NATUREZA EDISCURSO ECOTURíSTICO NA AMAZÔNIA
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NATUREZA EDISCURSO ECOTURíSTICO NA AMAZÔNIA
NATUREZA E DISCURSO ECOTURíSTICO NA AMAZÔNIA MARIA CÉLIA NUNES COELHO' Nature and Ecotouristic Discourse in the Amazon Myths and images of Amazonian nature created historically by old travellers or naturalists have been automatícally repeated by the ecological and the ecotouristic discourses. Strong interaction of nature and society have not become visible on the most of ecologists and ecotourists speeches. This essay in such issue is also an attempt at examing of articulation between ecotourism and sustainable development. By analyzing the images of nature in connection with the ecotourists' speeches, it is concluded that imagination and geography contribute to a better understanding of the Amazonian regional construction and cultural identity. Regional geography may help to bring about a reconstruction of the Amazonian ecotouristic discourse. Introdução A Amazônia tem se prestado como campo por excelência para a literatura do fantástico e da exaltação de suas maravilhas e opulências. Neste final de milênio, assiste-se ao revigoramento das visões da Amazônia como um ambiente exótico e selvagem. Mitos e imagens" ricos de significados, compõem visões transmitidas nos discursos dos ecologistas e dos promotores de um "turismo ecológico", "ecoturismo" ou "turismo ambientai" . . Professora Adjunta do NUMA-NAEAJUFPA. 1 As imagens são como representações mentais, com origem tanto no campo das fantasias quanto no campo das idéias. Os mitos, por sua vez, podem ser compreendidos como símbolos ou expressões culturais, como alegorias, e ainda como projeções de fatos reais ou imaginários. As visões significam, para efeito deste texto, percepções ou impressões produzidas a partir dos olhares dos conquistadores e viajantes sobre o Novo Mundo (ou, mais especificamente, sobre a natureza e sociedade amazônica) influenciadas pelo desenvolvimento científico de suas épocas no Velho Mundo. As visões são carregadas de imagens e mitos. Revista TERRITÓRIO, 68 ano 111,nº 5, jul./dez. 1998 Nesta análise", sustenta-se que a associação entre ecoturismo e preservação das riquezas naturais não é automática ou natural. Apóia-se a visão de que a natureza "natural" é mais um mito criado pela ideologia civilizatória. Aponta-se grande parcela do discurso ecológico e, conseqüentemente, ecoturístico como veiculador da visão de natureza destituída de sociedade. Ao analisar as imagens associadas ao discurso ecológico e ao discurso do ecoturismo, chama-se a atenção para o uso recorrente de mitos e imagens que contribuem para preservar visões antigas sobre a Amazônia. Discute-se o papel da imaginação na construção ou na legitimação da unicidade, singularidade e maravilhosidade do "mundo amazônico". Dessa maneira, o trabalho aborda tópicos tais como: (1) as viagens exploratórias e as viagens de "retorno à natureza"; (2) a concepção de natureza no discurso ecológico e no discurso do ecoturismo; (3) as relações entre ecoturismo e desenvolvimento sustentável; e finalmente, (4) o papel da imaginação e da Geografia na compreensão dos discursos como construções sociais, cujas idéias enunciadas nas falas podem não estar correspondendo à realidade de uma natureza dinâmica e permanentemente transformada pela sociedade. 1. As viagens exploratórias e as viagens de "retorno à natureza" o ser humano sempre teve curiosidade em relação a outros lugares e povos. Impulsiona-o uma busca insaciável por novas sensações despertadas diante de uma natureza desconhecida. Na literatura, vários são os exemplos de relatos de viagem que mantinham vivo o ímpeto de viajar e o interesse pela aventura. Entre as mais famosas estão a Odisséia, um relato sobre dez anos de aventuras experimentadas por Ulisses, herói legendário da Grécia antiga (personagem de Homero), no esforço de retornar a ítaca após a Guerra de Tróia" e as narrativas do famoso viajante veneziano Marco Pala, para a Este texto é em alguns aspectos uma versão retrabalhada da palestra proferida pela autora, durante o II Encontro Estadual de Bacharéis em Turismo (realizado em Belém, no período de 20 a 22 de outubro de 1996) e publicada pelos organizadores deste evento sob o título de "Refexões sobre Ecoturismo na Amazônia". Além de aprimorar os questionamentos anteriormente apresentados, foram acrescentadas reflexões sobre (1) análise de textos relativos ás políticas nacionais e regionais para o ecoturismo e (2) o papel da imaginação nos estudos geográficos que podem subsidiar os promotores do ecoturismo. 3 Sobre os mitos associados às viagens de Ulisses, Calvino em Por que Ler os Clássicos? (1995: 24), escreveu: "... Ulisses volta a falar de ciclopes, sereias ... Será que a Odisséia não é um mito de todas as viagens? Talvez para Ulisses-Homero a distinção mentira/verdade não existisse, talvez ele narrasse a mesma experiência ora na linguagem do vivido ora na linguagem do mito, como ainda hoje para nós cada viagem, pequena ou grande, sempre é Odisséia." 2 Natureza e discurso ecoturfstico na Amazônia 69 Ásia Central," em As viagens de Marco Pala, que estimularam o interesse europeu pelo Oriente e suas riquezas. Segundo Paulo Prado, em Retrato do Brasil, "Às navegações comerciais dos venezianos, genoveses e catalães seguiam-se outras mais audaciosas, abrindo novos céus e terras. As lendas ainda romanas, das sonhadas ilhas de ouro e da prata, mudando de lugar como fogos-fátuos, atraíam sempre para longe outros povos marítimos. 