Baixe aqui a entrevista com Laerte Ramos

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Baixe aqui a entrevista com Laerte Ramos
Trabalho pesado
Uma entrevista “in progress” (e-mail a e-mail)
Por Marcio Harum (*)
Marcio Harum: Até bem poucos anos atrás o seu trabalho reconhecidamente tinha a gravura
como afinidade eletiva. Conte um pouco desta sua guinada em direção à cerâmica.
Laerte Ramos: Trabalho
com xilogravura desde o tempo em que cursava artes plásticas na
FAAP, em 1997-2001, mais precisamente. Gostei desta técnica pois exigia um esforço para se
obter o resultado impresso. O desenho, o talhar da madeira/mdf, o aprimoramento das
técnicas de impressão, e o resultado final impresso no papel. Por muitos anos, a xilogravura
me envolveu e me ensinou algo a mais sobre a imagem/desenho. O branco e preto, a figura e
fundo, o talhado e não talhado, o cheio e vazio, eram sempre contrastes que acabaram
definindo e me ensinando muito sobre o meu próprio desenho.
Da xilogravura, desenvolvi animações em vídeo/dvd, desenvolvi serigrafias em madeira e como
estampas também (trabalho que ja vinha fazendo desde adolescente em camisetas). Destes
blocos de madeira parti para objetos de metal, fundição em chumbo, cera e, posteriormente,
em cerâmica.
Acredito que a base da minha produção tem como semente o pensamento da gravura:
reprodução, incisão, corte, etc. A reprodução dentro da minha produção é sempre
reduzida/limitada a geralmente 3 cópias – isto porque gosto de produzir, de ter desafios
diários e prefiro desenvolver novos trabalhos do que fazer tiragens extensas diluindo a mesma
imagem. Outro aspecto que eu penso sobre a reprodução é a continuação da pesquisa, das
séries que venho desenvolvendo há anos, algumas eu retomo, outras não, mas depois sim, eu
gosto de retomar as séries antigas pois fica evidente a mudança do desenho/traço mesmo
dentro das mesmas leis e regras de uma série já determinada.
Como a reprodução limitada era algo que me interessava, e meu desenho vinha da madeira
talhada, quase uma escultura, além do desenho na gravura apresentar sempre aspectos
tridimensionais, a escultura se apresentou rapidamente na minha produção logo em 2003.
Mas o grande start foi mesmo quando me chamaram (a Juliana Monachesi) para “pintar pratos
de cerâmica” para ajudar o Museu Lasar Segall a arrecadar fundos durante o leilão que fazem
todos os anos. Ao entrar no atelier de cerâmica novamente, fiquei com vontade de
desenvolver o tridimensional com moldes de gesso e barbotina (argila líquida), podendo obter
a reprodução de esculturas em cerâmica – também com edições limitadas a três, e isto
aconteceu em menos de uma semana.
Minha experiência durante a faculdade não foi muito produtiva devido a minha concentração
na gravura, e meu gesto da gravura, hoje, está totalmente presente na escultura de cerâmica
devido ao mesmo instrumento básico que uso (estilete escolar amarelinho), e também os
contrastes de preto e branco, de dentro e fora, de relevo, mas começou a entrar o brilho do
esmalte e a pesquisa de outras cores, formas e novas séries de trabalhos.
Vendo e conhecendo as suas esculturas em cerâmica entende-se que a sua produção é da
ordem do trabalho mais que peso-pesado. Porque você acha que a cerâmica é vista às vezes
tão equivocadamente no mundo da arte como um meio leve, o clichê de sempre, como se
fosse só fazer a "xicrinha" e a pinturinha de tia?
A cerâmica é uma técnica ainda pouco explorada dentro da arte contemporânea brasileira,
não chega nem a 1% do total de arte produzida por aqui. Acredito que há muito preconceito, e
muita falta de entendimento sobre o que é realmente a cerâmica, o que é possível de se fazer
com ela como técnica também. Claro que quando se fala de cerâmica, a primeira imagem que
vem à cabeça é a do Patrick Swayze e a Demi Moore se lambuzando com a argila, fazendo um
vaso no torno, ou então lembramos de algum parente que já fez algum curso de pintura de
cerâmica. Mas ela está presente no nosso cotidiano e nem nos damos conta disto: como no
vaso sanitário, mictórios, azulejos, pisos, xícaras, bules, entre outras peças que são utilizadas
em eletricidade e mecânica todos os dias.
Convivemos com ela, mas não percebemos o quanto. O lado artístico da cerâmica fica
realmente ligado a xícaras, vasos, potes, comedouros, cinzeiros, e sempre de uma maneira
decorativa, e pouco explorada como objeto de design e menos ainda como arte. Há o medo
que cerâmica quebre, mas se pensarmos bem a cerâmica historicamente nos proporciona
estudos importantíssimos sobre o homem antigo, sobre histórias por ela contada e enterrada,
e depois desenterrada. A cerâmica é importante e merece mais atenção com certeza.
