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04
OUTUBRO
2010
CENÁCULO
Boletim on line do
Museu de Évora
Os artigos são da
responsabilidade dos
autores e não expressam
necessariamente a opinião
do Museu de Évora.
A utilização integral ou
parcial dos textos do
boletim deve ser sempre
acompanhada pela citação
do nome dos autores, título
dos textos e a referência A
esTa publicação on-line.
COORDENAÇÃO
António Camões Gouveia
DESIGN GRÁFICO E REVISÃO
Celso Mangucci
p eriodicidade
semestral
M u se u de É vora
Largo Conde de Vila Flor
7000-804 Évora
TLF 266 702 604
E-mail: [email protected]
Joaquim Oliveira Caetano Os “Morgados” do Museu de Évora
ÍNDICE
OS “MORGADOS” DO MUSEU DE ÉVORA.
Joaquim Oliveira Caetano
A TALHA MAIS MODERNA. O PERCURSO
ARTÍSTICO DE MANUEL E SEBASTIÃO
ABREU DO Ó. Celso Mangucci
Os azulejos do Mosteiro de São Bento
de Cástris. Teresa Verão
São Manços: da lenda à realidade
arqueológica. Patrícia Maximino
Joaquim Oliveira Caetano nasceu em Beja,
em 1962, e apresentou a sua tese de mestrado na Faculdade de Ciências Humanas
e Sociais da Universidade Nova de Lisboa,
em 1997. Publicou inúmero artigos sobre a
História da Arte em Portugal, dedicando-se
principalmente ao estudo da pintura. Foi
director do Museu de Évora entre os anos de
1999 e 2010 e actualmente integra os quadros
do Museu Nacional de Arte Antiga.
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os “Morgados” do Museu de Évora
Joaquim Oliveira Caetano
O Museu de Évora possui 15 pinturas dadas como da produção de José António Benedito
de Faria e Barros, conhecido como “o Morgado de Setúbal”. Mesmo considerando que três
destas pinturas podem ter atribuição discutível, é um núcleo importante de obras do pintor,
actualmente talvez o maior, depois do grande grupo de 26 pinturas do Museu Carlos Machado
de Ponta Delgada, que pertenceu à antiga colecção da Condessa de Cuba. Todas as pinturas
datam das décadas de 1780 e 1790 e, à excepção de duas, todas pertenceram à colecção de
Frei Manuel do Cenáculo.
Esta ligação do Morgado de Setúbal com o futuro arcebispo de Évora, e um dos maiores
coleccionadores portugueses do seu tempo, começou por iniciativa do pintor que ofereceu
a Cenáculo um retrato de Hipócrates, acompanhado de uma carta que já tivemos ocasião de
publicar:
“Excelentíssimo e Reverendíssimo Senhor
Eu quiz ter a honra e a satisfação de offerecer a Vª Exª esse retrato, porque julgo que não
he muito facil o encontralo em colecções de pintura; Como sei que Vª Exª he apaixonado por
esta arte, me re rezolvi a fazer hum painel em que a minha mão ainda tímida não poude dar
aquelles toques vantajozos que escapão das mãos dos Mestres; e por este motivo desculpará
V. Exª os deffeitos que devizar, considerando, o quadro como produção de hum genio que
ainda não tem ellegido methodo para poder dar a cada objecto o tom, e o colorido que lhe
são proprios.
Eu sou de Vª Exª o mais humilde e obediente servo
Joze Antonio Benedito Soares de Faria e Barros”1
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Joaquim Oliveira Caetano Os “Morgados” do Museu de Évora
A carta não está datada, mas o retrato ainda
existe e tem no verso a assinatura latinizada
e a data de 1787. Esta data e o documento são
importantes de várias formas. Mostram-nos,
por exemplo, como a fama de coleccionador
de Cenáculo era generalizada e também, de
algum modo, como a sua colecção de pintura
tinha uma concepção mais temática, mais
baseada na invulgaridade dos retratados, do
que propriamente na qualidade das obras
que a constituíam. Jozé Benedicto apela
para a raridade da representação, apesar
dos defeitos que reconhece à pintura. O facto
mais importante é a relação da data com a
pintura.
artista, o escultor Pedro Baptista “mestre
na arte de escultura natural da freguesia de
Santa Catarina do Monte Sinai e morador na
Rua Direita nesta freguesia de Santos o Velho
ambas nesta cidade que disse ser da idade de
sessenta e cinco anos”3 que, aliás, não conhecia José Benedito nem a sua família mais
próxima. Em todo o processo, as dezenas de
pessoas que nele depõem mencionam-no
apenas, e recorrentemente, como “pessoa
que se trata com limpeza e bom tratamento
do que lucra de suas fazendas” ou “que trata
das fazendas de seus pais” e “vive limpa e
abastadamente com bom tratamento tudo
precedido do que seus pais lhe dão”.
