avanços e desafios atuais de uma escola do campo no recôncavo

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avanços e desafios atuais de uma escola do campo no recôncavo
ATUAIS DE UMA ESCOLA DO CAMPO NO RECÔNCAVO BAIANO. REVISTA DISCENTIS. 4ª EDIÇÃO. DEZEMBRO 2015.
SANTOS, Danilo do Amor Divino dos; CORREIA, Maria Lúcia de Souza; NASCIMENTO, Marinalda da Costa. AVANÇOS E DESAFIOS
AVANÇOS E DESAFIOS ATUAIS DE UMA ESCOLA DO CAMPO NO
RECÔNCAVO BAIANO
Danilo do Amor Divino dos Santos1
Maria Lúcia de Souza Correia
Marinalda da Costa Nascimento
Jacó dos Santos Souza2
RESUMO: O presente artigo propõe analisar a organização da educação do campo,
situando-a historicamente e traçando os avanços e os desafios ainda existentes nesta
modalidade de educação. A fundamentação teórica balizou-se em documentos como a Lei de
Diretrizes e Base da Educação Nacional (LDBEN-9394/96) as Diretrizes Operacionais para
Educação do Campo (2002) e as Diretrizes Complementares (2008), além das contribuições
de autores como Arroyo; Caldart; Molina (2011),Souza (2006), Nascimento; Rodrigues;
Sodré (2013) entre outros. A abordagem da pesquisa foi de ordem qualitativa, onde os dados
foram coletados através de entrevistas semiestruturadas, com professoras, diretora e alunos
de uma escola do campo situada no Recôncavo Baiano, na cidade Cachoeira-Ba. Em
seguida, os resultados das entrevistas, foram analisados em comparação com o referencial
teórico acima citado. A pesquisa mostrou que no contexto histórico brasileiro a discussão da
temática educação do campo se deu lentamente, e se efetivou a partir das constantes lutas
dos movimentos agrários em especial o Movimento Sem Terra. E dentro desse contexto todos
os entrevistados da escola do campo pesquisada concordaram que houve avanços muitos
significativos, mas também comungaram que há diversos aspectos que precisam ser
melhorados, para que se efetive uma educação do/no campo de qualidade.
PALAVRAS- CHAVE: Escola do campo. Avanços . Desafios.
INTRODUÇÃO
A comunidade de Santiago do Iguape está localizada na bacia do Iguape, situada no
Recôncavo Baiano, e possui aproximadamente 2.500 habitantes, sendo distrito da cidade de
Cachoeira-Ba. A localidade tem sua economia baseada na pesca de produtos como mariscos,
peixes, caranguejos etc. A referida comunidade foi reconhecida pela Fundação Palmares no
ano de 2006 como sendo remanescentes de quilombolas (CRUZ, 2013, p.1), ou seja, ela foi
construída pelos escravos que foram libertos dos engenhos e isso se deu principalmente pelo
fim do ciclo do açúcar. Muitos ex-escravos optaram por continuar na localidade e
1
2
Estudantes do 6º semestre do curso de Licenciatura em Pedagogia da Faculdade Adventista da Bahia (FADBA)
Orientador. Mestre em História Regional e Local pela Universidade Estadual da Bahia (UNEB)
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SANTOS, Danilo do Amor Divino dos; CORREIA, Maria Lúcia de Souza; NASCIMENTO, Marinalda da Costa. AVANÇOS E DESAFIOS
constituírem família. Dessa forma a comunidade foi crescendo, e por esse motivo fica
evidente na população local a forte aceitação de sua cultura, e de sua identidade negra.