'Andando más más si sabe', dizia Colombo. Os livros de Marco Polo e Mandeville despertavam no ânimo dos aventureiros novas ambições de conquista, o amor ao mistério das regiões desconhecidas, a curiosidade do maravilhoso, o reaparecimento do espírito das cruzadas." (PRADO, 1997:54-5) A literatura dos séculos XIV e XV é rica em descrição de viagens a ilhas paradisíacas, compostas de realidades ilusórias, às quais, a partir do século XVI. acrescentam-se os relatos fantásticos de viagem ao Mundo Novo, combinando mitologia greco-romana, herança [udaico-cnstã e alquimia com expectativas, aspirações ou ambições de enriquecimento fácil. Diante da natureza desconhecida, os seres humanos são acometidos tanto da melancolia e desejos de conservá-Ia intocável, compreendê-Ia e encontrar respostas às indagações suscitadas quanto do ímpeto de explorá-Ia quer econômica quer cientificamente. Os séculos XVIII e XIX, diferentemente dos séculos anteriores, são marcados pelo racionalismo e pela forte reação às crenças religiosas e às imagens do maravilhoso e do exótico (NISBET, 1980; MACHADO, 1989). Com o avanço da ciência e das técnicas na Europa, as viagens adquirem o caráter científico. Cresce a literatura científica sobre o Novo-Mundo, No século XIX, elementos do romantismo se fazem, entretanto, presentes numa literatura de retorno à natureza geralmente situada em áreas distantes, dirigida quase sempre para um público fixo (de não-viajantes), porém ávido por compartilhar com os autores visões idealistas ou utópicas e sensações novas. 'Marco Pala (c. 1254-1324), seguindo a rota da seda entre 1271 e 1275, alcançou a China e a corte de Kublai Khan, a serviço do qual atravessou o Império Mongol, no período de 1275 a 1292. Em As Cidades Invisíveis, CALVINO (1995) escreveu sobre os relatos de viagens que Marco Pala fazia para Grande Khan: "... cada notfeia a respeito de um lugar trazia à mente do imperador o primeiro gesto ou objeto com o qual o lugar fora apresentado por Marco. O novo dado ganhava um sentido daquele emblema e ao mesmo tempo acrescentava um novo sentido ao emblema. O império, pensou Kublai, talvez não passe de zodíaco de fantasmas da Mente." (CALVINO, 1995:26) 70 Revista TERRITÓRIO, ano 111,n2 5, jul./dez. 1998 No século XX, com o fim da Segunda Guerra Mundial e a elevação dos níveis de renda. as viagens ganham uma dimensão do lúdico, do lazer. deixando de ser privilégio dos viajantes conquistadores e cientistas. Cresce o número de viajantes portadores dos mais diversos interesses. O turismo. como atividade de serviço aos viajantes ou excursionistas. ganhou importância nos Estados Unidos e na Europa. O sucesso desta atividade, que logo se revelou de grande rentabilidade, influenciou os governos dos países, entusiastas das idéias ocidentais de planejamento do desenvolvimento econômico, a estimulála em seus próprios territórios. Nos últimos anos, um turismo voltado para a natureza tem suscitado interesses de uma clientela específica, supostamente defensora da natureza, irritada com os danos a ela causados ou a serem causados por uma civilização urbano-industrial. Este novo turista é atraído pela esperança de descobrir ou encontrar um mundo natural, um mundo não alcançado pelo modernismo capitalista que tudo uniformiza ou contamina. Procura um retorno ao passado, a uma realidade que ficou no passado ou que se imagina no passado. Para que haja a valorização de natureza "virgem" ou "rústica", é preciso que exista o inverso. A busca de uma natureza preservada ou "intocada" só se justifica pela existência de outra "civilizada" ou "artificial". Calvino cria o seguinte diálogo entre Marco Polo e o Imperador Kublai Khan: "- Você viaja para reviver o seu passado? - era, a esta altura, a pergunta do Khan, que também podia ser formulada da seguinte maneira: - Você viaja para reencontrar n seu futuro? E a resposta de Marco: - Os outros lugares são espelhos em negativo. O viajante reconhece o pouco que é seu descobrindo o muito que não teve e o que terá" (CALVINO, 1995b: 29) O ecoturista sonha, na maioria das vezes, com a oportunidade de celebrar a natureza "natural". Ao contrário do personagem de Charles Chaplin no filme "Luzes da Cidade", o turista, que preza a natureza, sente-se fascinado pela luz do dia, o verde da mata. a escuridão ou o luar na selva. pela vida ao ar livre e pela comida natural. Procura, portanto. no presente, uma visão do passado que gostaria intocado ou intocável. 2. Concepção de natureza, discurso ecológico e discurso do ecoturismo As noções de natureza e de sociedade estão entre as mais importantes idéias do século XIX. Embora Marx não tenha teorizado sobre natureza, este sempre foi um conceito fundamental na sua obra (SCHMIDT. 1971). A idéia Natureza e discurso ecoturístico na Amazônia 71 de sociedade, desenvolvida por Weber, e não a de população, tornou-se essencial para a concepção da natureza e do trabalho que a transforma. Marx encarregou-se de ressaltar o caráter unitário e inseparável das relações entre sociedade e natureza. Não obstante as contribuições de Karl Marx para uma visão integradora de sociedade e natureza, a dicotomia entre ambas, predominante no final do século XIX, é ainda mantida, consciente ou inconscientemente, por muitos ecologistas e não-ecologistas contemporâneos e repetida por um número elevado de defensores e investidores do ecoturismo. Domina ainda uma visão a-histórica das relações entre natureza e sociedade, em detrimento do caráter sócio-histórico da visão de natureza em Marx. Contrariando a visão histórica da inseparabilidade e interação dinâmica e contínua entre sociedade e natureza, os discursos esposados por muitos defensores do ecoturisrno difundem uma visão de natureza que prescinde