Em 1787, Jozé Benedito pintava incipientemente como a pintura documenta e ele
próprio concede ao falar da sua mão “ainda
tímida”, estar ainda no princípio das suas
experiências artísticas, como quem “não
tem ellegido methodo para poder dar acada
objecto o tom, e o colorido que lhe são proprios”.
A residência em Mafra e a circunstância de
serem pintores deve ter criado a ideia da
ligação de aprendizagem, mas a pintura do
Morgado é, como notou José Augusto França,
tipicamente um caso de autodidactismo4.
Do ponto de vista estritamente técnico a sua
pintura denota uma ausência de prática de
ateliê com deficiências na preparação das
telas e na utilização dos aglutinantes, que
criam um típico engelhamento nos reversos,
com linhas de perpassamento do óleo e um
estalado largo e cortante, que se desenvolve
em espirais fracturadas como uma teia de
aranha, o que parece de facto indicar uma
aprendizagem individual desamparada de
direcção.
Esta afirmação parece pôr em causa a fonte
memorial mais perto da vida do Morgado, a
Colecção de Memórias de Cirillo Wolkmar
Machado2, que atribui ao pintor uma aprendizagem com Vieira Lusitano, que parece
de todo inverosímil se considerarmos que a
pintura do Morgado era ainda tão incipiente
em 1787 e uma aprendizagem com o Lusitano
só poderia ter acontecido antes de 1770.
É muito provável que José Benedito tivesse
conhecido o Lusitano, pois ambos viveram
em Mafra até essa data, tendo o seu avô,
o sargento mor António Soares de Faria, a
responsabilidade de Tesoureiro das Reais
Obras de Mafra, na altura em que o pintor
habitava no convento. Mas a família estabeleceu-se em Setúbal, em 1770, tinha António
Benedicto 18 anos, e não consta que tivesse
nenhum tipo de aprendizagem da arte.
Aliás, no processo para familiar do Santo
Ofício que requer e lhe é concedido, em 1774,
não se menciona nada desta aprendizagem,
nem sequer um especial interesse pelo meio
artístico. Nas dezenas de testemunhas arroladas para o processo apenas se conta um
Do ponto de vista artístico a análise dos primeiros anos da sua produção, com o recurso
à datação das telas que faz frequentemente,
mostra-nos uma evolução enorme que também parece indicar um esforço individual e
solitário. Bastará compararmos, limitandonos aos exemplares do Museu de Évora, as
obras mais antigas, como este retrato de
Hipócrates, ou “Peças de Cozinha, Gato e
Galinha”, de 1782, com as obras mais complexas dos anos 90 como “Aves e Utensílios
de Cobre” ou “Pavões e Galo”.
Na obra inicial, não só o tratamento é incipiente, como a composição é de tal forma
simplificada que parece apenas que a pintura
foi dividida em quatro partes, ocupando cada
figura uma delas, de forma que se perde de
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1. Morgado de
Setúbal, Retrato
de Hipócrates,
1787.
Museu de Évora,
ME 652.
Foto do autor.
todo o relacionamento entre os vários elementos da pintura, denotando uma pobreza
típica da iniciação autodidacta.
nas nossas bibliotecas referiremos o Traité
Desde o início do século XVIII, ou mesmo
da centúria anterior, que vários manuais de
pintura se dirigiam não só aos aprendizes de
pintura mas também a um público crescente
de amadores. Para nos limitarmos às obras
francesas, que tinham mais influência entre
nós e permanecem com alguma abundância
Boutet, com sucessivas edições durante
de Mignature pour Apprendre Aisément à
Peindre sans Maître, Paris, 1672, de Claude
mais de um século até 1817 e traduções
nas principais línguas europeias; a obra de
Roger de Piles, nas suas várias versões (Les
Premiers Eléments de la Peinture Pratique,
Paris 1684, Cours de Peinture par Principes,
Paris, 1708, Elements de la Peinture Pratique,
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2. �����������
Inscrição
no verso do
Retrato de
Hipócrates,�����
1787.
