Tese de Mestrado em Teorias de Arte pela Faculdade de Belas

Transcrição

Tese de Mestrado em Teorias de Arte pela Faculdade de Belas
UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE BELAS ARTES
MESTRADO EM TEORIAS DA ARTE
HOMEOSTÉTICA
ANOS 80 NAS ARTES PLÁSTICAS EM
PORTUGAL
MARIA CLARA RODRIGUES SILVA DE BRITO
Orientador: Pintor Hugo Ferrão
Professor Auxiliar da Faculdade de Belas Artes de Lisboa.
Lisboa 2000
Maria Clara Rodrigues Silva de Brito
HOMEOSTÉTICA
ANOS 80 NAS ARTES PLÁSTICAS EM PORTUGAL
Dissertação de Mestrado em Teorias de Arte
Faculdade de Belas Artes
Universidade de Lisboa
Orientador: Pintor Hugo Ferrão.
Professor Auxiliar da Faculdade de Belas Artes de Lisboa
Lisboa 2000
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Agradecimentos
Tenho a agradecer aos artistas do grupo homeostético, muito particularmente a Pedro
Proença pela confiança que manifestou ao entregar-me os documentos originais, bem
como pelo esclarecimento de dúvidas relativamente aos mesmos.
Agradeço ao meu marido e aos meus filhos por me terem dispensado muito tempo do
seu convívio.
À Maria João Amaral, pelo cuidado colocado na revisão dos textos.
Á Maria Antónia Linhares pela formatação do trabalho.
Ao Sr. António Silva da Sociedade Nacional de Belas Artes
Ao Professor Hugo Ferrão, pelo apoio e incentivo contínuos.
E finalmente a todos os artistas, teóricos da arte, criticos e filósofos com quem
aprendi coisas que de outro modo não teria descoberto.
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Resumo
Nas publicações que desde meados dos anos 90 se tem escrito sobre a arte
contemporânea portuguesa, “Homeostética” é um rótulo que surge associado aos
artistas que constituíram este grupo: Fernando Brito, Ivo, Manuel Vieira, Pedro
Portugal, Pedro Proença e Xana, não existindo porém qualquer esclarecimento sobre
o significado desta expressão, nem qualquer referência ao grupo como um todo.
Nesta dissertação procuramos clarificar a dinâmica deste grupo que tal como outros,
se exerceu e desencadeou o seu processo de afirmação nos anos 80, tendo a distinguilo uma reflexão e produção teórica que vimos agora revelar e onde através dum
discurso original e verdadeiramente inspirado nos permite reflectir sobre a
capacidade especulativa da arte e do artista enquanto captador das sensibilidades do
seu tempo.
O material reunido em anexo não esgota a produção textual existente, mas por
questões programáticas, começámos a nossa investigação pela análise e tratamento
dos textos de catálogo, dos manifestos e de diversos textos que indiciam a
intencionalidade de criar uma teoria homeostética.
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Apresentação
No verão de 1986, acompanhei a preparação da exposição “Continentes” e admirei o
entusiasmo e o trabalho daquele grupo, que exteriorizava uma vontade indomável.
Sabia-os muito cúmplices, desenvolvendo uma série de projectos, mas nunca soube
muito bem o que era a “homeostética”. Para mim era um nome e uma dinâmica que
funcionava. Passados anos, constatei que esta designação continua a funcionar, quer
como fundamento conceptual para o trabalho artístico de uns, quer como recordação
muito importante para outros, quer como referência para pessoas que se moveram à
volta do grupo e que, de alguma forma, estiveram em contacto com essa dinâmica. A
Homeostética continuava uma palavra viva.
Sabendo que vários elementos do grupo possuíam documentos originais e que havia
motivação para os reunir a fim de começarem a ser tratados e divulgados, a escolha
do tema para esta Tese tornou-se-me óbvia.
Numa primeira fase do trabalho, desenvolvi contactos para fazer a recolha dos
documentos, materiais e textos existentes, com os quais fiz um inventário.
Posteriormente, senti a necessidade de fazer uma selecção desses materiais, tendo
apurado os textos dos catálogos, os Manifestos e um conjunto de textos cujo teor se
pode situar no âmbito da reflexão estética e da teoria de arte e que agrupei sob a
designação de “Teoria Homeostética”.
Em termos de produção textual, quer Pedro Proença, quer Manuel Vieira podem
considerar-se estilistas. Citando Deleuze 1 , o estilo em Filosofia "está disposto
segundo três pólos, o conceito ou novas maneiras de pensar; o percepto ou novas
maneiras de ver e escutar, o afecto, ou novas maneiras de experimentar", sendo
todos eles necessários para fazer o movimento, ou “a filosofia como ópera”. Por essa
razão, perscrutar os textos homeostéticos levou a três atitudes: ou aceitá-los como
1
Deleuze Gilles: O mistério de Ariana, Ed. Vega, 1996: p. 97 e segs.
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HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
peças enigmáticas e poéticas e fruir o seu discurso; ou, mediante uma tentativa de
depuração e capacidade interpretativa, tentar explicar a superfície epidérmica do
discurso; ou investigar sentidos junto dos seus autores e referentes, confrontando-os
com outros, a fim de validar as suas propostas ao nível de conceitos e actuações.
A organização da Tese corresponde ao percurso que considerei necessário para o
desenvolvimento desta investigação e entendimento do tema. Assim temos três
partes: enquadramento, biografia e teoria homeostética.
Na primeira parte, dedicada ao enquadramento, pretendo dar a conhecer o contexto
(social, artístico, teórico) em que emerge este grupo, sendo que no plano nacional, se
assiste a uma mudança de paradigmas e atitudes, quer na vida política, quer no
social, constituindo a arte e o discurso artístico um reflexo desse período de
transição.
No segundo capítulo, recorremos entre outros, a dois críticos portugueses, António
Cerveira Pinto (arte) e Eduardo Prado Coelho (literatura), através dos quais
procuraremos apresentar genericamente a problemática da passagem do modernismo
para o pós-modernismo. Na tentativa de delimitar os conceitos que no inicio dos anos
80 começavam a agitar a comunidade artística em Portugal, surgiu a necessidade de
abordar as teorias transvanguardistas de Bonitto Oliva e os defensores do pósmodernismo na arquitectura.
Veremos que o discurso teórico deste período contém uma familiaridade na
abordagem das mesmas questões, o que nos permite pensar que estamos perante uma
época suficientemente caracterizada pelas suas (in)constantes formais e conceptuais.
A segunda parte deste trabalho, é dedicada à biografia do grupo, para a qual foram
realizadas entrevistas e cruzados depoimentos, nomeadamente, o de Pedro
Cavalheiro que relembra o período entre 1982 e 1986, enquanto os elementos deste
grupo frequentam a Escola de Belas Artes de Lisboa. A dinâmica homeostética
corresponde ao período de formação académica dos seus elementos. O seu percurso e
visibilidade será revelado através de fotografias, catálogos das exposições, textos,
manifestos e das notas da critica realizadas por ocasião da última exposição
(“Continentes”).
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HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
O reconhecimento da homeostética enquanto grupo, é ainda bastante insuficiente,
verificando-se uma certa superficialidade na aplicação desta designação.
O 5º capítulo, “Os manifestos homeostéticos” afigura-se particularmente importante,
pois é através destes que se caracterizam e afirmam a sua identidade. O discurso,
original pela sua ironia, recheado de metáforas e clichés da linguagem comum,
permite-nos rever esses anos onde assistimos ao surgimento dum “art world”
nacional, e ainda à transformação da sociedade portuguesa, particularmente a vida
mundana lisboeta. Os
manifestos ainda nos permitem subtrair o projecto e intenções artísticas do grupo.
Serão estes últimos, o espelho duma visão paradoxal do mundo, onde se interroga a
própria arte, os mecanismos de legitimação e a problemática da relação da arte com o
público.
Finalmente a terceira parte desta tese, dedicada à análise e síntese dos textos
homeostéticos, começou por me fazer interrogar os próprios textos tendo levantado
questões que habitualmente parecem situar-se fora do âmbito da teoria de arte. Os
princípios
da
teoria
homeostética,
post-paradoxologia,
parahermenêutica,
infracriptográfico e transmenipeia, suscitaram a necessidade de fazer uma incursão
ainda que de caracter genérico, sobretudo no domínio da filosofia, dos quais foram
destacados autores como Ricoeur, Hans Robert Jauss, Baktine, Edmund Husserl e
respectivas teorias que respondem não só às temáticas e questões propostas pela
homeostética, mas que parecem cruzar-se nos diversos autores que reflectem sobre o
caracter da pós-modernidade. A problemática da hermenêutica e a sua influência nas
teorias da interpretação e na estética da recepção, o dialogismo e a menipeia
baktinianos, e finalmente a fenomenologia são os conteúdos que emergem dos textos
que analisámos. Os conteúdos tratados ao longo do 6º capítulo serão retomados na
conclusão desta Tese, com uma abordagem à obra de Arthur Danto, que defende a
interdependência das reflexões filosófica e artística.
Os 7º e 8º capítulos procuram sintetizar duma forma organizada os princípios
propostos e as suas implicações no processo criativo. A recorrência às citações e à
remetência para os textos originais (em anexo) pretende conduzir o leitor na leitura
dos mesmos de acordo com a interpretação aqui apresentada.
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HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Finalmente o 9º capitulo, sendo uma espécie de pré-conclusão, pretende fechar o
circulo que ilustra esta narrativa. A trilogia “Métis, Kairos, Enthousiasmous” vem
responder às questões que são colocadas no 1º capitulo, condensando as atitudes
propostas pela homeostética relativamente ao período de indeterminação conceptual
que se viveu nos anos 80 e aos discursos apocalípticos sobre a arte.
Os Anexos desta dissertação representam o percurso efectuado na investigação: o
levantamento de dados, primeiramente através de entrevistas a que alguns elementos
do grupo tiveram a gentileza de responder. A pesquisa e organização dos documentos
originais, dos quais extraímos os textos residentes nos folhetos que acompanharam as
exposições homeostéticas, os manifestos e um conjunto de 40 textos escritos por
Pedro Proença, cujo tratamento deu origem à terceira parte da dissertação. E ainda os
artigos da critica à exposição“Continentes”.
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HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Índice Geral
Agradecimentos...................................................................................................................................... 4
Resumo................................................................................................................................................... 5
Apresentação .......................................................................................................................................... 1
Índice Geral ............................................................................................................................................ 5
Prefácio................................................................................................................................................... 7
Capítulo 1 - Da Euforia Revolucionária à Vontade de Mudança..................................................... 12
1.1
O 25 de Abril e a Missão Revolucionária: Arte e Intervenção ............................................. 13
1.1
As Bienais como Reflexo das Tendências do Campo Artístico............................................ 15
1.2
Exposições relevantes entre 1979 e 1986 ............................................................................. 17
1.3
Anos 80: o fim da obrigatoriedade revolucionária e as transformações no “universo” cultural
português. ......................................................................................................................................... 27
1.4
A capitalização do campo artístico, ou o mito do mercado ................................................. 31
Capítulo 2 - Da Modernidade à Pós-Modernidade ........................................................................... 36
2.1
O conceito de modernidade e as implicações na prática artística ......................................... 38
2.2
Anos 80: correntes artísticas dominantes e o pensamento estético...................................... 46
2.2.1
A transvanguarda.......................................................................................................... 47
2.2.2
Os “pós-modernismos” na arquitectura ........................................................................ 51
Capítulo 3 - A “Saga” Homeostética ................................................................................................ 56
3.1
ESBAL 1982: um clima propício à eclosão homeostética.................................................... 56
3.2
Os grupos no meio das artes plásticas. Homeostética, grupo ou movimento?.................... 61
Capítulo 4 - Percurso e Visibilidade................................................................................................. 69
4.1
O Reconhecimento Hoje....................................................................................................... 69
4.2
Exposições e textos de catálogo ........................................................................................... 74
4.2.1
Educação Espartana...................................................................................................... 78
4.2.2
Continentes ................................................................................................................... 80
4.3
As Opiniões da Crítica.......................................................................................................... 83
Capítulo 5 - Os Manifestos Homeostéticos ...................................................................................... 87
5.1
Caracterização / Identidade .................................................................................................. 88
5.2
“Art World”.......................................................................................................................... 93
5.3
Reflexão sobre a nacionalidade ............................................................................................ 96
5.4
Projecto e Intenções.............................................................................................................. 98
Capítulo 6 - Os Referentes Teóricos............................................................................................... 103
6.1
Hermenêutica, filosofia e pensamento estético................................................................... 103
6.2
A Teoria da Interpretação de Ricoeur................................................................................. 106
6.3
Jauss e a “Estética da Recepção”........................................................................................ 109
6.4
O Dialogismo Bakhtiniano ................................................................................................. 111
6.5
A Fenomenologia ............................................................................................................... 116
6.6
A Teoria da Ideologia de Ricoeur e o Mito, o Dogma e a tradição na Teoria Homeostética
119
Capítulo 7 - Os Princípios Homeostéticos...................................................................................... 123
7.1
Post-paradoxologia ............................................................................................................. 123
7.2
Parahermenêutica ............................................................................................................... 128
7.3
Infracriptográfico................................................................................................................ 132
7.4
Transmenipeia .................................................................................................................... 137
Capítulo 8 - O Processo Criativo .................................................................................................... 146
8.1
Apropriação ........................................................................................................................ 146
8.2
Desconstrução..................................................................................................................... 149
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HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
8.3
Reflexão.............................................................................................................................. 151
8.4
Reconstrução ...................................................................................................................... 153
8.5
O Topos da Arte.................................................................................................................. 157
Capítulo 9 - Métis Kairós Enthousiasmous e a Sofística ................................................................ 162
Posfácio .............................................................................................................................................. 168
Bibliografia......................................................................................................................................... 174
Artigos da Crítica ............................................................................................................................... 179
Artigos (Outros), em Colecções, Revistas, Publicações.................................................................... 181
Catálogos de Exposições .................................................................................................................... 183
Outros ................................................................................................................................................. 184
ANEXOS – Índice geral..................................................................................................................... 185
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HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Prefácio
Ao longo deste trabalho apresentaremos a “Homeostética”, enquadrando a sua
actuação na primeira metade dos anos 80. Trata-se de um período que se caracterizou
em Portugal pelo esbatimento da utopia revolucionária, em simultâneo com a
abertura de país ao mundo, nomeadamente, a adesão à comunidade europeia e a
absorção da população retornada das antigas colónias. Dum modo geral assiste-se ao
desenvolvimento da sociedade de consumo e de modos de vida hedonistas e
privatistas cuja consequência em termos culturais se manifesta no despique pelo
protagonismo e na tomada de consciência da necessidade de divulgar a produção
artística a um público mais vasto, quer no contexto nacional, quer no contexto
internacional.
No campo artístico foi um período de todas as afirmações, como repetidamente
declararam alguns críticos, e associadas a estas gera-se uma dinâmica que pretende
tomar posse dos mecanismos de legitimação desse mesmo campo. Nela estão
envolvidos os novos artistas, os novos críticos, as novas instituições e as novas
galerias.
Relativamente ao discurso teórico sobre arte existe a disposição em reclamá-lo para o
artista, enquanto que na prática artística se assiste a uma tal profusão de temáticas e
modos de fazer que reunidos apressadamente sob a designação de “eclectismo”,
indicam que a liberdade para a experimentação e para o individualismo, ultrapassa
tanto os academismos quanto as motivações ideológicas e que prazer e
profissionalismo podem coexistir. No reverso, o chamado “regresso à pintura”, é
visto por alguns críticos como uma resposta às necessidades do mercado da arte e ao
aparecimento duma jovem média burguesia que pretende investir e enfeitar-se
culturalmente.
Face à catadupa de propostas e ao surgimento nos artistas de uma atitude que permite
a coexistência pacífica de “gerações” estilísticas, coloca-se em causa o termo e o
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HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
papel da Vanguarda. Vulgarizada e assimilada pela moda, esta expressão parece ter
perdido o o sentido que a caracterizou desde os finais do sec. XIX: factor de
resistência, ou de ultrapassagem conceptual. De facto estes anos 80 trazem-nos uma
concepção artística que assume a fragmentação, a subjectividade, o abandono de que
uma obra de arte pode contribuir para resolver os problemas sociais e de que existe
uma única tendência de natureza estrutural e fundamental.
Ao analisarmos a critica de arte, observamos a coexistência das várias mentalidades
que definem o período de transição e o estado de indeterminação conceptual que se
vivia. Os críticos que se haviam empenhado nos valores por que se regeu a arte no
período revolucionário reflectem um certo desânimo face a um movimento de
entropia e de afastamento do papel interventivo da arte no social. Outros, numa
atitude expectante face ao trabalho e atitudes dos artistas mais jovens, para as quais
não parecem encontrar uma explicação teórica e conceptual esclarecida, remetem, na
perspectiva mais optimista, para a responsabilidade do artista a tarefa da sua autolegitimação.
Apesar do aparecimento de artistas e figuras do mundo da arte internacional em
acontecimentos artísticos nacionais e da influência que estes terão tido na abertura do
sistema legitimador, a verdade é que em termos de teoria de arte poucos são os que
escrevem ou reflectem sobre os conceitos que nos círculos universitários europeus e
americanos, vêm a influenciar o discurso sobre a arte.
Os jovens “homeostéticos” encontram-se como estudantes na Escola Superior de
Belas Artes de Lisboa, sensivelmente entre 1981 e 1982. Pertencem a uma geração
que reflecte os paradoxos da sociedade portuguesa e incorporam-nos na sua prática
numa clara atitude de irreverência que se poderá situar entre a utopia e a
transgressão. Como grupo têm uma dupla face: uma extra-mural, conivente com o
“art wold”, de tal modo que os elementos deste grupo iniciam a sua carreira
profissional no decorrer do período homeostético, enquanto que no seu aspecto intramural, na clandestinidade, para usar uma expressão muito reabilitada pelo período
revolucionário, desenvolvem uma série de acções que têm a ver com um
experimentalismo interdisciplinar, que parece não ter cabimento nestes anos
dominados pela lei do mercado.
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HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
A duplicidade Homeostética é magnificamente ilustrada pela trilogia de conceitos
que encontram para definir a sua teoria: Métis, kairos, Entousiasmos e que em suma
resumem a cartilha do artista nestes anos 80: Capacidade de fazer, saber tirar partido
da ocasião e finalmente, o entusiasmo gerador da persistência e da persuasão.
Foi sem dúvida o seu aspecto intra-mural que mais nos aliciou, e neste, a produção
teórica elaborada e quase não divulgada, ou não divulgada de todo. Assistimos assim
a uma ficção organizada com displicência, mas não isenta de intencionalidade. Prova
disso foi a existência de documentos e manuscritos originais ciosamente guardados
pelos elementos do grupo. Através da análise destes textos assistimos à leitura critica
dum período, onde para além das referências aos aspectos sociais, mundanos e
políticos, se levantam questões e reflexões que se processam de modo mais alargado,
nos domínios da arte, da estética, da filosofia, dos estudos literários. Pedro Portugal
diz: Parece-me que todos tínhamos a certeza do que era a estética certa. Intuição
transpenipeica? Transe?
E o que é este “intuição” senão um sintoma das afinidades que atingem todas as
áreas do saber num mesmo e determinado período?
As intenções e propostas da Homeostética consistem na contaminação das disciplinas
e na dissolução das categorias, na relação da obra com o fruídor, na revalorização da
função retórica da imagem, e numa atitude claramente lúdica e crítica, revêem as
mitologias e figuras da identidade nacionais sob a forma de clichés icónicos. A
paródia , no sentido que lhe atribui Linda Houtcheon (“repetição com distância
critica”) surge na apropriação, quer do passado (obras, mitos, figuras), quer do
presente (política, teoria e crítica da arte, factos quotidianos) duma forma
completamente desiherarquizada, mas que partindo da intenção e da preferência do
artista, desencadeia o processo criativo e constitui afinal o contéudo e o poder
semântico da obra.
Partindo da ideia que se vive uma época babélica, a sua teoria advoga a
continentalidade da arte. A Continentalidade é uma metáfora para designar a abertura
da arte ao Outro. O Outro entendido por: outros campos do saber e do fazer;
entendido na problemática da relação da obra com o público; entendido na relação do
artista com a própria arte.
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HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Deste modo, o texto homeostético, além de prender o leitor pela qualidade da sua
paisagem discursiva cheia de metáforas e analogias, suscita e propõe conceitos que
nos levaram a pensar o papel da hermenêutica, da recepção, da intencionalidade e das
relações que estes estabelecem com o pensar e fazer arte. O Topos da arte e os
factores que a distinguem como “discurso” intemporal são também questões às quais
se irá procurar responder.
Colocar os textos homeostéticos à disposição de novos leitores e de novas leituras,
irá contribuir sem duvida para confirmar a capacidade do artista na condução do seu
próprio discurso sobre a arte. Esta investigação merece ser continuada de modo a
fazer uma cobertura mais extensa de todos os originais, inclusive por estudiosos de
outras áreas do saber, já que se produziram também pequenos contos, sinopses e
poesia. Houve ainda outro material que de momento não me foi possível considerar,
as imagens. Por um lado, porque a produção realizada nessa época já desapareceu
quase toda, por outro lado, porque mesmo o pouco existente implicaria um trabalho
aprofundado de natureza iconográfica e iconológica, que no entanto, considero
indispensável para completar o desenvolvimento deste trabalho.
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HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Parte I – Enquadramento
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HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Capítulo 1 - Da Euforia Revolucionária à Vontade
de Mudança
No primeiro capítulo serão abordadas as tendências artísticas que se foram revelando
no contexto nacional após o 25 de Abril de 1974, com destaque para a fase pósrevolucionária, consolidada nos anos 80. É no auge deste período pós-revolucionário
que surgem grupos entre os quais o Homeostético que, apesar da sua juventude, irá
participar no aparecimento de novos paradigmas e atitudes no campo artístico
nacional.
Será esclarecido genéricamente o que se entende por “campo artístico” e como se
processam os mecanismos de legitimação. Será neste quadro que assistiremos à
reconfiguração de protagonismos através dos acontecimentos que se afiguram mais
significativos, e que permitiram a emergência do grupo homeostético. Até que ponto
contribuíram ou simplesmente acompanharam uma tendência favorável, são questões
que ficam em suspenso.
Porquê retomar o fio a partir do período revolucionário? Num contexto minimamente
biográfico, impõe-se rever a importância deste acontecimento que Maria de Lourdes
Pintasilgo designa como acto fundador 2
e a sua influência na formação da
identidade destes artistas, à época, adolescentes. Referimo-nos a uma das gerações
do 25 de Abril, ainda não aquela que, nas palavras 3 de Idalina Conde, se caracteriza
pela assunção “natural” da modernidade portuguesa, mas a geração que foi semeada
2
Nas palavras de Maria de Lourdes Pintasilgo (Dimensões da Mudança), mais do que revolução, o 25
de Abril foi um acto cultural, um acto fundador: foi acontecimento, irregularidade, perturbação,
quebra do previsível, desvio em relação à norma, onde um curto período de euforia (-25 de Abril de
74 a 11 de Março de 75-) se pautou pela participação popular na vida pública, algo que compara aos
fenómenos ocorridos nos anos 60, em países como França, EUA, Japão, entre outros.
3
Conde, Idalina, “Contextos, Culturas, Identidades” in António Firmino da Costa e José Manuel
Viegas (orgs.), Portugal, Que Modernidade? , Oeiras, Celta, 1998, p. 103: “Os jovens que pertencem
à democracia da última vintena de anos em Portugal, nasceram com a nossa própria modernidade, e
nessa medida representam, talvez, o produto mais “natural” de uma forma múltipla de ser que não
perde os vínculos primordiais”.
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HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
no período anterior, que explodiu com a euforia do “pós” e amadureceu ao longo dos
anos 80. A geração que reflecte todos os paradoxos da sociedade portuguesa num
período que Boaventura de Sousa Santos designa “de transição”.
1.1
O 25 de Abril e a Missão Revolucionária: Arte e Intervenção
No Catálogo da Exposição “Aspectos da Arte Abstracta 1970-80”, Rui Mário
Gonçalves afirmava:
“Um fundo crítico - ideológico impõe a esta exposição uma dupla intenção que o crítico
Ernesto de Sousa, seu organizador, definiu “Primeiro: que a única atitude ou função
didáctica válida no nosso tempo é de natureza estética. Segundo: que todas as vanguardas
estéticas que realmente merecem esse nome se confundem, ou convergem para uma única
a que chamarei conceptual. Por isso (...) não havia pinturas emolduráveis ou esculturas
“plintáveis”. Por isso havia uma máquina para música bio-electrónica e uma
“secretária” para uma sociedade em vias de “construção”, mas não havia objectos, essa
mentira e repressão a todos os projectos, obras acabadas, negações de liberdade” 4 .
Asfixiada pela condição periférica e pelo isolamento do país face aos principais
centros de produção artística e de inovação (Europa e, crescentemente, os Estados
Unidos), a situação da arte portuguesa foi, em consequência da política cultural do
Estado Novo e apesar das emigrações artísticas, afectada na sua possibilidade de
projecção e diálogo com o exterior.
Contrariando a natureza expansiva e errante do português, o fechamento da ditadura
criou no plano cultural um período “Sem começo, nem acabamento. Rito sem
passagem, festa sem orgia” onde a negatividade se transforma na resistência possível,
a resistência do sobrevida” 5 .
Entretanto, a partir dos finais de 60, alguns artistas que, emigrando, se afirmam em
território europeu são mitificados e os que vão lá fora e regressam vêm a influenciar
particularmente a década de setenta, introduzindo tendências
alinhadas com as
4
Gonçalves, Rui Mário, in: Catálogo da Exposição “Aspectos da Arte Abstracta 1970-80” SNBA ,
Janeiro-1982.
5
Sousa, Ernesto de, Ser Moderno em Portugal, p.22.
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HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
correntes conceptuais e vivificadoras da prática artística (João Vieira, Lurdes de
Castro, René Bertholo, José Escada, Helena Almeida, e outros).
No plano institucional, este processo de abertura da arte portuguesa assiste a uma
dinâmica que se manifesta pela procura de uma expressão mais pública através da
expansão do mercado e aumento dos investimentos artísticos (abertura de novas
galerias, inauguração da Fundação Calouste Gulbenkien). No entanto, os anos setenta
serão marcados pelo estabelecimento de novas relações entre a arte e o público,
investindo-se sobretudo em território nacional.
Sublinhando a importância cultural do 25 de Abril pela "ruptura", pelo “desvio em
relação à norma”, viver-se-á um período eufórico, alucinante e mágico (Mª
L.Pintasilgo), em que conscientes da necessidade dum forte suporte cultural na
formulação duma nova maneira de viver em sociedade, “trabalharam artistas,
imensos. Todos.”
Após o 25 de Abril, verificam-se duas grandes vertentes na acção artística, uma
mais interventiva, outra mais conceptual, mas ambas de acordo quando à necessidade
de questionar a arte enquanto objecto, logo enquanto mercadoria.
Ao Norte, mobilizam-se artistas em redor de projectos de descentralização
cultural 6 com evidentes preocupações pedagógicas e de intervenção social e
política. A acção artística e os debates da época visavam o conceito e a prática duma
arte sociológica 7 . Essa prática visava também subverter as estruturas tradicionais
do campo artístico, onde a pintura e a escultura são preteridas em favor das acções de
rua, dos happenings e das performances. Numa fase inicial (74 -76) o grupo Alvarez
(Porto), particularmente Jaime Isidoro e o critico de arte Álvaro Egídio irão organizar
os Encontros Internacionais de Arte (Valadares, 1974; Viana, 1975; Póvoa, 1976;
Caldas, 1977), que terão como consequência as Bienais de Cerveira, a partir de 1978.
Mas outras acções colectivas e dos novos modos de semear arte, serão dinamizadas
através de grupos como Puzzle,Texturations, Presença, Vanguardas Alternativas e
Centro de Artes Plásticas de Coimbra, entre outros.
6
M. L. Pintasilgo sublinha (p.66) que nesse período a gente da cultura apostava numa “via original”.
14
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Em Lisboa, as actividades conceptuais e pós –conceptuais, entretanto
protagonizadas por inúmeros artistas, serão o assunto aglutinador da exposição
"Alternativa Zero", organizada por Ernesto de Sousa em 1977.
Claro que em Portugal houve e há um espírito Fluxus, mesmo com os nomes mais
dispares, abjeccionismo, surrealismo, experimentalismo e até dadaísmo, e sem-nome o que
ainda é mais interessante. Isso provou-se por exemplo com a Alternativa Zero. 8
O espírito Fluxus 9 (To be in) é definido por Ernesto de Sousa como a recuperação da
antiga conexão entre a arte e vida, pelo envolvimento e participação, entrega e
abertura, dádiva improdutiva e, de um modo geral por todas as atitudes artísticas que
tendem a reverter a disponibilidade estética em festa.10
1.1 As Bienais como Reflexo das Tendências do Campo Artístico
O campo artístico é investido de dinâmicas próprias que lhe conferem autonomia e
especificidade. A sua génese está associada à constituição social do artista enquanto
“personagem”, dotado de individualidade e de “nome” e da crença do valor artístico.
Sendo assim, um sistema de posições, agentes e instituições ligados entre si por
relações de legitimação recíproca, condiciona o funcionamento da economia dos
bens culturais (locais de exposição, instâncias de reprodução dos produtos e dos
consumidores, agentes especializados), e impõe uma medida específica do valor do
artista e dos seus produtos. O campo das artes plásticas é então a área de intersecção
entre os agentes produtores, o público e os críticos / comentadores. As estratégias de
legitimação são ainda condicionadas (segundo Bourdieu 11 ), face à dupla clivagem:
temporal (antiguidade / actualidade) e institucional (centralidade / periferia). A
sucessão no campo artístico dá-se de forma quase convulsiva e cíclica, mantendo-se
7
Conde, Idalina – “Transformações recentes no campo artístico português” in A Sociologia e a
sociedade portuguesa na viragem do século (Actas do I Congresso de Sociologia), 2º Vol., Lisboa,
Editorial Fragmentos/ Associação Portuguesa de Sociologia, 1988.
8
Sousa, Ernesto de: Ser Moderno em Portugal, (P. 251).
9
Idem, ibidem. Na pag. 250 Ernesto de Sousa faz uma síntese histórica do movimento Fluxus.
10
Idem, ibidem: p.143.
11
Sobre a definição de “Campo Artístico”, ver: Pierre Bourdieu, Les régles de l´art – génese et
stucture du champ literaire, Paris, Éditions du Seuil, 1992 e na mesma linha, José Augusto França,
“Le fait artistique dans la sociologie de l´art” in Colóquio Artes, nº17, 1974.
15
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
a estrutura formal do campo, apesar de mudarem os conteúdos (conjunto de agentes,
grupos, movimentos estéticos). Como estrutura dinâmica obedecem a ciclos de
“estruturação, desestruturação e reestruturação” através de ritmos, duração,
intensidades. Este movimento, dá-se pela oposição dinâmica de gerações artísticas e
respectivos modos de produção estética, sendo a curta duração, uma característica
das últimas décadas do século XX.
Sucedâneo do antigo “Salão”, a “Bienal” procurou imitar, ainda que a uma escala
mais modesta, os grandes encontros internacionais e democratizar o acesso à
participação. Decorrente da política de descentralização cultural, característica da
primeira fase do período pós - revolucionário que se estendeu até meados dos anos
oitenta, permitiu que se tivessem encontrado os novos protagonismos que se
destacaram nessa década. Nestas Bienais 12 observou-se um fluxo e uma emergência
de artistas cada vez mais jovens, na sua maioria estudantes da Escolas de Belas Artes
de Lisboa
portadores de expectativas de profissionalização antecipadas, se os
compararmos com o comportamento e o tempo de carreira dos membros das
gerações mais velhas.
A bienal reserva regularmente um espaço para a exposição de obras de artistas
homenageados, representantes prestigiados da arte moderna portuguesa (...). Sarah
Afonso e Almada Negreiros na 1ª Bienal, Barata Feyo na 2ª; Vieira da Silva na 3ª;
Amadeu de Sousa Cardoso e Santa Rita na 4ª. Nesta última Bienal conservou-se
igualmente uma sala para oito dos artistas pioneiros do processo de vanguarda: Arlindo
Rocha, Fernando Lanhas, João Hogan, Joaquim Rodrigo, Júlio Pomar, Júlio Resende e
Luís Dourdil, geração dos anos 40 até hoje (...). Já na 5ª Bienal (1986) numa secção à
parte apresenta-se a nova geração de pintores (seleccionados também pela nova geração
de críticos): Pedro Calapez, Cabrita Reis, Xana, Pedro Portugal, Pedro Proença, entre
outros. Em 1984 um grupo destes jovens constitui o que hoje será designada de geração de
oitenta nas artes plásticas portuguesas, geração produtora de novos comportamentos
estéticos e também recentes reconhecimentos institucionais - o que acontece em Cerveira,
12
Depois da 1ª Bienal de Cerveira em 78, seguir-se-ão: Campo Maior em 81; Lagos em 82 e Chaves,
em 83. Idalina Conde faz o estudo do campo artístico nacional seguindo a Bienal de Cerveira entre 78
e 84, e defende que através desta bienal lhe foi possível assistir às “tendências de reestruturação” e
“reconstituição de protagonismos” onde distingue duas etapas: uma primeira, de 78 a 84, e outra
posterior.
16
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
em 86, quando para eles é reservada uma secção extra concurso, representando as actuais
tendências da vanguarda. 13
Este excerto oferece-nos uma visão retrospectiva do desenvolvimento dos
protagonismos e respectiva valorização e legitimação. Se as primeiras bienais se
fazem creditar com artistas consagrados, seguida duma geração de abstraccionistas à
qual ainda não se teria prestado a devida homenagem, já nas últimas bienais, a
juventude ocupa o primeiro plano, numa atitude orquestrada de clara afirmação e
tentativa de domínio dos mecanismos de legitimação. Apontando para uma direcção
distinta daquela que se manifestou na década anterior, as Bienais de 84 e 86, vêem
uma revalorização das artes plásticas tradicionais (pintura e escultura e modalidades
próximas). As modalidades desenvolvidas, principalmente nos anos 60 e 70,
"aparecem agora (na opinião dos artistas e críticos emergentes) como sinal de uma
modernidade atrasada" 14 e pouco representativa da estética internacional .
1.2 Exposições relevantes entre 1979 e 1986
Analisados em traços gerais o período pós-revolucionário e a sua influência na
prática artística, constata-se que em finais da década de setenta uma série de
exposições irá contribuir para uma mudança do paradigma estético e a emergência
daquela que foi designada de “geração de 80”. Através destas exposições
assistiremos à reconfiguração do campo artístico e aos protagonismos, atitudes e
conceitos daí decorrentes.
Dois anos depois da Alternativa Zero, a Galeria de Arte Moderna de Belém recebe,
durante os meses de Outubro e Novembro, uma grande exposição internacional de
desenho - LIS 79 15 . Organizada pela Secretaria de Estado da Cultura, pretendeu
cumprir dois objectivos: divulgar as novas propostas e confrontá-las com as práticas
estabelecidas. Os textos do catálogo são da autoria de José Augusto França e do
13
Conde, Idalina “Bienais e Artistas em Cerveira”, in Sociologia, Práticas e Problemas, nº4, 1988,
Pág. 103.
14
Idem, Ibidem, pag. 96
15
LIS´79 –Exposição Internacional de Desenho – Galeria Nacional de Arte Moderna – Lisboa 30 de
Outubro a 30 de Novembro.
17
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
teórico da Transvanguarda Achile Bonito Oliva, tendo este integrado o júri de
selecção das obras premiadas.
Atendendo às notas da crítica, destaco em Eurico Gonçalves 16 as referências ao
eclectismo da selecção que vem demonstrar a possibilidade de coexistência de
diversas tendências estéticas. Já Nelson di Maggio 17 , com o título Lis´79 cai em zona
cinzenta, chama a atenção para aspectos contextuais, criticando a ineficiência da
organização no que diz respeito à divulgação e alerta para necessidade de uma
mediatização dos acontecimentos artísticos como forma de os valorizar. Num
historial breve sobre as mutações de sentido do desenho, admite que se impõe um
novo código de leitura, pois “ tudo é permitido, e as artes inter-relacionam-se
intercambiando-se. É difícil delimitar fronteiras. A colagem, a pintura, a terceira
dimensão, os mais diversos materiais são chamados a participar num “desenho”.
Ao mesmo tempo, entre 1 e 26 de Outubro, ocorria em Estugarda uma exposição em
reacção ao IX Congresso Internacional de Artistas, que se reunira nessa cidade a 29
de Setembro. Esta exposição surgiu da iniciativa de 50 Galeristas de 10 Países
Europeus atentos não só à vanguarda, mas sobretudo à juventude dessa vanguarda.
Entre os “operadores estéticos” Cerveira Pinto 18 destacou: Nikolaus Urban, Pieter
Mol, Gerard Merz, Mary Kelly, Stephen Mckenna, Tonny Cragg, Michelle Zaza,
Mimmo Paladino, Marci Bagnolli, Nicola di Maria, Luccianno Castelli (premiado na
Lis 79), Michel Biberstein, Jorg Renz, Ruch. Os artistas portugueses, representados
através da Galeria suíça E+O Friederisch, foram Julião Sarmento e Helena Almeida.
A estes artistas,
aponta uma filiação onto-estética que designa por narcísica
negativa, com origens nas sensibilidades do pós-guerra e cujas manifestações
reflectem um estado de tensão e conflito entre a subjectividade concreta e os
instrumentos da sua manifestação: as linguagens. Cerveira Pinto associa o
narcisismo negativo a uma exaltação nostálgica do paraíso perdido, da perda da
paisagem e do centro de que o homem é símbolo. A exteriorização deste sentimento
16
“Lis´79: Exposição Internacional de Desenho” in: Diário Popular, Lisboa, 8/11/79 .
17
In: O Jornal, Lisboa, 9/11/79.
“ Europa: Arte dos anos 80” in: Diário Popular, Lisboa, 18/10/79, pp.X-XI.
18
18
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
revela-se na provocação e mutilação levada a efeito pelo artista, inclusive com seu
próprio corpo.
Em oitenta, a Bienal de Paris recebe, após um interregno de onze anos, uma
representação portuguesa. Referindo-se-lhe, Egídio Álvaro 19 manifesta decepção
face às novas tendências artísticas que se afastam da intervenção social, convergindo
em noções que designa por “conceptualismo romântico na teoria, pragmático e frio
nas obras”, onde emerge um discurso marcado pela “efemeridade, solidão, silêncio,
de coisas situadas entre a vida e a morte”. Critica a atitude estética de aproximação
às teses do sublime: “Entramos no campo da Utopia, na definição da obra de arte
como passaporte para a plenitude. É pedir um pouco demais, sobretudo no estado
actual da sociedade, em que os estetas não abundam. Utopia, romantismo, ilusão?”.
Para Egídio Álvaro, a arte portuguesa passa por um estado de indeterminação: “estes
artistas representam em Portugal uma certa ruptura, uma concepção particular … que
não se definiu ainda suficientemente e que … se orienta mesmo para vias … que
escapam às intenções conscientes dos seus praticantes”.
A Documenta 7 de Kassel, em 1982,
consagra o conjunto de artistas que
anteriormente haviam exposto em Estugarda e as tendências por eles representadas.
Conjuga o carácter retrospectivo, apresentando artistas como Beuys, Merz, Warhol,
Oldenburg, Kossuth, Burri e Serra, com o de consagração de jovens artistas como
Clemente, Chia, Paladino, Longo, Cragg, Salomé, Salle, Imendorf, Kiefer,
representantes
das
tendências
transvanguardistas,
neo-expressionistas
e
americanas dos anos 80. Portugal faz-se representar pela primeira vez por Julião
Sarmento, cujo trabalho, segundo Leonel Moura 20 se caracteriza por um optimismo
estético e pela busca de referências interiores, ao que se acrescentam todos os dados
culturais à mão, sem qualquer preocupação de rigor linguístico.
Entretanto, no contexto nacional e após o incêndio do Centro Cultural de Arte
Moderna de Belém, a Sociedade de Belas Artes de Lisboa irá ocupar o lugar dos
acontecimentos artísticos mais significativos e determinantes no processo de
afirmação de diversos artistas entre os quais se situa o grupo Homeostético. A
19
20
“Portugueses na Bienal de Paris” in: Diário de Notícias, Lisboa, 23/10/80 .
“Documenta 7” in: Revista Mais, nº 18, Lisboa, 13/8/82, pp. 46-48.
19
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
escolha deste espaço para a realização da Exposição Continentes, não se deveu só às
características do salão, mas também ao carácter patrimonial e emblemático desta
instituição, única associação de artistas a representar as principais “épocas” da arte
portuguesa desde finais do século passado.
No mesmo ano (1982), a SNBA realiza a Exposição de Arte Moderna 82. Mais do
que a selecção de artistas, importa destacar o texto introdutório do catálogo assinado
por Fernando de Azevedo:
“Opondo-se a uma localizada persistência passadista os Salões de Arte Moderna da
SNBA foram, em seu tempo, uma necessária frente empenhada na defesa de um espírito de
actualidade (...). Pode ser que este nome de moderno, tal como a palavra arte, (...)
guardem hoje um certo ressaibo épocal e apeteçam outras fórmulas mais em uso e, por
isso, também epocalmente mais significantes. (...) Caracteriza este espaço um evidente
eclectismo de tendências que reflecte, sobretudo, uma diversidade de atitudes, de
expressão, de processos, na permanência de uma experiência que consagra algo do
espírito modernista, de par com outras manifestações em que um maior sentido
experimentalista ou mais acentuadamente polémico por sua vez se manifesta (...). 21
Neste excerto podem adivinhar–se hesitações face à indeterminação dos conceitos
surgidos nas teorias estéticas e filosóficas, bem como uma certa crise de certezas que
se procura ultrapassar através do eclectismo da selecção.
O ano de 1983 começa com a exposição Depois do Modernismo 22 , antecipadamente
anunciada na revista Expresso do mês de Novembro através de um artigo 23 de
Francisco Belard e de um texto de Eduardo Prado Coelho, onde este tenta explicar o
que é o Pós-Moderno. Este objectivo foi também o dos promotores da exposição,
bem como a necessidade de “delimitar um estado de espírito”.
Com um carácter ecléctico, a exposição reuniu várias disciplinas: Artes Visuais,
Arquitectura, Moda, Música, Dança, Teatro e Colóquios. Germano Celant e Rudi
Fucks foram alguns dos convidados internacionais que participaram nos colóquios.
21
Catálogo da “Exposição da Arte Moderna - 82” SNBA.
Sociedade Nacional de Belas Artes, Lisboa, 7 a 30 de Janeiro.
23
“Depois do Modernismo” in: Revista Expresso, Lisboa, 20/11/82.
22
20
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Segundo Belard, descobre-se neste projecto a necessidade de legitimar um
território, ainda que esse não seja um lugar de homogeneidade, ou de pacíficos
encontros.
Trata-se conscientemente da primeira afirmação geracional, que coloca questões
relativamente novas em Portugal:
1. « Em que medida se esgotou o conceito e o conteúdo do Modernismo?
2. Haverá em Portugal formas de expressão que possam integrar uma noção como
Pós-modernidade?
3. Haverá aspectos comuns às várias disciplinas artísticas? Que espírito particular
representará este facto? »
Demarcando-se claramente da institucionalização modernista e referindo-se à
incapacidade
de esta concepção accionar os poderes criativos de negação, os
coordenadores da exposição defendem que os anos 80 assistem a uma revalorização
da subjectividade. Em termos de expressão plástica, José Luís Profírio 24 assinala
uma rematerialização da arte, protagonizada pela figuração do corpo humano em
artistas como Leonel Moura, José Carvalho, Julião Sarmento e António Palolo.
É nesta rematerialização (reconversão à sensualidade, passagem do conceito ao
objecto) que reside uma das mudanças significativas deste começo dos anos 80.
Passando à análise dos textos do catálogo, Cerveira Pinto situa a arte no âmbito da
linguagem onde os sentidos actuam como ponte que o sujeito lança objectivamente
em direcção à sua exterioridade feita objecto. Segundo ele, esta ponte é um corredor
histórico-cultural, portanto ideológico. Pondo em causa a utilidade social da arte,
afirma que o seu objecto é o sujeito. Interroga-se acerca do discurso artístico
enquanto forma de legitimação, defendendo
a conquista da autonomia 25 desse
discurso, bem como a sua devolução ao artista: “a discussão teórica sobre arte … é
em absoluto privilégio do artista”, transformando-se assim numa meta-linguagem: “
24
“A moda e o resto” :, Revista Expresso, ( p. 31), Lisboa, 29/01/83.
25
Esta autonomia implica uma linguagem / código artístico que medeia as interacções dos seus
elementos e que delimita o acesso ao campo, uma vez que a sua decifração (conceitos, categorias, e
símbolos), pressupõe uma aprendizagem e uma acumulação de capital cultural e simbólico. A
contribuição do estruturalismo e do conceptualismo foi decisiva para a autonomia do discurso
artístico.
21
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
todo o discurso tendente a esclarecer o sentido e as deformações dum jogo de
linguagem chama-se (modernamente) uma meta-linguagem”.
Cerveira Pinto procura definir o “indizível pós-moderno” através dos seguintes
parâmetros:
“ Necessidade (…) de limitar a actividade predatória das colectividades e do indivíduo;
consciência da capacidade de real extinção da espécie humana; necessidade de uma
revolução radical do estatuto da individualidade (fim do «homo economicus»)”.
Neste contexto a Vanguarda 26 figura -se na “tríade Negação-Superação-Afirmação”,
cabendo ao
artista modificar o curso das tendências instituídas e reagir aos
condicionalismos históricos e ideológicos.
Continuando a análise do catálogo, e passando a Leonel Moura observo que este, tal
como João Boaventura Santos situa a sensibilidade pós-moderna entre atitudes de
suspeição e recuperação, das quais derivam uma série de impulsos contraditórios
que reflectem um estado muito particular das artes e da vida contemporânea:
esgotamento das propostas formalistas e incapacidade efectiva da produção do Novo.
Nestes impulsos distingue:
ƒ
A pouco convicta recriação de uma tendência geral neoclássica;
ƒ
O eclectismo (que designa de confusão geral);
ƒ A frontal recusa da veracidade possível da própria época.
Interrogando-se sobre a capacidade de renovação permanente da arte, para L. Moura,
urge desmistificar a ideia de progresso como factor positivo, restando uma noção de
diferença num contexto que se proclama a-histórico. Enfim, nesta perspectiva,
continuar a acreditar no que já não se pode acreditar é que é verdadeiramente a
condição pós-moderna.
José Barrias relaciona pós-modernismo com a permanência post-mortem do passado:
26
O conceito de Vanguarda tem uma conotação política pois está associado à oposição, “arte
burguesa” ou comercial e “arte pura” ou desinteressada, sendo a segunda privilegiada pelo campo
artístico, gerando no entanto as lutas e contradições entre grupos, e acabando por alimentar um
processo circular (inovação, assimilação, inovação) de auto renovação. Na perspectiva da Sociologia
da Arte, este movimento pode traduzir-se pelo confronto “norma e desvio” ou “ regra e contra-regra”,
entre os “estabelecidos” e respectivo publico e os “aspirantes” destinados a públicos por conquistar.
Para mais esclarecimento sobre este assunto consultar, “O Poder simbólico” de Pierre Bordieu.
22
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
“ A arte não se mexe, a arte tende (…) porque as alternativas não se verificam”. Daí o
surgimento duma “estética de etiqueta – que tranquiliza a consciência (pequeno burguesa,
porque outra não está à vista) na actual perspectiva da exploração da volubilidade
consumista das modas e dos revivalismos de moda que alguns chamam história”.
A Moda, um dos temas da exposição, é definida como uma forma de vida
participante no contexto donde advém o movimento e a inovação : “Definir o nosso
modo de vida a partir da moda é escolher o desconforto, a vertigem do movimento, é
sacrificar o essencial para sublimar o acessório”. Moda e Vanguarda serão a mesma
coisa? – interroga-se José Luís Profírio 27 : “ou terá apenas mudado de nome essa
tradição do novo que sempre tem dominado a vida da modernidade?”
Relativamente à Arquitectura, destaco nas notas da imprensa, a opinião de Manuel
Graça Dias 28 , para quem as virtudes da exposição residem no relançamento da
“disciplina” como arte, contra a tecnicidade a que esta tem estado ligada e que a
afasta dos salões de exposição. Destaca o papel dos novíssimos arquitectos, com
idades entre os 27 e os 30 anos, que representam o “relançamento da Arte, em força,
em Portugal e em 1983”. Manifesta o seu contentamento pelo facto de a exposição e
o respectivo catálogo constituírem, não uma cartilha de tendências ou intenções, mas
um amontoado de ideias e atitudes, que, pela sua natureza dispersa, formulam um
“Álbum documental estimulador” para a desprezada disciplina, valorizando as nossas
soluções relativamente às estrangeiras.
Profírio 29 refere-se à saudável diferença de opiniões entre os arquitectos Lisboetas e
os Portuenses, sublinhando ainda a emergência de novas atitudes na arquitectura em
Portugal: os revivalismos e as atitudes de recuperação das práticas artesanais nas
campanhas de preservação do património.
Numa entrevista 30 dada pelos organizadores da exposição Depois do Modernismo,
publicada no Jornal em 8 de Janeiro, fica clara a intenção de não pretender dar
respostas, mas a de mostrar que existe um número significativo de artistas cujas
referências se afastam a passos largos daquelas por que se regem a pouca critica e a
pouca teoria de arte deste país.
27
In: Expresso, Lisboa, 29-01-83, p. 31R.
“Depois do Moderno? Portugal”, in Expresso, 8/01/83, p. 25R.
29
Op. Cit.
30
Cerveira Pinto “ O fim de um modernismo em debate”, in: revista Expresso, Lisboa.
28
23
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Os critérios que determinaram a selecção das obras expostas manifestam uma
concepção artística que assume a fragmentação, a subjectividade, o abandono das
ideias de que uma obra de arte pode contribuir para resolver os problemas sociais e
de que existe uma tendência única de natureza estruturante e fundamental. Destaquese o preenchimento do catálogo com textos de autor (artista) numa clara atitude da
apropriação do discurso critico-teórico pelo artista, conforme argumento apresentado
por Cerveira Pinto.