da sociedade. Esta visão estreita de natureza contribui para perpetuar formas antigas de pensar e representar a natureza amazônica, ou ainda, uma natureza destituída de sociedade e, portanto, de complexidade. Além da visão dicotômica, é fantástico que ainda hoje os discursos ecológicos e, conseqüentemente, os ecoturistas estejam impregnados de idéias e imagens residuais. Tais discursos repetem nos dias atuais a visão de natureza como a "mãe terra", a "Gaia" da mitologia grega. Gaia é a figura recorrentemente evocada num discurso em que se quer vincular à natu reza a imagem da abundância, da mãe dadivosa e provedora. O discurso ecológico realimenta a culpa dos seres humanos perante a "mãe natureza", cabendo à humanidade a expiação da traição no Jardim de Éden. Uma visão cristã de natureza, segundo a qual a natureza e os seres humanos acham-se corrompidos em conseqüência do pecado, parece ainda dominar nos discursos ecológico e ecoturístico. 2.1. O discurso ecológico e o discurso ecoturístico Na década de 1970, a perspectiva teórica designada "ecodesenvolvimento" (posteriormente rebatizada como "desenvolvimento sustentável") surgiu da crítica ao planejamento econômico tal como foi concebido no mundo ocidental pós 1950 e aos seus resultados ambientais danosos e socialmente injustos. O desenvolvimento sustentável vem sendo comumente definido como desenvolvimento que leva em consideração a finitude dos recursos naturais, a sustentabilidade ou durabilidade no uso dos recursos 'com vista às gera· ções futuras. Além da sustentabilidade social, econômica e ecológica, neste conceito de desenvolvimento é também ressaltada, com propriedade, a sustentabilidade cultural (SACHS, 1993). O desenvolvimento sustentável constitui-se uma perspectiva teórica de desenvolvimento, apoiada numa visão de equilíbrio entre população e recursos, nas idéias malthuasianas e neomalthuasianas, nas visões orientais de harmonia entre seres humanos e natureza, no anarquismo de Proudhon e 72 Revista TERRITÓRIO, ano 111,nº 5, jul./dez. 1998 Bakunin, no "anarquismo" religioso-pacifista de Gandhi, para citar algumas de suas matrizes teóricas (COELHO, 1994). Muitos de seus seguidores arvoram-se em realizar previsões catastróficas e, na maioria das vezes, acientíficas que não se comprovam com o tempo. Outros possuem um discurso apoiado numa visão panteísta da natureza e na perversidade da sociedade. Elaborado neste contexto, o discurso ecoturístico ganha recentemente força com a valorização e defesa da biodiversidade e, só timidamente, da sociodiversidade dos mais diversos ecossistemas do planeta. A existência de antagonismos entre expansão da atividade de turismo de massa e sustentabilidade, principalmente ecológica, social e cultural se reflete freqüentemente em ameaças à proteção ambiental e aos valores das sociedades locais. De forma similar ao turismo de massa, o ecoturismo pode levar a uma versão descaracterizada OLi descontextualizada social e historicamente das práticas culturais, ameaçando a sustentabilidade cultural das sociedades locais. Não é claro se o ecoturismo representa um novo turismo ou simplesmente um novo tema e uma nova roupagem para o velho turismo. Embora não seja necessariamente antagônica, a expansão do ecoturismo pode não vir acompanhada de justiça social. A distribuição de renda desejada pode não acontecer, dando lugar à concentração ainda maior da riqueza. Esta atividade pode assim confirmar ou criar novas desigualdades sociais. O possível surgimento de externalidades, como danos potenciais à saúde ou elevações de preços dos produtos locais, poderá atingir sobremaneira as camadas mais pobres da sociedade local. A distribuição de renda e a melhoria da qualidade de vida, localmente tão almejadas, podem não ocorrer para todos. 2.2. A concepção de natureza amazônica nos viajantes e o discurso ecoturístico Há um esforço de transmudar o turista potencial no viajante dos séculos passados e levá-lo a viver uma aventura nas plagas amazônicas. O ecoturista é seduzido pelo mundo encantado da panema, da Matita Pereira, do Curupira, dos mitos do Boto e da Cobra Grande, um mundo de indivíduos místicos retratados nas festas religiosas e pagãs. O realismo do índio, negro e caboclo, porém, pode lhe passar despercebido. Busca-se despertar a curiosidade sobre a Amazônia, a partir da exaltação aos viajantes dos séculos passados, que empreenderam viagens corajosas de reconhecimento e estudo sobre a natureza, a serviço de algum país el ou da ciência. O crescente interesse pela expansão do ecoturismo no Brasil, e principalmente na Amazônia, vem suscitando uma análise das imagens sobre natureza dos viajantes de uso corrente na literatura contemporânea. Na visão de natureza amazônica, ambos os discursos (ecologista e ecoturístico) resgatam tanto a velha imagem de "paraíso", dotado de vegetação exuberante, de abundância, de harmonia e de beleza, quanto a igualmente remota imagem de natureza inóspita, selvagem, inculta ou imatura de Natureza e discurso ecoturístico na Amazônia 73 Buffon e outros naturalistas do século XVIII. A imagem de imaturidade aparece também fundada na idéia de Hume (expressa no ensaio Of national characters de 1748) sobre a debilidade e inferioridade dos habitantes das regiões tropicais e árticas. Apesar do movimento racionalista ou intelectual-científico europeu do século XVIII, Charles de La Condamine (1735-1745) divulgou ainda o mito das Amazonas. O racionalismo não eliminou totalmente os mitos e símbolos caros às correntes anteriores. Em seu Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens (1754), Rousseau, apoiado numa visão de natureza