88 PEREIRA UM TRANSEUNTE TABUCCHIANO Patricia Peterle
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88 PEREIRA UM TRANSEUNTE TABUCCHIANO Patricia Peterle
88 PEREIRA UM TRANSEUNTE TABUCCHIANO Patricia Peterle Universidade Federal de Santa Catarina Resumo: Afirma Pereira (1994) é mais um livro que ajuda a compor o grande puzzle que é a obra do escritor italiano Antonio Tabucchi. Alguns temas já presentes em outros escritos, aqui, são recuperados e redimensionados, como a figura de Fernando Pessoa e a cidade de Lisboa. Pereira, o protagonista, é um transeunte dos espaços lusitanos. A relação entre o protagonista e o espaço urbano à sua volta se apresenta como um dos grandes aspectos desta trama imbricada de múltiplas vozes e formas de diferentes significados que a tornam polifônica e polimórfica; adjetivos que podem ser justificados num olhar mais atento. Palavras-chave: Literatura Italiana; Antonio Tabucchi; Espaço urbano; Legibilidade. Às vezes o espelho aumenta o valor das coisas, às vezes anula. Nem tudo o que parece valer acima do espelho resiste a si próprio refletido no espelho. As duas cidades gêmeas não são iguais, porque nada do que acontece em Valdrada é simétrico. Italo Calvino Antonio Tabucchi, como Italo Calvino, sente-se atraído por essa rede tramada e delineada a partir das infinitas relações nela presentes e representadas. Esse complexo emaranhado nada mais é do que a cidade, construções de ordem vária, arquitetônicas, urbanísticas e sociais. O espaço urbano e seus elementos, praças, ruas, bares, jornais, monumentos não servem ao autor italiano como um simples cenário. Constituem, sem dúvida, o pano de fundo em que o enredo se desenvolve. Mas não apenas isso. É partícipe e ativo em sua narrativa, desempenhando muitas vezes um papel definido e relevante. Não é, portanto, uma bela e singela paisagem que serve de mural para aquilo que acontece no seu interior. É também um texto imbricado de múltiplas vozes e formas de diferentes significados que o tornam polifônico e polimórfico; adjetivos que se justificam num primeiro olhar um pouco mais atento. A grande variedade dos sons, como o bater das folhas, os animais, os infinitos tons e vozes humanos, as buzinas e os carros, o fluir do trânsito e o mar delineiam um grande coro polifônico. Já os diversos estilos arquitetônicos, modos de vestir-se e comunicar-se, as retas e as curvas, os altos e os baixos da geografia compõem o seu polimorfismo. Sem esquecer da grande pluralidade de cores que podem ser identificadas - o azul do céu, o branco das nuvens, o verde das montanhas, do mar e do sinal de trânsito dão contornos a uma outra face, a policromia urbana. Revista FACEVV | Vila Velha | Número 5 | Jul./Dez. 2010 | p. 88-93 89 Tabucchi é um observador que cultiva a arte do olhar através de seus personagens que caminham pelas artérias e veias do espaço marcado pelos emblemas da multiplicidade e da pluralidade. Um espaço composto por elementos significantes que estão ali expostos e podem ser identificados e lidos. “Nada é vivenciado em si mesmo, mas sempre em relação aos seus arredores, às sequências de elementos que a ele conduzem, à lembrança de experiências passadas” ( LYNCH, 2000, p. 3). A relação entre o indivíduo e a relação que está ao seu redor é inevitável. O autor impõe essa vivência a alguns de seus personagens, a quem ele próprio empresta os olhos observantes que são capazes de reconhecer e interpretar os diferentes signos aparentemente ilegíveis, à primeira vista. A apreensão dos marcos contidos na cidade não é nunca totalizante e sim fragmentada, uma mistura de várias sensações de diferentes naturezas. O tato, o olfato, o paladar, a visão e a audição estão todos a postos nessa operação de detectar e captar os signos urbanos, resultado de combinações e contrações de inúmeros elementos que podem até remeter a lembranças passadas. Assim, um retrato ou uma imagem obtida a partir de uma determinada realidade pode variar consideravelmente de um sujeito para outro. O que está ao redor do indivíduo aos poucos passa a ser um fator relevante podendo até influenciar na sua própria vida. É resultado de uma sobreposição de sentimentos, sensações e imagens já apreendidas. Como afirma Lynch: “o ambiente visual torna-se parte da vida do habitante da cidade”, que