Museu de Évora,
ME 651.
Foto do autor.
Paris, 1766) e, talvez sobretudo, o tratado
de Gerard Lairasse, Le Grand Livre des
Peintres, ou L’art de la Peinture consideré
dans toute ses parties, com variadíssimas
edições em diversas línguas europeias entre
1701 e 1817, incluindo edições parcelares em
português5, em 1801. A juntar a estas obras
maiores devemos somar pequenos tratados
como Le Moyen de devenir Peintre en Trois
Heures et d’exécuter au pinceau les ouvrages
des plus grands Maîtres, sans avoir appris
le dessein, Paris 1756 (e 1772), com tradução
portuguesa6, em 1801, que, embora incida
sobre a pintura de gravura colada em vidro,
tem utilidades práticas na técnica da pintura,
e outras obras gerais com uma forte componente de ensino prático das artes, como a
obra do espanhol Bernardo Monton, Segredo
das Artes Liberais e Mecânicas (Madrid,
1760) editada na tipografia Rollandiana em
1818, ou os Segredos Necessários para os
Officios, Artes e Manufacturas... extrahidos
da Encyclopédia..., Lisboa, Officina de Simão
Thaddeo Ferreira, 1794; sem esquecermos a
reedição, em 1767, da velhinha, mas sempre
muito divulgada, Arte Poetica da Pintura
Symmetria e Perspectiva (1615) de Philippe
Nunes, o tratado prático português mais
conhecido.
José Benedicto por certo tinha acesso a
muitas destas obras nas bibliotecas das
casas que frequentava, pois alguns dos
coleccionadores, como Cenáculo, eram
também, e sobretudo, bibliófilos detentores
de grandes bibliotecas. O próprio pintor teria
um razoável número de livros, pois embora
nos seus inventários apareçam apenas duas
obras individualizadas7, para o registo dos
seus bens, após a morte súbita, foi nomeado
o professor de gramática Félix Vidal Gacha
para avaliador dos livros “por não haver nesta
villa livreiro”8, necessidade que indica algum
vulto destes bens, aliás avaliados em 28.680
rs., verba de alguma substância para livros
usados9. Cirillo Volkmar, que já citamos
atrás, diz que ele “amava as bellas letras, e
lia livros Latinos, Francezes, Italianos, etc.
pelo que é de todo provável que tenha sido
em boa parte esta literatura de divulgação
que lhe serviu de base à “muita applicação à
arte da pintura”10.
As suas primeiras obras mostram com
evidência as dificuldades do autodidactismo,
quer do ponto de vista técnico, quer artístico.
Muitas vezes são figuras isoladas, centradas
no quadro, como o “Gato” do Museu de
Évora, não datado, mas por certo do início
da carreira, cerca de 1780, sem a qualidade
da representação da textura e da côr de
obras similares uma década posteriores,
como o “Galo” vendido há não muito tempo
numa leiloeira de Lisboa, datado de 1791,
com um vigoroso tratamento da plumagem
e, frequentemente são réplicas de outras
pinturas.
Glória Nunes Riso Guerreiro, que, em
1963, realizou uma pequena exposição de
pinturas do Morgado no Museu de Setúbal,
tinha já dois anos antes, na sua tese para
conservadora, mostrado uma série de pinturas de José Benedito que copiavam obras
seiscentistas portuguesas e espanholas12.
O que é mais curioso, é que as réplicas,
frequentemente, como no caso da Quinta
dos Perus, na Arrábida, permaneciam no
sítio dos originais, nas mesmas colecções,
o que denota, quanto a nós, uma familiaridade entre os proprietários e o artista muito
grande. Não por acaso, certamente, as
obras do Morgado estavam maioritariamente em grandes conjuntos, na Condessa de
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Morgado de
Setúbal, Mulher e
Perú, ������������
1792. Museu
������
de Évora, ME 643.
