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COMISSAO PROVINCIAL DE ETNOGRAFIA E HISTORIA DO DOURO LITORAL ( HR IE A) I POR ARMANDO DE MATTOS LICENCIADO EM Cl~NCIAS HISTÓRICAS E FILOSÓFICAS DA ORDEM MILITAR DE SANTIAGO DA ESPADA DIRECTOR DOS MUSEUS MUNICIPAIS E BIBLIOTECA PÚBLICA DE GAJA VOGAL-SECRETÁRIO DA COMISSÃO PROVINCIAL DE ETNOGRAFIA E HISTÓRIA DO DOURO LITORAL • EDIÇÃO D., JUNTA DE PROVlNCIA DO DOURO LITORAL PORTO -1 94 0 EX-LIBRIS O BARCO RABELO COMISSÃO PROVINCIAL DE ETNOGRAFIA E HISTÓRIA DO DOURO LITORAL (SERIE A) I TRABALHOS DO AUTOR 1927-;. O qu,e é o ex-libris? 1928- A flor de liz na heráldica portuguesa. . 1929- O Brasão de João d3.1> Regras; As armas da cidade do Pôrto. 1930- A heráldica e a genealogia ; A heráldica nos Lus!adas; A casa de Mateus. 1931- As armas da capela dos Coimbras; A psicologia do ex-libris; Uma rel!quia sigilar; O brasão; A mercê-nova de Lopo Rodrigues Camelo; As pedras-de-armas do Museu Municipal do Pôrto. 1932- A tradição popular do trevo; Tombo heráldico de Vi seu; A varonia real portuguesa; Desperd!cios- I. 1933 - Os castelos das armas nacionais; O Pôrto histórico; O Desterrado ; O timbre dos Peixotos; A lenda do rei Ramiro e as armas de Viseu e Gala; A heráldica dos Braganças; O relicário de S. Máximo. 1934- Comentários heráldicos; Notas heráldic3.1>; Os ,e smaltes limosinos do Museu Nacional de Soares dos Reis; Nótula sôbre as armas do Funchal; A margem da numismática; Um testemunho heráldico; As armas dos Pears no Armorial português; Brasonário de Portugal; Sêlo, armas e bandeira do Munic!pio de Vila Nova de Gala. 1935 ~A-propósito-do meio tornês de D. Fernando I; As armas dos Magriços; As armas dos L ousadas; O passado da Associação Comercial do Pôrto; A representação oficial do Museu Municipal de Azuaga no I Congresso Nacional de Antropologia Colonial; Tr!ptico de heráldica eclesiástica; Heráldica luso-dinamarquesa; Alvaro Anes de Cernache. 1936- Manual de Heráldica portuguesa; O ex-libris; Turismo em Portugal ; Ainda as armas do Pôrto; Mestre Teixeira Lopes; As bandeiras dos Sindicatos Nacionais e das Casas do Povo; Um verbête de bibliografia art!stica; As armas-novas de Duarte Pacheco Pereira ; O simbolismo heráldico das armas nacionais do Brasil. 1937- As estradas romanas no concelho de Gaia; Santo Antônio de Lisboa na tradição popular ; Catálogo da Municipal Casa-Museu de T eixeira Lopes (I- A obra do Mestre); A lição de Aljubarrota; «Cada terra com seu uso .. .». 1938 -As armas dos Noronhas; Uma inscrição romana; Do enxaquetado; Mapas de ponto-de-cruz; Duas notas heráldicas; Um capitão-mor da cidade do Pôrto; Mosaico (I série); A sacro-militar Ordem da Mercê; O tenente Valadin soldado do Impé1io; A Liga Colonial Portuguesa. 1939- Uma nótula beneditina; Sá da Bandeira; Arte e história; Evolução histórica das arma!; nacionais portuguesas. 1940 - O barco rabelo. O BARCO RABELO POR ARMANDO DE MATTOS LICENCIADO I!M CI~NCIAS HISTÓRICAS I! FILOSÓFICAS DA ORDI!M MILITAR DI! SANTIAOO DA !!SPADA DIRI!CTOR DOS MUSI!US MUNICIPAIS I! BIBLIOTI!CA PÚBLICA DE OAIA VOOAL·SECRETÁRIO DA COMISSXO PROVINCIAL DE ETNOGRAFIA E HISTÓRIA DO DOURO LITORAL No prelo 1 Armorial do império brasileiro; A heráldica dos bastardos reais; O sentido histórico das armas de Portugal ; Catálogo da Municipal Casa-Museu de T eixeira-Lopes (II- Tra ba lhos e r ecordações de Soares dos Reis); Pirotecnia Popular; Registo Genealógico. I• preparação 1 Rurália (Etnografia); A nobreza em Portugal; Inventário heráldico do Pôrto e seu têrmo; O castelo de Gaia; Desperd!cios-II; Jugos e cangas do Douro-Litoral. Publicaçães periódicas 1 Arquivo Nacional de Ex-libris; Estudos Nacionais (Sob a égide do Instituto de Coimbra e com diversos louvores oficiais) ; Pátria portuguesa de cultura); Museu; Publicações da Dlrecção dos Museus Municipais e Biblioteca Pública de Gala. • EDIÇÃO DA JUNTA DE PROV IN CI A DO DOURO LITORAL PORTO- 1940 r.r.~~~~-I'V~~~~~-n~~~Nfi~~~~~~~~- ec.A ·· l(~\v\t0 'OvAl?. te.~~ ·oo . . . J? '~' -o· ,.-F\C ~\~ Capa de José Luiz Desenhos de Mirão e Fotografias de Alvão amàvelmente cedidos pelo INSTITUTO DO VINHO DO PORTO - COMPOSTO I! IMPRI!SSO NATIPOGRAFIA SEQUI!IRA, LIMITADA Rua José Falclo, r22 - PORTO I -------- PREFACIO PREFACIO Dispõs~se muito acertadamente no Código Administra~ tivo de 1936 que as juntas de Província tinham atribuições (art. 258}: « 1. o - 2. 3. 0 0 - De fomento e coordenação eco nó mica; De cultura; De assistência». No uso das atribuições de cultura, pertence às Juntas de Província deliberar (art. 260): Sôbre a criação e manutenção de museus de arte regional e arquivos provinciais; 2. 0 - Sõbre a recolha, inventariação e publicação das tradições populares regionais e mais floclore das províncias; 3. 0 - Sôbre os inventários das relíquias arqueológicas e históricas dos monumentos artísticos e das belezas naturais existentes nas províncias; 4. 0 - Sôbre a conservação e divulgação dos trajes e costumes regionais; 5. 0 - Sôbre o auxílio a conceder a associações ou ins~ tituições culturais da província; «1. 0 6." - Sôbre o estudo das formas dialectais existentes na província ou em parte dela». Para se dar cumprimento ao disposto na lei, o vogal efectivo da Junta de Província do Douro Litoral, Ex.mo Se~ nfwr Dr. Mário Augusto Cardia Pires, propôs que se fizesse um inquérito sôbre as tradições populares e se publicassem os elementos que viessem a ser colhidos. Aprovada a proposta, resolveu a Junta nomear uma Comissão de Etnografia e História, à qual compete a tarefa da colheita e das publicações. Abundam já os elementos recolhidos pelos membros da Comissão e pelos auxiliares nomeados nos diferentes conce~ lhos, elementos que se irão registando no próximo Boletim da Comissão Provincial de Etnografia e História, denomi~ nado «Douro~Litoral». Não quis, porém, a Comissão ficar por aí, correspon~ dendo assim ao -carinho com que sempre foram recebidas as suas sugestões e à confiança depositada nos membros escolhi~ dos pela Junta, e projectou desde logo elaborar algumas mono~ grafias e promover a publicação de trabalhos, que, embora organizados por outros etnógrafos e arqueólogos, dissessem respeito a assuntos de interêsse para a Província. Constituirão, portanto, essas publicações, duas séries (AeB). Tendo reünido dados preciosos sôbre o barco rabelo, rom~e agora a marcha o Dr. Armando de Mattos, escritor ~patxonado e incansável, cuja actividade, competência e amor é1 Terr~, .o impuseram para Realizador Oficial da Exposição Etnogr~~tca do Douro Litoral, incluída nas comemorações centenanas do próximo ano de 1940. E a obra, como era de tôda a justiça, abre por uma homenagem aos membros efectivos da Junta de Província que: em boa hora, procuraram dar corpo ao belo sonho con~ cebtdo pelo legislador. Novembro de 1939. O Presidente da Comissão Provincial de Etnografia e H istória da Douro litoral, Jfugusto Cé•ar "Ires de .Cima. f Aos Excelentruimos Senhores Dr. Antónío de Almeida Garrett Dr. Mário Augusto Cardia Pires Eng.o Tomaz Joaquim Dias Dr. Alfredo Morais de Almeida Presid ente e Vogais da Junta de Provinci a do Douro l itorol em respeitosa homenagem. DUAS PALAVRAS DUAS PALAVRAS O estudo das lembranças fluviais, no complexo do.s assuntos etnográficos, constitue um dos seus capítulos mai.s curiosos e sugestivos, especialmente no que se refere às em~ barcações. É que êsses meios de locomoção aquática são remenis~ cências admiràvelmente valiosas das civilizações passadas, documentos bem expressivos da actividade humana, pro~ curando, desde sempre, deslocar~se à superfície do globo num desejo natural de encontrar ambiente mais propício à sua adaptação, para assim, e por sua vez, procurar vencer a terra~ -mar. Basta não esquecer que, no princípio, a humanidade foi nómada. Neste trabalho de feição etnográfica, que a Comissão Provincial de Etnografia e História do Douro Litoral quis honrar, levando~o a editar~se cuidadamente, a bem da difu~ são da mais viva característica etnográfica de uma das mais valiosas províncias de Portugal_ procurei esquiçar, tam niti~ damente quanto me foi possível. o perfil da mais típica e sugestiva embarcação dos rios nacionais: o rabelo, barco do Douro. Na série dos barcos que andam em uso nos rios por~ tugueses, onde se encontram exemplares dignos de verda~ reiro aprêço, êste de que me vou ocupar, é, sem dúvida, o que mais se distingue pelo seu todo estranho, bem longe do século febril em que vivemos. Destaca~se aos olhos do viajante que venha até ao Douro. Encanta o sequioso de aspectos e emoções novas; deslumbra os paisagistas; seduz a curiosa observação do etnó~ grafo, que nêle repare alguma vez, com a atenção merecida. Com o valor tradicional que lhe dá a sua existência de centenas de anos, num mesmo vaivém de subir e descer o mesmo rio: de fazer sempre as mesmas manobras; de passar da mesma forma os pontos difíceis de transpor; de animar com os mesmos movimentos a paisagem agreste do Douro: o barco rabelo integrou~se, absolutamente, na fisionomia das terras durienses. Embora de origem distante, o Douro perfilhou~o, numa egoísta conveniência e, por isso, lhe mantém a rude contex~ tura. A faina diária de alguma maneira lhe dominou as águas selvagens. E as margens milagrosas do vinho~fino, que êle visita diàriamente, encontram no rabelo a maneira cômoda e bizarra de mandar até ao empório exportador a sua produção divina. A serenidade e o alheamento do seu porte ao cortar as águas sombrias do rio, num aspecto tam primitivo, na sim~ p/icidade da sua apresentação, obriga o nosso espírito, ávido de notícias, a desejar saber de onde veio o barco rabelo; a conhecê~lo nos pormenores da sua construção; nas minúcias da sua nomenclatura; leva~nos a inquirir dos seus tripulantes; a apurar dos seus usos, crenças e tradições. A minha observação, prendendo~se a êste curioso exem~ piar de etnografia fluvial, encontrou nêle razões várias, jus~ tificativas da melhor análise e fundo comentário. Procurando saciar, na minha universal ânsia de saber, esta curiosidade natural que sempre me domina, desde que atentei pela vez primeira no barco rabelo, fui observando; acrescentando reparos; coligindo observações; investigando notícias; · .. e assim surgiu o material preciso para êste ensaio. . Creio que êle ganhará o interêsse do leitor, pelo pró prro encanto do rabelo, que não pelos primores do meu estilo. O DOURO I O DOURO O rio; seu curso; as margens; o clima; tra~ dições do Douro; o vinho fino; rio de mon~ tanha; os pontos. Nasce o Douro perto da serra Cantábrica de Orbion, na Castela Velha; corre pelas terras leonesas e sempre para ocidente, cortando o relevado nordeste peninsular, até encon~ trar as ondas atlânticas. Atravessa montes e serras, num esfôrço veemente para achar caminho, razão por que as águas se precipitam, por vezes agitadas e violentas, em fundos vales ou entre alcan~ tiladas escarpas. Seu leito é pedregoso e desigual, obrigando a corrente a ferver e a espumejar em cachoeiras e saltos sem conta. As águas sombrias e indomáveis mal deixam reflectir em si a linha cimeira dos serres adustos que lhes fazem sen~ tinela. Nas margens abruptas - altas ondulações terrosas - 26 O BARCO RABELO apenas alveja de longe a longe, fora dos povoados, a pincelada branca de algum casal. Quebra a serenidade grandiosa daquele quási bíblico silêncio, a bênção cristã de um toque de matinas ou trindades, anunciadas, em humilde alegria ou em calmo recolhimento, pelas ermidinhas perdidas nas alturas dos montes. Por vezes, revoadas de pombas riscam o céu com o sedoso ruflar das suas asas. É uma nota delicada da natureza a contrastar com a áspera majestade da paisagem. ... ... ;:: E <ll ...E x....... o "'....:::> u O Douro é um rio de velhas tradições. Já os nomes clássicos de historiadores e geógrafos gregos e romanos se lhe referem em prosa e verso. Nas letras nacionais, sem número foram aqueles que lhe têm dedicado sua atenção, incluindo Camões, o grande génio da Raça, que por isso lhe chamou o Douro celebrado. Em tempos idos, foi natural fronteira luso-calaica; e, de certa maneira, limite temporário da civilização romana no seú desenvolvimento para o norte. Bem próximo do seu curso acidentado e até à vista das suas águas, floresceram cidades e povoações de alto nome há cêrca de vinte séculos! Basta citar Numância; a celebre Presídio; a discutida Calle! Seu nome anda ligado a algumas das mais velhas lendas da nacionalidade, em constante evocação de alevantados sucessos dos tempos medievos. É folhear, ao acaso, os pergaminhos dos velhos tombos da grei! 8 :::> o ~ o Q o O BARCO RABELO • 27 Porém, no nosso tempo, a razão que lhe dá alta sober~ bia é de outra ordem; mas o contributo de valor que desde há três séculos traz ao orgulho nacional não é menor. Tem a glória de cortar uma região excepcionalmente dotada pela Providência de um tam grande número de con~ dições admiráveis, que lhe foi possível dar ao mundo um dos seus melhores vinhos, um daqueles vinhos cuja fama devia igualar a do Falerno dos tempos áureos de Roma. Essa preciosidade, verdadeiro néctar, quando nos pri~ meiros séculos da nacionalidade já era possivelmente embar~ cado com outros vinhos para os portos do norte da Europa, chamava~ se vinho de Portugal; mais tarde (no século XVII), era o vinho do Douro e mais tarde ainda, com o Marquês de Pombal. o vinho da Companhia- ou o vinho fino, perante as suas qualidades fidalgas; e hoje, finalmente, corre todos os continentes, em meio de invejosa concorrência, com o rótulo bem regional de Vinho do Pôrto. Produto~maravilha, nascido de um verdadeiro milagre da terra e do clima; castas de videiras há séculos aclimatadas sôbre geios ou calços, que escalonam as encostas à semelhança de um estádio monstro; terrenos pré~câmbricos e xistosos; no verão, um calor de fornalha; o frio , o vento, o gêlo, a tem~ pestade, no inverno! 28 O BARCO RABELO Como rio de montanha, o Douro é de navegação difícil. Não o vence qualquer embarcação, nem o governa qualquer mestre. Um mesmo e único tipo de barco se encontra, atra~ vés dos séculos, em seu laborioso tráfego e, assim mesmo, à custa de longa e penosa experiência. Já os antigos diziam , com razão e conhecimento de causa, que era rio de mau navegar. A sua corrente alterosa é permanentemente violenta, e só abranda em frente a Melres, já próximo do Pôrto. O acesso do rio é difícil pelos inesperados perigos que surgem, em constante variação de local e dependente do regime das águas, sendo inúmeros- pois são mais de duas centenas, entre os de mor e menor monta -os pontos, rápi~ dos, cachões e galeiras, que se multiplicam pelo seu curso, o que fêz dizer ao poeta «mil pontos, mil quebradas». Têm nomes com ressaibos de outras idades e que se tornam bárbaros para os ouvidos de quem não conhece a sua mais que sinuosa corrente. Por vezes piedosos, por vezes pitorescos, mas sempre bem expressivos da alma da região. Vejamos alguns para exemplo, subindo o curso do rio : Retorta, Guarda~Três, P edras da Sr. 4 da Cardia, Couca de Torneiros, Pedraça, Vazeiro, Fiéis de Deus, Escarniche, Gonçalo Velho, Quebra Mastros, Sete Rios, Gorça, E stacão, Bula, Sizalde, ]ovasim, Cadão, Anchoras, Pelame, Pedras do Bispo, Caramuncho, Sermenha, Corvaceira, Junqueiros, ólho de Cabra, Cachucha, Malvedos, Rapa Velha , Valeira , Torrão •VILA POUrADEACUiM MIRANDtLA ) • VIlA NOVA Dt; ~AMALICÂO AMAAf:.NT t y PENAr:ltl • MOÍMENTA • RODRÍCO \ \ \ "'-...... O BARCO RABELO 29 de Murça, Saião, Tulhas, S. Simão, Ilha de Garças, Jangada, Canais dos Frades, Salto da Sardinha, etc. Muitos dêstes pontos estão sob a protecção de santos, que, esculpidos ou pintados em factura rude, lá do alto das penedias, são valioso socorro aos marinheiros do Douro quando enfrentam a viveza das águas. ~ a Senhora do Carmo, a Senhora da Boa~ Viagem, em frente a Barqueiros; S. José, em Aregos; Nossa Senhora da Cardia, depois da Pala; no Tojal, a Sagrada Família, etc. Opondo~se aos pontos, encontram~se poços ou fundões, que os antecedem, e que são como que «lagos remançosos e dormentes», que os rabelos vencem com a voz do mestre, gri~ tando «rema que é poço», se não há vento que os faça mover. O BARCO RABELO 11 O BARCO RABELO A) B) Sua antiguidade; origem; viking?; Mediter~ rânico?; Influências romanas; Primeiras re~ ferências históricas; As Leis da Companhia; O