa a produzir efeitos
obrigacionais a contar do momento do consentimento (ex nunc), podendo, porém, por
vontade das partes, retrotrair, abrangendo relações passadas, concernentes a um período
pretérito (ex tunc).9 O Contrato, celebrado entre a E e a A, se filia à primeira categoria,
9
Darcy Bessone de Oliveira Andrade, Do Contrato, Forense, 1960, p. 220; Adolfo de Majo Giaquinto,
L’esecuzione del contratto, Giuffrè, 1967, p. 242 ss.
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inscrevendo-se na modalidade dos contratos de duração, cuja execução diferida e continuada
tinha o seu termo inicial com a assinatura do instrumento contratual em 15 de fevereiro de
2012 e termo final com a entrega da obra, em 30 de novembro de 2012, em conformidade
com cronograma de trabalho anexo ao contrato (Anexo C). Gerava, portanto, efeitos para o
futuro.
3/7. É verdade que no próprio corpo do Contrato, embora firmado em 15
de fevereiro de 2012, a empreiteira reconheceu, em cláusula expressa (cláusula 6.2, item
“i”), haver recebido, em 15 de dezembro de 2011 e 15 de janeiro de 2012, respectivamente
5% (cinco por cento) e 15% (quinze por cento) do preço contratual. Não obstante esses
pagamentos antecipados, não há nenhuma cláusula dando efeito retroativo às obrigações
decorrentes do Contrato, de sorte que as mesmas só passaram a ser vinculantes e coercíveis
após a sua celebração, sempre dentro do cronograma anexo ao instrumento contratual.
3/8. Quer dizer, embora possa ter havido a prestação de serviços anteriores
(o que, em parte, explicaria os referidos pagamentos adiantados), o marco inicial da
empreitada era indubitavelmente a data da assinatura que selou o negócio, gerando
obrigações de parte a parte, a serem futuramente cumpridas. Vale aqui o significado
semântico (ex-sequor) da expressão, podendo dizer-se que a “execução” do contrato sempre
se traduz numa projeção futura dos seus efeitos, ou seja, “qualcosa che segue, che vien
dopo”, como diz Giaquinto.10
3/9. Assim, a eventual realização de serviços preliminares por parte da E,
antes da assinatura do Contrato, inclusive com o pagamento de adiantamentos do preço
desses serviços pela A, não implica que o cronograma para a construção da usina deva ter
efeitos retroativos. Mormente quando esses efeitos tenham por objetivo responsabilizar a
empreiteira pelo não cumprimento de marcos contratuais ajustados para mensurar o avanço
físico da obra ao longo do processo de execução do Contrato, que inicia com o
consentimento.
3/10. Por outro lado, se entre outubro de 2011, antes da assinatura do
Contrato, e, dezembro de 2012, quando, já assinado o Contrato, as partes negociavam o
segundo aditivo, até com mudança do cronograma, impunha-se que A assumisse o ônus dos
atrasos decorrentes das alterações por ela propugnadas. Assim, podemos responder à
segunda parte do presente quesito, dizendo que os encargos ligados às alterações
introduzidas no projeto original por determinação da comitente, entre outubro de 2011
10
Obra citada, p. 3.
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(quando a E se sagrou vencedora do certame licitatório), e 15 de dezembro de 2012 (quando
a A assumiu a obra), devem correr exclusivamente por conta da dona da obra. Até porque,
em sendo a esta imputáveis os atrasos provocados pelas modificações no plano original,
haveria, à época, justa causa para a empreiteira “suspender” a execução dos serviços (arts.
476 e 625, I, do CC/2002).
3º) A assunção de obrigação pela Contratante perante a autoridade
governamental de iniciar a operação comercial da Usina em
determinado prazo impede que o Contrato sofra alterações que
importem na modificação da data para a entrega da Usina após a
data prevista perante o órgão regulador para início da operação
comercial? A recusa da Contratante em estender o Prazo nesse
contexto constitui abuso de sua posição contratual?
3/11. Em 18 de abril de 2011, a Agência Nacional de Energia Elétrica
(“ANEEL”) expediu a Portaria 63, autorizando a A a estabelecer-se como produtora
independente de energia elétrica, prevendo um cronograma de implantação de uma usina
termoelétrica em Camaçari, Bahia, iniciando as obras “até 7 de janeiro de 2012”, e devendo
a mesma entrar em operação comercial “em janeiro de 2013”. Em 15 de fevereiro de 2012,
a A celebrou com a E o Contrato EPC, assumindo a empreiteira a obrigação de executar os
trabalhos de construção da usina, de forma a entregá-la concluída, pronta para operar, “até
a data assegurada de conclusão” - ou seja, “até 30/11/2012” (cláusulas 1,verbetes, 3.1 e
5.1).
3/12. Tendo em vista a extrema exiguidade dos prazos estabelecidos pela
ANEEL para a empresa autorizada tanto para dar início às obras da construção da usina,
como para a sua conclusão e entrada em operação, compreende-se porque as partes acederam
em celebrar o Contrato em 15 de fevereiro de 2012, antecipando o pagamento ao empreiteiro
de 20% do futuro preço contratual, em duas parcelas, em 15 de dezembro de 2011 e em 15
de janeiro de 2012. Compreende-se também porque, logo depois, passariam elas a negociar
a introdução de alteração do projeto básico do empreendimento, para adequação do lay-out
às estruturas que comporiam a futura usina. Com essas medidas, imprimia-se velocidade às
obras.
3/13. Daí porque, à vista desses acontecimentos, a E encaminhou à A, em
agosto e setembro de 2012, propostas técnicas, objetivando promover a adequação do preço
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contratual, a qual só viria a ser materializada em 9 de outubro de 2012, com a celebração de
um aditivo contratual que contemplava um acréscimo superlativo, da ordem de 1/3 (um
terço) do preço, sem que se promovesse, porém, a alteração do prazo para a conclusão da
obra . Ocorre, porém, que já em novembro de 2012 as partes passariam a discutir a redação
de um segundo aditivo, com novas modificações no projeto, dando prioridade à alteração do
cronograma original. Nessa altura, mais de 80% da obra já estava concluído - ocasião em
que a A manifestou interesse em assumi-la, promovendo a rescisão do Contrato.
3/14. Dentro desse contexto é formulada a pergunta acima reproduzida: a
assunção pela A perante a autoridade reguladora da obrigação de dar início à operação
comercial da usina em determinada data impediria (indaga-se) que o Contrato, por ela
firmado com a E, sofresse modificações que importassem em alteração da data de conclusão
da obra, postergando-a para data posterior ao termo acertado junto ao órgão governamental
para a entrada em operação comercial da usina? Ora, embora a construção e a operação da
usina dependam de autorização da ANEEL, essa autorização não consubstancia nem
pressuposto, nem elemento constitutivo do Contrato, formando-lhe a estrutura e fornecendolhe a substância.11
3/15. Com efeito, a ANEEL é pessoa estranha ao Contrato EPC, tendo em
vista o princípio da relatividade das convenções, segundo o qual os efeitos dos contratos se
produzem exclusivamente entre as partes, não aproveitando nem prejudicando a terceiros.
Para a ANEEL, o contrato de construção da usina é res inter alios acta, visto que, como ato
de autonomia privada, ele não pode atingir senão as esferas jurídicas das partes contratantes,
comitente e empreiteira. Por conseqüência, a recusa da A em estender o prazo contratual sob
o pretexto de que estaria presa a prazo mais rígido determinado pela autoridade reguladora
constituiria, na verdade, abuso do seu poder negocial, pois a determinação administrativa
não poderia interferir na execução do ajuste entre a empreiteira e a empresa autorizada a
fornecer energia elétrica. Não se cogita aqui de fato do príncipe.
4º) A modificação do método de aferição do cumprimento dos
marcos contratuais, sem a celebração de aditamento contratual,
mas acordada entre as partes mediante a contratação de Terceiro
para tal tarefa, deve ser considerada válida, eficaz e irrevogável,
nos termos do artigo 614, § 1º, do Código Civil, uma vez que a
Contratante conferiu as medições por meio de engenheiro do
proprietário e efetuou os pagamentos respectivos?
11
Darcy Bessone de Oliveira Andrade, Do Contrato, ob. Citada, p. __.
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5º) À luz do que determina o artigo 614, § 2º, do Código Civil, a
Contratante tem direito ao ressarcimento por eventuais vícios na
obra reclamados no prazo de 30 (trinta) dias, a contar das
respectivas medições? Em caso afirmativo, a quem incumbe o ônus
da prova das falhas na realização das atividades? O fato de
eventuais vícios terem sido suscitados apenas após a conclusão da
obra constitui violação à boa-fé pela Contratante?
3/16. Versa o artigo 614 do Código Civil a hipótese de empreitada em que
a fixação do preço atende ao fracionamento da obra, considerando-se as partes em que ela
se divide, ou são mensuradas. Essa hipótese não é incompatível com a empreitada em que a
retribuição é estipulada para a obra inteira, nem deixa de ser fixo e global o preço face ao
fato de ter sido ajustado o seu pagamento de forma escalonada, desde que este seja
determinado em função da obra encarada como um todo. O Contrato entre E e A é um
contrato de empreitada por preço fixo e global, a ser pago, de maneira parcelada, em 11
(onze) prestações sucessivas, sendo 1 (uma ) de 20% e 10 (dez) outras de 8% (oito por cento)
do preço cada uma, correspondendo essas parcelas do preço aos marcos contratuais previstos
no cronograma de trabalho (cláusula 6.2).
3/17. Com efeito, na cláusula 6.2, in fine, do Contrato, acima citada, ficou
estabelecido que o dono da obra verificaria (cláusula 8) e certificaria por escrito (cláusula
10) se os eventos previstos no cronograma teriam ou não sido cumpridos pela empreiteira
dentro da data de pagamento de cada uma das parcelas, reservando-se o direito de
“suspender” os pagamentos até que fossem atingidos os marcos contratuais representativos
dos avanços da obra. Assim, embora se trate de uma empreitada por preço fixo, o pagamento
deste é parcelado, em função da medição do trabalho executado (“obra por medida”). Daí a
pertinência da incidência no caso do artigo 614 da lei civil.12
3/18. Lembre-se que, no curso da execução do Contrato, a A promoveu a
contratação da SS Gerenciamento e Empreendimento (“SS”), com o escopo de acompanhar,
na qualidade de “engenheiro do proprietário”, a evolução da obra, realizando a revisão de
todos os trabalhos efetuados e a implantação de uma nova forma de pagamento atrelado não
mais a marcos contratuais, mas sim à medição do avanço físico dos serviços. Assim, a
modificação do método de aferição do cumprimento dos marcos contratuais, introduzida por
iniciativa da SS, ainda que não tenha sido objeto de aditamento formal entre as partes, foi
entre elas acordada mediante a contratação de uma empresa exatamente com o objetivo de
12
Gustavo Tepedino et alii, Código Civil Interpretado, Renovar, Rio, 2006, vol. II, p. 350 ss.
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exercer tal tarefa, motivo pelo qual a introdução de novo método de aferição é, para todos
os efeitos, válido, eficaz e irrevogável.
3/19. Por outro lado, nos termos do disposto no §§ 1º e 2º do artigo 614 do
CC/2002, se a empreitada for “de natureza das que se determinam por medida” (como
ocorre no presente caso), prevalece a regra (i) de que, em todos os pagamentos efetuados
pelo dono da obra, se presume que os resultados da empreitada foram adrede verificados, e
(ii) de que, em todas as medições, igualmente por ele efetuadas, se presume que os marcos
contratuais foram conferidos, exceto se, em trinta dias, a contar da medição, o dono da obra,
ou quem estiver incumbido da sua fiscalização, vier a denunciar a existência de algum vício
ou defeito na obra executada.