Foto IMC - DDF
José Pessoa.
Cuba, no Palácio Pombal, em Cenáculo, nas
Quintas das Torres, do Machado, dos Perus,
de Aranjuez, no Palacete Cabral Ferreira
em Santiago do Cacém, nas colecções dos
Marqueses de Borba e do Conde de Farrobo,
um conjunto de locais e personalidades não
muito distantes geograficamente e com
evidentes proximidades políticas, mais ou
menos todos descendentes do pombalismo.
Repetições de pinturas seiscentistas são
as duas naturezas mortas do Museu de
Évora, curiosamente as duas pinturas que
não pertenciam à colecção Cenáculo, mas
foram mais tarde compradas por Cunha
Rivara para a Biblioteca Pública de Évora.
As duas obras são par, mas se a técnica
com que dá a textura e a cor aos frutos é
idêntica, já a composição da Cesta de Frutas
é muitíssimo mais complexa, com vários
planos de profundidade, sem rigidez na
relação entre os vários elementos do quadro
e com uma paisagem enquadradora de belo
efeito, elemento que foi sempre insuficientemente tratado na obras do Morgado. Esta
comparação mostra-nos estarmos perante
obras realizadas no mesmo tempo, mas
sobre protótipos de uma qualidade muito
diversa. Da cesta de frutos conhecemos,
aliás, por fotografia, várias réplicas, reproduzidas algumas na já citada tese de Glória
Guereiro. O Morgado domina claramente
primeiro as texturas e o colorido, antes de
melhorar a composição, o que exigiria maior
aprendizagem de desenho e maior prática
de academia. Só perto dos anos 90 as suas
pinturas começam a mostrar maior atrevimento neste aspecto. A Natureza Morta com
Fogareiro, Perna de Cordeiro e Cebolas, de
1796, é um exemplo dessa mudança. Tratase já de uma composição própria, onde os
elementos são mostrados de forma simples
mas relacionada, aproximando-se mais da
captação de um interior do que da composição artificiosa dos elementos característica
da natureza-morta.
Três outras composições do Museu de
Évora documentam outra faceta muito
presente na obra do Morgado de Setúbal
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4. Morgado de
Setúbal, Peru e
Galos, 1790. Museu
de Évora, ME 644.
Foto IMC - DDF
José Pessoa�.
- a representação de aves, que parece ter
pintado insistentemente nos primeiros anos
da década de 1790. São elas Peru e Galos,
de 1790, e Pavões e Galo e Peru e Patos,
ambos de 1791. As duas primeiras são das
melhores peças do pintor do ponto de vista
da organização dos elementos da pintura,
complexas e plausíveis, mas é mais uma vez
nas texturas e na exuberância das cores, de
certo exagero de vibração e contraste, que o
Morgado se compraz.
Do ano de 1792, é outra tela também com
aves, a Mulher e Peru, cena curiosíssima de
drama culinário, em que um peru, à direita
da imagem observa uma mulher, vestida
com despropositada elegância para a tarefa,
que afia num alguidar a faca fatídica, enquanto, pela porta entreaberta e estranhamente central, como que dividindo os dois
protagonistas maiores da cena, um gato se
esquiva com uma sardinha na boca. Ainda do
mesmo ano, intensamente produtivo, é outra
pintura do Museu de Évora, os Três Músicos,
conjunto de meias figuras, com um cego ao
centro tocando sanfona rodeado por dois
miúdos, um tocando pandeireta e o outro
pronto para receber as moedas dos ouvintes,
composição repetida com variantes pelo pintor inúmeras vezes e que corresponde a um
dos mais célebres modelos do Morgado de
Setúbal, os conjuntos de três meias figuras,
onde podem entrar cegos, negros, velhos,
exuberantes raparigas, sempre retratadas
com um evidente prazer na representação
dos tipos populares.
A produção destes anos talvez esteja ligada
ao facto do pintor se ter então finalmente
libertado dos afazeres políticos que o ocupavam e para os quais não era talhado. Em
Setembro de 1790, a Rainha Dona Maria
aceitou um pedido de José Benedicto de
Faria e Barros, para que o escusasse de ser
almotacé da Vila de Setúbal, como era normal
naqueles que deixavam o cargo de vereador.