Se o ano de 1984 foi marcante na Bienal deVila de Cerveira pelas razões que já
apontei, em Lisboa, a grande colectiva “Novos, Novos” revela “obras significativas
de artistas portugueses e estrangeiros radicados em Portugal, novos na idade
(compreendida entre os vinte e os trinta anos), novos no seu aparecimento público, e
novos nas propostas estéticas que procuravam assumir. A Sociedade Nacional de
Belas Artes convidou 60 jovens artistas recentemente revelados, que por seu turno,
tiveram oportunidade de convidar mais 60.” Foram apresentadas 159 obras de oitenta
e seis autores.
No texto do catálogo, Eurico Gonçalves procura identificar as tendências estéticas
que caracterizam esta geração:
Numa primeira abordagem ressaltam algumas características comuns, derivadas de uma
nova atitude perante a arte: a “Bad-Painting”, o neo-expressionismo selvagem, a nova
figuração narrativa, “fauve” e “pop”, a nova abstracção, o conceptual, o elementarismo
emblemático e mínimal, o decorativismo deliberado, o “kitsch”, o neo-naturalismo, a
dissolução de fronteiras estéticas, a utilização de técnicas mistas em diversos suportes,
quer à escala monumental, quer no pequeno formato, e, sobretudo, uma grande vitalidade
associada à expressão directa e despreconceituada de certa irreverência. (...) O que
muitos destes jovens artistas pretendem é, de facto, desdramatizar uma situação histórica
de impasse, ao pintar descomplexadamente e despreconceituadamente, reabilitando o
instinto da pintura e o prazer lúdico da experimentação de diversos materiais e técnicas.
(...) A arte dos novos-novos (...) caracteriza-se por uma vitalidade que, associada às
proezas da imaginação, retoma aspectos julgados ultrapassados e chama a atenção para a
necessidade de se interrogar desde as origens, enraizando-se assim na mais viva tradição
criadora”.31
31
Gonçalves, Eurico: Catálogo - Novos Novos – SNBA, Setembro, 1984.
24
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Dois anos depois, as dúvidas apresentadas por Fernando Azevedo parecem ser aqui
resolvidas com optimismo:
Ser absolutamente moderno é ser capaz de se assumir inteiramente (…) é ser inovador,
promover novos modos de sentir e pensar (…) correr o risco de não ser imediatamente
entendido, ter de esperar algum tempo para que a sua linguagem seja estudada e
decifrada à luz de novos códigos. (…)
Tal como Cerveira Pinto, que defendeu a necessidade da autoria do discurso artístico
pelo artista, também Eurico Gonçalves vem dizer que ninguém melhor do que o
próprio pintor pode defender a sua pintura: “Só a convicção do artista o salva”.
O salão da Sociedade Nacional de Belas Artes será, em 1986, o local escolhido para
as exposições de afirmação de dois grupos que disputam entre si o protagonismo no
campo artístico. As exposições “Arquipélago” e “Continentes” são o corolário deste
período febril para a vetusta Sociedade. Neste ano, a Secretaria de Estado da Cultura
irá cortar o financiamento a esta instituição e, coincidentemente, a sua importância
junto às gerações mais jovens irá cair a pique.
Arquipélagos e Continentes, duas grandes exposições de afirmação geracional. O
regresso aos temas, aos títulos, e a discussão do sentido.
Segundo a teoria homeostética, a “autofagia” e a “continentalidade” encontram-se
em pólos opostos nos actuais posicionamentos perante a arte: autofagia, significa o
fechamento da arte sobre si própria. Nesta concepção são inscritas todas as
tendências monológicas da teoria de arte, nomeadamente aquelas que se pautam quer
pelo formalismo, quer pelo subjectivismo. Na prática artística, o conceptualismo, e
dum modo geral todas as práticas ligadas ao vicio do estilo. A continentalidade, pelo
contrário, visa o diálogo da arte com outros campos de saber e da vida, ou seja, de
tudo o que poderá contribuir para a riqueza semântica da obra e da experiência
estética do receptor. Nesta concepção, o estilo não faz sentido, pois será a apetência
pelos referentes e a natural mobilidade dos “apetites” que irá conduzir o surgimento
da obra. A Continentalidade é fundamentada na teoria homeostética, com veremos
mais detalhadamente na 3ª parte desta tese, pela co-habitação e pela participação.
25
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Citando do Texto 21 (Teoria Homeostética): Existe a postura de significação que é
um acto de dádiva, e a postura do significante que é meta-linguistica e por isso
mesmo autofágica (...). O “Projecto para texto sobre os Continentes”, que apresento
no sub-capítulo 4.2. é completamente elucidativo acerca desta problemática na
Teoria homeostética.
O catálogo da exposição Arquipélagos contém textos de Fernando de Azevedo,
Bernardo de Almeida e Maria Filomena Molder. Nas palavras de Azevedo, o
“Arquipélago” metaforiza a duplicidade da relação que, no percurso criativo, se
manifesta pelo vai-vém entre o exílio e a comunicação, a separação e o elo.
Da “fulcral relação entre local e global que domina cultura(s) e sociedade(s)
contemporânea(s) retira-se o direito à diferença” (B.P. Almeida).
De entre os
intervenientes no campo artístico, defende-se, à semelhança dos autores e críticos
que temos vindo a analisar, que deve ser o artista o responsável pela condução da sua
actividade e legitimação.
Ao negar a Instituição como ponto de partida, os responsáveis pela modernidade desde
sempre tiveram a consciência nítida de que não é a eles quem cabe procurá-la, mas àquela
que compete encontrá-los (…) a arte foi redescobrindo (…) o seu sentido – o seu lugar
exacto em relação à sociedade, não mais como ilustradora dos poderes de circunstância,
mas como domínio instigador do mito, lugar do artificio e do jogo, operando num limiar
ressacralizador do mundo (…) A arte não se pode confinar ao domínio estreito das escolas
ou de imposições constrangedoras, mas antes se reclama do gesto comum de uma comum
aprendizagem e invenção a que a Instituição, se quer sobreviver, deverá render-se. (F. de
Azevedo)
Do texto de Maria Filomena Molder, ressaltam as referências à analise dos trabalhos
expostos, dos quais terão desaparecido “a agonia da referência”, do ser real ou ideal
que marcou os inícios da arte moderna. Formalmente, e utilizando as palavras da
autora, observam-se movimentos de anfibiologia, que esta procura interpretar através
dum discurso estético pontuado pelos mais diversos e poéticos epítetos.
O catálogo da Exposição Continentes, deliberadamente, não inclui qualquer texto ou
apadrinhamento teórico, mas apenas uma dedicatória a Ernesto de Sousa.
26
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Ernesto de Sousa é considerado pelo grupo uma referência como artista e como
teórico de arte no século XX em Portugal. Trata-se portanto de uma homenagem.
1.3 Anos 80: o fim da obrigatoriedade revolucionária e as
transformações no “universo” cultural português.
A sociologia atenta às antinomias reflexivas classifica as mudanças na sociedade actual
como intensas, pludireccionais, contraditórias ... rumando-se assim para uma perspectiva
ecléctica atenta a paradoxos.
(Conde, Idalina: p. 79: Portugal, que modernidade? )
Relativamente à evolução política e sociológica da sociedade portuguesa nestes anos
de pós-revolução, as perspectivas são pelo menos de duas ordens:
Pintasilgo 32 refere a falta de visão da classe política e o progressivo fechamento que
se manifestou pela operação redutora de tudo limitar a esquemas e pressupostos
ideológicos:
“Mas mercê da inércia cultural dos principais actores da vida política, a margem do
desvio foi-se fechando até nela só ficar a rotina” 33 .
Da democracia participativa à democracia representativa, serão a contabilidade e o
mercado das ideologias a comandar o “País de Abril”, cujo corolário se dará com a
entrada na Comunidade Económica Europeia.
Se os partidários da “democracia participativa” se mostram desiludidos com o rumo
dos acontecimentos e vêm revalorizar a ideia de Utopia 34 e uma nova teoria da
democracia e da emancipação social (Pintasilgo, Boaventura S. Santos), outros há
que destacam a importância da conquista da modernidade e a velocidade a que tudo
aconteceu:
32
Pintasilgo, Maria de Lourdes (1988): “Contudo este fenómeno cultural em si mesmo, não foi
entendido nem pela inteligência, nem pelos líderes políticos do País” (p.217).
33
Idem, ibidem.
34
Santos, Boaventura de Sousa: Pela mão de Alice, o social e o político na pós-modernidade
( in Introdução) : " O excesso de regulação modernista faz com que (...) (o bloqueio das alternativas)
(...) só possa ser ultrapassado por via do pensamento utópico, aliás uma das tradições suprimidas pela
modernidade que urge recuperar".
27
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
(...) Nenhum outro País Europeu conseguiu liquidar o campesinato, alterar a taxa de
fecundidade, mudar os padrões de consumo, diminuir a mortalidade infantil, instaurar o
sufrágio universal, transformar as relações igreja - estado, criar uma classe média, abrir
as fronteiras a pessoas e bens, escolarizar a população, liquidar um império à velocidade
a que Portugal o fez. Na economia como nas almas o país está irreconhecível”. 35
Também Ernesto de Sousa nos traça um retracto do ambiente cultural neste período
de transição, onde destaca a mistura do velho e do novo e, consequentemente, o
aparecimento de novas relações de coexistência
Agora e aqui. Portugal muda vertiginosamente. Novos cinemas em exibição, companhias
de teatro independente que não se contam pelos dedos, traduções (algumas
surpreendentes), novos autores, novos interesses. É claro que o antigo persiste
remansosamente (...) É verdade, o novo e o antigo misturam-se. Ou melhor... Há o que
remanesce de um passado mais ou menos recente. Mas o antigo já verdadeiramente não o
é; porque onde há diferenças, mesmo que sejam pequenas roturas, pequenas clivagens,
todo o edifício treme.
36
A partir dos anos oitenta, Portugal tem os sinais de uma nova era, que o aproxima
das sociedades europeias: alargamento do sistema escolar; metropolização das
maiores cidades; esbatimento das fronteiras entre as culturas de elite, popular e de
massas e o surgimento entre os jovens de uma ética do lazer. (Conde: Portugal, Que
modernidade?, p.79).
Boaventura Santos chama-lhe "década pós - marxista" 37 , caracterizada pela
transnacionalização da economia, lógica económica capitalista sob a forma neoliberal e consequente apologia do mercado, da livre iniciativa, do fortalecimento sem
35
Mónica, Maria Filomena (1997: 230) “A evolução dos costumes em Portugal 1960-1995, in
António Barreto (Org.), A Situação Social em Portugal, 1960-1995, Lisboa ICS (citada por Idalina
Conde em Portugal, que modernidade? p. 79 ).
36
Ser Moderno em Portugal, p.23.
37
Santos, p.31: "O perfil pós-marxista da década de oitenta tem um traço fundamental: é antireducionista, anti-determinista e processualista"; (p.30): "Em virtude do colapso dos regimes
comunistas do Leste Europeu, o marxismo passou a ser visto como uma espécie de anacronismo";
(p.33): " a década de oitenta foi pois uma década em que o marxismo pareceu desfazer-se
definitivamente no ar".
28
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
precedentes da cultura de massas, e derivados estilos de vida e de imaginários sociais
individualistas, privatistas e consumistas.
Em Portugal, à semelhança do restante mundo ocidental, é a ressaca da política
manifestada pela descrença nas ideologias, ou grandes narrativas, como lhes chama
Lyotard.
O texto Homeostético 38 “O INCONSCIENTE POLÍTICO” destaca aspectos comuns
aos discursos político e artístico, assinalando a falta de consistência dos mesmos e a
sua dependência de situações conjunturais:
Se na produção artística influi obviamente a condição política, além de uma consciência
política (diluída ou não no discurso estético), esse espectro de consciência é apenas o
iceberg, a formalização de um inconsciente político. As variações a que nos fomos
acostumando quer na moda artística, quer no discurso político têm estado cada vez menos
dependentes de pressupostos nítidos. A consciência política é cada vez mais uma
consciência desenraizada cujos postulados se eriçam num discurso ecléctico cujos
desígnios são uma secularização dos discursos mais radicais cujo epílogo foi só no início
dos anos 70. Entre um nihlismo mais ou menos radical, um eclectismo racionalista e um
discurso arcaízante, têm-se sucedido algumas modas. A arte depende de factores mais ou
menos mimético / mediúnicos (não me lembro da expressão que Duchamp usou), o
discurso político, a sua consciência também dependem muito de factores ocasionais, de
uma inconstância mimética, do que aquilo que se possa supor. Não que tudo seja
aleatório, nem que tudo seja imprevisível, mas que perante a secularização das diversas
formas políticas (do fascismo, comunismo, da democracia europeia, etc, dos movimentos
contestatários, ecologistas, anarquistas, feministas e outros) ainda se pode assistir à
necessidade de variação, com a irrupção contínua de factores estranhos que põem em
causa as formas de poder constituídas (mesmo as mais abertas). Isto são truísmos, e todos
nós sabemos. As minorias passarão a ser cada vez menos minoritárias (...).
Trata-se duma
fase de transição paradigmática com um perfil vagamente
descortinável ainda sem nome, e que se designa por pós-modernidade (Santos, 1994),
onde emerge uma crise cujos sinais evidentes são a eminente catástrofe ecológica e a
mercadorização da vida 39 .
38
Texto 24 (Teoria Homeostética, em Anexos).
39
Idem, ibidem: pp.34 e 35
29
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
A referida ressaca política, manifesta-se na população em geral pelo desvio de
interesse dos valores (“grandes narrativas”: políticos, éticos, morais) para o consumo.
Contrariamente, em termos artísticos esse desvio é entrópico. De acordo com as
opiniões dos criticos que aqui temos vindo a analisar, as tendências vão no sentido do
exterior (do social, do interventivo) para o sujeito artista (subjectivismo), para a
disciplina, para a história, num movimento de reflexividade.
Ainda que “Modernização e Progresso" sejam as palavras de ordem da política
nacional, nos países altamente industrializados surgem desde os anos sessenta,
movimentos minoritários que traduzem a saturação e desilusão face às promessas da
modernidade. Face ao crescendo das minorias, Boaventura Santos aponta o
desfasamento entre os movimentos de regulação e os de emancipação sociais: entre
o estado que mantém a espacialização ideológica (direita, centro, esquerda) com o
objectivo de se perpetuar no poder, e a sociedade que já não vê nas bipolarizações a
solução para a crise. Face à universalidade dos problemas e à uniformidade rotineira
dos mass media, emergem os cultos, quer pela diferença, quer pela indiferença:
(...) aquilo que definiu a um nível mais global a expressão post-moderna foi um clima
milenarista em que o “tanto-faz” tomou o lugar que a “Diferença” ocupou na década de
70. Esta indiferença que capitalizou os desânimos e os falhanços dos mais diversos
projectos, de tudo o que implicou uma luta contra as estruturas do sistema políticoeconómico ocidental, que vive na tensão permanente de uma hecatombe que resultaria da
guerra entre as duas superpotências, assim como das enormes catástrofes técnicas e
naturais (vejam-se os recentes desastres dos vaivém espaciais e de Chernobyl), esta
indiferença refugia-se na busca de situações que façam esquecer a impotência face a estes
problemas.
40
A posição homeostética é critica relativamente a este período de indeterminação que
se vive. Na sua teoria, ele é metafóricamente designado de Babel. 41
40
Texto 31 (Teoria Homeostética, em Anexos).
41
Texto1 (Teoria Homeostética, em Anexos).
30
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
As atitudes viram-se para o local, para o indivíduo, onde a única estratégia possível é
o diálogo 42 . Face à dificuldade em de narrar diacronicamente a contemporaneidade
devido à profusão e mediatização dos acontecimentos, ou como diz o texto
homeostético: hoje a perca de Sentido deve-se sobretudo à avalanche da
multiplicação dos sentidos (Texto 8, em anexos), cai-se, segundo alguns autores 43 ,
na perpetuação do presente através duma leitura circular e horizontal. Por outro lado,
os trajectos diacrónicos passam a ser feitos com finalidades heurísticas e
reconstrutivas. Na sua relação com a história, a atitude pós-moderna proclama a
superação das dicotomias e a reflexividade disciplinar e heterodisciplinar, e
serão as práticas das diversas formas de cultura os melhores indicadores desta
sensibilidade.
Cerveira Pinto, em “O Lugar da Arte” publicado pela Quetzal em 1989 dá-nos um
perspectiva optimista sobre o “pós-modernismo”
e a sua influência nas artes.
“Regresso à acção” é a palavra chave para um movimento que se operou em dois
momentos, o primeiro, interdisciplinar (duchampiano: anos 60 e 70) e um segundo,
intradisciplinar (expressionista: anos 80) e que estariam na génese da pósmodernidade (pag.40). Interroga-se se a intradisciplinaridade será uma força
pacificadora (pag.41). Aquela que dissolveria as contradições modernistas e a
vanguarda no seu tradicional papel provocador e revolucionário.
1.4 A capitalização do campo artístico, ou o mito do mercado
No campo das Artes Plásticas, a partir de 84, novos protagonistas e novos valores
estéticos significam a entrada numa nova etapa para a qual contribuiram os seguintes
factores:
ƒ
A emergência de uma nova geração de artistas e de críticos de arte.
42
A questão do “diálogo” será amplamente abordada na 3ª parte desta tese. Muito esquematicamente,
refiro agora que por diálogo se deverá entender, a revalorização da história, da tradição e da memória
no encontro do sujeito com o mundo da vida através da recepção, da interpretação, e da
performatividade.
Na Teoria Homeostética, mais que uma estratégia, o diálogo das contradições (polemos) será a única
possibilidade da arte não emudecer.
43
Ver sub-capítulo 2.1. desta Tese.
31
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
ƒ
A crescente comercialização da arte contemporânea e expansão do mercado 44 à
qual estão associadas estratégias prioritárias de internacionalização dos artistas
plásticos portugueses (cuja evidência se observa no sucesso de mercado e
intensidade de presenças nas grandes exposições internacionais, no circuito de
mundanidade cultural e nos meios de comunicação social especializados, ou
não).
ƒ
Políticas culturais do estado no reconhecimento e apelo à progressiva
implementação do mecenato na empresa (1986-criação de legislação que, à
semelhança de outros países europeus, implicará o mecenato empresarial no
patrocínio de manifestações artísticas).
A propósito desta abordagem economicista do campo artístico, Alexandre Melo fará
notar que os persistentes factores da crise e instabilidade que ensombram o panorama
económico internacional desde meados dos anos 70 terão criado as condições para o
investimento em arte, como um bem susceptível de se valorizar.
Digamos, não sem alguma ironia, que a euforia democrática da década anterior se
traduz agora numa euforia económica e que o impulso expansionista da década de
sessenta encontra aqui a sua plena realização.
Na emergência do mercado, novas galerias e instituições vão deixando para trás
aquelas que víamos ligadas a um tipo de coorporativismo artístico. Às instituições
anteriormente consolidadas, (Fundação Calouste Gulbenkian, Sociedade Nacional de
Belas Artes e Galeria de Arte Moderna de Belém), sucedem-se novos espaços que
visam responder à urgência da actualização. Destacam-se: em 1983, a abertura do
Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, com uma exposição
permanente de proveniência exclusivamente portuguesa; a reabertura em 1984 do
Museu de Arte Contemporânea do Chiado e a inauguração da Fundação de Serralves,
no Porto, já na segunda metade dos anos 80. Com a progressiva falência e perda de
protagonismo das instituições tradicionalmente promotoras, surgem outras, ligadas
ao estado e, portanto, de pendor marcadamente político. São elas: a Secretaria de
Estado da Cultura e a Fundação Luso Americana para o Desenvolvimento. São
sobretudo estas duas instituições e as recentes galerias Cómicos e Módulo em
44
"...as galerias comerciais predominam agora sobre os salões de exposição; na 2ª metade dos anos
oitenta, a arte portuguesa expõe-se para se vender, segundo uma lógica quase oposta à da década
precedente." I.Conde: “Transformações recentes no campo artístico português”, 1988, p.182.
32
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
conjunto com os novos críticos, (dos quais destaco Alexandre Melo, João
Pinharanda, Alexandre Pomar, entre outros),
que irão promover os artistas em
território nacional e internacional através de inédita campanha de mediatização em
literatura especializada, ou não (destaque para a secção de artes do Jornal "O
Expresso"), e em inúmeras revistas da especialidade internacionais (Flash Art; Lapiz,
etc...), conduzindo os novos artistas portugueses a visibilidade social e profissional
anteriormente inexistente.
Esta situação revela uma nova consciência profissional 45 , onde os meios e
estratégias de afirmação no campo artístico se pautam abertamente pela estratégia do
mercado e seus sucedâneos publicitários (marketing, crítico associado, galerista e
bolsa de clientes), em suma, os Lobbies 46 .
A lógica do campo artístico ganha proporções traduzíveis por: agente, espaço,
dinheiro, mediatização. Daí que Alexandre Melo destaque que esta foi uma época de
45
Desde o Renascimento que o artista, deixando de ser uma peça anónima num processo de produção
e de prestação de serviços, passa a uma etapa de profissionalização diferenciada por paradigmas
teóricos construídos dentro do próprio campo e organizada com autonomia cultural e social sob a
forma de corporações ou academias, onde o artista é tido como criador.
Raymonde Moulin (“De l´artisan au profissionel”; in Sociologie du travail, nº4/83, p.388). designa
uma 2ª fase, a que chama “desprofissionalização”, caracterizada pelo abandono da ideia de profissão
artística institucionalizada, anulatória da liberdade do sujeito como criador. São estes os pressupostos
do movimento Romântico (séc. XIX) e Vanguardistas (séc.XX), onde os artistas reivindicam o
individualismo, a ética da vocação e a estética da mudança: “ É o sujeito investido em si ”, onde se
propicia a intenção como geradora da singularidade do produto, e do acto como expressão da
singularidade do sujeito.
(Idalina Conde (“Artistas, profissão e dom” in Vértice, nº60, Maio-Junho, , 1994, pag.78) defende um
regresso à profissão já na segunda metade do sec. XX, fundamentada na “normalidade” do artista
integrado num mercado profissional dotado dos mesmos direitos e deveres sociais que qualquer outra
profissão, cujos critério, no entanto resultam ambíguos na sua definição.
O dom, a vocação e o talento assumem na modernidade um estatuto de competência, diferenciado dos
restantes grupos e categorias profissionais, pelo seu carácter personalizado, definível somente por
critérios intrínsecos ao campo. Por outro lado, e apesar de todas as evoluções do campo artístico esses
critérios persistem enquanto dimensões históricas no reconhecimento, identidade e legitimação. A
sociologia da arte, propõe alguns critérios que permitem identificar socialmente a condição de artista
enquanto profissional: a independência económica (viver da prática artística); a autodefinição (como
artista); a competência especifica ( associada ao credencialismo); e o reconhecimento do meio
artístico.
46
Como exemplo, a organização da exposição “E depois do modernismo” juntou Cerveira Pinto,
Leonel Moura, Julião Sarmento e Fernando Calhau, funcionários da Secretaria de Estado da Cultura;
da Galeria Cómicos: Luís Serpa; no Jornal “Expresso” Alexandre Melo e João Pinharanda; na
Fundação Luso Americana para o Desenvolvimento: Manuel Castro Caldas
33
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
“legitimação por circunstância 47 ”. Nós atrevemo-nos a propor a expressão
legitimidade por cumplicidade, aliás comum às duas outras formas de legitimidade.
Um dos críticos afirmava: “Aqui faz-se jus a uma comum sensibilidade geracional entre
críticos e artistas (...) aproximados por vivências cúmplices e por sensibilidades
provisoriamente identificadas... Como noutras etapas das artes plásticas, a geração de
artistas é inseparável da constituição de um círculo social alternativo aos já estabelecidos,
círculo esse que representa uma nova forma de identidade colectiva. Sem esta expressão
de coesão não teria sido possível realizar nestes anos oitenta um conjunto de políticas de
afastamento dos códigos tradicionais... 48
A expressão “geração de 80” requer esclarecimento: defendo que é necessário
esclarecer que geração é esta, ou teremos uma história da arte portuguesa marcada
pela narrativa dos legitimadores oficiais, das instituições, onde as singularidades
submergem em consequência das tendências reducionistas ou limitadas dos críticos.
Em primeiro lugar: Não existe uma geração de oitenta, mas várias gerações. Esta
Tese tem como objectivo revelar uma delas, a Homeostética.
Em segundo lugar: Não duvido de que o sucesso e o mediatização de alguns artistas,
se inscreve num processo de “legitimidade por circunstância”, mas esta não exclui a
forma da “legitimidade por obsessão”, evidente no carácter subjectivista do novo
discurso estético, na atitude de auto-afirmação e na persistência da prática artística,
reveladoras de uma postura lúcida e profissionalizada. Anteriormente propus a
expressão “legitimidade por cumplicidade”, e é nesta forma de legitimidade que
coloco o “destino” das carreiras mediáticas do “Art World”.
Em terceiro lugar questiono o significado de “geração” e a sua atribuição a um
decénio, pois no decénio de oitenta assiste-se a movimentos de revelação, como no
caso da exposição “Novos-Novos”. A movimentos de afirmação, como no caso das
exposições “Arquipélagos” e “Continentes”; a movimentos de consagração de
47
Ao processo da construção da imagem do artista estão associados modelos de legitimação, que
certificam e pontuam de algum modo os percursos nas suas opções estético-artísticas. Bourdieu indica
duas vias de legitimação: A “legitimação pela obsessão”, característica da ideia romântica de artista
com vivências periféricas às normas sociais de conduta recusando a a arte puramente orientada para
os circuitos comerciais. A “legitimação pela circunstância”, associada à ideia do artista integrado,
quer do ponto de vista da aceitação pelos indivíduos, quer do ponto de vista do mercado.
34
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
artistas dissidentes do espírito politizado que animava a geração interventiva e
conceptual de setenta, e que se manifestaram na exposição “E depois do
modernismo”.
O mito do mercado nas artes plásticas em Portugal, foi antes de mais o reflexo duma
conjuntura internacional que exerceu em Portugal a sua influência, nomeadamente no
grande dinamismo da bolsa de valores, e de que os agentes do campo artístico usando
de grande sentido de oportunidade, souberam tirar partido. Para usar as palavras de
Cerveira Pinto, esta década foi uma “era de reprodutibilidade económica da própria
arte” (in: Catálogo da Exposição E depois do modernismo).
Pela primeira vez o discurso artístico acede aos média comuns e chega a um público
mais vasto, quer em território nacional, quer internacional. Esse foi sem dúvida o
aspecto mais positivo. No entanto a recessão económica dos finais da década de
oitenta e inícios de noventa, irá constituir um crivo por onde iriam passar inúmeros
projectos,
galerias e artistas. É o início de um período de desinvestimento...
comercial e institucional.
48
Barroso, Eduardo Paz, « Portugal e as artes dos Anos 80» in Catál. (citado por Idalina Conde na p.
181: «Transformações recentes no campo artístico português» 1988)
35
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Capítulo 2 - Da Modernidade à Pós-Modernidade
A distinção entre memória, razão e imaginação, deu origem a partir do sec. XVIII, ao
processo de libertação e autonomização das artes. Escapando-se aos conceitos, a arte
encontrou em Kant a ideia estética que lhe correspondeu: o “belo desinteressado”,
que agrada universalmente a todos. No entanto um século depois, Hegel vem
declarar a inutilidade da arte que por não ter qualquer papel no mundo, não passa de
uma coisa do passado. Decorrente desta crise debatem-se a partir dos finais do sec.
XIX duas tradições vanguardistas, uma de natureza ontológica e outra de natureza
estética. As guerras vêm entretanto provocar a crise da modernidade e a arte aprende
a ser cínica. Com Duchamp, a arte assume-se como jogo de linguagem e encontra-se
com o problema da sua própria definição. O Conceptualismo retoma a ideia da arte
como problema de linguagem e de filosofia assumindo uma estratégia metalinguistica. Paralelamente ao Conceptualismo e ao Minimalismo, assiste-se desde os
anos sessenta ao surgimento de movimentos que reflectem a descrença nos grandes
ideais políticos e sociais. A Pop Art ao centrar a sua temática nas questões do
quotidiano: sociedade de consumo e de informação vem devolver à arte sua natureza
critica, reforçada agora por uma ironia explicita. Andy Wharol, com as suas Brillo
Box, constitui segundo Arthur Danto, a machadada no paradigma que regia as BelasArtes. O Belo é substituído pela Intencionalidade. Questionam-se as convenções
artísticas e assiste-se a um período de desânimo que anuncia o fim da Arte.
A morte da arte entendida como Belas-Artes é segundo Arthur Danto, uma
declaração política, um grito revolucionário. Acabada a incompatibilização entre
prazer e responsabilidade será a capacidade de seleccionar o que quer que seja para
responder às suas intenções, num espirito de absoluta liberdade, que caracteriza o
artista pós-histórico.
36
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
P. Proença: Gosto da história como de desenhos, de pequenos quadros (Lorrain,
Turner, Piranesi), de expressões macias, de pequenas narrativas. Não aceito a
história como uma grande narrativa, nem acredito nos grandes momentos históricos.
S. Chia: “A mim, no plano formal não me interessa a inovação, eu faço arte com os
materiais da arte” ... “Seja qual for a interpretação, a obra por si é uma coisa
misteriosa. Eu não tenho, nem quero ter uma chave para a leitura da minha obra,
pelo contrário ela é aberta e está em constante movimento” ...
E. Cucchi: “ Eu penso que toda a actividade passa pelo corpo de outros artistas, a
espiritualidade, a ideia do mundo que tem cada artista.... Eu devo tudo a todos....
Sou um tremendo coleccionador (... ). 49
W. Dahn: O selvajismo que simulava na execução era fictício (...) O accionismo e o
gestualismo nunca me interessou como problema, para mim encerrou-se com
Pollock. O que me interessava era aplicar à pintura as experiências da arte
conceptual. 50
Rainer Fetting: “ Abstracta é qualquer coisa que sai da cabeça, operação que se
realiza quer na pintura, quer na poesia, quer na música. Quando está bem feito e a
coisa sai comprimida, então sai abstracto. Neste sentido sempre pintei abstracto,
porque queria expressar algo determinado e para isso sirvo-me da pintura. Porque
eu não posso representar a realidade. Só a minha realidade. 51
Helmut Middendorf :“Em 1977/78 era para mim claramente mais importante
assistir a um bom concerto que olhar para um quadro num museu (...) Pensei que a
intensidade que tinha sentido ali também a teria que ter um quadro”. 52
M. Barceló 53 : “...Se pinto é só por curiosidade (...) A minha intenção é provar
outras coisas (...) Penso que é muito melhor correr riscos ainda que faças quadros
horrorosos, do que pintar sempre igual. Em tudo isto há uma certa perversão (...)
com o passar do tempo Jackson Pollock e Tintoretto parecem-me quase o mesmo (...)
dentro da minha cabeça a história de arte é muito distinta das cronologias”.
Fernando Brito: O que me atraia no mundo moderno, na arquitectura, no design, era
a clareza. Só gosto de enigmas que sejam caricaturas de enigmas. Só gosto de
enigmas que sirvam para desconstruir, para gozar... Eu tive sempre intenções
diferentes dos outros. Nunca tive interesse em jogos de referências. Eu nunca vi na
erudição senão uma ferramenta, nunca tive nenhum interesse especial nas ideias,
mas em ver que uso podia fazer de cada uma. (Entrevista em anexo)
49
Idem, pag.444
Idem, P.446 (notas:Catálogo Origen y Visión, Nueva pintura alemana, pag.19 )
51
Idem, P.446 (notas:Catálogo Origen y Visión, Nueva pintura alemana, pag.28 ).
50
52
53
Fiz, Simon Marchan, P.449/450.
Idem, pag 151/152.
37
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
2.1 O conceito de modernidade e as implicações na prática artística
A “Modernidade”, micro-episódio, entre muitíssimos, no movimento de transferência
do poder da mão para o cérebro, desencadeou-se no Renascimento, ou com Descartes
(1596-1650) (não aceitar, decompor, enumerar, ordenar e rever).
Hegel propôs que se chamasse moderna a uma sociedade cujos valores se pudessem
distinguir de acordo com as críticas de Kant (Ciência, Moral e Arte). 54
A modernidade contrapôs-se à ordem tradicional, na implicação de progressiva
racionalização e progressiva diferenciação, económicas e administrativas, das quais
nasceu o estado capitalista industrial. A sociologia do desenvolvimento 55 , tem
chamado “modernização” aos efeitos dessa racionalização e dessa diferenciação na
ordem tradicional, de que terão resultado a secularização, e a emergência da
mentalidade moderna (sentido de descontinuidade do tempo – angústia da
contingência e do efémero – num personagem que procura, na constante reinvenção
de si, o sentido da experiência nos novos espaços urbanos, num contexto
crescentemente consumista) 56 .
Paralelamente ao positivismo histórico e ao racionalismo cientifico, assiste-se ao
processo de autonomização das artes.
54
“Um ano depois da Revolução Francesa (Liberdade, Igualdade, Fraternidade), Kant escrevia na sua
Crítica da Faculdade de Julgar: “En un mot: L´idée esthétique est une representation de l´imagination
associé à un concept donné, et qui se trouve liée à une telle diversité de representations partielles, dans
le libre usage de celles ci, qu´aucune expression, désignant un concept determiné, ne peut être trouvé
pour elle, et qui donne á penser en plus d´un concept bien des choses indicibles, dont le sentiment
anime la faculté de connaissance et qui inspire à la lettre du langage un esprit” (Cerveira Pinto, O
Lugar da Arte, p. 44). Cerveira indica os filósofos D´Alembert, Compte e Kant, aos quais atribui as
teorias conducentes ao processo de libertação e autonomia das artes. De Kant vem-nos a frase “É belo,
o que agrada universalmente sem conceito”, ou seja, a ideia do belo desinteressado.
55
Mike Featherstone: “Moderno e pós-moderno” in Sociologia, Problemas e práticas, nº8, 1990
56
Jean Beaudrillad, no seu “A sociedade de consumo”, declara que o objecto de consumo se foi
transformando em “objecto-signo”, cujo significado se adquire e autonomiza como diferença
codificada, ou seja é pelo objecto de consumo que se regem os valores sociais, os quais já não residem
na relação entre as pessoas, mas na relação diferencial de cada signo com os outros. O consumo
baseia-se sobretudo na necessidade de produção social de um código de significação e valores
estatutários. Para Guy Debord (A sociedade do espectáculo), a vida das sociedades nas quais reinam
as condições modernas de produção anuncia-se como acumulação de espectáculos, onde a realidade se
afasta numa representação de parcelas desligadas da vida, conducentes, por um lado, a uma imagem
autonomizada, e por outro lado, a uma relação social mediatizada por imagens.
38
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Citando António Cerveira Pinto 57 :
“Recorreremos ao “Discours Préliminaire de l´Encyclopedie”, publicado por D´Alembert
em 1763, para localizar com maior precisão a origem do mencionado processo de
libertação das artes (...):
“Os objectos de que a nossa alma se ocupa são espirituais ou materiais, e a alma ocupase destes objectos ou por ideias directas, ou por ideias reflectidas: o sistema dos
conhecimentos directos só pode consistir na colecção(...) passiva e (...) maquinal desses
mesmos conhecimentos; é o que se chama memória. A reflexão é de duas espécies (...):
raciocina sobre os objectos das ideias directas, ou imita-os. Assim a memória, a razão
propriamente dita, e a imaginação são as três maneiras diferentes porque a nossa alma
opera sobre os objectos dos seus pensamentos.
(...) Estas três faculdades formam as três divisões gerais do nosso sistema, e os três
objectos gerais dos conhecimentos humanos: a história, que diz respeito à memória; a
filosofia, que é o fruto da razão; as belas-artes, que brotam da imaginação”.
Há quem veja neste movimento constitutivo da autonomia do estético, o verdadeiro
fundamento do que viria a ser, posteriormente, o Modernismo na sua acepção Formalista.
Kandinsky leu certamente Kant . Leu-o (...) Greenberg. Produziu-se na segunda metade do
século XVIII, uma das fundamentais teorias modernas da arte. A Estética nasceu nesta
mesma época pela pena de Baumgarten (1714-1762).
“ A crise moderna estala, afinal mais cedo do que seria de supor: em 1835, quatro anos
depois da morte de Hegel sai do prelo a sua Estética, onde podemos ler estas espantosas
reflexões:
“A nos besoins espirituels, l´art ne procure plus la satisfaction que d´autres peuples y on
cherché et trouvée. Nos besoins et interêts se sont déplacés dans la sphére de la
répresentation et, pour les satisfaire, nous devons appeler à notre aide la réflexion, les
penseés, les abstrations, des representions abstraites et générales. De ce fait l´art
n´occupe plus dans ce quíl y a de vraiment vivant dans la vie la place qu´il y occupait
jadis, et ce sont des représentations générales et les réflexions qui y ont pris le dessus.
C´est pourquoi on est porté de nos jours à se livrer a des réflexions, a des pensées sur
l´art. Et l´art lui même, tel qu´il est de nos jours, n´est pas trop fait pour devenir un object
de pensées.” E ainda: “ Sous tous ces raports, l´art reste pour nous, quand à sa suprême
destination, une chose du passé” .
É precisamente à boémia de 1830 que alguns autores fazem remontar a origem do
chamado “Modernismo” (designação assente para o conjunto da cultura que tem
57
Pinto, António Cerveira – O lugar da Arte, Lisboa, Quetzal Editores 1989 ( pp.44 a 46).
39
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
acompanhado a “modernização”), caracterizado por crescente auto-consciência,
crescente reflexão estética, crescente rejeição da narrativa em favor da montagem (o
cinema industrial, por exemplo,
resolveu o encerramento das diacronias em
totalidades orgânicas, o que tinha sido o ideal dos grandes romances de formação
desde o século XVIII), a crescente expurgação do paradoxal, do incerto, do ambíguo,
a crescente rejeição da noção de personalidade integrada (relativamente ao espaço da
pintura renascentista, a martelada cubo-futurista estilhaçou o observador central
imóvel e monocular, seu corolário). Seja qual for a época de que date, a Modernidade
é inseparável do enfraquecimento da crença e da descoberta do “pouco de realidade
da realidade”.
No contexto da cultura positivista degladiaram-se duas tradições vanguardistas58 : a
primeira
(chamemos-lhe
ontológica),
onde
couberam
os
expressionismos
(Construtivismo, Futurismo e Surrealismo, incluídos), e outra (chamemos-lhe
estética) onde se integram os movimentos convergentes na abstracção. Tanto
relativamente a uma como relativamente a outra, a noção de crise remeteu para a
cada vez mais precoce fragilidade, quer das formas, quer das normas e um uso
particular de vanguarda apareceu como reacção ao fenómeno da crise, quase sempre
sob forma de fuga mais ou menos desorganizada à velhice do novo.
“A noção de Vanguarda abrange os domínios das filosofias e das ciências, mas também
da política. Importado da linguagem militar , o conceito marcou o culminar do processo
de emancipação humanista do Renascimento decisivamente acelerado pelas Luzes e pelo
Romantismo. O novo antropocentrismo e o novo etnocentrismo, situaram as sociedades
ocidentais perante a responsabilidade de inventar uma representação objectiva e coerente
do real, a partir da única faculdade considerada apetrechada para o efeito: a Razão. Tudo
o que não resistiu a uma prova de verdade cientificamente organizada, foi relegado para
o baixo mundo da ideologia. Foi em nome da razão que nasceu a teoria da Luta de
Classes, dentro da qual se considerou a necessidade transitória (dialéctica) de uma
Vanguarda Revolucionária e de uma Ditadura do Proletariado, ainda não totalmente
58
O objectivo desta dupla trajectória foi a criação de uma arte liberta do corporativismo académico e
do imaginário retorcido da burguesia (Cerveira Pinto): Monet e a dialéctica do sensível (não vemos a
realidade, vemos impressões sempre que a luz o permite); Manet e a representação fenoménica;
Cézane e a morfogénese do pictórico (cilindros, cones, esferas, correspondem ao programa seminal do
modernismo). A autonomia da arte implicava um discurso filosófico e uma lógica formal que, por
analogia com a música, se afastou cada vez mais do visível em direcção à abstracção. De um lado, o
40
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
libertas do mundo das aparências, mas sob cuja afirmação se assistiria ao nascimento do
reino definitivo da Verdade. Este mesmo objectivo anti- ideológico e positivista é
perseguido pelos sectores mais avançados da burguesia e corresponde à lógica intrínseca
de crescimento e expansão do capitalismo! O que separa o positivismo do marxismo não é
tanto uma questão de finalidade, mas antes de meios. O que afasta as democracias e as
ditaduras capitalistas das ditaduras estalinistas, é mais uma divergência de regime do que
um antagonismo filosófico sobre a questão da racionalidade (...) Enquanto sob um ângulo
marxista a arte tendeu a ser vista como auxiliar propagandístico da luta de classes, aliado
ou inimigo do Proletariado e da sua vanguarda organizada, o partido leninista, já sob
uma perspectiva positivista ela tende a ser uma “arte pela arte” – uma disciplina
autónoma da subjectividade cujo interesse e portanto grau de vanguardismo, reside na
sua capacidade de se tornar objecto de reflexão.” (C. Pinto, pp. 49, 50)
O desejo de uma autonomia e a fé numa arte nova tinham, entretanto, sofrido abalos.
A guerra de 1914 e a Revolução Russa tinham re-introduzido a discussão da arte ao
serviço de uma causa: o Expressionismo e o Dadaísmo, por um lado, o
Construtivismo, por outro, sem descurarem revoluções formais, afastavam a ilusão
de uma arte em si. O apodrecimento da revolução russa e a guerra de 1939 reduziram
os argumentos da modernidade: o Modernismo aprendeu a ser cínico. Mais do que a
busca de uma linguagem universal de formas, o artista produzia enigmas. Duchamp e
Magritte foram os paradigmas desta nova atitude sardónica, indiferente. Assumindo a
arte como um jogo de linguagem, desviaram as suas trajectórias das conjunturas
histórico-ideológicas e reconduziram-nas ao problema da definição da arte:
“Tornou-se manifesto que tudo o que diz respeito à arte deixou de ser evidente.
Tanto no que lhes diz respeito a ela só, como no que diz respeito à sua relação com o
todo, como, até, no que diz respeito ao seu direito à existência” escreveu Adorno no
inicio da sua Teoria Estética. Na impossibilidade de uma linguagem universal das
formas que fizesse da arte, uma arte “em si”, Duchamp e Magritte produziram, por
paradoxos e por absurdos uma
prova da existência do ”em si” pela via da
impossibilidade perceptiva, pela via da decepção retiniana, desviando a discussão
artística, do plano estético, para o plano ontológico.
Expressionismo tendo como causas o indivíduo e o seu estar no mundo, do outro, o Construtivismo,
cuja utopia se resumia a uma arte nova para uma sociedade nova.
41
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
O Conceptualismo retomou a arte como problema de linguagem e de filosofia “Art
after philosophy” ou “Art as Ideia as Ideia”. A prática da arte foi assumida como
investigação. Os jogos de linguagem de Duchamp; a filosofia de Wittgenstein, a
linguística de Saussure, somados aos repetidos impasses da pintura ou da escultura
abstractas, levaram Kosuth a postular que o artista como analista apenas se ocupasse
do crescimento conceptual da arte e da maneira como as suas proposições se
revelassem capazes de o seguir logicamente. A arte transformou-se em Meta-Arte.
Perante o sentimento de crise que a Arte Moderna transporta, quando a sucessão de
movimentos não produzia senão formalismos e formalidades, o Conceptualismo
assumiu uma estratégia metalinguística.
Paralelamente ao Minimalismo e ao Conceptualismo, desde o início dos anos
sessenta, num crescendo de ondas de choque “com apogeu ritual em Maio de 68” (
Alexandre Melo 59 ), assistimos à denúncia do terrorismo comunista e do falhanço das
estratégias imperialistas em superar o desenvolvimento do terceiro mundo. Para
Barry Smart 60 , o problema não está tanto numa rejeição do modernismo, mas numa
condenação do processo imperialista da ocidentalização cultural.
“Post-modernismo”, termo “passepartout” (Calabrese) do campo expressivo, foi
utilizado por Frederico de Onis, nos anos 30, para designar reacção ao modernismo.
Em 1934, no seu Study of Story, Arnold Toynbee referia uma era pós-moderna.
Tornou-se marca de operações (criativas e não só) diferentes entre si. A sua difusão
está relacionada com três campos: popularizou-se nos anos 60, em Nova-Iorque, no
uso que lhe deram jovens artistas, escritores e críticos (Rauchenberg, Cage,
Bourroughs, Barthelme, Fielder, Hassan, Sontag) numa atitude critica ao exausto
Hight Modernism, institucionalizado no plano dos museus como no das
universidades. Livros e filmes que não consistiam em experimentação, mas
desconstrução dos patrimónios literário e cinematográfico imediatamente anteriores,
vieram a receber a designação, assim como todas as manifestações da chamada PostMovement Art (a ocupação do Campo Expandido pela escultura, entre outras) e,
59
MELO, Alexandre – Lost paradise – 1999, Texto de Catálogo.
SMART, Barry – A Pós-Modernidade – Biblioteca Universitária, Publicações Europa América,
1993.
42
60
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
posteriormente, na Europa, o Neo-Expressionismo alemão, e a Transvanguarda
italiana.
No âmbito estritamente filosófico, popularizou-se no uso que lhe deu J.F. Lyotard no
seu conhecidíssimo A Condição Post-Moderna (Relatório ao Conselho do Estado do
Québec sobre sociedades avançadas e a sua forma de desenvolvimento do saber).
Popularizou-se, enfim, no campo da arquitectura, no das disciplinas projectuais em
geral, principalmente em Itália e nos Estados Unidos, sobretudo a partir da exposição
dedicada à Strada Novíssima (Bienal de Veneza, 1979), cujo catálogo foi intitulado
Post-Modern pelo seu organizador, Paolo Portoghesi.
Neste campo, “Pós-Moderno” passou a ter um sentido ideologicamente preciso:
rebelião (virulenta) contra os princípios do modernismo. Vejamos Gillo Dorfles 61 :
“Creio, afinal, que uma das mais prováveis justificações de muitas tentativas ( por
vezes definidas de “Pós-modernas” , mas a que prefiro chamar Neo-Românticas ou
Neo-Barrocas, todas em nítida contraposição com as maciças e frígidas construções
do veterofuncionalismo derivante das poéticas do movimento moderno) esteja,
justamente, nesta recuperação do imaginário (...) enfrentar com maior fantasia uma
existência muitas vezes tragicamente comprometida pela “ditadura da razão”. Mais
cruamente, Dieter Kopp (citado por Paolo Portoghesi 62 ): A arte moderna, ensinounos a deixar a tradição, isto deve ensinar-nos a deixar a tradição da arte moderna.
Assim se foram diluindo as obsessões da arte como comunicação signica, rompendo
com as dependências relativamente à linguística, tal como se manifestavam nas
concepções “analítica” e “conceptual”. “ A condição pós-moderna destaca-se pela
primazia da interpretação, pelo seu carácter hermenêutico”: “Tanto el arte como la
estética procuran vencer las sombras socráticas, cientifistas, con objecto de
reencontrar la polifonia interior” 63 .
61
DORFLES, Gilles – O elogio da desarmonia – Edições 70; Colecção Arte e Comunicação, 1988,
(p.37).
62
PORTOGHESI; Paolo – Depois da arquitectura moderna – Edições 70, Lisboa, 1975,
(p.155).
63
MARCHAN Fiz; SUREDA Joan – Del arte objectual al arte del concepto: Madrid: Akal, 6ª
Edição, 1994 (a propósito da mudança do paradigma estético, p. 314: Fiz refere a dissolução da
“magna aesthetica em virtude do pluralismo, tão próprio da nossa cultura de mosaico. Libertas de
regras, as manifestações artísticas dependem assim da capacidade de interpretação quer do artista,
quer do público que as irá legitimar).
43
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Eduardo Prado Coelho, no seu livro “A Mecânica dos Fluidos 64 ” aborda no último
capítulo a problemática do pós-modernismo: referindo-se a vários autores destaca de
Barthes o conceito de “atopia” (habitáculo à deriva), cujo valor “neutral” irrealiza o
teatro das grandes antinomias escolásticas. Se ao “moderno” associa a capacidade de
“negação”, ao pós-moderno estará associada a consciência de “perda”, cujas
consequências se manifestam pela descrença na universalização dos homens cedendo
lugar ao culto pela diferença. Face ao descrédito da linearidade histórica, o passado e
o futuro são vistos como instâncias do presente. Esta mesma ideia de “perda” é
partilhada por Lyotard para quem o espaço pós-moderno resulta da crise de todas as
grandes metanarrativas e dos “restos” que elas nos legaram, ficando assim um espaço
de dispersão onde passam a existir múltiplos jogos de linguagem, que mediante
determinismos locais só podem ser avaliados por critérios de performatividade.
De Daniel Bell (The cultural contraditions of capitalism) vem entre outras, a
afirmação de que o fio condutor da modernidade é a noção de indivíduo, esgotada na
“massa cultural”.
Melquior
65
define um programa pós-modernista por um “micro ou hiper realismo, a
eclipse das vanguardas e o reassumir da razão crítica”.
Estabelecer a síntese, numa perspectiva plural e por vezes paródica, entre o prémodernismo e o modernismo é para John Barth
66
a tarefa do pós-modernismo.
Habermas defende que a modernidade é um projecto inacabado: por ter realizado a
separação entre as várias esferas da vida, a modernidade perdeu a sua credibilidade,
logo, para levar avante esse projecto deverá instaurar um “interjogo”, articulando as
esferas “prático-moral”, do “conhecimento” e a “expressiva-estética”, a fim de que se
estabeleça um novo discurso permitindo uma “unidade de experiência”.
64
COELHO, Eduardo Prado – A Mecânica dos Fuidos, literatura, cinema, teoria – Temas
Portugueses, Imprensa Nacional- Casa da Moeda, Lisboa. [“Pós-Moderno, o que é? (pp. 295 a 305) ].
65
: Citado em: “A mecânica dos fluidos” (p. 299) - José Guilherme Melquior: “O significado do pósmoderno”, Colóquio Artes, nº52, Novembro de 1979.