De um lado, vemos que há uma tradição na cerâmica (como na xilogravura, o cordel por
exemplo). Mas a tradição do desenvolvimento de xícaras e vasos ainda fica presa tanto na
forma, como na própria tradição – que geralmente é passada de pais para filhos, ou de
mestres para assistentes. Vejo importância na tradição, mas quando pensamos arte hoje, arte
contemporânea, em um mundo rápido com telefone celular, informação instantânea por meio
da internet, vejo a tradição como algo a ser quebrado, rompido, fazendo com que o erro, ou a
falta de conhecimento total sobre o material nos traga novos horizontes a uma técnica tão
antiga. Um bom exemplo disto é o European Work Ceramic Centre na Holanda (EKWC), que
convida artistas de todo o mundo para desenvolver uma pesquisa em cerâmica de três meses
em forma de residência, e não necessariamente os artistas precisam saber ou ter qualquer
conhecimento sobre a técnica. Isto faz com que a ignorância de todos nós seja transformada
em novas pesquisas, novos desafios. Eles aprendem com a falta de experiência dos outros,
formando um centro de conhecimento totalmente diferente dos outros.
Quando trabalho com cerâmica, realmente é bem cansativo e “peso-pesado” mesmo, devido à
execução de esculturas maiores, que exigem mais atenção, moldes com mais encaixes
(tacelos). A argila é pesada pois tem muita água, quando seca, e quando sai do forno fica mais
leve, mas todo o processo exige muito do físico e do psicológico, pois a cerâmica apresenta
muitas surpresas devido à equação entre temperatura x pigmento x massa. Obrigatoriamente
temos que aprender a lidar com a perda e com o “quase consegui o que queria”. Além de lidar
com perdas, é caro trabalhar com cerâmica, ainda mais quando as peças adquirem proporções
maiores, pois para um resultado final com esmalte a peça precisa de no mínimo duas fornadas.
Acredito que um dos motivos por existir tantas xícaras é justamente este: a xícara é pequena e
diluindo o custo de 100 ou 200 delas dentro de um forno, comparando com apenas uma
escultura grande, sai mais em conta tomar um “chá pintando”.
Ah! Que bom que mencionaste o EKWC, o centro holandês de pesquisa e residência voltado
para a cerâmica. Pelo que conheço dos holandeses, imagino que lá você também teve a
oportunidade de se inteirar das noções cruciais de química e física em paralelo ao
desenvolvimento dos seus processos escultóricos com a argila, não?
Sim, aprendi muito no EKWC. Até então, meu conhecimento de cerâmica era um pouco raso,
devido a outros trabalhos que desenvolvia na época e ainda não havia me aprofundado direito
na cerâmica. Quando em 2007 me convidaram para fazer parte do “Brazilie Landenproject” no
qual outros quatro artistas brasileiros também foram recrutados para esta residência de três
meses, preparei vários projetos novos e comecei a me dedicar mais à escultura.
Mesmo com a entrada do tridimensional na minha produção em 2003, acredito que já tinha
uma certa facilidade em trabalhar com a argila devido à escola em que estudei na minha
infância, Escola Waldorf Rudolf Steiner de São Paulo. Nela desenvolvemos trabalhos com argila
do primeiro ano escolar até o último, entre outras aulas de talhar madeira, de cardar lã, fazer
macrame, enfim, entender como as coisas funcionam e como elas são e podem ser feitas com
a mão. Devido a esta educação do “fazer”, hoje vejo que na minha produção o fazer é sempre
presente e por isto as técnicas artesanais e quase primitivas estão sempre presentes.
Então o domínio das questões da física em relação à argila eu já tinha na prática, mas o
conhecimento de outras noções mais ligadas à química do material, composições, queimas,
pigmentos e possibilidades inovadoras com certeza aprendi na Holanda. São doze studios com
um artista em cada, e os artistas são do mundo inteiro. Há uma sala para pigmentos e
amostras de esmaltes, outras só com massas de argila em ambiente climatizado, outra para
fazer moldes de gesso, outra para aplicação do esmalte, uma oficina de madeira e metal e,
claro, um grande salão com cerca de 9 fornos, sendo que um deles é tão grande que cabe um
time inteiro de futebol.