Por estar localizado próximo ao rio Paraguaçu, Santiago do Iguape serviu como ponto
de escoamento das produções agrícolas principalmente da cana de açúcar provenientes dos
engenhos das comunidades vizinhas e da própria comunidade. Segundo uma educadora
residente da comunidade “A comunidade conta com vários grupos culturais; que são duas
quadrilhas juninas, (Raízes do Iguape e Geração do Iguape), e um grupo de cultura afro (os
Bantos) composto exclusivamente por homens”, e isso fortalece ainda mais o ‘censo de
pertencimento local’ por parte dos moradores, e principalmente dos mais jovens que em
diversas situações são obrigados a deixarem suas família, suas raízes culturais, para buscarem
alternativas de trabalho em outros municípios, e em especial na capital baiana. Estando
localizada a cerca de 40 km da sede (o município de Cachoeira), e a aproximadamente 110
km da capital Salvador, a comunidade sempre enfrentou grandes dificuldades principalmente
no que se referia a locomoção dos moradores para as comunidades vizinhas e em especial
para a capital. Sobre essa questão, professora Marcela relatou:
Um grande sonho da nossa comunidade era o asfaltamento da estrada, pois
era de difícil acesso e quem possuía carro não queria ‘colocar na lama’, e nos
invernos a estrada ficava praticamente intransitável, certa vez lembro-me
que tive que empurrar juntamente com dois colegas um carro por mais de
três quilômetros para fazer uma prova.
A educadora acrescentou que o asfaltamento da via de acesso à comunidade foi uma
das grandes conquistas, principalmente para os alunos de outras localidades, como
Caimbongo e Opalma, que necessitam estudar no Iguape.
Esta pesquisa não tem por objetivo analisar todos os aspectos referentes à temática
Educação do/no Campo, pois não é uma temática fácil de ser explanada devido a evidente
exclusão dos povos do campo ao acesso igualitário às políticas públicas, mas em especial o
acesso ao bem cultural capaz de mudar qualquer realidade social: a educação. Procuraremos
abordar assuntos que devem expressar maior atenção e que serão o centro de nossa discussão,
especialmente aqueles que dizem respeito às questões das conquistas e desafios ainda
presentes no currículo da escola do campo, e a formação de professores, tendo a comunidade
de Santiago do Iguape como referência, por estar localizada no campo e por possuir uma forte
identidade cultural. Para realização deste trabalho foi utilizado entrevistas semiestruturadas
feitas a alunos, professores e direção de uma unidade escolar do campo situada na
comunidade de Santiago do Iguape, Cachoeira-Ba.
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SANTOS, Danilo do Amor Divino dos; CORREIA, Maria Lúcia de Souza; NASCIMENTO, Marinalda da Costa. AVANÇOS E DESAFIOS
1 BREVE HISTÓRICO DA EDUCAÇÃO DO CAMPO NO CENÁRIO BRASILEIRO
Historicamente a discussão sobre educação no Brasil é muito tardia, porque o
Currículo educacional brasileiro não foi pensado para que respeitasse as peculiaridades
existentes no país, mas ele foi adaptado de outras sociedades com contextos diferentes e
anseios que necessariamente não eram parecidos com as realidades brasileiras. E quando se
pensa educação voltada para os indivíduos do campo, tal assunto parece possuir ainda menos
relevância por parte dos órgãos governamentais. Na verdade, a sociedade brasileira demorou
em organizar o currículo escolar do campo de forma diferenciada, pois:
No Brasil, todas as Constituições contemplaram a educação escolar,
merecendo especial destaque a abrangência do tratamento que foi dado ao
tema a partir de 1934. Até então, em que pese o Brasil ter sido considerado
um país de origem eminentemente agrária, a educação rural não foi sequer
mencionada nos textos constitucionais de 1824 e 1891, evidenciando-se, de
um lado, o descaso dos dirigentes com a Educação do Campo e, do outro, os
resquícios de matrizes culturais vinculadas a uma economia agrária apoiada
no latifúndio e no trabalho escravo (BRASIL, 2013, p.268)
Nesse contexto histórico, evidencia-se que a legislação brasileira não deu assistência
devida para o desenvolvimento da educação do/no campo, contribuindo para os baixos índices
de escolaridade das comunidades situadas no meio rural, e aos processos de exclusão social
desses indivíduos. E sobre essa construção histórica, Bavaresco e Rauber (2014, p.86)
3
pontuam que o direito à educação para a população do campo aconteceu aos poucos. Cada
passo da história, desde o “descobrimento” do país, durante a colonização, depois a
independência, marcaram a trajetória da Educação que esteve ligada às demandas agrícolas de
cada época, conforme a necessidade e o processo de produção e de industrialização da
sociedade brasileira. Arroyo, Caldart e Molina (2009, p.23) 4acrescentam que educação do
campo precisa ser específica e diferenciada, ser educação no sentido amplo do processo de
formação do homem que constrói referenciais culturais. O que o autor tenta acrescentar é
como deve ser pensada a educação do/no campo, respeitando as peculiaridades, e essa busca
3
BAVARESCO, Paulo, R.; RAUBER, Vanessa D. Educação do Campo: uma trajetória de lutas e conquistas.In:
Unoesc & Ciência – ACHS, Joaçaba, v. 5, n. 1, p. 85-92, jan./jun. 2014.