baseada, entre outras, nas idéias de Buffon contidas em sua História Natural e nas descrições dos viajantes setecentistas, contribuiu para a difusão do mito do "bom selvaqern"." Os naturalistas ou cientistas que desde o século XVIII percorreram os rios amazônicos observaram, coletaram e classificaram espécies coerente e cientificamente. Suas narrativas contêm notícias ou exaltações de terras longínquas, exóticas e repletas de "imagens" extraordinárias e de mitos dos bons e maus selvagens. A Amazônia atraiu a atenção de um número elevado de viajantes e naturalistas estrangeiros no século XIX. Os estágios de conhecimento e os interesses pela Amazônia no início do século XIX são assim descritos por Lia Machado: "No início do século XIX, quem pretendesse ter notícias sobre a região do Amazonas, geógrafo ou naturalista que fosse, havia de contentar-se com os dicionários do século anterior, a obra de Charles de La Condamine, e a de Alexandre Humboldt. Os mapas e descrições realizados pelo governo colonial português não eram publicados, sendo seu conhecimento restrito às esferas do governo metropolitano. A transferência do governo metropolitano para o Brasil. e a paz européia articulada no Congresso de Viena, inauguraram uma nova fase no conhecimento da região (e do Brasil em gerai)." (MACHADO, 1991:290-1) "O interesse na organização das expedições e viagens pode ser atribuído às necessidades do capitalismo industrial nascente pois O mito do "bom selvagem" tem origem numa terminologia utilizada com freqüência entre os iluministas e em algumas teses de Rousseau, embora tal expressão não tenha sido explicitamente utilizada em seus escritos. Entre suas teses ressaltadas no seu Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens (1754), está a de que a desigualdade de condições que se observa entre os homens em nossa sociedade não é natural ao homem, mas decorre da própria evolução social, especialmente a partir da instituição da propriedade privada (vide ROUSSEAU (1994) e Rousseau: O Bom Selvagem, de Luiz R. S. Fortes, 1996). 5 74 Revista TERRITÓRIO, ano 111,n2 5, jul./dez. 1998 o desenvolvimento da tecnologia estava vinculado aos avanços nas ciências naturais e nas ciências aplicadas. Não obstante, no início do século XIX, já se insinua o papel da ciência como um contrapeso ao desejo de reduzir toda a existência a termos de proveito imediato. Quer dizer. a ciência não existe somente como meio de explorar a natureza mas também como modo de vida. desejável tanto pelos estados mentais que provoca como pelas condições externas que transforma. Alguns dos viajantes ao Amazonas deixam transparecer em suas obras ambos os aspectos." (MACHADO, 1991 :291) Para a autora, o interesse científico pela região justifica-se pelo momento tanto de evolução da ciência européia quanto de luta pela difusão das idéias de progresso e pela afirmação da hegemonia da Europa do século XIX (MACHADO, 1991 :162). Tal como Alexander von Humboldt (1799-1803), os viajantes da primeira metade do século XIX, exemplificados pelos alemães C. F. Martius e J. Spix (1817-1820) e pelos ingleses Alfred R. Wallace (1848-1852) e Henry W. Bates (1848-1859), contestaram as teses de Buffon sobre a juventude e debilidade das Américas e transmitiram um visão de natureza exuberante, diversificada e bela." Os autores pré-românticos como Rousseau e românticos do século XIX contribuíram, através da literatura do fantástico e do maravilhoso, para a revivescência dos símbolos e mitos. Em suas narrativas, o idílico aparece principalmente na figura do selvagem que, no estágio de primitivismo em que se encontrava, acreditava em demônios e males personificados. 6 É interessante observar o reforço à posição contrária aos mitos de origem buffoniana de homogeneidade e falta de sonoridade dos pássaros na faixa de florestas tropicais no fo/der da Prefeitura de Belém (Prefeitura de Belém-Caminhando com o povo), publicado em espanhol, sob o titulo de "La Amazonia Esta Aqui": "O norte do Brasil, o maior país da América Latina, e que engloba a maior reserva de biodiversidade e extensão de floresta tropical do mundo, encontra-se Belém do Pará, porta natural da Amazônia." "Estendidas pela desembocadura do rio Acará, as ilhas servem também como refúgio para os animais como a ilha dos Papagaios, um ninho de várias espécies de pássaros que saem ao amanhecer e retornam ao pôr do sol. O nome indica o pássaro mais comum da região, mesmo assim não é o papagaio o primeiro pássaro a despertar. Nas primeiras cores do dia, um pássaro de grito exagerado, a Saracura, acorda milhares de papagaios e outros pássaros que se perdem no meio deles. Inicia-se então o espetáculo aéreo e sonoro; principalmente o sobrevôo ao ninho. Depois partem em outras direções com certeza de outro espetáculo ao entardecer." Natureza e discurso ecoturístico na Amazônia 75 No final do século XIX e início do século XX, os viajantes brasileiros contrastam a visão de salubridade, beleza e harmonia da natureza dos naturalistas estrangeiros de épocas anteriores. Os viajantes brasileiros descrevem uma natureza inóspita, carregada de doenças e impregnada da exploração dos seres humanos pelos seres humanos, nas áreas de extração da borracha. Esta visão é retratada como "Inferno Verde", título do livro de Rangel (1914), ou como "Um Paraíso Perdido", título de uma coletânea de textos de Euclydes da Cunha, que percorreu a região do extrativismo da borracha na bacia do rio Purus, no início do século XX. Esta viagem é relatada por Euclydes no livro "À Margem da História", de 1909. A visão crítica dos autores citados coloca em questão a ideologia do progresso, aprofundada