3/20. Nas duas hipóteses a presunção legal é relativa (iuris tantum) e se
dá em prejuízo do comitente e em benefício do empreiteiro, podendo, na primeira hipótese,
ser elidida pelo dono da obra mediante a prova de que, a despeito do pagamento, via de regra
a título de adiantamento, não foi feita a verificação do andamento da execução dos serviços;
e, na segunda hipótese, se, realizada a medição, houve a denúncia por parte do comitente, no
referido prazo de trinta dias a contar da medição, da ocorrência de vícios na obra executada.
Quer dizer, no primeiro caso, o pagamento implicaria a aceitação da obra pelo comitente,
que se presumiria satisfeito; no segundo caso, a medição, por si só, não geraria essa
presunção, entendendo-se, porém, que, transcorrido o prazo de trinta dias sem impugnação
do dono da obra, seria de presumir essa aceitação. Em ambos os casos, isso significa dizer
que, por força do pagamento ou da medição, o dono entendeu estar a obra a seu contento.
3/21. Advirta-se que o prazo de trinta dias a contar da medição, para efeito
da impugnação da obra, é de natureza decadencial, motivo pelo qual, uma vez transcorrido
o lapso de tempo referido, caduca o direito do dono da obra de postular o ressarcimento por
eventuais vícios ou defeitos verificados na obra executada.13 Ademais, cabe a ele, na
impugnação, o ônus da prova das falhas de execução da obra cometidas pelo empreiteiro.
Nessas condições, caso o dono da obra se mantenha inerte em relação ao defeito ou vício
identificado, deixando de requerer, de forma tempestiva, a correção ao empreiteiro e se
reservando para suscitá-lo somente na conclusão da obra, não só decai desse direito, como
viola o princípio de boa-fé contratual a que está obrigado a guardar, seja na conclusão do
contrato, como em sua execução (CC/2002, art. 422).
13
Gustavo Tepedino et alii, Código Civil Interpretado, Renovar, vol. II, 2006, p.353.
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6º) A celebração de aditamento contratual que acresceu serviços
adicionais e majorou o preço dos serviços originais, em outubro de
2012, atesta que essas hipóteses constituem força maior para fins da
cláusula 18 do Contrato? A referida revisão contratual de preço
impede que a Contratada pleiteie posteriormente a extensão do
prazo, caso os planos de recuperação acordados com a engenharia
do proprietário não surtam efeito?
3/22. Conceitua o Código Civil o caso fortuito ou a força maior como “fato
necessário”, cujos efeitos não haveria como evitar ou impedir, motivo pelo qual o devedor
não responde pelos prejuízos dele resultantes, a menos que tenha por eles expressamente se
responsabilizado (CC/2002, art. 393). Para sua prova, que deve ser feita por quem a alega,
exigem-se dois elementos: um objetivo - a inevitabilidade do evento – e o outro subjetivo –
a ausência de culpa. Inevitabilidade traduzida na impossibilidade absoluta de superar o
acontecimento, à luz das circunstâncias em que o obrigado se encontra envolvido; e ausência
de culpa, porque, não podendo a dificuldade no cumprimento da obrigação ser evitada, não
se caracterizaria a culpa do contratante.14
3/23. É dentro desse contexto que deve ser encarada a definição de força
maior constante da cláusula 18.1 do Contrato de 15 de fevereiro de 2012. Para os efeitos do
Contrato, foi pactuado nessa cláusula que as partes estarão liberadas da responsabilidade
pela inexecução de suas obrigações contratuais quando o descumprimento deflua de um
evento de força maior, cuja ocorrência “tenha afetado a capacidade da parte em questão de
cumprir tais obrigações”. Ou seja, quando a impossibilidade de superar o fato irresistível
que impede o cumprimento da obrigação seja apreciada em concreto, levando em
consideração as condições pessoais da parte devedora para adimpli-la.
3/24. Assim, a celebração do “aditivo contratual” em 9 de outubro de
2012, que acresceu serviços adicionais e majorou significativamente o preço dos serviços
pactuado no Contrato de 15 de fevereiro de 2012, comprova que tais aditamentos, se não
fossem acertados como o foram, constituiriam fatos irresistíveis que liberariam a empreiteira
do cumprimento de suas obrigações contratuais, na sua versão original, pois estas,
“comprovadamente”, superavam a capacidade da empreiteira de adimpli-las. Por outro lado,
como o escopo desse aditamento era declaradamente restaurar o “equilíbrio econômico14
Arnoldo Medeiros da Fonseca, Caso Fortuito e Teoria da Imprevisão, 3ª edição, Rio de Janeiro, Forense,
1958.
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financeiro do Contrato”, a referida revisão consensual do preço não impediria que a
empreiteira viesse a pleitear posteriormente a extensão do prazo para a entrega da obra, como
de fato o faria ao postular um segundo aditivo, tendo em vista que os planos de recuperação
acordados com a engenharia do proprietário não surtiram os efeitos almejados.
7º) A proibição de alteração do Preço contida nas cláusulas 6.3(b),
6.3(c) e 6.4 do Contrato deve ser conciliada com a possibilidade de
alteração do Preço por Força Maior prevista na cláusula 18 da
referida avença? No caso de incompatibilidade de tais cláusulas, a
vedação ao enriquecimento sem causa faz com que prevaleça a
cláusula 18 em detrimento das cláusulas 6.3(b), 6.3(c) e 6.4?
3/25. Tendo em vista que o Contrato diz respeito a uma empreitada por
preço fixo e global (“turn-key”), as partes contratantes “reconheceram” nas cláusulas 6.3 e
6.4 que o preço estipulado para os serviços abrangeria “todos os custos e despesas” em que
a empreiteira viesse a incorrer no curso da execução dos serviços (6.3, item “a”), suportando
inclusive os custos e despesas “que porventura ultrapassassem” a cifra fixa estabelecida
(6.3, item “b”). Nesse sentido, ficou certo e convencionado que não haveria “nenhuma
alteração no preço do contrato ou nos prazos previstos” (6.3, item “c”), seja por força do
aumento no custo de equipamentos e mão de obra, seja em virtude do aumento nos custos
diretos e indiretos incorridos pela empreiteira para honrar as suas obrigações, seja ainda, por
decorrência de condições climáticas que viessem interferir nos serviços prestados (6.4).
3/26. É claro que a natureza fixa e global do preço do contrato e a
consequente proibição de alteração do preço contratual, contida nas cláusulas 6.3(a),(b) e (c)
e 6.4, acima citadas, devem ser entendidas em combinação com a possibilidade de ocorrer
modificação desse mesmo preço em decorrência de evento de força maior, tal como essa
expressão é conceituada na cláusula 18 do Contrato. Em havendo conflito entre tais
dispositivos contratuais, a vedação ao enriquecimento sem causa, que na lei civil figura
como princípio geral ao lado dos negócios jurídicos (CC/2002, art. 884), fará com que a
cláusula de força maior se sobreponha às cláusulas contratuais citadas que tolheriam as
alterações no preço da empreitada, a fim de que se preserve o equilíbrio econômicofinanceiro da avença.15 O contrato deve ser encarado como um todo orgânico, cujo conteúdo,
15
Cf. Giovanni Ettore Nanni, Enriquecimento sem Causa, São Paulo, Saraiva, 2004.
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130
posto que integrado por várias peças, configura-se como uma unidade, e as cláusulas devem
ser ligadas umas às outras, numa interpretação sistemática.
3/27. Na realidade, ao longo do CC/2002, o princípio do equilíbrio
contratual é consagrado seja através de normas gerais que maculam com anulabilidade os
negócios jurídicos atingidos por lesão (art. 157), resolvendo ou reajustando os contratos em
que se evidencia onerosidade excessiva (arts. 317 e 478 usq. 480), seja através também de
normas específicas relativas à revisão do preço na empreitada (arts. 619, 620 625, I e II).
8º)
A exigência contida na cláusula 9.7.2 do Contrato de que a
Contratada permanecerá responsável pela execução dos trabalhos
enquanto as partes não cheguem a um acordo sobre eventual Pedido
de Alteração e seus impactos no Cronograma de Trabalho e no
Preço torna abusiva a rescisão da avença por iniciativa da
Contratante enquanto ainda não estava encerrada a negociação
sobre o pedido de alteração?
9º)
A proposta de reprogramação do Cronograma contratual
apresentada pela Contratada e negociada de boa-fé com a
Contratante impede que esta última se valha da faculdade prevista
na cláusula 17.1(vii) do Contrato para assumir a obra dez dias após
o prazo fixado originalmente para entrega da Usina?
10º) O fato de a Contratante ter despendido o equivalente a 200%
do preço original para concluir a Usina após a rescisão da avença
e ter demorado mais dezessete meses para executar o restante dos
Trabalhos aponta que a condução da obra após a rescisão não se
pautou pelo parâmetro de eficiência estabelecido na avença em
questão? A Contratada deve suportar os custos adicionais que
tenham sido influenciados por tal ineficiência?
3/28. Dispõe a cláusula 9.7 que, caso a E conclua que a ocorrência de
determinado evento, com características de força maior, poderá comprometer o
prosseguimento do projeto, poderá ela formular um pedido de alteração do instrumento
contratual, com o objetivo de modificar o preço e a data de conclusão das obras. Para atingir
esses objetivos, deverá descrever detalhadamente o fato, fazendo uma estimativa dos
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impactos do mesmo no preço contratual e na data de entrega da obra. Nesse sentido,
estabelece a cláusula 9.7.1 que, ao receber o pedido, caberá à A entrar em tratativas com a
empreiteira, formalizando um termo aditivo. Acrescenta a cláusula 9.7.2 que, caso as partes
não cheguem a um acordo no prazo em tela, deverá a empreiteira permanecer à testa dos
trabalhos, responsável pela obra.
3/29. À vista desses dispositivos contratuais, lícito é concluir que deverá
ser considerada abusiva a rescisão unilateral da avença por iniciativa da comitente enquanto
as partes não deem por encerrada a negociação a respeito da matéria. A simples leitura da
cláusula contratual conduz a essa interpretação. Em síntese, não cabe rompimento unilateral
sem que haja motivo relevante, decorrendo tal afirmação da bilateralidade e da
comutatividade, características do contrato de empreitada que implicam obrigações
recíprocas e sinalagmáticas, sendo a prestação de um contratante a causa da prestação do
outro.
3/30. Por via de consequência, cumpre concluir que a proposta de
reprogramação do cronograma contratual, apresentada pela E e negociada de boa-fé com a
A, impediria que esta última se valesse da faculdade que lhe era outorgada pela cláusula
17.1.(vii) do Contrato, rescindindo-o e assumindo a obra. Na realidade, esse permissivo dizia
que a A poderia rescindir o Contrato, caso a E descumprisse qualquer “obrigação
substancial” nele prevista, e caso esse descumprimento não fosse sanado no prazo de 15
(quinze) dias contados da data de notificação a ser enviada pela A, ou dentro de qualquer
outro prazo negociado pelas partes de boa-fé. Na hipótese, esse descumprimento não
ocorreu.
3/31. Por fim, dispõe a cláusula 17.5.5 do Contrato que em caso de rescisão
por inadimplemento por parte da empreiteira, a A “terá o direito de concluir (ou fazer que
sejam concluídos) os Trabalhos”, ficando ainda “com o direito de receber da Contratada
os custos efetivamente incorridos pela Contratante na conclusão dos Trabalhos”. Se o
total dos custos incorridos pela Contratante na conclusão dos trabalhos superar o saldo do
preço contratual em aberto, a Contratada será obrigada a pagar à Contratante a diferença
entre o saldo a receber e o total dos custos incorridos. In casu, levando em conta que a
Contratante (A) alega ter despendido o equivalente a 200% do preço original para concluir
a usina após a rescisão da avença, consumindo mais de dezessete meses para executar o
remanescente da obra, tudo aponta no sentido de que a condução da obra, por ela feita após
a rescisão, não se pautou propriamente pelo parâmetro de eficiência estabelecido na avença.