4
ARROYO, Miguel. G. CALDART, Roseli S. MOLINA, Mônica C. (org.) Por uma educação do campo. 4. ed.
Rio de Janeiro: Vozes,2009.
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foi mais evidente a partir dos anos de 1960, principalmente com a intensificação das lutas pela
terra pelos movimentos rurais como o Movimento dos Sem Terra.
Diante desse cenário histórico a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDBEN) do ano de 1996 estabelece em seu artigo 28, nos incisos I-III, alguns aspectos que
antes não haviam sidos mencionados em nenhum outro dispositivo legal e se destacam entre
eles: que os conteúdos curriculares e metodologias devem ser apropriadas às reais
necessidades dos estudantes da zona rural, o calendário deve ser adaptado respeitando os
ciclos agrícolas quando necessário, e adequação à natureza do trabalho na zona rural,
evidenciando assim uma melhora significativa no olhar ao homem do campo, e sua
necessidade por uma educação diferenciada. Isso representou um avanço significativo para a
modalidade de educação do campo.
Em 2002 surgiu uma resolução que procurou tratar de aspectos específicos da educação
do campo, pois a LDBEN de 1996 abordava, porém de maneira superficial e genérica. Entre
os conteúdos abordados pela resolução de 2002 destaca-se que na sociedade brasileira há uma
evidente exclusão dos povos do campo ao acesso a escolaridade e ainda aponta:
A ausência de uma consciência a respeito do valor da educação no processo
de constituição da cidadania, ao lado das técnicas arcaicas do cultivo que não
exigiam dos trabalhadores rurais, nenhuma preparação, nem mesmo a
alfabetização, contribuíram para a ausência de uma proposta de educação
escolar voltada aos interesses dos camponeses (BRASIL, 2013, p.263).
Esse dispositivo legal aborda enfaticamente as lacunas históricas da educação do
campo se propondo a mostrar um novo olhar: uma educação igualitária, sem distinções entre o
que é campo ou urbano, já que.
A mídia a as escolas da cidade ainda reproduzem a imagem despectiva que
domina em nossa sociedade todos como: o camponês, o ribeirinho, os
homens e mulheres da floresta, indígenas, quilombolas vistos como jecas,
ignorantes, serviçais, massa fácil de manobra das elites agrárias e políticas
(SOUZA, 2012, p.10) 5.
Em 2008, o Ministério da Educação (MEC) publicou as Diretrizes Complementares
para a Educação do Campo. Com o próprio nome sugere, o dispositivo visava complementar
aquilo que não foi pontuado na Resolução de 2002, como a exemplo a nucleação escolar rural
5
SOUZA, Maria A. Educação do campo: propostas e práticas pedagógicas do MST. 2.ed. Rio de Janeiro:
Vozes, 2012.
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poderá constituir-se em melhor solução, mas deverá considerar o processo de diálogo com as
comunidades atendidas, respeitados seus valores e sua cultura.
Outro aspecto também observado na resolução de 2008 se refere ao deslocamento das
crianças do campo para a cidade: “Sempre que possível, o deslocamento dos alunos, como
previsto no caput, deverá ser feito do campo para o campo, evitando-se, ao máximo, o
deslocamento do campo para a cidade” (art.4º,§ 1º.) E se por ventura vier acontecer o
deslocamento ele deve ser de maneira intracampo, ou, seja, de uma comunidade para outra.