O pintor tinha ocupado este cargo, mas,
nas suas próprias palavras do documento
régio “em veneração da honra com que Eu o
distinguira, mas não exercitara em razão do
seu genio melancólico e repugnante a tudo
que eram cargos”13.
A última pintura do museu, proveniente da
colecção Cenáculo é a Fiandeira, mulher de
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idade e popular, vista de perfil a fiar, datada
de 1796, um modelo do qual também conhecemos várias réplicas executadas pelo pintor. Permanece sem explicar-se cabalmente
se esta profusão de réplicas e variantes
que aparece na obra de José Benedicto se
devia a uma procura da perfeição, característica da pesquisa autodidacta e amadora,
ou se destinava a fornecer um mercado de
compradores e a satisfazer necessidades
económicas.
O processo para familiar da inquisição, que já
citámos, dá-o como vivendo folgadamente da
gerência dos negócios dos pais, mas Cirillo
diz expressamente que “como os allimentos
que seu pae lhe dava não bastassem para as
despezas que fazia, usou da Arte como professor até os annos 1804, tempo em que pela
morte de seu pae herdou a casa que rendia
10 a 12 000 cruzados”.
A mesma ideia é repetida pelo anónimo
memorialista14 da Revista de Setúbal, de 22
de Outubro de 1908 que afiança que “viveu
sempre com certas difficuldades de dinheiro,
o que prova ser pouco rendoso o morgadio,
valendo-se por vezes do pincel para ganhar
a vida”.
Sabemos de facto que, mesmo em vida de
seu pai, em 1798, fez acertos nas heranças
a receber, abdicando de todos os bens que
lhe pudessem caber pela herança paterna,
à excepção dos vinculados ao Morgadio em
favor dos outros herdeiros ou credores do
pay”15, o que indica talvez ter recebido antecipadamente algumas verbas.
É provável mesmo que este episódio neste
ano se prenda com desavenças familiares
entre António Benedicto e o pai, de quem objectivamente dependia. Já em Janeiro desse
ano António José Bernardo Soares de Faria
e Barros, pai do pintor, tinha deixado Setúbal
para se instalar em Lisboa “com a sua família e dependencias da sua casa”, deixando o
pintor nas “cazas da sua habitação na Praya
da Alfandega desta villa, pertença de um dos
morgados que administrou seu pai”. António
Benedicto ocupava todas aquelas casas “à
excepção da loja” e é descrito no documento
de certificação de residência como “huma
das principaes pessoas desta villa por si,
seos pays e avós e por todos os seus ascendentes”16. Talvez as desavenças familiares,
se é que as houve, ou pelo menos a certa
mudança dos progenitores para Lisboa se
devesse à “paixão irregular” que Cirillo diz
que o pintor nutria, de onde resultou uma filha havida numa mulher casada, que o pintor
não conseguiu legitimar.
5
Morgado de
Setúbal, Peças de
Cozinha com Gato
e Galinha, 1782.
Museu de Évora,
ME 651.
Foto do autor.
Infelizmente, a abundante documentação
sobre o Morgadio de Setúbal que o Marquês
de Faria doou à Torre do Tombo em 1935,
constante de 3 arcas e 3 caixas com documentos e bens, permanece na sua maioria
por inventariar e na sua totalidade sem livre
acesso, de forma que estes e certamente
muitos outros dados sobre o pintor, duzentos anos depois da sua morte estão ainda,
desnecessariamente, no esquecimento.
Em 1804, o pai faleceu e José Benedicto ficou
com o Morgadio nos cinco breves anos que
mediaram até à sua morte, de surpresa (“de
um insulto appopletico”, diz Cirillo), sem que
tivesse recebido os sacramentos da Igreja17.
Curiosamente não conhecemos pinturas
suas datadas entre a recepção do Morgadio
e a data da morte, o que faz crer que a administração da casa não era tão pouco rendosa
como isso ou não lhe deixaria tempo para a
pintura. Os inventários de bens feitos depois
da sua morte permitem concluir por uma
situação financeira de grande desafogo18,
que exclui alguma ideia de dificuldade na
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fase final da sua vida, que passa por vezes
nalgumas notícias.