rabelo, complemento da paisagem du~ riense; O rabelo, símbolo heráldico; Os esta~ leiros; Tonelagem; Matrizes e trafegueiros; Nomenclatura; Outros barcos do Douro: O saveiro e o rabão. t Desde quando é que o barco rabelo navega nas águas do Douro? l Que povo o trouxe? lQual a cultura a que pertence? São problemas que surgem logo de princípio quando procuramos estudar êste barco e, para responder aos quais, apenas poderei indicar leves indícios, vagas referências, mas que, a-pesar-da sua insignificância, alguma coisa nos dei~ .xarão no espírito, como subsídios para nos ajudarem a colo~ 3 O BARCO RABELO cá-lo no tempo e no espaço. Será isso o primeiro passo para lhe buscar a velha origem. Num primeiro exame ao aspecto geral do rabelo, temos de concluir que estamos em presença de uma embarcação de procedência longínqua. C1l ..c: c C1l ;::: o 8 C1l 8 C1l .... :> !'l "'o ·~ ~~ 1 "'"'o o ..c: c ·;; .,o o ~~ co ~ f-· O barco rabelo De-facto assim é; assim tem de ser. Sujeitando-o ao confronto com diversos barcos clássicos do Mediterrâneo oriental especialmente, essa opinião parece confirmar-se. Porém, recordando que quási todos os outros barcos fluviais e · do litoral norte português, são de origem nórdica, temos de reconhecer quam curiosa seria a hipótese de vermos no rabelo a única embarcação fluvial a fazer excepção. ~ste reparo pode ter importância para o problema, visto que topamos em Shulten com a notícia de um barco do norte C1l z O BARCO RABELO da Europa. semelhante, nas suas características mais salientes, ao rabelo. Se é certo que em algumas embarcações do Mediterrâneo oriental encontramos o leme do barco manejado directamente do castelo do comando, tal qual como no barco do I I Topografia do cabelo Douro, a notícia de uma embarcação idêntica entre os povos do norte complica o raciocínio a seguir. Verdade seja que não é completamente impossível ligar estes dois factos se atendermos a que aquêles barcos são à vela, embora tenham a ajuda de remos . Não impede esta referência o citar que, emquanto a generalidade das embarcações mediterrânicas usavam como lemes as duas pás, os barcos do norte, só empregavam um rêmo. 1:! curioso apontar que, entre os vikings. êste leme era auxiliado pelos remos, tal qual como acontece nos rabelos. O BARCO RABELO O BARCO RABELO Ora, a navegação à vela considera~se ongmana do Mediterrâneo. Assim, se vem do norte um barco, com vela, temos de lhe reconhecer a origem oriental, ou pelo menos uma grande influência sua, pôsto que essa expansão se tenha dado numa época ainda muito recuada. lDe resto, a comunidade de velas, no norte e no sul, não terá essa explicação? Os tartessos foram os primeiros que navegaram para o norte, e não os fenícios , sendo, mesmo, os percursores dos frísios, saxões, normandos e anseáticos, como bem deduz Shulten, com a sua reconhecida autoridade. ~les usavam velas como os cretenses e outros navegan~ tes do Mediterrâneo, o que pode explicar, de maneira bem lógica, o aparecimento dêste meio de locomoção aquática, nos mares do norte. E curioso é também registar ainda que êste mesmo povo, juntamente com as velas, empregavam os remos ( 1 ). Apesar~desta atribuição da origem da navegação ã vela, note~se que as embarcações nórdicas aproveitavam muito mais o vento do que as suas congéneres do sul, que se auxiliavam sempre com a fôrça dos remos. É a diferença que vem de navegar no Atlântico ou no Mediterrâneo. O barco inicial do Douro, o barco aborígene, digamos assim, forrado com peles de animais, tal como foi usado pelos tartessos, oestrímnios, e outros povos pre~romanos da Penín~ sula, mas especialmente pelos primeiros, veio, certamente, senão a ser substituído, pelo menos muito influenciado pelos povos navegadores do norte. Esta influência, no ocidente peninsular, documenta~se bem, segundo o testemunho de Pokorny, que, referindo~se aos já citados barcos de couro dos Tartessos, diz « ... são um produto dos habitantes precélticos da Irlanda, que os celtas chamavam Fir~bolg, isto é, homens dos barcos de pele». Ora, da mesma natureza, como já disse, eram os barcos anteces~ sores do rabelo no Douro. 36 ( 1) O que não poderiam dispensar, visto que a vela que usavam era só para aproveitar o vento de pôpa. A navegação à bolina foi des~ eoberta pelos portugueses, séculos depois. 37 O rabelo é barco de fundo chato O qu e e· certo é que aos barcos de couro sucederam os de _ madeira e nã o menos certo, que estes, pela ' maneira como sao construídos, são do norte. . I?epois, com os romanos, e já com os outros povos onentats que por aqut. passaram e se fixaram outras caracte~ • rísticas teriam su rgt·d o, aper f etçoan . d o a adaptação ' dad d às necessi~ es a navegação do curso difícil do Douro. · O BARCO RABELO 39 O BARCO RABELO 88 Te mos de reconhecer a possíveL a necessana ances~ tralidade nórdica, ainda pela dificuldade que havia em ada~ ptar um barco oriental. embora de uso fluvial. mas sempre de um rio de planície, ao Douro, que é um típico rio de montanha. Do oriente, vem, talvez, o testemunho morfológico e o vélho eco do Latio na actual nomenclatura do rabelo. . Quanto à vela, é quadrada, formato comum aos barcos do norte e do sul. Porém, quanto aos mastros, novo reparo se deve fazer. Os primeiros só usaram um , emquanto que os segundos usaram também um mastro à proa. Analisando os remos. possivelmente ainda iguais aos primitivos usados no barco do Douro que é assunto dêste ligeiro ensaio, e aplicando~lhes o critério erudito e profundo A sua construção é a denominada Clinker built E, desta natureza, são em geral todos os rios do no-rte da Europa. Como barco de rio de montanha, o rabelo não tem qui~ lha. ou melhor, transformou~se em barco de fundo chato; além disso, a maneira da sua construção, de tábuas sobre~ A pá usada no rabelo postas- tábua trincada- é nórdica (seguiu a que os inglê~ ses chamam, segundo Van Loon, Clinker built, em oposição à do Mediterrâneo. que é denominada Carvel built), como bem se pode observar nos exemplares de embarcações vikings que se conservam no Museu de Oslo. O taburno ou coqueiro de Graebner, vemos que êles se integram, de algum modo, n~ grupo que parece proceder de povos com tradições toté~ mtcas. Isto é um elo a prender o rabelo à cultura do mundo antigo mediterrânico e oriental. Há ainda, nos barcos vikings. o facto de não terem convés. Apenas apresen tavam co b erta. uma especte . . de camara, _ quando se deslocavam com mulheres e crianças. Temos nós. no rabelo• o ta burno ou coquetro, . que bem pode ser uma remeniscência d essa camara d os barcos dos homens do norte. 40 O BARCO RABELO i Que contraste o da singeleza do rabelo, na sua con- textura rude e tôsca, cujos moldes se perdem no rasto das embarcações de outras eras, com a nobre velhice da sua ilustre prosápia! Estrabão, o grande geógrafo grego, é o primeiro a fazer referência aos barcos do Douro, dizendo que êste é navegado no seu longo curso por grandes embarcações ( magnis scaphis) (1 ). Já no século IX, nos fala das embarcações do Douro, a doação de Ordonho 11, dada em Crestuma e inserta no Livro Preto da Sé de Coimbra. Depois, já formada a nacionalidade, são muitos os documentos que se referem ao barco do Douro, ao rabelo. O foral de Gaia, do século XIII, por exemplo, cita as barcas do vinho e os navios de rio e mar. No Rol dos Direitos do Mordomado de Gaia, fala-se no direito das barcas taverneiras, que eram aquelas que traziam o vinho para vender ou dentro das quais se vendia o mesmo vinho, e de que ainda hoje se encontram restos perto do Carvoeiro e de Cebolido, onde os marinheiros vão matar o bicho. Já vem de longe, como se vê, a utilização da comunicação fluvial para o transporte dos vinhos do Douro. (1) Esta referência de Estrabão é bem esclarecedora de que eram grandes embarcações, portanto, embarcações do mar. o o o co u .... co "O ..0 . a w O BARCO RABELO 41 0 barco rabelo passou, propriamente, a ter a sua iden~ tidade bem definida, em 1792, quando a Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto ~Douro. publicou os alva~ rás e mais documentos que se relacionavam com a notável instituição pombalina. Nessa publicação, conhecida