Isso evidencia uma melhoria no conjunto de normas e documentos legais que tratam da
educação infantil do campo, e de qual forma deve ser o procedimento para garantir o respeito
à diversidade de cada criança para garantir seus conhecimentos e seu senso de pertencimento
de uma comunidade do campo, e sobre esse assunto, Saggiomo; Azevedo; Machado (2012,
p.5) 6colocam que:
[...] as comunidades escolares são colocadas à parte do processo
educacional, situação que se potencializa através da assimilação, do contato
frequente e massivo dos nossos jovens com outros modos de vida e da
desvalorização da vivência local.
Assim, assegurar que as crianças se escolarizem no meio rural, também é assegurar
que elas continuem em contato com sua cultura e seus valores garantindo o convívio com sua
comunidade, evitando que os conteúdos e metodologias trabalhados em sala sejam totalmente
fora da realidade vividas diariamente por eles no campo. E esse diálogo entre realidade e
conteúdo deve acontecer de maneira que o estudante da zona rural não se sinta inferior ao
aluno da cidade, mas se identifique com a educação que lhe é oferecida.
2 ESCOLA MUNICIPAL DE SANTIAGO DO IGUAPE: REFLEXÕES SOBRE A
COMUNIDADE ESCOLAR
Para que se tenha uma educação do campo efetiva, se faz necessário que o ambiente
educativo esteja adaptado para as necessidades da comunidade em geral, professores
qualificados que atendam a demanda, materiais didáticos que respeitem e valorizem os
sujeitos do campo, entre outras coisas. A Escola Municipal de Santiago do Iguape possui
cerca de 300 alunos, divididos do 6° ao 9° ano e na Educação de Jovens e Adultos. Possui
6
SAGGIOMO, Thais G.; AZEVEDO, Michele S.; MACHADO, Valdirene S. Desafios na realidade educativa
do campo: uma abordagem de encontros e desencontros nas escolas do campo. In: IX ANPED SUL 2012
Seminário
de
pesquisa
em
educação
da
região
sul.Disponívelem:http://www.ucs.br/etc/conferencias/index.php/anpedsul/9anpedsul/paper/viewFile/2937/191.
Acesso em: 20 de maio de 2015.
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ainda 15 professores e uma Diretora. Por estar em um perímetro rural, seu Currículo deveria
ser adaptado as características da comunidade, como respeito aos conteúdos curriculares e
metodologias apropriadas às reais necessidades e interesses dos alunos da zona rural, mas o
que pode ser identificado, tanto pela observação quanto pelos relatos dos alunos e dos demais
atores da instituição, existem sim algumas alguns pontos que foge da realidade da escola.
Segundo Arroyo; Caldart; Molina (2011), um primeiro desafio que temos é perceber
qual educação está sendo oferecida ao meio rural e que concepção está presente nesta oferta.
Ter isto claro ajuda na forma de expressão e implantação de uma proposta de educação. Nisto
deve estar centrada uma educação “no” e “para” o indivíduo que vive no Campo. A primeira
lacuna identificada na escola diz respeito à contratação de profissionais de educação, pois, em
sua maioria, não possuem formação inicial, nem continuada relacionadas às práticas
pedagógicas do campo, muitas vezes não pertencem à comunidade, e sua prática não
dialogam a realidade local, evidenciando o despreparo de muitos professores quando vão
atuar nas escolas do campo. Segundo Nascimento; Rodrigues; Sodré (2012, p.47)7:
O projeto da educação do campo está em curso no contexto das lutas pela
garantia de uma educação que contemplem os sujeitos que habitam áreas
rurais do Brasil, historicamente negados nos seus direitos e, por
consequência, ausentes na sua matriz curriculares que só, precariamente, são
atendidos na sua demanda.