O que é certo é que, pelo menos logo depois
da sua morte, a fama e o valor das obras do
Morgado de Setúbal não parou de crescer,
talvez mais pela nobreza do autor e pela
grandeza dos que possuiam conjuntos das
suas obras. Em 1847, já o Conde Raczynski
se espantava das 30 moedas que pediram
à duquesa de Bragança por um “Velho em
Oração”, da autoria de António Benedicto.
Mesmo este autor, que justamente criticava
o colorido terroso, o fraco desenho e a forma
grosseira de pintar, não deixava de considerar que tinha talento “para representar a
natureza com verdade”19. Também Cirillo
apresenta a mesma duplicidade de opinião,
entre a consciência do carácter naive de muitas das suas obras e a atracção pelo verismo
inusitado entre nós dos seus modelos: “Pozse a pintar de curiosidade toda a sorte de
objectos que lhe parecião pinturescos, como
aves, animais, utensílios de cozinha, frutos,
labregos notáveis, hortaliças etc.; e apezar
da extrema secura, e dureza do seu pincel,
e da má composição dos seus paineis, ha
em muitos delles cousas tão naturaes, que
agradão aos mesmos Artistas”20. Taborda,
menos crítico, louva-lhe as cópias, os retratos e diz que conseguiu ser “um perfeito
imitador da natureza na reprezentação de
fogos, metais e penas e pelos de animais”,
acrescentando a anedota dos cães que se
arremessavam contra um gato pintado por
ele, espécie de versão nacional e tardia, da
célebre história de Plínio dos corvos debicando as uvas pintadas por Zeuxis21.
Mas talvez a apreciação fundamental sobre
a pintura do Morgado seja a menção de
Garrett nas Viagens na Minha Terra, descrevendo uma velhinha “sentada na dita
cadeira, e diante de si tinha uma dobadoira,
que se movia regularmente com o tirar do
fio que lhe vinha ter às mãos e enrolar-se
no já crescido novelo. Era o único sinal de
vida que havia em todo o quadro. Sem isso,
velha e cadeira, dobadoira, tudo pareceria
uma graciosa escultura de António Ferreira
ou um daqueles quadros tão verdadeiros do
morgado de Setúbal”.
É para nós extremamente importante esta
valorização do introdutor do Romantismo
literário em Portugal, colocando-se exactamente sob o mesmo prisma de observação
do Morgado. De facto o interesse do pintor
sobre o povo e os objectos rudes como modelo pinturesco trazem à pintura portuguesa
uma novidade que não se pode quanto a
nós distanciar da abertura romântica ao
vernáculo e à descrição do rude, do popular
e do estranho quotidiano e, neste sentido, o
Morgado de Setúbal está primeiro aberto ao
Romantismo do que qualquer outro pintor
português, pelo que não é de estranhar que
a sua fama permanecesse nas gerações seguintes, mais embuídas do mesmo espírito.
Não deixa de ser curioso que para aclarar a
sua descrição Garrett se sentisse obrigado a
explicar em nota quem era António Ferreira,
o famoso barrista, comparando as suas
figurinhas “à mesma graça e naturalidade
flamenga com que pintava o Morgado de
Setúbal”, parecendo-lhe desnecessário
qualquer esclarecimento sobre este.
6. Morgado de
Setúbal, Natureza
Morta com
Melancia, Uvas
e Figos, c. 1785.
Museu de Évora,
ME 651.
Foto do autor.
Já menos explicável é que essa fortuna tenha
continuado até aos dias de hoje, manifestada
nos altíssimos preços que atingem as suas
obras em comparação com bem melhores
pintores portugueses coevos e que leva mesmo a que muitas obras de autoria duvidosa,
mas de temática afim, lhe sejam atribuídas
com alguma ligeireza. De entre as tradicionalmente atribuídas no Museu de Évora,
CENÁCULO Boletim on line do Museu de Évora | n.º 4 | Outubro 2010 | página 10
Joaquim Oliveira Caetano Os “Morgados” do Museu de Évora
três levantam-nos algumas dúvidas de atribuição. São três obras de pequeno formato,
uma representando uma Vendedora Negra
de Castanhas com duas Crianças (ME 650),
atribuída o Morgado no inventário de Gabriel
Pereira22, outra um Velho Pedinte com o
chapéu cheio de castanhas (ME 810)23 e uma
Avarenta contando dinheiro, descrita no inventário de Cenáculo como do Morgado. Esta
última é uma versão de uma pintura perdida
de Abraham Bloemaert (1564-1651), gravada
várias vezes por Salomon SaveriJ em 1625 e
por Hendrick Blomaert, como emblema da
Avareza. Mesmo tratando-se de um tema de
uma pintura internacional, o carácter popular da representação levou imediatamente
à atribuição ao Morgado, o que demonstra
com evidência, como a sua pintura se tornou
uma referência em Portugal de um modo de
expressão que representava com verdade as
coisas simples, a pintura dos géneros menores, denegrida pela Academia, mas cada
vez mais ao gosto da agitada sensibilidade
romântica.