vulgarmente por Leis da Companhia, encontram~se preciosos informes, referentes tanto ao barco como aos seus tripulantes, como ainda ao tráfego a que se destinavam. Ficamos assim informados de que uma disposição legal, de espírito previdente e prático, em alvará de 16 de Dezembro de 1773, limitou o tamanho dos barcos, que estavam a aumen~ tar de tonelagem, levando cada vez mais pipas, o que trazia maiores riscos de naufrágio. Para evitar o perigo na nave~ gação, ainda em 1803, por outro alvará de 24 de Dezembro, era vedado o poderem navegar de noite, e o desrespeito pelas marcas, que eram os sinais gravados nas penedias das mar~ gens e que indicavam a altura das águas, para assim regu~ larem a carga. Ao descer o rio, os rabelos traziam o vinho do Douro; nas torna~viagens, levavam munições e fardamentos para os corpos do exército da Beira e Trás~os~Montes. Constituíam. no passado, senão o único meio de transporte entre o Pôrto e as terras de riba~Douro , pelo menos o mais acessível. O BARCO RABELO Inalterável na forma durante séculos e séculos, (que não lhe consente laterações o rio de águas tumultuosas que é o Douro) o deslizar do barco rabelo é solene, majestoso no equilíbrio do seu conjunto, com grandeza no aparato rude da sua arquitectura. O casco, de madeira ordinária, é feito ao jeito das águas sombrias do rio, que mais ressolham quando a espadela canta. A vela, de linho humilde. entrega, confiadamente, os seus destinos aos desígnios de Deus. O colorido sóbrio e pitoresco do barco, a bizarria dos trajes dos marinheiros, a grandeza da paisagem, tudo se con~ grega para que no nosso espírito alguma coisa fique marcado indelevelmente. Quando os rabelos surgem nalguma curva do rio, des~ cendo a corrente, quer isolados quer acompanhados- as esquadras. como lhes chamam - imperturbáveis na sua mar~ cha quási processional. temos a sensação estranha de estar contemplando uma frota da antiguidade clássica ou dos alvo~ res da meia idade, forçando uma passagem, tentando um desembarque, e vem~nos então .à mente a história quási len~ dária do vélho burgo portucalense, destacando da névoa do tempo e da memória humana a gloriosa armada dos gascões ou as naves do rei Ramiro . Ou , se adrega de ser algum carvoeiro, que demanda , o que é mais raro, quási sempre solitário, os Guindais, como um enorme carvão, negro desde a linha de água ao alto da vela. e sua mancha escura, que as águas vão levando, tem um ar triste de balada, um ar quási trágico, que impressiona e 8 ::.1 O BARCO RABELO 43 nos leva até ao brumoso país de Gales, do século VI. a assis~ tir à fúnebre viagem do cavalheiresco Artur, para a ilha de Avalon, a encantada; ou nos faz evocar aquela galera, que de Castela nos veio pedir auxílio contra o Rei de Marrocos, no tempo do nosso D . Afonso III , e que , para maior persua~ são. trazia velas negras! Pelo seu todo, a um tempo majestoso e bizarro, é que o rabelo é a mais típica das embarcações fluviais portuguesas. Diz Sousa Costa, e com razão, que «nada o excede em no~ breza, como nada o iguala em pitoresco». Como os da Ria de A veiro e seus congêneres da costa da Caparica, é, sem dúvida, o núcleo português mais digno de interêsse; porém, o rabelo, dentre todos, toma um lugar de primacial destaque, não só pela sua constituição própria, como também pelo seu papel, a dentro da região onde presta reve~ lantíssimos e únicos serviços. Mas, se os barcos do Vouga , que riscam a serenidade azul das águas da Ria , com suas velas brancas, num deslizar de cisne e em tonalidades de aguarela; se os barcos do mar da Caparica, vibrantes de colorido e de estilização estranha, brincam, gráceis, nas cristas das ondas que a espuma arrenda; o barco do Douro, é mais sério, mais grave, mais primitivo, quási sem colorido, como que tendo a consciência das suas tradições distantes, da pureza da sua ascendência , da rudeza da sua origem, e bem senhor de sua insubstitui'bilidade na navegação duriense. Mas, assim mesmo, sem que se destaque dêle uma nota gritante de côr, com a madeira no seu natural e as velas na côr do próprio linho da terra, conjunto de côres neutras, a que o Sol empresta uma patina doirada, consegue ser a «nota a/acre e uiva mais animada e típica da região famosa~. É inconfundível o seu porte especial. respirando anta~ nho, altivo de linhas, que mais não esquecem a quem alguma vez o veja «subindo ou descendo o rio. de vela panda, larga e 44 O BARCO RABELO O BARCO RABELO quadrangular, à semelhança de guião minhoto em quinta~ maior». ~feira Imponente de singela grandiosidade, num quási alhea~ mento da febre do momento que passa, não mais esquece, a 45 xando de o trazer em sua veia, segundo a ingenuidade popular, o espalhou a mãos cheias pelas vertentes milagrosas e âsperas das suas margens, é verdadeiramente um barco senho~ rial. digno de reis, que já em épocas desfeitas, possivelmente serviu. E de um rei ainda hoje é, na verdade. Quem traz à sua guarda, cautelosamente acomodado em si, o vinho do Douro, o rei dos vinhos generosos, o oiro. líquido que certamente foi o néctar usado no Olimpo, e o segrêdo com que Noé teria perdido a serenidade . .. é, indubitàvelmente, um bergantim real! O rabelo, colaborador da prosperidade duriense, é o brasão de armas da região, escreveu alguém, e com acêrto. Mas. se então foi dito, em sentido metafórico, pode hoje afir~ mar-se, de-facto, que é assim. A vila do Pêso-da-Régua, a mais importante povoação da região vinhateira que o Douro banha em seu curso, tem como símbolo de autonomia municipal um barco rabelo de negro, vogante de prata num andado de prata azul, acompanhado em chefe de dois cachos de uvas de púrpura, folhados de oiro, sendo todo o conjunto assente num campo de verde. Pela sua origem, pelos seus serviços, pela sua imprescindibilidade, não podia deixar de vir a tornar-se um símbolo heráldico, bem honroso e bem inconfundível, de uma região única no mundo. A vela está suspensa da vêrg a qu~m o veja pela vez primeira, descer o rio a todo o pano altivo da s · -. d · ' b . ua mtssao, etxando após si tênue esteira de espuma ranca a sua passagem, num farfalhar de sêdas antigas. Pel? seu recorte impecável e bárbaro, pela altaneira supremacia que tem sôbre as águas do rio do oiro, que, dei~ São os rabelos construídos pelos próprios marinheiros, em qualquer local das margens, no surgidoiro ou portelo que lhes fica mais à mão e que seja perto do fornecedor da ma- O BARCO RABELO O BARCO RABELO deira. Há, alguns pontos, porém, onde mais comummente se armam os estaleiros, por causa da vizinhança de carpinteiros que lhes vão dar sua ajuda. Alguns dêsses lugares mais importantes, são Castelo de Paiva e Vimieiro, no concelho do Marco de Canavezes, Pôrto Antigo, Barqueiros, Entre~os~ ~Rios e Bitetos. E, assim, de mãos tam rudes, com técnica tam primitiva, utilizando produtos da terra, materiais bem humildes (o pinho, o castanho, e o linho), sai um conjunto tam sóbrio na sua equi~ librada concepção, imponente de aspecto, altivo de porte, ver~ dadeira embaixada de uma grande época já distante. O rabelo identifica~se tanto com o Douro, que o seu perfil se casa com o perfil das margens, de maneira impres~ sionante. Reparemos nas margens durienses. Altas, de relevos gigantes, elas vão descendo, em anfiteatro, até ao nível da torrente, tumultuosa por vezes. A linha das águas, o perfil das margens, o correr do céu, formam como que um grande polígono, cuja base assenta no infinito. Dentro dêste am~ biente geométrico gira a mancha do rabelo, semelhando um outro polígono idêntico, e de lados paralelos ao primeiro. São, verdadeiramente, duas áreas que se completam. De resto, anda sempre, rio abaixo, rio acima, até se desfazer na passagem infeliz de algum ponto, ou então, se não tem essa fraca sorte, é abandonado nalgum recanto das 46 47 As apêgadas margens onde fica a desfazer~se ao tempo implacável. A estas carcassas perdidas, que por vezes se encontram, aqui e além, dão os marinheiros e a gente da região, o nome de mortos! Os bordados Construído o rabelo - o que não leva muito tempo, pois um barco que possa carregar cincoenta pipas, em dois n!eses está no rio- é lançado à agua, e dela só é retirado, um dia, se é necessário reparar qualquer rombo ou meter~lhe alguma estôpa. Desde logo começa a sua vida de esfôrço permanente e risco certo, pois que nem seguros são, e as viagens, que só excepcionalmente passam o Pocinho e vão até Barca de Alva, que rarissimamente ultrapassam, sucedem~se bem trabalhosas. 