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É óbvio que a E não deve suportar os custos adicionais que tenham sido introduzidos por tão
grande ineficiência.
11º) A expressão “desde que tais custos sejam atribuíveis
diretamente à rescisão por evento de inadimplemento da
Contratada”, incluída na cláusula 17.5.5 da avença, exclui a
responsabilidade da Contratada por eventuais custos adicionais
incorridos pela Contratante em condições daquelas estabelecidas
no Contrato?
3/32. A cláusula 17.1 do Contrato estabelecia, como se observou, que a A,
dona da obra, poderia rescindir a avença em várias circunstâncias, dentre as quais na hipótese
de a E, como empreiteira da obra, descumprir “obrigações substanciais” do Contrato, nem
sanar o inadimplemento em prazo oportuno negociado entre as partes (item “vii”). Nesse
caso, ficou ajustado que a A poderia concluir a obra, reservando o direito de receber da E os
“custos adicionais efetivamente incorridos” – e “desde que tais custos sejam relacionados
“diretamente” com a rescisão provocada por inadimplemento da empreiteira.
3/33. É o que expressamente está previsto na cláusula 17.5.5 do Contrato,
fazendo referência à “rescisão por Evento de Inadimplemento da Contratada”, entendendo
como “Evento de Inadimplemento da Contratada”, consoante dispõe a cláusula 17.1(vii),
“qualquer outra obrigação substancial do presente Contratada não sanada”. O que
equivale a dizer que a cláusula em pauta exonera a E por “custos adicionais” incorridos pela
A em decorrência de condições distintas daquelas constantes do Contrato.
12º) A cláusula 16.5 do Contrato pode ser considerada uma cláusula
válida de não-indenizar danos indiretos e lucros cessantes? Em caso
afirmativo, essa limitação de responsabilidade seria aplicável à
rescisão por evento de inadimplemento da Contratada definida na
cláusula 17.5.5 da referida avença?
3/34. Pela cláusula 16 do Contrato, ficou estabelecido que à empreiteira
(E) compete “indenizar e manter indene” a dona da obra (A), e que esta, vice-versa, deverá
indenizar e manter indene a empreiteira, com relação a danos que, na execução da
empreitada, uma venha a provocar na outra. Ficou, porém, ressalvado, no item 16.5, que “as
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partes não serão responsáveis, uma com relação outra, por quaisquer danos indiretos ou
lucros cessantes, que venham a sofrer”.
3/35. Cláusulas desse naipe - destinadas a afastar a responsabilidade das
partes contratantes com relação à inexecução de obrigações contratualmente assumidas - são
válidas em nosso Direito,16 desde que o seu campo de incidência se restrinja ao chamado
ilícito contratual e desde que não se caracterize no ato danoso dolo ou culpa grave. No caso
do Contrato entre E e A, essa exoneração convencional da obrigação de indenizar diz
respeito, portanto, aos lucros cessantes e aos danos indiretos, entendidos aqueles como
ganhos frustrados, e estes, como prejuízos sofridos como conseqüência remota.
3/36. Na cláusula 17.5.5, ficou ajustado que, em caso de rescisão do
Contrato por inadimplemento por parte da E, a A teria o direito de assumir a gestão das
obras, recebendo da empresa inadimplente os custos adicionais efetivamente incorridos pela
dona da obra na conclusão dos trabalhos, desde que tais custos se refiram “diretamente” à
rescisão por inadimplência da empreiteira. Tais custos adicionais, provocados em ricochete,
configuram danos materiais reflexos, ou seja, indiretos, e estão também cobertos pela
exoneração da responsabilidade convencionada na cláusula 16.5, in fine. Ou seja, são danos
que não decorrem senão remotamente da conduta empreiteira, não havendo um nexo de
causalidade direta e imediata que, de acordo com a lei (CC art. 403), determinaria a
responsabilidade contratual da E.
S.M.J.
São Paulo, 29 de agosto de 2014
Luiz Gastão Paes de Barros Leães
16
José de Aguiar Dias, Cláusula de não indenizar, 4ª edição, Rio de Janeiro, Forense; Sérgio Cavalieri Filho,
Programa de Responsabilidade Civil, São Paulo, Atlas, 7ª edição, p. 497 ss.
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ATUALIDADES
A QUESTÃO DA CONFIGURAÇÃO DE FRAUDE NAS ALIENAÇÕES
ENVOLVENDO BEM DE FAMÍLIA E SUAS CONSEQUÊNCIAS: ANÁLISE DA
JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA A PARTIR DO
RECURSO ESPECIAL Nº 1.227.366
Fraud identification on disposing of homestead property and its consequences: study
of precedents issued by the Brazilian Superior Court of Justice (Superior Tribunal de
Justiça) inspired by Special Appeal 1,227,366.
Vivianne da Silveira Abílio
Mestre em Direito Civil pela UERJ. Advogada.
Resumo: O artigo analisa a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça a respeito da
possibilidade de configuração de fraude em alienações envolvendo bens alcançados pela
proteção consagrada na Lei n.º 8.009/1990 e as possíveis consequências de seu eventual
reconhecimento a partir do Recurso Especial nº. 1.227.366. Para tanto, enfrenta a função
exercida pela impenhorabilidade do bem de família no direito brasileiro e seu consequente
tratamento nos Tribunais.
Palavras-chave: Direito Civil; Bem de família; Boa-fé; Direito à moradia; Fraude
Abstract: The paper analyses the Superior Tribunal de Justiça’s decisions regarding the
possibility of recognizing fraud in the disposing of assets that are protected by the homestead
right law (Lei n.º 8.009/1990) and the consequences of this recognition from the perspective
settled in one precedent of the Court (Recurso Especial n.º 1.227.366). To accomplish this
purpose, the paper studies the role of the homestead right in the Brazilian law and its
approach on the Brazilian courts.
Keywords: Private Law; Homestead Right; Good Faith; Right to housing; Fraud
Sumário: 1. A hipótese apreciada no Recurso Especial nº. 1.227.366 – 2. A proteção ao bem
de família como expressão do direito constitucional à moradia e seu reflexo na jurisprudência
do Superior Tribunal de Justiça – 3. A questão da configuração de fraude na alienação do
bem de família e seus efeitos sobre a impenhorabilidade em julgados do Superior Tribunal
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de Justiça – 4. À guisa de conclusão: em busca do equilíbrio entre a proteção à moradia e a
tutela da boa-fé
1. A hipótese apreciada no Recurso Especial nº. 1.227.366
Sylvio Carlos Sobrosa da Rocha e sua esposa compraram, em 31.5.1995,
imóvel residencial que passaram a habitar com seus filhos. Alguns anos após a aquisição,
entre junho e agosto de 1997, Sylvio tornou-se réu em ações judiciais indenizatórias em que,
ao final, restou condenado.
Enquanto estavam em curso as aludidas demandas, Sylvio e sua esposa
separaram-se, celebrando acordo (verbal) em relação aos bens do casal, do qual resultou a
doação (efetivada mediante escritura pública) à filha do casal do bem adquirido em 1995, no
qual ex-mulher os filhos permaneceram residindo após a dissolução da sociedade conjugal.
Sobrevieram em 2000 e 2001 as execuções das condenações sofridas por
Sylvio. Em decorrência de não encontrarem os Exequentes bens a penhorar, pleitearam a
declaração de fraude à execução e consequente ineficácia da mencionada doação,
requerendo a penhora do imóvel.
Acolhidos os pedidos em ambas as execuções,1 opuseram mãe e filha
embargos de terceiro para obstar a ultimação da venda do imóvel, que foi julgado (i) extinto
sem julgamento do mérito em relação à primeira, por não possuir legitimidade, já que
procedera à alienação de sua meação e (ii) parcialmente procedente quanto à segunda,
salvaguardando 50% do imóvel da constrição, parcela decorrente da doação feita por sua
mãe, considerada lídima.
A questão foi, então, levada à 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça
para que se avaliasse (i) a inocorrência de fraude à execução, tratando-se de bem de família
antes mesmo da alienação e da própria condenação; e (ii) a impossibilidade de cindir o bem
de família, a impedir sua alienação forçada, já que o Tribunal de origem reconheceu a
exclusão de metade do imóvel.
1
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul considerou haver diversos processos contra Sylvio em razão de
ter supostamente repassado menos do que deveria aos seus clientes com a venda de ações da CRT e de ter o
casal sonegado outros imóveis nos autos da separação judicial. Compreendeu haver alienação fraudulenta e,
por isso, impossibilidade de premiar com a impenhorabilidade o devedor que obrou de má-fé, além de que o
valor do imóvel permitiria o pagamento das dívidas sem prejuízo da aquisição de outro bem para a residência
familiar com o restante do valor obtido com a alienação.
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Consoante se procurará detalhar no item 3, infra, ao julgar o caso no
âmbito do Recurso Especial nº. 1.227.366, o Ministro Relator Luis Felipe Salomão deu
provimento ao apelo extraordinário para, seja por reconhecer incidir à hipótese o benefício
da impenhorabilidade previsto no art. 1º da Lei nº. 8.009/1990 à totalidade do imóvel, seja
por compreender incindível o bem de família, reformar o acórdão recorrido, levantando a
penhora que recaía sobre o imóvel.
Cuida-se de relevante precedente que, ao evocar a necessária ponderação
na análise da possibilidade de configuração de fraude na alienação de bem de família,
permite avaliar o cenário jurisprudencial relativo à funçao da proteção do bem de família,
bem como as consequências de eventual conduta fraudulenta sobre a impenhorabilidade.2
2. A proteção ao bem de família como expressão do direito constitucional à moradia e
seu reflexo na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça
O advento da Lei nº 8.009/1990 representou relevante inovação na
proteção das entidades familiares: embora houvesse previsão no Código Civil de 1916 do
instituto do bem de família convencional (ou voluntário) – por meio do qual o proprietário
poderia estabelecer que o imóvel de residência familiar ficaria “isento de execução por
dívidas” (Código Civil de 1916, art. 70), mediante registro no ofício de imóveis competente3
–, o bem de família legal, por se tratar de proteção automática que independe de qualquer
ato do proprietário, implicou evidente ampliação das hipóteses em que se blinda o imóvel
residencial de expropriação por dívidas.4
Estabelece o aludido diploma a regra da impenhorabilidade do bem de
família que, portanto, “não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal,
previdenciária ou de outra natureza” (art. 1º), proteção que se estende também aos bens
Trata-se de questão polêmica, como se consignou no próprio acórdão: “No ponto, aliás, a configuração do
próprio instituto da fraude à execução relacionado a bem de família não é matéria unívoca na jurisprudência
desta Casa.”
3
O instituto permanece positivado no Código Civil de 2002, com disciplina mais ampla, nos artigos 1.711 a
1.722, dos quais se extraem os requisitos para sua instituição, como se tratar de imóvel destinado à habitação
da família e que “não ultrapasse um terço do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição” (VELOSO,
Zeno. Código Civil Comentado. Vol. XVII. São Paulo: Atlas, 2003, p. 79).
4
“Como resta evidente, nesse conceito, o instituidor é o próprio Estado, que impõe o bem de família, por norma
de ordem pública, em defesa da célula familial. Nessa lei emergencial, não fica a família à mercê de proteção,
por seus integrantes, mas é defendida pelo próprio Estado, de que é fundamento” (AZEVEDO, Álvaro Villaça.
Bem de família (Penhora em fiança locatícia e direito de moradia). NERY, Rosa Maria de Andrade; e
DONNINI, Rogério (orgs.). Responsabilidade Civil: estudos em homenagem ao professor Rui Geraldo
Camargo Viana. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 70).