Uma mega infraestrutura para podermos aprender: instrumentos, materiais e táticas para a
construção de esculturas em cerâmica de grande formato – o que é muito difícil e envolve
muito conhecimento e instrumentos, como pallets e empilhadeiras para locomover o “pesopesado” da argila – coisa que aqui no Brasil ainda pecamos pela falta de estrutura. Com tantas
possibilidades, chegava a trabalhar até dezoito horas por dia, para aproveitar o máximo de
tempo, pois a argila demora para secar e o prazo de três meses tem um fim, é preciso terminar
o projeto até o final do período da residência. Nas últimas semanas estava tudo tão corrido
que em algumas refeições, sem tempo, apenas ingeria líquidos para sobrar alguns minutos
para terminar o projeto.
A convivência com outros artistas é fundamental pois com eles aprendemos tanto a cultura do
seu próprio país, quanto a cultura contemporânea dele refletida nos seus trabalhos e
pesquisas. Há também as palestras que todos os participantes fazem para apresentar a sua
produção de artista/arquiteto e um “open day” onde é apresentado tudo o que foi feito
durante os meses neste centro ao final da residência. Outro projeto interessante deles é o de
juntar arquitetos e artistas para desenvolverem projetos juntos. Isto nós ainda vemos pouco
aqui no Brasil, estas pontes entre arte e arquitetura, arte e moda, mas a situação está
mudando gradualmente devido a uma quebra de preconceitos bastante recente.
O seu trabalho selecionado para a Temporada de Projetos 2009 trata da estética e do sentido
do universo do boxe. Qual a sua relação com esta luta? Já praticou, tem vontade, ou é só
admiração?
Durante minha infância e adolescência eu pratiquei kung fu e jiu-jitsu. Praticando jiu-jitsu
participei de campeonatos, e fazia dois treinos por dia durante toda a semana. Nesta época eu
era sim um lutador, vivia isto, assistia lutas e acompanhava as artes marciais geralmente em
lutas de vale tudo, pois alguns dos meus professores/mestres competiam profissionalmente.
Antes disto, os filmes de luta, de guerra, e de artes marciais do Bruce Lee sempre me
encantaram. Mas deixei de praticar assim que entrei na faculdade, quando mergulho em
alguma coisa eu vou até o fim. Durante o curso de licenciatura em artes na FAAP, em uma das
matérias um professor me sugeriu rever meus desenhos de quando era criança, e lá estava
todo o repertório da minha pesquisa atual de arte. Achei incrível. Já existiam os soldados,
tanques, paisagens com fortes, exércitos, canhões, grandes embarcações, lutas, uma variação
enorme de uniformes, acredito que até um pouco pesado demais para uma criança de sete
anos, mas já estava tudo lá, tudo lá.
A proposta que apresento para o Paço das Artes, re.van.che, trata de uma exposição individual
de cerâmica com acessórios de lutador: luvas de boxe, protetor de cabeça, de pé e de boca, a
perinha para treino de soco, o teto-chão, o banquinho de corner, a raquete de chute/soco, e o
saco de areia para treino de soco. Todos reproduzidos em cerâmica, mas parecido
esteticamente ao acessório real, pois tirei molde da peça original e reproduzi em cerâmica.
Vejo este trabalho como uma série bem diferente das outras que desenvolvi até então. Na
verdade é uma grande instalação com performance também. No meu atelier tem um saco de
pancada e sempre que passo por ele disparo alguns socos ou chutes. Por conviver sempre com
ele no meio do studio, uma hora acabaria usando isto em um trabalho.
Outro elemento que me direcionou a esta pesquisa foi o protetor de cabeça e o do pé. No
bairro em que moro, a Liberdade, existem muitas academias e lojas de acessórios para artes
marciais e me encantei com a forma dos protetores: pela cor e textura muito parecidos com os
da cerâmica. Outro paralelo interessante é o do lutador artista, que com o trabalho “pesopesado” não deixa de ser um treinamento. Por exemplo, quando chega aqui no quarto andar
do studio (sem elevador) um carregamento de 300 kilos de argila, o “artista marcial” entra em
palco com certeza, parece até as cenas de tortura dos filmes do van Damme em treinamento
tailandês. Este universo me fascina sim, e acredito que a muito tempo. É natural uma vez ou
outra que fique mais aparente na nossa produção.
Outro aspecto que me interessa claro é a revanche, o título da exposição. Revanche porque a
cerâmica sempre quebra, explode ou se comporta de uma maneira particular diferente da que
eu gostaria; e pelo menos uma vez, uma vez só, gostaria muito que ela fosse quebrada em um
determinado momento. E para isto acontecer, convido um lutador/lutadora profissional para
botar para quebrar. Uma vez minha mãe me disse que quando nasci, em 1978, no Hospital
Santa Helena, na Liberdade, ela não conseguia dormir, pois ouvia os gritos em coro: "it - ni san - chi - go - ho - etc" dos lutadores de karate kyokushin, que praticavam esta luta do outro
lado da rua em frente ao hospital. O som ecoava através das janelas dos quartos da
maternidade. Até hoje existe esta academia em funcionamento, e quando ouço o som dos
lutadores, ao passar ali pela mesma rua, abro um sorriso.