66
Citado em: “A mecânica dos fluidos” - John Barth: “The literature of the replishment”, The
Atlantic, 1980
44
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
John Rajchman (professor de Filosofia em Fordham, autor de Ethics after Foucault
entre outros), numa alusão irónica ao desinteresse dos franceses 67 pelo PósModernismo americano escreveu que o Pós-Modernismo é o que os franceses
souberam que os americanos chamavam ao que eles pensavam. Para Habermas, a
crítica americana de matriz francesa era a expressão filosófica do Pos-Modernismo
que desprezava os valores iluminados da ciência e da democracia.
O crítico (formalista) Michael Fried (1982) disse que o pós-modernismo era outro
nome para o regresso da vanguarda dadaísta (contra a arte abstrata), mas o que veio
a ser chamado pós-modernismo (arte), segregou a própria ideologia, nem
nominalista, nem essencialista: diz que processo nenhum é puro.
Nas opiniões mais negativistas, o Pós-Modernismo foi considerado, a arte da
impureza da arte, a da mistura dos processos, das justaposições, da descrença na
possibilidade de progresso; terá aproveitado do modernismo a ideia de redução de
cada disciplina aos constituintes, mas voltou-a sobre si na proclamação de que o
processo estaria terminado; na redução, cada disciplina teria esgotado a possibilidade
de se renovar; restariam a citação e o pachwork, provas do que Duchamp já tinha
chamado a morte da arte – arte da simulação do que a arte tinha sido.
Beaudrillard, ofereceu a teoria geral deste fim das possibilidades da arte: seria parte
de um colapso da realidade num mundo “kitsch” de simulação sem fim. Simulação
por uma razão simples: era um conceito à luz do qual coisas ainda podiam ser feitas,
mostradas (e compradas e vendidas: a desconfiança, não pode senão crescer de cada
vez que a arte regressa de outra das suas mortes).
Na formulação (1984) de Frederic Jameson (professor de literatura, teórico social,
marxista, crítico, responsável pela passagem do conceito Art World Nova-Iorquino
para a crítica literária), o “Pós-Modernismo” era a dominante cultural do capitalismo
tardio (pós-guerra), relacionado com a América e com a indústria electrónica,
ancorado na reprodução, conducente à expansão da cultura “até ao ponto em que
tudo na nossa vida social, pode dizer-se, se tornou cultural”, à dissolução da
67
Foucault rejeitou a noção: “ devo dizer que tenho uma certa dificuldade em responder a esta questão
... porque nunca compreendi claramente o que queria dizer ... quando se emprega o termo
modernidade”; Guattari, desprezou-a; Derrida, não lhe descobriu utilidade; Lacan e Barthes não
estavam vivos. Althusser não estava disponível para saber dela.
45
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
realidade em imagens, à experiência do tempo enquanto sucessão de eternos
presentes.
Independentemente das diversas posturas teóricas sobre este conceito, fica a ideia de
que a “pós-modernidade” não representa um tempo cronológico, ou uma
“periodização histórica”, (periodizar ainda é um ideal clássico ou moderno), mas um
“estado de espírito”, ou “carácter” da época em que vivemos (Lyotard 68 ). Opinião
partilhada por Umberto Eco, que acrescenta como factor de caracterização (no plano
narrativo), a reflexão irónica sobre a pluralidade dos modelos.
E os anos 80?
Se a crise do conceptualismo se tinha manifestado na falência do que tinha parecido
inabalável no fim dos anos 60 (a ideia de que, com o naufrágio do Formalismo, a
Pintura e a Escultura tinham perdido
lugar na história), meia década de
Expressionismo (alemão, americano, italiano) chegou para questionar o decénio
anterior. A historiografia moderna sofreu. Os esquemas tradicionais de periodização
e de valorização da arte moderna entraram em crise. A pintura, o desenho, a
escultura, que ocuparam os lugares de honra em bienais durante os anos 80, a Bad
Painting, Transvanguarda, a Nova Subjectividade, os Novos Selvagens, romperam
com a tradição formalista denunciada pelo Conceptualismo e pela Arte Povera.
Não assumindo qualquer estatuto de vanguarda, aceitando a tradição em vários
pontos, instauraram o debate da Pós-Modernidade no campo das artes visuais.
2.2 Anos 80: correntes artísticas dominantes e o pensamento estético
O futuro não nos traz nada, não nos dá nada; somos nós que, para o construir, lhe temos
que dar tudo, até a nossa vida. Mas para dar, é necessário possuir, e nós não possuímos
outra vida, outro sangue além dos tesouros herdados do passado e dirigidos, assimilados e
recriados por nós. Em todas as exigências da alma humana, nenhuma é mais vital do que
a do passado. Simone Weil 69
68
FEATHERSTONE, Mike: “Moderno e Pós-Moderno” in: Sociologia, Práticas e Problemas, nº8,
1990
(cita Lyotard “Rules and Paradoxes and Svelte Appendix”).
69
In: Portoghesi, Paolo: Depois da arquitectura moderna, (pag.45).
46
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
No início de oitenta desaparecem portanto as resistências relativamente às categorias
tradicionais e, reactivamente assiste-se a uma consagração generalizada da pintura
como comprovou a Documenta 7 de Kassel (1982) 70 , onde a nova figuração
internacional neoexpressionista e transvanguardista coexistia com os representantes
da arte “povera”, com Warhol, J. Beuys, ou F. Stella.
Na Europa, observa-se o retorno de certos nacionalismos ou mesmo regionalismos. A
cena internacional é sacudida pela pintura alemã e italiana. Na Alemanha, surgiram
os popularmente designados por “novos selvagens” ou “neo-expressionistas. Em
Itália, na primeira metade dos oitenta a Vanguarda/Transvanguarda (Roma, 1982)
surge como uma das mais sintomáticas manifestações e o seu suporte teórico é
assinado por Achille Bonito Oliva.
Em Espanha , apesar de uma certa euforia, as iniciativas são de carácter privado, de
amplitude limitada, quase sempre circunscritas a um elenco de artistas, ou a cargo da
própria Administração. Fiz admite que em Espanha tardiamente se consciencializou a
modernidade ou as rupturas com a mesma, dizendo que faltou a “tradição do novo” e
das instituições que o confirmariam: museus, coleccionismo, exposições com
substrato cultural, publicações com panorâmicas globais e monografias. Destaque-se
neste processo de revitalização a entrada em cena dos críticos estrangeiros, a partir
da Arco 82.
2.2.1 A transvanguarda
“A área cultural em que opera a arte da última geração á a da transvanguarda, que
considera a linguagem como um instrumento de transição – passagem de uma obra a
outra, de um estilo a outro”. 71
70
A partir de 1982, com a participação de Barceló na Documenta, assiste-se a uma espécie de
reconversão pictórica, da abstracção para a figuração e desta à sensibilidade pictórica dos anos 80,
caracterizada pela proliferação de vitalismos artísticos.
71
OLIVA, Achille Bonito, “Avanguardia e Transvanguardia” Milão, Electa, 1982, (p.6 - tradução
minha).
47
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Achille Bonito Oliva, promotor e crítico de arte, publica em 1982 na Giancarlo Politi
Editore (Milão), o manifesto Transavangarde International. Neste manifesto, aponta
para a questão da transitoriedade da arte; o papel das ideologias e as tendências
artísticas; as minorias artísticas e a importância da transvanguarda nessa
revalorização; explica a distinção entre “transvanguarda” e “vanguarda”; as relações
e as diferenças estabelecidas pela e na linguagem; a capacidade de síntese no
enlaçamento das velhas com as novas formas de cultura e o poder semântico dos
jogos de linguagem.
A bomba atómica poderá significar (metafóricamente) a simultaneidade, a irradiação
de estilos e tendências que se verifica a partir do pós-guerra. Micro-movimentos,
pequenas catástrofes conduzem a erupções nos mais diversos campos linguísticos,
que por via de diálogos transversais e cruzados (interacções), vêm colocar em relevo
factores como diferença, falha, desvio, fissura, onde se descobre o lugar do entre, e
nesse, o reconhecimento das necessárias pontes. É nessas paisagens tectónicas que
surgem conceitos como instabilidade e fluidez.
A transvanguarda proclama-se como área indefinida, onde grupos de artistas estão
juntos não por tendências ou afinidades comuns, mas com vista a uma atitude
artística e filosófica que pontua a sua própria centralidade e advoga a recuperação de
uma razão interna, que não nega a arte precedente. Derrubando a ideia do progresso
em arte, esta surge como superamento e conciliação da tradição e da diferença.
O eclectismo é a característica que tende a neutralizar as diferenças entre os
diferentes estilos e a distância entre o passado e o presente. Não aspirando a uma
única linhagem, a sua ascendência tem a mais diversa origem e proveniência, desde a
mais recente vanguarda, até às chamadas artes menores (o artesanato, a banda
desenhada, etc…).
The artists of transavangarde realize that anthropological roots, while independent of each
other, all tend to affirm the biology of art, the necessity of a kind of creativity aimed at
instance of sedution and mutation. 72
72
Idem, ibidem, p.10.
48
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
A produção artística é caracterizada por uma intertextura da subjectividade, que
não sendo fenómeno autobiográfico ou estritamente pessoal, resulta da manifestação
controlada da linguagem, através de uma visão irónica dos seus motivos
persistentes..
Em resposta ao impasse da realidade, a nova sensibilidade vira-se para os jogos de
linguagem, não deixando porém de captar os ecos provenientes do exterior. A
desintegração da ideia unitária da obra revela uma projecção sobre a desintegração
das visões unitárias do mundo, constituindo a fragmentação uma imagem da
descontinuidade e da metamorfose. O artista torna-se o veículo das sensibilidades,
captando –as e solidificando-as através dum trabalho que recuperou o tempo e o
prazer da execução. Serão essas sensibilidades colhidas no “ar” (tornadas assuntos e
referentes) que conduzem ao impulso criativo. Por outro lado, o retorno à
manualidade recupera a noção da singularidade do objecto artístico, relacionado com
o tempo e o gesto da criação.
A ironia é um componente essencial desta arte. Ela consiste em esvaziar
(neutralizar) o conteúdo simbólico de uma imagem, ou conjunto, retirando-a do seu
contexto. Trata-se da passagem de uma posição tradicionalmente metafórica para
uma metonímica, onde as “figuras” passam a assemelhar-se em termos de estatuto –
o figurativo equivale ao abstracto. 73 Pelo uso da metonímia a obra coloca a sua
potencialidade na relação de mobilidade e translação do sentido; por sua vez, a
atenuação do significado pela inércia metonímica cria a cómica alteração da
metáfora. O componente irónico pode aparecer tanto explicita (por exemplo, na
utilização da miniaturização) como implicitamente dando novos sentidos a um signo
(resignificações), fazendo com que a imagem oscile entre a convenção e a invenção.
A diferença relativamente à tradicional composição baseada na unidade reside na
tensão gerada pela combinação de opostos cuja inconstância provoca inúmeras
leituras. Para Oliva, se há um sentido para isto, ele é do da disseminação da atenção.
73
Idem, Ibidem, p.18: To deprive language of meaning always means something; in this case it is the
symptom of a mentality that no longer shows preferences, but tends to consider the language of
painting entirely interchangeable.
49
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Se com o conceptualismo o processo formal era de carácter analítico, nos anos 80 a
atitude vai no sentido de encontrar sínteses74 entre a memória, a subjectividade e as
linguagens (referências externas e internas). Em oposição à frieza e ao racionalismo
conceptualista, surge uma arte de opulência e vitalismo, que já não provém somente
da expressão de impulsos internos, como no caso da action-painting, mas da
liberdade de poder adoptar vários estilos, aliado a um pragmatismo caracterizado
pelo desejo de contínua experimentação. Por todas estas razões surgem as analogias
com o período do maneirismo e a necessidade de aprofundar o seu significado.
A transvanguarda inscreve-se na ideology of the traitor (ideologia do traidor), a
mesma por que se pautou a atitude maneirista, uma atitude que favorece o ambíguo e
a lateralidade, pela canibalização das linguagens e de modelos, não na sua pureza,
pois que a impossibilidade de regressão conduz à reconstituição de novos sentidos.
Opondo-se ao sentido tradicional da vanguarda, bastião da resistência políticocultural, a nova postura inscreve-se no que Oliva designa por “niilismo activo”.
A preocupação com a identidade, é outro dos aspectos considerados. Em reacção à
crescente massificação e uniformização dos media, verifica-se a urgência de
considerar a tradição artística e cultural duma civilização, mas também o genius loci,
ou seja as particularidades das culturas locais. Estes propósitos têm levado a que
alguns autores vejam nas manifestações recentes da arte europeia, apenas um esforço
numa disputa de protagonismos: de um lado, a Europa com a sua longa tradição
clássica e humanista; do outro, a América que se tem vindo a evidenciar desde os
anos cinquenta coadjuvada pelo seu poderoso domínio dos meios de informação e
divulgação.
A citação e a fragmentação são, na atitude de recuperação do mítico e do figurativo,
o processo de distanciamento que permite ruminar o passado sem hierarquias. As
imagens tornam-se não figuras, mas figuráveis. Procurando atenuar as diferenças
entre a cultura erudita e a cultura popular, incluem-se neste repertório as imagens
produzidas pelos mass media. Esta proliferação de pontos de vista além de conduzir
74
Oliva diz que a arte possui uma valência funcional, que lhe permite assimilar e resolver as
antinomias negativas.
50
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
necessariamente a expedições particularmente individualizadas, dá origem a um
processo de desideologização em todos os campos da cultura.
2.2.2 Os “pós-modernismos” na arquitectura
Robert Venturi 75 , Paolo Portoghesi 76 e Charles Jenks 77 foram os três principais
arquitectos e autores que no panorama internacional desencadearam a discussão em
redor do conceito de pós-modernismo na arquitectura. O universo das artes plásticas
é também alvo de teorização por parte de Jenks no “Post-Modern Classissism”. Ao
analisar estes três autores, constatei a presença de conceitos afins em todos eles, não
obstante a diferença nas datas de publicação das suas obras. É essa síntese que irei
apresentar, destacando as particularidades que os distinguem.
Associado ao “movimento cultural” (Charles Jenks, Lyotard) que se regista a partir
do final da década de cinquenta (Europa Central, EUA), o pós-modernismo na
arquitectura, porém, só se começa a distinguir em meados de setenta .
As características da arquitectura Pós-moderna propostas por C. Jenks 78 são colhidas
sobretudo por diferença relativamente à tradição do movimento moderno e também
por analogia com a produção cultural dos períodos que considera historicamente
semelhantes ao actual, como o maneirismo e o barroco 79 . Contra os dogmas da
75
Venturi, Robert: Complejidad y contradicción en la arquitectura, Editorial Gustavo Gil, S.A (1ª
edição, 1972)
76
Portoghesi, Paolo: Depois da arquitectura Moderna, Edições 70, Col. Arte e comunicação,
Outubro, 1985
77
Jenks, Charles: Post-Modernism, the new classissism in art and architecture, Academy Editions,,
London 1987
78
Para Jenks, o campo das artes plásticas é mais confuso. Defende que no panorama americano o
aparecimento de uma série de “pós” não seria mais que o prolongamento de experiências do passado
próximo (vanguardas) ou reavaliações das mesmas. Daí que associe o termo “Post” ao “fetiche do
novo”, defendendo a ideia de que o pós-modernismo não é um modernismo no fim, mas no seu estado
nascente, remetendo para o significado etimológico da palavra “moderno”.
79
Omar Calabrese, em A Idade Neo-barroca (pag.27) defende (na sequência da perspectiva formalista
de Wollflin e Foccilon) que muitos dos importantes fenómenos da cultura do nosso tempo são marcas
de uma “forma interna específica” que só pode evocar o barroco. Esta referência não significa uma
“retomada” daquele período, mas uma reconsideração desse conceito á luz dos nossos dias. A sua tese
filia-se em Sarduy, para quem pode haver “barroco” em qualquer civilização, já que este é visto não
como um estilo situado no tempo, mas como “categoria do espírito”. Também Gillo Dorfles já tinha
usado a expressão “Neobarroco” num livro intitulado, O barroco na arquitectura moderna . Em
51
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
univalência, da coerência estilística pessoal, do equilíbrio estático e dinâmico, contra
a pureza e a ausência de qualquer elemento “vulgar”, a arquitectura pós-modernista
valoriza a ambiguidade e a ironia, a pluralidade dos estilos, o duplo código, o que lhe
permite virar-se por um lado para o gosto popular através da citação histórica ou
vernácula, e por outro, para os apreciadores do virtuosismo, através da explicitação
do método compositivo e daquilo que é definido por “gosto das figuras” aplicado à
composição e à decomposição do objecto arquitectónico. No que se refere à memória
colectiva, as novas tendências sustêm a necessidade de contaminação entre as que
provêm da histórica e a tradição do novo 80 .
Da complexidade e
dispersão do universo da cultura arquitectónica, Paolo
Portoghesi extrai dois factores que o levam a pensar numa mudança radical, não só
no modo de encarar a arquitectura, mas também a sua articulação com a história. Na
base desta mudança dois movimentos: um de reconstrução e outro de reexaminação,
que se manifestam através do “ desmontar peça por peça da grande pirâmide virtual
do movimento moderno e da sua substituição por uma grande quantidade de
pirâmides pequenas diversamente orientadas” (Portoghesi, p.19) numa atitude de
fragmentação e reorganização. Outro aspecto focado por Porthogesi é a relação entre
a alta cultura e o quotidiano, ou da “arquitectura culta”, versus “arquitectura banal”,
apelando sobretudo aos modos de interpretação. Face à crescente complexidade,
propõe novas premissas metodológicas e novos instrumentos de compreensão que
têm como base:
o entendimento das culturas como um factor de identidade (não sendo lícito atribuir a
alguém, ou grupo, o monopólio da cultura); constatação de que, a par da produção
individual, existe uma produção colectiva de obras com interesse estético, ligadas a
processos subjectivos e mediadas por instituições e formas de agregamento sociais
Elogio da desarmonia, ainda que não utilize essa expressão, ele enuncia alguns dos princípios
retomados por Calabrese: a constatação do abandono das características de ordem e harmonia em prol
do desarmónico e do assimétrico.
80
A concepção da arquitectura como produto colectivo (ex: Robert Venturi e o projecto “Las Vegas”)
manifesta-se através da reapropriação da metáfora e do símbolo, “ do gosto e sensibilidades das
gentes” partindo de “códigos visuais mais difusos” pertencentes a uma nova “atmosfera” cujo
eclectismo pode prever uma linguagem mais semelhante ao Art Nouveau, do que ao International
Style.
52
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
novas e antigas; o papel determinante das mutações ambientais sobre a dita produção
“culta”, e a interpretação dos novos sinais e formas por parte desta; a descrença na
equação “desenvolvimento tecnológico = progresso social”.
Referindo-se às Artes Plásticas, Jenks defende que o pós-modernismo tem vindo a
evoluir por fases. Numa primeira, a partir dos anos cinquenta, ele é visto pelo seu
aspecto mais negativo – declínio das normas e reflexo do niilismo inerente à
sociedade de consumo, de que a Pop Art é o exemplo mais significativo e onde a
técnica de colagem, com a sua estética de fragmentação e recomposição, traduz os
novos media, sobretudo a T.V. e outros (música pop, cinema, ficção científica),
produtos e veículos da cultura urbana massificada.
A segunda fase corresponde aos anos sessenta, onde os movimentos antiestablishment, representando ideologias de protesto específicas, encontram
estratégias para responder às realidades sociais detectadas. É então que escritores e
artistas declaram a necessidade de uma cultura de inversão ao sistema. Recordamos
que 1966 é o ano em que emerge o “movimento estruturalista” 81 .
Pluralismo e subjectivismo manifestam-se na arquitectura pela característica “addoc”, cheia de humor, ornamento e metáfora . Nas artes plásticas reaparecem: o
narrativo, os ensinamentos clássicos na representação do real e do corpo humano, o
hiper-realismo poético; paisagem, interiores e naturezas mortas, pontuados por
enigmáticas alegorias, pequenos paradoxos e anomalias que sublinham o olhar
irónico do artista (representação americana na 5ª Documenta de Kassel,1972).
A terceira fase do Pós-modernismo começa nos finais dos anos setenta e vem até ao
presente (anos 80), caracterizando-se por uma linguagem clássica mas ecléctica,
baseada em premissas 82 distintas dos revivalismos renascentistas. Do diálogo com a
história procuram–se os arquétipos universais e as constantes formais. É este aspecto
81
Coelho, Eduardo Prado: A Mecânica dos Fluidos, pag. 259.
82
Na definição do “Free Style Classissism” Jenks estabeleceu canônes e regras, onde verificámos
uma confluência de conceitos propostos anteriormente por Robert Venturi em Complexidade e
Contradição na Arquitectura. Resumidamente: desarmonia, pluralismo, antropomorfismo, continuum
histórico, pragmática do fazer, duplo-código, multivalência, ressonância, retórica e recentramento (na
arquitectura).
53
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
que leva Jenks a associar o pós-modernismo ao espírito que animava os artistas e
filósofos da Renascença, defendendo, no entanto, uma nova visão do conceito
Classicismo, distinguindo Classicismo Canónico (de Vitrúvio, ou dos Humanistas da
Renascença) do “Free Style Classissism”. Esta atitude representa para Jenks, a
alternativa ocidental face à noção modernista da “tradição do novo”: na incorporação
do passado no presente, não há hierarquia, as “figuras” históricas adquirem um
estatuto de igualdade com os contemporâneos provando a noção da tradição clássica
de continuum orgânico (a living whole). Daí a tese de que o pós-modernismo não
seja revolucionário, mas evolucionista. 83 Como reflexo deste continuum, e face ao
descrédito relativamente aos antagonismos, o pós-modernismo resolve pela operação
de síntese as tradicionais oposições, Passado / Presente, Academia / Vanguarda , o
que faz, segundo Jenks, com que se possa incorporar o modernismo, já não em
obediência à sua ideologia, mas transcendendo-a na síntese com outros conceitos.
83
“ these simoultaneous returns are, however, tradition with a difference and that difference is the
intervention of modern world and the tenuous place of the humanism within it” , in: JENKS, Charles:
Post-Modernism, the new classissism in art and architecture, Academy Editions,, London 1987
(p.11)
54
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Parte II – Biografia
55
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Capítulo 3 - A “Saga” Homeostética
Tendo como objectivo a caracterização deste grupo e a sua actuação enquanto tal, os
percursos individuais, quer pessoais, quer profissionais/artísticos,
não terão
cabimento neste trabalho. A presente contextualização irá centrar-se na microhistória para a qual recorremos a um tratamento biográfico, mas de vertente
“particularista” ou “singularizante”. Para isso houve que recorrer à memória
comparticipada, através de entrevistas e depoimentos que cruzados nos permitiram
retirar do passado o que numa perspectiva intramural, ainda vive ou é capaz de viver
na consciência do grupo que a detém e não ultrapassa os seus limites.
Foi atendendo à importância da contribuição das memórias individuais para reconstituir o período em
que a geração dos homeostéticos estudava na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa que realizei
entrevistas (em anexo) aos seus elementos e solicitei a Pedro Cavalheiro a autorização para utilizar
excertos da crónica que traz em mãos, intitulada “Biografia não autorizada de Manuel João Vieira”,
textos a partir dos quais podemos recordar a atmosfera da época e o espírito que os animava.
3.1 ESBAL 1982: um clima propício à eclosão homeostética
EXCERTOS 84
“(...) Objectivamente conheci-o 85 no primeiro ano das Belas Artes. Éramos da
mesma turma, tal como o Ivo, o Pedro Portugal e o Pedro Proença que vieram a ser
os pintores do grupo Homeostético, tal como o Xana e o Fernando Brito que
também eram alunos da escola mas em anos mais avançados.
(...) Tenho poucas recordações dele, durante esse primeiro ano. Lembro-me de que se
costumava sentar debaixo de um alpendre que nesse tempo havia no pátio das Belas
Artes, enquanto chovia e desatava a tocar melodias, em regra, portuguesas. Tinha
também um bandolim e certamente guitarras ou violas, piano e não sei que mais
84
Excertos da crónica de Pedro Cavalheiro.
Pedro Cavalheiro refere-se a Manuel João Vieira, um dos elementos do grupo Homeostético. Hoje
além de artista plástico (pintor), associa também as actividades de líder e vocalista dos grupos Ena Pá
2000 e Irmãos Catita, bem como as de performer e actor.
56
85
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
instrumentos de música. Andava sempre a poupar dinheiro para comprar não sei que
instrumento. (...) E assim ao som dos seus instrumentos de cordas vivíamos na
sensação de sermos os últimos estudantes tradicionalmente portugueses,
melancólicos e lúgubres (...) hoje os estudantes vivem ao som dos rádios
constantemente presentes em todo o lado, que a tocarem música portuguesa será por
engano e tradicional, só por milagre. (...) A beleza da melancolia dos estudantes do
meu tempo nunca será recuperada e nós tivemos o privilégio de termos sido os
últimos contemplados com essa atmosfera graças ao cavaquinho do Manuel João,
durante os primeiros anos da década de oitenta deste século XX..
É verdade que não há, desde a morte de Bocage e dos outros turbulentos poetas
arcádicos do século XVIII, outros cabotinos como eu e o Manuel João. Seremos
reencarnações? Abra-se justa excepção para os futuristas portugueses e boémia
anexa. O que se passa é que nós não somos propriamente do século XX. Somos do
século XXI que paira ameaçador na sua estranha aurora, cheio de poluição,
excesso de chineses e dinheiro falso. O leite que bebemos na infância era da
escola franco-belga. Nunca gostámos de "marvells" como a juventude que aí
apareceu depois. Somos europeus, não somos americanos, nem japoneses. (...)
O Manuel João foi sempre um aluno brilhante, mas por vezes pegava-se com um ou
outro professor de ânimos mais exaltados, criaturas menos serenas. A sua pior pega
foi com o austero professor de gravura, Gil Teixeira Lopes. Era um homem que não
tolerava qualquer falta de disciplina. (...) Este professor, espécie de sucedâneo do
realismo-socialista, afirmando-se ainda como neo-realista português, movimento a
que havia de estar ligado de alguma maneira, tinha criado um moderno academismo
rotineiro de modelo retirado das academias de arte dos países pertencentes ao pacto
de Varsóvia, "a cortina de ferro" como se dizia. E era este lúgrube modelo que
pretendia impor aquela malta que transbordava de espírito de forma gritante.
(...) Era muito autoritário e ainda que algum seu comentário pudesse pontualmente
ter alguma propriedade, a sua falta de pedagogia e a sua vontade instintiva de
desfazer qualquer manifestação de originalidade, quando não de personalidade,
criaram-lhe os maiores atritos com os rapazes da minha geração. A apoteose deste
drama foi o confronto que houve com o chamado "movimento homeostético" (...)
57
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
tentou obstinadamente destruir psicologicamente os rapazes que criaram este
movimento. O Pedro Portugal respondeu-lhe executando quadros mitológicos
académicos dentro do género "kitsh", agravando-lhes o piroso. O Pedro Proença,
hoje mais do que célebre, foi visto a chorar à porta da sala de pintura demasiado
ferido no seu interior pelas imprecações do professor. Quanto ao Manuel João,
menos prudente, o professor reprovou-o. (...)
A arte do Manuel João não amadureceu cedo. Nunca foi um virtuoso do desenho e já
só no final da mocidade se revelou o seu génio. Sempre foi extremamente culto, quer
literariamente, quer em termos de cultura visual. Conhecia todos os segredos da
história de arte, com todas as suas subtilezas E a sua criação manifestou-se desde
sempre torrencial em termos de ideias, sendo as suas referências as mais vastas,
desde a grande ideia filosófica ao mais pitoresco detalhe decorativo em que
sempre se mostrou mestre ao mesmo tempo que era capaz da maior
espontaneidade”.
Com este relato constatamos uma existência irreverente, quer nas atitudes do “comviver”, quer académicas. Na introdução ao catálogo da Exposição “Novos-Novos”,
Eurico Gonçalves descreve esta geração sublinhando a sua relação com os meios de
informação e divulgação artísticas, e a sua insatisfação face aos currículos e métodos
em vigor nas Escolas de Belas Artes:
“Informados sobre a história da arte recente, atentos ao que se faz e ao que se mostra nas
grandes exposições internacionais, muitos destes jovens artistas, enquanto alunos,
enfrentaram e enfrentam ainda algumas dificuldades de adaptação nas Escolas Superiores
de Belas Artes, cujos métodos de ensino, por muito flexíveis e permissivos, não deixam de
impor a sua autoridade académica, (...) embora se reconheça já um nítido progresso na
mentalidade estética de alguns mestres...” 86
Nas entrevistas realizadas aos elementos do grupo homeostético são poucas as
referências positivas, quer aos “Mestres”, quer aos métodos de ensino na Escola de
Belas Artes, o que nos remete para a importância do autodidactismo na formação
destes jovens artistas. Passo a transcrever excertos de algumas dessas entrevistas:
86
Gonçalves, Eurico, in : texto do catálogo da exposição “Novos-Novos” SNBA 1984.
58
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Até aos 13, 14 anos, tive uma influência predominantemente visual e, nos anos seguintes,
fiz muitos exercícios de escrita, até com amigos meus, e há uma curiosidade intelectual,
que neste caso se poderá chamar de vocação. Entre os 16 e os 19 anos foi o período mais
forte. Usufruía dos livros que tinha em casa, era uma biblioteca mais de análise e de
filosofia, mas depois sobretudo de literatura. (...) O professor decisivo para mim foi o
João Vieira, em aulas na Sociedade Nacional de Belas Artes, antes de entrar para a
ESBAL. (Pedro Proença).
Qual a tua opinião sobre o ensino na Escola de Belas Artes nos anos da tua frequência?
Alguma influência?...
Não. Nenhuma escola te pode ensinar o que tu queres, mas a ESBAL, além de não ter
ensino, não criava ritmos de trabalho e pesquisa nos alunos. A bibliografia que os
professores forneciam era de livros que eu conhecia de outras fontes. Influência, só se for
a dos colegas. Com isto não esqueço Jorge Pinheiro, José Fernandes Dias, mais um ou
dois professores. Em 1984, comecei a dar aulas de pintura no Ar.Co, ou seja, viajava da
colina pré-moderna para a pós-moderna. (Ivo)
Qual a tua opinião sobre o ensino
na Escola de Belas Artes durante o período
homeostético?
Patético, como o deve ser agora. Aprendi três coisas: do António Sena da Silva: querer ser
designer em Portugal é como querer ser astronauta; com alguém, a esticar uma tela; e em
geometria descritiva a desenhar o entroncamento entre dois sólidos. Alguma sensibilidade
do prof. Jorge Pinheiro e o aconselhamento das tintas acrílicas Liquitex como as melhores.
Em termos de trabalho, quais eram os teus referentes na época? Revistas de arte. (Pedro
Portugal) .
A Escola estava fora do mundo e nós éramos muito inocentes. (F.B.)
Creio que esta terá sido porventura a primeira geração a provocar uma instabilidade e
uma confrontação dentro da estrutura da escola caracterizada por aquilo que se
tornou numa das frases homeostéticas – Por um academismo corrupto e
centralizado.
Efectivamente, até as experiências vanguardistas dos anos 70 em Portugal passaram
despercebidas face à orientação académica, quer de tendência clássica (desenho do
natural, pintura de género), quer dum modernismo tardio (abstraccionismo e
formalismo). Dum modo geral, os professores, cristalizados no tempo da sua própria
experiência artística, revelavam dificuldade ou mesmo falta de curiosidade em ir ao
encontro das necessidades dos alunos.
59
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
A crítica mais frequente incide sobre o desfasamento da escola (direcção e corpo
docente,
estrutura
curricular)
face
aos
acontecimentos
artísticos
da
contemporaneidade e à diversidade e interacção das várias práticas disciplinares.
Verificou-se dum modo generalizado a prática da pintura, até porque a estrutura dos
cursos de artes plásticas se dividia pelas duas categorias tradicionais: pintura e
escultura. Face a esta estrutura curricular, generaliza-se entre os alunos uma prática
dominada pela ironia. Esta ironia é talvez a resposta ao paradoxo existente entre as
orientações académicas e os referentes e as experiências de alguns alunos.
Formalmente, esta ironia toma diversas configurações: a prática paródica da citação
(Pedro Portugal) ; a inclusão de signos e da linguagem gráfica da B.D. (Pedro
Proença, Fernando Brito, mais tarde Pedro Cavalheiro e José Eduardo Rocha, que
optaram definitivamente pela ilustração e pela Banda Desenhada); o primitivismo e o
grafitti no exercício da pintura (Ivo); a miscelânea de referentes eruditos e populares
(em Manuel Vieira, o que designava de “impressionismo barroco”); as naturezas
mortas miniaturizadas de Miguel Branco; o humorismo dos objectos pictóricos e
escultóricos de Caseirão; o neo-modernismo monumental de Fernando Brito que,
tocando várias disciplinas, ora pensava e trabalhava em arquitectura, ora em design,
ora em banda desenhada, ora em pintura, numa polivalência que dum modo geral
constitui outro carácter distintivo desta geração.
Esta hibridismo, quer de exercício, quer de categoria disciplinar, manifesta-se em
Xana, que a crítica repetidamente afirma não saber como classificar, se pintor, se
escultor, ao que o próprio responde: “pinto com cores compridas”.
Outro factor que terá conduzido a uma certa irreverência prende-se com
circunstâncias externas à escola: precocidade no início de carreiras artísticas (o caso
de Pedro Proença e Pedro Portugal que começaram o seu percurso nas galerias que
na época se destacaram por investir em novos valores: Cómicos e Módulo);
projecção e crescente legitimidade artística que os alunos iam obtendo no exterior,
conforme explicitado na primeira parte deste trabalho.
Um vestígio de boémia romântica associado à ideia dum neo-dadaísmo com
identidade nacional (os futuristas do Orfeu), uma consciência de liberdade
conquistada e a desfrutar sedimentam a vontade da mudança e a auto-afirmação.
60
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Voluntarismo e vitalidade são os traços distintivos deste período. Apesar da falta do
estímulo escolar, ou talvez por essa mesma razão, muitas são as iniciativas
promovidas pelos estudantes da Escola de Belas Artes, desde o associativismo 87
(Associação de Estudantes) à apropriação e reutilização de espaços da escola para
exposições dos alunos (caso das primeiras exposições homeostéticas), ao grupo de
teatro, às revistas: Arte-Opinião, propriedade da Associação de Estudantes, teve o
ensejo de se tornar uma revista com propósitos sérios, com um corpo redactorial e
financiamentos próprios. Mas outras revistas circulavam entre os alunos: Hard-Core,
Figuração Narrativa, Filhos de Átila, em “jeito” de fanzine, fotocopiadas, dadas ou
vendidas a preços irrisórios, onde predominava a Banda Desenhada colectiva (nas
duas primeiras). Filhos de Átila era a revista Homeostética, da qual saíram apenas
dois números e que combinava o texto e a ilustração.
3.2 Os grupos no meio das artes plásticas. Homeostética, grupo ou
movimento?
A formação de grupos nos meios artísticos não é uma situação inédita.
Os grupos 88 nas artes plásticas, em Portugal, sobretudo desde o final do século
passado (Grupo do Leão, Grupo do Orfeu, Os Surrealistas de Lisboa, KWY, Grupo
Puzzle) aparecem geralmente em início de carreira e destacam-se pela extrema
juventude dos seus elementos, constituindo uma dinâmica de auto-formação e
afirmação. Quer associados à literatura ou à poesia, quer através de textos ou
manifestos, estes grupos têm deixado alguma produção teórica que permite reflectir
sobre os momentos históricos e artísticos que lhes estão associados.
Yves Michaud 89 refere que a associação de artistas é uma reacção defensiva contra
as instâncias legitimadoras que, segundo ele, dão origem ao corte do mundo artístico
em duas categorias: os que beneficiam da atenção oficial e os que não beneficiam
dela. "Les jeunes artistes réagissent désormais par des comportements plus
87
Pedro Portugal e Pedro Proença pertenceram à Associação de Estudantes em 1984/85.
Refiro-me a grupos autodenominados e não aos agrupamentos de individualidades que representam
as correntes artísticas conforme as épocas, sendo posteriormente associados pelos historiadores de
arte.
88
61
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
autonomes et plus agressifs, en formant des associations, en partageant des sites
communes (...) en montant des expositions hors circuit, par exemple dans l’espace
public" 90 .
Poderá dizer-se que o grupo homeostético não pretendeu reagir agressivamente
contra entidades públicas ou privadas, muito pelo contrário, pois desde 1983 que a
maioria dos seus elementos foi convidada a expor em galerias comerciais 91 , o que
poderá ter constituído um dos factores conducentes ao final do grupo em 1988. Além
disso, com o final do curso, verificou-se uma dispersão geográfica de alguns dos seus
elementos, bem como vários casamentos 92 . Embora não seja este o tema do presente
trabalho, seria porventura interessante considerar o perfil das galerias e a sua
importância para a afirmação das carreiras de alguns destes artistas: público,
estratégias de divulgação e promoção, direccionamento internacional, actualização,
em suma, dinamização e contactos. Interessa-nos saber que há um aproveitamento de
parte a parte e um reconhecimento por particulares que, dum modo geral, assegurou
progressivamente aos elementos do grupo homeostético uma área de exposição, mais
do que de intervenção. Talvez tenha sido essa a razão por que as exposições
Homeostéticas 93 foram realizadas fora dos circuitos comerciais:
90
Michaud, Yves, La crise de l´Art contemporain – Presses Universitaires de France, Paris, 1ª ed.
1997, Octobre: p.146.
91
Nota biográfica: 1ª exposição nos circuitos comerciais: “Esfinge Rosa” – Galeria Cómicos, 1984:
Pedro Proença, Manuel Vieira e Xana. Pedro Proença e Pedro Portugal alinharam respectivamente
pelas Galerias Cómicos e Módulo, mais tarde os outros se lhes seguiriam em diferentes galerias. Em
1987 todos os artistas homeostéticos estão enquadrados em Galerias: além dos acima citados, Xana
(Módulo); Fernando Brito e Ivo (Quadrum); Manuel Vieira realizou a 1ª exposição individual na
Galeria Diferença. Neste ano, estiveram todos representados pelas respectivas galerias na ARCO
(Madrid), com o apoio económico das Fundações Calouste Gulbenkian, Luso-Americana para a
Cultura e da Secretaria de Estado da Cultura. Sobre esta participação, ver artigo de António Rodrigues
na Colóquio Artes, 74, 2ª Série, 29º ano, Setembro 1987.
92
Nota biográfica: Xana casou-se e foi viver para o Algarve; Fernando Brito casou-se em 83 e foi
viver para Santarém; Pedro Portugal, Pedro Proença e Manuel Vieira, em Lisboa, associaram-se num
atelier comum, a que deram o nome de Fundição, até constituirem os seus próprios núcleos
familiares.
93
Excepto a exposição “Continentes”, que foi bem registada fotograficamente e fixada em catálogo, e
a exposição “Educação Espartana”, da qual existem fotografias, é impossível reconstituir os trabalhos
apresentados nas restantes exposições.
62
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
ƒ
1983: 1ª Exposição Homeostética e Um labrego em Nova Iorque, Escola
Superior de Belas Artes de Lisboa;
ƒ
1984: Se em Portimão houvesse baleias, Galeria Quarto Crescente em
Portimão; 1986: Educação Espartana, Círculo de Artes Plásticas de Coimbra;
ƒ
1986: Continentes, Sociedade Nacional de Belas Artes- Lisboa.
Conclui-se então que existe uma não coincidência entre a exteriorização individual
em galerias comerciais e a dinâmica do movimento. Esta "duplicidade", se assim se
poderá considerar, opõe uma dinâmica interior, quase desconhecida publicamente
(críticos, galerias, media),
secreta na sua produção teórica e nos seus
desdobramentos ficcionais, a uma atitude oficial mais conivente com o sistema
legitimador-comercial do art world.
F. Brito dirá: "... trabalhávamos nesse tal espaço de liberdade que a homeostética era,
porque depois, em público, na cidade, à parte da circunstância da exposição
Continentes... quando se chegava a altura de sair para a rua, e na altura saía-se para a
rua pela via das galerias, o que as pessoas mostravam era a assinatura, portanto, eram
sempre cautelosas e respeitadoras do sistema ... a Homeostética era um espaço de
liberdade e fraternidade, mas era uma espécie de recreio do trabalho...” 94 .
Circunstâncias únicas na época 95 (boom económico, proliferação das galerias, a
moda e a necessidade do Novo, novos públicos conservadores) permitiram com certa
facilidade a profissionalização de alguns artistas muito jovens. O seu espaço de
intervenção foi claramente anímico e não propagandístico ou revolucionário.
À pergunta “Homeostética é um movimento ou um grupo?”, P. Proença responde:
“Eu penso que é um movimento. Grupo é o grupo de pessoas que lá estão. No
94
95
Entrevista com Fernando Brito em “Anexos” desta Tese.
Registo a opinião de Pedro Cavalheiro sobre este período: “(...) Sei que toda a gente ou parte desta
gente teve pegas com galeristas, andas e desandas, entendiam-se, não se entendiam...(...) Foi uma
época em que circulou muito dinheiro que significou veneno, uma época muito nefasta, muito dura,
difícil, em que havia muita gente afortunada e em que as pessoas não se entendiam. É esta a minha
impressão.”
63
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
entanto, uma série de coisas aconteceram ao lado, têm a ver com o clima que se
pode ter despoletado... Moviam-se pessoas à nossa volta (...) queríamos ter uma
mitologia, “Cidade Nova” que, no fundo (...), estava cheia de contradições (...) ter
um corpus. Quase algo que mais tarde fosse um continente. Interdisciplinar, com um
fundamento e espírito comunitário. (...) A ideia era construir um “lugar”.
Trabalhávamos juntos durante o período da escola e fora dela (...) o artista não vive
isolado, (...) acho que nós, quer a nível de partilhar o espaço, o trabalho, partilhar
ideias... o desejo de uma comunidade, não era o grupo homeostético, mas o
movimento (...)” 96 .
À mesma pergunta, responde Fernando Brito: “Nem uma coisa, nem outra, porque
nunca houve uma organização (...) a homeostética foi uma coisa que teve um sentido
afectivo para mim (...) era um espaço, e as pessoas exerciam-se nesse espaço, mas
não sei se esse exercício era muito profissional, além de que as pessoas traziam para
a homeostética o que não levavam para as galerias. Na sua vida pública,
profissional, aquilo que ficou registado pelos críticos, que veio nos jornais, as
pessoas tinham desempenhos muito convencionais. A homeostética foi um espaço de
liberdade partilhada, não sendo conhecido precisamente por isso (...) A coisa mais
homeostética que muitas pessoas conheciam eram as festas homeostéticas (...)
retrospectivamente a homeostética foi uma espécie de Situacionismo. Foi uma
situação em que houve imensa deriva, em que houve imensa dinâmica e isso nunca
se chegou a conhecer (...)”.
Se para Pedro Portugal se tratava de um grupo de conjurados, para Ivo, mais que
um grupo, era a soma de cinco, depois seis personalidades. Finalmente Manuel
Vieira, no “Manifesto”, declara: “Somos um movimento rude, indisciplinado como
uma bola de neve que rola por uma montanha de estrume! Sim, somos o caos! Mas o
caos límpido na sua forma ordenada e bruta! O raw caos!” 97
Revelando uma nova consciência relativamente ao papel do artista e à sua
profissionalização, este grupo autolegitima-se ao registar a maioria dos seus
96
Entrevista com Pedro Proença em “Anexos” desta Tese.
97
Manifesto (Manuel Vieira, 1983), em “Anexos” desta Tese.
64
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
movimentos, em diversos suportes, a partir dos quais é possível reconstituir o seu
historial.
Segundo R. Poggiolli, citado por Quadrado 98 , e seguindo a sua metodologia, as
características que definiriam a estrutura e a actuação dum movimento poderiam
resumir-se em dois grandes apartados: organização e doutrina. Quanto à
ORGANIZAÇÃO, podemos deparar-nos com um ou vários grupos; uma ou várias
destacadas personalidades, chefes ou cabeças visíveis do movimento. No que
respeita à DOUTRINA, esta pode ser mais ou menos sistemática ou elaborada,
manifestando-se duma intervenção (teórica e prática; directa e indirecta; social e
estética) e tendo como uma das suas principais formas a produção textual.
Aplicando esta metodologia à análise da dinâmica homeostética, observamos que, no
respeitante à ORGANIZAÇÃO, encontramos um movimento natural e espontâneo na
aglutinação dos seus elementos 99 .
Um período "Pré- homeostético", terá tido início com a entrada para a Escola
Superior de Belas Artes, de Pedro Proença, Manuel Vieira e Pedro Portugal, no ano
98
Quadrado, Perfecto E. – A única real tradição viva, Antologia da Poesia Surrealista Portuguesa
(pp. 9 e 10), Assírio e Alvim, Obras Clássicas da Literatura Portuguesa, 1998.
99
Excerto da Biografia não autorizada de Manuel João Vieira, por Pedro Cavalheiro: “Houve durante
os anos oitenta do século XX, na Escola de Belas Artes de Lisboa, dois importantes grupos de alunos
que se afirmaram pela sua originalidade e modernidade. Diria que eram estes os tempos dos pósmodernismos. Mas como não sou crítico de arte, não vou perder tempo com classificações, ou
"ismos". Contarei o que vi. Quando em 1981 eu, o Manuel João, o Ivo, o Pedro Portugal, o Pedro
Proença, o Pedro Silva Dias, o Mariano Piçarra, o Filipe Alarcão, o Jorge Colombo, o João Correia
Pais e mais uma grande quantidade de rapazes e raparigas (...) quando nesse tempo entrou toda esta
rapaziada para o primeiro ano havia um grupo de alunos dos outros anos que se tinha afirmado na
pintura. Desses destaco o Xana e o Pedro Casqueiro, que vi representados no Museu de Arte Moderna
da Gulbenkian, tal como o Pedro Cabrita Reis, que anda hoje nos píncaros. Os outros pintores, que me
lembre, eram a Alda Nobre, a Madalena Coelho, a Inês Simões e o Jaime Lebre. Vestiam-se
excentricamente, mas em estilo chique, num exibicionismo, quem sabe se inspirado na Sónia
Delaunay, de quem havia então uma grande exposição na Gulbenkian. A crítica chamou-lhes
“Talentos Emergentes”, e o grupo ficou conhecido pelo “grupo dos emergentes” (...). O grupo
Homeostético apareceu a seguir. Assisti à sua criação. Foi na cantina das Belas Artes, numa manhã de
inverno. Entre três desenhos garatujados que me deu, o Pedro Proença inventou a palavra. Tinha
andado dias à procura de um nome para um novo movimento artístico. Ficou eufórico e foi apregoar a
sua invenção para o pátio. Aderiram imediatamente a este movimento o Pedro Portugal e o Manuel
João. O Ivo integrou-se logo a seguir. Eram todos do meu ano. Depois, dois veteranos aderiram a esta
ideia, o Xana e o Fernando Brito.”
65
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
lectivo 81/ 82. A a estes juntar-se-ão, em 83, Xana e Ivo. Em 86, formaliza-se
(porque já antes havia colaboração) a inclusão de Fernando Brito 100 .
O objectivo inicial desta associação terá sido a organização de exposições: em
Janeiro de 83, " Onze anos depois" 101 - ESBAL (Talentos Emergentes), após a qual
se seguiriam as cinco exposições homeostéticas.
Estes elementos desdobram-se em núcleos (ou sub-grupos) com projectos distintos e
complementares, alastrando assim o espírito homeostético: 81/84, Grupo Babel (Num
Farum Putorum): Filipe Alarcão, Pedro Silva Dias, Pedro Portugal, Pedro Proença e
Xana, e Fernando Brito (convidado por carta, dado residir desde 83 em Santarém);
83/85, Grupo V Império: Pedro Proença e Fernando Brito; 86/88, Grupo Porkys, com
o projecto Marmoreo Odeon: Pedro Proença e Manuel Vieira; 85/88, Grupo CO-CO,
com o projecto Gabinete Adamastor: Fernando Brito e Pedro Portugal.
Quanto às "CABEÇAS VISÍVEIS", não há "chefes", pois que, respeitando as
características pessoais de cada elemento, não há tarefas distribuídas ou lutas pelo
poder. O envolvimento homeostético 102 pode antes caracterizar-se por uma
interacção um tanto caótica, exaltada e participativa, conforme nos indica o primeiro
manifesto (1983), que mais adiante iremos analisar. Digamos que um principio de
trabalho de projecto reúne os seus elementos de forma activa em volta das iniciativas
que se propunham realizar. Poderão atribuir-se a Pedro Proença, Manuel Vieira e
Fernando Brito textos e manifestos, se bem que uma das características do grupo seja
a hetero- canibalização ou "antropofagia", sendo por vezes difícil atribuir autorias.
Como diz F. Brito, " Nós alimentávamo-nos uns dos outros mas era para efeitos
homeostéticos. Nós utilizávamos títulos uns dos outros, poemas uns dos outros,
100
Nota biográfica: esta inclusão ocorre por altura da exposição “Educação Espartana” é a única que
obedece a uma “iniciação” ritualizada: nas escadarias da Faculdade de Coimbra, todos colocam os pés
em cima do novo elemento; atrás desta cena, numa faixa, lê-se “Retomar a esperança”.
101
Esta exposição ocorreu deliberadamente em simultâneo com a exposição “E depois do
modernismo?”.
102
Ver folheto da exposição “Educação Espartana”.
66
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
personagens uns dos outros, escritos para filmes uns dos outros, formas uns dos
outros..." (entrevista em “Anexos”).
Tudo leva a crer que os textos existentes, sobretudo ao nível da ficção, terão
resultado de reflexões, discussões conjuntas, excursões, sessões de gargalhadas,
excessos.
Pedro Portugal é o responsável pelo registo das actividades, sendo-lhe atribuídas
todas as fotografias existentes, bem como a produção de acontecimentos e as
relações com o exterior.