7. Usurária.
Mulher contando
dinheiro à luz da
vela. Museu de
Évora, ME 1422.
Foto do autor.
9 Idem, fl. 28 vº
10 Taborda, 1922, p. 275-276.
11 Palácio do Correio Velho, Leilão 69 de 19 de
Dezembro de 2006, lote 117.
12 Guerreiro, 1961.
13 Reproduzido em Primeiro Centenário..., 1909.
14 Artigo reproduzido em Primeiro Centenário...,
1909.
NOTAS
1 Caetano, 1997, pp. 9-17
2 Machado, 1922, pp. 176-177.
3 Informação de Geraçam de Jozé Antonio
Benedicto da Gama e Barros que vive das suas
fazendas solteiro filho de António Jozé Bernardo
da Gama e Barros natural da villa de Mafra,
freguesia de Santo André deste Patriarcado e
morador nele de Setúbal, 7 de Junho de 1774,
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Tribunal do
Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações-José,
maço 142, doc. 2809. fl. 64 vº
4 França, 1966, vol. I, p. 123.
5 Princípios do Desenho..., 1801 e Princípios da arte da
gravura..., 1801.
6 O Meio de se fazer pintor em tres horas..., 1801
7 ANTT, Fundo: Morgado de Setúbal, Lº 3, fl. 89:
“hum livro ao comprido com estampas de lições”
e “As Metamorfoses de Ovídio com estampas de
Pecord em fólio encadernado”.
8 ANTT, Fundo: Morgado de Setúbal, Livro 2, fl.
12.
15 Termo de abstenção de herança que assina
o suplicante José António Benedicto Soares de
Faria e Barros, 6 de Março de 1798, Cartório de
António Cerqueira Cardoso, transcrito em Primeiro
Centenário..., 1909.
16 Certificação de residencia de José António
Benedicto Soares de Faria e Barros passada pelo
escrivão dos officios do juízo da correyção desta
notavel villa de Setúbal, José Ignacio de Oliveira
em 16 de Janeiro de 1798, transcrito em Primeiro
Centenário..., 1909. Nas mesmas casas morava
como seu inquilino um Francisco Falcão, maltez
de nação, em julho de 1798, o que pode confirmar
a ideia de necessidades económicas do pintor por
esta época.
17 Livro 5 dos Óbitos da Igreja da Graça de Setúbal,
assento de 12 de Fevereiro de 1809 “faleceu, solteiro, não recebeu os sacramentos porque morreu
de repente”. Tinha 56 anos, pois nascera em 21 de
Abril de 1752, em Mafra, tendo recebido baptismo
a 29 de Abril. Livro dos Batizados da freguesia de
Santo André de Mafra, fl. 93. Teve como Padrinho
o bispo de Macau. Documento transcrito no
CENÁCULO Boletim on line do Museu de Évora | n.º 4 | Outubro 2010 | página 11
Joaquim Oliveira Caetano Os “Morgados” do Museu de Évora
citado processo de Habilitação, fl. 9. Vide também
Descendências em Linha recta de José Augusto
Maria Soares de Faria Barros e Vasconcellos
Administrador do Morgado de Setúbal e Breves
Apontamentos sobre “Farias” e” Barreiros”,
Buenos Ayres, Typographia Portugueza, 1865
Machado (1922), Cirillo Volkmar, Colecção
18 Além dos rendimentos do Morgadio os avaliadores dos bens traçaram o seguinte quadro em
6 de Dezembro de 1809: fl. 28 vº e seg. Movel de
madeira 57$880/ Roupa branca e de fatto 61$610/
Cobres de Cozinha 6$100/ Arame 5$800/ Ferro e
cobre 1$840/ Estanho 480/ Loiça e vidros 17$075/
Pinturas e Lustre 283$400/ Livros 28$680/
Prata 114$650/ Dinheiro em poder do cabeça de
cazal 2:948$550/ Dinheiro que se acha no cofre
3:002$580/ Dívidas antigas por cobrar 192$800/
Lenha de Sepa 21$600/ o Monte Mayor na villa
de Mafra 6:743$045/ Dividas Passivas 848$981/
Monte menor 5:894$064. ANTT, Fundo Morgado
de Setúbal, Lº 2, fl. 28.