Diante disso o respeito à diversidade do povo do campo é fundamental para a efetiva
práxis profissional e plena execução de uma educação que inclua os já excluídos das matrizes
curriculares brasileiras. E a formação de professores ainda é uma grande discussão, pois
quando são enviados para escola não vêm preparados para a disciplina a ser ministrada, e
assim contribuem para má formação do aluno do campo. Quanto à formação continuada de
professores, segundo relato da gestora:
Ocorre uma formação interna, feita por nós mesmos, onde nos reunimos para
discutirmos assuntos pertinentes para o crescimento docente com o objetivo
de aperfeiçoamento profissional, pois se não for assim, na verdade o trabalho
não vai adiante.
Essa é a realidade vivenciada pela Escola Municipal de Santiago do Iguape buscando
uma formação para seus educadores sendo que não conseguem o subsídio necessário da
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NASCIMENTO, Antônio Dias; RODRIGUES, Rosana M.C; SODRÉ, Maria D.B. (org.) Educação do campo e
contemporaneidade. Salvador: Edufba, 2013.
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Secretaria de Educação Municipal, sendo obrigada a buscar individualmente com seus
profissionais o aperfeiçoamento dentro do contexto do/no campo.
3 O CURRÍCULO DA ESCOLA E SEUS DESAFIOS
O currículo diferenciado nas escolas é um dos pontos marcantes da conquista dos
camponeses porque representa seus anseios em prol da igualdade, por que historicamente o
direito a uma educação diferenciada a esses povos foi negado, Em 2002 o conselho Nacional
de educação sanciona as Diretrizes Operacionais para a Educação do Campo, e em 2008
elabora as Diretrizes Complementares para a Educação do Campo, com o objetivo de atender
as demandas ainda existentes na modalidade, e também para abordar assuntos específicos
existentes na educação do campo. E na concepção de Nascimento; Rodrigues; Sodré (2012,
p.79):
Mais tardia e precária foi à trajetória da educação no meio rural. Esse
panorama condicional a história da educação brasileira e deixou como
herança um quadro da precariedade no funcionamento da escola do campo:
em relação aos elementos humanos disponíveis para o trabalho pedagógico,
a infraestrutura e os espaços fracos inadequados, as escolas mal distribuídas
geograficamente, a falta de condições de trabalho, salários defasados,
ausência de formação inicial e continuada para o exercício docente no campo
e uma organização curricular descontextualizada da vida dos povos do
campo.
No contexto da Escola Municipal de Santiago do Iguape, pode ser notado que o
currículo segue as orientações da Secretaria de Educação do Município. Isso fica evidente
quanto ao uso de materiais didáticos que são fornecidos para a escola, uma vez que não
respeitam as especificidades da zona rural, são feitos para a população urbana.
A diretorada unidade escolar, quando indagada sobre os livros didáticos respondeu:
“Os livros vêm, mas são livros pensados para uma escola urbana normal”. Na fala dela
identificamos a falta de compreensão do sistema educacional quando tentam “impor” através
dos materiais didáticos ideologias que muitas vezes vão de encontro à realidade do campo.
A pesquisadora Maria Souza (2012, p.12)8 coloca que a escola, seus currículos e
didáticas desconectados das tensões sociais perdem força educativa, e sem sombra de dúvida
é um risco que a educação do campo enfrenta, ao receber matérias que estão fora de sua
realidade, econômica, social e cultural. A gestora ainda pontua quando perguntada como está
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SOUZA, Maria A. Educação do campo: propostas e práticas pedagógicas do MST. 2. ed. Petrópolis: Vozes,
2012.
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estruturada a grade curricular da escola: “Aqui a escola é tida como escola do campo e
quilombola, [...], porém não vem um material específico, pelo fato de sermos remanescentes
de quilombolas”. E quando indagada se os materiais não atendem as necessidades específicas
da Instituição, ela pontua:
A lei de diretrizes e bases exige que o material trabalhado na educação do
campo seja diferenciado, e o decreto de 2010. Só que na realidade, não
temos, cadê esse material? Não temos [...] talvez se formos à outra
comunidade tida como do campo talvez até tenha, só que aqui não temos.