posteriormente nos meados do século XX.7 Em suma, com relação à natureza amazônica, os viajantes estrangeiros dos séculos XVIII e XIX difundiram a imagem de abundância, enquanto os brasileiros do início do século XX, a de hostilidade. Porém, é principalmente nas imagens de viajantes estrangeiros que os promotores do ecoturismo, empenhados no convencimento fácil de uma clientela, buscam inspirações para construir o discurso sobre a natureza amazônica. A natureza é apresentada simplesmente como paisagem natural separada da história. Assim como o clima, o solo, a vegetação e os animais, os índios, os caboclos e os negros, remanescentes do escravismo, somam-se à paisagem. Os personagens tradicionalmente dominados - índios, negros e caboclos - e os dominadores - fazendeiros, seringalistas, foreiros da castanha - são vistos como indivíduos, habitantes, povo ou gente. São componentes de uma sociedade, interpretada como natural ou primitiva. Esta visão ingênua raramente dá lugar à de uma sociedade estruturalmente desigual onde predominam as práticas sociais transformadoras da natureza bem como tradicionalmente geradoras de injustiça social. A harmonia parece se dar tão somente com a interferência de "novos" personagens, representados pelos elementos de fora da região: migrantes descapitalizados, fazendeiros individuais e empresários da segunda metade do século XX. Num preâmbulo ao livro, Inferno Verde, de RANGEL (1914). Euclydes da Cunha contrapõe a idéia de abundância e exuberância da floresta amazônica com a exploração e a pobreza dos trabalhadores: "Ora, entre as magias daqueles cenários vivos, há um ator agora, o homem. O livro é, todo êle, este contraste." 7 "No Amazonas acontece, de feito, hoje, esta cruel antilogia: sobre a terra farta e a crescer na plenitude risonha da sua vida, agita-se, miseravelmente, uma sociedade que esta morrendo .;" (texto copilado no livro Um Paraíso Perdido, organizado por Leandro Tocantins, em 1994:204 - 2a. Edição). Revista TERRIT6RIO, 76 ano 111,nº 5, jul./dez. 3. Ecoturismo e desenvolvimento 1998 sustentável Neste fina) de milênio, todos parecem estar de pleno acordo quanto às idéias de um "desenvolvimento sustentável", que tenta conciliar oeserwoivrmento econômico com preservação da natureza. Em consonância, tenta-se aplicar o princípio básico de "sustentabilidade", ou de durabilidade dos recursos naturais e sociais, à exploração econômica da Amazônia brasileira. Nestes termos, o "turismo ecológico", "ecoturismo" ou "turismo ambiental" emerge como uma das respostas plausíveis aos desafios de gerar rendas e, ao mesmo tempo, de preservar a natureza amazônica. Questiona-se, todavia, a "positividade", que se considera excessiva e perigosa, atribuída tanto ao "desenvolvimento sustentável" quanto ao "ecoturismo", sem todavia vincular um juízo negativo do ecoturismo em si e sem negar as vantagens de um ecoturismo responsável, com discursos e práticas coerentemente comprometidas com os valores sociais e com a heterogeneidade cultural. 3.1. Diretrizes para uma Política de Ecoturismo Desde 1985, o ecoturismo vem sendo discutido no Brasil. No âmbito do governo, a primeira iniciativa de ordenar o desenvolvimento do ecoturismo no Brasil ocorreu em 1987 com a criação da Comissão Técnica Nacional, constituída por técnicos do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis -IBAMA e do Instituto Brasileiro de Turismo - EMBRATUR, para monitorar o Projeto do Turismo Ecológico (MICT/MMA, 1994, p.9). Tal iniciativa tinha entre seus objetivos propor diretrizes para a formulação de uma política nacional de ecoturismo que serviria de base para as políticas regionais como a da Amazônia Legal. Apesar das indefinições do que venha a ser um ecoturismo sustentado para a Amazônia e da pouca infra-estrutura para expandi-lo na região, a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia - SUDAM, como órgão de desenvolvimento regional, e os governos estaduais se mobilizam para estimulá-lo em seus territórios. Neste sentido, o Plano de Turismo da Amazônia - PTA - 1992-1995, no subitem Ecoturismo - Alternativa de Desenvolvimento Sustentado, reconhece que: "A situação atual do ecoturismo no Brasil e, particularmente, na Amazônia é ainda incipiente, pouco se sabendo sobre o que é, realmente, o ecoturismo e quais as suas características. Por conseqüência, menor ainda é sua aplicação efetiva aos aspectos construtivos e operacionais da infra-estrutura existente." (SUDAM/ PNUD, 1992:17) o referido PTA estimula a criação de "pólos" turísticos definidos para toda a Amazônia, Oriental e Ocidental, baseados na mesma concepção de Natureza e discurso ecoturístico na Amazônia 77 pólos de desenvolvimento de François Perroux, anteriormente testados sem muito sucesso para o Nordeste e para a própria Amazônia. Em consonância com O PTA, os governos na Amazônia buscam no turismo, e agora mais ainda no ecoturismo, novas alternativas de desenvolvimento. Para fins de política nacional, segundo o grupo interministerial (Ministério da Indústria, do Comércio e do Turismo e o Ministério do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia Legal), o ecoturismo é conceituado como: "Um segmento da atividade turística que utiliza, de forma sustentável, o patrimônio natural e cultural, incentiva sua conservação e busca a formação de uma consciência ambientalista através da interpretação do ambiente, promovendo o bem-estar das populações envolvidas." (MICT/MMA, 1994:19) A análise do texto produzido pelo grupo interministerial revela que o ecoturismo, tema eixo do documento, é apresentado como uma alternativa oposta ao turismo de massa ou ao turismo