O Meio de se fazer pintor em tres horas...
19 Raczynski, 1847, pp. 202-203. Veja-se também
do mesmo autor, (Raczynski, 1846, pag. 357), em
que o critico avalia as obras da colecção Cenáculo,
dizendo “qui n’ont pas grandement accru mon
estime pour son talent”, acrescentando: “On voit
qu’il était né avec une certaine disposition à saisir
avec verité les caractères des figures, mais on
voit aussi que son talent n’a pas été sagement
dirigé. Il peignait grossièrement, ou plutôt on voit
qu’il ne savait pas peindre; mais qu’il lui eût été
facile de l’apprendre”.
de Memórias Relativas às vidas dos Pintores
e
Esculptores,
Architectos
e
Gravadores
Portuguezes..., 2ª ed. Coimbra, 1922, (1ª ed.,
Lisboa, 1823).
(1801), e de executar com o pincel as obras dos
Maiores Mestres sem se ter aprendido o desenho:
tradizido do Francez. Lisboa, Tipografia do Arco
do Cego, 1801
Pereira (1903), Gabriel, A Collecção de desenhos
e pinturas da Bibliotheca de Évora em 1884.
Lisboa: Officina Typographica, 1903.
Primeiro Centenário... 1909 da Morte do
Célebre Pintor MORGADO DE SETUBAL José
António Benedicto da Gama de Faria e Barros.
Milão: Typographia Nacional de V. Ramperti,
1909.
Princípios da arte da gravura... (1801), tras-
ladados do Grande Livro dos Pintores de Gerardo
Lairesse Livro Decimo Terceiro; para servirem de
appendice aos Principios do Desenho do mesmo
author, em benefício dos gravadores do Arco do
Cego. Lisboa: na Typographia Chalcographica,
Typoplastica, e Litteraria do Arco do Cego, 1801.
20 Machado, 1922, p. 176-7
Princípios do Desenho... (1801) tirados do
21 taborda, 1922, p. 276.
Grande livro dos pintores, ou Arte da Pintura de
22 Pereira, 1903, p. 21.
Gerard de Lairesse: traduzidos do francez para
23 Pereira, 1903, p. 19
beneficio dos gravadores do Arco do Cego, de
Ordem e debaixo dos Auspicios de Sua Alteza Real
o Principe Regente N. S. Lisboa: na Typographia
BIBLIOGRAFIA
Caetano (1997), Joaquim Oliveira, “O Morgado de
Setúbal, um caso curioso na pintura portuguesa
Chalcographica, Typoplastica, e Litteraria do Arco
do Cego, 1801.
de finais de Setecentos” in Catálogo da II Bienal
Raczynski (1846), Le Comte A., Les Arts en
de Antiguidades. Lisboa: Associação Portuguesa
Portugal, Paris, Jules Renouard et Cª, 1846,
de Antiquários, 1997.
Raczynski (1847), Le Comte A., Dictionnaire
França (1966), José-Augusto, A Arte em Portugal
Historico-Artistique du Portugal, Paris, Jules
no Século XIX, II vols. Lisboa: Livraria Bertrand,
Renouard et Cª, 1847,
1966.
Guerreiro (1961), Glória Nunes Riso, Subsídios
para o estudo da Natureza Morta em Portugal,
Lisboa, 1961, dissertação policopiada existente na
Taborda (1922), José da Cunha, Regras da Arte
da Pintura..., 2ª ed. Coimbra, 1922, (1ª ed. Lisboa,
1815)
Biblioteca do Museu Nacional de Arte Antiga.
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