2
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137
móveis que “guarnecem a casa” (art. 1º, parágrafo único), desde que observadas as exceções
previstas no artigo 2º. Cuida-se de mecanismo que assume papel essencial na concretização
dos objetivos traçados pela Constituição da República – que alçou a pessoa humana a
fundamento do ordenamento (art. 1º, III) –, vez que possui como vocação garantir condições
materiais mínimas à entidade familiar,5 relacionando-se de forma íntima com a promoção
do direito (fundamental) à moradia.6
O reconhecimento do exercício de tais funções ao instituto resultou em
interpretação tendente a ampliar e reforçar a proteção ao bem de família,7 seja por meio da
defesa da aplicação direta das normas constitucionais às relações privadas, seja pela
interpretação ampliativa do conceito de entidade familiar.8 Nessa direção, estabeleceu-se que
a impenhorabilidade do bem de família deve ser aplicada a entidade familiar constituída
apenas por irmãos,9 e, como amplamente difundido, alcança o devedor que habita sozinho o
“À guisa de definição da expressão, reúne-se uma série de conceitos que, aglutinados, formam aquilo que se
logrou entender como um complexo absolutamente indispensável à estrutura de segurança material e moral do
sujeito de direito. É o bem que impede ao credor o acesso às coisas indispensáveis à vida do devedor. Assim,
pode-se considerar o bem de família como o bem empregado para assegurar a sobrevivência digna dos
integrantes da família, no mínimo existencial, já que a família é a célula menor e fundamental da sociedade”
(GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Penhorabilidade do bem de família ‘luxuoso’ na perspectiva civilconstitucional. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo: Revista dos Tribunais, vol. 77, p. 282, jul 2014).
Tal função pode também ser evidenciada na análise do art. 4º, §2º da Lei n.º 8.009/1990, em que se observa
que, tratando-se de pequena propriedade rural, o legislador procurou resguardar não apenas o imóvel
residencial propriamente dito, mas também o suficiente para o desenvolvimento da agricultura de subsistência.
Veja-se o teor do dispositivo: “Quando a residência familiar constituir-se em imóvel rural, a impenhorabilidade
restringir-se-á à sede de moradia, com os respectivos bens móveis, e, nos casos do art. 5º, inciso XXVI, da
Constituição, à área limitada como pequena propriedade rural”.
6
“A proteção legal conferida ao bem de família pela Lei n. 8.009/1990, consectária da guarida constitucional
e internacional do direito à moradia, não tem como destinatária apenas a pessoa do devedor. Protege-se também
sua família, quanto ao fundamental direito à vida digna” (STJ, REsp 1.433.636, 4ª T., Rel. Min. Luis Felipe
Salomão, julg. 2.10.2014).
7
É o que se observa em significativo excerto da ementa do REsp 1.134.427, 2ª T., Rel. Min. Humberto Martins,
julg. 22.6.2010, publ. 1.7.2010: “deve ser dada maior amplitude possível à proteção consignada na Lei n.
8.009/90, que decorre do direito constitucional à moradia estabelecido no caput do art. 6º da Constituição
Federal de 1988”.
8
“Para além da discussão teórica quanto à aplicação direta ou indireta da norma constitucional, a Corte
Especial, com base na Lei nº 8.009 de 1990, definiu como prioritária a proteção do direito à moradia e da
dignidade do devedor, expandindo o conceito de bem de família, de modo a alcançar, em praticamente todas
as hipóteses, o imóvel residencial, agora impenhorável para pagamento de dívida” (TEPEDINO, Gustavo. Bem
de família e direito à moradia no Superior Tribunal de Justiça. Revista Trimestral de Direito Civil, vol. 36, p.
iii, out/dez 2010).
9
“Execução. Embargos de terceiro. Lei 8009/90. Impenhorabilidade. Moradia da família. Irmãos solteiros. Os
irmãos solteiros que residem no imóvel comum constituem uma entidade familiar e por isso o apartamento
onde moram goza da proteção de impenhorabilidade, prevista na Lei 8009/90, não podendo ser penhorado na
execução de divida assumida por um deles. Recurso conhecido e provido” (REsp 159.851/SP, 4ª T., Rel. Min.
Ruy Rosado de Aguiar, julg. 19.3.1998, publ. 22.6.1998). O fundamento empregado pela Corte constitui-se na
configuração de entidade familiar: “Estes filhos (...) constituem eles mesmos uma entidade familiar, pois para
eles não encontro outra designação mais adequada no nosso ordenamento jurídico. Se os três irmãos são
proprietários de um apartamento e ali residem, esse bem está protegido pela impenhorabilidade pois a alienação
forçada dele significará a perda da moradia familiar.” Igual base foi empregada no âmbito do REsp 57.606, 4ª
5
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138
imóvel – entendimento que restou consubstanciado no Enunciado n. 364 da Súmula de
Jurisprudência Dominante do Superior Tribunal de Justiça.10
A amplitude da interpretação do instituto não se limita, contudo, apenas às
pessoas que podem desfrutar da impenhorabilidade, mas também do próprio objeto em
relação ao qual recai a proteção: guiado pela finalidade de garantir condições de vida
mínimas para a família que permeia o instituto previsto na Lei nº. 8.009/1990, o Superior
Tribunal de Justiça compreendeu que a impossibilidade de execução forçada ali prevista
estendia-se também à poupança cuja destinação estivesse afetada à aquisição do bem de
família. Asseverou-se, na ocasião, que “o dinheiro aplicado em poupança estava vinculado
à aquisição do bem de família”, na medida em que “a autorização para a penhora esvaziaria
a possibilidade de quitação do saldo devedor”, a justificar a “extensão do benefício da
impenhorabilidade”.11 Do mesmo modo, garante-se a impenhorabilidade de bem que,
embora não seja diretamente habitado pela entidade familiar, destina-se, ainda que
indiretamente, a garantir o acesso à moradia, como ocorre na hipótese de bem cujos frutos
T., Rel. Min. Fontes de Alencar, julg. 11.4.1995, publ.DJ 15.5.1995). O entendimento vai ao encontro do
defendido em doutrina: “A impenhorabilidade alcança o imóvel em que vivem irmãos ou pessoas que
configurem desenho jurídico familiar, numa concepção aberta e plural da família” (FACHIN, Luiz Edson.
Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 146).
10
Em doutrina, a aplicação ao devedor que habitava sozinho seu imóvel era defendida, antes da edição da
Súmula, por Anderson Schreiber: “A proteção ao imóvel residencial, à moradia da pessoa humana, deve ser
garantida mesmo nos casos de devedores solteiros, em que não há qualquer entidade familiar a ser tutelada.
Habitar é fundamental para a dignidade de qualquer indivíduo, esteja ele integrado a uma família ou não.”
(SCHREIBER, Anderson. Direito à moradia como fundamento para a impenhorabilidade do imóvel residencial
do devedor solteiro. In: RAMOS, Carmem Lucia Silveira et. al. (orgs.). Diálogos sobre Direito Civil:
construindo uma racionalidade contemporânea. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 87).
A título exemplificativo, veja-se expressivo precedente do STJ, em que a questão foi amplamente debatida,
assim ementado: “Processual. Execução. Impenhorabilidade. Imóvel. Residência. Devedor solteiro e solitário.
Lei 8.009/90. A interpretação teleológica do Art. 1º, da Lei 8.009/90, revela que a norma não se limita ao
resguardo da família. Seu escopo definitivo é a proteção de um direito fundamental da pessoa humana: o direito
à moradia. Se assim ocorre, não faz sentido proteger quem vive em grupo e abandonar o indivíduo que sofre o
mais doloroso dos sentimentos: a solidão. É impenhorável, por efeito do preceito contido no Art. 1º da Lei
8.009/90, o imóvel em que reside, sozinho, o devedor celibatário”. (STJ, EREsp 182.223, Corte Especial, Rel.
Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, Rel. p/ acórdão Min. Humberto Gomes de Barros, julg. 6.2.2002).
11
Trata-se do STJ, REsp 707.623, 2ª T., Rel. Min. Herman Benjamin, julg. 16.4.2009, em cuja ementa se lê:
“Processual Civil e Tributário. Execução Fiscal. Penhora. Poupança vinculada diretamente à aquisição do bem
de família. Impenhorabilidade. 1. O Tribunal de origem indeferiu a penhora de dinheiro aplicado em poupança,
por verificar a sua vinculação ao financiamento para aquisição de imóvel caracterizado como bem de família.
2. Embora o dinheiro aplicado em poupança não seja considerado bem absolutamente impenhorável –
ressalvada a hipótese do art. 649, X, do CPC –, a circunstância apurada no caso concreto recomenda a extensão
do benefício da impenhorabilidade, uma vez que a constrição do recurso financeiro implicará quebra do
contrato, autorizando, na forma do Decreto-Lei 70/1966, a retomada da única moradia familiar. 3. Recurso
Especial não provido”.
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são empregados para alugar o bem em que moram, entendimento que restou consagrado no
Enunciado n. 486 da Súmula da Jurisprudência Dominante do Superior Tribunal de Justiça.12
A elogiável construção jurisprudencial, como se observa, encontra-se
permeada pela função exercida pelo bem tutelado no caso concreto, 13 identificando a
proteção conferida pela lei com a tutela da pessoa humana.14 Aludida orientação também
orienta a interpretação dos bens móveis abrangidos pela impenhorabilidade, a definir em que
circunstância contribuem para a proteção mínima da família e da pessoa ou se tratariam de
bens suntuosos (abarcados, portanto, pela exceção consagrada no art. 2º).15 Já se demonstrou
em doutrina a evolução da jurisprudência da Corte Superior que, após debate entre correntes
restritivas e ampliativas da impenhorabilidade dos bens móveis que guarnecem o bem de
família, se consolidou no sentido de que abrange o que normalmente se encontra em uma
residência, tais como computador, televisão e eletrodomésticos em geral,16 asseverando-se,
mais recentemente, que “abrange utilitários da vida moderna atual”. 17 Também em relação
“É impenhorável o único imóvel residencial do devedor que esteja locado a terceiros, desde que a renda
obtida com a locação seja revertida para a subsistência ou a moradia da sua família”.
13
Justamente por isso a própria Corte exclui a proteção em hipóteses nas quais o bem não se mostra essencial
para a moradia e sustento da família, como ocorre quando se trata de imóvel desocupado (AgRg no REsp
1.232.070, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, julb. 9.10.2012); que não se reverta sob nenhum aspecto para a
renda familiar (REsp 1.035.248, 4ª T., Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, julg. 16.4.2009); ou, ainda, há
indícios de que se busca apenas salvaguardar patrimônio, sem atender aos pressupostos da lei (v., nesse sentido,
STJ, REsp 1.417.629, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. 10.12.2013).
14
STJ, REsp 1400342, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. 8.10.2013: “Civil e processo civil. Recurso
especial. Indicação do dispositivo legal violado. Ausência. Súmula 284⁄STF. Bem de família. Imóvel
desocupado, mas afetado à subsistência dos devedores. Impenhorabilidade. (...) 4. A regra inserta no art. 5º da
Lei 8.009⁄1990, por se tratar de garantia do patrimônio mínimo para uma vida digna, deve alcançar toda e
qualquer situação em que o imóvel, ocupado ou não, esteja concretamente afetado à subsistência da pessoa ou
da entidade familiar”.
15
Tal lógica parece inspirar o entendimento de que os móveis em duplicidade não são abarcados pela
impenhorabilidade. É ver-se: “Agravo Regimental no Agravo de Instrumento. Execução. Penhora. Móveis que
guarnecem a casa em duplicidade. Bem de família não configurado. Revisão. Impossibilidade. Súmula 7/STJ.
Agravo regimental improvido. I. A aferição da essencialidade do bem, para que seja considerado impenhorável,
exigiria o reexame do conjunto fático exposto nos autos, o que é defeso ao Superior Tribunal de Justiça, nos
termos da Súmula 07/STJ. II. Os bens encontrados em duplicidade na residência são penhoráveis de acordo
com a jurisprudência do STJ. Agravo Regimental improvido” (STJ, AgRg no Ag 821.452, 3ª T., Rel. Min.