convencional. Ao turismo de massa são associados os impactos ambientais negativos, os riscos ambientais e os conflitos de ordem natural (nenhum destes conceitos foram devidamente esclarecidos no texto). Em oposição, o ecoturismo acha-se articulado ao equilíbrio ambiental (relacionado à visão malthusiana da relação entre população e recursos), gerenciamento correto dos recursos naturais, à utilização racional dos recursos naturais e à valorização de cultura local. A afirmação do ecoturismo implica, assim, na negação do turismo de massa. A própria necessidade de ordenamento da atividade de ecoturismo é, todavia, um indicativo de que a associação entre este e a utilização racional e a preservação dos recursos ambientais não é uma decorrência natural. Paradoxalmente, a visão de ecoturismo como oposição ao turismo tradicional de massa insiste na idéia de ecoturismo como um produto, registrada, por exemplo, na mensagem do Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso que abre o documento do MICT/MMA: "O Ecoturismo é um novo produto turístico de real potencial econômico-social e seu desenvolvimento propiciará a divulgação de nosso patrimônio ambiental aos cidadãos brasileiros e, também, de outras Nações, que queiram conhecê-lo e conosco compartilhá-lo." (MICT/MMA, 1994, p. s/n) Embora no texto seja dito que há uma transição do conceito de "produto tu rístico" para um conceito de "viagem" (p.19), o primeiro é repetido freqüentemente no interior do documento, começando por sua introdução (p.9). O uso de terminologias típicas do turismo convencional - "produto 78 Revista TERRITÓRIO, ano 111, n!! 5, jul./dez. 1998 turístico". "recurso comercial de expressiva importância" (p.11). por exemplo - pode ser revelador de uma ausência de mudanças significativas na forma de raciocinar típica da indústria de turismo, denunciada pelo referido documento. No discurso que compõe o documento. as terminologias como comunidade, população, população nativa (p.35) são empregadas em substituição ao conceito de sociedade, não utilizado no texto, mais comprometido, no entanto, com uma abordagem consciente dos processos de mudanças sociais que atingem todas áreas geográficas brasileiras. Um argumento de autoridade é enfatizado no texto através das inúmeras repetições da idéia de natureza como patrimônio, isto é, portanto, de propriedade de uma Nação. O texto transmite assim a idéia de que cabe à Nação deliberar ou ordenar a utilização dos recursos de seu patrimônio (riqueza) natural. Por trás desta idéia estão as concepções de território como domínio da Nação e de soberania nacional sobre os recursos naturais. A referência à Floresta Amazônica, a maior que é feita à Amazônia, consiste nos seguintes termos: "A Amazônia Central abriga o maior complexo hídrico-fluvial da Terra, com cerca de 7 milhões de km2, sendo uma região de dimensões continentais. A hiléia brasileira, com cerca de 3,3 milhões de km2 sobrepõe-se, em grande parte, à área da bacia hidrográfica do Rio Amazonas e caracteriza-se por abrigar grande riqueza biológica, com enorme diversidade de flora e fauna. É considerada uma das últimas reservas florestais do planeta." (M ICT/MMA, 1994: 14) Ao nomear, no caso da Amazônia, o ecossistema floresta e a Amazônia Central, o texto deixa de fora as demais áreas que compõem a região. Chamar a atenção apenas para a floresta, o objeto do imaginário longamente tecido sobre a Amazônia. O tratamento dado a ela como "hiléia", à qual está associada a idéia de "selvagem", é um resgate da imagem a ela atribuída pelos viajantes Alexander von Humboldt, naturalista alemão, e Aimé Goujaud Bonpland, naturalista francês, no início do século XIX. A imagem de "últimas reservas florestais do planeta" é apelativa, com o intuito de chamar a atenção para os risco de desaparecimento de um recurso de forma dramática, muito a gosto dos ecologistas ou ambientalistas contemporâneos. Dentre as diretrizes apontadas, está o aproveitamento ecoturístico das "unidades" de conservação ambiental (MICT/MMA, 1994:16-7). Para tornar o ecoturismo uma realidade nestas áreas, o próprio governo federal cria estímulos através de um discurso ecológico, fundamentado na exuberância da vegetação e na diversidade da fauna e da flora. Parece assim resgatar o mito da natureza ainda intocada, ou não-transformada. Natureza e discurso ecoturístico na Amazônia 79 3.2. As Explorações Turísticas e Ecoturísticas no Pará No mundo inteiro, o turismo explorador das riquezas ecológicas (mesmo sem a utilização da denominação de ecoturismo) e o ecoturismo estão em moda. Revistas internacionais e nacionais trazem ofertas de viagens a ilhas e áreas de reduzida interferência humana, utilizando imagens residuais de "Paraísos", "Eldorados", ou "Santuários" ecológicos, situados em diferentes partes do mundo. A Amazônia não é diferente. A Revista Nosso Pará (1996), num texto intitulado "O paraíso que o mundo desconhece", sobre turismo no Pará, ao se referir às ilhas e praias, utiliza-se com freqüência de referências a "paraíso", natureza "intocada" ou "virgem". Veja alguns exemplos: ... "Em Maracanã está a poética e quase intocada praia de Algodoai ..." (p.144) . ... "como as praias da Marieta, e da Maria Baixinha, na ilha de Itaranajá, praticamente virgens. O acesso até elas permite um inesquecível passeio por um roteiro ecológico onde é possível contemplar os manguezais e ninhais de pássaros." (p.144) ... "Localizado na foz do rio Amazonas, o arquipélago Marajoara é sinônimo de paraíso ecológico." (p.148) ... "Assim é o Pará. Sedutor convite a uma visita ao paraíso amazônico, do qual é a grande entrada. Um manancial de lendas, mistérios