implica uma interação maior entre habitante e espaço urbano que agora passa a ser um elemento de relevante no dia-a-dia do sujeito. É nessa nova relação entre o habitante e o habitat que pode ser inserido o escritor italiano, um exemplo entre muitos dos que são envolvidos e atraídos por essa fascinante e incógnita rede significante que penetra em sua narrativa e passa a pertencer e participar ativamente do diálogo inscrito nas páginas, como acontece no romance Afirma Pereira (2000). Como os outros livros de Tabucchi, este possui um subtítulo, um testemunho, que oferece uma ou mais pistas da leitura podendo até conduzi-la, num primeiro momento. É o ano de 1938. A Europa e o mundo ainda sofrem as consequências da Primeira Guerra e já se preparam para a Segunda. Portugal, tal qual outros países, é dominado pelo regime ditatorial. A censura das manifestações culturais e as injustas normas impostas pelo regime são aqui retratadas pela história de Pereira que testemunha a sua própria experiência. Pereira é o único nome dado a esse jornalista que trabalhou por muito tempo escrevendo crônicas para um grande jornal e agora é responsável pela página cultural de um pequeno e diário vespertino, chamado Lisboa. A Lisboa dos trovadores, de Gil Vicente, das grandes navegações, de Camões, de Sóror Violante do Céu, de Antero, Eça e Pessoa está dominada por António de Oliveira Salazar e por um regime marcado pela censura, proibição e repressão. É neste complexo cenário que Tabucchi insere seu protagonista, uma cidade violentada que sofre junto com seus habitantes. Contudo, Pereira, um habitante de Alfama, da rua da Saudade, no inicio da narrativa não é capaz de captar os sinais oferecidos, o espaço urbano ,pelo menos nas primeiras páginas, é ilegível pelo jornalista. Uma contradição? Provavelmente sim, pois Pereira pela sua profissão deveria ser um dos a poder decodificar e ler o espaço à sua volta. A primeira imagem da cidade de Lisboa não oferece nenhuma pista da verdadeira realidade por qual passa Portugal. nas: “Naquele belo dia de verão, com a brisa atlântica acariciando os topos das árvores e o sol resplandecendo, e a cidade que cintilava, literalmente cintilava sob sua janela, e um azul, um azul jamais visto, afirma Pereira, de um brilho que quase machucava os olhos [...]” (TABUCCHI, 2000, p. 9). Nesta descrição de Pereira a cidade reluz e brilha aparenta não se abalar ou sofrer com toda a repressão e a tensão em que vive. O mundo de Pereira e a sua Lisboa não correspondem à verdadeira triste realidade de seu país, é uma Revista FACEVV | Vila Velha | Número 5 | Jul./Dez. 2010 | p. 88-93 90 imagem exterior construída a partir de seu mundo interior e de um passado que não existe mais, a não ser nas suas lembranças como o retrato de sua mulher, já falecida. Constrói-se, assim, um mundo paralelo ao real e é nele que se encontra o jornalista. Um exemplo deste afastamento ou isolamento da realidade é a descrição do jornal em que trabalha. Nela, Pereira demonstra algum conhecimento do que se passa em seu país e em Lisboa, mas não é ainda consciente: “O Lisboa é um jornal de Lisboa, lançado há poucos meses, não sei se o viu, somos apolíticos e independentes, porém acreditamos na alma” (TABUCCHI, 2000, p. 10). As palavras “apolíticos” e “independentes” por si só remetem a uma conjuntura que não corresponde à realidade portuguesa da década de 30-40. Ao elaborar ta descrição do jornal onde trabalha, o protagonista de Tabucchi inconscientemente percebe o momento pelo qual seu país está passando. Pereira, apesar de sua experiência e de tantos anos dedicados à atividade jornalística, ainda acredita na liberdade de expressão da imprensa. É um jornalista atípico porque não tem o hábito de ler outros jornais em circulação, além de trabalhar numa redação também atípica, a da página cultural, que é distante da sede central do jornal e é composta por uma única pessoa – ele. Uma analogia pode ser feita a partir da visão de Pereira. Seguindo a descrição oferecida pelo autor, o jornalista não usa óculos. Porém, poderia-se imaginá-lo com um par de óculos que fizesse com que a sua percepção da realidade fosse distorcida. E tal distorção o impedisse de ver o que realmente ocorre à sua volta - uma Lisboa obscura e sitiada pela tensão de um regime