Não poderemos afirmar que exista uma preocupação doutrinal, se bem que ao longo
dos Manifestos se vão desenhando PRINCÍPIOS, não de tendência impositiva, mas
aberta, formulados numa atitude interdisciplinar, como afirma Proença. Creio que os
textos escritos não revelam, até à exposição “Educação Espartana”, uma preocupação
em criar uma teoria. Parecem querer ser o depósito proveniente da interacção das
tendências individuais que se manifestam no grupo. No entanto, depois de analisar
os textos que agrupei sob a designação de Teoria Homeostética (em “Anexos” da
Tese), penso poder defender que existe a formulação de princípios que foram
desenvolvidos na invisibilidade por Pedro Proença através de textos de trabalho
elaborados durante todo o período homeostético e, inclusive, pré-homeostético. Em
contrapartida, os panfletos que acompanharam as exposições, declarações curtas um
tanto neo-dadaistas e enigmáticas, são pouco reveladores das intenções ou do
pensamento teórico do grupo.
Relativamente à INTERVENÇÃO, distinguiremos as operações formais, os
acontecimentos e a “deriva homeostética”. As operações formais realizaram-se nos
mais variados domínios: ARTES PLÁSTICAS (Exposições Homeostéticas,
destacando-se a descentralização das mesmas); DESIGN (Comunicação: alfabetos
homeostéticos, cartazes, folhetos, logotipos, etc.; Equipamento: projecto Gabinete
Adamastor); BANDA DESENHADA (F. Brito: “O Fado”; “O caso das moscas
verdes”); ARQUITECTURA (F. Brito, figuras da arquitectura homeostética ou a
monumentalidade pura). MÚSICA (M. Vieira: Projecto Ena Pá 2000, “Concerto
para pandeireta e máquina de lavar”, som que passou durante a 1ª exposição
homeostética; Xana: “Walking around Serra da Estrela”; Francisco Ferro:
67
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
composição étnica para a Exposição Continentes); REVISTAS (OS FILHOS DE
ÁTILA, predominantemente visual, feita por pessoas de artes plásticas com algumas
vocações extra artes plásticas, literárias, musicais... 103 , e ao jeito de fanzine,
fotocopiada e com pouca qualidade gráfica, onde colaboraram, entre outros, Pedro
Cavalheiro (Banda Desenhada); ASA DE ÍCARO, projecto para uma outra revista, da
qual existem sobretudo maquetas de imagens, e nome para uma hipotética editora).
Sobre estas revistas diz Ivo:
As revistas homeostéticas fazem parte da nossa energia transbordante da época e também
caótica, porque os números eram assim preparados, sem conteúdos prévios. Se os havia,
eram rapidamente ultrapassados pelos desenhos e textos escritos por todos nós. A relação
com a Arte Opinião é totalmente inexistente. A Arte Opinião, fundada pelo Pedro Cabrita
Reis, é uma revista tradicional de arte (no bom sentido), com artigos e entrevistas a
artistas, reprodução de obras, concursos para a execução da capa da revista, enquanto os
Filhos de Átila e Asas de Ícaro são sobreposições caóticas de bandas desenhadas,
editoriais do Proença, desenhos de alguns de nós, com textos de outros elementos do
grupo, etc.- o caos quase perfeito. ( Entrevista em anexo).
Os acontecimentos e experiências foram nas áreas da PERFORMANCE, TEATRO,
CINEMA, INSTALAÇÃO, dos quais restam textos, fotografias ou filmes, conforme os
casos.
A “deriva” diz respeito às viagens de grupo ou de alguns dos seus elementos (Beiras:
Capinha, Pampilhosa da Serra; Amesterdão, Veneza, Grécia, Nova Iorque).
Apesar das referências a uma certa invisibilidade, esta só se deu ao nível teórico, já
que o mundanismo e as relações sociais entre amigos, artistas ou instituições foram
constantes.
A PRODUÇÃO TEÓRICA faz-se representar nos MANIFESTOS, POESIA, FICÇÃO
(pequenos romances:
Budonga, Marmoreo Odeon, Fragmentos dos cadernos de
Augusto Barata, etc.); SINOPSES para filmes; e TEORIA DE ARTE, mais propriamente
os textos que fundamentam a teoria homeostética.
103
Entrevista com P. Proença.
68
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Capítulo 4 - Percurso e Visibilidade
4.1 O Reconhecimento Hoje
Considerando que uma das formas de legitimação consiste na certificação de
determinada ocorrência cultural ou artística pela pena dos críticos e dos
historiadores de arte em documentos de carácter mais ou menos definitivo,
pretendemos verificar a existência do termo "Homeostética" nas obras sobre
arte portuguesa recentemente publicadas. Sendo escassas, foram no entanto
escolhidas pelo seu carácter generalista e pela possibilidade de apresentarem
uma panorâmica sobre a arte portuguesa das últimas décadas. Nelas se dá conta
de uma total ausência de referências, ou referências sumárias relativamente à
Homeostética. As obras consultadas foram as seguintes:
ƒ
Novembro 1993, Pintura Portuguesa do século XX - Bernardo Pinto de Almeida;
ƒ
Setembro 1995, "O declínio das vanguardas nos anos 50 ao fim do milénio" in
História da Arte Portuguesa, Volume 3, - João Lima Pinharanda;
ƒ
Junho 1998, Artes Plásticas em Portugal, dos anos 70 aos nossos dias Alexandre Melo;
ƒ
Dezembro 1998, A Arte Portuguesa do Século XX - Rui Mário Gonçalves.
Bernardo P. de Almeida 104 , no capítulo "Aspectos da Pintura Portuguesa da década
de oitenta", escreve: "Encerrando este ciclo de artistas revelados na década de 80,
deverão referir-se ainda os nomes de Pedro Proença e Pedro Portugal que igualmente
na SNBA (Lisboa), surgiram em 86 no contexto da mostra colectiva "Continentes",
em irónico comentário ao título "Arquipélago" com que se haviam afirmado os que
se haviam imediatamente precedido." E, mais adiante: "outros jovens artistas, como
Pedro Proença e Pedro Portugal, vinculados a um grupo de circunstância - Os
104
Almeida, Bernardo Pinto de: Pintura Portuguesa do século XX , editora Lello & Irmãos, Porto,
Novembro 1993.
69
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Homeostéticos - optaram por modelos que nada tinham que ver com os da geração
imediatamente anterior e fixaram-se em dominantes mais experimentais."
Para este crítico, os anos oitenta foram o período de todas as afirmações: "...raras
vezes, ou nenhuma, uma década terá sido entre nós tão assumida, enquanto valor
ideológico de afirmação geracional, como foi a década de 80 em Portugal. Foram
sensivelmente dez anos de todas as afirmações - extemporâneas muitas vezes; de
todas as exposições, do rebentar do mercado em inesperadas direcções, do
surgimento de um sem número de novas galerias, o aparecimento de uma nova
geração de críticos de arte e de comissários de exposições...". Em termos de prática
artística e tendência estética, assistiu-se a um "regresso à pintura", com
uma
"explosão de linguagens quentes, expressionistas, eclécticas, que multiplicaram os
seus pontos de referência e as modalidades de expressão pessoal e da citação, entre a
provocação e a paródia, que foram entre os artistas portugueses reflexo de um novo
comprometimento com as linguagens internacionais em voga, um pouco como o
acertar dum relógio que havia estado parado ou atrasado".
João Pinharanda 105 considera as "novidades" dos anos 80, destacando a acção dos
grupos: "Antes da individualização das carreiras, os novos artistas afirmam-se
através da acção de grupos. Reunidos por questões de amizade e frequência escolar,
esses grupos não significam unidade programática e estética, mas uma acção de
afirmação estratégica e provocatória". Pinharanda identificou com precisão os
"grupos" que, desde o início da década de oitenta, foram protagonistas da paisagem
artística lisboeta, tendo a Escola de Belas Artes como local comum de iniciação e
enquadramento. Destaca quatro grupos de artistas. Um primeiro constituído por
Pedro Cabrita Reis, Pedro Calapez, José Pedro Croft, Rui Sanches, Ana Léon e Rosa
Carvalho (Exposição “Arquipélago”, SNBA, 1985 - única exposição conjunta e
dispersão no sentido de carreiras individuais); Grupo dos Talentos Emergentes,
105
Pinharanda, João Lima, “O declínio das vanguardas nos anos 50 ao fim do milénio” in Paulo
Pereira (dir.): História da Arte Portuguesa,Volume 3, Círculo de Leitores, Temas e Debates,
Setembro 1995. Observação: refere individualmente Pedro Portugal, Pedro Proença (pp. 625, 632633), Xana (pp. 627- 628), Fernando Brito (pág. 634); “Ases da Paleta” (Quadrum 1989, Fernando
Brito, João Paulo Feliciano, Manuel Vieira e P. Portugal – pág. 633).
70
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
constituído por Ana Vidigal, Pedro Casqueiro, Alda Nobre, Madalena Coelho e Inês
Simões (Exposição "11 Anos depois", com elementos do grupo Homeostético e
outros - dispersão no sentido de carreiras individuais: Pedro Casqueiro e Ana
Vidigal); e o terceiro, contemporâneo dos acima citados, que, não tendo funcionado
em conjunto na ESBAL, virá, após o curso, a reunir-se à volta do projecto "Galeria
Monumental". De entre os seus elementos destacam-se Manuel San-Payo, Gonçalo
Ruivo, Miguel Branco, Jorge Varanda, cujos propósitos contemplam vertentes
pedagógicas pluridisciplinares e artísticas.
O grupo Homeostético é referido nos seguintes termos: "Finalmente podemos
estabelecer uma linha de irrisão e jogos de linguagem, em artistas que, não
tendo já participado na vertigem revolucionária, recuperam valores reflexivos,
filosóficos e mesmo políticos mas estabelecendo uma dinâmica de
desconstrução irónica (ou puramente lúdica) de referências e temáticas.
Autodenominam-se "Homeostéticos" e incluem, na sua versão mais alargada,
Pedro Portugal, Pedro Proença, Manuel João Vieira, Fernando Brito, Ivo e
Xana".
Alexandre Melo 106 sublinha "as características da conjuntura artística dos
anos 80" apontando como factores " a animação mundana e mediática
produzida pela afirmação pública de grupos informais de artistas" revelados
pelas "exposições e entrevistas colectivas". Caracterizando esta tendência
associativa, afirma: "Tais grupos correspondiam mais a cumplicidades de
formação, promoção e atitude do que a afinidades programáticas ou estéticas
conforme se viria a comprovar pela rápida autonomização de carreiras
individuais". Não utilizando a expressão "homeostética", refere-se -lhes: "Uma
outra vaga de artistas irá surgir, ainda em meados da década de 80, numa série
de exposições colectivas, entre as quais se destaca "Continentes" (SNBA,
1986). Entre eles estão Pedro Portugal e Pedro Proença". Alexandre Melo
revela os contornos da prática "inicial" do grupo, que a seu ver "estava marcada
106
Melo, Alexandre: Artes Plásticas em Portugal, dos anos 70 aos nossos dias, Editorial Difel, Junho
1998. Observação: Refere individualmente Pedro Proença (pags.184, 185, 198 e 187) e Pedro Portugal
(pags. 188, 189, 190 e 191).
71
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
por uma grande exuberância visual e de atitude, um displicente eclectismo na
manipulação de referências, um forte sentido lúdico de provocação e uma clara
intenção de comentário irónico à actualidade artística".
Rui Mário Gonçalves 107 , no capítulo intitulado "1983-1994
O Tempo
Temporalizado; Neo- Expressionismo", caracteriza a situação conjuntural dos anos
80, não referindo grupos, mas apresentando listagens extensas de artistas, onde
mistura gerações. Nessa listagem de artistas são referidos: Ivo (a quem dedica umas
linhas mais à frente), Xana, Pedro Proença, Manuel Vieira e Pedro Portugal. No
entanto, não usa o termo "Homeostética". Apresenta a sua visão da arte dos "anos
80": "a prática paródica de muita da arte internacionalmente mais divulgada durante
os anos 80 facilitou a atitude desideologizada dos jovens artistas", sendo que no "(...)
retorno à pintura na "bad-painting", no "neo-expressionismo" e na "transvanguarda",
procurou intensificar tradições e valores regionalistas americanos, alemães e
italianos, respectivamente, pois numerosos jovens artistas portugueses apresentaramse como inseridos nestes movimentos "regionalistas", imitando as obras (...) sem
estabelecer quaisquer relações com quaisquer tradições ou valores portugueses: um
paradoxal regionalismo alheio". Em termos de práticas artísticas, reitera o que é
genericamente afirmado por todos os que escrevem sobre este período, onde, depois
de uma década em que a vanguarda foi atraída pelo conceptualismo, a geração dos
anos 80 retorna à pintura e à escultura. O “figurino” internacional, divulgado entre
nós pelas revistas de arte, bem como a intervenção de destacadas figuras da arte
europeia em acontecimentos artísticos nacionais (Bonito Oliva no júri da LIS’79;
Germain Celant e Rudi Fusch nos colóquios da exposição E depois do
Modernismo?), parece repercutir-se em Portugal. Relativamente à afirmação de Rui
Mário Gonçalves acerca do “regionalismo alheio”, creio ser necessária uma mais
correcta e aprofundada leitura iconográfica de obras deste período. Creio ainda que a
expressão utilizada por este crítico ignora a problemática da globalização da
107
Gonçalves, Rui Mário: “1983-1994 O Tempo Temporalizado; Neo- Expressionismo" in A Arte
Portuguesa do Século XX, Temas e Debates, Lisboa, Dezembro 1998, (pag.116).
72
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
informação, incluindo a artística, e a sua influência nas obras dos artistas portugueses
contemporâneos.
Relativamente ao período que nos detém (os anos 80), a utilização da palavra
"Homeostética" é apresentada com mais convicção por Pinharanda, crítico cuja
geração e início de carreira coincide com a dos nossos artistas, podendo atribuir-selhe muitos dos textos de imprensa que acompanharam, tanto a exposição
Continentes, como exposições individuais. Apesar de pertencer à mesma geração e
de ter feito crítica a estes artistas, Alexandre Melo, no livro acima citado, não se
refere ao grupo como "Homeostética".
Numa rápida visitação pelas obras supracitadas, pode concluir-se que a proximidade
física e geracional aos artistas é uma mais valia para a fidelidade histórica, e que cada
historiador, crítico, inventariador apresenta tendências empáticas com indivíduos,
grupos, linhas estéticas, que vêm influenciar as suas escolhas e selecções. Outro
factor a considerar é a repetição grosso modo dos aspectos que caracterizam o
período em causa e os resultados artísticos.
A palavra "homeostética" surge associada a estes artistas individualmente, o que
parece fazer valer a frase do Manifesto da 1ª exposição: "a farda faz o militante, o
rótulo apenas perfaz o homeostético".
A "Homeostética", como verificámos, não passa de um nome, acerca do qual
não há questionamento. No entanto, "Homeostética" , tal como "Dada",
"Surrealismo", pertence às autodesignações, revelando assim uma consciência
própria e interna de sentido.
Segundo Pedro Proença, a palavra foi uma ideia de Pedro Portugal e terá tido a
sua origem na palavra "Homeostase", que significa "equilíbrio orgânico".
"Homeostética " será assim um sentido para uma estética orgânica, ou, como
se afirma no "Manifesto para a Vegetarianização do pensamento": "O nosso
elemento é a transformação, o mobili in mobilis".
73
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
4.2 Exposições e textos de catálogo
Conforme assinalei no capítulo anterior, a intervenção fez-se a vários níveis.
Destaquei as exposições devido aos textos que foram escritos por sua ocasião em
folhetos fotocopiados (excepto o catálogo de “Continentes”) ou que, sem serem
publicitados, foram escritos a seu propósito, permitindo analisar as intenções e o
percurso conceptual do grupo.
Da exteriorização homeostética também foram visíveis e concretizadas acções
informais, lúdicas e experimentais, tais como performances e instalações. Mais uma
vez, Pedro Cavalheiro vem recordar-nos os duelos e os torneios ocorridos no pátio da
Escola de Belas Artes:
(...) O duelo apresentava-se ao género de "performance". Apareceu na véspera um
cartaz anunciando o evento, com letras negras desenhadas à régua onde eram
representadas duas silhuetas de duelistas com cartolas (...) o duelo foi travado num tom
entre pantomina e "performance" ... naquele tempo usava-se ainda o termo
"happenning". (...) Rodeado
pelos seus padrinhos que eram, se não me engano, o Pedro Proença e o Pedro Portugal. O
local era obviamente o pátio da Escola de Belas Artes de Lisboa (...) a cena respirava
mórbida solenidade. Havia uma pequena multidão que se espalhava ao longo dos muros
austeros daquele edifício sem se acotovelar, não deixando transparecer nem o gozo que
sentia, nem o
assombro. A um momento as espadas cruzam-se. Os dois bateram-se violentamente e a
assistência terá soltado alguns risos e sentido algum terror. A um tempo o Xana invade o
campo e postando-se entre os dois antagonistas despeja alguns borrões dum frasco
amarelo de tinta Sabú cor de rosa vivo e grita: Sangue! Dando em seguida uma
mefistofélica gargalhada muito sonora... (...).
Relativamente às exposições realizadas, conforme já referi, somente restam
imagens das duas últimas: “Educação Espartana” e “Continentes”. Das
anteriores, limitar-me-ei a analisar os textos que as acompanharam. No
conjunto, foram inventariados os seguintes textos, onde se faz a distinção entre
os publicados (P) e os não publicados (NP):
74
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Textos de Catálogo
[P (Publicados) / NP (Não Publicados) ]
Os textos encontram-se nos Anexos da Tese.
ƒ
1. [P em folheto/Catálogo ] ONZE ANOS DEPOIS
ƒ
2. [P em folheto/catálogo] 1ª EXPOSIÇÃO HOMEOSTÉTICA
ƒ
3. [P em folheto/Catálogo] UM LABREGO EM NOVA IORQUE
ƒ
4. [NP] UM LABREGO EM NOVA IORQUE (versão B)
ƒ
5. [P em folheto/Catálogo] SE EM PORTIMÃO HOUVESSE BALEIAS
ƒ
6. [P em panfleto] EDUCAÇÃO ESPARTANA
ƒ
7. [NP] EX-CURSÕES HOMEOSTÉTICAS
ƒ
8. [NP] Projecto para texto sobre os CONTINENTES (1986).
O ano de 1983 destacou-se pela quantidade de exposições realizadas. A exposição
pré-homeostética “11 ANOS DEPOIS - As Suecas saem à luz” teve a virtude de
catapultar uma série de artistas para o art world. A partir daqui viram-se
configurados agrupamentos, ou foram-se destacando individualidades No folheto
desta exposição, uma frase emblemática aponta para a atemporalidade.
A NÓS O FUTURO! A NÓS O PRESENTE! A NÓS O PASSADO E A PESADA
AUTOCRÍTICA!
No mesmo ano ocorreram ainda a primeira e a segunda exposições homeostéticas. A
primeira, sem título, é acompanhada dum Manifesto onde se pode ler o desejo de
assinar a derradeira certidão de óbito da arte de uma geração que encaram apenas
como resultado da guerra fria, bem como o de agitar o público, “adormecido entre
as suas batedeiras eléctricas e os mass media”. Definem-se os modelos: Átila, o
Huno, enfim o arrojo, o prazer e a aventura. São um grupo “rude, indisciplinado
como uma bola de neve que rola por uma montanha de estrume”, para o qual “é
necessário dar ferro a esta anémica sociedade” e “decapitar os “papuça e dentuça”.
O movimento homeostético proclama um novo modelo de caos, de limpidez, “uma
moralidade natural por enquanto imberbe, mas amanhã pilosíssima”. Este Manifesto
foi publicado no número um da Revista Filhos de Átila.
O texto do folheto correspondente à segunda exposição, “Um Labrego em Nova
Iorque” (1983), é lacónico:
75
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
ALGUMAS MEDITAÇÕES DE MICKEY M. SOBRE A MORALIDADE YANQUEE
O POLVO E O ORNITORRINCO
ERNESTO O ORNITORRINCO HONESTO PASSA DEBAIXO DO APARTAMENTO DO
BRUTO SHARKEY, O POLVO
Ó POLVO, DIZ O ORNITORRINCO, EU GOSTAVA DE SER INVERTEBRADO COMO
TU.
PUET! REPLICA O POLVO COM TÉDIO.
MORAL
“ TILT !!! ”
Uma outra versão não publicada, da autoria de Manuel Vieira, “UM LABREGO EM
NOVA IORQUE (versão B)”, revela sobretudo uma grande ironia relativamente aos
mecanismos de recepção da obra de arte e à incapacidade de esta se fazer entender
pelo público.
“Um labrego em Nova Iorque? Quem pode captar a labiríntica maravilha desta frase?
Qual o sortilégio alquímico? Que pode (na mente do público) estabelecer o contacto entre
o significante e o significado? Um signo?
(...)
mas para quê desvendar
a boa obra (de art)
se tal coisa é desventurosa
(ou mesmo)
só aconselhada aos consagrados
poetas (os eternos)
(...)
Pretendemos,
com
a
embriaguez
do
nosso
lúcido
discurso,
comprometer
irremediavelmente a alma impura do vulgar observador de art e a condescendência do
POVO (sentimento artístico animal).
Cada obra deverá ser para o estimado indivíduo público um espelho de Alice.
(...)
Credes, consagrado público, que a nossa cruel ânsia se tornará, como tudo sócia da
eterna cloaca nacional?
(Excertos)
76
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Dentro do espírito de descentralização cultural que se vivia na época, “SE EM
PORTIMÃO HOUVESSE BALEIAS “ (1984) é a primeira tentativa para
divulgar o grupo no exterior 108 .
UMA LANÇA NO ALGARVE
HOMEOSTÉTICA UM NOME QUE NOS FAZ SONHAR
HOMEOSTÉTICA O BÉBÉ PROVETA DA ARTE MODERNA
AS CARAMBOLAS ACTUAIS NÃO NOS INTERESSAM (O QUE) AMAMOS, TUDO É
BíBLICO. O SEXO, A AMIOSE, O MAR, A FOME, A NOSSA ARTE É (MAG) ESPELHO
DE ALICE.
O
SIGNIFICADO
PROFUNDAMENTE
INFANTIL,
E
DE
UMA
ADORAÇÃO
PERFEITAMENTE FANÁTICA E AO MESMO TEMPO SADO-MASOQUISTA (PARA)
OU PURAMENTE IMPRESSIONISTA PARA COM AS FORÇAS NATURAIS, EXEMPLO:
O MAR, AS ROCHAS, OS PINTAINHOS, OS UNICÓRNIOS, AS SEREIAS.
Pode reconhecer-se neste texto o forte espírito hedonista que move o grupo. A esse
hedonismo não é alheio um grande sentido de humor, que vem questionar, entre
outras coisas, o panorama artístico contemporâneo, como podemos ler na seguinte
nota 109 :
“DE ALGUNS MOVIMENTOS DE ARTE
Conceptualismo – simulacro da ideia enquanto ideia, hospitalização neo- platónica de
uma pseudo- epistemologia de raiz artística.
Arte povera – snobismo do material enquanto materialismo snob.
Minimalismo – anacronismo da industria como arte, asneiras da diferença enquanto
escala, imbecilidade da repetição enquanto conteúdo.
Land-Art – piqueniques para intelectuais pequeno-burgueses.
Happeningues – saloiada.”
“Educação Espartana” e “Continentes”, ambas realizadas em 1986, revelam, quer
através do catálogo (a primeira), quer dos textos escritos a seu propósito, uma maior
108
Com os mesmos objectivos (divulgação e descentralização), terá sido efectuada, em 86, a
exposição “Educação Espartana” no Centro de Artes Plásticas de Coimbra.
109
Texto 33 (Teoria homeostética, Anexos).
77
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
maturidade e intencionalidade teórica. “Educação Espartana”, cujo catálogo/ folheto
anuncia esquematicamente os princípios teóricos do que venho a considerar a
“Teoria Homeostética” (ver 3ª parte desta Tese), foi, na opinião de Fernando Brito, a
primeira exposição neo-conceptual portuguesa, tendo passado inteiramente
despercebida no meio artístico e na crítica.
4.2.1 Educação Espartana
O PANFLETO MAOÍSTA consiste num texto que questiona o Valor da Arte e das
suas práticas tradicionais (estilos e categorias), bem como as tendências que visam a
sacralização da mesma 110 . Neste apelo ao insurgimento, não isento de alguma ironia,
observamos os mecanismos da retórica, num discurso que relembra o tom e
expressões marcantes dum período de euforia revolucionária:
“A arte foi novamente invadida pela anemia da pintura. Os Gestos Canalhas repetem-se, a
retórica nietzschiana corrompe os espíritos, e o pensamento vive a sua calma luxúria de
Narciso em eutanásia prateada, roxa, convexa.
A quem interessam as rosas vermelhas murchas?
Morte à Pintura, coisa de vermes!
A idolatria e os mecanismos que presidem à Pose Abstracta, são os inimigos das
transutopias que o progresso homeostético determina.
(para esses a nossa aguerrida brigada determinará as mais impiedosas perseguições, as
mais lúbricas torturas, as mais crápulas execuções!)
A arte hoje passa pela guerrilha, pela guerra ao mercado da arte e a exposição dos
cadáveres de tais rançosos comerciantes na praça pública. (no Rato, na Chiado, no
Rossio) para deleite estético dos enxames de moscas.
Oh doces zumbidos junto ao venenoso aroma!
Arte igual a Guerrilha igual a Povo – o artista é o verdadeiro gatilho da Revolução, e não
a delicodoce metáfora (género “a minha caneta é um arado, o meu pincel é um canhão”).
A nós o estrondo e as dissonâncias da vanguarda, a vertigem da dizimação do balofo
110
A propósito do estatuto do produto artístico, Cerveira Pinto refere (no texto do catálogo da
exposição E depois do modernismo?) o papel das instituições e o tipo de consumidores como
factores a considerar na problemática do Valor da obra de arte. Esta pode ser vista, quer como objecto
mágico, quer como objecto de posse, distinguindo a que possui um valor padrão (passível de
variação), da que possui um valor patrimonial (consagrado). No primeiro caso, a noção de obra de
arte, pelo seu carácter abstracto e incálculavel pressupõe a posse e o poder; no segundo, despida do
estatuto de mercadoria, adquire um valor metafísico caracterizado pela metáfora da posse limite,
tornando-se simultaneamente objecto de culto e de rapina. Ainda assim, continua a considerar-se que a
arte possui uma essência autónoma que a distingue dos restantes objectos de troca.
78
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
autómato que é o burguês, e o seu mais contraditório / característico representante: O
Pintor! “
Da capa do panfleto da Exposição “Educação Espartana”, destacamos a imagem
central, uma torre monolítica que representa Babel, um dos pilares da Teoria
Homeostética.
Segue-se a enunciação dos Princípios desta Teoria:
ENVOLVIMENTO HOMEOSTÉTICO
POST-PARODOXOLÓGICO
INFRACRIPTOGRÁFICO
E TRANSMENIPEICO
MÉTIS
KAIROS
ENTHOUSIASMOUS
6=O
O UNIVERSO É UM CUBO
IN DOXA EST PARADOXA
Mais tarde, Pedro Proença acrescentaria a Parahermenêutica.
Na contra-capa do panfleto, muito ironicamente, apresentam-se dois gráficos:
um com a previsão da “popularidade” (reconhecimento artístico) até ao ano
2000 para cada um dos elementos do grupo e outro onde são apontadas as
influências que co-habitam em cada um dos artistas.
E o que significa a designação “Educação Espartana” dentro da teoria
homeostética?
No texto 32 (Ex-cursões homeostéticas, 1986), em Anexos, podemos ler:
Educação espartana – a flexibilidade e a força de uma disciplina! De uma guerra subtil a
todos os artistas instalados no seu trabalho hipnótico, escasso, balofo, vivendo da
indisposição para o Entousiasmo da arte. Por isso opomos o músculo, a vertigem diária
de uma ginástica, o horizonte de um inimigo permanente, multiforme, qual monstro
oriental que perpetuamente é atingido e que perpetuamente se transforma. Este músculo
79
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
nómada que constantemente funda (dá fundo), novo Alexandre devastando e infligindo
uma marca duradoura às Ásias artísticas – novas capitais desta purgaturial
muscularização.
Este texto refere-se ainda à problemática do Estilo 111 , na sua relação com a
Posteridade 112 . O estilo, para a homeostética, não é a interjeição domesticada por um
código, mas o “polemos” entre a interjeição e os códigos (oposição entre a noção
clássica de estilo e a homeostética). Sendo o processo criativo entendido como uma
aventura, os erros (É fugindo que nos encontramos) e os equívocos são alguns dos
principais “motores” quer da teoria, quer da prática deste grupo.
4.2.2 Continentes
Assumida como um espectáculo de pintura, a exposição “Continentes” irá contrariar
teoricamente o espírito da exposição anterior. Sendo a contradição e o paradoxo um
dos pilares da prática e da teoria do grupo, esta atitude leva-me a crer que os
acontecimentos artísticos são principalmente motivo para ensaio e encenações sobre
a arte propriamente dita, respondendo ao que Lyotard chama de “jogos de
linguagem”, sobre, ou a partir dos quais dificilmente se obterá o consenso. É também
com base na paradoxologia e na incerteza que se justifica a ausência dum estilo
homeostético
111
“ Se o estilo é essa excessiva proeminência das saliências e das pregnâncias então sou um idólatra
do estilo, um praticante dos seus mistérios, um cultor dos seus segredos. Porém há que levar mais
longe o estilo com a sua dissolução, acentuando ainda mais as suas convexidades e concavidades,
aumentando o delírio das diferenças, retendo as guerras e os ímpetos. Esse estado explosivo e cruel é
porém uma criatura minuciosa, apta às vezes para as mais espectaculares economias assim como
para os faustosos dispêndios.
Contra o estilo – contra os cultores monológicos, o empobrecimento, a redução ao mínimo. O estilo é
positivo porque reduz ao máximo as interjeições. O estilo como o hábito é a pior das domesticações:
há um tempo para o estilo, mas toda a perpetuação, toda a posteridade é um nojo. Só chegam à
posteridade os estilos que a recusam.”
112
“ Se somos inevitavelmente proféticos, isso não resulta de um desejo de assentarmos nessa
futuração: pistas são pistas e o que vem é sempre outro. Eis uma das razões para essa in-disposição
do futuro. A nossa disponibilidade para o futuro é o ser contra a posteridade, isto é, o sabermos a
radical não-posse que é o devir. Quem teme enfrentar os problemas modernos? Os artistas modernos
nas suas luxuosas colmeias vivem a letargia do trabalho de abelhas que não conhecem a luz do dia,
nem o pólen. Como não trabalham nesta uraniana paz a ruína das flores vai sendo inevitável. Detêmse hipnotizados pela compactidão do conforto. O homeostético sai para as clareiras, dorme ao
80
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Recorrendo novamente a Pedro Cavalheiro, vejamos a sua descrição da exposição
“Continentes”:
“(...) A sua apoteose foi em 1986, no grande Salão da Sociedade Nacional de Belas Artes
de Lisboa. Fecharam-se durante meses num pavilhão em Xabregas e cada um pintou um
gigantesco painel em cinco módulos. Apareceram com um fato negro cada um, o uniforme
homeostético, desenhado pela Inês Simões (...). A seguir dois dos homeostéticos
desapareceram de Lisboa. O Xana foi viver para o Algarve, e o Fernando Brito, se não me
engano, já era casado e já vivia em Santarém. Nesta exposição cada painel representava
um Continente, e a exposição pretendia significar o Planeta Terra. O Pedro Portugal ficou
com os Pólos, o Xana com a Oceânia, o Brito com a América, o Ivo com a África, o Pedro
Proença com a Ásia e ao Manuel João coube a Europa!. (...) Tenho sobre a minha mesa
uma pequena colecção de velhos catálogos das exposições que esta gente fez durante estas
duas décadas (...) O mais vistoso é sem dúvida, o da V Exposição Homeostética, a tal dos
Continentes com a fotografia desta rapaziada toda ainda na flor da idade, com a capa
verde e vermelha, as cores da República Portuguesa e o bizarro logotipo de Portugal com
a esfera armilar transformada em quadrado... a quadratura do círculo!”
Por opção do grupo, no catálogo da exposição, não existe qualquer texto, excepto
uma curta dedicatória a Ernesto de Sousa, conforme referi no 2º capítulo. No entanto,
a propósito da exposição e justificando o seu título, Pedro Proença escreveu um texto
que passo a citar:
Projecto para texto sobre os CONTINENTES
O incessante fim da arte
Ou
Os incessantes fins das artes
Ou
A arte dos incessantes fins
(antes de nós – antes do “Isso”)
Nos oceanos da tradução subsistiam em ilhas, estabeleciam-se em litorais, dedicavam-se
com um calor autofágico aos luxos de um arquipélago, aos diversos turismos metafísicos.
Resistiam aos imperialismos continentais.
Outros, de traseiros olhos, babavam-se em arqueologias sem ruínas. A busca interminável
dos eternos fundamentos. Ou uma pessoalização abstracta.
relento, constrói pequenos abrigos – não teme a doença, a fome, as catástrofes, porque kairos o
81
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
(qualquer coisa)
Entretanto o Novo desaparecia, enamorado da sua própria história, numa rude anarquia
de especularidades. Os artistas entregavam-se a simulações onânicas em magníficas
performances. Os proclamadores do êxtase apocalíptico estavam satisfeitos.
(princípio do Nirvana?)
A obra de arte, impotente perante os declínios do sentido e da verdade ( e seus derivados),
busca saídas em corredores esfíngicos de postiços enigmas. Dramatizava-se o apagamento
do sentido recorrendo a cenários tecnológicos, a memórias esquizificadas, a instintos
aleatórios.
(having babys)
Categorias liquidas, disseminação dos cultos da diferença e da indiferença. Sentíamo-nos
alegremente condenados às vertigens risomáticas, a um simular desfrutante, a um
inumerável apetite.
(estradas, excessos e palácios)
A terra tinha tremido e voltava a tremer. Olhávamos de lado para as dis-posições fractais.
A terra, as plutónicas entranhas, não queriam mostrar mais tesouros. Talvez se reservasse
a um octoniano pudor. Talvez tudo se tivesse dissipado.
Havia também o esférico ser na sua suspensão brilhante. Num sus-pendiamento. No
meteoro de pensar / pender onde não há crueldade ou sofrimento, mas apenas brilho.
(the love of doxa and paradoxa)
Crianças post-paradoxais, instintos trans-menipeicos, teatros infra-criptográficos.
Contingências sigilares. Ou um desejo cruel, frenético, exigente de ornamentar com
amáveis paraísos o vazio.
(Continentes)
Porque sim.
Este texto resume assim o “esforço de guerra” (atleó) que a homeostética pretendeu
travar contra um período de descrença na própria arte, cuja erosão era levada a cabo
pelas atitudes autofágicas e teorias apocalípticas, conduzindo-a a um negativismo
conduz.”
82
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
gerador de hesitações e indeterminações conceptuais, como procurei mostrar no 2º
capítulo.
4.3 As Opiniões da Crítica
Por ser a única das exposições homeostéticas, que recebeu os comentários da crítica,
enuncio seguidamente os aspectos que me parecem dignos de destaque.
Para João Pinharanda, 113 o meio de afirmação dos mais decisivos trabalhos do grupo
é a atitude de irreverência paródica e a capacidade de lidar com o absurdo: “parodiar
do ponto de vista conceptual certas seriedades de atitude e criação de gerações
próximas, sem deixar de assumir também uma vigorosa procura de efeitos e
afirmação estéticas”.
José Luis Porfírio 114 , com o título “Coisas novas para ver”, parece estar a fazer
publicidade a um produto, ou não utilizasse ironicamente a palavra “promoção”,
quando se refere à disputa “Arquipélagos” vs “Continentes” (“Com esta quinta
exposição, o grupo “homeostético”, surgido publicamente com duas exposições na
ESBAL em 1983, atinge e ocupa o grande Salão da SNBA, isto, um ano depois de
outro grupo da mesma geração, mas de uma “promoção” anterior, o ter feito com a
exposição “Arquipélago”). Destaca o “grandíssimo” formato das pinturas (aspecto
focado por todos os críticos), pois que para os homeostéticos se tratou de fazer, entre
outras coisas, as maiores pinturas da história da arte portuguesa (10mx2.5m). Porfírio
prossegue com comentários ao desempenho de cada artista. Em Fernando Brito
(América) sublinha a capacidade compositiva; no trabalho de Pedro Proença (Ásia)
vê o predomínio do “gozar” sobre o pintar; em Manuel Vieira (Europa) destaca “a
narração e a ironia bem como o “kitsch” da execução à figuração”. A única “pinturapintura” é, para Porfírio, a de Ivo (África): “não que não nos surjam as citações
necessárias para situar o continente, mas o pleno apelo da pintura é mais forte que
113
João Pinharanda, «”CONTINENTES”: Pedro Proença, Pedro Portugal, Xana, Manuel Vieira; Ivo,
Fernando Brito». In: Jornal de Letras, Artes e Ideias – 27 Outubro 1986, pág. 21.
114
José Luís Porfírio “COISAS NOVAS PARA VER”, in: Revista Expresso – 1 Novembro 1986, pág.
42.
83
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
qualquer necessidade paródica ou figurativa”. Pedro Portugal, com Pólos, terá
realizado uma grande “estrutura decorativa” cujas dominantes horizontais dão a
Porfírio a sensação de passar por um “corredor”. A Oceania de Xana, com os seus
“vestígios de salvados”, e a “secretária Continental” de Filipe Alarcão são, para
este crítico, os objectos que no vasto espaço do Salão representam, um, a fragilidade
dum propósito, e o outro, uma “espécie de rochedo” com um grande “acerto
poético”.
Porfírio refere ainda os apoios e patrocínios, que representam um “sinal seguro de
mudança de tempos e de vontades públicas e privadas” e que permitiram a realização
duma exposição “que é um excelente exemplo de desafio e de resposta deste grupo
para consigo mesmo”.
Recorrendo directamente ao discurso dos artistas, Alexandre Melo 115 capta as
intenções do grupo: com esta exposição pretendem restaurar a virilidade da arte
portuguesa. Por outro lado, “Continentes” surge como contraponto à exposição
“Arquipélagos”, a qual para os homeostéticos apenas traduz “uma consequência
teórica das “Atitudes Litorais”, inserindo-se na vaga pós-moderna do “cada um
cultiva o seu jardim”. O resultado é uma insularidade crescente acompanhada de
práticas autofágicas e de uma obsessão pela morte. Pelo contrário, a continentalidade
é um processo progressivo de interacção em que a permanente superação se acelera
pelo entusiasmo colectivo.
Sendo assim, A. Melo adianta a sua própria interpretação. Para ele, o «possível ponto
de clivagem entre estes artistas e alguns dos seus mais próximos antecessores será
talvez uma posição diferente em relação à importância da reflexão e do pensamento
não apenas sobre a obra, mas na própria obra. Isto é, tratar-se-ia, aqui, da recusa
liminar de admitir a obre de arte como lugar de problematização de questões
filosóficas, sociais ou outras. Uma abdicação teórica que perpassa em observações
mais ou menos provocatórias como sejam “todas as pinturas são uma fraude”,
“sinto-me um idiota taoista que contempla a pintura que surge para num
instante a esquecer”. Para lá do lado anedótico desta absurda pseudo-abdicação
115
Alexandre Melo, “AS SEIS PARTIDAS DO MUNDO”, in: Revista Expresso, 1 de Novembro
1986, pág. 43.
84
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
teórica, que os homeostéticos cultivam como efeito de estilo e modalidade de
“charme”, articulando assim a estratégia promocional que entendem mais adequada,
importa entender o que ela revela como característica profunda da situação cultural
contemporânea: uma disponibilidade infinita e instantânea relativamente a todas as
referências, que tendem a tornar-se universalmente equivalentes, abandonadas que
foram pelo pensamento contemporâneo todas as regras fixas da sua selecção e
hierarquização. Fossem estas regras de natureza ideológica, estética ou mesmo
pulsional (...).
Dada esta situação, a alternativa é entre uma dinâmica re-teorizadora, que tenderá a
recuperar perspectivas minimalistas e conceptuais, e um conjunto de sentido oposto
em que se recenseia a euforia citacionista, o eclectismo e o sincretismo sem limites, a
adesão naïf aos imaginários ficcionais, oníricos, infantis, sob as diferentes formas em
que os podemos encontrar em Basquiat, Combas, Kunk ou Salvo, para dar exemplos
muito díspares.
Desde logo, a própria ideia da exposição pode ser vista como uma metáfora de uma
intenção suprema que seria a de poder convocar e fazer interagir numa mesma e
única exposição tudo o que há no mundo e tudo o que há na arte (...)».
Ao intitular o seu artigo “ Do juízo pós-final”, Porfírio Alves Pires dá ao “pós” um
sentido múltiplo: não só o relaciona com a iconografia de algumas obras e com a
montagem propriamente dita, mas atribui-lhe também “o sentimento que a
actualidade possui em relação ao passado próximo, sentimento de dependência e
desejada libertação, que colocam o presente numa relação dialéctica de
sujeição/recusa com a herança histórica sócio-artística de anteontem”, sendo este o
sentido que observa no conjunto e em cada uma das obras presentes.
Haverá um estilo homeostético? Em que medida é que o trabalho deste grupo difere
do de outros grupos seus contemporâneos?
85
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Emídio Rosa de Oliveira 116 vem defender a necessidade de começar a estabelecer
“uma cartografia da sensibilidade” dos “grupos” que, nos anos 80, se têm vindo a
manifestar no panorama das artes plásticas portuguesas: “estes grupos não se alinham
academicamente numa tendência, nem são uma escola, mas antes um agregado
movido por um polémico e irónico desejo de se afirmar e de desbravar caminho,
minando por dentro através duma sensibilidade larvar o paradigma pictórico que tem
vigorado e comandado o “fazer artístico” nas artes plásticas”. O estudo que é
necessário realizar “não poderá confinar-se ao estilo “soft” jornalístico corrido de
uma certa crítica e ser acompanhado por uma investigação com o apoio das
instituições e galerias que poderão providenciar com os meios necessários, para que
possa ser levada a cabo uma reflexão que tenha em conta, não só a produção de
estudos monográficos, como a elaboração de critérios estéticos e do enquadramento
das novas tendências do contexto internacional”.
116
Emídio Rosa de Oliveira: A 5ª EXPOSIÇÃO HOMEOSTÉTICA, Semanário, 8 de Novembro de
1986, pag.35
86
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Capítulo 5 - Os Manifestos Homeostéticos
Os Manifestos propriamente ditos são entendidos como "pequenos romances sobre o
que se passa à volta" e deverão ser classificados como "bases de trabalho"
provenientes duma vivência comunitária - "Não eram tanto manifestos para o
exterior, mas para consumo interno. Quando uma pessoa faz um Manifesto, há uma
necessidade de mudarmos qualquer coisa e isso são afirmações que fazem tornar
(essa intenção) mais real e efectiva." 117
Entre 1982 e 1989, surgiram os seguintes Manifestos 118 :
ƒ
PROCLAMAÇÃO NEO-CANIBAL (P. Proença, 1982)
ƒ
MANIFESTO HOMEOSTÉTICO (P. Proença, 1983)
ƒ
MANIFESTO (M. Vieira, 1983)
ƒ
MANIFESTOS (PARA USO PESSOAL) (P. Proença, 1985)
ƒ
SEGUNDO MANIFESTO PARA IMPESSOALÍSSIMOS ABUSOS (P. Proença,
1985)
ƒ
FRAGMENTOS DE UNS MANIFESTOS JAMAIS PROJECTADOS (P.
Proença, 1985)
ƒ
MANIFESTO PARA A VEGETARIANIZAÇÃO
Proença, 1985)
ƒ
MANIFESTO F.B. (F. Brito, 1985)
ƒ
MANIFESTO SOBRE O ESTADO DA NAÇÃO (P. Proença, 1985)
ƒ
CULTURA NACIONAL a bem ou a mal da nação (P. Proença, 1985)
ƒ
ÚLTIMO MANIFESTO (P. Proença, 1988)
ƒ
MARMÓREO ODEON OU MAIS UM MANIFESTO PÓSTUMO DANDO
CONTA DE VELHAS PREOCUPAÇÕES (P. Proença, 1989)
DO PENSAMENTO (P.
Da leitura e análise dos Manifestos foram apurados os seguintes aspectos:
1. CARACTERIZAÇÃO E IDENTIDADE
117
118
Entrevista com Pedro Proença (Anexos).
Em Anexos.
87
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
2. “ART WORLD”
3. REFLEXÃO SOBRE A NACIONALIDADE
4. PROJECTO /INTENÇÕES
5.1 Caracterização / Identidade
O que é um homeostético? pergunta absurda cheia de táxis, caviar, livros de bolso e
arsénico.
Esta procura de uma definição encontrará resposta entre a ironia, o non-sense e a
paródia: para ser homeostético, basta o rótulo; no entanto aquele é "um animal" sábio
e consciente do seu génio. Nesta inversão de sentido, poderemos intuir uma ironia
relativamente a noções como a do génio, ou a da auto-glorificação, ou a da
sacralização do artista? Interrogando-se acerca da sua "missão" ("seremos nós os
assumidores e eternos defensores desta causa que é a poesia hábil, bem feita e
prometaica?") afirmam ser pessoas banais oscilando entre a exaltação e o sofá,
vulcânicos ao amanhecer mas à noite ficamos quietinhos fumando narguilé e
bebendo uns vinhos... .
Em 85 (in Cultura nacional), interrogam-se acerca da sua identidade geracional: - o
que é que os homeostéticos têm de semelhante? Será que podemos falar duma
geração com práticas e valores partilhados? Nós que fizemos a adolescência com um
simulacro de revolução às costas?
A revolução de 74 não terá deixado de impressionar e de estar na origem da ideia da
Utopia e na persistência dos mitos nacionais, quer para serem parodizados, quer para
serem desconstruídos. A própria ideia de Comunidade poderá considerar-se uma
consequência das utopias que abundaram durante os anos em que a revolução se fez
sentir. Proença terá dito que a utopia homeostética era verde, ligada a um ideário
ecologista e às vivências da infância num mundo rural já inexistente. É essa nostalgia
do paraíso, constituindo uma espécie de paisagem psicanalítica, que virá, ainda que
subterrânea, a revelar-se nos princípios homeostéticos.
Em meados dos anos 80 começa a assistir-se a uma viragem, que culminaria com a
subida ao poder do governo de Cavaco Silva. Os manifestos homeostéticos
88
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
conseguem filtrar e registar, com uma ironia quase tocando a sátira, as modificações
no comportamento social e mundano do meio cultural e artístico. No confronto com
uma sociedade em mudança, parodia-se evocando ou reutilizando novos conceitos
em voga (cibernético, pos-modernismo, sida) - "Em que se está a transformar o
homeostético? Num homossexual cibernético? Ou recaiu ele (tal como tudo) num
banalizado produto da indústria contemporânea? O drama do homeostético é o
drama da Santidade: como permanecer puro nesta opereta pós-moderna cheia de
sexo higienizado? (in: Manifesto sobre o estado da nação).
Ainda neste manifesto, o homeostético define-se como um “teórico em diáspora”,
um “dogmático paradoxologista”, “um estado novista ridículo” e “um orientalista
depravado".
Com efeito, poderá dizer-se que todas as infâncias foram passadas sob o ainda
governo Marcelista e que de algum modo, quer a revolução (cujos reflexos se podem
ainda sentir nas palavras de ordem e expressões utilizadas nos manifestos), quer as
colónias com o seu potencial exotismo constituíram referências e influenciaram os
universos individuais.
Fomos educados dentro dos ternos cânones de um colonialismo simpático, de uma pátria
ultramarina com as suas províncias e rios que cuidadosamente decorámos. O nosso
Salazar era um velho ridículo com voz tremida e os presidentes da república cortavam
fitas para os telejornais. Colonialismo de que somos culpados, sim senhor, mas que
decidimos esquecer, entregues os territórios aos revolucionários indígenas, às suas
guerras civis e consequente ruína económica. O Mea Culpa não basta! Alguns de nós
nasceram nesses PALOPs (que designação mais neo-colonialista!) ou por lá andaram. A
diáspora portuguesa foi naïf e evangélica. Nós não somos naïfs nem evangélicos. Somos
mentalmente retornados e espoliados, e no entanto sem nenhuma vontade de voltar atrás
nem com lágrimas de saudade. Somos retornados como todos os portugueses, mesmo sem
o saberem, o são. Como Ulisses, regressamos sem glória à amada pátria, onde alguns
cães nos reconhecem. Esse retorno, esse Nostos, é o retorno a partir do qual já não é
possível retornar, como dizia Kafka. E uma fatal diáspora habita-nos definitivamente.
Essa diáspora é o mundo em fragmentos, e são esses fragmentos que voltam a escrever o
mundo, quase viram contra a noite e o ressentimento.
(In:LES ANIMACULES HOMEOSTÉTIQUES)
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HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Os mitos e as ficções homeostéticas andam à volta destes fantasmas: a nostalgia
duma ruralização em vias de desaparecimento, a ambiguidade entre a marcação do
território e o nomadismo cultural. O “estado novista ridículo” constituirá assunto
para uma grande parte das paródias homeostéticas, desde o mito do 5º império aos
colonialismos e suas atmosferas.
“Pode-se no máximo falar de uma paródia das nossas instruções primárias e dos quintos
imperialismos que vão do saloio saudosismo às megalomanias místicas de Fernando
Pessoa.”
(In:LES ANIMACULES HOMEOSTÉTIQUES)
Trata-se da recuperação de assuntos que dominaram as preocupações do antigo
regime e que aparecem escarnecidos, com um humor por vezes maldoso, em alguns
trabalhos, tais como: as curtíssimas metragens "Sangue no Congo" ou a "A revolta
dos pretos"; o projecto “5º império” e a “teoria do ângulo recto”; a designação "neo
posmodernismo colonial", onde Fernando Brito interpretou de forma delirante, mas
codificada, a ideia do"pensamento vegetariano". Em Proença, o "orientalismo" é
mais que evidente, quer nos desenhos, quer na pintura. A associação
nacionalismo/orientalismo tem sido o drama/paixão portuguesa desde o século XVII,
representado no mito quinto imperialista do Padre António Vieira ou em Fernando
Pessoa. Dogmático paradoxologista, pois que um dos pilares teóricos da
homeostética é a post-paradoxologia 119 .