e encantos que temperam mais ainda o gostoso de suas belezas naturais e tornarão fatalmente inesquecível o prazer de conhecer." (p.148) O Estado do Pará dirigiu aos empresários do setor turístico um to/der bilingüe (português e inglês),8 preparado pela Secretaria de Estado de Indústria, Comércio e Mineração - SEICOM, PARATUR, Governo do Pará e Ministério do Comércio e do Turismol EMBRATUR, com os seguintes dizeres: 8 Neste fo/der o empenho do Governo do Pará em atrair investimentos turísticos para o Estado é expresso da seguinte forma: "Não há lugar nenhum no Mundo com o potencial turístico da Amazônia. Mas há um lugar na Amazônia que, além desse potencial, ainda oferece incentivos aos empresários, para que eles invistam no seu negócio: o Estado do Pará." "O Governo do Pará está querendo tanto ter a sua empresa no Estado, que está concedendo incentivos fiscais, incentivos financeiros, incentivos de caráter infra-estrutural e compensação de incentivos privados na realização de obras de infra-estrutura pública, para a instalação de novos empreendimentos no território paraense." 80 Revista TERRITÓRIO, ano 111,n!! 5, jul./dez. 1998 "Adentrando o território paraense, você penetra na floresta tropical, em sua maior parte intocada, e toma contato com a sua fiara, talvez a mais rica do mundo, e certamente a mais exuberante em beleza. E vai conhecer também a maior fauna do mundo: 250 tipos de mamíferos, 1.500 espécies de peixes e 1.800 de aves. O turismo ecológico tem seus santuários na Floresta Nacional do Tapajós, Floresta Nacional de Caxiuanã, Floresta Nacional Saracá- Tapera, Floresta Nacional de Tapirapé-Aquiri, Reserva Biológica do Tapirapé, Reserva Biológica do Marajó, Parque Nacional da Amazônia, Parque Estadual da Serra das Andorinhas e Parque Ecológico de Arapiuns." Um exemplo de atuação da iniciativa privada é o folderbilingüe (inglês e francês), intitulado Tours Ecológicos (Ecologícal Tours ou Tours Ecologiques) da empresa Amazon Star - Turismo Ltda. (Belém-PA), onde pode ser lido: "Nossas excursões são dirigidas para todos, independentemente da idade, que possuem um espírito jovem e uma paixão pela natureza. Ninguém deveria deixar-se desencorajar pela ausência de conforto especialmente pelas 24 horas de excursão. Para facilitar o acesso às mais inexploradas e estreitas entradas da baía ou braços de rio, todas as operações serão realizadas em barcos pequenos, cuja capacidade de passageiros tem sido reduzida para alcançar o número operacional de 30 passageiros (8 para passar a noite). Para todos aqueles dotados de um espírito maior de aventura, nossa companhia pode arranjar tours ao longo de rio em canoas infláveis com motor acoplável, com capacidade para 8 passageiros, mediante solicitação. Todos os tours são acompanhados por guias altamente preparados, com grande conhecimento sobre a região, comunidades locais e seus habitantes. Todos estes fatores juntos certamente farão de nossos guias as pessoas certas para levar cada um a descobrir a flora e fauna exóticas, com seus multidiversos elementos da Amazônia." As empresas de turismo assim oferecem viagens de barcos, visitas às ilhas, incluindo caminhadas através de trilhas para observação da fauna e flora e dos aspectos cênicos, cuja novidade principal é o discurso ecológico, ressaltando, além das belezas cênicas, a diversidade biológica das áreas agora alvo do ecoturismo. Os textos dos folders sobre turismo ou ecoturismo, entretanto, quase nunca falam das sociedades locais, de seus modos de vida, modos de produzir, de seus esforços de alcançar progressos técnicos no desenvolvimento de Natureza e discurso ecoturístico na Amazônia 81 suas atividades. Fazem referência aos tipos humanos encontrados e aos personagens mitificados. 9 Quando mencionados, os representantes da sociedade local são tratados apenas de habitante, "comunidade" (vide texto acima citado). A comunidade representa uma visão fragmentada onde se fala de uma parcela da população sem se Importar com sua Inserção num conjunto da sociedade, local e regional. À guisa de conclusão: o papel da imaginação e da Geografia na (re)construção do discurso ecoturístico amazônico A literatura de viagens é rica em imagens circunstanciais, isto é, imagens que dão conta das visões de progresso e ciência particular a época de cada viajante, de seus preconceitos ou de suas experiências vividas num determinado instante e registradas na memória. Seus leitores de diferente tempos, porém, reproduzem-nas, na maioria das vezes, sem sequer problematizá-Ias. As imagens são, assim, registradas e transmitidas a outros. Algumas são fugazes, enquanto outras são perpetuadas. Umas caem definitivamente em desuso, enquanto outras ressurgem de tempos em tempos. As imagens recorrentes, todavia, podem ter seus significados modificados ou atualizados com os contextos e as variações das mensagens que se quer transmitir. "Selva" amazônica, "vazio" demográfico e natureza "virgem", imagens recorrentes na literatura oficial e extraoficial, não são mais do que mitos criados pela ideologia da "conquista" e da integração física e econômica difundidos pelos civilizados da Europa e posteriormente do Brasil. Tais imagens compõem (a) as descrições de natureza virgem da ocupação européia que falam de ausência de organização política, econômica e social, e, portanto, de progresso anterior à chegada do europeu e, mais tarde, dos brasileiros do centro-sul do país, e (b) os discursos justificativos das intervenções governamentais brasileiras de diferentes períodos. As mudanças nas relações sociais numa determinada área deveriam levar à construção de nova imagens amazônicas, isto é, de um novo imaginário a respeito das relações entre natureza e sociedade. Todavia, o uso das imagens do passado no presente se dá, em parte, pela defasagem entre as velocidades dos processos de mudanças e o tempo de desconstrução de um imaginário anteriormente existente, e, em parte, por já terem cumprido seus papéis num propósito específico. --------9 Verifique este fato no texto da Revista Nosso Para (1996:148): "Tendo na figura do vaqueiro marajoara seu tipo humano mais forte, a região seduz o visitante ao permanecer envolvida em um clima de magia traduzido nas lendas e narrativas fantásticas sobre feitiços e seres mitológicos encantados nos lagos e igarapés." 