Sidnei Beneti, julg. 18.11.2008, publ. 12.12.2008). Em seu inteiro teor, ao reiterar os termos do julgamento do
Agravo, asseverou-se que a ausência de proteção de tais bens se justificaria “por não serem absolutamente
necessários à manutenção básica da unidade familiar”. No mesmo sentido: “Bem de família. Equipamentos
que guarnecem o bem de família. Precedentes da Corte. 1. Não está sob a cobertura da Lei n° 8.009/90, nos
termos de precedentes da Corte, um segundo equipamento, seja aparelho de televisão, seja videocassete. 2.
Recurso especial conhecido e provido, em parte” (STJ, REsp 326991, 3ª T., Rel. MIn. Carlos Alberto Menezes
Direito, julg. 18.12.2001).
16
COSTA, Pedro Oliveira. O ‘bem de família’ na jurisprudência do STJ. Revista Trimestral de Direito Civil,
vol. 3, p. 172-175, jul/set 2000.
17
STJ, REsp 875.687, 4ª T., Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julg. 9.8.2011. No mesmo sentido: “Reclamação.
Divergência entre acórdão prolatado por turma recursal estadual e a jurisprudência do STJ. Embargos à
execução. Televisor e máquina de lavar. Impenhorabilidade. I. É assente na jurisprudência das Turmas que
compõem a Segunda Seção desta Corte o entendimento segundo o qual a proteção contida na Lei nº 8.009/90
alcança não apenas o imóvel da família, mas também os bens móveis que o guarnecem, à exceção apenas os
12
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à definição da suntuosidade do bem móvel parece ser central avaliação funcional18 – única
forma capaz de definir, à luz das peculiaridades do caso concreto, a relevância do objeto para
a garantia de moradia digna. Compreende-se, assim, a diversa qualificação do mesmo objeto,
ora compreendido como abarcado pela impenhorabilidade, ora passível de execução.19
3. A questão da configuração de fraude na alienação do bem de família e seus efeitos
sobre a impenhorabilidade em julgados do Superior Tribunal de Justiça
Como consequência das restrições à execução forçada dos bens albergados
pela proteção garantida pela Lei nº. 8.009/1990, afigura-se possível que determinado crédito
reste insatisfeito, muito embora o devedor seja proprietário de determinados bens, por vezes
valiosos.20 Com o intuito de evitar que o credor ficasse à mercê de posturas abusivas do
veículos de transporte, obras de arte e adornos suntuosos. II. São impenhoráveis, portanto, o televisor e a
máquina de lavar roupas, bens que usualmente são encontrados em uma residência e que não possuem natureza
suntuosa. Reclamação provida” (STJ, Rcl 4.374, 2ª S., Rel. Min. Sidnei Beneti, julg. 23.2.2011).
18
A respeito da avaliação funcional dos bens jurídicos, confira-se: “a noção de bens jurídicos, embora se situe
na estrutura da relação jurídica, só poderá ser compreendida de acordo com a função desempenhada pela
situação jurídica que serve de objeto. (...) O significado do bem jurídico depende essencialmente do interesse
que o qualifica e, portanto, sua classificação há de ser apreendida na esteira da função que o bem desempenha
na relação jurídica” (TEPEDINO, Gustavo. Regime jurídico dos bens no Código Civil. In: VENOSA, Sílvio
de Salvo et. al. (coords.). 10 Anos do Código Civil: desafios e perspectivas. São Paulo: Atlas, 2012, p. 50).
19
Sobre o tema, seja consentido relembrar precedentes do Superior Tribunal de Justiça que, ao avaliar a
possiblidade de penhora de piano em distintas situações, concluíram de forma diametralmente diversa.
Enquanto, por um lado, considerou-se abrangido pela proteção legal o instrumento musical por se tratar de bem
essencial para o estudo e a possibilidade de seu emprego no futuro para sustento das filhas da devedora, por
outro, na ausência de circunstâncias capazes de caracterizar a essencialidade desse mesmo bem para a entidade
familiar, entendeu-se não abarcado o móvel pela proteção legal. Veja-se os respectivos precedentes:
“Processual civil. Embargos à execução. Penhora. TV. Piano. Bem de família. Lei 8.009/90. Art. 649, VI, CPC.
A Lei 8.009/90 fez impenhoráveis, além do imóvel residencial próprio da entidade familiar, os equipamentos
e móveis que o guarneçam, excluindo veículos de transporte, objetos de arte e adornos suntuosos. O favor
compreende o que usualmente se mantém em uma residência e não apenas o indispensável para fazê-la
habitável, devendo, pois, em regra, ser reputado insuscetível de penhora aparelho de televisão. II. In casu, não
se verifica exorbitância ou suntuosidade do instrumento musical (piano), sendo indispensável ao estudo e futuro
trabalho das filhas da Embargante” (STJ, REsp 207.762, 3ª T., Rel. Min. Waldemar Zveiter, julg. 27.3.2000);
“Processual civil. Embargos à execução. Impenhorabilidade dos bens móveis e utensílios que guarnecem a
residência, incluindo computador e impressora. Precedentes. Piano considerado, in casu, adorno suntuoso (art.
2º, da Lei 8.009/90). (...) Quanto ao piano, não há nos autos qualquer elemento a indicar que o instrumento
musical seja utilizado pelo Recorrente como meio de aprendizagem, como atividade profissional ou que seja
ele bem de valor sentimental, devendo ser considerado, portanto, adorno suntuoso. Incidência do disposto no
artigo 2º da Lei 8.009/90” (STJ, REsp 198370, 3ª T., Rel. Min. Waldemar Zveiter, julg. 16.11.2000).
20
Conquanto controvertida (v., por todos, REDONDO, Bruno Garcia. Impenhorabilidade no Projeto de Novo
Código de Processo Civil: relativização restrita e sugestão normativa para generalização da mitigação. Revista
de Processo, vol. 201, p. 221 e ss., nov. 2011), verificam-se decisões que consideram desimportante o valor do
imóvel que se caracteriza como bem de família, rejeitando-se pedidos para alienação forçada em que se
garantiria ao devedor montante suficiente para a aquisição de novo imóvel: “A Lei nº 8.009/90 não estabelece
qualquer restrição à garantia do imóvel como bem de família no que toca a seu valor nem prevê regimes
jurídicos diversos em relação à impenhorabilidade, descabendo ao intérprete fazer distinção onde a lei não o
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devedor, previu o legislador hipótese específica de desconsideração da proteção, nos casos
em que, esse, “sabendo-se insolvente, adquire de má-fé imóvel mais valioso para transferir
a residência familiar, desfazendo-se ou não da moradia antiga”. O dispositivo – que,
principalmente por tratar de casos em que nem sempre haverá prejuízo aos credores, mas
também em decorrência da solução apresentada em seu parágrafo primeiro, sujeita-se a
críticas21 – denota a preocupação com o desvirtuamento da tutela do bem de família.
Trata-se, todavia, de hipótese específica, a suscitar dúvidas a respeito da
possibilidade de intervenção para superar a impenhorabilidade em outros casos nos quais se
configure comportamento abusivo ou fraudulento do devedor. Sobre o assunto, identificamse duas orientações tendencialmente divergentes no âmbito da jurisprudência do Superior
Tribunal de Justiça.
Por um lado, verificam-se precedentes que determinam a superação da
proteção conferida ao bem de família em casos de fraude. É o caso do Recurso Especial
1.299.580,22 em que se avaliou a possibilidade de penhorar residência do devedor que, ao
longo da execução (inicialmente movida em face de empresa da qual era sócio, à qual passou
a responder após a desconsideração da personalidade jurídica), alienou seu patrimônio de
modo a manter apenas o bem de família em sua propriedade.23 A execução originou-se do
descumprimento de obrigação da entrega de imóvel, adquirido na planta pelo Exequente e
jamais construído pela empresa do Executado, referindo-se à devolução dos valores pagos,
tendo observado a Ministra Relatora Nancy Andrighi, que, após quinze anos, nenhum valor
houvera sido reavido e o adquirente, que buscava adquirir novo imóvel, enfrentava
fez” (STJ, REsp 1.397.552, 4ª T., Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julg. 20.11.2014). V. tb.: STJ, REsp
1.320.370, 2ª T., Rel. Min. Castro Meira, julg. 16.6.2012.
21
“Todavia, a solução do legislador, neste caso, é complicadíssima, pois não há necessidade de anular a
alienação do primitivo bem de família, se o novo é mais valioso do que o antigo. Basta, isto sim, permitir a
execução do novo imóvel, no valor que ultrapassar o do antigo, restando esse valor antigo impenhorável, ainda
que contido no imóvel mais valioso. Em caso de execução do imóvel mais valioso ou de ser objeto de concurso
de credores, pelo aludido saldo, o incômodo de ter, com esse valor restante, de comprar novo imóvel, no mesmo
valor do antigo, é do mencionado adquirente de má-fé. Tudo, para que se evite anular a alienação anterior,
realizada a terceiro de boa-fé, no mais das vezes. Nem se diga que este terceiro estaria sujeito à mesma
anulação; pois, sendo comprador ou permutante, dinheiro ou bem seu, substituiu, no patrimônio do alienante,
o valor do imóvel por esse terceiro adquirido. Aliás, como visto, nos casos analisados, existe acréscimo no
patrimônio do alienante o que não se coaduna com a ideia de fraude” (AZEVEDO, Álvaro Villaça. Direito de
Família. São Paulo: Editora Atlas, 2013, p. 377).
22
STJ, REsp 1.299.580, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. 20.3.2012.
23
“Cinge-se a lide a estabelecer se é possível ao Tribunal afastar a proteção conferida a bem de família com
fundamento em que o devedor alienou, no curso da execução, outros bens imóveis de que era proprietário,
remanescendo apenas com o de sua residência”.
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dificuldades financeiras.24 Ao apreciar o caso, asseverou a 3ª Turma que a conduta do
devedor violava os padrões impostos pela boa-fé objetiva e a própria finalidade da proteção
legislativa.25
O entendimento foi mais uma vez expressado em precedente da 4ª Turma
do Superior Tribunal de Justiça, em que se consignou a ausência de violação ao artigo 1º da
Lei nº. 8.009/1990 por se ter determinado a penhora de imóvel adquirido com proventos
decorrentes de doação efetuada pelos sócios da executada (pessoa jurídica) após o regular
conhecimento da execução.26 Consignou a Ministra Relatora Isabel Gallotti que “o
entendimento da Corte de origem não destoa do entendimento deste Tribunal, no sentido de
que é afastada a proteção conferida pela Lei 8.009/90, quando está caracterizada a fraude à
execução”.27 Invocou o julgado orientação consagrada na Corte a partir de entendimento
adotado ainda sob a égide do Código Civil de 1916,28 segundo a qual não há que se
“Na hipótese dos autos, pelo que se depreende da análise das peças processuais, o recorrido, de boa-fé,
procurou adquirir do recorrente, na planta, um imóvel para sua residência. Esse imóvel não foi construído,
motivando a propositura da ação judicial. Mais de quinze anos depois, o credor não logrou êxito em receber o
valor que investiu na compra de sua casa. Há notícia no processo, inclusive, de que ele se casou e tentou,
novamente, adquirir um imóvel para residir com sua nova família, tendo atravessado dificuldades e se tornado
inadimplente, sob o risco de perder esse novo imóvel (fl. 55, e-STJ), não obstante mantenha, perante o réu, o
crédito aqui discutido em aberto. Há, portanto, o interesse de duas famílias em conflito, não sendo razoável
que se proteja a do devedor que vem obrando contra o direito, de má-fé, segundo apurou o TJ/RJ, em detrimento
da do credor que, até onde se pode constatar, vem atuando nos termos da Lei”.