Em tom provocatório, o manifesto acaba com mais um definição relativamente à
atitude do homeostético:
" Há os que gostam de passar ao lado das Utopias, os que as gostam de roçar e os
(h)eternos insatisfeitos. O homeostético, pelo contrário, é um perpétuo satisfeito que finge
buscar a harmonia como quem faz ginástica de manutenção. DEPOIS VÊM OS CRITICOS
FAZER FICÇÃO TELENOVELEIRAMENTE".
119
Desenvolvimento no sub-capítulo 7.1.
90
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
O discurso sobre o grupo manifesta-se de três maneiras, ou aparece claramente
virado para um possível leitor, onde o homeostético se afirma com alguma
provocação:
fechados numa fraternidade central, num espaço e tempo construído e
desconstruído para habitarmos e transgredirmos, organizando desorganizando, mais
ou menos exibicionisticamente (...) O caos existe no meio destas coisas... uma
confusão activa e não actuante (...)" (1º Manifesto Homeostético, P.P., 1983). Já em
85, o leitor é incorporado nas dúvidas do grupo, fazendo-o partilhar das hipotéticas
respostas. Em 88, pelo contrário, as declarações parecem ser de natureza defensiva, e
o homeostético parece sentir-se obrigado a esclarecer, talvez em resposta a pressões
ou intrigas (?): “Nós ainda não estamos fartos (...) queremos ser heróicos, mas se
calhar ficar em casa, agarrados aos sofás, mornos, colados à televisão,
adormecendo com uma rapariga ao lado, fartos do esplendor quotidiano. (...) Não,
não temos espírito de revolta, nem nunca tivemos (...) A nossa moral podia ter sido
"tanto faz" mas não foi. (...) Não queríamos, nem queremos ser sérios".
Proença compara o sentido de comunidade existente na homeostética ao espírito de
grupo dos surrealistas, sobre o qual Breton declarou na "Plataforma de Praga: "O
surrealismo nasceu de uma afirmação ilimitada no génio da juventude. Só o homem
que ainda não está confortavelmente instalado no mundo é capaz de assumir os riscos
da criação e da revolta (...) No aspecto da colectivização de ideias que permanece
uma das nossas preocupações específicas, o maior impulso será dado no surrealismo
às actividades lúdicas e experimentais (...) animando a vida dos grupos, exaltando a
amizade integrada, na reciprocidade da descoberta, elas estabelecem em cada um dos
espíritos um estado de intersubjectividade onde soam harmoniosamente os factos
gerais-actuais e os da história individual" 120 .
Se exceptuarmos o discurso orientador e doutrinal de Breton, podemos encontrar
algum paralelismo entre este texto e o Último Manifesto homeostético. As condições
históricas e culturais são outras e, se bem que a intervenção homeostética se tenha
pautado por um discurso de irrisão relativamente ao "drama" que envolve as
120
Cesariny, Mário: Textos de afirmação e combate do surrealismo mundial,
Perspectivas e Realidades, Lisboa Nov. 1977, p. 241.
Editora
91
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
discussões e as posturas teóricas e artísticas desde as últimas duas décadas, a sua
actuação não foi de revolução, mas de implosão e de explosão. Implosão num espaço
onde as pessoas se exerciam em liberdade, até para se “canibalizarem”. Para Proença,
a ideia era construir um "lugar", onde se partilhassem espaço, trabalho e ideias. A
explosão manifestava-se na produção delirante, de carácter absurdo e grotesco, onde
só podiam penetrar os condicionalismos exteriores enquanto alvos de paródia e de
deformação.
Reflexões que interrogam a identidade homeostética e que parecem evidenciar uma
uma reflexão interna (crise!?) aparecem em 85, no Manifesto para uso pessoal, e em
88, no Último Manifesto. São marcas dum percurso e através delas se vai entendendo
um caminho paralelo, que é o da conquista de um lugar no reconhecimento artístico e
respectiva legitimação individual. O Manifesto de 85 poderá reflectir também, duma
forma quase autobiográfica, o percurso de P. Proença e as suas dúvidas relativamente
a uma postura colectiva ou a um percurso individual como artista de carreira. No
discurso enigmático, mais uma vez é necessário perscrutar sentidos, críticas, pressões
invisíveis. Trata-se também do conflito entre os ideais e a profissionalização; da
passagem da adolescência para o estatuto de adulto; das experiências para os
produtos abalizados e vendáveis, onde o produto é tanto a obra quanto o seu autor.
No seu conjunto, este grupo de artistas terá sido o mais jovem a profissionalizar-se e
a ser legitimado. O "art world" espera-os cá fora, adultos, seguros, credíveis, prontos
para consumo:
" O heroísmo moldado a plasticina, e vendido (Deus o sabe!) ao Diabo, não nos
autorizava sequer a sermos rascas, ou canalhas, ou malditos, ou cantores de Fado.
O desprezo abateu-se sobre nós, e em vez de sairmos para a rua, ficámos em casa,
no mais terrível abandono". A frase seguinte coloca em dúvida o percurso efectuado
pelo grupo: "A estrada dos excessos que, por engano, conduzia ao Palácio da
Sabedoria conduziu-nos ao Palácio das Gargalhadas estúpidas... Considerou-se que
se tinha seguido a estratégia errada, e que tínhamos de encontrar uma mais
conforme aos nossos virtuosos e nobres propósitos... Propõem-se estratégias: Fez-se
92
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
espionagem, e descobriu-se que a arma secreta dos nossos rivais era a Intiligência.
Ficámos parvos.
Tanta palhaçada para nada. A nossa adaptação à intiligência foi dolorosa, mas com
resultados desiguais. Talvez tenhamos ficado a meio caminho, o que já não é mau".
Proença manifesta assim com crueza o despique protagonizado no meio artístico
entre a Homeostética e o grupo de Cabrita Reis, onde não havia lugar para paródias
ou derisões. As pressões? : "Estávamos a ser usados pela sociedade pluralista e
capitalista como carne para canhão (...) um certo espírito naïf e adolescentino
persistia (...) Acabou-se o heroísmo, mas nada de resignações! Avante camaradas!
Avante". Esta última frase pressupõe uma mudança de posicionamento?
Efectivamente, os manifestos seguintes irão referir-se com mais frequência à teoria /
doutrina homeostética, e o ano seguinte será também o das exposições mais
significativas: "Educação Espartana" e "Continentes".
Em 88, dois anos depois da exposição "Continentes", e com o grupo em dissolução,
Proença traduz a situação do jovem artista que já se afirmou, mas a quem a
"gloriazinha" parece algo sem sabor:
"Há idades para tudo, uma para revoltas, pastilhas elásticas e chupa-chupas e outras para
não ir a sítio nenhum e tratar da carreira (como deve ser?) (...) Será que nos
institucionalizaram? É muito provável (bis). Será que o queríamos? É mais que provável
(uh!) Pobres contestatários da nossa inércia piedosa ... Nenhum de nós quis partir a loiça
ou os dentes ou dar simplesmente caneladas por debaixo da mesa ... Ora porra até certa
medida triunfámos ... Mas a glória é uma chachada ... A glória deve ser uma enorme
chatice, um aborrecimento, uma vida a prestações, algo parecido com o absolutamente
nada (...) Se calhar ainda não começámos a ser verdadeiros homeostéticos, andamos
atrelados à nossa ironia, e (como é óbvio) cada vez mais individualistas, fechados cada
um na sua gaiola (...) A nossa moral podia ter sido “tanto faz", mas não foi".
5.2 “Art World”
A escrita destinada à elucidação e compreensão é uma elaborada fraude porque pretende
explicar uma quimera.
Marmoreo Odeon
93
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
O grande alvo da homeostética são os críticos de arte, mas também os estetas e os
que dum modo geral escrevem sobre arte. "Os mistérios são o miopismo do
pensamento que não dá passos nem para a frente nem para trás. As farsas
espirituais não têm lugar no meu cabide. A profundidade é encontrada à força de
tiques e suspiros..."
Dos primeiros, dizem que fazem ficção telenoveleiramente: "Os especializados
consideravam do seu ângulo agudo que o único criticismo era olhar para os
umbigos". No manifesto "Um labrego em Nova Iorque", Manuel Vieira escreveu um
enigmático e surrealizante texto, onde evidencia ironicamente os mecanismos /
critérios / valores de apreciação da obra de "art" e a sua desarticulação com o
público:
... mas para quê desvendar
a boa obra (de art)
se tal coisa é desventurosa
(ou mesmo)
só aconselhada aos consagrados
poetas (os eternos)...
A ideia do espelho aparece com frequência nos escritos de Vieira - Cada obra deverá
ser para o estimado indivíduo público um espelho de Alice – e, tendo tomado este
facto como uma referência importante, questionei-o sobre isto. Respondeu-me que,
tal como no espelho de Alice (Lewis Carrol), era necessário "cair" para dentro da
obra para a compreender, querendo com isto dizer, o "deixar-se envolver",
característica da recepção afectiva e também do “enthousiasmous”.
A opinião sobre o sistema legitimador fica bem patenteada nesta frase:
"Quando mandarmos lá na nossa terra serão queimados na fogueira: os pessimistas, os
totalitaristas, os legitimistas e tudo quanto contradiz o sentido no humor e busque no
estável estabilidade" (in:Manifesto p. impessoalíssimos abusos").
94
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Os "marchands" e as instituições são também satirizados. No Último Manifesto são
particularmente violentas as alusões ao "Art World":
Pois é: há uma grande dissolução por aí, e os caniches passeiam-se acompanhados dos
respectivos galeristas nas exposições e mijam o soalho e isto cheira mal (...) porque senão
os senhores comentadores desportivos da actualidade artística vêm aí, arreganham os
dentes e não estão para aturar brincadeiras adolescentes (...)Entretanto veio a máquina
dos risos, triunfal com o seu ar vitalício e académico meus senhores e minhas senhoras há
quem diga que vamos ficar por aí (...) Os senhores dos Ministérios vêm visitar-nos para
ver os nossos quadrinhos. Somos seres ardentes e sociais (...) Uma magnífica postura. – Ó
sr. Manuel Vieira veja lá faça qualquer coisinha com um ar mais apresentável, seja
displiscente! Ora porra queremos aplaudi-lo! Trabalhe, seja honesto, mude um bocadinho,
nós até queremos ser os seus sensatos admiradores – grita um sem número de vozinhas ao
fundo da sala (...) Os críticos marxistas transatlânticos devem pensar que somos macacos
para entreter esta post-sociedade com mais um ingénuo e deplorável espectáculo /
"entertainers" num vazio com uma plateia de marionetes (...) Estamos fartos da
pornografia, de infantilismo, da provocação que já não provoca nada, das feiras cheias de
arte conceptual, dos truques maquiavélicos de promoção, de toda esta prostituição social
sem contrapartidas".
As referências pouco apreciativas e paródicas a uma post-modernidade e a uma vida
artística e mundana serão satirizadas em diversos poemas homeostéticos, tais como
"DOIS POEMAS AUTOUR DE LA CRITIQUE", do qual transcrevo um excerto:
Algo me folheia, me toca nos orifícios e
faz de mim uma publicação!
As Flash- Arts afinam os meus vícios,
os nomes dos críticos são indícios
de que os encontrarei num bar em Sevilha
ou num Kunsthal da Germania.
Nada. Nada mais que nada. Imperativo de artista
Não é apenas o hálito incongruente da revista
Mas o abraço meloso do marchand
E o anúncio do meu nome numa galeria de Amesterdã
(...) Será que tudo na arte é banalização?
Uma formalização fácil de alguma importação ?
O figurino das revistas com ligeira alteração ?"
95
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
5.3 Reflexão sobre a nacionalidade
Na "Proclamação Neo-Canibal" analisa-se a situação sociológica do País e da
cultura nacional, dizendo-se que partimos duma situação de penúria económica que
participa na legitimação de modelos culturais importados mal aprofundados. Na arte,
o amadorismo é generalizado e a falta de entusiasmo é factor de manifesta baixa
produção artística. A persistência do mito romântico ou a procura da originalidade a
todo o custo, bem como a dificuldade em admitir influências, são também apontadas
como motivos de estagnação.
No manifesto " Cultura Nacional" afirma-se que a questão da homeostética está em
rever o corpo das insignificantes mitologias nacionais como qualquer coisa
susceptível de se perpetuar e pergunta-se: "Que universalidades se podem constituir
dentro deste território limitado em que vagamos? Teremos um corpo comum?
Teremos uma identidade do não idêntico?”.
Neste manifesto procura caracterizar-se o espaço português 121 , situando-o entre o
primeiro e terceiro mundo, entre a Idade Média e a revolução informática, entre uma
moralidade romano-cristã e outra anglo-capitalista. Numa sátira divertida à vida
mundana de Lisboa, compara-se o lisboeta a um "labrego em Nova Iorque", dividido
entre a moralidade e o mundanismo, e descrevem-se as contradições e os dilemas que
se deparam a um intelectual da classe média. Pedantismo é a atitude dos que
consomem e aborvem sem digestão os produtos do vulgo "imperialismo cultural".
121
Questionando a identidade nacional, que Idalina Conde (“Portugal, que modernidade? Contextos,
culturas, Identidades”) designa por “Portugal plural”, observam-se múltiplas identidades: grupos,
contextos, territórios imaginários, com diversas proveniências espácio-temporais.
Portugal no enclave de fluxos. Quer fluxos no sistema-mundo, quer do exterior para o interior
(retornados, refugiados das ex-colónias...) e ainda a emigração interna (no movimento do interior para
o litoral); o processo de dupla mobilidade geográfica e social, em ciclos geracionais ascendentes: do
campesinato para o operariado, do operariado para as pequenas burguesias urbanas ... Surgem assim
as “micro-pátrias” (Rocha Trindade, 1987) pontuando o país como lugares de saudade...
Por sua vez, Maria Irene Ramalho de Sousa Santos (Portugal, um retrato singular, pp. 94 a 99), num
ensaio intitulado “ A poesia e o sistema mundial”, coloca a questão da “semiperiferia”, apresentando
esta noção através dos conceitos: “desenvolvimento intermédio”, “descoincidência articulada”,
“funções de intermediação” e “correia de transmissão”. Esta autora cria um paralelismo entre a função
de ligação da poesia e a função de transmissão/mediação de Portugal, caracterizando o papel histórico
do nosso país sob o signo de Hermes. Fernando Pessoa terá sido quem melhor identificou a
especificidade nacional. De excertos do seu “Fragmento para um projectado manifesto” colhemos
algumas das propostas que apresenta para caracterizar a identidade portuguesa: “absorção artística”,
“misticismo”, “repaganização”, “sensacionismo” e “interseccionismo”.
96
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Mas, apesar de tudo, o português sempre foi bafejado por um "visionarismo" que
enforma as grandes obras, as grandes epopeias. Ambição infatigável é o que move,
tanto o português que faz a história como o homeostético, pois "sem ambições
qualquer disciplina fica adiada".
O poliformismo da sociedade portuguesa resulta dum entrelaçamento do espaço
nacional com o “sistema mundo” que a entrada na CEE veio triangular: identidades
local, nacional e europeia. Nas exigências de uma colocação estratégica face à
Europa, os discursos políticos recorrem à identidade e ao imaginário, alimentando
toda a carga mítico-ideológica sobre a nacionalidade, a insularidade, a periferia ou
regiões de “ultraperiferia” portuguesa. Assiste-se à passagem de uma “hiperidentidade”, durante a ditadura, para uma “hipo-identidade”, que por excesso de
referências tende a um desenraízamento. Face aos confrontos e incertezas trazidos
pela modernização, a característica dos discursos intelectuais sobre o “ser” e o futuro
do “ser português” torna-se, ora jubilatória, ora lamentativa. Os estereótipos mantêm
as mitomanias nacionais: Portugal, país turístico, cheio de emblemas e glórias do
passado.
Partir de nós, da nossa portugalidade, o que inclui os nossos mitos e realidades, é
um dos objectivos da homeostética. Admite por isso a influência de modelos e
artistas nacionais, tais como Ângelo de Sousa em Proença ou em Xana; Dacosta em
Manuel Vieira; o modernismo e o "estado novo" em Fernando Brito. Pedro Portugal
é um caso paradigmático de incorporações. Ivo pautava-se pelo neo-expressionismo.
Os modelos provenientes do exterior também eram considerados numa prática que se
caracteriza muito justamente pela "canibalização".
Mais do que a nacionalidade, é a paródia a um certo de tipo de discurso de poder
que é patenteada no Manifesto Fernando Brito. Teocracia despoticamente
esclarecida,
ou
antevisão
do
período Cavaquista?
Para
lá
do
discurso
incomodativamente demagógico, onde se relativiza a posição, quer das vanguardas,
quer das elites, reduzindo-as à mesma actuação, ressalvo uma palavra que situa um
projecto em curso: "Budonga". O que é Budonga senão uma anedota que terá
97
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
desencadeado um romance e um universo dentro da categoria dos mitos
homeostéticos? Neste universo confunde-se a ficção com a realidade através da
invenção de personagens que passam a existir nas conversas do dia- -a-dia.
"Budonga" é um pretexto para a desenvoltura do grupo se manifestar em diversos
suportes e linguagens: na versão de Proença, é um romance para o qual foram
escritas sete entradas, sendo este o início de uma delas:
"Entrara em mim uma ascética doçura. Toda ela se reflectia no pestanejar bovino da
minha amante. Ela gostava de ter a família por perto; nos armários, nas gavetas, na
carteira. A família amava a minha fortuna. Eu gostava da minha amante de uma forma
enciclopédica. Ela era um livro fechado para a vida que eu vivia, era um animal de
estante, pesado e cheio de imagens pequenas. Os seus beijos eram deliciosas definições
salpicadas aqui e ali de concisas histórias e de pitorescas citações. Tinha por ela um culto
fotográfico. Distraía-me desta vida de hotel, deste nomadismo de hotel para hotel entre
orquídeas e fardos de palha".
Entretanto, Fernando Brito desenvolvia a ideia duma cidade monumental para a qual
realizou inúmeros desenhos e maqueta, que veio a destruir mais tarde numa imensa
fogueira. Nela se realizavam as figuras da arquitectura homeostética ou os clichés da
construção monumental: arcos triunfais, pontes suspensas, obeliscos, pirâmides,
estádios olímpicos, faróis. Pedro Portugal filmou várias versões da chegada do
arquitecto Luís Mendonça (personagem homeostético) a Budonga. Para Pedro
Portugal, Budonga é uma metáfora que representa o entusiasmo, a ambição e a
desilusão face à impossibilidade de se construir o projecto Homeostético. É também
a metáfora do mito do 5º império.
"Budonga", "Cidade Nova", "Palácio da Sabedoria" constituem metáforas duma
mesma utopia. Durante a subida duma enorme duna atrás da qual se esconde a
cidade, Luís Mendonça morre sem chegar sequer a avistar Budonga.
5.4 Projecto e Intenções
Em 83, no "Manifesto" (Manuel Vieira), conforme vimos, a homeostética enuncia a
intenção de contribuir para a revitalização do campo artístico e de uma sociedade que
se lhes afigura estagnada e sem perspectivas. Um dos seus propósitos consiste na
98
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
relação da obra com o fruidor: "Pretendemos com a embriaguez 122 do nosso lúcido
discurso comprometer irremediavelmente a alma impura do vulgar observador de
art e a condescendência do Povo (sentimento artístico animal)”.
Outro dos propósitos consiste na pluridisciplinaridade: "Vamos carpinteirar frases
eternas, tecer hinos, epopeias, catecismos" ("Manifesto para impessoalissimos
abusos" -1985). Aqui se enunciam as suas diversas áreas de intervenção: a poesia, a
música, a ficção e a teoria estética. A pintura, o desenho, ou as outras práticas de
natureza plástica são por demais óbvias.
A frase" O grande ornato é a irrupção do ausente. Deixem as portas abertas para o
pródigo entrar" refer-se a uma arte ornamental e exuberantemente decorativa,
característica sobretudo dos trabalhos de Proença (via orientalizante e barroco),
Vieira (via maneirismo e surrealismo) e Xana ("pattern" e via Pop).
O grande ornato
é o nosso prato
hiperbarroco ou hindu
concreto ou abstracto
vestido ou nu
o grande ornato
é o nosso prato ( in Segundo Manif. para Imp. Abusos)
Matisse chama ao desenho "escrita plástica": "os preciosismos e os arabescos nunca
sobrecarregaram os meus desenhos feitos a partir do modelo, pois esses preciosismos
e arabescos fazem parte da minha orquestração" 123 .
O ornamento está na matriz da maioria das operações artísticas. Para Gillo Dorfles é
no “conjunto dos elementos construtivos da ornamentação que reside um dos mais
fecundos motivos formativos de uma época cultural; pelo que a fase ornamental
122
Nietzsche (Crepúsculo dos Deuses, Guimarães Editores, Lisboa, 1989: pp. 86 e 87) introduziu os
conceitos de apolíneo e dionisíaco na estética. Ele concebeu-os como "espécies de embriaguez",
dizendo que o pintor, o escultor e o poeta épico são visionários por excelência. A embriaguez apolínea
mantém excitado sobretudo o olhar, de modo que este adquire a faculdade de ter visões. O estado
dionisíaco excita o sistema emotivo que manifesta, através da força da representação, da
transfiguração e da transformação, toda a espécie de mímica e de histrionismo, sendo este portanto o
que detém a arte da comunicação.
123
Matisse, Henry, Escritos e reflexões sobre arte, Editora Ulisseia , 1972.
99
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
poderá ser conforme os casos, tanto o embrião de uma sequente obra realizada, como
o último acréscimo, a ramificação da mesma 124 .”
À Homeostética corresponde um período de revisão, onde ocorrerão necessariamente
sínteses das formas do passado, mas também contemporâneas, uma situação que faz
lembrar Gaudi e as suas construções saturadas de elementos recolhidos nos jogos do
acaso e da reconstituição.
Outra das intenções da Homeostética está em rever o corpo "devidamente
maquilhado" das insignificantes mitologias nacionais, mas como qualquer coisa
possível de se perpetuar, de ter sequência (in Cultura Nacional, 1985), deixando bem
clara a sua postura relativamente aos antecessores: " A tradição modernista recusa
para poder afirmar, a homeostética afirma para poder recusar" (idem).
No "Último Manifesto", a homeostética explica a sua relação com o passado e a
atitude com que pretende reutilizar esse passado: " Nós queríamos ter uma relação
com as senhoras musas e as coisas do passado, digamos como que despreocupada,
sem aqueles tiques de suores e lágrimas e suspiros e um ar extremamente
circunspecto e funerário" (...) "Não queríamos, nem queremos ser sérios".
Linda Hutcheon, (Uma Teoria da Paródia) afirma que, como forma crítica, a paródia
tem a vantagem de ser simultaneamente uma recriação e uma criação, fazendo da
crítica uma exploração activa da forma, sendo que modernamente ela assuma as
nuances da ironia, mais do que do escárnio, ou da sátira, a que habitualmente estava
associada: " A paródia é um modo de chegar a acordo com os textos desse "rico e
temível legado do passado" (...). É, digamos, uma estratégia utilizada pelos artistas
modernos para o processo de transferência e reorganização desse passado. "As
formas paródicas cheias de duplicidades, jogam com as tensões criadas pela
consciência histórica,(...) e assinalam o desejo de pôr a refuncionar essas formas de
acordo com as suas próprias necessidades" 125 . Na sua atitude positiva de tratar o
passado, este método recorda em muitos aspectos as atitudes clássicas e
renascentistas. Por outro lado, desenvolve uma actividade dinâmica de percepção,
interpretação e produção de obras de arte, onde a função hermenêutica, com as suas
124
125
Dorfles, Gillo, O elogio da desarmonia, Edições 70, Col. Arte e Comunicação, 1986: p. 162.
Hutcheon, Linda, Uma Teoria da Paródia, Edições 70, Col. Arte e Comunicação, 1989: p. 67.
100
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
implicações simultaneamente culturais e ideológicas, faz da paródia uma das formas
mais importantes da moderna "auto reflexividade" e do "discurso interartístico".
Outro aspecto igualmente interessante é o facto de a paródia colocar em causa a
singularidade romântica: " o facto de hoje em dia se verificar uma viragem para a
paródia poderá reflectir aquilo que os teóricos europeus vêem como uma crise em
toda a noção do sujeito como fonte coerente e constante de significação" 126 .
Dum
modo geral, todos os historiadores da paródia são de opinião que esta floresce nos
períodos de maior sofisticação cultural, a qual que permite aos parodistas confiar na
competência do "espectador". Descodificar a paródia implica, então, a possibilidade
de o o leitor, o espectador, ou fruidor identificar uma alusão ou citações intencionais,
fazendo uso dos seus conhecimentos e memórias, pois, caso isso não aconteça ,
limitar- -se-á a neutralizá-la, adaptando-a ao contexto da obra no seu todo. Quando o
homeostético diz "O trabalho hiper culto para as massas!" (Proclamação NeoCanibal, 1983), estará realmente a contar com a possibilidade cultural das "massas"?
Em
suma,
as
intenções
e
propostas
da
Homeostética
consistem
na
pluridisciplinaridade, na relação da obra com o fruidor, na revalorização, quer da
ornamentação, quer da monumentalidade, na revisão das mitologias nacionais, e
numa atitude paródica na apropriação, quer do passado (obras, mitos, figuras), quer
do presente (política, teoria e crítica da arte, factos quotidianos).
126
Idem, ibidem: p.15
101
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Parte III – Teoria
Homeostética
102
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Capítulo 6 - Os Referentes Teóricos
Nota prévia:
Tendo com ponto de partida a análise dos Textos Homeostéticos e apesar de não ter alterado
significativamente a ordem pela qual estavam colocados nos dossiers que me foram facilitados,
senti a necessidade de os numerar devido à quantidade de textos sem titulo. Os textos
seleccionados encontram-se nos Anexos desta tese. As referências aos que irão surgir ao longo
desta terceira parte, serão portanto dirigidas ao número a que corresponde o texto e não à
página.
A terceira parte desta tese pretende dar a conhecer o substracto teórico existente por detrás da
visibilidade homeostética. Desencadeada pela leitura do conjunto de textos referidos, surgiu a
necessidade de contextualizar os dados e conceitos apurados, daí que o 6º Capítulo apresente
resumidamente autores e teorias que considerei pertinentes para a compreensão e
enquadramento
desta
teoria,
nomeadamente
os
conceitos
post-paradoxologia,
parahermenêutica, infracriptográfico e menipeia na sua relação com o processo criativo, cujo
desenvolvimento será feito, respectivamente nos 7º e 8º capítulos.
“Os referentes teóricos” que dão o titulo ao 6º Capítulo, não se tratam dos referentes
homeostéticos, mas sim dos referentes teóricos que me responderam às interrogações
levantadas ao longo da análise dos textos homeostéticos, ou seja, aqueles que me permitiram
interpretar e fazer uma leitura critica. A perspectiva interpretativa aqui apresentada é de
natureza filosófica, e ainda que a abordagem tenha um carácter generalista, com ela pretendo
circunscrever e fazer uma aproximação aos conceitos determinantes para o entendimento do
discurso homeostético.
6.1 Hermenêutica, filosofia e pensamento estético.
Para Leibniz 127 (1646-1716), tudo está em tudo: o presente está grávido do futuro; o
futuro poder-se-á ler no passado; o distante expressa-se no que está próximo. Poder127
Empenhado em todas as formas de saber, escreveu sobre matemática, física, história e sobretudo
filosofia. Leibnitz encerra um período da filosofia que se inicia com Descartes, correspondendo o seu
tempo mais ou menos ao período do Barroco. O seu contributo filosófico centra-se sobretudo, na ideia
da física e no conceito de substância que desde Aristóteles tem sido matéria de especulação filosófica.
A sua contribuição para a teoria de arte e para a estética, reside particularmente no conceito de
mónada (unidade), que desenvolve na obra entitulada “A Monodologia” quando afirma que esta
representa força (vis), uma força de representação (vis repraesentativa), contendo qualidades que,
103
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
se-á conhecer a beleza do universo em cada alma, se se puderem desdobrar todos os
seus recursos, que só se desenvolvem sensivelmente com o tempo.
A “intuição da duração” constitui o centro da filosofia de Bergson 128 (1859-1941). A
duração é para Bergson a intercepção do espaço com o tempo. O seu ponto de partida
é a instabilidade: «tenho experiências em que transito de estado para estado (…)
sensações, sentimentos, volições, representações, eis as modificações entre as quais a
minha existência se divide (…) mas não basta afirmar isto (…). Não há afecção ou
representação, ou volição que não esteja em constante mudança; se um estado de
alma deixasse de modificar-se, a sua duração deixaria de fluir.» 129 Na percepção
visual de um objecto exterior imóvel, a cada mirada eu incluo a memória da mirada
anterior, projectando o passado no presente. É a duração acumulada, que ampliando
o “estado da alma, forma, por assim dizer, uma bola de neve”.
A menêutica (teoria da reminiscência) surge com Platão. Partindo da ideia da
imortalidade da alma e do renascimento múltiplo, o ser humano possuiria
reminiscências (ecos) dos seus conhecimentos anteriores. Lembrar, recordar,
investigar, aprender são acções decorrentes desta capacidade. Para Platão, se o
homem possui respostas é porque elas sempre existiram na sua alma.
Na Idade Média, hermenêutica foi a designação dada à tarefa de decifração dos
textos bíblicos.
distintas entre si e mudando de modo contínuo reflectem o mundo conforme a consciência que se têm
dele. A sua visão é pluralista e perspectivista. Ainda que carregada dum contéudo metafísico, a ideia
de contínuum (já aqui referida a propósito da viagem das formas defendida por alguns teóricos da pósmodernidade), é uma noção que vale a pena observar na filosofia de Leibnitz.
128
Bergson situa-se em Paris entre os séculos.XIX e XX . A partir de 1910 foi professor de Filosofia
no Collège de France, a mais alta instituição francesa. A relação entre o espaço e o tempo é o cerne da
sua teoria da duração, situando-os no equivalente às oposições: matéria e memória; corpo e alma.
Correspondem estas oposições aos dois modos mentais do homem que considera radicalmente
distintos: O pensamento e a intuição. A intuição é para Bergson um impulso vital, que tenta captar a
vida “por dentro”, não se deixando circunscrever a um esquema conceptual espacializado. No entanto,
a vida, para este filósofo, é entendida mais pelo seu sentido biológico do que biográfico ou histórico.
Interessa-nos particularmente a sua teoria da intuição para a nossa análise da recepção do tipo emotivo
(participação por entusiasmo) conforme é proposta na teoria homeostética e em particular no
tratamento do conceito “Infracriptográfico”.
129
“Écrits et paroles”, 111, p.456, in Madelaine Madaule- Bergson, sup. Puf, 1968.
Outras obras: Bergson, Évolution Créatrice, Puf, Paris, 1906, La pensée et le mouvant, Félix Alcan,
Paris, 1939.
104
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Existe na menêutica uma dimensão temporal que hoje é retomada e que influencia a
hermêutica, nomeadamente em autores que redescobrem o sentido da história e da
tradição (Gadamer), quer nas práticas da vida comum, quer na produção intelectual
ou artística. A sua função continua hoje a ser, como diz Ricoeur, a reconstrução e a
projecção do sentido dos textos (produtos de natureza simbólica, onde incluo as artes
em geral ) e dos mundos que eles representam.
A reflexão hermenêutica incide sobre os produtos da linguagem: visa transformar o
distante em próximo, o estranho em familiar, através dum discurso orientado pelo
desejo de diálogo com o objecto de reflexão. Richard Rorty sugere que se adopte
uma atitude epistemológica perante o discurso normal, comensurável, comprensível,
e uma atitude hermenêutica perante o discurso anormal, incomensurável,
incompreensível. Esta distinção “discurso normal”/ “discurso anormal” surge no
pensamento de Kuhn, para quem a especialização do próprio discurso científico se
tem vindo a tornar “anormal” dentro do próprio meio, provocando reacções de
distanciamento e estranheza. À relação epistemológica eu-coisa, vem a hermenêutica
propor a relação tu-eu, procurando a aproximação entre a obra (discurso) e o receptor
(fruidor).
A teoria homeostética dos pronomes 130 , questiona a relação da possessão no seu
duplo sentido (posse, possuído) e a estética:
As pessoas relacionam-se com os nomes através de algo que põem diante dos nomes.
Os pronomes.
A relação com o material faz-se com um pôr diante do que está disposto. O assumir dessa
posição / pose é feito pela articulação de um tipo de relação.
Exemplo: há pronomes pessoais, há pronomes possesivos, há pronomes demonstrativos,
há um designar que é prenúncio do que sucede com os nomes (os substantivos) e seus
atributos (os adjectivos).
Não será a sintaxe, isto é, a ordem das disposições, delimitada pelos pronomes?
Quando digo “a minha mesa” não será diferente de dizer “essa mesa” ou “aquela mesa”,
etc ?
Não se estabelecem relações de proximidade afectiva, de distância, de ódio?
130
Texto 27.9. (Teoria Homeostética, em Anexos)
105
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Algo mais elementar como os pronomes pessoais. O eu, o tu, o ele, (o nós, o vós, o eles).
Será que esse tipo de designação está ausente da pintura?
Há sempre uma marca do eu, do isto, isto é, uma relação narcísica ?
“As minhas fotografias”. Até que ponto os pronomes participam na estética, no ver?
No entanto, nesta “relação eu-tu” iremos observar duas perspectivas distintas. A de
Ricoeur, mais centrada na compreensão, e a de Jauss, mais centrada na experiência
estética. Ambos reenvindicam o contributo da fenomenologia.
Como disciplina autónoma, e em reacção ao estruturalismo, a Hermenêutica surge a
partir da década de sessenta 131 tornando-se um dos pilares das teorias, quer do “pós-estruturalismo”, quer do “pós-modernismo”. A compreensão do significado de uma
obra (“processo de decifração”) é o aspecto central desta disciplina, a partir da qual
se desenvolveram várias teorias da interpretação, das quais destaquei as Teorias de
Ricoeur (Interpretação; Metáfora e Ideologia) e a “Estética da Recepção” de Jauss.
Além destas, farei uma breve incursão na “Fenomenologia”, que dum modo geral
tem influenciado os teóricos da hermenêutica. Com Bakhtine, um dos mais
importantes referentes da teoria homeostética, serão abordados os conceitos de
dialogismo e menipeia. Destacando-se da visão negativista de alguns teóricos da pósmodernidade, cujo ponto de partida se encontra na “suspeita”, a perspectiva do
elenco teórico aqui apresentado poderá considerar-se optimista e reconstrutiva. Esta é
também a postura homeostética, que humoristicamente nos diz: “deixemos as crises
apodrecerem no lugar delas, isto é, exílios. Ou então, até que enfim, deportemo-las.
Reivindicar dogmas é uma tarefa mais divertida que o ócio dos cépticos” 132 .
6.2 A Teoria da Interpretação de Ricoeur
Ricoeur demarca-se das teorias que defendem a “congenialidade do sujeito leitor
com a consciência do autor do texto” (Schleiermacher), que designa por
“irracionalismo da compreensão imediata”, e da posição estruturalista, que defende a
131
Em 1966 emerge o movimento estruturalista nos Estados Unidos. No ano seguinte E.D. Hirsch
desafia as ideias dominantes questionando o isolamento da crítica literária americana no respeitante à
hermenêutica com a publicação do seu Validity of Interpretation.
132
Texto 7 (Teoria homeostética em Anexos)
106
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
independência do próprio texto. Este filósofo inicia o seu longo percurso com Karl
Jaspers a partir do qual elabora uma “Filosofia da vontade”, e atribui a MerleauPonty a sua formação fenomenológica. Para Ricoeur, a tarefa da interpretação
pressupõe, e requer, a abertura da filosofia (no nosso caso, entendamos a arte) a
outras áreas do saber.
A hermenêutica de Ricoeur é a desconstrução do cogito cartesiano: “No lugar da
“consciência de Si” é colocado um Si mais rico e profundo que só se reconhece nos
seus actos de existência. Interessa-lhe sobretudo a realização de uma ontologia da
acção (área que lhe parece inexplorada na tradição filosófica), ou seja, “pensar o Ser
em termos de acto, de acção, de agir, de sofrer.” A sua questão é: o que é o agir
humano?
Defende a legitimidade de uma filosofia da interpretação, articulando hermenêutica e
fenomenologia («renovação da fenomenologia pela hermenêutica») que segundo ele
se poderá fazer de duas formas:
1. pela «via curta» da compreensão (Heidegger)
2. pela «via longa» (passando pelo método defendido por Ricoeur).
O seu processo interpretativo tem em Heidegger o ponto de partida, para dele se
distanciar: não pretendendo pôr em causa a «ontologia da compreensão»
heidegerianna, Ricoeur propôe aliá-la a uma «epistemologia da interpretação»
através duma reflexão activa (a que chama tarefa ) e do diálogo com outros campos
expressivos, ou dos saberes. Relativamente à hermenêutica heidegeriana, que se
centra na “tomada de consciência do homem como “ser no mundo” antes de
qualquer ensaio reflexivo” (partindo do zero), Ricoeur contrapõe que não há
compreensão de Si que não seja mediada por signos, símbolos e textos, em suma, por
experiências que se traduzem na linguagem 133 . Ao contrário de Heidegger, que parte
da questão do Ser, Ricoeur inicia a sua reflexão por diferentes abordagens
interpretativas “como diferentes vias de acesso ao ser que dá de si múltiplas
facetas”(Ricoeur, p.15). Tendo em conta que a reflexão é mediada pelas
representações, acções, obras, instituições e monumentos que a objectivam, é nelas
133
Símbolo, interpretação e hermenêutica pressupoêm a concepção heideggeriana e gadameriana de
Homem como ser essencialmente linguístico.
107
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
que o sujeito se deve perder para se encontrar. A “leitura” distancia assim o sujeito
de si mesmo, abrindo-o ao Outro através da obra.
O ponto de partida situa-se na obra e no seu poder semântico: “A mediação dos
textos é triplamente enriquecedora do ponto de vista semântico, uma vez que o
discurso se autonomiza da intencionalidade do autor, do conjunto de receptores aos
quais se destinava, bem como do contexto sócio-cultural do qual brotou” (Ricoeur, p.
321). A teoria da interpretação de Ricoeur 134 centra-se portanto nos símbolos
enquanto “expressões de duplo sentido”, constituindo estas um fundo simbólico
comum da humanidade:
«é o sonho tornado linguagem que é objecto de
interpretação. A linguagem de duplo sentido, ou linguagem simbólica, é aquela que
vela e revela, que requer uma intercepção. O símbolo conduz-nos assim à
hermenêutica» (Ricoeur, p.10). Esta interpretação dos símbolos deve ser
contextualizada (na relação com o texto, ou obra), não se podendo excluir a
conflitualidade dos pontos de vista.
No quadro da Teoria da Interpretação, este filósofo desenvolve uma “Teoria da
Metáfora”, segundo ele intimamente relacionada com o símbolo. Diz-nos na página
102, que o símbolo, dum modo geral, funciona como um “excesso de significação”
(o surplus), reunindo duas dimensões, uma de ordem linguística e outra de ordem
não linguística e defende, que a metáfora 135 é o reagente apropriado para trazer à luz
o aspecto dos símbolos que tem uma afinidade com a linguagem. Ambas, metáfora e
símbolo, fogem ao domínio do racional, daí que no processo interpretativo se deva
falar de mais de assimilaçao pela intuição do que de apreensão pelo racíocinio.
134
Paul Ricoeur - Teoria da interpretação – Porto Editora, Colecção Philosofia.
135
Ricoeur refuta a concepção de “metáfora” procedente dos antigos retóricos, para quem esta era
vista apenas como um efeito para ornamentar o discurso, tornando-o mais sedutor e persuasivo.
Dentro desta concepção, a metáfora pode resumir-se às seguintes características: nomeação, extensão
de sentido, semelhança ou substituição. O que Ricoeur vem propor é que a metáfora deve ser vista
como o resultado da tensão entre dois termos, entre duas interpretações opostas na enunciação, sendo
a estratégia do discurso uma “absurdidade”. É por isso que a metáfora não vale por si mesma,
esperando quem a decifre. A operação de decifração (interpretação) é como o desatar dum nó, ou
dum laço. Ou seja, é graças a uma “torção metafórica” (Beardsley) que a enunciação começa a fazer
sentido.
108
HOMEOSTÉTICA
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6.3 Jauss e a “Estética da Recepção” 136
Hans Robert Jauss manifesta-se contra as teorias sociais da arte; critica duramente
aqueles que designa por “ os grandes puritanos da filosofia da arte” (Platão, S.
Agostinho, Rousseau, e nos nossos dias, Adorno e a sua estética da negatividade),
para quem a experiência estética é vista como algo de suspeito ou perigoso, tendo em
consequência disso, minimizado o seu valor ético e cognitivo. Considera o
formalismo como um sistema fechado e separado da realidade. Apesar dos muitos
aspectos da sua teoria serem comuns a Gadamer, nomeadamente o da “fusão de
horizontes” e o do “círculo hermenêutico”,
“experiência
estética”,
criticando-lhe
“le
demarca-se dele no que respeita à
caractére
événementiel
d´une
compréhension esthétique qui se soumet à la tradition” (Jauss, pag.140).
Defende que a experiência visuo-receptiva e a intuição podem reabilitar o prazer da
fruição estética (aestesis) face ao primado do conhecimento conceptual. Leonardo da
Vinci é o exemplo do que considera a “experiência estética positiva”, ou seja, aquela
que se manifesta através da função cognitiva do construir, que reúne a actividade
científica e a actividade artística e que se perdeu com a dissociação das artes e das
ciências. : “Léonard, qui nos offre à l´état pure le spectacle de l´activité créatrice d´un
esprit universal, commande le passage de la conception ancienne de la connaissance
– celle de l´Antiquité – à la conception moderne. En effet, “construire” présuppose
un savoir qui est plus q´un simples retour contemplatif vers quelque réalité
préexistante: un “connaître” qui dépend du “pouvoir”. Un pouvoir que s´expérimente
lui-même dans l´”agir”, de tel sorte que comprendre et produire ne sont qu´une seule
et même operation.” (Jauss, 152).
Retoma de Kant a ideia do “prazer desinteressado” e a concepção pluralista do
julgamento estético visando uma comunicação universal. No fundo, Jauss relê Kant
aos olhos dum novo contexto. Se, no século XIX, o individualismo obstruiu a
136
JAUSS, H.R., Pour une esthétique de la réception, Collection Tell, Éditions Gallimard, Paris,
1978.
Hans Robert Jauss, professor de literatura na Universidade de Constance, é um dos iniciadores das
pesquisas que gravitam à volta da noção de recepção e que são designadas sob o termo genérico de
“Escola de Constance”. As minhas considerações baseiam-se na leitura do capítulo “Petite apologie
de l´expérience esthétique”, onde Jauss apresenta as suas teses relativamente à “estética da recepção”.
109
HOMEOSTÉTICA
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consecução destas ideias, não serão as possibilidades actuais de comunicação,
extensão e uniformização de meios de que hoje dispomos que permitem rever as
concepções kantianas, prevendo um meio de concretização das mesmas?
Esclarece que o prazer estético difere de prazer sensual, pois implica uma distância
(o lugar do imaginário) entre o sujeito e o objecto. Se o prazer estético implica
necessariamente uma distância, parece-me fazer sentido afirmar que o assunto da
reflexão estética deverá concentrar-se nesse espaço: o imaginário. “L´expérience
esthétique est donc toujours aussi bien libération de quelque chose que libération
pour quelque chose, ainsi qu´il ressort dejá de la théorie aristotélicienne de la
catharsis” (Jauss, p.143).
Jauss reintroduz três conceitos-chave da tradição estética: poiesis, aisthesis, e
catharsis, cujas funções, na sua opinião, podem desempenhar um papel
verdadeiramente social. Por Poiesis, entenda-se o “poder (saber-fazer) poético”,
distinto, quer do saber científico, quer do fazer artesanal. Pela aisthesis, a obra de
arte pode renovar a percepção das coisas, valorizando-se deste modo o conhecimento
intuitivo. A catharsis significa o poder de libertação e de identificação estética
produzidos pela percepção da obra de arte, com as eventuais modificações no
comportamento ou julgamentos. É na emoção e na identificação estética espontânea
que reside a proximidade entre a obra e o receptor.
Das histórias que estão por se fazer, Pedro Proença diz que faz falta uma história
sobre o “rapto”, também Jauss acha que a história da experiência estética ainda não
foi escrita: ela deveria estudar a praxis da produção, da recepção e da comunicação
artísticas. Isto porque toda a reflexão teórica que acompanhou a história da arte
ocidental em direcção à sua autonomia tem a marca do platonismo 137 (Jauss, p.147).
137
Segundo Jauss, o platonismo imprimiu uma dupla orientação: o belo e a sua origem transcendental
e a deficiência dos sentidos para captar esse mesmo belo, ou seja, o antagonismo entre o belo suprasensível e o belo sensível. É nesta “dicotomia do fenómeno e da ideia” (Jauss, 149), que se estabelece
a agonia e o negativismo artístico. Deste modo, critica Gadamer por estabelece uma oposição entre a
“experiência estética” enquanto “acontecimento portador de verdade” e a “consciência estética”
simples sujectividade auto-recreativa (Jauss, 148).
No processo de recusa do prazer estético considera dois momentos: um primeiro, a partir do séc. XIX,
que passou pelo movimento tendente à autonomização da arte, e um segundo, marcado pelo ascetismo
que, após a segunda G. Guerra, invadiu todos os campos culturais. Paralelamente, ambos os
momentos terão contribuido igualmente para afastar a arte do seu papel e poder de comunicação: “le
processus d´émancipation de l´expérience esthétique au XVIII siècle a conduit à opposer la
110
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
6.4 O Dialogismo Bakhtiniano
Na opinião de Gardiner 138 , os conceitos desenvolvidos por Bakhtine (dialogismo,
polifonia e carnaval), derivam das teorias marxistas da ideologia, e têm implicações
na tradição hermenêutica representada por Gadamer, Habermas e Ricoeur e no pósestruturalismo de Barthes e Foucault.
A teoria de Bakhtine
compreende a natureza do “self” e a centralidade da
linguagem no contexto da sociedade. O seu objectivo foi a aproximação
interdisciplinar às formas de vida sócio-culturais manifestadas pela interacção
simbólica.
Estas
são
geralmente
referidas
como
“metalinguagens”
ou
“translínguisticas”. A política cultural de Bakhtine é caracterizada pelo desejo de
entender aquilo que designa por “desconstrução popular” dos discursos oficiais e das
ideologias. Assim, a verdadeira democracia assentaria no estabelecimento da
liberdade cultural e linguística. Ele crê que a interacção dialógica é necessária como
a priori para uma imagem coerente do self comprometido em tarefas moralmente e
connaissance sensible (cognitio sensitiva) à la connaissance rationnelle et – selon une expression de
Baumgarten, le fondadeur de l´esthétique en tant que discipline philosophique – á revendiquer pour
l´”horizon esthétique” une légitimité propre, à côté de l´horizon logique. Cette justification de la
perception esthétique a été reprise par les artistes de la deuxième moité du XIX siécle, dans leur
théorie et leur pratique, il s´agissait cette fois d´une révolte contre l´ideologie positiviste (…) l´”art
industriel” (…) et le naturalisme.” Em consequência, na pintura assistiu-se à “déconcéptualization du
monde” et la retransformation de l´oeil en organe d´une vision pure, non réflexive, opérées par
l´impressionisme français” (d´aprés M. Imdahl, in Jauss, 155). A emergência duma teoria de arte
como pura sensitividade visual (teoria desenvolvida por volta dos anos 1880 por Konrad Fiedler, e que
manteve até à actualidade através de Adolf Hildebrand, Alois Riegel. Heinrich Wolflin; Richard
Haman) baseia-se na convicção “de que o homem está capacitado para aceder ao domínio espiritual
do mundo não só pelo conceito, mas também pela visão”. Por visão, Fiedler entende um olhar liberto
de todo o saber pré-existente, que ultrapasse o acto de representação e se torne «“actividade criadora
de formas visíveis”».
O princípio da visão autónoma é expressamente dirigido contra o platonismo e a separação que este
opera entre o conhecimento e a actividade artística, excluindo a imitação da natureza (mimesis) e o
reconhecimento de “já visto” (anamnesis) e abandona também a referência a uma beleza ou
sentimento que se pretendesse transmitir. A percepção estética assim compreendida deve proceder
únicamente duma desconceptualização do mundo, e pretender dar a ver as coisas, desembaraçando-se
de tudo o que tivesse a ver com o que sobrecarrega a pura aparência visual (Jauss, 155).
Esta teoria pretendeu também reagir contra a concepção dos formalistas russos, da “arte como
processo”, onde se pretendiam abolir os “hábitos alienantes da percepção”. Ressalve-se nesta
concepção a função cognitiva da percepção estética: “La perception esthétique ne requiert donc
aucune faculté particuliére d´intuition, mais une vision libérée par l´art du “dejá vu” (…) d´habitudes
pétrifiées (…) barriéres autour de nos perceptions” (Jauss, 157).
138
Gardiner, Michael: The dialogics of critic, M. Bakhtin and the Theory of Ideology, Routledge
London and New York, 1992.
111
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
esteticamente comprometidas. Daí que defenda a subversão das estruturas
autoritárias das sociedades burocratizadas, a partir da libertação do potencial das
formas da cultura popular.
“Para uns (individualismo subjectivo), o estilo é o homem. Para outros (objectivismo
abstracto), o estilo é a obra. Para Bakhtine, o estilo é (pelo menos) dois homens “ 139 .
Tendo como ponto de partida, o homem como produtor de textos e criador de
sentido, Bakhtine estabelece o estatuto dialógico das ciências humanas e o seu
objecto - o texto (matéria significante): “Chamo sentido às respostas às questões. O
que não responde a nenhuma questão é desprovido de sentido para nós” (citado por
Prado Coelho, p.446). Logo, o sentido de um enunciado é a resposta que suscita.
Colocando o homem na relação com o contexto, não há enunciado sem réplica, nem
enunciado que não seja uma réplica de enunciado anterior. Qualquer diálogo é
apenas uma ilha que emerge e se recorta no fluxo interminável da comunicação.
Particularmente crítico para com todas as formas de monologização, podendo estas
ser de cariz materialista (formalismo), ou idealista (expressão do psiquismo), põe em
causa o estruturalismo pelo seu enclausuramento (ensimesmamento), propondo a
profundidade em alternativa à exactidão.