Precisamos adaptar o currículo pra atender as nossas necessidades.
A fala da gestora da escola mostra um grande entrave vivido por sua unidade de ensino,
e que não é a exceção dentro da realidade brasileira, mas infelizmente continua sendo a regra
quando a questão da organização curricular diferenciada para as escolas estabelecidas nas
zonas rurais. Sobre esse aspecto Bavaresco e Rauber (2014, p.88) Observam:
É preciso buscar novas alternativas para continuar avançando e rompendo as
barreiras e as ideologias de uma educação deixada de lado, em segundo
plano. É importante reorganizar os modelos educacionais, valorizando as
especificidades do campo, para que as crianças e os jovens que são atendidos
por esta educação tenham uma aprendizagem significativa.
Então se o currículo se distancia da realidade em que está inserido, e do contexto em
que se encontram, consequentemente seus conteúdos serão descontextualizados, e isso faz
com que a escola perca sua identidade, e seus valores, fatos indissociáveis para a realidade do
campo. Nesse sentido, qualquer currículo deve propor métodos adequados quanto ao que
ensinar, além disso, deve deixar bem claro qual seu objetivo em relação à aprendizagem, para
não fugir de sua realidade.
4 A FORMAÇÃO DOS PROFESSORES PARA A EDUCAÇÃO DO CAMPO
A Resolução do CNE de 2008 pontua entre outras coisas, a preocupação com a
formação docente. A apropriação dos professores as características da educação do campo,
sem dúvida, é uma necessidade existente no cenário educacional brasileiro, e o referido
documento pontua que:
A contratação e a formação inicial e continuada dos professores e do pessoal
de magistério de apoio ao trabalho docente deverão considerar sempre a
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formação apropriada à Educação do Campo e às oportunidades de
atualização e aperfeiçoamento como profissionais comprometidos com suas
especificidades. (Art.7,§ 2º)
Essa resolução se preocupa com a formação tanto inicial quanto continuada dos
docentes que atuarão nas unidades de ensino que estão no Campo, pois esse quesito se
configura como uma real necessidade pra essa modalidade.
Diante dessa questão quando foi indagada sobre a formação docente na unidade
escolar em que atua, a gestora deixou bem claro que em seu contexto (Escola de Santiago do
Iguape) a atualização docente ainda é uma problemática muito veemente. Por exemplo, a
maioria dos docentes que ministram aulas em sua unidade são formados apenas em
Licenciatura em Pedagogia, mas mesmo assim dão aulas no Fundamental II. Segundo ela isso
se dar pelo fato de não haver profissionais disponíveis para atuarem no campo, assim a
Secretaria Municipal de Educação quando manda algum professor para a unidade não procura
saber qual área específica que a escola necessita, e essa falta de comunicação se configura
como um entrave muito grande para a consolidação de uma educação mais justa e igualitária.
Não é por estar afastada do perímetro urbano, que uma unidade escolar deve ser
privada de acessos que são direitos constituídos por décadas de lutas sociais em especial pelos
povos do campo e movimentos agrários como o MST (Movimento Sem Terra), que desde seu
surgimento já buscavam uma educação humana. Lamentavelmente, ocorre ainda no cenário
educacional brasileiro uma concepção de educação, não como transformadora e capaz de
mudar qualquer realidade social, mas uma visão colonial de educação excludente.
5 A VISÃO DO ALUNO QUANTO A EDUCAÇÃO DO CAMPO
Diante do cenário de conquistas e de evidentes desafios em que a educação do campo
se encontra atualmente, a educação voltada para o aluno do campo deve conferir a ele o
respeito por sua diversidade e sua individualidade. E com o objetivo de ampliarmos a
concepção de como os alunos enxergam a escola do campo, indagaram alguns estudantes,
sobre o contexto que enfrentam para terem acesso à educação, assim obtivemos algumas
respostas. De acordo com aluna A1:
A escola é legal, mas existem algumas coisas que precisam ser melhoradas,
como o transporte. Alguns amigos meus tiveram que se deslocar para estudar
em outro lugar, devido à distância, então se mudaram para poder estudar. E
eu caminho 40 minutos até o ponto, fora o tempo que passo no ônibus para
chegar aqui na escola, tenho que acordar 5 horas da manhã para chegar no
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horário da aula. Muitas vezes me sinto muito cansada, mas só a força de
vontade mesmo de vencer e correr atrás de meus objetivos.