25
“Não há, em nosso sistema jurídico, norma que possa ser interpretada de modo apartado aos cânones da boafé. Todas as disposições jurídicas, notadamente as que confiram excepcionais proteções, como ocorre com a
Lei 8.009/90, só têm sentido se efetivamente protegerem as pessoas que se encontram na condição prevista
pelo legislador. Permitir que uma clara fraude seja perpetrada sob a sombra de uma disposição legal protetiva
implica, ao mesmo tempo, promover uma injustiça na situação concreta e enfraquecer, de maneira global, todo
o sistema de especial de proteção objetivado pelo legislador. (...) Ao alienar todos os seus bens, menos um,
durante o curso de processo que poderia levá-lo à insolvência, o devedor não obrou apenas em fraude à
execução: atuou também com fraude aos dispositivos da Lei 8.009/90. Todo o direito tem como limite o seu
regular exercício, de boa-fé. O abuso do direito deve ser reprimido”.
26
Veja-se trecho do acórdão do Tribunal de origem: “Em termos mais específicos e, a fim de corroborar o
posicionamento adotado pelo Juízo, é de se dizer que seu entendimento se mostrou plenamente adequado ao
conjunto encartado aos autos, uma vez que, como bem definido por força da r. sentença, a alienação do bem
discutido nos autos se deu em evidente fraude à execução, uma vez que, conforme resultou demonstrado por
meio do todo processado, notadamente pelo que diz a Matricula do Imóvel carreada ao feito (fls.20/21), o bem
foi adquirido pelas embargantes em 22/05/2003, ou seja, após a propositura da executiva embargada
(25/04/2002), bem como da promoção da regular citação dos devedores (31/03/2003), esta que se deu na pessoa
dos sócios da executada (fls. 132, dos autos da executiva), sendo importante salientar, ademais, que a aquisição
do bem constrito se deu com recursos provenientes de doação promovida pelos pais das adquirentes da coisa
e, ora embargantes, enquanto sócios da executada (...)” (TJSP, Ap. Cív. 9081478-33.2007.8.26.0000, 16ª
Câmara de Direito Privado, julg. 28.2.2012).
27
STJ, AgRg no AREsp 334.975, 4ª T., Rel. Min. Isabel Gallotti, julg. 7.11.2013.
28
“Processual Civil. Lei 8.009/1990. Superveniência. Penhora levada a efeito antes de sua vigência.
Desconstituição. Direito transitório. Bem que retornou ao patrimônio dos devedores por força de ação pauliana.
Irrelevância. Recurso não conhecido. I. A Lei 8.009/1990, de aplicação imediata, incide no curso da execução
se ainda não efetuada a alienação forçada, tendo o condão de levantar a constituição sobre os bens afetados
pela impenhorabilidade. II. Tendo o bem penhorado retornado ao patrimônio do devedor após o acolhimento
de ação pauliana, é de se excluir a aplicação da Lei 8.009/1990, porque seria prestigiar a má-fé do devedor. III.
24
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143
considerar impenhorável bem de família que retorna ao patrimônio do devedor em
decorrência do reconhecimento de fraude em sua alienação.29
Também com o objetivo de “impedir a deturpação do benefício legal,
vindo a ser utilizado como artifício para viabilizar a aquisição, melhoramento, uso, gozo e⁄ou
disposição do bem de família sem nenhuma contrapartida, propiciando o enriquecimento
ilícito do proprietário do imóvel”,30 o Superior Tribunal de Justiça determinou ser
penhorável imóvel no caso de execução decorrente da ausência de devolução de sinal
entregue em promessa de compra e venda relativa ao próprio imóvel, na hipótese de
inexistirem outros bens capazes de satisfazer o credor. Nada obstante se fundamentar a
orientação na exceção prevista no art. 3º, inciso II da Lei nº. 8.009/1990, verifica-se a
intenção de coibir comportamentos incompatíveis com o princípio da boa-fé objetiva.31
Em outra hipótese na qual entendeu o STJ que teria ocorrido fraude à
execução capaz de determinar a penhora de bem em que residia entidade familiar, afirmouse que “o devedor que aliena, gratuita ou onerosamente, o único imóvel, onde reside com a
Segundo a conhecida lição de Clóvis, ‘não é ao lado do que anda de má-fé que se deve colocar o direito; sua
função é proteger a atividade humana orientada pela moral ou, pelo menos, a ela não oposta’” (STJ, REsp
119.208, 4ª T., Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, julg. 18.11.1997). No mesmo sentido: STJ, REsp
337.222, 4ª T., Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, julg. 18.9.2007; REsp 170.140, 4ª T., Rel. Min. Cesar Asfor
Rocha, julg. 7.4.1999; REsp 123.495, 4ª T., Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, julg. 23.9.1998.
29
Ao avaliar também hipótese semelhante ao REsp 1.227.366, descrito no item 1, isto é de doação de bem de
família a filho dos executados (mas sem enfrentar se haveria configuração de fraude à execução em razão da
verificação de preclusão sobre a matéria), asseverou a 6ª Turma do STJ: “O bem que retorna ao patrimônio do
devedor, por força de reconhecimento de fraude à execução, não goza da proteção da impenhorabilidade
disposta na Lei nº 8.009/1990, sob pena de prestigiar-se a má-fé do executado” (STJ, AgRg no REsp 1.085.381,
6ª T., Rel. Min. Paulo Gallotti, julg. 10.3.2009).
30
STJ, REsp 1440786, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. 27.5.2014. Em precedente que enfrentou hipótese
semelhante, asseverou o Ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior: “Se a proprietária resolve se desfazer do bem
(...) é porque dele não necessita, ou porque pretende aplicar o produto da venda na aquisição de outra moradia.
Recebendo a integralidade do preço e ficando com o imóvel que prometera vender, estará se locupletando, pois
com os recursos auferidos não adquire outro bem, não paga a dívida resultante da resolução do negócio, nem
oferece dinheiro para a penhora, mantendo íntegro o seu patrimônio graças à lei de impenhorabilidade do bem
de família. Fica prejudicado o promissário comprador, cumpridor do contrato. Nestas circunstâncias, a
impenhorabilidade não pode prevalecer, porquanto a sua proprietária foi a primeira a incluí-lo entre os bens
alienáveis. Recebido o preço previsto no contrato, é irrecusável o direito do promissário comprador buscar o
que desembolsou, pois ele poderia – reunidos os pressupostos – exigir a própria adjudicação compulsória e
obter do juiz a transferência da propriedade do imóvel que adquiriu, ou pelo menos a cessão da posição
contratual da promitente junto ao instituto de previdência que construiu o prédio. Além disso, é preciso garantir
a prevalência do princípio da responsabilidade pelo ilícito contratual que teve por objeto o próprio imóvel,
além da necessidade de o Direito proteger a boa fé nos negócios” (REsp 51.480, 4ª T., Rel. Min. Ruy Rosado
de Aguiar Júnior, julg. 20.6.1995).
31
Veja-se trecho do inteiro teor: “a devedora claramente se aproveitou da proteção conferida pela Lei nº
8.009/90 para compromissar a venda do próprio bem de família, sabedora de que o negócio seria desfeito e na
predisposição de reter indevidamente o sinal adiantado pelo comprador, ora recorrente. Não cabe dúvida de
que a proteção legal foi desvirtuada, propiciando o enriquecimento ilícito do proprietário do imóvel em
detrimento de terceiro de boa-fé”.
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família, está, ao mesmo tempo, dispondo daquela proteção legal”.32 Cuida-se de precedente
nos qual se avaliou doação efetuada pelos genitores – que já sabiam responder por execução
– a seu herdeiro, por meio de terceira pessoa, com quem celebraram contrato de promessa
de compra e venda não registrada.33 Afirmou-se no acórdão que, a despeito do bem já abrigar
a residência familiar antes da doação (e que, portanto, não seria penhorável antes da
operação), estaria configurada conduta maliciosa pelos executados, de modo a mitigar sua
impenhorabilidade. Indicou-se, em sua conclusão, que (i) o ordenamento não poderia tolerar
atos do devedor tendentes a “frustrar a satisfação executiva do credor”; (ii) a tentativa de se
valer da proteção legal após a alienação – gratuita ou onerosa – do bem de família e depois
alegar sua proteção configuraria comportamento contraditório; e (iii) sendo evidente o
propósito do devedor de blindar seu patrimônio – como no caso, já que a doação foi feita
dias após a intimação para pagamento e por intermédio de “contrato de gaveta” – há de se
reconhecer a fraude à execução e rejeitar a conduta maliciosa, determinando-se a penhora.
Por outro lado, em sentido oposto aos precedentes acima descritos,
verifica-se posicionamento de acordo com o qual, diante da proteção conferida ao bem de
família, não haveria que se cogitar de fraude à execução e a consequente constrição do
imóvel. Nessa esteira, a 1ª Turma do STJ, ao enfrentar hipótese na qual se verificou alienação
após a citação do devedor em execução fiscal e que implicou a ausência de outros bens para
a satisfação do crédito, asseverou que “o imóvel familiar é revestido de impenhorabilidade
absoluta, consoante a Lei 8.009/1990, tendo em vista a proteção à moradia conferida pela
CF, e de que não há fraude à execução na alienação de bem impenhorável, tendo em vista
que o bem de família jamais será expropriado para satisfazer a execução, não tendo o
exequente qualquer interesse jurídico em ter a venda considerada ineficaz”.34
32
STJ, REsp 1.364.509, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. 10.6.2014.
Em sentido semelhante, a 4ª Turma manteve orientação fixada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, embora
não tenha apreciado a questão em decorrência do Enunciado n. 7 de sua Súmula de Jurisprudência Dominante:
“Execução. Bem de família. Impenhorabilidade. Aplicação da Lei n. 8009, de 29.03.90, afastada em virtude da
má-fé com que se houveram os executados. Requisito do art. 5º do citado diploma legal não demonstrado.
Matéria de fato. Má-fé dos executados proclamada pela decisão recorrida em razão de peculiaridades da causa,
dentre elas a circunstância de que, por decisão judicial, se declarou ineficaz a doação pelos mesmos feita aos
filhos. Matéria que se insere no plano dos fatos. Precedentes da Quarta Turma no sentido de que não se deve
prestigiar a má-fé do devedor. Requisitos exigidos pela Lei nº 8.009/90 que estão a depender, por igual, do
reexame de matéria fática (súmula nº 07-STJ). Recurso especial não conhecido” (STJ, REsp 187.802, 4ª T.,
Rel. Min. Barros Monteiro, julg. 7.12.1999).
34
STJ, AgRg no AREsp 255.799, 1ª T., Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julg. 17.9.2013, grifou-se. Em
seu inteiro teor, o acórdão reproduz trecho da decisão proferida pelo Tribunal de origem (TJRS) em que a
impenhorabilidade absoluta é justificada da seguinte forma: “a proteção do bem de família pela
impenhorabilidade tem como pauta a dignidade da pessoa humana, fundamento da República (art. 1º, III da
Constituição Federal) e valor primordial do ordenamento jurídico pátrio, do qual deriva diretamente o direito
fundamental à moradia (art. 6º da Carta)”.
33
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Orientação semelhante foi traçada no REsp 976.566, em que, entre outros
argumentos, se afirmou inexistir qualquer interesse do credor no desfazimento de negócios
jurídicos de alienação envolvendo bens de família, na medida em que se caracterizam pela
impenhorabilidade e, logo, jamais poderão ser excutidos para o pagamento da dívida. Em
seus termos: “não há fraude à execução na alienação de bem impenhorável nos termos da
Lei n.º 8.009/90, tendo em vista que o bem de família jamais será expropriado para satisfazer
a execução, não tendo o exequente nenhum interesse jurídico em ter a venda considerada
ineficaz”.35
A inexistência de prejuízo para o credor também permeou acórdão
proferido pela 2ª Turma da Corte Superior, em que se avaliou a legalidade de alienação de
bem de família enquanto em curso execução fiscal. Na esteira dos precedentes anteriores,
destacou-se que “o Fisco não teve prejuízo com o afastamento da fraude à execução em razão
de o bem objeto da execução ser impenhorável por força de lei”.36 Segundo argumentou o
Ministro Relator Castro Meira, “ainda que não tivesse sido alienado a terceiro, a
consequência para a anulação seria seu retorno ao patrimônio do devedor”, com a
impenhorabilidade que lhe caracterizaria – não tendo o julgado enfrentado as ressalvas
estabelecidas nos precedentes relativos à penhorabilidade do bem de família que retorna ao
patrimônio do devedor por anulação decorrente de ação pauliana (v. nota 28).