Em Universos da Crítica, Eduardo Prado Coelho faz uma análise do conceito de
dialogismo, situando-o no paradigma “metapsicológico”. Este paradigma que diverge
do “comunicacional” 140 , pelo surgimento da distinção entre o Outro como receptor e
o Outro como elemento terceiro, define-se por dois princípios: por um esquema
139
140
Coelho, Eduardo Prado, Os Universos da Critica, p.445.
A fixação de um sentido literal ou último, imobilizando a verdade do texto (esquema monista)
processa-se através duma vertente formalista, definida pela valorização da obra-em-si-mesma
(ensimesmamento ). Esta valorização é caracterizada por duas linhas fundamentais: a imaterialização
da obra (o inefável); a concretização da obra (formalismo). A crise da vertente formalista verifica-se
através da teorização da obra aberta (U. Eco). É esta abertura que irá conduzir ao paradigma
comunicacional nos estudos literários. Eduardo Prado Coelho (p.16) define-o nestes termos: esquema
dualista (emissor-receptor) no processo da comunicação literária e “vacilação da coincidência verdade-sentido através
de um entendimento da verdade como intersubjectividade”, tendo dado origem a: “uma versão
erótica”, conducente a uma crítica de identificação; “uma versão tecnocrática”, diluição do literário
numa pragmática do texto ou da comunicação em geral e uma reformulação dos estudos históricos: a
estética da recepção.
112
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
triádico sugerindo a existência de um terceiro termo, sempre outro, simultâneamente,
anterior e posterior ao texto, e pela não coincidência entre sentido e verdade.
A questão fundamental é a seguinte: se o objecto, se define pela sua diferença em
relação a si mesmo, e se essa diferença é irredutível (aprofunda-se, não se elimina),
então haverá sempre um sentido do objecto que excede a verdade que dele eu possa
fixar” (E. Prado Coelho, pp. 447, 448). É este aspecto que define a “não coincidência
entre verdade e sentido”.
É dentro deste quadro que Bakhtine elege como alvo privilegiado, as teorias da
expressão, todas elas fundamentadas numa concepção de enunciação-monólogo,
demonstrando que o conceito de expressão implica sempre um dualismo falso.
Dualismo, porque existe um contéudo (interior) e uma objectivação desse contéudo
(exteriorização), no entanto se considerarmos que existe uma diferença “entre mim e
o que eu digo” ( Fernando Pessoa,citado por EPC nas pags.448 e 449), a frase: “toda
a forma exterior é uma deformação da forma interior” representa a ideia de que o
essencial está no interior. Em Fernando Pessoa encontramos o paradoxo das teorias
da expressão: a expressão é indispensável, mas a expressão é mentira”. A condição
dialógica que a linguagem nos impõe, não se manifesta numa concordância, ou
convergência, mas em aceitar os “dois sujeitos que existem no interior de um” (EPC,
p.449). “A partir de agora tudo se duplica: a enunciação é o produto da interacção
entre dois interlocutores; cada palavra é apenas o território precariamente comum
entre o emissor e o receptor e, por isso, cada palavra é dupla ou dúplice”.
(Entendamos o mesmo para a imagem).
Outra das premissas de Bakhtine é que o sujeito se constitui sempre no campo do
Outro, ou, por outras palavras, que todo o discurso é um discurso indirecto. Com isto
pretende dizer-se que “a linguagem não vai da realidade em direcção às palavras,
mas sim de um dizer para um dizer” (plurimimesis, na designação homeostética).
Em Lacan , o Outro, entendido como lugar do Simbólico, evolui para o pequeno
outro, entendido como objecto sempre parcial, ou resto, promovendo uma
emergência do Real no interior do Simbólico (catástrofe): “Na medida em que a
experiência estética consiste na experiência do resto (...) excedente de sentido em
relação à verdade (…) o resto é o lugar onde o texto resiste (…) o lugar de inscrição
113
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
do sexual” (EPC, pags.16 e 17). No Texto 10 (Contrainducção / Aposta) da Teoria
Homeostética podemos ler:
“todo o sentido habita, isto é co-habita num “entre” a ausência e a presença, no toposatopos-utopos do desocultamento/ocultação”. E no Texto 14: “Na arte não há
nomadologia, mas um topos preciso, o logos do entre. Lugar fronteiriço de mediação de
criação de medidas. O entre não se define em relação a duas regiões, mas o que atravessa
as regiões”. A arte, hoje, “deve constituir uma mediação entre saberes, pragmáticas,
deuses, mas também o diálogo com o seu próprio Topos e esse diálogo só é possível na
copulação com o que lhe é Outro (…)”.
A componente hermenêutica das teorias de Bakthine integra-se nos conceitos e
procedimentos do conjunto de autores contemporâneos (Gadamer, Ricoeur) que têm
vindo a teorizar a interpretação/compreensão humana. Em comum, advoga a pré-existência de práticas e aquisições semióticas/linguísticas que interferem no “activ
dialogic understanding”. A compreensão do sentido acontece através da reconstrução
criativa do originário contexto verbal/semântico (no nosso caso, icónico/semântico)
de modo idêntico a uma conversa ou diálogo.
Na prespectiva homeostética este é o polemos, o diálogo das contradições (Texto 10),
cuja resolução se resume ao jogo e à aposta, aposta essa que repousa sobre uma
equivalência entre o provável e o improvável. O diálogo surge também
brilhantemente associado à imagem do banquete (Texto 28.5.) do qual passo a citar:
A boca gigantesca, os prodígios do banquete: o pão e o vinho; a conversação.
A frase de Holderlin “desde que somos colóquio...” (na tradução portuguesa, nos TA
“depuis que nous sommes un dialogue”) soa-me como “desde que somos banquete e
comemos uns com os outros” (variante: E nos comemos uns aos outros).
Este diálogo / colóquio / banquete, esta ingestão comunitária, esta festa permanente de
gestos excessivos, de questões absurdas, de pensamentos idiotas ...há que alimentar o
“espirito humano”.
Daí as deliciosas polémicas...é “polemos” ( aluta, o confronto, a incoincidência, a guerra)
que prepara o Banquete, que fundamenta a festa da paz (para usar um título de Holderlin)
...a polémica é o petisco do Banquete.
A concertação do simposium é a do acompanhamento mandibular, dos gestos, que elevam
as taças aos lábios, da cacafonia dos gemidos dos banquetiantes, do entusiasmo do comer,
114
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
da harmonia entre o trabalho da língua (falar, saborear) e o gozo da escuta... nenhuma
ocasião é tão propicia como o banquete para que tenha lugar a escuta.
No banquete não há hierarquia de espaço, ainda que haja lugares aos quais inicialmente é
atribuída importância, eles dissolvem-se perante o diálogo.
O processo intercontextual envolve portanto uma translação activa do sentido através
de contextos que podem ser temporal e geograficamente remotos. A este propósito,
vejamos duas declarações dos artistas Pedro Proença e Fernando Brito:
Gosto da história como de desenhos, de pequenos quadros (Lorrain, Turner, Piranesi), de
expressões macias, de pequenas narrativas. Não aceito a história como uma grande
narrativa, nem acredito nos grandes momentos históricos. A emergência dos factos
(inteligentes, estúpidos, ou apenas objectuais) é preparada por uma concentração de
redundâncias, de lugares comuns, embora não predictível. Segundo Thom, um sistema nas
mesmas condições pode desenvolver reacções completamente diferentes. Logo, a
predictibilidade, mesmo no caso de serem sistemas fechados, não serve. Serve apenas a
conjectura falaciosa; o profetismo. (P. Proença, 1985).
O que me atraia no mundo moderno, na arquitectura, no design, era a clareza. Só gosto de
enigmas que sejam caricaturas de enigmas. Só gosto de enigmas que sirvam para
desconstruir, para gozar... Eu tive sempre intenções diferentes dos outros. Nunca tive
interesse em jogos de referências. Eu nunca vi na erudição senão uma ferramenta, nunca
tive nenhum interesse especial nas ideias, mas em ver que uso podia fazer de cada uma.
(F.B. Entrevista em anexo).
A posição de Bakhtine integra-se numa nova forma de dialéctica designada por
“circulo hermenêutico”, que se traduz pelo vai-vém interpretativo entre o texto (ou a
obra plástica, o discurso visual) e as circunstâncias históricas ou contextos
relevantes, num movimento contínuo entre a partes e o todo. A natureza polifónica
da interpretação é explicada pela natureza polissémica e instável dos signos, onde o
interpretante terá que entrar nos meandros da linguagem como participante activo.
Considerando que todas as formas da interacção e prática cultural-linguística são
necessariamente mediadas pela nossa relação com os outros, também as acções e
artefactos culturais se inscrevem nos modos de comunicação simbólica.
115
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Bakhtine vem dizer (na mesma linha de Gadamer 141 para quem o entendimento
hermenêutico é necessáriamente instável), que a não coincidência do entre “mim e
mim” produz a espontaneidade e a imprevisibilidade dos produtos discursivos e
expressivos do ser humano, e deste modo, também são ilimitados o sentido e a
significação.
O encontro hermenêutico, que em Gadamer tem a designação de “fusão de
horizontes” e em Bakhtine de “horizontes conceptuais sócio-ideológicos”, implica
necessariamente a existência de uma distância entre os sujeitos
significantes.
Manifesta-se pela descoberta de sentido (desvelamento), num processo co-creativo e
dialógico, envolvendo o texto (obra) e o interpretante, ambos situados num particular
contexto histórico e cultural. Bakhtine situa este “background” (património comum)
na histórica corrente da comunicação humana, o que permite uma constante
renovação e re-avaliação do sujeito através de infinita diversidade de interpretações,
imagens, combinações figurativas semânticas, materiais, etc. Recupera-se afinal uma
tradição humanista, perdida ou abandonada desde que os métodos objectivistaspositivistas dominaram a vida intelectual europeia (séc.XIX), observável agora num
crescente escoamento e derrapagem das fronteiras disciplinares.
6.5 A Fenomenologia
Esta expressão foi utilizada pela primeira vez em 1764 por Lambert (lógico alemão)
no seu Nouvel Organon. O termo Fenomenologia significa estudo dos fenómenos,
isto é, daquilo que aparece à consciência, daquilo que é dado. Trata-se de explorar a
própria coisa que se percebe, em que se pensa, de que se fala, evitando forjar
hipóteses, tanto sobre o laço que une o fenómeno com o ser de que é fenómeno,
como sobre o laço que o une com o Eu para quem é fenómeno, ou seja, sem
pressupostos. Para os fenomenológos contemporâneos, o fenómeno não é mais que o
ser em si. A origem desta noção remete-nos para Hegel e para o seu texto A
Fenomenologia do Espírito (1807) onde apresenta três grandes etapas no respeitante
a diferentes modalidades da consciência: o em-si (consciência como entendimento do
141
Desde meados dos anos sessenta, a hermenêutica tem sido dominada pelo trabalho de Hans Georg
Gadamer (A verdade e o método).
116
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
mundo sensível através da percepção e observação) opera por regras para organizar a
dispersão dos dados recolhidos; o para si (onde a consciência opera em interacção
com o Outro) é o domínio da acção e o em-e-para si (a consciência como afirmação
do conhecimento) legalizadora. Subjacente a esta tríade estaria o processo dialéctico
(tese, antítese e síntese), cuja última etapa descobre uma consciência desdobrada no
confronto entre a experiência da existência singular e o universal.
Este campo de estudo da consciência foi retomado por Edmund Husserl (1859-1938)
e germinou durante a crise do subjectivismo e do irracionalismo, na passagem do
séc.XIX para o sec.XX. O seu pensamento inicial combinou o anseio cartesiano de
uma mathesis universalis com uma postura Pós-kantiana, evitando a sistematização
metafísica. Até ao aparecimento da fenomenologia, a indução e a dedução (estatística
e experimentação) constituíam os dois pilares dos mecanismos da consciência
considerados pelo pensamento ocidental. Nas suas Meditações Cartesianas, Husserl
apresenta os fundamentos do método cartesiano que numa crítica positiva, o vão
levar à redução fenomenológica. Esses fundamentos são: a dúvida metódica face ao
não-provado e à incerteza; a negação sistemática e a crítica metódica; a força da
evidência (Cogito ego sum: eu penso, logo existo).
Husserl propõe que a consciência não é o pensar em si, mas o que se pensa (o
cogito), onde a intencionalidade, fruto da consciência, é sempre consciência de
alguma coisa.
Após uma primeira “redução filosófica” que desloca a nossa atenção das teorias
acerca das coisas para as concentrar nas próprias coisas, o processo fenomenológico
husserliano comporta duas outras reduções designadas por redução eidética e
redução fenomenológica. A etapa redutora compreende três passos: o retorno à
coisa, a suspensão do julgamento e o “pôr entre parêntesis”.
O retorno às próprias coisas inscreve-se num certo pragmatismo. Ao afirmar que
tudo para onde a consciência tende é objecto e que a consciência é sempre
consciência de alguma coisa estabelece as bases da intencionalidade. Esta “não tem
apenas uma carácter perceptivo: Husserl distingue diversos tipos de actos
intencionais: imaginações, representações, experiências alheias, intuições sensíveis e
categorias, actos da receptividade e da espontaneidade, etc.; em resumo, todos os
117
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
conteúdos da enumeração cartesiana: Quem sou eu, eu, que penso? Uma coisa que
duvida, que ouve, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que
imagina também e que sente” (Palmer,p.33). Intencionais são igualmente todas as
vivências actuais ou inactuais. Podemos dizer que é a intencionalidade que inclui o
mundo na consciência, dado que a consciência não é só o pólo Eu (noese), mas
também o pólo isso (noema).
Assim entendida, a consciência será então activa e doadora de sentido: através dela
se passa da subjectividade para a objectividade. “Evidência” é a designação de
Husserl para o momento da consciência em que a própria coisa de que se fala se dá
em “carne e osso”, “em pessoa”, à consciência; em que a intuição é preenchida
(Palmer, p.40). “Husserl declara que do ponto de vista fenomenológico, o Outro é
uma modificação do meu Eu (Cit. Por Lyotard na pag. 37) 142 .
A suspensão do julgamento (époké) significa a inexistência de pressupostos e o
esforço para se libertar de teorias apriorísticas. Defendida pelos cépticos gregos,
époké significa parar, suspender, é a suspensão do julgamento, do entendimento. Em
Husserl tem a ver com a suspensão do julgamento em relação ao mundo exterior. A
fenomenologia destaca-se da atitude (compreensão-explicação) que procura
conceitos, referências e conclusões. A filosofia de Husserl não é anti-racional, mas
ante-racional: “há sempre um pré-reflexivo, um irreflectido, um antepredicativo,
sobre que se apoia a reflexão, a ciência, e que ela escamoteia sempre, quando
pretende explicar-se a si própria.”(Lyotard:Pag.11). Para suspender o julgamento há
que se circunscrever ao facto (sem pressuposto), “descrevê-lo apenas tal como se nos
apresenta” o que provoca um “momento crítico, uma denegação da ciência (MerleauPonty) que consiste na recusa em passar à explicação”.
142
LYOTARD, Jean François: A Fenomenologia, Biblioteca Básica de Filosofia, Edições 70, 1986 (1ª
edição: Presses Universitaires de France, 1954)
118
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
«“ Pôr entre parêntises” 143 consiste, em primeiro lugar, em dispensar uma cultura,
uma história, em refazer todo o saber elevando-se a um não saber radical». Mas tal
recusa, esse dogmatismo, como Husserl lhe chama, radica numa herança, pois, apesar
da intenção a-histórica, a história envolve a fenomenologia. É assim que (no final
da sua vida) o pensamento de Husserl evolui no sentido de uma sociologia cultural
(Krisis, 1936), desenvolvendo a filosofia da vida 144 (Lebenswelt) para onde
convergem a história e a intersubjectividade.
6.6 A Teoria da Ideologia de Ricoeur e o Mito, o Dogma e a tradição na
Teoria Homeostética
Ricoeur demarca-se de Habermas em alguns aspectos (um deles é a ideia da
hermenêutica da suspeita), e censura fortemente o marxismo por este assumir que a
ideologia é um fenómeno puramente negativo.
A Teoria da Ideologia de Ricoeur não se baseia em estruturas formais de
racionalidade, mas assenta na concepção aristotélica da razão prática (pragmática).
Sugere que a ideologia está relacionada com a necessidade de qualquer grupo social
poderá querer dar de si próprio, para se representar e se realizar “in the theatrical
sense of the world”. Sendo assim, a ideologia surge como uma forma de “memória
social”, uma projecção simbólica dum passado primordial, através dos quais os
grupos constroem criativamente uma representação simbólica das suas origens
passadas, o que dá origem ao mito.
Ricoeur sugere ainda que as funções da ideologia têm um papel simplificador e
esquemático desenhando códigos ou grelhas que produzem um esqueleto
143
“ Ao meditar (...) na doação originária das coisas (percepção), descobrimos aquém da atitude pela
qual estamos ao dispor das coisas, uma consciência cuja essência é heterogénea a tudo aquilo de que é
consciência, a toda a transcendência “ (por transcendência, entenda-se: o modo de representação do
objecto em geral)” , por meio da qual é posto o sentido mesmo de transcencente. É essa averdadeira
significação do pôr entre parentêsis: refere o olhar da consciência sobre si mesma, transforma a
direcção desse olhar e levanta, ao suspender o mundo, o véu que ocultava ao Eu a sua própria verdade.
Essa suspensão revela que o que o Eu continua sendo o que é, isto é entrelaçado com o mundo...” (In:
Lyotard, A Fenomenologia (pág.29).
144
O “mundo” da vida não é o mundo da ciência natural, mas o conjunto no sentido Kantiano, de tudo
quanto há ou pode haver na consciência. Sendo doadora de sentido, o mundo que se descobre é o das
experiências vividas (Lyotard, pag,42).
119
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
explanatório do entendimento da existência social, e da história humana, sacrificando
o rigor em proveito da eficácia. Trata-se do carácter dóxico da ideologia, que permite
idealizar e manipular auto-imagens de grupos ao serviço da dominação política.
O mesmo acontece com o discurso ideológico que se manifesta através de dogmas e
fórmulas ritualizadas. A ideologia está portanto intimamente relacionanda com a arte
da retórica: persuasão através da emoção e da argumentação “racional”.
É partindo destes princípios que a Homeostética cria os seus dogmas em texto e
imagem, ou em combinações verbo-icónicas, ensaiando teorias e acções que visam
uma mística. Mística essa que, em virtude das actuais tendências sócio-políticas e
conceptuais,
se
revela
afinal
uma
anti-mística:
utilizando
os
procedimentos/estratégias de criação do dogma, no qual já não é possível acreditar,
resta a sua desconstrução, para deles extrair os ecos, as matrizes (o slogan, o ritual,
os tiques do discurso) que fazem parte de uma memória social e artística (commom
sense) 145 e que quer na teoria, quer nas obras, pretendem não mais que transmitir
uma visão critica do contexto social, politico e artístico.
A título de exemplo, basta recordar os títulos, os chavões e os efeitos de linguagem
(manifestos homeostéticos), que surgindo como “efeitos” (metáforas, metonímias,
ironia, sarcasmo) se inscrevem num alinhamento retórico e pragmático.
Retórico porque mais do que tentativa de persuasão, estes efeitos se insinuam como
reforço e intensificação do sentido do discurso. Pragmático, porque ao incorporar
códigos e “figuras” pertencentes ao domínio comum, quer dos usos da linguagem
quer da história da arte, convidam o receptor à decifração e reconstituição dum
sentido, ainda que à partida este pareça absurdo.
145
Gramsci defende que elementos da ideologia das classes dominantes, acabam por ser sedimentados
pelas classes subalternas, no que designa por “common sense” (senso comum). “ Commom sense” is
the folklore of philosophy, and its always alf-way between folklore properly speaking and the
philosophy, science and economics of the specialists. Commom sense creates the folklore of the
future, that is as a relatively rigid phase of popular knowledge at a given place and time”145. Gardiner
defende que o “senso comum” consiste também nas experiências e ideias geradas na experiência do
quotidiano. Na cultura oral, os provérbios, os dialetos locais, as canções. Pense-se agora nas imagens
do quotidiano, nas imagens comuns, via televisão, publicidade, B.D., nas obras de arte mais
divulgadas, no kitch. Pense-se também nos estereótipos visuais. emblemas, simbolos como a cruz
romana, a cruz suástica, ou matrizes icónicas, como as figuras geométricas nas suas aplicações
ornamentais, junto à cultura popular. Este conhecimento resulta, segundo Gramsci de uma “percepção
empirica imediata”.
120
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Todo este conjunto contraditório cria uma sensação de perplexidade – o paradoxo: o
esvaziamento do significante, das suas condições de produção e origem, dá lugar a
uma ressignificação de ordem predominantemente semântica. Ou, como diz Paul
Ricoeur “ an ideology is operativ and not thematic. It operates behind our backs,
rather than about it. We think from it rather than about it” 146 , o que se traduz na
máxima homeostética: “Sei que significa, mas não sei o que significa”.
Efectivamente, esta frase aproxima-se do pensamento de Foucault no que diz
respeito às relações entre hermenêutica e história. Ele passa do conceito de
“geneologia” para o de “arqueologia”, movido pela descrença na validade da
apropriação do sentido. É por essa razão que diz que a história deverá ser dissolvida
no pluralismo das ilhas discursivas, donde serão excluídas as ideias de conciliação e
globalidade, geralmente definidas por “o rosto de uma época” 147 .
A desconstrução (esvaziamento) do conteúdo simbólico e reconstrução sob a forma
de novo discurso que ocorre no processo da reinterpretação de acontecimentos ou
“figuras”
aproxima-se da estrutura do mito, porque a sua projecção cai no a-
histórico, no comum. Levi-Strauss argumentava que o objecto de análise do mito se
deveria procurar na “infraestrutura do inconsciente”, ou na “estrutura profunda”,
mais do que nas manifestações da linguagem ou nos sistemas simbólicos,
designando-o por isso de “estrutura estruturante”. Diz ainda que o mito não se
confina às sociedades pré-industriais, pois, pelo contrário, as ideologias políticas
modernas tornaram-se o lugar do mitico por excelência.
Também para Barthes, o mito subjaz à ideologia da sociedade moderna, atingindo as
mais variadas faixas da vida social (família, cerimónias públicas, religião, etc).
Barthes distingue entre sígnos linguísticos e sígnos míticos: os primeiros,
denotativos, são transparentes e ambíguos, trabalham à superfície; os segundos,
conotativos são latentes ou escondidos. “Myth hides nothing. Its goal is to distort, not
to make disapear” 148 Como uma forma de discurso despolitizado, o mito não nega a
existência das coisas, mas dessacraliza-as, simplifica-as, retirando-lhes todo o
equivoco e ambiguidade. (Gardiner, p.146).
146
Citado in Michael Gardiner, Dialogics of critics, p.125.
147
Ver Habermas, O discurso filosófico da modernidade, das pags.235 à 239 e 246).
121
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Este processo (descodificação e desmistificação do mito) implica, para Umberto Eco,
a aplicação de métodos semióticos (“semiological guerrilla warfare”), tornando
possível uma leitura cínica do mito.
O pragmatismo, entendido como convite à acção, manifesta-se no movimento do
sistema para o discurso e é representado pelo pós-estruturalismo. Assim sendo, a
diacronia substitui a sincronia; o semântico suplanta o signo e a função ou processo
tem proeminência relativamente à estrutura. Ricoeur sugere que a infinita
criatividade da linguagem se baseia na polissemia inerente às suas formas (palavra,
imagem, som, etc.), amplamente exemplificada pela catadupa de metáforas,
trocadilhos, sinónimos, paralogias (com a correspondente tradução inerente a cada
uma das formas de linguagem).
O carácter polissémico da linguagem implica pelo menos duas coisas: em primeiro
lugar, o discurso é sempre caracterizado por “excesso de sentido”, o que requer a
interpretação. Em segundo lugar, tal interpretação só pode ter lugar enquanto troca
dialógica, entre dois ou mais sujeitos, produzindo-se assim a comunicação
intersubjectiva.
Por sua vez, em Gadamer, o pragmatismo é visto na relação com a tradição “reason
is not our master, but remains constantly dependent on the given circunstances in
which it operates”. 149
Para a homeostética, a tradição implica a existência de um material que, sendo
permanentemente traduzido, isto é, actualizado, vai ganhando em complexidade e
profundidade, apresentando-se em cada actualidade num estado de condensação que
urge descompactificar. A tradição é relacionada com
traição (em termos
etimológicos), com dívida (para com o passado) e com capital, “como um fabuloso
tesouro à disposição de todos, mas que apenas raros ousam roubar”. 150
148
149
150
Idem, ibidem, p. 145.
Citado por Gardiner, na p.111.
Texto 23 (Teoria Homeostética, Anexos).
122
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Capítulo 7 - Os Princípios Homeostéticos
7.1 Post-paradoxologia
( IN DOXA EST PARADOXA, IN PARADOXA EST DOXA)
... porque as paradoxologias ainda assentam num formulário e numa categorização que
traduzem de outra forma a doxa tirânica; fuja esta ou não aos cânones do sistema
digital. 151
A situação de apropriação, nos termos homeostéticos designada por antropofagia ou
canibalismo, conduz necessariamente ao paradoxo. Na entrevista em anexo, Pedro
Proença diz-nos: estamos sempre prisioneiros de situações paradoxais, uma delas é
a linguagem 152 (...) o próprio paradoxo é vitima de si próprio. Às opiniões (doxa)
opõe-se sempre uma contradoxa (uma opinião e o seu contrário), a paradoxa
resolveria, uniria as duas opiniões, e nós não queríamos que essas opiniões ficassem
anuladas, pois são importantes no momento da acção 153 .
Trata-se de reunir o aparentemente inconciliável e de o reincorporar na produção das
formas discursivas, sejam de natureza plástica, literária, cénicas, ou outras. Este
processo irá necessariamente pôr em causa todas as concepções separatistas,
baseadas na tradicional historicidade dos estilos e das categorias.
Será isto o fim dos campos semânticos? Questiona-se Proença:
Todas as questões se tornam absurdas. Dois homens põem-se a discutir defendendo teses
opostas. A meio da conversa a tese torna-se contraditória e a do opositor por necessidade
de oposição também se torna contraditória. A contradição continua a ser sustentável
151
152
In folheto da exposição “Educação Espartana”.
Ver a problemática da linguagem em Júlia Kristeva: História da linguagem, Colecção Signos,
Edições 70, Lisboa, Abril 1999.
153
Pedro Proença tem como referência os paradoxos paradigmáticos, os quais, fugindo à
universalidade linguística, só funcionam dentro de determinado contexto em função do mesmo. (Ver
Texto 28.3.).
123
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
porque ambos se esqueceram do que defendiam inicialmente. Há uma candura, uma
ingenuidade do desejo de estar em posição de op-posição.
Geralmente tem-se medo de sair de uma oposição para cair numa trivialidade. Dá-se uma
revolução quantitativa com a passagem do dois ao três. A dialéctica com sínteses não é
uma figura trivial. (Texto 35).
A paradoxologia terá sido, segundo Proença, uma das últimas preocupações teóricas
de Ernesto de Sousa. Com efeito, na página 299 do Ser moderno...em Portugal,
Miranda Justo apresenta o texto que Ernesto de Sousa escreveu para a exposição
“Atitudes Litorais”, onde o primeiro dos dez pontos do decálogo se intitula
Interdisciplinaridade e paradoxologia. Miranda Justo escreverá que a paradoxologia
é uma lógica metafórica direccionada antes de mais para a instabilização de uma
visão separativa do mundo. É também, segundo este autor, a aceitação de que, não
sendo possível fazer recurso a uma verdade das coisas, então é no logos do paradoxo
que se pode procurar o momento incoativo, inaugural de todo o mais pensar. Não se
trata de mera destituição dos saberes disciplinares, continua Miranda Justo, mas
precisamente de um ensaio de compreensão conjunta, de relance perspéctico, das
disciplinaridades e da sua insuficiência.
Deste modo, tal como na teoria homeostética, faz-se a apologia duma
interdisciplinaridade fundada no preenchimento do vazio e da fronteira entre as
várias disciplinas.
Sendo a post-paradoxologia um dos príncipios homeostéticos, muitos são os textos
que se referem à contradição, à paralogia e ao paradoxo. Entre esses destaco o
poema intitulado: “PARADOXOS” 154 :
A mentira é verdade
A mentira é uma verdade
É sendo mentiroso que me torno verdadeiro
Faz o que não farás!
Sê espontâneo! (espontaneidade forçada)
Doxa est in paradoxa
154
Texto 6 (Teoria Homeostética, in Anexos).
124
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
O amor é dúvida alucinante
É fugindo que nos encontramos
(não há paradoxos retroactivos, o paradoxo não é reaccionário)
exemplo:
a ousadia está no medo
o medo é a ousadia
com o medo está a ousadia
contra o medo está o medo
(inversão indutiva)
todos os mortais são homens (todos os homens são Sócrates)
(tudo foi feito, mas está tudo por fazer)
é induzindo que deduzimos
e deduzindo induzimos
esperando desesperamos
a verdade é verdade?
É mesmo verdade a verdade?
Toda a verdade é verdade?
Nem toda a verdade é verdade?
Então há verdade que é verdade e verdade que não é verdade?
Em “Contrainducção/Aposta”155 , Proença recorre a Pascal, que, procedendo
contraindutivamente, contrapõe a certeza do desconhecido à incerteza do conhecido:
“A incerteza do conhecido é o acaso do saber, a des-construção que todo o conhecimento
porta, a submissão à ausência de sentido (que é uma tirania tal como a presença do
sentido: todo o sentido habita – isto é, co-habita – num “entre” a ausência e a presença,
no topos-atopos-utopos do desocultamento /ocultação). A certeza do desconhecido é
entendida como aposta, ornamentada com uma enorme quantidade de atributos e de
ganhos. A certeza do desconhecido é o “fruto proibido”, acessível pela via da outra
155
Texto 10 (Teoria homeostética, in Anexos).
125
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
incerteza, a incerteza do jogo, do ganho / perca, do desocultamento / ocultação da certeza
(...).
Há como tal uma perversão do jogo (como a palavra “per-versão” o diz). Isto leva-nos a
meditar sobre a ideia de perversão, da operatividade da per-versão na argumentação (na
se-ducção). A per-versão é uma forma de paradoxo paradigmático: a predicção
paradoxal. Joga com antecipação e com a incerteza e o que produz é a des-construção do
jogo, isto é, de um paradoxo que vicia o jogo, mas do qual é impossível sair sem uma
aposta, aposta essa que repousa sobre uma equivalência entre o provável e o improvável.
Essa aposta, no entanto, mantém, ou aumenta as expectativas, colocando-as ao nível da
consciência, do debate (polemos) dentro da consciência, na única forma de não
contradição que é o diálogo das contradições”.
É por essa razão que afirmam no Texto 8:
“A nossa modernidade é a adivinha. O orgíaco futurar, o procurar na desierarquização,
na mistura das culturas, nos erros. Mas procurar não basta. Não estamos aqui só para
salvar nenhuma memória. A nossa instabilidade é promessa.” (...) a nossa ingenuidade só
poderá advir da nossa consciência. A materialização das nossas seriedades é um jogo em
que nenhum pressuposto é rei, mas todos podem ajudar. Os paradoxos e as contradições
que isso permite devem ser entendidas nas complementaridades possíveis (locais e
globais), ou / e nas interacções.
(...) A incerteza é entendida como interacção de convicções incompatíveis. Como
dogmatismo em metamorfose. O Humor e o Riso neste caso não se cingem à paródia
festiva que alterna com os ascetismos e as seriedades. Antes será uma paródia ascética ou
uma seriedade exuberante. Existe uma alternância de innensidades, de focagens mas
sempre dentro das práticas paradoxais.”
E ainda no Texto 18:
“Agora que o ser moderno se cristalizou na “adivinha” – xamânico oficio -. E é na
adivinha que se exerce o instaurar. Dar espaço aos dogmas. Ou a pequenas frases 156
como “paradoxa est in doxa”.
156
Eis algumas “Paradoxas/Doxas homeostéticas”:
“Espontaneidade forçada” (Xana).
“É fugindo que nos encontramos” (M. Vieira).
“Por um academismo centralizado e corrupto” (M. Vieira).
“ Doxa est in paradoxa/ Paradoxa est in doxa” (Pedro Proença).
126
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Será esse príncipio da incerteza que irá levar ao questionamento da própria arte.
Vejamos o Texto 15:
ARTE / NÃO ARTE
Será o Não –Arte Arte?
Será a Arte Não-Arte?
Ou: Será o inartístico possível e a arte possível sem o inartístico?
A arte como arte como arte é arte? (claro)
Será a arte como tautologia a única arte? (não)
Pode tudo ser arte? (talvez)
O conceito de arte é vago? (sim senhor)
Há necessidade em definir para fazer arte? (ainda não sei)
A anti-arte é arte? (R: a anti-arte nunca existiu?)
(interlúdio: imagine-se alguém que ignore completamente o inglês, vendo uma obra
tautológica de Kosuth. Para ele que tem uma noção de arte, será essa obra “arte”?)
A arte é feita pelos artistas? (nem sempre)
A arte é concebida pelos artistas? (idem)
A arte é ordem? (sim)
Há arte sem ordem? (não)
(nota: nunca há o “retour à l´ordre”, há é uma sua simplificação ou entropia)
Qual a relação da arte com o inartístico? (de fome)
A questão de D.: “Haverá obras que não sejam de arte?”
a resposta é: “para quem?”
Acabar com a diferença entre a arte e a vida (Fluxus)
H á obras de arte melhores que outras? (sim)
Como o sabemos? (é difícil. O meu critério é culinário. Logo há obras mais saborosas do
que outras. O outro critério, subjectivo, é o hedonista, que eu aceito).
Pode-se fazer arte sem saber o que é arte? (sim. Pode-se ter uma actividade que ignorando
o que é o conceito arte possa coincidir, para um outro, que a observa, como arte).
O conceito de “arte” pode ser inartístico? (sim)
Nota: a arte não é um conceito, nem um uso desse conceito.
Há interesse em separar o conceito das práticas artísticas? (não sei).
“Mobilis in mobilis” (M. Vieira).
“Non farum putorum” (Francisco Ferro).
127
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Face à incerteza e à contradição é desenvolvida uma tese baseada no gymnasium157 :
Ginásio é a luta, o exercício, de várias teses. Enquanto exercício desenvolve uma
musculação, uma capacidade de produzir “logoi” (ajuntamentos, poses, discursos), ao
mesmo tempo que lança o descrédito sobre eles.
(...)
A trivialidade apenas se realiza como ficção, torna-se absurda, isto é, torna-se uma
fraude, mas como fraude dá acesso a uma trapaça no interior da fraude, a uma fraude, à
fraude, ao desparecimento das autenticidades e das fraudes…. Apenas fica algo, (uma
musculatura) que introduz, faz aparecer e desaparecer tudo isto.
Fica um ginásio e uma gymno-ásia….(Texto 35).
7.2 Parahermenêutica
Uma das técnicas da parahermenêutica é a suposição duma presença que se
ausentou.
Em resposta à dispersão e à ambiguidade do universo pós-moderno, metaforicamente
designado por “Babel” (Texto 1), surge a urgência de entender e teorizar o
mecanismo das relações intersubjectivas e as suas repercussões na prática artística.
O texto Parahermenêutica 158 faz uma breve incursão em autores relevantes e
precursores no desenvolvimento das teorias da interpretação: de Heiddeger, refere a
hermenêutica enraizada, contemplando a integração do gesto, da voz e da escuta, na
região dos actos e dos conceitos; de Saussure, uma hermenêutica designada de
escuta microscópica que conduz pela monumentalidade das palavras sob as
palavras (Strarobinsky) ... a uma histerização latente de sentido; e o dissídio em
Lacan.
Os objectivos da Parahermenêutica visam a acentuação do carácter babélico dos
signos (palavra, som, imagem), partindo do princípio de que estes são portadores de
uma condição dúplice: a do pudor e a da prostituição. O objectivo do pudor visa a
ausentação, o empobrecimento e a descompactificação do texto: O pudor não tem
como destino criar um vago, mas tornar o texto impermeável (sem permeios)... Isto é
157
158
Ver Textos: 34 (De Gymnanium) e 35 (Arte como fraude da arte).
Texto 5 (Teoria Homeostética, em Anexos).
128
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
viver em ascese ( e não, a loucura, a sexualidade, a orgia) de um não dito. O pudor
não significa incapacidade de dizer, mas a recusa em dizer.
Por sua vez, o dizível conduz à prática da “citação”: “toda a linguagem é (foi e será )
citação em acção”. Não se trata de simples imitação (pastiche) ou reprodução, mas
de fazer reviver o que estava destinado ao esquecimento. Com esta prática perseguese um objectivo que visa a universalidade do objecto, sempre referenciável e passível
de interpretação.
Uma das técnicas da Parahermenêutica é a suposição duma presença que se
ausentou. Esta atitude implica a identificação de uma matriz linguística e o seu
afastamento deliberado, reconduzindo-nos ao conceito de Infracriptográfico:
... O que a linguagem já disse podemos ter uma pálida ideia, podemos seguir a sua
génese na diversidade das suas particularidades, as suas misturas, as suas
transformações, em suma a sua história com toda uma preciosa arqueologia de
significados
Se ao passado podemos ir captar as fontes referenciais ou de ensinamento, a obra
existe em resposta ao presente (contexto e subjectividade). A desposse, a passagem
do domínio privado ao público, implica o risco e a imprevisibilidade da leitura e a
ressignificação por "outros". A esta problemática, que sugere um processo inclusivo
(as fontes, o artista, o público), quer na interpretação, quer na extrepertação, atribui o
texto homeostético a designação de “co-habitação” 159 .
O problema heideggeriano da “habitação” é falso, não cesso de repeti-lo. O verdadeiro
problema é o da co-habitação. Embora a arte possa propor um habitar (Dieu est-il
inconnu? Est-il manifeste comme le ciel? C´est lá plutôt ce que je crois. Telle est la mesure
de l´homme. Plein de mérites, mais un poéte, l´homme habite sur cette terre”.
Holderlin). O estilhaçamento do medir, do estar em posse de uma medida acarreta a
ruína dos antigos edifícios. A des-construção dos saberes, e as práticas de transgressão
deram por outro lado lugar a uma série de inconstruções, a um habitar suspenso, a uma
sede impossível de nomadismo (no entanto não se muda de lugares, simula-se antes um
espaço, mais esbocejado que vivo, ante uma retórica que mostra pudor perante a ideia de
retórica). Porém o nomadismo não resolve nada. A mera deriva não me interessa. Mas
interessa-me a pluralidade das matrizes, a interacção, o deslize, os sigilos de cada uma
das zonas de predação. Penso como tal que todo o fundar é plurimatricial.
159
Texto 27.3. (Teoria Homeostética, em anexos).
129
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
E ainda:
Este co-habitar está no entanto vinculado de uma maneira extremamente forte a vários
pais, a várias mães, somos castrados, deserdados, herdeiros. Ou inversamente, atribuímos
paternidade ao que já foi, invocamos direitos sobre os mortos, fazemos renascer das
cinzas imagens, textos, reivindicamos, ainda que de forma velada, uma autoria sobre eles.
Não somos menos autores dos signos que re-produzimos. O habitar desloca-se. Já não
podemos, como os cubistas, situar uma imagem de ângulos diferentes sob a coerência de
um estilo. A imagem tornou-se incoincidente, suscita representações divergentes. O mesmo
lugar, o mesmo ângulo, tem alguém que o diz com uma pluralidade de esquemas. Nenhum
recusa forçosamente o outro. Um espaço ptolomaico não é para mim inconciliável com um
espaço einsteiniano, nem com qualquer outro tipo de espaço. Nem posso dizer que um é
melhor que o outro. Se os posso habitar a todos, se todos me concedem um habitar, a
minha habitação é a teia de diferenças, de pragmáticas, de representações, que resulta
desses fortuitos encontros.
A “co-habitação” é o argumento para o “pluristilo 160 ” homeostético. Este decorre da
liberdade em “capturar” os efeitos mais convenientes para a representação, ou da
preferência individual por determinadas atmosferas plásticas. O pluristilo
homeostético, ou a ausência de estilo na Homeostética, acontece devido à
possibilidade de escolhas e preferências artísticas (referentes) e performativas
(modos de fazer).
O aprender a co-habitar exige por isso uma deslocação permanente em que muitas vezes
surgem conflitos, recusas e polémicas pontuais, mas também aceitações, conciliações. A
descrença ou o niilismo que uma situação destas poderia provocar traem ainda uma sede
de Verdade, uma postura metafísica fundada na lógica aristotélica ... mas é-nos necessária
uma verdade fechada? O espaço de Mondrian, de Kandinsky, de Pollock, de Rothko, etc, é
ainda um espaço de obcessão metafísica. Um espaço descentrado foi-nos proposto por
outros (Rauschenberg, nomeadamente), foi-nos inclusive demonstrado que somos um
máquina atravessada diariamente por milhares de escritas todas elas falando línguas
diferentes. E há críticos e artistas que ainda falam de estilo, que o protegem, com a mais
reaccionária das maldades!
Não digo que não haja necessidade de uma coerência, de um monologismo de vez em
quando, de um repouso merecido, de um sono uniforme... tudo isso pode assomar como
uma delicada paralogia que inflama um magma de reconciliação o sêr sequioso de
160
Sobre “a inexistência de estilo dentro do canône homeostético”, ver também Texto 9.
130
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
repouso, isto é, de morte. Há no entanto que caminhar nessa via de dissídios e analogias
(...)
o que é co-habitar ? é não só sermos os habitantes, os que se exibem, os que se têm na
distância, os que representam, os que territorializam, os que possuem uma memória, mas
o sermos habitados (por exemplo pelo eu, o tu, o ele, o nós, o vós, o eles) por uma
multidão de daimones (ou anjos) que nos inflamam, que nos traem, que nos conduzem.
Este “ser-se habitado” é aquilo a que Pedro Proença chama de entusiasmo.
Resultante de um acto, a obra é acentuada no texto homeostético pelo seu aspecto
comunicante, no qual a participação 161 constitui o centro e a ponte entre a
comunidade e o indivíduo. A "ponte", necessariamente móvel, constitui o veículo do
conteúdo incomunicável da obra. A "participação" é vista como a colaboração num
destino, por possessão e entusiasmo. São estes os factores que determinam o
território comum (a-temporal e transgeográfico) entre o autor e o "leitor". Um
território que manifesta a ideia do "continuum" e onde é possível fazer reviver as
formas e o espírito que as animou.
Os actos entrelaçam-se com as catástrofes, o corpo é prolongado à natureza, a
participação é a de um Tudo.
A experiência hermenêutica deve ser conduzida pela obra – não se trata de análise,
mas de algo captado pelo Ser, sendo o acto interpretativo uma “união amorosa” 162 .
O que a homeostética propõe com a parahermenêutica é a paixão dos signos, cujos
significantes são esvaziados de significado. As formas, “raptadas” numa dinâmica de
prazer caracterizado pela capacidade de sedução e pelo entusiasmo que essas
imagens suscitam, serão reutilizadas em novos contextos, como se de sinais
abstractos se tratassem. Pelo afastamento da matriz originária, e de todo o peso
contextual que a terá envolvido na origem, ressurge o poder evocativo da imagem,
livre e passível de interpretações 163 . Será nessa liberdade que se conduzirá o fruidor
161
Sobre “participação” ver Texto 5 (Parahermenêutica).
A esse encontro, Palmer chama de “momento estético”, não factual, nem conceptual, mas que
acontece (pp.245-246).
163
O acto de “fixação” ou “inscrição” confere à obra um certo grau de autonomia: através da
descontextualização, a obra torna-se independente das condições sócio-históricas da sua produção, das
131
162
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
no caminho para a participação. As analogias encontradas pertencem-lhe
inteiramente, pois a obra não pretende impor um ponto de vista ou um objectivo, mas
antes um encontro de “amantes”. Recuso o eterno diálogo, diz Proença: quero mantêlo e sustentá-lo enquanto for do meu interesse, enquanto me mantiver entusiasmado.
Observamos então que não importam as intenções do autor, situando-se esta
interpretação a um nível fenomenológico 164 . Trata-se portanto de uma concepção de
obra aberta, instável e dinâmica que intersecciona o indíviduo e o contexto nas suas
dimensões internas e externas. A Homeostética coloca no entusiasmo o impulso que
reúne as actividades perceptiva e receptiva, quer do artista, quer do fruidor.
Por sua vez, a produção de sentido, ao residir nas técnicas de sedução, pontuadas
pela instabilidade e pelo desejo de alteração, implica necessariamente o compromisso
do Outro. Isto é, a constituição do valor estabelece-se na passagem do Outro para o
Si 165 .
7.3 Infracriptográfico 166
... porque o sistema de decifrações e de escutas apenas tem atingido o iceberg, detendo--se
na superfície das escritas e deixamdo por descompactar o rumor das entranhas com o seu
lixo arcaico. 167
intenções do autor e das expectativas da audiência. A obra projecta um modo de ser (“mode of being”)
a “proposed world”: “the text transgresses closure because the world it projects outward can be
appropriated in a number of different ways concomitant with the socio-historical context of its
reading- reception” (M.Gardiner, p.128). Bakthine considera esta “emancipação do texto” da maior
importância para a distância crítica, implícita no acto da interpretação, argumentando que a
hermenêutica não assenta no sentido escondido atrás do texto (intenções do autor, por exemplo), mas
no próprio sentido do texto. Esta apreensão requer uma pré-compreensão que converte a ilusão em
conhecimento. Por sua vez, Ricoeur reforça a ideia de que o conhecimento deve ser entendido como
permanecendo parcial e fragmentário.
164
A crítica fenomenológica, incorporando a compreensão e a consciência histórica, veio desencadear
a reflexão sobre a temporalidade. A obra situa-se no presente, mas também na recordação e na
antecipação, resultando daí uma interpretação dinâmica, porque se altera de sujeito para sujeito. O
significado será então atemporal, dinâmico e pessoal.
165
Sobre Valor e Produção de Sentido, ver Texto 16 (Dicionário) – (Teoria Homeostética, em
Anexos).
166
Ver TEXTOS: 23; 27.3; 31.
167
In: Folheto da Exposição “Educação Espartana”.
132
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
O conceito de infracriptográfico surge na Teoria Homeostética em reacção à
afirmação de que a arte se faz devido à pressão das precedências (arké). A
precedência traduz-se por uma série de pressupostos históricos e futurizações tidas
como cíclicas. Nas concepções formalistas existe a tendência para agrupar e
uniformizar as ocorrências e a produção artística sob um estilo ou categoria, o que
tem conduzido à proliferação dos “neo(s)” e dos “pós”. Sarduy, Calabrese, Gilo
Dorfles, Eugenio d´Ors, entre outros, defendem que a nossa época se caracteriza por
um carácter barroco. Outros há que defendem um neo-romantismo; outros, como
Jenks, que vêem na arte actual um retorno a procedimentos que caracterizaram as
práticas renascentistas (post-modern classicism), ou ainda, como Bonito Oliva, que
encontra analogias com o maneirismo.
A teoria homeostética afasta-se das tentativas para encontrar categorias, ou caracteres
dominantes. O que se propõe com o conceito de “infracriptográfico” é uma
dessacralização das precedências (arké), através do afastamento e da diluição das
matrizes. O conceito de “infracriptográfico” suscita questões relativamente à
temporalidade da cultura, quer através da acumulação, quer da disseminação da
história e da tradição, questões estas que interagem com a actividade receptiva do
artista, no momento de apropriação dos seus referentes e fontes de inspiração.
Pretendendo ir para além da superfície, o desejo de alcançar a “sub-camada” é
referido como “observação do centro da terra como algo de incontaminado,
inobservável” (Texto 27.3). Esta retenção essencialista verifica-se na inscrição
infracriptográfica, que, sendo deliberada, se destaca pelo desfrute dos códigos, como
um gesto de vontade ou de desejo de presentificar um “não-se-sabe-o-quê”. Trata-se
de uma inscrição descodificante que dialoga e descompactifica os códigos. Como
exemplo dessa inscrição surge igualmente a ideia de uma “alfabetidade visual” que o
autor (Pedro Proença) observa, quer no primitivismo, quer no grafitismo. Algo que,
133
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
fugindo ao “quadro” e ao “estereótipo”, se concentra e conserva o essencialismo da
inscrição, da marca do artista168 .
Considerando que a transparência do signo é aparente, pois oculta um lixo
inominável de signos e transignos sobrepostos que o signo tapa, ou seja, camadas
sobre camadas de significados decorrentes dum longo processo de transformação,
metamorfose, desvios ou agregações de sentidos, o palimpsesto deixa de ser visto
como simples acumulação, tornando-se antes o resultado de uma intenção que
confere interioridade à obra, deixando entre-ver. Não se trata portanto de uma
velatura, mas de um veículo portador de resíduos:
Este palimpsesto opõe-se a qualquer espécie de velaturas: é a opacidade que comanda
este jogo, como se dois momentos se sobrepusessem e no segundo apenas restasse uma
míngua de permanência, transitasse muito pouco. Há um emudecimento do que passou,
mas há acima de tudo a sua surdez: ele pode dizer-nos algumas coisas, mas nada pode
escutar. Logo: a história não dialoga entre si, apenas alguns sussurros nos chegam (Texto
31).
O palimpsesto é definido como a interioridade dos signos. Sendo o signo um Duplo,
ele já o é por natureza na relação entre o significado e o significante, e é-o também
pela sua qualidade comunicacional (uma figura para a eternidade), onde
simultaneamente revela e esconde:
“Há imensos nós, há resíduos que vão contaminando o meu meio. Há a pressão de uma
tradição que lhe foi reactiva “ (refere-se ao primitivismo) “há uma redomesticação de um
palimpsesto de “cultura” que não chega a tapar tudo. À cintilação que conduz ao facto do
sentido ser imparável, chama-lhe Barthes “significância” distinto de significação” (Texto
29).
A “escuta” e a memória constituem procedimentos contra a força da precedência.