48 O BARCO RABELO A descida do rio tem a dificultá~la a carga do barco; a subida o vencer a corrente. O vento ajuda só na torna~ ~viagem; na vinda, só muito raramente êle aparece com opor~ tunidade, e, quando assim é, só de Castelo de Paiva para baixo. Quando não utilizam a vela, desmontam o mastro, que fica situado a 'um têrço da pôpa, deitam~no, tal qual faziam os vikings, juntamente com a vara da vêrga, no sentido da proa, sôbre as apegadas, se o barco vai vazio. Se vai cheio, prendem aos bordados, de um lado o mastro, do outro a vêrga, e ficam flutuando na água. A embarcação que estamos procurando divulgar neste rápido estudo, é de tonelagem variável. Hoje, ·o s maiores barcos regulam carregar 45 a 50 pipas. Houve~os maiores, que comportavam 70, 80 e até 100 cascos, que andavam ao serviço da Companhia Velha; mas, devido ao maior risco que apresentavam para navegar o Douro, uma prudente medida legislativa, de 1792, já citada, proibiu a construção de barcos de tais dimensões. Havia os barcos maiores, chamados matrizes, e os me~ nores, designados por trafegueiros, que também podiam receber o vinho a transportar, desde que fôsse presente o feitor ou confidente. Sôbre o número de barcos que andavam no Douro, diz~ ~nos o Padre Luiz Cardoso, em 1751, que eram mais de cin~ coenta. Os rabelos, ao contrário das outras embarcações, flu~ viais conhecidas, trazem inscrito, interiormente e junto à proa, o número do registo da Direcção dos Serviços Hidráu~ licos e Eléctricos do Pôrto ( 1 ). ( 1) Uma recente informação desta estância oficial. dá-nos o número de 339 para o~ rabe/os 'que presentemente ali estão registados. As apegadas O BARCO RABELO 49 Na maioria dos casos os rabelos têm nomes que são pintados em caracteres rudes, do lado de fora dos bordados, com freqüência a tinta de escrever ou equivalente. Ssses nomes são da natureza dêstes : «V amos com Deus», «N.a S.a da Boa Viagem », «N .a S.a do C armo », cN.• S." da Cardia», etc. A nomenclatura das diversas partes que compõe esta tam curiosa embarcação, bem como as designações que dão a diversos pertences e outras coisas, é bizarra, evocando lo~ cuções e modos de dizer, já antigos. Com a sua enumeração fechamos a primeira parte dêste capítulo relativo ao barco. ADRIÇA- Corda que passa por uma roldana presa ao mas~ tro e com que se iça a vela. AP:SGADAS- Castelo do comando; ponte do arrais; caran~ guejola. ARRAIS - Proprietário do barco. BAMBINELAS- «Blandinelas», como dizem os marinhei~ ros. são cortinas que se prendem na parte posterior das apegadas. BATEDOURO- Pá de madeira, de uma só peça, usada para tirar a água do fundo do barco, e que serve tam ~ bém para deitar a comida. Corrupção de vertedouro? BICHEIRO- Croque; pau terminado por um gancho de ferro, para ajudar a manobra de atracar, ou para levar o barco à vara, em determinados casos. 50 O BARCO ~RABELO BORDADOS- Tábuas que rematam as amuradas do barco; guardas. · : : .. · _·~ 'BRACEADORES- Ou braços; cordas que se prendem aos extremos da vêrga e com os quais se faz a manobra da vela. • CABAÇO- Balde. CABRESTEIRO - Marinheiro que vai nas apegadas, segu~ rando os cabrestos. CABRESTOS - Cordas que se prendem aos tornos da espadela e com que se governa esta. Também lhes chamam cabritas. CARANGUEJOLA- Ver apegadas. --==---·~ O bicheiro, ou croque CARITOS - São certas pedras, nas margens, por onde costumam passar as sirgas e os cabos de arame, em sulcos e ranhuras especiais. CARLINGA- Tábua pregada no fundo do barco, onde há um entalhe, para o mastro se firmar. CASCO- Pipa. CHILEIRA~DA~RÉ- Depósito de víveres, aberto sob o fundo do barco, e ao qual se desce por um alçapão. Corrupção de celeiro? CHILEIRA.~DE-A V ANTE- É o espaço que fica por baixo do convés da ponte. CHUMACEIRA- Pedaço de madeira, na qual se prende o parafuso, ond~ gira a espadela. COQUEIRO -:-'.Ou tabitrno; é o espaço abrigado, situado à pôpa do barco. O BARCO RABELO 51 COZINHA- Local onde acendem o lume, à proa. DRAGAS- Varas transversais das apegadas, onde se sus~ pendem as sacas dos marinheiros. ENSAIO- O fundo do barco, por dentro, formado pelas cavernas. ESCAMõES- Varas sôbre as quais se apoia o estrado das apegadas; também têm o nome de pilares. ESPADELA- Ou «esparrela» como dizem os marinheiros. É o leme, o gubernaculum dos romanos. ESTAI- É a espia da vela; a corda que se prende do alto do mastro, à prôa do barco. EST AMÃO- Banco atravessado pelo mastro. ESTA MEIRA- Pau que corre por dentro do barco, correspondentemente aos verdugos e é preso às cavernas. FEITOR DA ESPADELA- Primeiro cargo da tripulação. É o mestre. FEITOR DA PROA- Cargo imediato ao de Mestre. GINGA~MOCHOS- São uns paus que aparecem a seguir aos bordados, e onde se prendem os cabos, as sírgas e as espias. MESTRE -Ver feitor da espadela. OUCAS- Paus onde se apoiam as pás, para remar. PARAFUSO - Eixo, no qual gira a espadela. PAS- Remos ; parte inferior da espadela . PILARES -Ver escamões. POTE- Panela de ferro de três pés. PONTEADOR- Marinheiro que vai às pás. RABELO- Nome do barco, derivado de ser um barco de rabo ou cauda. Assim como há o rabão que não tem apegadas e é irmão do rabelo. RIZAR- Descer a vela a dois terços do mastro, para dar pouco pano à violência do vento. Os marinheiros dizem rinzar. O BARCO RABELO O BARCO RABELO 52 'J O ensaio, ou cavernas Ui• ' O mastro e o traste A caverna / A estameira A carlinga e a pia 53 O BARCO RABELO O BARCO RABELO SAGRE- Fundo do barco, pelo lado exterior, até à linha de água. T ÃBUA~DA~CAMA- É a tábua que fica junto da chileira de avante. T ÃBUA~DO~P ÃO- Prateleira, dentro do coqueiro, onde se guarda o pão. TABURNO ( 1 ) - Ver coqueiro. TôLDO- Oleado, que se deita das apegadas ao coqueiro, sôbre as seis varas. TORNOS- Tornos de madeira, que se encontram, con~ forme o tamanho dos barcos, em número de quatro, seis e oito, na parte superior da espaC:da. Colocam~se aos pares e nêles se prendem os cabrestos. TRASTE- Tábua onde se firma o mastro, pregac! ~ ao ensaio. VARAS~DO~TOLDE-São seis varas que se acham amar~ radas aos pilares, junto ao estrado das apegadas. Esten~ dem~se, destas, ao coqueiro, e sôbre elas o oleado ou tolde. VÊRGA- ,Vara que sustenta a vela. VERDUGOS- Paus que resguarda m'" borda e onde élS'iC<t-tam os bordados. Já se tem ouvido também bordugos. VINHA TEIRO- É uma espécie de comissário de bordo. VOLT A~CEGA- Nó, que é uma espécie de !ais de guia, singelo, usado na marinha. Dá~se, para fora do barco. VOLT A~DE~ESTACA- Nó, que é uma espécie de !ais de guia, dobrado, dos usados na marinha. Também é para fora do barco. VOLT A~DE~EST AMEIRA- Nó, usado para dentro do barco, e que se vai prender aos ginga~mochos e à esta~ meira. Creio que é o mais original. 54 (1) No concelho de Gaia dá-se o nome de taburno a uma tábua que está junto à lareira. 55 Andam a navegar no rio Douro mais duas espécies de barcos, que, pelo seu parentesco com o rabelo, vêm contri~ buir grandemente para o completo esclarecimento de um ponto mal justificado, na embarcação que serviu de assunto a êste ensaio.. Ao mesmo tempo, sendo de estrutura idêntica à do rabelo, é lógico que desde já figurem também registados para o estudo da etnografia fluvial portuguesa. Refiro~me ao saveiro e ao rabão, que vou passar a des~ crever, chamando, porém, previamente a atenção de quem folhear êste trabalho, para o facto de serem estes barcos que explicam o facto de o rabelo não possuir quilha. O saveiro e o rabão mant€m~se ainda originàriamente. No barco que foi destinado a tentar a navegação do rio até ao seu alto curso é que foi introduzida essa variante, para lhe garantir a passagem nos pontos. Com o belo subsídio que estes dois barcos nos trazem, nós visionamos perfeitamente o rabelo, em quási têda a sua estrutura inicial. quando um dia foi trazido até ao Douro, ao qual se adaptou depois de ter sido embarcação para o mar, certamente, diminuindo de tamanho, deixando aparelhos e desenvolvimentos escusados à navegação fluvial. e depois de ter substituído a quilha por um fundo chato, que lhe desse mais garantias de defesa, na conquista do rio. Tratarei agora, isoladamente, dos dois tipos de barcos citados, como nota indispensável ao ensaio que tentámos sôbre o barco rabelo. 