Nessas palavras identificamos que o aluno do campo não é motivado essencialmente por
uma escola de auto padrão, seu sonhos são a razão maior de estarem estudando e de mudança
de sua realidade social. Sobre isso Arroyo; Caldart e Molina (2011, p.23) falam:
A educação do campo precisa ser uma educação específica e diferenciada,
isto é, alternativa. Mas, sobretudo deve ser educação, no sentido amplo do
processo de formação humana que constrói referenciais culturais. Políticas
para a intervenção das pessoas e dos sujeitos sociais na realidade. Visando a
uma humanidade mais plena e feliz.
Outra aluna (A2)confirmou que a escola entende sua realidade por ser de família
humilde (como a maioria) e necessitar cuidar da irmã enquanto sua mãe trabalha e utilizou as
seguintes palavras:
Minha mãe é marisqueira e algumasvezes chego atrasada por conta de minha
mãe ter ido mariscar, e eu ficar tomando conta de minhas irmãs, mas quando
na escola chego tenho que chamar meu professor e explicar porque cheguei
atrasada.
Nesse quesito a escola se adaptou para situações como essa, ou seja, existe um horário
limite para que os estudantes entrem em sala de aula, mas para esses alunos que chegam
atrasados por motivo de força maior, a unidade deixa que entrem, pois entende que por estar
em um contexto onde a maioria dos moradores é composta de marisqueiras e pescador
entende-se que desde cedo os filhos necessitam auxiliar seus pais e ajudar no sustento da
família. E esse deve ser o papel de uma escola que se propõe a ofertar uma educação
contextualizada, ela não deve se eximir de suas responsabilidades, pois:
Uma escola do campo é afinal, um tipo diferente de escola, mas sim é a
escola reconhecendo e ajudando a fortalecer os povos do campo como
sujeitos sociais, que também podem ajudar no processo de humanização do
conjunto da sociedade, com suas lutas, sua história, seus saberes, sua cultura,
seu sujeito. (ARROYO; CALDART; MOLINA, 2011, p.110).
Segundo relatos de uma terceira aluna (A3) que é da comunidade do Iguape, foi
perguntado, se quando se formasse pretenderia voltar na comunidade para de alguma forma
contribuir, e ela respondeu: “Eu pretendo cursar uma faculdade em outro lugar e depois voltar
para dar assistência e melhorar o lugar onde vivo”.
Na concepção de Arroyo; Caldart; Molina (2011, p.110) Um dos entraves ao avanço da
luta popular pela educação básica do campo é cultural. Os indivíduos do campo incorporam
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em si uma visão que é um verdadeiro círculo vicioso: é preciso sair do campo para continuar a
ter acesso à escola, e ter acesso escola para poder sair do campo. A fala dessa aluna
representa uma exceção, por que a grande maioria dos estudantes aceita a concepção arcaica
de que precisam sair do campo para “ser alguém na vida”.
O que acontece é que historicamente o conceito de campo está relacionado a atraso,
falta de informação, má qualificação, povo sem cultura e sem história. O que acaba
influenciando principalmente os mais jovens. Assim, essa concepção totalmente distorcida no
que se refere aos indivíduos ainda é perpassada. Então os alunos de uma escola do campo,
precisam internalizar uma concepção positiva, não de submissão aos padrões culturais, e
sociais vigentes. Mas aceitar que a cultura do campo não é estática, e que ao contrário do que
é divulgado pela sociedade, o campo possuem seus saberes e riquíssimas fontes para o
aprendizado do aluno.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Historicamente, a educação para os sujeitos do campo sempre foi um desafio, isso se
deu por existir concepções preconceituosas quanto a esses sujeitos. De que eram rudes,
atrasados, e sem cultura, e isso deixou marcas que refletem até hoje, principalmente no
currículo da escola do campo, que sempre seguiu as normas de outra realidade (elite
dominante) que não condizia com seu contexto.