A hipótese de doação pelos genitores a seu herdeiro do bem de família que
habitavam foi novamente enfrentada no REsp 1.227.366, consoante descrito no item 1,
supra. Ao contrário do decidido no âmbito do REsp 1.364.509 – o que foi explicado no
acórdão como consequência das peculiaridades daquela hipótese, em que a alienação se
operara por meio de “contrato de gaveta” –, entendeu a 4ª Turma do STJ que a operação não
poderia ser considerada fraudulenta, vez que inexistentes os requisitos necessários para
tanto, notadamente o prejuízo para os credores, na medida em que o imóvel já
consubstanciava bem de família anteriormente à operação. Consoante expôs o Ministro
Relator Luis Felipe Salomão:
É que o parâmetro crucial para discernir se há ou não fraude à execução é
verificar a ocorrência de alteração na destinação primitiva do imóvel – qual
seja, a moradia da família – ou de desvio do proveito econômico da
alienação (se existente) em prejuízo do credor.
35
36
STJ, REsp 976.566, 4ª T., Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julg. 20.4.2010.
STJ, REsp 846.897, 2ª T., Rel. Min. Castro Meira, julg. 15.3.2007.
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Além de tal fundamento – como visto, também empregado pelos
precedentes da 4ª e da 1ª Turma –, procurou demonstrar o julgado que à luz da finalidade
atribuída pelo ordenamento à proteção do bem de família – “instrumento de tutela do direito
fundamental à moradia da entidade familiar e, portanto, indispensável à composição de um
mínimo existencial para uma vida digna” –, que representa orientação legislativa no sentido
de que a impenhorabilidade se afigura mais relevante que a satisfação do credor, o
reconhecimento de fraude envolvendo os imóveis que atraem a proteção legal deve ser
verificada com prudência pelo intérprete, se caracterizando apenas em hipóteses
excepcionais, já previstas na própria Lei n. 8.009/1990, de modo a excepcionar a
impenhorabilidade do bem de família apenas quando configuradas as circunstâncias
previstas nos artigos 3º e 4º.37
4. À guisa de conclusão: em busca do equilíbrio entre a proteção à moradia e a tutela
da boa-fé objetiva
Diante do destacado papel das funções atribuídas à impenhorabilidade do
bem de família no ordenamento brasileiro, impõe-se ao intérprete cautela na avaliação da
possibilidade de superação da proteção com base em conduta fraudulenta do devedor.
Consoante se procurou demonstrar no item 2, supra, cuida-se de
importante instrumento para a proteção da pessoa humana, a espancar interpretações
açodadas que representem a superação imotivada da tutela legal. Nada obstante, não se pode
ignorar as diversas hipóteses em que o devedor se vale de forma reprovável do benefício.
Nesse cenário, parece ser recomendável evitar o recurso a fórmulas
genéricas na determinação da possibilidade de superação da impenhorabilidade do bem de
família em casos de fraude. Cabe ao intérprete avaliar todas as circunstâncias relacionadas
ao caso concreto e identificar, à luz dos diversos interesses envolvidos, a solução que melhor
atenda aos objetivos constitucionais,38 não se podendo olvidar que, se por um lado a proteção
37
No caso concreto, indicou-se, ainda, outro fundamento para a manutenção da impenhorabilidade, relativo à
indivisibilidade do bem. Assim, na medida em que a proteção visa a salvaguardar a moradia da família, não já
o patrimônio do devedor, o reconhecimento, no Tribunal de origem, que 50% do imóvel não seria penhorado
por não estar envolvido na fraude deveria levar à impenhorabilidade total do bem, na esteira de remansosa
jurisprudência do STJ, que determina a impossibilidade de penhora parcial no caso de descaracterização do
imóvel (v., por exemplo STJ, REsp 1405191, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. 3.6.2014). Nos termos da
decisão: “ainda que, em última instância, fosse caracterizada a doação fraudulenta, o benefício da
impenhorabilidade estender-se-ia à totalidade do bem, mormente ante a sua incontroversa destinação”.
38
PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 201.
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ao bem de família traduz concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, há que
se prestigiar também o princípio da boa-fé objetiva, expressão, por sua vez, da solidariedade
constitucional39 (e, assim, do próprio conceito de dignidade)40 – igualmente identificada pela
Constituição como objetivo fundamental da República (art. 3º, I da CRFB).
Portanto, conquanto não haja dúvidas que, na esteira do estabelecido no
REsp 1.227.366, a ocorrência de fraude à execução apenas se mostra possível quando a
alienação importar efetivo prejuízo aos credores,41 de modo que a mera alienação de bem de
família não implica, por si só, alteração no panorama patrimonial do devedor – seja por
possuir o devedor outros bens para arcar com a obrigação, seja pelo bem envolvido já estar
albergado pela impenhorabilidade antes da alienação (o que, ao fim e ao cabo, não implica
prejuízos aos credores que já não poderiam se valer daquele imóvel), há de se reconhecer
hipóteses excepcionais em que, ainda assim, o benefício deve ser suplantado em virtude de
comportamento do devedor capaz de incutir no credor legítima expectativa de executá-lo.42
“Como se sabe, a boa-fé objetiva constitui-se em um dos princípios fundamentais do regime contratual
contemporâneo, consagrada nos arts. 113 e 422 do CC/2002, como expressão do princípio constitucional da
solidariedade social” (TEPEDINO, Gustavo. Caução de créditos no direito brasileiro: possibilidades do penhor
sobre direitos creditórios. In: Soluções Práticas de Direito. Vol. III, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012,
p. 451, grifou-se).
40
“A pessoa é inseparável da solidariedade: ter cuidado com o outro faz parte do conceito de pessoa”
(PERLINGIERI, Pietro, cit., p. 461). Para Maria Celina Bodin de Moraes a solidariedade social representa um
dos aspectos da dignidade da pessoa humana (O princípio da dignidade humana. In: BODIN DE MORAES,
Maria Celina (org.). Princípios do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 1 - 61).
41
“Especificamente no que concerne à hipótese prevista no inc. II (...) exigem-se, cumulativamente, três
requisitos fundamentais para a deflagração da fraude à execução, quais sejam: (a) o prévio ajuizamento de ação
capaz de reduzir o devedor à situação de insuficiência patrimonial, instaurada pela sua citação valida; (b) o
dano, isto é, efetiva situação de insuficiência patrimonial oriunda ou agravada direta e necessariamente do ato
de alienação; e (c) o conhecimento do processo por parte do adquirente, a fim de tutelar a situação jurídica de
terceiros de boa-fé” (TEPEDINO, Gustavo. Desconsideração inversa da personalidade jurídica no direito
brasileiro. In Soluções Práticas de Direito, vol. III, cit., p. 134). Cuida-se de requisito também reconhecido na
fraude contra credores: “O êxito da pauliana, em qualquer hipótese, depende da configuração do prejuízo
sofrido pelo credor que a propõe. Além, pois, da prova de seu credito, haverá de demonstrar a insolvência do
devedor, criada ou agravada pelo ato impugnado. Esse déficit patrimonial é que afeta a garantia de
exequibilidade do credito do promovente, gerando a impossibilidade de realizá-lo, no todo ou em parte (...)
Para configurar o eventus damni é, outrossim, necessário que o ato de disposição praticado pelo devedor tenha
como objeto bem penhorável, pois somente assim terá comprometido a garantia genérica de seus credores
quirografários. Se se alienou bem legalmente impenhorável, como a casa de moradia (Lei n. 8009, de
29/3/1990), ou o instrumento necessário ao trabalho ou profissão (CPC, art. 649, VI), nenhum decréscimo
sofreu o patrimônio excutível do devedor. Logo, prejuízo algum adveio do ato de disposição para os credores
do alienante. E, sem prejuízo, não cabe falar em fraude contra credores” (THEODORO JÚNIOR, Humberto.
Fraude contra credores: A natureza da sentença pauliana, 2ª ed., Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2001, p.
141)
42
Há que se valorar, em tal apuração, se o comportamento do devedor era capaz de legitimamente fazer surgir
no credor tal expectativa. Consoante se esclarece em doutrina: “não são todas as expectativas, mas somente
aquelas que, à luz das circunstancias do caso, estejam devidamente fundadas em atos concretos (e não somente
indícios) praticados pela outra parte, os quais, conhecidos pelo contratante, o fizeram confiar na manutenção
da situação assim gerada. Mais que isso, o comportamento contraditório só será alcançado pela boa-fé objetiva
quando não for justificável e, ainda, quando a reversão de expectativas assim ocorrida gere efetivos prejuízos
39
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148
Identifica-se na própria jurisprudência do STJ casos nos quais se apontou
justamente a necessidade de reconhecer a inaplicabilidade da proteção ao bem de família em
decorrência da conduta do devedor. A título exemplificativo, ao analisar o comportamento
de casal que oferecera voluntariamente em garantia para adesão a REFIS imóvel que se
caracterizava como bem de família, entendeu a 2ª Turma por não aplicar o benefício da
impenhorabilidade em função da reprovabilidade da conduta dos executados.43 Conforme
descrito no acórdão, os proprietários, em operação anterior à adesão ao REFIS, já haviam
hipotecado o imóvel e, quando executados, alegado se tratar de bem de família
impenhorável, argumentação da qual intentavam, uma vez mais, se valer, dessa vez para não
arcarem com os valores do benefício tributário. Entendeu-se, nesse cenário, na medida em
que a indicação de bem em garantia era condição para usufruir de benefício legal44 e que a
impenhorabilidade implicaria novo “cheque em branco” para futuros inadimplementos
planejados, pela execução do bem.45 Em outra hipótese, avaliando-se estar diante de fraude
realizada por devedores que, ademais, expressamente abdicaram do benefício da
impenhorabilidade, compreendeu a 3ª Turma ser imperioso determinar a penhora do
imóvel.46
à outra parte cuja confiança tenha sido traída” (NEGREIROS, Teresa. O princípio da boa-fé contratual. In:
BODIN DE MORAES, Maria Celina. Princípios do Direito Civil Contemporâneo, cit., pp. 239-240).
Ressalte-se que já se defendeu que a proteção do bem de família seria sempre prevalente em relação à boa-fé:
“o argumento de torpeza, baseado na boa-fé subjetiva e, por isso, essencialmente privado, não pode prevalecer
sobre a proteção do Bem de Família Legal, que envolve ordem pública. (...). (...) a prevalência do direito à
moradia sobre a boa-fé serve para afastar o argumento de aplicação da vedação do comportamento contraditório
(venire contra factum proprium). A partir da idéia de ponderação ou pesagem deve entender que o primeiro
direito tem prioriedade e prevalência sobre a boa-fé objetiva. (TARTUCE, Flávio. A polêmica do bem de
família ofertado. Revista da Emerj, v. 11, nº 43, p. 242-243, 2008, grifos no original).
43
STJ, REsp 1.200.112, 2ª T., Rel. Min. Castro Meira, julg. 7.8.2012.
44
“No caso de que ora se cuida, o proprietário do bem agiu de maneira deliberada, consciente de que a garantia
ofertada era iníqua, mas suficiente para permitir-lhe desfrutar de benefício fiscal sabidamente indevido. Não
se pode tolerar que da utilização abusiva do direito, com violação inequívoca ao princípio da boa-fé objetiva,
possa advir benefício para o seu titular que exerceu o direito em desconformidade com o ordenamento jurídico.