56 O BARCO RABELO O BARCO RABELO ./ ,· O parafuso --~- As dragas A chumaceira As oucas 57 58 O BARCO RABELO O BARCO RABELO O «saveiro», como o seu nome está a indicar, é o barco usado para a pesca do sável, e tem seus portos naturais e tradicionais na margem esquerda do Douro, na costa fluvial do concelho de Gaia, onde se destacam núcleos piscató~ rios ( 1 ), velhos de séculos, como sejam S. Paio da Afu~ rada ( 2 ), Areínho, Oliveira do Douro, Avintes, Arnelas e Crestuma. O saveiro, é, na sua estrutura, idêntico ao rabelo, já o dissemos, porém muito mais pequeno. Emquanto aquêle com~ porta a tripulação e carga a que se fêz referência oportuna~ mente, êste apenas se destina, no máximo, a três homens, cuja indumentária tradicional é composta por calça e camisa de flanela, boina ou carapuça de lã ( 3) . (1) É caso notável, pela raridade, como já o notou Teõfilo Braga (em «0 Povo Português nos seus costumes, crenças e tradições» vol. I, págs.: 75/6) o facto de as mulheres de Avintes irem à pesca. Diz êle: «as mulheres de Avintes remam pelo Douro abaixo e vão pescar no alto mar; Mme. D'Aulnoy notou êste mesmo costume da ribeira d'Andaye: Os nossos pequenos batéis eram conduzidos pot' môças de uma habilidade e de gentileza encantadora; há três em cada um, duas que remam e uma que vai ao leme. (2) Só modernamente, com o emprêgo das traineiras para a pesca do alto, é que estes centros piscatórios podem, por ventura, chamar-se marítimos. (3) Como os tripulantes do rabelo, os do saveiro também eram, e são, de fundo espírito religioso. Nunca saíam à pesca, sem que os frades do vizinho convento de Santo António do Vale da Piedade lhes benzessem as rêdes. E, à volta, na portaria iam deixar o melhor pescado. 59 Não tem êle as apegadas, nem a espadela do rabelo; nem a vela é igual. O saveiro emprega uma carangueja do traquete latino, que só é usada à volta da pesca e se o vento é de feição. Não tem mais de dois remos ou pás ( 1 ), que dispõe alternados e que se manobram de pé como no rabelo. O casco, na sua estrutura, é que é similar ao do rabelo, sendo a nomenclatura quási a mesma, como se vai ver. Apenas O saveiro se dará explicação daquilo que não tiver a correspondência exacta no barco em estudo. Quási sempre os saveiros têm nomes, que são pintados por fora, · e rezam assim: «S. Pedro», «N.• S.a da Guia», «S.• da Esperança», «Senhor dos Aflitos», etc. (1) Escepcionalmente se vêm três pás. 61 O BARCO RABELO O BARCO RABELO AGUEIRO- Fundo do barco, ou fôrro que reveste os cilhões das cavernas, entre o traste e o tôsto. O mesmo que paneiro descoberto. BATEDOURO- O mesmo que no rabelo, mas por vezes tem um cabo um pouco mais comprido. BICO DA RODA DA PROA- Parte mais aguçada da proa. BICO DA RODA DA RÉ- Parte mais aguçada da ré. BORDA~ FALSA- Ver chá. CABEÇA - É o nome das peças terminais de cada caverna. CAL- (ou cala) - é a quilha. CAVERNA- O mesmo que costela do barco. É uma peça de madeira. curva composta de três partes: cilhão e cabeças. 60 O rabão Topografia do saveiro CHÃ - Chanfros, onde se firmam as pás, para remar aber~ tos nas guardas do barco, que são os bordados do ra~ belo. Também tem o nome de borda~falsa (1 ) quando não têm as chás. CILHÃO- Parte central de cada caverna. CINTA- Tábua, onde assenta o verdugo. Ver portas. CHILEIRA - Minúsculo cobêrto, à ré. O saveiro tem quilha ALTOS - O mesmo que verdugo. ASSENTO -Ver curvatões. BANCO- O mesmo que tôsto. ( 1) Há barcos saveiros que se empregam no transporte de passageiros. São um pouco mais largos, e têm sempre borda-falsa. É êste barco o empregado pelas padeiras de Avintes, o que criou a designação de barco das padeiras. 62 O BARCO RABELO O BARCO RABELO CURVA TõES- São duas tábuas, curvas, que servem de contraforte interior à proa do barco. O que está mais próximo desta é o 1. 0 curvatão; o outro é o 2. 0 curvatão. O mesmo que assentos. DRAGAS- São dua s tábuas fixas às cabeças das cavernas, na parte interior do barco e que correm uma de cada lado, entre o tôsto e a chileira, mas sem os tocar. Correspondem às estameiras do rabelo. ESPICHO- Vara que suspende a vela e que se apoia no mastro. O mesmo que vêrga . F A TEIXA - Âncora. MASTRO -Vara que suporta o espicho com a vela; fir~ ma~se na telingra ou carlinga, depois de atravessar o traste. PAINEL- Ver paneiro. PANEIRO- Fundo do barco. Há paneiros cobertos, que são dois, e um paneiro descoberto, que é o que se des~ tina ao pescado. Bste fica entre o traste e o tôsto; aquêles , um , fica entre o 2.0 curvatão e o traste, ,às vezes também chamado painel, outro, entre o tôsto e a chileira; também é chamado quartel. O paneiro que fica do lado da proa, é mais alto do que o do lado da pôpa e fica vazio por baixo. PIA- É o entalho da carlinga onde encaixa o mastro. PORTAS- São as tábuas que revestem as cavernas exte~ riormente e que são aplicadas sobrepostas. A primeira, a contar dos altos, é a cinta, a segunda é a tábua de rebordo; a terceira é porta, simplesmente. QUARTEL- Ver paneiro. RODA DA PROA- Vara que termina a proa. Isto é, têrmo da quilha. RODA DA RÉ- Idem, à ré. SAVEIRO- O nome do barco. SARRET A - O mesmo que estameira. 63 Os verdugos Volta de estaca Volta cega Volta de estameica 64 O BARCO RABELO O BARCO RABELO 65 TÃBUA DO REBORDO- É a segunda porta. TELINGRA- O mesmo que carlinga. T6STO- É a tábua que atravessa o barco a meio, e que vai de lado a lado. Serve de banco. TRASTE- Tábua que atravessa o barco de lado a lado, a dois terços da proa, e que é atravessada pelo mastro. O mesmo que estamão. Por vezes, o traste, é cortado a meio, só de um lado, para facilitar a caída rápida do mastro. V ARAS - O mastro e o espicho. V ERDUGO- Ver na nomenclatura do rabelo. No saveiro- é só nêle- encontra~se com a maior fre~ qüência o emprêgo de siglas ou marcas, que geralmente são abertas na madeira , ou pintadas, no interior do barco, entre as cavernas, e do lado da prôa. Repetem~se os motivos dos dois lados da quilha . Não se filiam estas marcas nas dos póveiros, a não ser no uso, mas antes na simbólica empregada na tatuagem, que os marinheiros tanto apreciam, e cujos moti~ vos são por vezes idênticos. Deve aproximar~se esta atitude de marcarem assim os barcos, da mesma intenção que preside à decoração dos jugos, rocas, etc. de manufactura popular. Quando vão à pesca, o seu raio de acção e de lança~ mento da rêde regula uns cem metros. Empregaram e em~ pregam rêdes diversas, conforme o gênero de pesca que pre~ tendem efectivar, rêdes que são designadas por: Alvitanas, Aranhô (rêde com seis linhas de mão, própria para os pontos), Bardal, Cabaceira (para a lampreia), C hum beira, Galba, Saveira e V arga (de arrasto, para o sável), Tresmalho, para a s á guas turvas e Chinchorro ( rêde de arrasto, para a taínha, que já em tempo de D . Sebastião começou a ter o seu uso regulado, por ser prejudicial. Em 1607 foram proibidas, nova~ mente). • • • • «Marcas» do saveiro 5 66 O BARCO RABELO O segundo tipo de barco a referir é o rabão, designação esta que é similar à do rabelo e que tem a mesma origem. O rabão é o rabelo, mas tem como nota característica principal a falta das apegadas. A espadela é mais curva, de molde a poder ser governada do ensaio. Tem características secundárias, as quais, por sua vez, identificam quatro tipos de rabões, que se destinam a funções diversas. Por vezes trocam a vela usada no rabelo, pela vela do saveiro, mas em duplicado. A estas chamam portas ou azas. E, quando assim aparecem, têm o nome de barcos de rio abaixo. No resto é igual ao rabelo. Vejamos os tipos que o rabão nos apresenta: I - Exactamente igual ao rabelo, mas sem apegadas, falta esta que é a sua característica principal. :f: usado para o transporte de carga diversa. 