Como mecanismo de apropriação de dados, a escuta supera e enfraquece a arké,
168
Esta “marca” não se deverá confundir com estilo ou com assinatura, será antes o que permite
estabelecer a coêrencia (ductus) não necessariamente dum conjunto de obras, mas de uma mesma
obra, ou traçado. Esta concepção aproxima-se mais da ideia de “impressão digital”, algo como a
transmissão e registo dos factores pulsionais. Na actividade da apropriação, a “marca” distingue-se
pelo seu aspecto ob-sessivo e proeminente.
134
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
detém-se em algo que a precede (os índicios), em algo que emana dela (os códigos),
em algo que a desconstrói, retirando-lhe a estrutura e reduzindo-a a pontos.
Este processo de desdomesticação remete-nos para uma espécie de arcaísmo sem
arké, conquistando-se assim um lugar violável por excelência, o lugar da tradição
como capital disperso, como um fabuloso tesouro à disposição de todos, mas que
apenas raros ousam roubar (Texto 23). Por sua vez, a memória, considerada como
um bosque cheio de pequenos tesouros, permite tornar tudo contemporâneo, isto é,
tudo o é susceptível de se tornar contemporâneo: Tudo o que trabalha para que as
presenças se presentifiquem “(...)”tudo o que contribua para a sua aparição” 169 .
Em consequência deste procedimento, o processo criativo passa a ser entendido
como um “jogo” onde não existem prescrições ou regras, ficando dependente da
anarquia, da anomia e da atopia 170 . No entanto, e apesar deste aparente vago, dá-se
uma emergência intencional, por via da descompactificação. Será esta
que irá
conduzir a uma triagem, a partir da qual se retêm as proeminências 171 (figuras de
elevado potencial pregnantizadas), sendo que no rememorar dessas figuras se pode
operar o re-volar, o aumento do entusiasmo, das vontades parturientes. Esta
169
Texto 28.1. (assunto: memória e esquecimento).
170
O texto 31 esclarece-nos acerca destes conceitos:
Anomia: não estatuto; não-lei; não-definição. An-arquia (an-arké): emergência que não tem em
conta as causas, que se relaciona com a matriz como “fractriz” (fractura, disseminação da matriz);
não-precedência.
Atopia: relacionado com a ideia de Único (Barthes, Heidegger) que o ser funda e é fundador, embora
ele próprio repouse no seu sem-fundo, na sua ausência de “arké”. A “Atopia” escapa-se quer à
“utopia” (idealização), quer ao “lugar” (domesticação, logos).
171
Lyotard vem dizer-nos que a matriz residente no mito com a sua perpetuidade significa que
resultou duma triagem, triagem essa que obedeceu a critérios. Por sua vez, onde não há matrizes
imperam os jogos cénicos, nada é programado e as pessoas que jogam os seus jogos inventam com
quê, sem certezas relativamente aos resultados possíveis. Decorrentes do afastamento das matrizes
serão os efeitos que vão provar se “ça marche”: “On sera d´une méfiance universelle, mais en même
temps, on sera d´une confiance universelle puisque s’il n’y a pas de critère, ça veut dire d’une certaine
façon que tout ce qui est donné est vrai. Tout est vrai. Cette vérité là n´appartient au champ borné du
vrai/pas qu´est celui de la science, mais elle appartient plus au contraire de la semblance, de
l´apparence qui est évidemment, en même temps, un espace de dissimulation mais où rien ne se
dissimule, où tout est donné, la dissimulation consistant précisément en ce que rien est dissimulé, tout
est donné.” Eis a lógica das aparências. A meta-dissimulação acontece quando o enunciador está
implicado no assunto da enunciação. “Chaque fois qu´un énoncé est donné, l´opérateur de métadissimulation fait qu´on est obligé de passer de cet énoncé à l´enoncé inverse, et donc cette méta135
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
rememoração entende-se como superação, algo que acentua a pluralidade do sentir
(intensificando-o) (Texto 25).
Afastados os procedimentos baseados no dever para com a história, ou para com os
preceitos que ela nos legou, resta a idolatria. Assim, os referentes, as fontes, passam
a depender duma relação de idolatria (Texto 29):
“São ídolos (eidos / ideia) que se recortam como imagens, formas, ideias, adorações,
entusiasmos, ainda que esse recorte seja uma mania, uma ficção, um fastio.(...). Essa
idolatria é um dos prazeres que o grupo homeostético proclamou (…) a primazia dos
ídolos sobre as pregnâncias que o possam envolver; os cultos, as construções, as
organizações, as cidades. O que nos interessa nos ídolos é a quantidade de coisas que eles
podem suscitar – contra arte ocidental, que é uma representação sem idolatria, sem
paixão.
Atendendo ao facto de o ídolo manifestar uma relação íntima com o material de que
é feito, defende-se o reencontro entre o oikos (“o lugar inscrito no traçado das
obras”) e a matéria prima. Será quem, apesar da relação de disseminação com a
história e com a tradição, subsistirá um reencontro desencadeado pela materialidade
das obras ?
Gosto da história como de desenhos, de pequenos quadros (Lorrain, Turner, Piranesi), de
expressões macias, de pequenas narrativas. Não aceito a história como uma grande
narrativa, nem acredito nos grandes momentos históricos (...) Que questões é que a
história nos pode pôr? Não estão elas circunscritas pelo oikos mudo que as envolve?
Poderia dizer: “Amo o maneirismo, há um conjunto de problemas que são similares aos
que hoje se põem, há que analisá-los!” No entanto para que hei-de analisá-los ... Talvez
isso me traga alguns ensinamentos, alguma afortunada solução. Tudo isso é possível ou
útil até. Mas apenas entendo isso como uma paixão. Leitura de hieróglifos, esfinges que
em lugar de interrogarem são interrogadas.
Como nos sonhos: o sentido que eles tomam não está na cifra, mas na decifração que a
consciência lhes impõe. O inconsciente é mudo. A história, pelo contrário, é surda.
(Conclusão de um asno: não há nenhum diálogo entre inconsciente e história) 172 .
dissimulation est en même temps le moteur de cette machine. C´est une machine qui a vraiment la
duperie comme moteur.” (Lyotard, 1975)
172
Texto 28.6.
136
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Não se trata portanto de fazer uma descodificação, no sentido do exercício
interpretante, mas de activar uma receptividade sensível a aromas e atmosferas
visuais, algo que tem no voyeurismo o seu ponto de partida.
Há textos, tecidos, peles, e não tenho objectos, e o que me interessa dessas epidermes é
toda uma cintilação faustosa: é nessa cintilação que recolho os “primitivismos”,
primeiramente porque melhor se adaptam a essa demência combinatória, a uma
determinação mais deductiva ou abductiva do que inductiva, segundamente porque essas
formas exercem uma eficácia para lá do plano formal, exercem um fascínio de não
gramaticalidade, como se algo difuso as envolvesse, um perfume. E esse perfume é o que
se pretende traduzir, refazer, num contexto devastado pela impetuosidade atlética ou pelo
projecto de uma semiologia exclusivamente visual. (...).
(...) Quero saber algumas coisas e depois sentir uma espécie de odor forte, por vezes
excitante. Quero fazer uma caminhada, mas de olhos vendados. Não me quero reduzir nem
ao que o objecto é, nem ao que eu sou. Não o quero capturar e mantê- -lo como presa,
mas apenas lançar de vez em quando o meu desejo, senti-lo de relance. Isto é. Quero estar
em diálogo, manter o diálogo o tempo que for necessário (recuso o eterno diálogo), quero
sustentar a sua presença, sentir algo próximo, como uma espécie de radar. (Texto 29)
Será então pela escuta que se procederá ao desvelamento, não do sentido da obra,
mas do sentido atribuído pelo artista / fruidor / leitor aos fragmentos que para si
constituiram motivo de “significância”.
7.4 Transmenipeia
...porque entramos numa idade que atravessa o espaço deixado entre o não-dessacralizado; o único espaço em que ainda se pode rir, uma vez que o riso não está
nele inscrito.
173
Mais uma vez, partindo de Babel, coloca-se a questão do Valor.
Analisando o Texto 16, e após a listagem de questões colocadas no texto anterior 174 ,
depara-se-nos uma crítica ao Valor, tido como um movimento de pressupostos que se
constituem em juízo. Ora, se tivermos em conta que o que caracteriza a época actual
é a possibilidade de escolha e de troca, quer dos interditos, quer dos pressupostos,
173
In: folheto da exposição “Educação Espartana”.
137
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
esta constante possibilidade de mudança desierarquiza os valores, tornando as
práticas e os conhecimentos mais maleáveis.
Partindo da dúvida como referencial do Valor, a teoria homeostética propõe a
interdição das desvalorizações, com o que irá proclamar e justificar, tanto os
“equívocos” como os “erros” que ocorrem no jogo da criação.
Decorrente do Princípio da Incerteza (sub-capítulo 7.1. Post-Paradoxologia),
desencadeado pela avalanche da multiplicação dos sentidos, encontra-se justificação
para que a ingenuidade possa ser brilhantemente proclamada:
(...) E a nossa ingenuidade só poderá advir da nossa consciência. A materialização das
nossas seriedades é um jogo em que nenhum pressuposto é rei, mas todos podem ajudar.
Os paradoxos e as contradições que isso permite devem ser entendidas nas
complementaridades possíveis (locais e globais), ou / e nas interacções.
(...)
A ingenuidade é para ser brilhantemente proclamada. A consciência do ingénuo e a
consciência ingénua. A história e a reflexão opôs uma a outra, mas é óbvio que a
consciência sempre foi ingénua. Certas ideias e conceitos e que foram o auge da
consciência de determinadas zonas históricas surgem-nos muitas vezes risíveis e
inadequados. Neste caso é a nossa seriedade que julga. Como espectadores fictícios de um
referencial “futuro” podemos rir-nos dos conceitos que hoje praticamos. Hoje a perca de
Sentido deve-se sobretudo à avalanche da multiplicação dos sentidos. (Texto 8).
Face a uma situação tão abrangente, uma estratégia possível é a dum humor sem
precedentes. O humor de alguém que pasma diante das possibilidades que se lhe
oferecem. Continuando com a leitura do Texto 8, vejamos:
Simulacro de oralidades bárbaras, ou de gracejos gaguejados por múmias, trácios e
mongóis, estas imagens frenéticas galopam como orações descentradas, segmentos de
traduções da Ilíada, Livros de Horas ou delírios poéticos de taoístas bêbados.
Parafraseiam por outro lado teorias inconceptualizáveis localizadas em mimetismos de
mimetismos, mimetismos toscos que se desfazem no exagero dos tiques, na abundância das
inscrições, num humor de Calígula...
Paródia de pedaços. Cada narrativa ao invocar a sua disseminação adquire um riso que
se alastra para lá das ruínas.
174
Texto 15 (“Arte/ não Arte”).
138
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
E por essa razão Proença afirma no Texto 19:
O discurso que sinto, e que desejo praticar, é aquele que simultaneamente sacraliza e
profana, invoca deuses e derruba-os, postula interditos e troça deles. (...)
Nenhum sentido de dramatização nisto, nada de tragicómico, etc., mas apenas a tensão
dos lugares, o drama como intensidades dos desejos. Melhor será chamar-lhe paixão, ou
paixões, um estado de deleite e desejo que aspira sobretudo a um Outro, mas um estado de
paixão em que a dissolução, essa passagem ao nada, ao tudo, ao muito, não entra em
contradição com os princípios de conservação, para não dizer, porque também, de
regressão.
Polifonia é a designação de Baktine para a “avalanche da multiplicação dos
sentidos” e para as infinitas combinações e possibilidades que os “textos” nos podem
oferecer. Decorrente do dialogismo, a polifonia significa a permeabilidade
linguística, surgindo da pluralidade da mistura das “vozes” (recuperações e
reconhecimentos, restos) provenientes dos enunciados (obras) da humanidade.
Integrando-se no conceito de intertexto 175 , o processo criativo e a respectiva obra
constituem produtos de captações e de todo o tipo de recursos, provenientes não só
da leitura de outras obras, mas também de assuntos e materiais tradicionalmente
considerados como não pertencentes à disciplina, mas que suscitam a imagem.
Recusando o impulso hegeliano no sentido do “conhecimento total”, e afirmando que
todo o conhecimento é falível, limitado e prático, Baktine contextualiza
pragmaticamente o conhecimento, tornando-se este ajustado às necessidades do
receptor, na problemática da comunicação/intenção. Esta forma de contextualização
é por isso formulada em termos estéticos, mas também políticos, pois requer uma
intervenção/participação.
À “interacção dialógica”, proposta por Baktine, acrescenta-se a libertação do
potencial das formas da cultura popular com todo o seu poder desconstrutivo. Para
este autor, o carnaval (a cultura folclórica, o humor popular, etc…), será uma
estratégia dissolvente dos truísmos auto-legitimadores e da razão burguesa: ao
inverter a ordem estabelecida e celebrando a alegre relatividade de toda a ordem e
175
Sobre “Intertextualidade”, ver Texto 17.4.
139
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
estrutura, a lógica do carnaval pode quebrar a hierarquia social e as barreiras
culturais.
Se Ricoeur conecta ideologia e utopia, Bakthine faz do carnaval uma estratégia da
utopia, sendo esta uma das formas para combater as tendências monológicas da
sociedade.
O princípio da gargalhada e o espírito do “carnaval”, no qual o
grotesco 176 tem um papel essencial, desfamiliarizam o presente estado de coisas, rehistorizando o que é tido por eterno e imutável e relativizam os reclamantes da
verdade através duma alegre paródia à razão institucionalizada.
Ainda relativamente à Utopia, podemos ler no final do Texto 27.1. :
As Utopias podem no entanto ser beberagens magníficas quando bem administradas. O
artista é um xamã que as confecciona, que leva o espírito a regiões insólitas, que retorna,
e é um habitante, um cidadão jogando na roleta social, um transgressor subtil da ordem, e
um continuador dessa ordem que transgride.
Contra a uniformidade, ou como escreve Feyerabend, “contra o método”.
E no Texto 17.1.:
A utopia nunca poderá ser um sistema, mas pode ser prevista dentro dum sistema –
aprender a viver a Utopia, isso já vai dentro da pintura.
176
O conceito de grotesco apareceu na Renascença, quando a palavra grotteschi foi aplicada a um
novo tipo de arte decorativa que incorporava elementos humanos, enfraquecendo a distinção que
tradicionalmente se fazia entre o figural dos centros e o ornamental das periferias. O grotesco vai-se
desenvolvendo à medida que os artistas foram descobrindo novos modos de manipular “estratégias de
contradição”.
As “grotesqueries” exigem e evitam definição. As suas formas não obedecem a regras préestabelecidas, e por outro lado não são tão desfiguradas que não as reconheçamos. Existem numa
margem da consciência, entre o sabido e o não sabido, o reconhecido e o não reconhecido – contêm
algo que nos chama a atenção, mas não satisfaz o nosso entendimento.Questionam o nosso processo
de organização do mundo, da divisão do continuum da experiência em partículas conhecíveis.
Harpham (On the grottesque, Strategies of contradition in art and literature) considera o grotesco um
conceito sem forma (são-lhe atribuídos nomes tão vagos como monstro, objecto ou coisa). As palavras
designam desfocagem e ultrapassagem da linguagem. Diz Harpham - defesa contra o silêncio, onde as
outras palavras não têm cabimento.
“Não-coisa” é outra designação para grotesco, reagindo a mente com estranheza a estas formas do
ambivalente e do anormal, que saem fora do sistema das classificações estabelecidas. Não porque
sejam pavorosas, mas porque, no meio de uma determinada impressão de monstruosidade, há nelas
muito de reconhecível. Estas formas intercambiáveis estão ligadas tanto no plano da linguagem como
no do inconsciente. Embora reconhecíveis, não se lhes pode atribuir nome fora do seu contexto
habitual. Grotesco é, nas palavras de Harpham, designação para “paralisia da linguagem”. A forma
grotesca é também associada à expressão de corrupção, ou debilidade espiritual, se bem que uma
grande vitalidade a domine. Essa vitalidade é a rebelião, o emblema do pecado, ou (nas palavras de
Lavater – citado por Harpham no capítulo I, p. 8 e segs.) a destruição da ordem.
140
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Encontramos nestes autores uma relação entre Utopia e Transgressão 177 .
Para Baktine a estratégia é o Carnaval. Também para a homeostética se trata de
carnavalizar o estado actual das coisas. Segundo Fernando Brito (entrevista em
anexo): Eu via a homeostética como os Irmãos Marx da arte portuguesa. Tratava-se
de responder ao absurdo das coisas com um absurdo ainda maior.
Penso poder considerar que é entre a utopia (por diversas vezes referida nos
Manifestos) e a transgressão que se situa a vivência homeostética, no seu aspecto
intra-mural. 178
Caracterizando os anos oitenta como um período de “masturbação retórica”, será esta
situação que despoleta uma espécie de revisionismo, dentro da qual se rejeita o
sincretismo em favor do anacronismo 179 .
Por outro lado, situando o carnaval entre o rito e a retórica, os centros, os lugares
originantes, passam a ser entendidos como simulacros, cujo repensar implica um
“esgravatar” impelido pela curiosidade. No texto 18 (Teoria Homeostética) podemos
ler:
(...) O carnaval situa-se agora entre o rito e a retórica. Os centros, as matrizes, os lugares
originantes passam a ser entendidos como simulacros. Modelizáveis, é certo. Para os
repensarmos tivemos que recorrer ao Palimpsesto. Esgravatar. A memória não era
suficiente, nem a sua fantástica harmonia. Passou a ser outra coisa, num secretismo
voluntário, que excita os espíritos curiosos.
177
Na sua Teoria da Paródia, L. Hutcheon destaca, a ironia como uma das estratégias da paródia.
Também aqui surge o papel activo (doador de sentido) do interprete, bem como o caractér
transgressivo da paródia. A ironia tal como a paródia constituem formas sofisticadas de expressão nas
exigências que faz aos seus praticantes e interpretes. Ao contrário das formas mais monotextuais,
como o pastiche, que acentuam a semelhança e não a diferença, poderá dizer-se que em certo sentido,
a paródia se assemelha à metáfora. Ambas exigem que o descodificador construa um segundo sentido.
Ironia ou paródia, uma implica a outra. A paródia é fundamentalmente dupla e dividida, uma espécie
de transgressão autorizada resultante dos impulsos duais de forças conservadoras e revolucionárias.
(Linda Hutcheon, pags.39 e 50).
Por sua vez, em Jauss, e no que se refere aos modelos de identificação e comunicação estéticas,
considera que o modelo irónico é o aspecto negativo da identificação catárquica, com o qual no
entanto,
a função de ruptura com a norma é activada (Jauss, 166).
178
A atribuição das designações intra-mural e extra-mural define a duplicidade homeostética,
significando a primeira, o envolvimento do grupo, e a segunda, a exteriorização do mesmo. De notar
que esta duplicidade, em termos políticos, representa dum modo alargado o “período de transição”
que procurei caracterizar na primeira parte desta Tese.
179
Ver Textos: 17.3. e 25.
141
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Nesta tarefa de reconstrução, o texto homeostético destaca o mimetismo pelas suas
potencialidades na aprendizagem das “características estilísticas”, entendidas como o
que existe de proeminente, de saliente e caricatural, funcionando estas como
aquisições sígnicas para o trabalho da simulação, ou encenação de novas situações.
A “mimesis” 180 ressurge hoje revalorizada e reavaliada pelos teóricos, quer da
literatura 181 , quer das artes plásticas. Na teoria homeostética, ela surge dentro do
contexto do “diálogo” e por necessidade do mesmo:
Durante séculos a arte foi a moeda de troca entre humanos e divinos. O que a especifica é
a oikonomia, a região das trocas, o território deuses / homens. Como tal coincidia com o
que se chamava religião. Com o nascimento do humanismo a mediação entre os homens, o
domínio das ideias passa a a ser um traço da troca. Este domínio das ideias encontra-se
associado à acumulação de capital. Uma ideia deve constituir capitalização, o saber deve
ser entendido como uma acumulação, um valor central (seja esse saber técnico- o de
performance – ou uma competência – a ilustração de um ideial). Outro conceito lhe
sucedeu, o desse topos se isolar, o topos do entre, o que permite a capitalização, aspira ao
conhecimento da sua constante, da sua essência, ao seu saber como linguagem. O
resultado foi um empobrecimento do “entre”, uma não actuação para fora do seu
domínio, em suma, uma “autofagia”. Hoje a arte deve libertar-se desse estado de
onanismo e voltar a constituir uma mediação entre saberes, pragmáticas, deuses, mas
também ao diálogo com o seu próprio topos, só que se diálogo só é possível na copulação
com o que lhe é Outro, isto é, assumindo o transacto, a acção para lá do seu topos, isto é,
um alargamento do topos a toda a sua outridade, a arte, como tal, deve constituir a troca
por excelência do devir, substituindo a moeda “ (…). “Só na plurimimesis é possível o
progresso mimético, e o progresso mimético consiste sobretudo num salto na apreciação.
(Texto 14).
180
O humanismo da Renascença, reinterpretando a teoria platónica das ideias, delegou na actividade
artística o trauma, de esta não ser mais que uma má mimesis e conferiu-lhe a mais alta missão
cosmológica, a de mediar entre a realidade da experiência sensível e a visão teórica (Jauss, 146). É
nesse alinhamento conceptual que Cézanne utiliza o termo Construção para designar o processo
criador da realização e que se opôe à pintura mimética (Jauss, 154).Por sua vez, o principio da visão
autónoma (que vai desencadear o formalismo), dirige-se expressamente contra o platonismo, e a
separação que este opera entre conhecimento e actividade artística, mas exclui a imitação da natureza
(mimesis) e o “dejá vu” (anamnesis).
181
Destaco como referência: Fernandes Maria da Penha, Mimese Irónica e metaficção, Tese de
Doutoramento, Universidade do Minho, 1995. (Possível de consultar na Biblioteca da Reitoria
Nacional).
142
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
“Citação em acção” e “Plurimimesis” são acções que pretendem responder à
necessidade de criar relações, de unificar, porque, como diz Proença, se não vivemos
dentro da unidade, também não podemos viver fora dela. A mimesis poderá ser
simultaneamente uma estratégia de apropriação e um produto resultante, quer da
intertextualidade, quer da interacção do sujeito no mundo (Lewensbelt- Husserl),
quer no mundo das obras (metalinguagem) 182 .
O que pretendo opor à autonomia da mimesis é a economia da mimesis. Se a autonomia é
necessária, é um devaneio metalinguístico, esse devaneio é uma desmaterialização, um
deslizar do fluxo da vida. Na economia da mimesis existe um retorno ao território, a uma
dimensão pragmática, e porque não dizê-lo, do utilitário.
A arte não pode constituir um mero desperdício poético, mas ingressar como Técné, no
aparecimento do espaço do entre as diversas mimesis, isto é, o território das produções. O
que entende por economia é a apropriação de uma plurimimesis para uma produtividade
inerente a cada topologia, sendo o lugar plurimimético o entrelogos, isto é , o próprio
Logos. (Texto 14).
Na re-avaliação da mimesis, considero pertinente a tese de Linda Hutcheon 183 que
defende a paródia como uma forma de imitação caracterizada por uma inversão
irónica; repetição com distância crítica que marca a diferença, em vez da
semelhança. Não se trata de uma imitação nostálgica de modelos passados, mas de
uma confrontação estilística, tendo como resultado uma recodificação dos dados
captados. Por sua vez, para Júlia Kristeva, citada no Texto 28.5, «a menipeia é
estruturada, assim, como uma ambivalência, como uma sede das duas tendências da
literatura ocidental. Representação pela linguagem como encenação, e exploração
da linguagem como sistema de linguagem correlativo de signos. A linguagem da
182
A propósito da metalinguagem podemos ler no Texto 21 (Administração da história): Existe a
postura de significação, que é um acto de dádiva, e a postura do significante que é metalinguistica, e
por isso mesmo, autofágica. O que não significa que a metalinguística seja caracterizada por
autofagia. Antes pelo contrário. Só os actos verificatórios o são quando aplicados a “objectos
usados”.
A postura metalinguística forma três níveis, dois positivos e um negativo. Os positivos são:
a) suscita pragmáticas ortodoxas, a sua performance é governada pelo não-desvio, por interditos, por
uma experiência de sagrado, por um discurso sem resto, simétrico.
b) suscita pragmáticas de desvio, que contestam e afirmam o acto teórico, o programa é a surpresa, o
facto.
O negativo é o que não se liga a uma poética, o seu domínio é o simulacro, a afirmação do poder,
etc...
143
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
menipeia é, ao mesmo tempo, representação de um espaço exterior e “experiência
produtora do seu próprio espaço”».
Outras designações 184 têm sido encontradas para esta característica da arte
contemporânea: “reciclagem artística” (Rabinowitz); “tráfico inter-artístico” (Leo
Steinberg),
que
consiste
“transcontextualização” 185
de
na
obras
“revisão,
de
re-execução,
arte
anteriores,
inversão
sendo
e
esta
transcontextualização o factor que distingue a paródia de pastiche ou da imitação.
Demarcando-se da crença clássica e renascentista que atribuiu à imitação um meio de
instrução, a paródia procura a diferenciação no seu relacionamento com o modelo; o
pastiche, por sua vez, opera mais por semelhança. Esta relação terá assim mais a ver
com o “inter-estilo” do que com o intertexto. A paródia está para o pastiche talvez
como a figura de rétorica está para o cliché. No entanto, “tanto a paródia como o
pastiche envolvem nitidamente a questão da intenção” (L. Hutcheon, pp. 55 e 56).
A paródia assim entendida resulta numa estratégia utilizada tanto para ressacralizar
como para dessacralizar. Para Barthes, o leitor (entendamos o fruidor dum modo
geral) é livre de fazer associações mais ou menos ao acaso conforme a sua
idiossincrasia individual ou cultura pessoal. Estamos então em face duma mimese
hermenêutica, relacional e expansiva, já que permite, em liberdade, construir novos
183
Op. Cit.
As referências feitas por L.Hutheon podem encontrar-se respectivamente em: Leo Steinberg na
pág. 20; Rabinowitz, na pág. 27. Destaque ainda para a referência, na pág.32, à obra de Gérard
Genette (1982) Palimpsestes (1982).
185
Texto 17 (“Intenções para mim mesmo”, em Anexos) podemos ler a propósito de intertextualidade:
“Por um lado a ideia de intertextualidade é praticada na pintura não apenas no seu interior, mas
socorrendo-se da multiplicidade de textos que agrupam (teoria, literatura, crenças, imagens). O que
suscita a imagem. A prática citativa / descitativa, ou as pregnâncias. Ao entendermos as actividades
fluídicas que se mantém em estado de performance perante um modelo que não se chega a
vislumbrar. O modelo é um emaranhado intersubjectivo que não se chega a localizar.”
184
144
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
contextos e sentidos. Ou, como diz Proença (Texto 27.4.) a propósito da estratégia
mimética: a passagem da informação consiste simultaneamente numa formação e
numa deformação nos dois sentidos da interface, e, no Texto 17.3.: de resto a obra é
sempre metamorfose das leituras, citação disfarçada, citação misturada, citação de
projecto crítico, e em última análise, citação de lugares, de memória, de
pensamento.
145
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Capítulo 8 - O Processo Criativo
A análise do elenco de autores e respectivos conceitos e teorias, aprofundados nos
conceitos homeostéticos Parahermenêutica, Infracriptográfico e Transmenipeia, fezme concluir o que me parece óbvio no processo artístico contemporâneo, ou, pelo
menos, naquele que nos é proposto pela homeostética e que se poderá traduzir pela
sequência: apropriação, desconstrução, reflexão e reconstrução. Processo que
também
poderá
ser
traduzido
na
relação
“complexidade/transmissão/
performatividade” 186 .
Passemos pois à abordagem
desta sequência, através da análise dos textos
homeostéticos.
8.1 Apropriação
A apropriação está relacionanda com a actividade perceptiva: para Leibniz, a
percepção é um estado passageiro que envolve e representa uma multiplicidade na
unidade ou na substância simples. Ele distingue consciência de percepção, dizendo
que foi aqui que o cartesianismo falhou, por não ter tido em consideração as
percepções não apercebidas e considera que é o “apetite” (apetição) que desencadeia
a percepção, ou a passagem de uma percepção para outra.
Nos Textos Homeostéticos, a “apropriação” surge através das metáforas
antropofagia, rapto e escuta. A “Antropofagia” surge por oposição à “autofagia”,
ou ao “monologismo” da prática artística. Deste modo, “apropriação” é relacionada
com a primeira operação da “digestão” (processo criativo: a digestão é o que leva e
distribui a comida, que selecciona, que elimina, que estabelece a medida necessária,
que expulsa o excedente).
No texto 28.4., faz-se a distinção entre “comer” e “manducar”:
186
Texto 28.6. (Teoria Homeostética, em Anexos).
146
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
A questão do tempo, da digestão, regressa. Do comer, do como se come, e sobretudo do
que não se come. Da proeminência da boca e do ventre.
Comer: com-medere. Medere: pensar, medir, tratar (um doente), julgar. Comer é o estar
com o pensamento, a medida, o julgamento, o tratamento.” (…) “A palavra manjar tem
um significado e uma etimologia diferente (manducare), e é “tudo aquilo que pode deleitar
ou fortalecer o espírito”. No entanto manducare ( de “mando”) está ligado a uma
voracidade muito mais temporal, uma voracidade como a de Cronos engolindo os seus
filhos, devorando tudo, às festas da comida (as Saturnais), a todo um universo mandibular
que se centra mais na boca, no mascar, no mastigar, no despedaçar o alimento, na
voracidade, na avidez, na pressa, na proeminência dos dentes e nos movimentos da boca,
na sofreguidão da gula. Assim o “manducare” opõe-se ao “comedere”; e se o primeiro se
centra na ingestão, o segundo (o comer) centra-se na digestão. A digestão é o que leva e
distribui a comida, que selecciona, que elimina, que estabelece a medida necessária, que
expulsa o excedente (as fezes, a urina). O como se come. Refiro-me aos preceitos, às
escritas, às posturas perante o comer. Ao comportamento na “mesa”, à preparação dos
alimentos, às atribuições simbólicas implícitas em cada um destes actos. O que não se
come. Claro que não me refiro ao incomestível, ao que não é próprio para o estômago,
mas ao que deliberadamente se elege como lugar do não –comer.
Neste
texto
podemos
observar
que
o
“comer”
(o
quê
e
o
como:
referentes/mecanismos de produção) passa por um processo de abdução
(selecção/intenção) cujo critério é simplesmente o da preferência, a partir da qual se
estabelece uma hierarquia:
« (…) Em primeiro lugar terei que reduzir essas diferenças através de preferências (…)
não compete a um artista ser um “salvador” de diferenças, mas sim um “produtor” de
diferenças. (…) podem interessar-me determinados elementos de uma cultura e rejeitar a
maioria. O que é exactamente o contrário de exercer um juízo: não há exercício nem da
razão, nem de um consenso de razões. O que faço é preferir: eleger. E toda a preferência
faz uma hierarquização. Ao preferir faço uma pulverização, afasto o excesso de
informação, reduzo a um número limitado a partir do qual estabeleço uma relação mais
forte (…) 187 ».
O rapto 188 (como algo subjacente a todas as obras de arte) é a outra analogia para a
apropriação. É a preferência movida pelo desejo (o apetite) que irá levar ao “rapto” :
187
188
Texto 29 (Teoria Homeostética, em Anexos).
Textos 27.3 e 27.4. (Teoria Homeostética, em Anexos).
147
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
“Um homem –sabe raptar; uma senhora merece ser raptada” (Almada Negreiros).
Côncavo / convexo. A acção côncava do que é convexo. O rapto. Uma predação que não é
vã, que resulta numa captura (que merece ser raptada), num objecto côncavo, que é
depósito. A acção do artista é mais um depositar, manter prisioneira uma captura, do que
emitir sinais que se fixam devido a uma projecção espermática. Um artista não é dono
das catástrofes mas apenas o co-responsável por um rapto. O artista: o raptor. A obra de
arte: a captura.
A minha formulação do rapto como algo subjacente a todas as obras de arte. O artista
quer dizer isto: “eis a Beleza, ela é minha prisioneira, dança para mim secretamente, no
entanto tiraniza os meus pensamentos, exige-me veneração – esta cativa que me tem
cativo!”
Depois pensei num artista que tem um harém: “tenho imensas belezas, todas raptadas, um
dia deleito-me com uma, num outro dia com várias ... à vez sinto uma insaciabilidade...
procedo então a novos raptos ... oh, que sede de raptar!”
Quer o “comer”, quer o “raptar” implicam uma “ab-ducção” 189 . Esta expressão
significa raptar, fazer sair, tirar, arrebatar. Este rapto rouba ou faz sair de um
determinado contexto uma determinada estrutura, assumida como hipótese,
aplicando-se a outro contexto, a outra ordem.
A “escuta”, já abordada no conceito Infracriptográfico, representa um tipo de
apropriação de natureza menos intencional, mas mais fenomenológica ou intuitiva.
Ela pretende descompactificar os “textos” (discursos, enunciados textuais ou visuais)
para lhes retirar as energias originárias (a “significância”, nas palavras de Barthes).
Vejamos um exerto de Texto 19, da Teoria Homeostética:
(... ) o que é escutado aqui e acolá (principalmente no campo da arte, cuja função é muitas
vezes utopista) não é a vinda de um significado, objecto de um reconhecimento ou de uma
decifração, é a própria dispersão, a cintilação dos significantes, incessantemente
introduzidos na corrida de uma escuta que produz incessantemente novos significantes,
sem nunca parar o sentido: a este fenómeno de cintilação chama-se significância (distinta
de significação): ao escutar um trecho de música clássica, o auditor é chamado a
“decifrar” esse trecho, isto é, a reconhecer-lhe (pela sua cultura, aplicação,
sensibilidades) a codificação, tão bem codificada (predeterminada) como a de um palácio
numa certa época; mas ao “escutar” uma composição (é preciso tomar a palavra no seu
189
No tratamento do real, os modos de ducção são básicamente três: a in-ducção, a de-ducção e a abducção. O caso da ab-ducção é (segundo Peirce) o único susceptível de criar algo de novo.
148
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
sentido etimológico) de Cage, é cada som, um após outro, que escuto, não na sua extensão
sintagmática, mas na sua significância bruta e como que vertical: ao desconstruir-se, a
escuta exterioriza-se, obriga o sujeito a renunciar à sua “intimidade”. (Barthes / Havas).
Qualquer um dos processos de percepção e captação de referentes aqui apresentados
poderá inscrever-se no que Jauss defende acerca da validez da experiência estética,
segundo o qual, pela aisthesis, a obra de arte pode renovar a percepção das coisas,
valorizando-se deste modo o conhecimento intuitivo 190 contra a primazia do
conhecimento conceptual.
8.2 Desconstrução
Ainda que, numa primeira fase, o estruturalismo tenha contribuído para uma noção
de desconstrução, esta não deverá confundir-se com a dissecação conceptual. Isolar
para compreender melhor correspondia ao modelo formalista. O que nos traz a
hermenêutica é a possibilidade do diálogo das parcelas ou fragmentos e a sua
reunificação significante. Surge-nos assim a noção de que é pela experiência
receptiva (compreensão e intuição) e não pela dissecação que se abre o universo da
obra. Desconstrução será então o descascar dos significados construídos.
Jacques Derrida (n.1930) representa a guerra contra o pensamento racionalista da
tradição ocidental, que considerou dominado por uma “metafisica da presença”
(logocentrismo). Ele é contra a noção essencialista da certeza do significado,
defendendo que este não é inerente aos signos mas que resulta da relação entre eles.
A este propósito, podemos ler no Texto 27.3. da Teoria Homeostética:
A des-construção dos saberes, e as práticas de transgressão deram por outro lado lugar a
uma série de inconstruções, a um habitar suspenso, a uma sede impossível de nomadismo
(no entanto não se muda de lugares, simula-se antes um espaço, mais esbocejado que vivo,
190
Bergson (1859-1941) relaciona intuição e instinto. Para ele a inteligência e o instinto são
orientados em dois sentidos opostos: a primeira opera por meio da ciência, chama o objecto, dá várias
visões do mesmo, mas não entra nele. O instinto é simpatia, tem a ver com a vida e conduz à intuição.
É esta capacidade que permite reflectir sobre o objecto e alargá-lo indefinidamente. A intuição, diz
Bergson é essa espécie de simpatia intelectual que nos transporta ao interior do objecto (entendamos
em sentido alargado: o Outro), para coincidir com o que nele há de único e, por conseguinte, de
inexprimível nele. (Bergson, La Pensée et le mouvant).
149
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
ante uma retórica que mostra pudor perante a ideia de retórica). Porém o nomadismo não
resolve nada. A mera deriva não me interessa. Mas interessa-me a pluralidade das
matrizes, a interacção, o deslize, os sigilos de cada uma das zonas de predação. Penso
como tal que todo o fundar é plurimatricial. (...). “Desconstruir” implica também
“descompactificar”, tornar o “texto impermeável, isto é, sem permeios;” a adivinha do
“não dito” (“a abrupta passagem pela língua, a salivação, as sílabas entranhadas (…).
Se anteriormente vimos a “descompactificação” associada à “escuta”, funcionando
esta como uma espécie de estratégia da intuição, com o sentido da “desconstrução”, o
descompactar surge como reacção à uniformização (regra, cânone ou estilo), sendo o
seu efeito o de uma pulverização. Esta, ao afastar o excesso de informação, reduz a
um número limitado aquela a partir da qual se vai estabelecer uma relação mais forte:
Descompactificar é desfazer os pactos: romper casamentos, incendiar a própria casa,
renegar os seus ideais, quebrar, partir, etc. Mas também pode ser trapacear. Um jogo de
esquivanços perante os pactos (e não regras), infiltração na rede parietal, traição aos
compromissos, à memória. (…) O pacto resulta de uma conveniência, de um acordo, de
uma convergência de interesses. Em suma da constituição de um poder. Compacto é algo
que é denso, que tem as coisas juntas. Algo que como denso pesa, opondo-se assim ao que
flutua, ao que é disperso, ao leve.
Ou uma selvatização que desencadeia a métis: “Pensamento móvel, astúcia,
errância, deriva, caça, perigo, etc… a interjeição, os ruídos pânicos (Almada)” :
Os códigos assentam em promessas, em pactos. A questão da promessa, a má-consciência
nietzschiana que é inerente à promessa, é inerente à própria linguagem escrita. Esta
promessa, este pacto são a raiz da uniformização”. Pelo contrário o « pensamento móvel,
astúcia, deriva, errância, caça, perigo, etc... A interjeição, os “ruídos pânicos” (Almada),
trabalham contra a gramática (“Temo que não vamos desembaraçar-nos de Deus, porque
continuamos a acreditar na gramática”... (Nietzsche).
Este selvatizar com tudo o que há de pânico (a escuta pânica de que fala Barthes), de ecos
e sussurros, de orelhas que se trabalham umas às outras, re-presenta e remetiza uma
espécie de arcaísmo sem “arké”, mas ao contrário dos arcaísmos, este lugar surge como
um lugar violável por excelência. Mais: a sua presença não advém de um retorno, mas de
uma produção sem promessa, como pura dissipação, como muscularização da linguagem,
150
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
em lugar da ideia “culturalista” de que o traço do homem enquanto “antropos” é a
linguagem, em lugar de invasão “linguocêntrica”» 191 .
8.3 Reflexão
Nesta abordagem, a teoria homeostética apresenta duas posições aparentemente
contraditórias.
Por um lado, ao propor o “entusiasmo” em alternativa à “com-preensão”, parece
divergir da Teoria da Interpretação (Ricoeur) e de um modo geral de todos os
hermeneutas, que indicam esta operação como uma interiorização significante, que
se traduz pela compreensão.
A perspectiva homeostética parece ir mais ao encontro da fenomenologia de Husserl
(suspensão do julgamento, pôr entre parêntesis, retorno à própria coisa). Por
oposição ao compreender, é-nos apresentado o “possuir e o ser possuído”, com as
devidas consequências num acto suspenso que se situa entre a recolha e a produção,
ou, se quisermos, entre a interpretação (apropriação + selecção) e a extrepretação:
Definição primeiramente pela negativa: ausência de razão como modelo de produção:
Segundo: presença de uma actividade natural através de uma metáfora ligada ao corpo
(inspirar... e porque não expirar, ou suspirar...” (…) “O que é que se inspira?). Como
mecanismo natural ela no entanto opera sobre o artificial. Sócrates inverte o modelo da
domesticação. O poeta é transportado por um desdomesticar (o que é diferente de um
selvatizar). Terceiro: Um entusiasmo semelhante a ... os interpretadores (aqueles que a
partir dum sistema limitado de signos, diagnosticam situações) e aos transmissores de
enigmas sobre o tempo, sobre o devir (manipuladores de um tempo que ainda não é).
Quarto: eles podem ser intérpretes ou transmissores mas não com-prehendem.
E o que é com-prehender ? com-pre-hender é ser detentor do que é prévio à interjeição
(ao espanto, à admiração, à catástrofe) Compreender: “Tomar; agarrar; prender.
Apoderar-se; apanhar em flagrante; surpreender. Tomar juntamente: abranger; encerrar.
Atar juntamente; ligar. Tomar raiz; conceber. Perceber. Atrair; chamar a si. “Há uma
carga magnética; uma obsessão de conjunto; um tomar pela raiz (certamente ligada à
noção de razão), de encerrar num sistema (compactificar), etc.” (…) “O poeta como tal
faz a interjeição: Hem! Não se detém nos sufixos, não a prepara. Não é proprietário, ou
mesmo ignora o terreno anterior ao grito; ao grunhido. O que o poeta faz é algo que está
191
Texto 31 (Teoria homeostética, Anexos).
151
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
entre “o grunhido pânico e o nome das coisas” (Almada): “Do grunhido pânico ao nome
das coisas, o homem ficou seguro de ter deixado escapar o essencial”.(…) O nome das
coisas. (de Onoma cuja raiz é gno-, de gnose; conhecimento). O essencial está nesse
espaço dilatado, nesse terreno de caça incerto, nesse interdito que suporta os nomes
(Heidegger diria o Ser). Etc. O entusiasmo é essa descida do nome ao grito (…) 192
Por outro lado, surgem relações que merecem ser questionadas como elementos
correlativos e auxiliares, devendo esta atitude ser integrada dentro dum contexto
dialógico que exprime uma “interiorização significante”, ou a “reflexão crítica” de
que fala L. Hutcheon.
A apropriação / decifração dos códigos implica uma tradução de “algo” distanciado
do receptor ou mesmo esquecido. Esse processo de decifração pode passar por uma
série de etapas ou variados pontos de abordagem, tal como nos é dado a ler no final
do Texto 29:
As artes primitivas estão codificadas segundo códigos que não possuo.
A minha situação é a situação que quis traduzir em algumas pinturas: sei que significa
mas não sei o que significa.. Sei que sem a existência de uma organização, um código, um
desígnio esse meu não saber nunca incidiria sobre este tipo de atenção – a minha atitude
seria a indiferença.
Posso, através de estudos sobre primitivismo, ter acesso a alguma descodificação dessas
imagens (não lhes chamarei ainda signos).
A partir desse momento sou detentor de alguma significação, de informação que é
agregada às imagens, posso compreender um pouco mais.
No entanto continuo afastado do código em que essas imagens se constituem – posso deter
modelos que me expliquem mesmo todas as relações.
Objecto o seguinte: uma tradução é sempre uma tradução. Assim como cada disciplina
tem os seus problemas específicos também as traduções impõem a sua linguagem.
Esta objecção é uma objecção menor – os dados do problema são outros: detenho
agregados de interpretação relativamente às imagens, mas eles constituem-se também
como autonomia. Essa autonomia pode ser re-convertida como “inspiração estética”.
Temos dois pontos de partida: as imagens, com ou sem agregados de informação; e as
teorias, histórias, códigos, etc. com ou sem agregados de imagens. Ambos são fontes.
Fontes de inspiração: (...)”.
192
Texto 28.5. (Teoria Homeostética, Anexos).
152
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Para resumir: o texto que acabámos de ler aponta para a necessidade de se possuirem
complementos informativos (visuais e teóricos) para a decifração de códigos, mas,
ainda assim, será pelo uso abdutivo 193 que o artista irá exercer a sua
“intencionalidade” (Husserl) na selecção das “fontes de inspiração”.
8.4 Reconstrução
A arte é ordem? Sim. Há arte sem ordem? Não.
Na verdade, a reconstrução dá-se desde o primeiro momento da actividade perceptiva
quando esta implica uma intencionalidade que se reveste de formas mais ou menos
conscientes de selecção e produção de sentido. Sendo o espaço artístico
fundamentalmente uma produção (“um lugar onde são capitalizados uma série de
demónios, estejam eles vinculados a aspectos sociais, políticos, económicos
psiquícos,
biológicos,
etc.”) 194 ,
no
desconstrução, reflexão, reconstrução)
âmbito
desta
sequência
(apropriação,
e mais por uma questão metodológica,
atribuo à reconstrução o trabalho de materialização de todo este processo.
Chamemos-lhe “a extrepertação” objectivada pela performatividade.
Acerca da produção, do percurso artístico e do que está por detrás da obra, podemos
ler no texto 27.1.:
O agregado particular, chamado “homem” é visitado e ocasionalmente está habitado por
“acontecimentos mentais”. Tais acontecimentos podem residir nele, mas também podem
introduzir-se de fora. Como qualquer outro objecto, o homem é lugar de mudança de
influências mais que uma
única fonte de acção, um eu. O que vincula e o que se
desvincula, quer na elaboração quer no entendimento da produção artística... o curioso, o
desejoso de saber dos intricados enigmas (simulados ou não) de uma obra interessa-se por
essa busca a “quimeras” que é a veniência das imagens, o como e o porque elas aparecem
... Traduzem elas mais do que essa ocorrência, em que se particularizam uma série de
performances ? Normalmente pensa-se o objecto artístico como um dado.. .ignora-se o
que ele foi obrigado a recusar, a negar, ou mesmo a trair. O que ele foi como
acontecimento, na materialização de algo suficientemente obscuro, de um não-saber e de
um saber que foram companheiros. Nada foi prévio. Mesmo na arte em que a execução é
193
Bergson chamou de “processo de regressão da verdade” a todo o sistema que repousa sobre a
exclusão.
194
Texto 27.1. (Teoria Homeostética, Anexos).
153
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
impessoal, susceptível de ser feita por outros que não o artista. O momento do
aparecimento pode ter o efeito de um raio, dando-se num instante, como uma hipótese feliz
que por estranho destino surge. Instante feliz, mas fugidio. A outra hipótese é o que nos é
dado, é o efeito de uma errância, dos erros desperdiçados, em que um lento constituir de
território se faz, em que surgem, no solo, ruínas das quais se faz a argamassa para uma
nova construção. Esse percurso é o de uma aventura ou de uma brincadeira. Ou: de uma
brincadeira aventurosa. Ou: de uma aventura a brincar. Etc.”
De certo modo, por detrás da obra está implícita a ideia da hetero-autoria, uma tribo
de co-autores (anónimos ou declarados, fantasmáticos ou dissimulados), cujas
influências habitam o artista e terão de ser disciplinadas por este 195 .
O que nos propõe a Teoria Homeostética, no que designa por ductus (comando), é o
movimento tendente à unificação (ao Um) dos dados dispersos, quer no interior, quer
no exterior do sujeito. Mas ductus significa também a “coerência”, pela qual se
poderá reconhecer a intenção (marca) do autor (Daimon) nessa ou num conjunto de
obras. Depois da interpretação, segue-se a exterpretação, com toda a sua função
comunicativa. Comunica-se para dar forma a uma ideia, utilizando para isso “um
corpo de metáforas” (metamorfoses, contradições, acentuações, convenções) que dão
origem ao imprevisível.
Este conjunto de “efeitos” redundantes pretende fugir à uniformização porque
estabelece tensões não uniformes. Porém, diz Proença, “há que mantê-las sob uma
vigilância pessoal, por uma economia capaz de dispor e repor a multiplicação de
tensões…” 196
A representação é entendida como a projecção do corpo “do artista” (do autor): O
que queremos dar é o nosso corpo, o corpo inteiro contido no nosso corpo. Um
corpo que já é a-territorial, cujo espaço não é enquadrado, canonizado, um corpo
que é o prolongamento, que é os saberes, as memórias, os esquecimentos ou os
desejos“. Asssim considerada, a representação implica o diálogo com o Outro. E,
entendida com as qualidades do dialogismo, passa a conter a apresentação 197 porque,
195
Na relação entre a “representação” e a “hetero-autoria”, ver Texto 27.2. (Teoria Homeostética,
Anexos).
196
Textos 29 (Teoria Homeostética, Anexos).
197
No Texto 20 “Alguns esquiços/ideias para a representação”, podemos ler sobre a apresentação:
154
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
enquanto se exterioriza, enquanto performance e passagem para algo não totalmente
codificado, manifesta as presenças, as vozes, as inflexões como algo não acabado,
num movimento de solicitação.
Despida dos condicionantes estéticos e normativos que antes se faziam valer 198 , na
representação, passam a justificar-se todos os meios inerentes ao jogo de simulação,
levando a uma reavaliação da mimesis, que, como já vimos na abordagem do
conceito Transmenipeia, tem ao longo dos textos homeostéticos expressões como
plurimimesis ou mimesis mimética .
O “revisionismo” conducente ao pluristilo e à plurimimesis coloca-nos a questão do
critério. Que critério preside à selecção de um estilo em vez de outro? Por outros
termos, o que é que define o desencadear dos interesses num autor? A resposta está
no instinto, na intuição, sendo portanto de natureza individual e subjectiva: “ o gosto,
no sentir do sabor … o que sabe bem é inesgotável para o paladar, para o exercício,
para a reprodução, para a extrepertação” 199 .
O “pluristilo” é também relacionado com o “nomadismo”: “a circulação de signos, a
territorialidade difusa e fractal (as ficções projectam-se sobre a vida), os fragmentos
tomando vários aspectos, esta pode surgir como o que se escapa à visibilidade, ficando ao nível da
intuição e do desígnio; como colocação pura e simples das coisas, o “isso”, o estar lá, na sua
objectualidade pura, na sua diferença/indiferença; como disposição enquanto matéria ou material; ou
ainda como acontecimento, sendo neste caso o seu carácter de natureza essencialmente performativa
(“o corpo dos actos”). É finalmente colocada a questão: será a apresentação o que solicita a
representação? Creio que aqui podemos entender a apresentação como “aparição”.