político; a cidade aos olhos de Pereira, por isso, é reluzente. A primeira descrição física e psíquica do jornalista é bastante diferente e até oposta à do espaço urbano: “[...] ele era gordo, sofria do coração e tinha a pressão alta e seu médico lhe tinha dito que se continuasse assim não lhe restaria muito tempo mais, mas o fato é que Pereira começou a pensar na morte, afirma” (TABUCCHI,2000, p. 9). O perfil de Pereira condiz exatamente com aquele da cidade que ele não consegue identificar e enxergar, um espaço que está sofrendo e definhando. Seria talvez uma inversão das descrições? Como se a de Pereira pertencesse à cidade e a da cidade a Pereira? Uma inversão que é confirmada no final da narrativa. O jornalista aos poucos começa a tirar os supostos óculos tornando-se mais consciente, e passa a se dar conta daquilo que o cerca. Pereira na realidade não usa óculos, eles seriam, uma metáfora do seu estado interior e da sua posição diante da sociedade antes de vários encontros simbólicos relevantes e da amizade que se formaria com Monteiro Rossi, um jovem anarquista italiano. É ao marcar um encontro com Monteiro Rossi e durante o percurso até a Praça da Alegria, que o jornalista percebe como a cidade está controlada e dominada por policiais. O seu olhar, agora um pouco mais meticuloso, começa a captar algumas imagens significantes. Pereira, afirma que naquela noite, a cidade parecia estar nas mãos da polícia. Encontrou-a por toda a parte. Tomou um táxi até o Terreiro do Paço, e sob os pórticos havia camionetes e agentes com mosquetes. Talvez temessem manifestações ou concentrações nas praças; por isso vigiavam os pontos estratégicos da cidade. Ele teria gostado de prosseguir a pé porque seu cardiologista lhe havia recomendado exercício, mas não teve coragem de passar diante daqueles militares sinistros [...]. Não parecia mesmo a praça de uma cidade em estado de sítio, afirma Pereira, porque não viu polícia, aliás, viu somente um guarda noturno que lhe pareceu bêbado e cochilava num banco (TABUCCHI, 2000, p. 16). A cidade inteira ocupada por policias que deveriam proteger a sua população, mas impõem medo a seus habitantes, como Pereira que não teve coragem de caminhar até o seu destino. Onde não havia policial algum, só um guarda noturno que nada poderia proteger nem ninguém, pois estava bêbado e cochilava. A figura desse guarda noturno é bastante divergente da dos policias que encontrou ao descer do táxi: militares sinistros. O local do encontro estava ocupado por uma grande festa organizada pelo regime, o que explicava a ausência daquela presença tão intimidativa e a faixa onde estava Revista FACEVV | Vila Velha | Número 5 | Jul./Dez. 2010 | p. 88-93 91 escrito: “Salve Francisco Franco e Salve os militares portugueses na Espanha”. Esta noite na Praça da Alegria é fundamental para o desenvolvimento do personagem protagonista, Pereira que começa a estar mais atento a tudo que o cerca. Os seus supostos óculos começam a se desfazer, primeiro uma haste, depois a outra, uma lente e assim por diante. O esfacelamento dos óculos corresponde a algumas mudanças e a atitudes do jornalista que culminam na publicação do artigo que denuncia o brutal assassinato do jovem italiano, no último capítulo. Á medida que a dura realidade desenreda-se diante aos olhos de Pereira o brilho reluzente de Lisboa descrito nas primeiras páginas é aos poucos substituído por uma atmosfera mais lúgubre: “Pereira afirma que naquela noite o tempo virou. De repente a brisa atlântica parou, e do oceano chegou uma espessa cortina de névoa e a cidade ficou envolvida por um sudário mormacento” (TABUCCHI, 2000, p. 13); de um esplêndido dia de verão ensolarado e alegre passa-se para um coberto pela névoa e fechado, talvez triste. A atmosfera e a imagem da cidade não são mais as mesmas, as palavras e o tom escolhidos pelo autor dão a exata conotação desta mudança, da brisa atlântica para o sudário mormacento e a névoa. Além do jovem italiano, outros personagens, cada um a seu modo, contribuem para o processo de transfiguração do jornalista e a sua consequente atitude nas últimas linhas do romance. Manuel, o garçom do Café Orquídea, bastante frequentado pelo protagonista, tinha um amigo que escutava a proibida estação de rádio Londres e por isso sabia tudo