11- Tem a proa igual à do saveiro e não tem coqueiro; é empregado no transporte de estrumes. III- Igual ao tipo N. 0 I, mas sem coqueiro. zado no transporte da carqueja. Utili~ O BARCO RABELO baixo. 67 IV- Igual ao tipo N.o I, mas com o coqueiro mais Tem seu emprêgo no transporte do carvão. Estes rabões, embora se façam ainda em Gaia, são tam~ bém construídos em grande escala, mas só de tempos moder~ nos para cá, na margem direita, que fica dentro da área do concelho de V albom, razão por que êles também são conhecidos por valboeiros. III A NAV,EGAÇAO Dificuldades da navegação duriense: Té~ cnica especial: As toma~viagens: Duração das viagens: Tradições. A navegação do Douro é heróica e de permanente risco, e a sua história, se é brilhante pelo valor da sua alta velhice, pela sua prestimosa ajuda de sacrifício na vida da região, é também um tremendo registo de naufrágios e desastres, que torna um pouco aterrorizante a sua tradição, e dariam, decerto, um novo capítulo da história trágico~marítima , visto que os tripulantes dos rabelos são marinheiros. O Douro só é vencido com a muita bravura e a indis~ cutível perícia dêstes marinheiros, que, de olhos fitos no espu~ mejar da torrente, lábios desfiando rezas e alma confiada ao valimento da Senhora do Carmo, num silêncio impressionante, que só é quebrado pela voz do Mestre de cima das apegadas, gritando «Bota para a Cachucha, ao Pego, ao Pego», ou ~Peja à Terra», ou «Peja ao Pego», ainda «Bota fora o O BARCO RABELO 72 Cadão», ou «Bota fora o Frade» ( 1 ), dominam o colosso, ou então sucumbem tràgicamente, lançando crepes de luto, pelas povoações ribeirinhas, nas famílias dos homens das campa- . nhas, que marcam a negro o curso do rio em todos os pontos difíceis. A espadela A navegação do Douro faz-se, geralmente, de dia. Não há, pràticamente, a navegação nocturna, motivo por que não há, também, sinais luminosos nem faróis ao longo das margens. E, mesmo a bordo, apenas uma luz se encontra, a do lampeão, suspenso de uma das varas do tôldo. Os tornos da espadela Nos pontos, ao descer, é só confiados na segurança de mão que rege a espadela. As manobras precisas para vencer as dificuldades de navegar no Douro, são de um arrôjo excepcional e causam a Subindo o Douro (1) Ao passarem à vista do convento de Ancede. O BARCO RABELO 73 maior emoção a quem as observa alguma vez. Talvez que as mais impressionantes de tôdas sejam as que os marinheiros executam no Ponto Novo ou Ponto da Cardia, Valeira e Cachão, sem dúvida, dos mais perigosos. Ao demandarem o curso superior do rio, se o vento não é ao sopé, se é de feição, içam a vela; se não há vento em condições, sempre que as margens se prestam, tratam de alar ou sirgar os barcos, por meio de cabos e espias que passam pelos ginga-mochos, e a companha, saltando em terra, puxa Os ginga-mochos da margem, até o rabelo galgar o · ponto e ganhar o poço, que fica acima do perigo. Quando têm de alar o rabelo, trabalho sempre violento, os marinheiros passam para terra e levam às costas tudo o que vai de mais pesado, aliviando, assim, o barco até ao sagre. A bordo só fica o Mestre e o mocito. Chamam a isto o trasfegar a carga. Quando as margens o consentem, o serviço de sirgar (1) é confiado a juntas de bois, jungidos com as características molhelhas; e então gritam para as margens, fazendo concha (1) 3$50. Cada serviço de sirgar com bois custava mais ou menos uns O BARCO RABELO 74 com as mãos «Eh! boieiro!». Mas, neste caso, a sirga, quando não é um cabo de arame, passa por uma pedra, por vezes I O sagre 2::l o furada, mas sempre com sulcos por onde a sirga corre, que tem o nome de caritos. obrigando o cabo a passar pelo ginga~ Q ( ""O Os bois que ajudam à sirga, são molhelhas o o c: "'u Q"' <ll por ~mochos e indo de novo a terra prender~se então aos bois, que às vezes se contam por duas e três juntas. Em certas ocasiões a corrente custa tanto a vencer. é tam forte, que os bois não agüentam e vão de rôjo, pelo chão, O BARCO RABELO ' O BARCO RABELO 76 dores de Castelo de Paiva são estimados, pois gozam fama de serem dos melhores. E , justifica~se êste aprêço, pois o melhor auxiliar do govêrno da espadela é o remador. Por isso se diz que «um bom remador faz um bom pejador» ( 1 ). Porém, nas torna~viagens, se a vela já é utilizada, o grande auxílio do mestre é o braceador. Pelo verão, quando o mulherio espalhado pelos calços ou geios que formam as encostas, no trato ou na colheita das gemas que hão~de produzir o vinho generoso, lobriga, lá em baixo, no rio, os marinheiros na rude e violentíssima labuta, grita~lhes, apupando~os e vaiando~os dolorosamente, cheio do seu desdém serrano: «Eh! boi d 'areia! ... Eh! pata rachada! .. . Deixaste o pai no lameiro! .. . », e outras expressões igualmente amargas, bem alusivas ao trabalho violento que êles têm de suportar! Certamente, ouvindo os gritos maldosos remoem no seu coração íntima revolta, mas, resignados na sua sorte, filoso~ fam com esta sentença : «Bem fala quem está na areia ; Desgraçado de quem vai na veia! » Quando se encontram dois ou mais barcos no rio, as campanhas inquirem, umas das outras, o estado das águas. Se o tempo é mau e elas vão sujas, sendo temerário afrontar a corrente, no primeiro abrigo capaz, fazem alto, amarrando bem o barco. (1) a substitua. No rabelo não se usa âncora, nem qualquer outra coisa que O BARCO RABELO 77 Os marinheiros acampam na margem e esperam que o tempo melhore. Se é regular, ficam a 'bordo, abrigando~se sob o tôldo ou encerado - como os romanos - que passam I r Na parte posterior das apêgadas, encontra-se o tôldo e a bambinela dos pilares ou escamões ao taburno donde tiram a enxerga de palha, onde repousam merecidamente da fadiga diária. Quando estão prestes a chegar a algum pôrto de des~ canso ou ao têrmo da viagem, anunciam~se pelo toque de O BARCO RABELO 78 busina, que repetem ao estar à vista. A busina, hoje de latão, ainda não há muito tempo foi substituir o velho búzio fenício, ainda com seus vestígios pela região a garantirem a afirma~ tiva. Em Amarante, por exemplo, avisa~se da cheia do rio, tocando o búzio; entre os pescadores da Póvoa, está ainda em uso; e, no litoral de Gaia, coisa interessante, passou das lides marítimas para as da lavoura. Tocam~no quando se convi~ dam os vizinhos para as desfolhadas do milho ( 1 ). Justifica ~ se o alvorôço em anunciar de longe a chegada dos rabelos, pois que para esta gente humilde e miserável. cheia de taras familiares , o barco é tudo. Lá se diz que «um barco é uma aldeia» . A sua chegada é a fartura . O BARCO RABELO «Quem a Cachucha mal desce, no ólho da Cabra dece »: Tem o mesmo sentido da anterior. 79 pa~ Pelas já citadas Leis da Companhia não podiam demo~ rar no decurso da' viagem, em pôrto algum , mais de vinte e quatro horas. Esta medida era tendente, com certeza, a não arriscar os carregamentos do vinho em demoras, porventura exageradas. A sua carga quási exclusiva foi o vinho. Hoje trans~ portam muita fruta, lenha, passagdros ( 1 ) , etc. Têm ditados e sentenças, nos quais sintetizam como é violenta a navegação nos pontos maus do Douro. Ouça~ mo~los: t~.Bula e cabeça os barcos não passam»: Quere isto dizer, que quando a água cobre o paredão da Bula - é o «paredão feito pelo rei»- não se pode navegar. «Quando o barco não entra nas águas de Oliveirinha, está perdido »: não pejando bem ao pego em Oli~ veirinha, já o barco não vence a fôrça da corrente, para ir tomar o rumo devido. (1) Perdeu a sua antiga função, tal qual como aconteceu na fn dia, onde passou a ser usado sómente em cerimõni as rituais. (1) Os barcos da carreira, também chamados barco3 3emanais, eram de oito em oito dias. Através os escamões vê-se o arco do tabumo, formado pelas cangalhas, onde assentam as vacas, que suportam o toldo. Barca de passagem em Entre-os-Rios OS MARINHEIROS 6 IV OS MARINHEIROS Porque são «marinheiros»; constituição da campanha; Situação econômica; Honrosa ascendência; Religiosidade dos marinheiros; Seu regime alimentar; As «provas»; costu~ mes; as cantigas. I Os tripulantes do rabelo são marinheiros, porque navegam até ao mar. Os homens de cada barco formam uma companha, e, para um rabelo de cincoenta a cincoenta e cinco pipas de lotação, costumavam ser treze os marinheiros que o tripulavam. Pela ordem da sua categoria, e registadas as diferenças hierárquicas, penhor da tradicional e indispensável disciplina a bordo, temos: arrais, feitor da proa, feitor da espadela, ou braceador, môço, 1. 