A discussão em torno de organização curricular para o campo de forma diferenciada é
recente, e se deu a partir de lutas de movimentos sociais, principalmente o MST em busca de
uma educação contextualizada, em prol do camponês. Uma educação do campo precisa
respeitar a diversidade existente nas comunidades, e isso deve ficar evidente no currículo de
uma escola que oferta esse tipo de educação.
Nesse sentido, a formação de professores deve contemplar essa diversidade, o
profissional de educação deve também ser responsável por disponibilizar os recursos didáticos
para que a educação do/no campo aconteça de forma plena. E para isso a escola deve estar
bem estruturada, com um currículo adequado a necessidade do povo camponês.
Tendo a comunidade de Santiago do Iguape por referência, notamos que ainda existe
uma dicotomia entre o que é posto nos documentos legais e o que é vivido no contexto
escolar. É evidente que apesar dos avanços em vários aspectos: como os métodos e leis, ainda
há um grande caminho a se percorrer para a melhoria da educação voltada para o sujeito do
campo.
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SANTOS, Danilo do Amor Divino dos; CORREIA, Maria Lúcia de Souza; NASCIMENTO, Marinalda da Costa. AVANÇOS E DESAFIOS
Através desse trabalho podemos vivenciar que a educação do/no campo não se
constrói isoladamente, mas comunidade, direção, professores e alunos precisam estar
envolvidos nesse processo de democratização da escola do campo. Diante de todos os
desafios vale ressaltar um: garantir a identidade do homem do campo para continuação de sua
cultura, seus saberes, suas peculiaridades, pois não podemos pensar o sujeito camponês
isolado de sua cultura.
REFERÊNCIAS
ARROYO, Miguel G; CALDART, Roseli S; MOLINA, Mônica C. (org.) Por uma educação
do campo. 4. ed. Petrópolis: vozes, 2009.
BAVARESCO, Paulo R.; RAUBER, Vanessa D. Educação do Campo:uma trajetória de lutas
e conquistas. In: Unoesc & Ciência – ACHS, Joaçaba, v. 5, n. 1, p. 85-92, jan./jun. 2014.
BRASIL. Lei nº 1 de 3 de abril de 2002. Diretrizes Operacionais para a Educação Básica no
Campo.
BRASIL. Lei nº 2, de 28 de abril de 2008: Diretrizes Complementares para Educação Básica
no Campo.
BRASIL. Lei nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996. Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional(nº 9394/96). Ministério da Educação: Brasília, 1996.
BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Gerais da Educação Básica:
Brasília, 2013.
CRUZ, Ana Paula B. S. Entre o tecer, lançar e puxar de redes: as relações cotidianas dos
pescadores da comunidade de Santiago do Iguape (1970-1980). In: XXVII Simpósio Nacional
de História: Conhecimento histórico e diálogo social. Rio Grande do Norte, junho de 2013.
NASCIMENTO, Antônio D.; RODRIGUES, Rosana M.; SODRÉ, Maria D. (org.) Educação
do campo e contemporaneidade. Salvador: Edufba, 2013.
PIRES, Ângela M. Educação do Campo como direito humano. São Paulo: Cortez, 2012.
SAGGIOMO, Thais G.; AZEVEDO, Michele S.; MACHADO, Valdirene S. Desafios na
realidade educativa do campo: uma abordagem de encontros e desencontros nas escolas do
campo. In: IX ANPED SUL 2012 Seminário de pesquisa em educação da região sul.
Disponível
em:http://www.ucs.br/etc/conferencias/index.
php/anpedsul/9anpedsul/paper/viewFile/2937/191.Acesso em: 20 de maio de 2015.
SOUZA, Maria Antônia de. Educação do campo: propostas e práticas pedagógicas do MST.
2. ed. Petrópolis: Vozes, 2012.
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