o que se passava na Europa e em Portugal. Era uma pessoa bem informada em assuntos relativos à situação política portuguesa. Sabia até mais que Pereira e quando o jornalista lá ia para comer omeletes e beber limonadas, era o garçom quem lhe mantinha atualizado sobre os últimos acontecimentos. Padre António, confessor de Pereira, a quem sempre procurava, era uma pessoa pela qual demonstrava muita consideração e respeito e revelava uma opinião bastante clara sobre a atual situação: Ouça “Pereira, disse, o momento é grave e cada um tem que fazer as próprias escolhas, eu sou um homem da Igreja e tenho que obedecer à minha hierarquia, mas você é um homem livre para fazer as suas escolhas pessoais, mesmo sendo católico” (TABUCCHI, 2000, p. 88); certamente não era concorde, mas sendo padre deveria seguir a posição imposta-lhe pela igreja católica. Doutor Cardoso, o médico responsável por Pereira durante o período em que esteve na clínica talassoterápica de Parede, é quem mais contribuiu para que o jornalista se conscientizasse das transformações pelas quais estava passando. A teoria da confederação das almas, explicitada por Doutor Cardoso em várias conversas, resumia de modo genérico o processo metamórfico de Pereira. O doutor fez uma pequena pausa e depois continuou: a que é denominada de norma, ou nosso ser, ou normalidade, é somente um resultado, e não uma premissa, e depende do controle de um eu hegemônico que se impôs na confederação de nossas almas; no caso de surgir um outro eu, mais forte e mais poderoso, este eu destitui o eu hegemônico e toma o seu lugar, passando a dirigir a corte das almas, ou melhor, a confederação, e a primazia permanece enquanto este eu não for, por sua vez, destituído por outro eu hegemônico, através de um ataque direto ou de uma paciente erosão. Talvez, concluiu o doutor Cardoso, haja no senhor um eu hegemônico que, após paciente erosão, esteja tomando a liderança da confederação de suas almas, doutor Pereira, e não há nada que o senhor possa fazer, a não ser eventualmente, secundá-lo (TABUCCHI, 2000, p. 75). Uma paciente erosão. No seu dia-a-dia por meio das conversas com o garçom Manuel do Café Orquídea, com o padre António e o com retrato da esposa falecida há alguns anos – o seu melhor amigo, sem contar os dois jovens Monteiro Rossi e Marta; além da descoberta da verdadeira posição de seu jornal Lisboa, de seu diretor e do amigo Silva todos favoráveis ao sistema e grandes decepções para Pereira que já é capaz de reconhecer e juntar as diversas peças e delinear o verdadeiro perfil da Revista FACEVV | Vila Velha | Número 5 | Jul./Dez. 2010 | p. 88-93 92 realidade que o cerca. Quando deixa a clínica de Parede o seu novo eu hegemônico já tomou a liderança, a conscientização e a nova percepção do espaço urbano que implicam um outro olhar são proporcionais à mudança física do personagem. É o habitante que fala da cidade e a cidade que fala de seus habitantes, enquanto Pereira era gordo e sofria do coração, Lisboa reluzia e as suas cores eram tão nítidas e variadas como um arco-íris. Quando começa o processo de mudança do eu hegemônico e consequentemente o de conscientização dos fatos Pereira e Lisboa sofrem uma transformação. A cidade não possui mais aquele brilho inicial e suas ruas, praças, largos são dominados por uma brisa fria e uma névoa mórbida. Pereira, agora consciente, está mais magro e sua saúde revigorada: “[...] quando deixou a clínica para tomar o trem para Lisboa sentia-se tonificado e em forma, e tinha emagrecido quatro quilos, afirma Pereira” ( TABUCCHI, 2000, p. 80). O protagonista de Tabucchi aprendeu a ler os signos contidos no espaço urbano, Lisboa passa a ser vista e lida como um texto. Além dos personagens que contribuem para a metamorfose de Pereira, dois outros eventos são relevantes para que a cidade não seja mais invisível aos olhos do jornalista. Estes correspondem a duas curtas viagens realizadas, uma para Coimbra e outra a Parede. A palavra viagem por si só acarreta um deslocamento geográfico, sair de um ponto e ir para outro e é o que acontece. Pereira vai de Lisboa a Coimbra e retorna e depois vai de Lisboa à Parede também retornando. Na primeira revê o seu amigo de faculdade, Silva, um professor universitário e na segunda se interna numa clínica