Você é nascido na Liberdade, estudou na escola Waldorf e treinou pra ser artista marcial na
infância e adolescência. Retorna então ao bairro da Liberdade na vida adulta e se instala ali em
um studio como artista. Desenvolve além da escultura em cerâmica o gosto e a produção de
peças têxteis e desenhos técnicos. Como alia estas duas produções recentes tão diferentes
com a parte de desenvolver colaborações com outros artistas em suas performances? Explique
o sentido de presença da maleta amarela durante a sua performance que é geralmente
realizada por outra pessoa. Como surge o convite de participação do outro artista?
Atualmente venho desenvolvendo pesquisas também com roupa. Isto porque, como já disse
anteriormente, desde adolescente já trabalhava com estampas em camisetas, técnica que
também aprendemos na escola Waldorf. Num certo momento, me envolvi na produção de
uma marca de roupa, a Miya, e tive a oportunidade de aprender muito sobre tecido, corte,
modelagem e desenhos técnicos. O desenho técnico sempre foi importante para a minha
produção de arte também. A cada projeto novo, crio desenhos que ilustram como seria o que
pretendo, sempre de maneira bem simples e com textos também, como as cartilhas de
segurança em avião.
Acho importante a apresentação de um projeto, e criá-lo antes de executá-lo na prática, isto
ajuda muito no caso das esculturas: pois faço as visões superior, lateral, frontal. Uso estes
desenhos geralmente em folders e em convites de exposições, ou nos projetos mesmo, mas
mostro pouco este lado designer-técnico.
Já a produção de roupas, que no momento são calças e casacos, faz parte da minha pesquisa
de performance. O corpo entrou na minha produção depois que executei algumas
intervenções/ações urbanas e também quando fiz o Jambolhão (escultura gigante de
fiberglass). Esta escultura é uma releitura do ônibus double-deck londrino e tem lugares para
sentar e ficar de pé em cima da escultura agigantada. Outros projetos como travesseiros de
chão, uma balança, começaram a entrar na produção de arte – trabalhos interativos.
Como meu envolvimento com a moda estava crescendo, resolvi então elaborar uniformes para
as performances, demonstrando um respeito especial pelas ações. Geralmente, uma vez
quando se faz performance ou se fica pelado, ou com roupa "neutra" de capoeira. Quando
penso roupa, penso gravura, tem um desenho, um molde/matriz de papel e a reprodução
também. Gosto dos processos para se conseguir um resultado. Há muitas relações e consegui
traduzir o meu desenho da gravura para a roupa em cortes de tecido, costuras, bolsos e cores.
Em uma das performances, no caso a "do pó ao pó" (work in progress), desenvolvi acessórios
para a coleta do pó dos studios de artistas assim como espaços expositivos. Uma mochila de
fiberglass, uma maleta, um conjunto de uniforme e as ações, tudo faz parte do projeto que
posteriormente é apresentado em forma de vídeo/documentário e por meio dos porta-pós de
papel – separados por data, tipo de coleta e artista/espaço/exposição. Gosto muito de
convidar artistas que trabalham com performance para usar a roupa, sentir o trabalho e
executar a coleta. É uma oportunidade de usar um corpo extra para executar uma obra.
Acredito que a experiência para o performer também é interessante, uma vez que não há uma
regra clara de como coletar, mas o uniforme, a mochila e/ou a maleta foram desenvolvidos de
maneira tal que molda o corpo do performer, fazendo com que ele ande e se comporte de
uma maneira parecida.
Atualmente estou inaugurando uma marca de camisetas ramOrama, em que também convido
artistas para desenvolver estampas e me preocupo com a valorização da imagem estampada e
seu autor. Isto fica evidente nas metas que temos enquanto marca de roupa. Outra questão
que trabalhamos também é o da estampa impressa pela mão do artista, em edições limitadas,
e tudo feito dentro do studio ramOrama em forma de residência – isto adiciona um dado a
mais em uma estampa.
Laerte, estou bastante satisfeito, muito obrigado. Vamos continuar a entrevista depois que a
exposição abrir e/ou encerrar. Um abraço, Marcio.
-(*) Esta entrevista, realizada nos dias 8 e 9 de fevereiro deste ano, faz parte do
acompanhamento crítico (em sua Fase 1) do trabalho do artista Laerte Ramos, feito pelo
pesquisador e curador Marcio Harum, no contexto da Temporada de Projetos 2009.

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