Segundo consta do acórdão recorrido, não foi a primeira vez que Ricardo Pereira Marques e Flávia Pereira
Marques ofertaram o bem em garantia para a obtenção de benefício legal e, quando executada a garantia,
simplesmente alegaram a impenhorabilidade do bem. Dito de outra forma, disse o acórdão recorrido que os
proprietários tem atuado de maneira reiteradamente fraudulenta, valendo-se do bem de maneira abusiva, com
consciência e vontade, para a obtenção de benefício sabidamente indevido”.
45
Confira-se eloquente trecho do acórdão: “Um dos princípios fundamentais do ordenamento jurídico
brasileiro é o da boa-fé objetiva que deve reger todas as relações jurídicas, de modo que nenhum ato, contrato
ou direito pode ser exercido sem observância deste princípio. É nesse contexto que deve ser examinada a regra
de impenhorabilidade do art. 1º da Lei 8.009/90, que, antes de ser absoluta, comporta temperamentos ditados
pelo princípio da boa-fé objetiva. Quando o patrimônio do devedor é alienado de maneira fraudulenta no curso
da execução, por exemplo, é difícil admitir que possa ele se escudar na regra protetiva de impenhorabilidade
do bem de família”.
46
SJT, REsp 554.622, 3ª T., Rel. Min. Ari Pargendler, julg. 17.11.2005. Veja-se expressiva passagem do voto
do Min. Carlos Alberto Menezes Direito: “o bem de família que foi retirado por um ato que configurou uma
enganação, um rompimento da boa-fé objetiva, não está alcançado por aquele precedente que, de forma geral,
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Em síntese, embora não se questione que a Lei nº. 8.009/1990 possui sólida
inspiração em objetivos centrais à Constituição e, como argutamente observado no REsp
1.227.366, representar limite ao “exercício de interesses particulares”, deve-se evitar
conclusões generalizantes a respeito da impossibilidade de superar a proteção ao bem de
família em decorrência da conduta do devedor que, excepcionalmente, pode justificar a
exclusão do benefício.47
Cuida-se, enfim, de entender, como se concluiu no acórdão comentado,
que “o reconhecimento da ocorrência de fraude à execução e sua influência na disciplina do
bem de família deve ser aferida casuisticamente, de modo a evitar a perpetração de injustiças
– deixando famílias ao desabrigo – ou a chancelar a conduta ardilosa do executado em
desfavor do legítimo direito do credor”.
entendeu que, na verdade, não pode haver a renúncia do bem de família, mas isso, é claro, admitindo-se a
hipótese da normalidade. Quando se enfrenta uma peculiaridade dessa natureza, que está configurada nos autos,
ou seja, três famílias pobres e, portanto, sem cultura, sem saber específico, que habitam em uma mesma casa
pequena e são procuradas por uma empresa de engenharia, que lhes oferece uma permuta de bem, pega o
terreno para construção e lhes oferece dois apartamentos nesse mesmo prédio, não vindo a cumprir a obrigação,
e já tendo sido retirado o bem de família dessas pessoas, que hoje são as credoras, evidentemente não se pode
aplicar a solução técnica adotada em um caso no qual não havia tal peculiaridade”.
47
Embora dissertando sobre a proteção do bem de família do fiador, Álvaro Villaça Azevedo emprega
raciocínio semelhante: “Também seria procedimento de alta má-fé que o proprietário de um bem o conferisse
em garantia de uma relação jurídica, para não cumprir o avençado ou já sabendo da impossibilidade de fazêlo. O direito não pode suportar procedimento de má-fé, ou de quem alegue nulidade a que tenha dado causa.
Quem viola a norma não pode invocá-lo em seu benefício (nemo auditur turpitudinem suam allegans)”
(AZEVEDO, Álvaro Villaça, cit., p. 72).
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RESENHAS
RESENHA A ARNOLDO WALD (ORGANIZADOR), DOUTRINAS ESSENCIAIS
– MEDIAÇÃO E ARBITRAGEM, SÃO PAULO, EDITORA REVISTA DOS
TRIBUNAIS, 2014.
Gustavo Tepedino
Professor Titular de Direito Civil e ex-Diretor da Faculdade de Direito da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro – UERJ
A coleção Doutrinas Essenciais – Mediação e Arbitragem, publicada
pelos elegantes tipos da Editora Revista dos Tribunais, congrega em sete volumes e alguns
milhares de páginas duas verdadeiras instituições do direito brasileiro. De um lado, os 100
anos de tradição doutrinária da Revista dos Tribunais, com extraordinário acervo
representativo do que de melhor já se publicou no cenário jurídico no último século. De outra
parte, o seu organizador, Prof. Arnoldo Wald, esse notável jurista e intelectual, professor
catedrático da Faculdade de Direito da UERJ, cuja arguta sensibilidade permitiu, mediante
criteriosa seleção, reunir os mais refinados textos em matéria de mediação e arbitragem,
constituindo assim antologia única no panorama editorial brasileiro.
Em divisão didática e eficiente, o primeiro volume é dedicado à
principiologia, bem como à consolidação normativa, jurisprudencial e doutrinária da
arbitragem. O segundo volume volta-se para a convenção de arbitragem, a cláusula
compromissória e o compromisso arbitral: sua dogmática, elementos e efeitos essenciais. O
terceiro volume incorpora toda a matéria procedimental, incluindo as diversas fases do
processo, a produção probatória e a eficácia da sentença. O quarto volume orienta-se para os
domínios específicos em que a arbitragem se espraia: do direito empresarial – contendo
problemas atinentes aos litígios de construção civil, societário, contratual e falimentar – ao
direito econômico; direito administrativo e tributário; direito do trabalho; do consumidor,
direito desportivo e o ambiental. O quinto volume congrega textos relacionados à arbitragem
internacional, homologação e eficácia da sentença, arbitragem estatal e de investimentos
estrangeiros. O sexto volume, finalmente, passa em revista os modos alternativos de solução
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015
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de conflitos, no Brasil e no exterior, enfrentando as técnicas de mediação, conciliação e
processos híbridos – a cláusula med-arb, dispute board e assim por diante. O sétimo volume
reúne cuidadosos índices; por texto e capítulo, por autores, onomástico e alfabéticoremissivo.
Os sete volumes da coleção buscam oferecer ao leitor o que de melhor já
se produziu na literatura jurídica brasileira sobre o tema, permitindo traçar interessante
histórico do desenvolvimento da arbitragem, identificar os problemas atuais e propor
perspectivas para seu fortalecimento nos próximos anos. A obra contém contribuições de
ilustres autores de todas as especialidades e domínios do conhecimento jurídico, de Rui
Barbosa a Miguel Reale a, no cenário internacional, Tullio Ascarelli, René David e Mauro
Cappelletti – cujas saudosas memórias se tornam, assim, de alguma forma, resgatadas em
suas lições inexcedíveis –, unindo também, na doutrina contemporânea, as diversas gerações
de estudiosos que integram a coleção.
O procedimento arbitral tem sido crescentemente utilizado no Brasil,
sobretudo em áreas de elevado nível de especialização, destacando-se questões relacionadas
à energia, petróleo, infraestrutura, construção civil, entre outras. Tais litígios normalmente
abrangem valores vultosos e temas complexos que, por conta do dever de confidencialidade,
acabam por não se tornar de conhecimento público, inexistindo jurisprudência arbitral
brasileira que pudesse ser fonte de consulta. Daí a importância dessas contribuições
doutrinárias essenciais, que franqueiam aos leitores não somente informações dogmáticas
mas, ao mesmo tempo, o retrato da evolução da arbitragem e de suas controvérsias na
experiência brasileira.
Na atualidade, a arbitragem tem contribuído para desafogar o sistema
judiciário nacional, que conta com cerca de 100 milhões de processos em andamento, e cujos
julgamentos são precedidos, em regra, por excessivamente longos períodos de tempo,
notadamente nas matérias de elevada complexidade técnica. A eclosão da arbitragem no
Brasil mostra-se ainda recente, já que a afirmação pelo STF da constitucionalidade da Lei
9.307/1996 ocorreria apenas ao final de 2001. De todo modo, o fortalecimento progressivo
do procedimento arbitral tem sido incentivado pela dedicada atuação de respeitadas Câmaras
de Arbitragem e de talentosos árbitros, bem como pela intervenção positiva da magistratura,
que reconhece, reiteradamente, a força vinculante e definitiva das decisões arbitrais, nas
hipóteses em que se procura invalidar o laudo arbitral perante o Poder Judiciário.
A Arnoldo Wald a cultura jurídica brasileira deve muitíssimo, seja por sua
pujante produção acadêmica dos últimos 60 anos, seja por sua formidável liderança
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científica e comprometimento institucional, ocupando numerosos e operosos postos de
destaque no florescimento da arbitragem no Brasil, tais como Membro da Corte
Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional; Vice-Presidente do
Comitê Brasileiro da Câmara de Comércio Internacional; Presidente da Comissão de
Arbitragem do Comitê Brasileiro da Câmara de Comércio Internacional, além de idealizador
e coordenador da festejada Revista de Arbitragem e Mediação.
Por tudo isso, tais doutrinas essenciais configuram obra fundamental na
biblioteca jurídica, ponte entre a memória do direito nacional e o alvissareiro futuro da
arbitragem no Brasil.
Petrópolis, fevereiro de 2015
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015
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SUBMISSÃO DE ARTIGOS
Os trabalhos a serem submetidos à Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil
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e 35 laudas.
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devem ser usados recuos, deslocamentos, nem espaçamentos antes ou depois. Não se deve
utilizar o tabulador "TAB" para determinar os parágrafos: o próprio "ENTER" já
determina este, automaticamente. A fonte utilizada deve ser Times New Roman, corpo
12. Os parágrafos devem ter entrelinha 1,5; as margens são de 3cm no lado esquerdo,
2,5cm no lado direito e 2,5cm nas margens superior e inferior. O tamanho do papel deve
ser A4.
6. Os trabalhos deverão ser precedidos por uma folha de rosto com o título do
trabalho (em inglês e português), nome do autor (ou autores), endereço, telefone, fax, email, situação acadêmica, títulos, instituições a que pertença e a principal atividade
exercida.
7. As referências bibliográficas deverão ser feitas de acordo com a NBR 6023/89
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deverá conter: sobrenome do autor em letras maiúsculas; vírgula; nome do autor em letras
minúsculas; ponto; título da obra em itálico; ponto; número da edição; ponto; palavra
edição abreviada; ponto; local; dois pontos; editora (suprimindo-se os elementos que
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designam a natureza comercial da mesma); vírgula; ano da publicação; ponto. Exemplo:
DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. 2. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1993.
8. As referências deverão ser feitas em notas de fim, isto é, ao final do artigo,
com a indicação “Notas”.
9. Os trabalhos deverão ser precedidos por um resumo analítico bilíngüe que não
ultrapasse 10 linhas, pela indicação de palavras-chaves em inglês e português e por um
Sumário, numerado, com as divisões do texto, separada cada divisão da outra por um
travessão.
Exemplo: SUMÁRIO: 1. Realidade social e ordenamento jurídico – 2. Regras
jurídicas e regras sociais – 3. O jurista e as escolhas legislativas. – 4. O Código Civil – 5.
A Constituição – 6. A chamada descodificação.
10. Qualquer destaque que se queira dar ao texto, sempre com parcimônia, deve
ser feito com o uso do itálico. Não deve ser usado o negrito ou o sublinhado.
11. O Conselho Assessor da Revista reserva-se o direito de propor modificações
ou devolver os trabalhos que não seguirem essas normas. Todos os trabalhos recebidos
serão submetidos ao Conselho Assessor da Revista, ao qual cabe a decisão final sobre a
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