talossoterápica para cuidar de sua saúde e lá conhece o doutor Cardoso. Esse deslocamento geográfico também corresponde a uma viagem interna do personagem, uma introspecção e uma análise de suas posturas diante da vida. Distante da sua cidade e do seu eu habituado à metódica vida, Pereira é capaz de refletir sobre suas atitudes e posicionamentos. [...] minha vida não teria sentido, não teria sentido ter estudado em Coimbra e ter sempre acreditado que a literatura fosse a coisa mais importante do mundo, não teria sentido eu dirigir a página cultural deste jornal vespertino onde não posso expressar a minha opinião e onde tenho que publicar contos do século XIX francês, nada mais teria sentido, e é disso que sinto necessidade de me arrepender, como se eu fosse outra pessoa, e não o Pereira que sempre foi jornalista, como se eu tivesse de renegar alguma coisa (TABUCCHI, 2000, p. 7475). Um pequeno filme do passado e atitudes que agora são questionadas e analisadas a partir de um outro prisma mais consciente. A clínica de Parede e o doutor Cardoso constituem um momento de reflexão para Pereira, momento este que em Lisboa nunca poderia ter existido. A sua vida na capital era tão metódica. Fazia sempre os mesmos itinerários – de casa, onde tinha a companhia do retrato, para a redação atípica da página cultural e a frequência assídua ao Café Orquídea. Essa rotina não abria espaço para novas conjecturas e experiências. Pereira era rodeado por um não-lugar porque vivia numa Lisboa só sua. Um espaço idealizado e mantido por suas lembranças do passado, cujo ponto central é a personificação do retrato da esposa sorrindo, uma recordação que pertence a um tempo que já passou e não volta mais – o seu único verdadeiro amigo e confidente com o qual fala de suas angústias, perturbações e dúvidas. Uma Lisboa imaginária a do jornalista, alheia a qualquer notícia ou acontecimento, que aos poucos porém, se torna cada vez mais real. A viagem em Afirma Pereira altera os significados dos emblemas e faz o protagonista identificar e ler outros signos que juntos traçam o perfil de uma Lisboa diferente daquela reluzente, configurando uma outra realidade que é também fruto do afastamento e do estrangeirado, momentos fundamentais nesse processo de conscientização de Pereira que colhendo pequenos fragmentos do cotidiano percebe não mais se enquadrar dentro daquela sua primeira realidade. Revista FACEVV | Vila Velha | Número 5 | Jul./Dez. 2010 | p. 88-93 93 Essa(s) Lisboa(s) imaginária(s) de Pereira é um simulacro daquela apresentada por Tabucchi que, é por sua vez, um outro simulacro de toda a situação vivida durante a ditadura de Salazar. O espaço urbano lisboeta na época salazarista não é igual àquele que o escritor italiano conheceu. Modificou-se, desenvolveu-se, modernizou-se. Construções foram restauradas e recuperadas, outras só mantidas e novas edificadas. O advento do metrô, um meio de transporte mais rápido e eficaz, mudou a geografia da circulação dos lisboetas e também algumas lojas e negócios fecharam e outros abriram. Logo, o mesmo espaço limitado pelas mesmas fronteiras não podia manter intactos a sua topografia e os seus habitantes. Uma cidade simulacro, então, se faz presente e é fruto da combinação entre o processo de criação do autor e a sua já existente e intensa relação com o espaço urbano e literário lisboeta. Referências: CALVINO, Ítalo. Le città invisibili. Verona: Arnaldo Mondadori Editore, 1999. ______. Seis propostas para o próximo milênio. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. ______. As cidades invisíveis. Trad. Diogo Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. GOMES, Renato Cordeiro. Cartografias urbanas: representações da cidade na literatura. In: ______. Semear: Revista da Cátedra Padre Antonio Vieira de Estudos Portugueses, v. 1, n. 1, 1997. Rio de Janeiro: Instituto Camões: PUC-Rio. ______. Todas as cidades, a cidade: literatura e experiência urbana. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. LYNCH, Kevyn. A imagem da cidade. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999. TABUCCHI, Antonio. Afirma Pereira. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. ______. Sostiene Pereira. Milão: Feltrinelli, 1994. Revista FACEVV | Vila Velha | Número 5 | Jul./Dez. 2010 | p. 88-93