82 Revista TERRITÓRIO, ano 111,nº 5, jul./dez. 1998 Os ecologistas e os promotores do turismo e ecoturismo se agarram às imagens do passado. Em seus discursos (falas, panfletos e folders etc.), as imagens são enunciadas de forma a atrair turistas e ecoturistas. O ecoturista, ingênuo ou desinformado quanto às dinâmicas que movem a vida numa determinada região, fica assim impedido de criar imagens independentes daquelas que lhe foram anteriormente transmitidas. Os promotores do ecoturismo, em seus discursos procuram transportar imagens do passado para o presente, pelo receio de surpreender o ecoturista com a identificação de mudanças do que era antes. Temem causar-lhe frustrações a respeito do que julgam ser o seu desejo de buscar realidades preservadas ou mantidas no passado. Os seres humanos possuem a habilidade para formar imagens mentais e construírem suas representações dos lugares e dos grupos sociais. A atividade de representação do lugar e do trabalho que o transforma corresponde ao ato de pensar ou de conceber idéias acerca de uma realidade. A imaginação, entendida como um processo de criação de imagens mentais, fornece matéria-prima para a construção dos enunciados que compõem discursos de intenções diversas. O papel da imaginação na elaboração de enunciados falso ou verdadeiro merece questionamentos, uma vez que os discursos possuem poder de mitificação e mistificação de verdades. A imaginação é um rico instrumental de análise geográfica. Uma região não existe independentemente das imagens. Todo enunciado discursivo é composto de imagens passíveis de análise pela Geografia. Os geógrafos, como analistas das construções sociais, não podem, entretanto, deixar de problematizar os discursos e de desconstruir mitos e imagens. Neste sentido, a Geografia oferece meios para analisar documentos dos planejadores, textos das agências de turismo e do ecoturismo que difundem imagens específicas de uma área ou região. Na criação e recriação de ambientes, por exemplo, folders do ecoturismo reproduzem discursos, descrevem cenários, ressaltando detalhes, retratando personagens e traçando um perfil particular de populações (e não do conjunto da sociedade). A exemplo do trabalho desenvolvido por MACHADO (1989), os geógrafos estão habilitados a mapear as imagens dos diferentes momentos na história da Amazônia, indagando para cada período identificado quais foram as imagens que contribuíram para confirmar sua unicidade, especificidade e singularidade ou para justificar e legitimar divisões. Uma vez que há sempre uma intencional idade na escolha e uso das imagens, aos geógrafos cabe sempre identificar e analisar os critérios das seleções da imagens com base nas quais funda-se o juízo relativo a uma região. Tais critérios podem ser tanto estéticos, filosóficos quanto políticoideológicos. Os geógrafos podem assim contribuir para a compreensão das mudanças no processo de formação da região ao estudarem as relações historicamente dinâmicas entre (a) o projeto político de nação e o projeto de construção de uma região, e (b) identidade cultural e identidade regional. Natureza e discurso ecoturístico na Amazônia 83 As imagens são quase sempre parciais. Elas não dão conta da totalidade da região. Há sempre o externo às imagens, o que fica de fora, o nãorepresentável e, portanto, o fora da história. Ao silenciar ou não-incorporar ao discurso verdadeiro tudo que não se vê ou não se quer representado, impõe-se uma verdade excludente. Assim, é preciso que a Geografia, ao estudar o discurso da região, reflita sobre o poder da imaginação de afirmação/negação, de separação/síntese, de desconstrução/construção da região amazônica. Finalmente, as informações geográficas exercem também um importante papel na construção do olhar a natureza, um olhar que busque nela identificar os processos de suas interações com a sociedade que a moldam e que é por ela moldada. Cabe aos geógrafos traçarem um retrato mais próximo da realidade contemporânea. Sem dúvida, uma Geografia que dê conta das imagens mais ricas de significados e que forneça um retrato mais preciso da região contribuirá para renovar o discurso ecoturístico, voltado para a estética, ao mesmo tempo que para a natureza contínua e dinamicamente transformada pela sociedade. Bibliografia BOURDIEU, P. (1974): A economia das trocas simbólicas. CALVINO, I. (1995a): Por que ler os clássicos. ---- ( 1995b): As cidades invisíveis. São Paulo: Perspectiva. São Paulo: Companhia São Paulo: Companhia das Letras. das Letras. COELHO, M. C. N. (1994): Desenvolvimento sustentável, Economia Política do Meio Ambiente e a problemática da Amazônia. In: D'lncao, M. e Silveira, I. (orgs.): Amazônia e a crise da modernidade. Belém: MPEG, pp. 381-387. CUNHA, E. da. (1994): Um paraíso perdido. Ensaios, estudos e pronunciamentos sobre a Amazônia. (org. por Leandro Tocantins). Rio de Janeiro: José Olympio Editora. DA MAnA, R. 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