198
Excerto do Texto 20: “Enquanto foi possível a universalidade, o monologismo, a representação
era esquemática, obedecia aos dogmas e interditos que como crenças formavam as coisas. Entre a
representação e o objecto existia obviamente a diferença, mas existia acima de tudo uma
interdependência, o saber algo podia manipular o acontecer segundo um sistema de crenças e
semelhanças. O que é semelhante actua sobre o que é semelhante.
A representação não quis iludir o espaço, em resposta aos pavores que a realidade (human kind
cannot bear to much reality) suscita. O pânico ainda hoje existe. Foi apenas por domesticação. As
ilusões vêm mais tarde, com o maneirismo, com a mania de querermos mais espaço do que aquele
que podemos ter, com o fabricarmos um Outro.
O corpo torna-se fantasmático. Passamos a confundi-lo com a linguagem. A persuasão de que o
corpo é o que se nomeia. Nomeia-se para seduzir. Mas enquanto a linguagem se mover dentro do
cânone, não saímos de um labirinto de simulacros que só podem conduzir a um abismo.
As paisagens podem vir todas ter connosco, mas enquanto não tentarmos dialogar com a paisagem,
tentar aprender a sua linguagem, estaremos sempre num corpo em degeneração” (...).
199
Texto 25 (Teoria Homeostética, Anexos).
155
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
e as ruínas, a prática do simulacro como saída para o simulacro, a consideração de
figuras de elevado potencial pregnantizadas” 200 .
Sendo fruto do entusiasmo, o “revisionismo” é entendido como superação, algo que
acentua a pluralidade. Vejamos o Texto 1 (“Babel”): a prática babelística resulta da
crise da memória e da multiplicação da história. Neste texto é focada a prática da
citação, na sua relação com os conceitos do "Novo" e do "Outro". O "Novo" é
definido, no texto homeostético, como o que surge ou se erige sobre o já existente –
“O novo jamais poderá ser " uma mancha cega e vazia como o isso". É certo que
nasce do já estabelecido em crise e se vincula às exigências dum modelo. Seja qual
for a Utopia ou a recusa de Utopia. Mas esse modelo será sempre um Outro...”
Deste modo, a citação enquadra-se na ideia de vivificação do pré-existente, mediante
a performance intrepretativa do "actor" (executante, etc.). Será esta capacidade
interpretativa e activa (porque se materializa pela comunicação), que produz o Outro,
e é também esta capacidade que anula o reducionismo tautológico da citação. ... “O
actor não se limita à reprodução, mas inventa as produções.(...) Ao citar ... apenas
cria o que estava destinado ao esquecimento”.
Se atribuirmos ao conceito "catástrofe", frequentemente utilizado na teoria
homeostética, as ideias de ruptura, transformação, imprevisibilidade, a "inversão das
catástrofes" (metacatástrofe), procura instaurar um equilíbrio entre o acto de
captação dos referentes dispersos e a selecção dos mesmos. “Existe uma espécie de
oralidade que nos persegue, um desejo de performance, de memória activa,
ritual...”. “Metacatástrofe” significará a capacidade de controlar o caos e será,
portanto, parte dum sistema ordenador existente no processo criativo 201 .
200
Idem.
Giles Deleuze em Le Pli, capítulo 6, diz-nos o que entende por “acontecimento” e qual a sua
relação com o caos. Partindo da ideia de que todo o processo artístico é um acontecimento, atentemos
no que diz Deleuze: o acontecimento produz-se num caos, numa multiplicidade caótica, na condição
de que um filtro aí intervenha. O caos não existe, é uma abstracção, porque é inseparável do filtro que
possibilita a saída ou resolução de qualquer coisa. O caos será para um “many” pura diversidade,
assim como o “qualquer coisa” está para o “one”, ainda não uma unidade, mas qualquer coisa que
regula uma qualquer singularidade. Como é que um “many” se torna um “one”? Para que saia
qualquer coisa do caos é preciso que este passe por um filtro (“crible”), que ele aí intervenha como
uma membrana elástica e sem forma, como um campo electromagnético (esta forma de energia poderá
ser designada de entusiasmo, mas também de intencionalidade). Neste sentido Leibniz deu-nos várias
aproximações ao caos. Numa aproximação cosmológica, o caos é o conjunto dos possíveis no qual o
filtro só deixa passar os compossíveis na sua melhor combinação. Numa aproximação física, o caos
156
201
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Nas actuais previsões catastrofistas, a posição homeostética assume duas vertentes:
por um lado, apela aos mais profundos sentidos do "fazer arte"; por outro, utiliza a
paródia como estratégia de desconstrução dos meta-discursos artísticos.
8.5 O Topos da Arte
O processo criativo é assim resumido nos Textos 3 e 4 (A pose e o ductus) da Teoria
Homeostética. Sendo Babel a diferença, é também por isso a razão do diálogo. O
diálogo cria o Fundo, entendido como cenário, contexto da criação: Fundar é criar o
Fundo, o cenário Propício, para que a Métis se aplique, como o sémen no Vaso.
Como os spermata. Fundar é construir o Vaso: a escuta recipiente (Kairos)...
Criar implica a procura de um caminho... o ir fundando: Deter-se nas jornadas, nos
caminhos e também nos desvios.
Neste percurso errante, surgem os conceitos:
destino, pose e ductus. O destino é entendido como o que concede as possibilidades
(o erro e a correcção) e o encontro com a solução. O ductus significa o comando, a
vontade que estabelece um caminho entre as possibilidades. Esta vontade é do
domínio do desejo, mais que da razão : Esta veniência é mais uma veniência do
desejo, que uma veniência de consciência, apesar dos incêndios que a Pose do saber
suscita.
A Pose (atitude, a energia que põe ou funda) é não só o locus intelectual, mas o
topos cuja posição e características vitalizadoras
(entusiasmo)
determinam a
fachada do Pôr. Entendendo a Pose como a exterioridade das interfaces, por ela
passam as acções de pro-por, dis-por, com-por, im-por: A Pose é pois a fronteira
entre o depósito e a composição.
Mobilis in mobilis, homeostase, significam uma errância que adquire os contornos
dum continuum fluido: o percurso levado a cabo pelo artista comporta já uma série
de intencionalidades anteriores que irão continuar (essa errância, esse nomadismo),
quer nas leituras e interpretações posteriores (numa aproximação às teorias da
será um atordoamento, o conjunto de todas as percepções possíveis, incluindo as infinitamente
pequenas, onde o papel do filtro se encarrega de extrair as diferenciais capazes de se integrarem nas
percepções regradas.
157
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
interpretação), quer numa actividade de experiência estética espontânea (na
perspectiva da teoria da recepção de Jauss) que a obra irá proporcionar aos futuros
fruidores.
A frase “ o acto imita a sua possibilidade, no entanto, o último detém o primeiro
acto, o modelo” 202 é um bom exemplo da circularidade da recepção. Na teoria
homeostética as condições de recepção são as mesmas, quer para o artista, quer para
um qualquer observador. O que distingue o artista é a capacidade de dirigir e
materializar a sua intencionalidade. É por isso que, apesar de alguns textos nos
encaminharem para a relevância da intuição na percepção espontânea, no Texto 40
(Kairos e Paradoxo) podemos ler a importância dada às competências e à
tecnicidade do artista : o Verbo é a performance, e repousa na competência que a
solicita: tanto pode ser a tecnicidade do Dispensar, como do Recolher. Este
momento de tensão é dinamizado pela energia do entusiasmo. Continuando com o
mesmo texto, o “Verbo” (obra, acção artística) é solicitado pelo destino que conduz à
Utopia do Fundo (Apeiron), isto é, para o seu Duplo, para os Nomes 203 . Sendo os
Nomes a Imaterialidade e a única possibilidade de materialidade. O que são
paradoxos. Ou melhor, a solicitação do paradoxo, o chamamento, a apelação, o
entusiasmo. A passagem do “Nome” ao “Verbo” é uma metáfora da passagem do
inarepresentável ao representável.
Dentro da lógica da errância, o “kairos” é entendido como o destino, o que concede
as possibilidades, e também o que, conduzido pelo entusiasmo, permite as
202
Texto 17.2. (Teoria Homeostética, Anexos).
203
“Partir das nuvens” é um assunto abordado, não só em Aristófanes, mas também em
Platão. Lyotard remete esta expressão para a “meteoromogia”, especulação sobre as coisas,
no ar. Platão apresenta este processo como uma espécie de percurso, caminho a percorrer.
Diz que, para bem reflectir, se é obrigado a passar pela meteorologia, quer dizer, que é
preciso deixar-se ir, planar. Trata-se (diz Lyotard) da lógica da verosimilhança, que opera
mediante um trabalho de deslizamento, de condensação e de analogia (vizinhança).
“Todos os paradoxos são paradoxos do continuum, mas se nos colocarmos na ordem do
pulsional, este trabalho sobre as similitudes e sobre as pequenas dissemelhanças, pertence,
como diz Freud, à natureza do sonho: “l´ordre du semblant qui est celui de l´opinion, est
effectivement- je ne dis pas le même- mais en tout cas, procède de la même manière que
l´ordre de l´imaginaire, à cette égard, et que celui du rêve (...) si la pensée voulait être
distinte, et bien elle n´arriverait pas à penser. (…) elle serait obligée de s´en tenir aux
singularités (…), alors il n´y a pas de concept et s´il n´y a pas de concept, il n´y a plus de
jugement. (…) donc à ce moment là, on cesse de penser, on nomme”. Citado por Lyotard em
Cahiers de Vincennes.
158
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
emergências: Toda a saída de um fundo (magma indistinto, onde o artista capta e
rapta os seus referentes) repousa em Kairos guiado pelo Enthousiasmo cego, que faz
a passagem do Sendo ao Ser (…). É o daimon (génio, critério, intencionalidade) que
faz a diferença.
O respeito pela individualidade, a pluralidade e a infinita possibilidade de interacções
são as justificações para a inexistência de Estilo dentro do “cânone homeostético”.
Daí que o factor conducente ao pluristilo seja Kairos (acontecimento propício) e
Enthousiasmous (possessão).
Voltando ao “pluristilo” e ao seu valor como dissolvente e neutralizador da
incompatibilidade entre os modos do fazer, coloca-se a questão: “porquê uma
incompatibilidade entre os caminhos? – Como caminhar em mais que uma estrada,
será o verdadeiro pluralismo, uma aporia? Poderá o sem-fundo, entendido como o
que funda e o que dá fundo 204 (cenário da criação) constituir um território ?
A lacuna de território parece marcar as razões da pintura: “ os nomes, as citações,
refazem-se mutuamente, propõem histórias num desperdício narrativo”. É pelo facto
de o território da pintura ser um território “não-expíicito, inconsistente e quase
imaterial” que se torna necessário contrapor-lhe a sua “figuralidade como objecto”.
A presentificação faz-se por um processo triádico: “o movimento de multiplicação,
de fragmentação, o movimento tendente ao Um, como soma dos aspectos, como
configuração impossível para fora do discursável” (…). “Nenhum sentido de
dramatização nisto, apenas a tensão dos lugares” 205 .
É nesta oscilação entre o nomadismo e a procura dum território que surge a definição
do lugar da arte: “A Transtopia introduz um Topos 206 do entre. Na arte não há
204
Texto 25.
205
Texto 19.
206
Topos é o lugar do Outro, (interlogos), mas também do “inter-dito”. A propósito deste assunto
podemos ler em Universos da Crítica, pág. 458: «Para Bakhtine ou Lacan não há sujeitos prévios; os
sujeitos são feitos do próprio processo da comunicação (Lacan: o sujeito é efeito do discurso). Por
outro lado, o sujeito, ao falar, é sujeito de desconhecimento, não de saber, na medida em que o sujeito
diz sempre mais do que aquilo que sabe. O inconhecido é o lugar do Outro (como lugar de
determinação significante, como lugar do sentido). E ainda Lacan: eu falo com o meu corpo, e isto
sem o saber: eu digo sempre mais do que aquilo que sei (…): o simbólico não se confunde, longe
disso, com o ser, mas ele subsiste como ex-sistência do dizer […] o simbólico apenas suporta a exsistência (…) “há relação de ser que se não pode saber” a este “saber impossível” Lacan designa por
159
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
nomadologia, mas um topos preciso, o logos do entre. Lugar fronteiriço, de
mediação, de criação de Medidas. O entre não se define em relação a duas regiões,
mas o que atravessa as regiões.” 207
Assim, para este “lugar” são estabelecidas três territórios: 208
- território semiológico (gramatical) em que as representações se acercam da origem, da
arké, da sua morfogénese. Primado da lógica da representação sobre aquilo que possa
representar....
- território ecológico: economia da linguagem, uso de símbolos, orientação e interacção
de imagens que estão indissociáveis das coisas. Magia por semelhança. Metáforas.
Substituição, etc.
- território dialógico: trabalho de distorção, ampliação e construção de relações mais ou
menos casualmente. Autonomia da linguagem e do que a linguagem diz sobre uma possível
analogia. Deslocação do sentido em direcção ao zero por excesso (por saturação, por
desadaptação). Metonímia. Desperdício de linguagem. Dispersão. Descompactificação.
Categorias: semiológico/ dedutivo; ecológico / indutivo; dialógico / abdutivo.
Neste contexto, a representação é definida como “a gestualidade do regresso”, mas é
também vista, em oposição às atitudes “autofágicas”, quer formais, quer filosóficas,
dentro da perspectiva do dialogismo, sendo por isso inclusiva:
interdito: que é dito entre as palavras e as linhas. O inter-dito é também a impossibilidade de que o
todo se diga. O que significa que todo o dizer deixa um resto, sintoma de um real inabsorvível. Mas
não podemos supor que o inter-dito completa o dito (…) pelo contrário, o inter-dito inter-fere no dito,
fere-o, fere-o de morte (…) fruição, ex-sistência que resiste a toda a completude imaginária do saber,
lugar impossível, onde o real ex-siste ao simbólico.». “Sabia que estava no irredutível, embora
ignorasse qual é o irredutível” pode ser comparado à frase homeostética “sei que significa, mas não
sei o que significa”.
207
208
Texto 14.
Texto 12 (Inventário de Temas e Considerações).
160
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Hoje a arte deve libertar-se desse estado de onanismo e voltar a constituir uma mediação
entre saberes, pragmáticas, deuses, mas também ao diálogo com o seu próprio topos, só
que esse diálogo só é possível na copulação com o que lhe é Outro, isto é, assumindo o
transacto, a acção para lá do seu topos, isto é, um alargamento do topos a toda a sua
outridade, a arte, como tal, deve constituir a troca por excelência do devir (…)”
209
209
Texto 14.
161
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Capítulo 9 - Métis Kairós Enthousiasmous e a
Sofística
“(…) Un océan de forces s´enflant et fondant en tempête, sur lui même, se transformant
éternellement, éternellement refluant en des colossales années de retour, en flux et reflux
de ses formes; s´en expulsant les plus simples aux plus complexes, du plus immobile, du
plus rigide, du plus froid au plus ardent, au plus violent, au plus incompatible avec soi-même, et puis de nouveau revenant de la plénitude à l´intime du simple, du jeu de la
contradiction faisant retour au plaisir de l unisson, s´affirmant encore lui-même dans cette
identité de ses parcours et de ses actes, se bénissant soi-même comme ce qui doit
éternellement revenir comme un devenir qui ne connaît ni saciété, ni dégoût, ni lassitude.
Voulez-vous un nom pour ce monde? Une solution pour tous ces énigmes? Nulle lumière
pour vous, les plus secrets, les plus fortes, les plus intrépides, les plus proches de minuit:
ce monde est la volonté de puissance, et vous-mêmes êtes aussi cette volonté de puissance
et rien d´autre” (Lyotard, 1975) 210 .
Nietzsche faz uma análise do seu tempo e, a uma distância de cem anos, antecipa o
período actual. Senão vejamos: “Il naîtra peut-être une sorte de chinoiserie
européenne avec une douce croyance bouddhiste et chrétienne et la pratique
épicurienne et prudente que celle des chinois. Des réductions des hommes”. Por
“redução” entende a libertação da procura incessante da “verdade”, dela resultando
um homem mais livre de preconceitos e, portanto, mais imoral. Nos termos de
Nietzsche, vivemos uma época de “decadência”, o que implica um enfraquecimento
de forças. A sua posição sobre este assunto é ambivalente, pois que em toda a
decadência existe uma espécie de dualidade de correntes, ou seja: se existe
210
LYOTARD, Jean François, “ Vincennes 7 Février, 1975”. Nesta espécie de diário ou epístolas,
Lyotard debruça-se sobre a obra de Nietzsche e aborda conceitos que me parecem imprescindíveis
para compreender o discurso e a postura homeostética. Resumidamente, trata-se de compreender a
sofística como modo de actuação face à sociedade contemporânea, ou, como diz Lyotard, “notre
object ce serait (…) de restituer un type de raisonnement, un type de vie, (…) un type de temps
historique que sont sophistiques (...) ce que nos intéresse, c’est de restituer à nous-mêmes, les moyens
qui ont été effectivement ceux de la sophistique.”
162
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
efectivamente uma decadência, também com ela emergem, por uma espécie de
retorsão, as forças mais fracas. Estas deverão organizar a sua estratégia, partindo dos
seguintes princípios: uma “justificação” (reflexão sobre o estado presente das
coisas); dar garantia de “duração”, o que significa persistência num caminho que se
afigura lento; e, finalmente, a “saúde”, no sentido ascético do termo, uma conquista
que, sem exaltação, se vai obtendo pouco a pouco. Estes príncipios parecem ser os da
homeostética, que utiliza a “métis” como estratégia de resistência. Na crítica que
Nietzsche faz à modernidade, leio uma análise visionária da “pós-modernidade”.
Dizia em meados do século XIX:
«La croyance au “progrés” dans la sphère inférieure de l´intelligence, il semble que ce
soit de la vie descendente; mais nous nous faisons illusion; dans la sphère supérieure de
l´intelligence c´est la vie déclinante.
Descriptions des symptômes.
Unité du point de vue: incertitude au sujet des mesures de la valeur.
Crainte d´en venir à proclamer que “Tout est vain”.
“Nihilisme”.»
211
A perda do ascetismo, a descrença nos “valores” (já Nietzsche dizia que não se pode
continuar a ouvir os discursos morais sem rir) terão assim conduzido a um estado
civilizacional “budista”, algo que parecerá tranquilo, uma espécie de “nihilismo
doce”, uma civilização de massas profundamente medíocre.
A atitude homeostética poderá resumir-se a uma acção contra este “enfraquecimento
de forças”, aproveitando e usando os mesmos argumentos, distinguindo-se, quer no
discurso, quer nas suas produções, o seu aspecto retorsivo (reactivo) pelo uso da
paródia, da ironia e também duma apologia do primitivismo, que não tem nada a ver,
nem com “retorno passadista”, nem com o “eterno retorno”, sendo antes uma reacção
à uniformização.
A relação entre o “primitivismo” e o problema da “decadência” é abordada nos
textos homeostéticos, nos seguintes termos:
A arte faz-se devido à pressão das precedências. (...) A arte primitiva torna-se uma
memória (história), num arquivo repleto de lacunas. A razão fundamental das lacunas está
na diversidade do que é “primitivo”, quer por este ainda re-presentar alguma alteridade,
algo que nos é estranho, que não habitamos. A isso se junta a nostalgia de algo carregado
163
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
de uma “energia”, de uma força que podemos mistificar, de uma associação à infância e
ao prazer, de uma “libertação” das coordenadas culturais em que nos inserimos. Criamos
como tal o mito do primitivismo, como um mito de libertação, um mito oposto ao mito da
decadência. A ideia de precedência (assim como a glorificação dos antepassados, e de um
dever para com eles) continua a ser a única resposta institucional à ideia de decadência.”
212
A Teoria Homeostética 213 , definida pelo triângulo Métis / Kairós / Enthusiasmous,
é, de acordo com os seus autores, demagógica como toda a teoria o é. Na sua origem
está a aceitação do lance (da jecção) que determina o carácter fortuito na associação
destes três termos cuja disposição não pretende constituir um objecto, mas apenas a
interacção entre o que cada um dos termos vai concedendo, as redes que vai
desenvolvendo como modelo. O texto homeostético faz referência a cada um dos
termos do triângulo, explicitando a sua origem e significado.
A métis 214 foi a estratégia encontrada para reagir às indefinições conceptuais, ao
negativismo da teoria de arte e, inclusive, à situação artística e social em Portugal
nos anos oitenta. Depois de um período revolucionário que marcou qualquer um
destes artistas, na época adolescentes, justifica-se o reviver deste conceito como
estratégia de resistência em resposta a um tempo dominado pela fluidez e pela
ambiguidade. São estes aliás os factores que constituem o campo de aplicação da
métis: o múltiplo, o ambíguo, o instável. Ela actua sobre as realidades fluidas que não
param de se modificar e que reúnem em si aspectos contraditórios (politropos). Em
211
212
213
214
In Lyotard 1975.
Texto 29 (Teoria Homeostética, Anexos).
Texto 39: “UMA TEORIA HOMEOSTÉTICA” , Anexos.
No mundo lendário da Antiguidade, Métis é o nome da primeira mulher de Zeus. Como conceito,
o primeiro modelo de métis aparece na cultura grega: trabalhado por Homero na Odisseia e na Ilíada,
tem em Ulisses a sua personificação. A capacidade de esta personagem resolver pela astúcia as mais
variadas situações é designada por polimétis de Ulisses.
Em nome da metafísica do ser e do imutável esta forma de inteligência foi, a partir do século V,
relegada pelos filósofos. Hoje, os estudiosos da cultura Grega, Detiénne e Vernant, pretendem, através
da obra intitulada Les ruses de L´íntelligence - la métis des Grecs, reabilitar uma “categoria” que os
modernos helenistas desconhecem ou têm vindo a desprezar. A métis dos Gregos - ou a inteligência
industriosa - exercia-se em planos diversos, da caça à medicina, da pesca à retórica, mas sempre com
uma finalidade prática. No engenho do artesão, na habilidade do sofista, na prudência do político ou
na mestria do piloto ao dirigir o seu navio. A métis combina assim uma série de capacidades
intelectuais: a persuasão, a sagacidade, o desdobramento.
164
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
termos homeostéticos ela realiza a post-paradoxologia, ou seja, circulando
naturalmente entre os paradoxos, encontra formas de os incorporar, quer no discurso,
quer nas obras, tornando-se o paradoxo, o leit motiv do diálogo das contradições.
Como forma de resistência ao poder estabelecido, particularmente às formas que nos
são dadas a observar neste período chamado de pós-modernismo (democracia global
+ capitalismo multinacional), ela emerge do próprio contexto, residindo a sua
eficácia na conivência com o mesmo e na utilização das “armas” do seu
adversário 215 . Esta não tem nada a ver com dialéctica, movendo-se antes num
sistema de paradoxos, onde não ocorrem consensos ou conciliações, mas a
possibilidade de uma co-existência entre os dados dispersos que afloram a
consciência.
Trata-se dum sistema de forças, que Nietzsche diz pertencer ao mundo da vontade.
Sistema astucioso, onde se têm em conta os “efeitos” que, não sendo previstos,
actuam como mecanismos de persuasão. É
precisamente neste aspecto que se
encontra o factor comum ao discurso do artista e do sofista: uma linguagem que, ao
desmbaraçar-se do problema da Verdade, resulta divertida e irresponsável. Caindo na
“lógica das aparências”, a produção de discursos inacabados opõe-se ao discurso
moral com a sua veracidade e preocupação de não se enganar. É um discurso que
vale por si mesmo.
As qualidades que impulsionam a resistência não se operam mediante a doxa, ou o
discurso racional, mas pelos instintos. Já
“naturalização do homem”,
Nietzsche, com a sua apologia da
apelava aos instintos como forma de reacção ao
positivismo. O mesmo faz a homeostética no impulso de auto-afirmação e reacção ao
discurso artístico, apontando para uma “selvatização” como suspensão da
domesticidade. Esta “natureza” é portanto a que apela aos instintos, e esta produção
de instintos exige, diz Lyotard, a descompressão dos valores selectivos, tornando-se
assim, simultaneamente, natureza e facto civilizacional. A perda do ascetismo faz
ressurgir por uma espécie de retorsão as “forças mais fracas”:
instintivas ou
pulsionais, com capacidade para agir intensamente (lembro a questão do “vitalismo”
215
No discurso sofistico aparece um operador, o da “inclusão”, o que significa que o artista tem que
estar incluido na classe, no “meio” dos artistas (“art world”) para que a sua acção seja eficiente.
165
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
atribuído às manifestações artísticas dos anos 80). Nietzsche distingue instinto, de
“meio-instinto”, o que só reage à excitação, comportando essencialmente uma atitude
defensiva: “il dépense sa force soit dans l´assimilation, soit dans la défense, soit dans
la riposte – voilà du réactif -. Profonde baisse de spontanéité. L´historien, le critique,
l´analyste, l´interprète, l´amateur, le collectionateur, le lecteur, rien que des talents de
réaction. Et toute la science!”. Indo para lá da reacção, o instinto conduz ao agir
através da capacidade de selecção (“selecção por expulsão”- Nietzsche), por uma
espécie de triagem, designada por Proença de abdução. Vimos como esta capacidade
se revela indispensável no processo criativo.
Kairos (“momento oportuno”) caracteriza-se pela possibilidade de mudar de
perspectiva ou ponto de vista. Esta capacidade de adaptação é para Nietzsche um
factor de “saúde” (energia, vitalidade) para todos aqueles cuja única intenção seja
atingir um objectivo.
Enthousiasmous – conceito que surge no seio dos diálogos socráticos, como oposição
à compre-hensão. Se esta detém a capacidade de orientar e governar riscando os
modelos, o enthousiasmous é a própria imersão na desordem, pertence ao domínio
das energias anímicas e ao dos instintos (a intuição, a inspiração) – “Je reconnus
donc bientôt que ce n´est pas la raison qui dirige le poète, mais une inspiration
naturelle, un enthousiasme semblable à celui qui transporte les devins et ceux qui
président l´avenir; ils disent tous de fort belles choses, mais ils ne comprennent rien à
ce qu´ils disent” (Sócrates) 216 .
O entusiasmo está relacionado com o calor, com um estado de catástrofe, assim
como com o amor. O entusiasmo é um estremecimento, é o estado de
estremecimento, a vibração.
Associa-se também por analogia
à possessão xamânica,
pertencendo esta ao
domínio das intenções e do voluntarismo, já que é controlada pelo seu próprio
“daimon” (génio) 217 . O entusiasmo só não se torna completamente irracional, porque
216
217
Citado no texto homeostético “Métis, Kairós, Entousiasmous”.
Em Crepúsculo dos Deuses, Nietzsche relaciona “génio” com explosão (p.117), diferente do
“pensar” que pode ser aprendido como o dançar “com os pés, com os conceitos, com as palavras, com
a pena” (pp. 76 e 77). “Para que haja arte, para que haja alguma contemplação estética torna-se
indispensável uma condição fisiológica prévia – a embriaguez. O essencial da embriaguez é o
166
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
o génio lhe empresta as suas próprias defesas: O homeostético é um animal sábio e
absoluto consciente do seu génio (máxima homeostética). No sentido aristotélico,
sábio é diferente de sophos, tendo esta concepção de sabedoria mais a ver com a
sageza, ou a astúcia, do que com o capital cognitivo. É nos seguintes termos que o
texto homeostético articula os três conceitos: é este génio que faz o “ingénuo” (o
engenho, a ingenuidade), ou seja, aquilo a que o homeostético chama métis (a
polimétis de Ulisses): o pensamento móvel do caçador e do aventureiro, ao mesmo
tempo candura e astúcia.
A Métis é o que invoca os entusiasmos, os leva até certo ponto, faz os retrocessos,
que dispõe as situações (Kairos), que provoca as predições, que propõe as estratégias.
Como tal, ela é sobretudo de ordem pragmática e não metódica, não o meta-odos que
interessa, mas apenas o “odos” (o caminho)”. O entusiasmo é o impulso oposto aos
que esperam resignados – O génio talvez não seja tão raro: mas são-no as quinhentas
mãos que são precisas para tiranizar o “kairós, o tempo oportuno para agarrar o acaso
pelos cabelos! A inversão do método é adequar a métis para a constância do kairós,
para a representação do “aion” como kairós”.
sentimento de plenitude e de intensificação das forças. Deste sentimento fazemos partícipes as coisas,
constrangêmo--las a que participem de nós, violentamo-las. Idealizar é o nome que se dá a esse
processo: idealizar não consiste como se crê comummente num subtrair ou diminuir o pequeno, o
acessório. Um enorme extrair os traços principais, isso sim, o decisivo, de tal modo que os outros
desapareçam ante eles. Nesse estado uma pessoa enriquece todas as coisas com a sua plenitude: o que
vê, o que quer, vê-o aumentado, condensado, forte, sobrecarregado de energia. O homem nesse estado
transforma as coisas até elas reflectirem o seu poder, até que sejam reflexos da sua perfeição” (pp. 84
e 85).
167
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Posfácio
Chamando à década de 80 “os anos da grande masturbação retórica”, na qual inclui a
polémica do pós-modernismo (em particular os anúncios do fim das grandes
narrativas e do fim da arte), a homeostética reclama-se de sentido próprio e
relativamente às polémicas vem dizer que deixemos as crises apodrecerem nos
lugares delas, defendendo, em contrapartida, a simulação da narrativa, os
mecanismos de apropriação (mimesis, citação), a sedução, a imaginação e,
principalmente, a desvinculação da obra de arte de todas as ideologias. Toda esta
dinâmica
implica o entusiasmo da acção e da interacção, devendo para isso
ultrapassar o individualismo do artista e a rotina disciplinar através do “diálogo”. Na
prática, caracterizou-se pela experimentação das mais diversas formas, jogando, sem
hierarquia, categorias, modos, disciplinas
e estratégias (desenho, hapenning,
performance, conceptualismo, cinismo, arquitectura, pintura de cavalete, graffiti,
barroco, minimalismo, design, primitivismo, escultura, banda desenhada, poesia,
cinema, música, teatro, reflexão, perguiça, deriva, fraude, absurdo).
Partindo de “Babel”, conceito que metaforiza a sociedade da informação, e em
resposta ao período de indefinições, de interrogações filosóficas, a teoria e a prática
homeostéticas assumem a incerteza como princípio, tendo isso em consequência o
reforço da intencionalidade do artista na captação dos referentes, ordenamento e
produção de novos sentidos. O principio da incerteza, questiona os critérios que
definem o valor da obra, e estende-se à critica e à historiografia da arte, em atitude
integrada numa vaga que defende o artista como entidade legitimadora (quer pela
própria obra, quer pela manipulação do campo artístico, quer pela produção de
teoria).
Na atitude homeostética está subjacente uma decepção face ao esquecimento das
funções sociais e formativas da arte em detrimento da sobrevalorização dos
mecanismos do mercado. À formação política e intelectual dos elementos do grupo,
168
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
não é alheio o impacto da revolução, cujos ideais, captados com a sensibilidade e o
inconformismo da adolescência, induzem uma ideia de sociedade (que de algum
modo se julgou poder concretizar). Esse impacto, faz-se sentir na ideia de
comunidade, de partilha, e dá origem a uma interacção que em várias circunstâncias
se traduz em produção colectiva e anónima, de caracter experimental e muito lúdico,
contrária ao individualismo promovido pelo sistema legitimador. A ambivalência
entre o ideal e a realidade (profissional), é patente nas muitas criticas e angústias que
os textos dos manifestos deixam escapar.
A decepção relativamente ao evoluir da sociedade portuguesa, ao campo artístico, e
ao ensino, traduz-se numa consciência critica que recorre retorsivamente à paródia e
à menipeia.
A paródia verifica-se na construção critica do meta-discurso, na
apropriação, desconstrução e reconstrução das diversas formas de linguagem
(icónica, literária, musical e outras), destituídas de hierarquia, excepto aquela que o
artista elege. A ficção artística abre a todas as utopias! Esta ideia é reforçada por
Arthur Danto, no seu “A Transfiguração do Banal”, quando refere o conceito dos
“Mundos Possíveis” (podemos substituir a ideia de que qualquer coisa é
metaforicamente verdadeira no Mundo Real pela ideia de que ela é efectivamente
verdadeira num Mundo Possível).
Outra constante da teoria homeostética, é a problemática da recepção da obra de arte
(“Trabalho hiper-culto para as massas”, diz Manuel Vieira num dos seus
manifestos). O homeostético, não é naif. Tem uma consciência nítida da
impossibilidade de “as massas” interagirem com “a arte” ( já nos anos 70, as
experiências de aproximação ao público por parte dos artistas do hapenning e da
performance dão origem às maiores controvérsias, pelo que Idalina Conde nos diz
em “ Percepção Estética e Públicos de Cultura: Perplexidade e Redundância”): “os
artistas” e “as massas” vivem em mundos que se servem de linguagens muito
diferentes. O homeostético sofre filosoficamente a consciência da impossibilidade de
conciliar esta diferença. É desse filosofismo que nasce o que parece gozo.
Daí que o seu trabalho se estruture no jogo das referências: na mistura de signos da
cultura erudita popularizada com os da chamada baixa cultura (Vieira), no
monumentalismo hermético de construções onde sentimos o fascínio pelo registo
169
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
gráfico das arquitecturas dos grandes impérios históricos (Brito), nas citações de
fragmentos identitários de estrelas da arte contemporânea (Portugal), nas figurações
pseudo narrativas de alusão pseudo antiga e recôndita (Proença), no recurso a um
pseudo primitivismo de suportes e de inscrições, próximo da “arte bruta” e do
gestualismo (Ivo), na pesquisa da plasticidade de materiais diversos com o objectivo
de indiscriminar a bi e a tridimensão (Xana).
A descodificação de um patchwork de referências (eruditas e/ou populares), exige
comunhão de património entre o artista e o espectador. Na ausência reconhecida
dessa comunhão, o artista mobiliza os recursos da menipeia: o humorístico, o
grotesco, o carnavalesco, pretendendo com esta estratégia uma aproximação mais
emotiva que rigorosa. Afastada a possibilidade de levar ao espectador a intenção do
autor propõe-se a retórica aplicada ao sistema das imagens, reavivando assim o
mecanismo da catarsis como estímulo à receptividade e à fruição. O emotivo, é um
dos critérios que legitimam a intenção estética, mas, se acreditarmos, como Jauss,
que as emoções podem alterar o comportamento (as ficções projectam-se sobre a
vida, diz Pedro Proença), a obra é também formativa.
A intima relação da arte com a filosofia (disciplinas que têm criado variadas
interdependências), tem as suas raízes na cultura grega, funda-se na especulação
sobre as relações entre a aparência e
a realidade. Dessa especulação, nasce o
conceito de arte (o simbólico nasce do mágico). O nó metodológico da filosofia da
arte enquanto actividade semântica, segundo Danto, reside na tese de que o objecto
possível da filosofia, não é o mundo, mas o modo como ele é visto e pensado. Para
ele, a marca do Modernismo é a ambição da autodefinição (Hegel, constata que a arte
já só se procura a si própria). Vê o culminar desta ambição nas Brillo Boxes de Andy
Warhol (na demonstração de que a diferença entre o que é e o que não é arte já não
pode assentar no visível): “Assim que os fazedores da arte se libertam da procura da
essência da arte assumida no arranque do modernismo, libertam-se da história,
entram na era da liberdade. Com o fim da história de arte, um conjunto de
imperativos é levantado à prática artística no ponto em que a arte entra no seu
momento pós-histórico.” (A. Danto: Narratives of the end of Art. /tradução minha ).
A designação diz do sentido da mudança de paradigma a que se assiste, e procura
170
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
responder aos sintomas manifestos nos conceitos que têm vindo a estruturar o
conhecimento e as representações.
Á semelhança dos autores abordados a propósito do conceito de “pós-modernismo”,
Danto parte do principio de que a Pop Art marca o inicio da arte pós-histórica. A
mudança filosófica da arte pós-histórica relativamente à arte moderna, é no sentido
da especulação: da diluição das fronteiras disciplinares, do comércio com outras
áreas do saber. A nossa abordagem permitiu-nos concluir acerca da transversalidade
dos conceitos e do que de familiar existe aos mundos da linguagem e da
representação. Toda a representação é precedida duma intenção (segundo Husserl, o
fruto da consciência é sempre consciência de alguma coisa). É esta estrutura
intencional que permite distinguir uma obra de arte. A estética do Belo e a do
Sublime, entram em crise quando o factor definidor da obra passa a ser a
intencionalidade ( o ductus homeostético).
Em resposta aos anúncios dos “finais da arte”, Arthur Danto defende a natureza
estruturante da narrativa. Acreditar em “fins” da arte, é acreditar que a história tem
uma estrutura narrativa, e que na narrativa estão implícitos conclusões e recomeços
(mas não a paragem). O que acaba, é cada narrativa.
É neste contexto que, nos anos 80, uma forte incidência sobre a estratégia da
apropriação vem determinar a maioria das teorias pós-modernas. Entre o sentimento
de perda (para uns) e a necessidade de recuperação (para outros), a apropriação
entendida dentro das fronteiras disciplinares é ainda uma prática legitimadora. A
leitura que o artista faz história da arte torna-se o argumento que legitima a obra. A
esta atitude (ensimesmamento da arte), designada de “autofagia”, a homeostética
propõe a “Continentalidade”, ou seja, que as artes se devorem umas às outras,
recorrendo ainda a tudo o que do exterior possa contribuir para o processo criativo.
Com a homeostética, a apropriação é uma estratégia para a captação de referentes,
com os quais se constróem polifónicas (Baktine) ficções visivas. A obra passa a
171
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
oferecer um cruzamento entre o visual, o musical e a poesia: dinamismo,
contaminação e homeostase.
A apropriação remete para a interpretação Uma obra de arte não existe enquanto não
for alvo de interpretação, podendo esta processar-se a dois níveis, conforme o
objectivo, o tipo de interpretantes e o grau de profundidade da mesma. Um primeiro,
perceptual e fenomenológico que aqui poderemos designar por recepção emotiva
parece responder ao que Danto designa de “interpretação artística” (como é
defendida por este autor, faz parte duma identificação e não deverá confundir-se com
a interpretação hermenêutica, pois não é explicativa, mas constituinte). Um outro,
implicando uma contextualização, exigirá o domínio de conhecimentos artísticos,
históricos, filosóficos, científicos e outros. Este último tem como objectivo não o
encontro com a intenção do autor, privada, inacessível, mas uma interpretação
contextualizada pela época, lugar e experiências, sendo que é o interpretante que
determina a sua interpretação. É neste quadro que situamos a apropriação como uma
forma activa de interpretação, contendo os actos de “desinterpretação, apreciação, e
transfiguração ou reenvio” (Arthur Danto: La transfiguration du Banal). Na
homeostética as condições de recepção são as mesmas, quer para o artista, quer para
o Outro. O que distingue o artista é a capacidade de dirigir e materializar a sua
intencionalidade.
A “Homestética”, foi uma trincheira no panorama das artes plásticas dos anos 80 em
Portugal, uma verdade incomunicada, por não ter parecido comunicável. Constituiu
uma dinâmica que impulsionou a carreira dos elementos do grupo. Volvidos 15 anos,
o seu discurso é amostra dum período de excessos e euforias, de crescimento e de
vontade.
Um dos motivos porque valeu a pena debruçar-nos sobre a “Homeostética”, teve a
ver com o facto de que trabalhar sobre indivíduos devidamente contextualizados é
mudar o ponto de vista cognitivo. Considerando o indivíduo portador de história, é a
própria história que desce à historicidade da praxis humana. Esta translação do olhar
172
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
implica a crença na intencionalidade e voluntarismo de indivíduos empenhados na
construção do presente e prospecção do futuro. Citando Ives Michaud (La Crise de
L´Art Contemporain) :
“ Ce n´est pas la demande sociale formalisée par des experts qui fait naitre les artistes (...)
Ce qu´il faut c´est que le besoin et l´envie exist vraiment, que des individus, des groupes
aient vraiment besoin de s´exprimer et de laisser leur marque, que certains ne puissent pas
faire autre chose qu´être “artistes” (...) Rien n´empêche ceux qui sont réelement attachés à
une forme d´art de la pratiquer, de la défendre, de l´encourager (...) L´idée d´une Grande
Esthétique pour une Grand Art est la machine fictive et terroriste destinée à nier cette
réalité plurielle des comportements artistiques et esthétiques”.
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Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
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ƒ
ALMEIDA, Bernardo Pinto de, “Depois do modernismo” in: Notícias da Tarde,
Porto 11/1/83.
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ÁLVARO, Egídio, “Os Portugueses na Bienal de Paris” in: Diário deNotícias,
Lisboa, 23/10/80.
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AZEVEDO, Manuela, “Depois do Modernismo” in: Diário de Notícias, Lisboa,
26/1/83.
ƒ
BELARD, Francisco, “Depois do modernismo” in: Revista Expresso, Lisboa,
20/11/82.
ƒ
GONÇALVES, Eurico, “Lis´79 Exposição Internacional de Desenho” in: Diário
Popular, Lisboa, 8/11/79.
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MAGGIO, Nelson di, “Lis´79 cai em zona cinzenta” in: O Jornal, Lisboa,
9/11/79.
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MAGGIO, Nelson di, “Num beco sem saída” in: O Jornal, Lisboa 21/1/83.
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MELO, Alexandre, “As Seis Partidas Do Mundo” in: Revista Expresso, Lisboa,
1/11/86, P. 43.
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MOURA, Leonel, “Documenta 7” in: Mais, nº18, Lisboa, 13/8/82, pp.46-48.
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OLIVEIRA, Emídio Rosa de, “A 5ª Exposição Homeostética” in: Semanário, 8
de Novembro de 1986, pag.35.
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PINHARANDA, João, “CONTINENTES” Pedro Proença, Pedro Portugal,
Xana, Manuel Vieira; Ivo, Fernando Brito” in: Jornal de Letras, Artes e Ideias,
Lisboa, 27/10/86, pag.21.
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PINTO, Cerveira, “Europa 79- A Arte dos anos oitenta” in: Diário Popular,
Lisboa, 18/10/79, pp.X-XI.
ƒ
PINTO, Cerveira, “O fim do modernismo em debate” in: Revista Expresso,
Lisboa, 8/1/83.
ƒ
PIRES, Porfírio Alves, “Do Juizo Pós-Final” in: Diário de Lisboa, 8/11/86, pag.
24.
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PORFÍRIO, José Luís, “A moda e o resto” in: Revista Expresso, Lisboa,
29/1/83.
ƒ
PORFÍRIO, José Luís, “Coisas Novas Para Ver” in: Revista Expresso, Lisboa,
1/11/86, pag.42.
179
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
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XAVIER, Edgardo, “LIS´79 uma Bienal contestada” in: A Tarde, Lisboa,
4/11/79.
180
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Artigos (Outros), em
Publicações
Colecções, Revistas,
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CONDE, Idalina “Bienais e artistas em Cerveira”, in Sociologia, Práticas e
Problemas, nº4, 1988.
ƒ
CONDE, Idalina – “Transformações recentes no campo artístico português” in A
Sociologia e a sociedade portuguesa na viragem do século (Actas do I
Congresso de Sociologia), 2º Vol., Lisboa, Editorial Fragmentos/ Associação
Portuguesa de Sociologia, 1988.
ƒ
CONDE, Idalina: “Problemas e virtudes em defesa da biografia”, in Sociologia,
Problemas e Práticas, nº13, 1993).
ƒ
CONDE, Idalina: Falar da Vida (I), in Sociologia – Problemas e Práticas,nº14,
pp.199 a 222, 1994.
ƒ
CONDE, Idalina: “Falar da Vida (II)”, in Sociologia – Problemas e Práticas,
nº16, 1994.
ƒ
CONDE, Idalina, “Contextos, Culturas, Identidades” in António Firmino da
Costa e José Manuel Viegas (orgs.), Portugal, Que Modernidade? , Oeiras, Celta,
1998.
ƒ
CONDE, Idalina: “Percepção estética e públicos da cultura: perplexidade e
redundância” in Idalina Conde (coord), Percepção estética e públicos da cultura,
Lisboa, ACARTE / Fundação Calouste Gulbenkian.
ƒ
DANTO, Arthur Coleman: “Narrative and Style” in: The Journal of Aesthetics
and Art Criticism, nº3, pp. 201-209, 1991.
ƒ
DANTO, Arthur Coleman:” A Future for Aestetics” in: The Journal of Aesthetics
and Art Criticism, pp. 271-277, Vol.51, Nº2, 1993.
ƒ
DANTO, Arthur Coleman: “Art after Art” in: Art Forum International, Vol. 31,
nº8, pp. 62-69, Abril 1993.
ƒ
FEATHERSTONE, Mike: “Moderno e pós-moderno” in Sociologia, Problemas e
Práticas, nº8, 1990
ƒ
FRANÇA, José Augusto, “Le fait artistique dans la sociologie de l´art” in
Colóquio Artes, nº17, 1974.
ƒ
GONÇALVES, Rui Mário, in: Portugal, nas artes, nas letras, nas ideias: 19451995, Publicação do Centro Nacional de Cultura, Lisboa 1998.
181
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
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LYOTARD, Jean François: “Reponse à la question: Qu´est que ce le Postmodern? In Critique, 419 (1982), pp. 357-367.
ƒ
MILLET Catherine, “Ce n´est qu´un début, l´art continue”, in Art Press n. esp.
13 [1992], p. 8-16.
ƒ
MOULIN, Raymonde: “De l´artisan au profissionel”; in Sociologie du travail,
nº4, 1983.
ƒ
PINHARANDA, João Lima: “O declínio das vanguardas nos anos 50 ao fim do
milénio” in: História da Arte Portuguesa (dir. Paulo Pereira), Volume 3,
Editorial Círculo de Leitores, Temas e Debates, Setembro 1995.
ƒ
PINHARANDA, João Lima: A exposição dos anos 80, in: , Artes e Leilões, Nº3,
Lisboa (Fev. Março 1990), pp. 20-28.
ƒ
PINTO, António Cerveira: “A arte não é um conceito, mas um sentimento
conceptual”, In Artes e Leilões: Nº 23 Lisboa (Dez. 1993-Jan. 1994); pp.75-79.
ƒ
RAJCHMAN, John: “Post-Modernism in a Nominalist Frame” in Flash Art,
nº137, 1987.
ƒ
RORTY Richard: “Habermas, Lyotard et le Post-modernisme” in: Critique, 442
(1984), pp.181-197.
ƒ
RORTY Richard: “Post- Modernism Bourgeois liberalism”, in The Journal of
Philosophy, Vol. LXXX (1983).
182
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Catálogos de Exposições
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“Aspectos da Arte Abstracta 1970-80” - Sociedade Nacional de Belas Artes,
Janeiro, 1982.
ƒ
“Depois do Modernismo”- Sociedade Nacional de Belas Artes, Lisboa, 7 a 30 de
Janeiro, 1983.
ƒ
Exposição de Arte Moderna 82 – Sociedade Nacional de Belas Artes, Lisboa,
1983.
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“1ª Exposição Homeostética” – Escola Superior de Belas Artes, Lisboa 1983.
ƒ
Um Labrego Em Nova Iorque - Escola Superior de Belas Artes, Lisboa 1983.
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“Se Em Portimão Houvesse Baleias” - Portimão, Galeria Quarto Crescente, 1984
ƒ
“Novos-Novos” - Sociedade Nacional de Belas Artes, Lisboa, Set.- Out. 1984.
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“Arquipélagos”- Sociedade Nacional de Belas Artes, Lisboa.
ƒ
“Educação Espartana” - Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, 1986.
ƒ
“Continentes” - V Exposição Homeostética” - Sociedade Nacional de Belas
Artes, Lisboa, 1986.
ƒ
“Lost Paradise” – 1999
183
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
Outros
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CAVALHEIRO, Pedro: “Biografia não autorizada de Manuel João Vieira”,
(Excerto de manuscrito original), 1999/2000.
ƒ
LYOTARD, Jean François, “Cahiers de Vincennes”, 1975 (informação retirada
da Internet por Pedro Proença, e que me foi gentilmente cedida – não tenho
referência do site).
184
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
ANEXOS – Índice geral
Entrevistas
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Com Pedro Proença
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Com Fernando Brito
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Com Ivo
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Com Pedro Portugal
Exposições e Textos de Catálogo
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[P em folheto/Catálogo ] ONZE ANOS DEPOIS
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[P em folheto/catálogo] 1ª EXPOSIÇÃO HOMEOSTÉTICA
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[P em folheto/Catálogo] UM LABREGO EM NOVA IORQUE
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[NP] UM LABREGO EM NOVA IORQUE (versão B)
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[P em folheto/Catálogo] SE EM PORTIMÃO HOUVESSE BALEIAS
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[P em panfleto] EDUCAÇÃO ESPARTANA
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[NP] EX-CURSÕES HOMEOSTÉTICAS
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[NP] Projecto para texto sobre os CONTINENTES (1986).
Artigos da Crítica
Manifestos
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PROCLAMAÇÃO NEO-CANIBAL (P. Proença, 1982)
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MANIFESTO HOMEOSTÉTICO (P. Proença, 1983)
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MANIFESTO (M. Vieira, 1983)
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MANIFESTOS (PARA USO PESSOAL) (P. Proença, 1985)
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SEGUNDO MANIFESTO PARA IMPESSOALÍSSIMOS ABUSOS (P. Proença,
1985)
185
HOMEOSTÉTICA
Artes Plásticas em Portugal – Geração de 80
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FRAGMENTOS DE UNS MANIFESTOS JAMAIS PROJECTADOS (P. Proença,
1985)
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MANIFESTO PARA A VEGETARIANIZAÇÃO DO PENSAMENTO (P. Proença,
1985)
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MANIFESTO F.B. (F. Brito, 1985)
ƒ
MANIFESTO SOBRE O ESTADO DA NAÇÃO (P. Proença, 1985)
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CULTURA NACIONAL a bem ou a mal da nação (P. Proença, 1985)
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ÚLTIMO MANIFESTO (P. Proença, 1988)
ƒ
MARMÓREO ODEON OU MAIS UM MANIFESTO PÓSTUMO DANDO
CONTA DE VELHAS PREOCUPAÇÕES (P. Proença, 1989)
Teoria Homeostética
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