0 cabresteiro, 2. 0 cabresteiro, 3. 0 cabresteiro, 4. 0 cabresteiro, vinhateiro, ponteador da pá dos dois, ponteador da pá dos três, e ponteador das pás da ré. O môço destina-se a cozinhar para os outros e o vinha~ teiro ou fiel, a guardar o vinho e os víveres na chileira. 84 O BARCO RABELO O progresso, que tudo internacionaliza, tem contribuído muito para que a indumentária dos marinheiros, a tradicional. se vá perdendo. Ainda não há muitas dezenas de anos que êles usavam a carapuça de lã, preta ou vermelha, especial~ n:ente se estava frio, camisa ou camisola, e ceroulas, de abo~ toar no tornozelo e não de atar, para que, ao caírem à água, esta não ficasse ensacada e, pesando, arrastasse ao fundo o marinheiro. O marinheiro, cuja denominação já foi justificada, não deve ser confundido com o barqueiro do Douro. :t;:ste é o que tripula as barcas de passagem, isto é, aquêle que faz o serviço entre as margens ( 1). Os marinheiros não são interessados no barco, que é propriedade do arrais. Ganham, em média, numa viagem da Régua ao Pôrto, cêrca de 40$00 e de comer; o mestre ganha mais 10$00. O arrais, que tem um livro para registo da mercadoria, não aluga o barco, e o serviço de transporte de cascos é pago por unidade. Todos os anos o arrais tem de se matricular, com o seu feitor e mais campanha que tiver ajustado para o seu barco, para o que assinam um têrmo em que se declara que o arrais promete não tomar outros marinheiros nem outro mestre, nem outro feitor da proa; e estes prometem por sua vez não desertar. (1) As barcas de passagem tiveram uma tal importância outrora, pelo seu rendimento e pela sua utilidade, que essa exploração pertencia a grandes senhores. Recordo agora Pedro do Souto, tronco dos Sampaios, fidalgo do tempo de D. Afonso IV, morador em Provesende, que era senhor da Barca do Tua. Ao barqueiro se referem as Ordenações. O BARCO RABELO 85 Honrosa é a função de mestre, que tem sob a sua von~ tade a espadela do rabelo. Descende directamente dos espa~ deleiros - spadalary- da idade~média, a quem era reconhe~ ciclo fôro militar e de cavaleiro, como se vê, por exemplo, nos forais de Lisboa, de Vila de Rei e de Vila Franca de Xira. D. Afonso V, num documento de 1460, determina que o Almirante do Reino não tenha jurisdição alguma sôbre os Alcaides, arraizes e petintais da cidade do Pôrto, onde ela pertencia, por antiga posse, aos juízes ordinários do concelho. E, pelas Leis da Companhia, os arrais, feitores, mari~ nheiros e serventes, tinham o fôro de oficial da companhia. Não podiam ser objecto de qualquer serviço por mar ou terra, a não ser o cuidar do transporte de munições para Trás~os~Montes e Beira. Para ser arrais, tinha o candidato de vir da classe dos marinheiros e ter informação favorável da Junta de Admini3tração da Companhia. Esta mandava, depois, as suas cartas de aprovação, sem que houvesse o pagamento de quaisquer taxas ou emolu~ mentos. Devido à faina de constante risco que lhes ocupa a exis~ tência, pondo~lhes a vida em perigo a todos os instantes, os marinheiros são extremamente religiosos, como já deixei apon~ 86 O BARCO RABELO tado ao notar que os pontos são dominados, quási na totali~ dade, por santos que defendem do perigo. Descobrem~se sempre ao passar sob as escarpas ond~ estão as imagens dos santos em vigilante sentinela e igual~ mente o fazem ao toque das Trindades; benzem~se ao entrar no barco, ao meter~se à água para o banho, ao entrar o barco em perigo; e - admirável e emocionante singeleza rezam o têrç~, fazendo passar pelos dedos um mistério de 1O grãos de milho! Quando a viagem lhes corre bem, é vulgar irem levar dádivas e oferendas aos santos da sua devoção. Fazem promessas a miúde e não raro topam~se, pelas ermidinhas sobranceiras ao Douro, painéis de milagre, como em Barqueiros e Frende ou um minúsculo barco rabelo, ofe~ recido, como ex~voto à Senhora da Boa Viagem, como em Castelo de Paiva. À noite rezam sempre o têrço, bem como, antes de ini~ darem as refeições, dão graças e louvores a Deus, pelo pão nosso de cada dia. Aos domingos vão sempre à missa, esteja a igreja onde estiver e mesmo que andem em viagem. É curioso que, sendo tam crentes, não benzam os barcos, n~o tenham confrarias, nem rezem orações especiais. Por último, notarei que, ao passarem os cachões, o mes~ tre, depois de bem pejar o barco ao pego. abandona a espa~ dela, descobre~se, cruza os braços e sentenceia gravemente : << •• •e agora vai com Deus!». O BARCO RABELO 87 Merece referência também o regime alimentar dos mari~ nheiros do rabelo, e a pragmática que observam. · Às refeições primeiramente serve~se o arrais, que come em separado. Depois os outros, servindo~se os feitores em seguida, os mais velhos adiante, e por último os marinheiros, também por ordem de idade. A chileira de vante O arrais bebe vinho por garrafa e usa pratos de louça branca. Os outros usam um copo de fôlha, de meio quar~ tilho ( Y-í de litro), que sucedeu à antiga cabaça, indispensável pertença de cada marinheiro, e comem todos da gamela ou alguidar, que não é mais do que a pá ou batedouro, de ma~ deira, destinada a esvaziar a água do ensaio. Para o caldo, utilizam tigelas ou malgas de barro vermelho, vidrado. Têm três refeições por dia : ao amanhecer, ao meio dia e à noite, que é a ceia. 88 O BARCO RABELO As ementas são frugais, como se pode ver: de manhã, duas sardinhas assadas e meio quartilho de vinho; ao jantar, caldo de hortaliça, com batata, feijão ou massa e que êles engrossam com miolo de broa esfarelado, uma talhada ou ração (fatia) de carne de vaca ou cabrito, e meio quartilho de vinho; ã ceia, três sardinhas assadas, e meio quartilho de vinho. A tôdas as refeições, a broa é ã vontade. Os víveres são guardados na chileira, onde há uma sal~ gadeira de carne, uma barrica de sardinha salgada e um barril com água potável. Cozinham a bordo, à proa, junto da chileira de vante, O pote e a cozinha em panelas de ferro, de três pés - o pote - de onde pende, sempre, uma grande colher de concha, acendendo lume na cozinha, assente no fundo do barco. Levam lenha, e uma podoa existe sempre no barco. Por vezes, a sardinha é substituída por cação ou baca~ lhau, e, em viagem, se a ocasião é boa, deitam ao rio, no poço mais próximo, onde haja água parada, a linha, pois o Douro é rico em pescado, e dá bogas, barbas, mugens, lampreias, enguias, sável. solho e mais variedades, com que êles cozi~ nham deliciosos escabeches e suculentas caldeiradas. Quando têm algum hóspede a bordo, que querem hon~ rar, cozinham uma arrozada de bacalhau, que é da compe~ O BARCO RABELO tência do mestre manipular. O mesmo sem ver lavado. O mestre dura, mexendo a panela com uma bado fora do lume. A~pesar~de característica, é muito saborosa. 89 arroz deita~se na calda, avalia do estado da coze~ varinha. O arroz é aca~ tudo, esta arrozada, tam Nestas paragens, e quando têm de fazer alto principal~ mente, é que a maruja, para quem o vinho é tudo, desde a riqueza, o ganha~pão, ao vício, e à miséria, segundo a tradi~ ção, tira para pequenos pipas a sua prova aos vinhos que transporta, deixando o que não consomem de momento enter~ rado nos areais das margens, para à volta, ao subir o rio, e ao regressar a casa, o irem buscar e beber. Foi isto, certamente, a origem da designação de dois pontos: Areia dos bêbados e Guarda~Três, entre o rio Paiva e a Ribeira de Aregos. Mas êste assunto, melhor do que eu, o descreve Vila~ -Moura: «Pela noite, ou alta madrugada, é a sangria das pipas, com uma táctica, um saber especiais ... Trabalho comummente, precedido, seguido dos IJlesmos sobressaltos. Primeiro o espiar dos barcos! Em cada outeiro, um montão de gente ávida, espalhando o olhar pela água, ou adelgaçando~se, rio acima, até encontrar os da almejada campanha. 90 O BARCO RABELO Depois, o correr, quási a voar ao areal; alvorôço dos que num momento parecem entornar das máscaras risos empoçados que lhes saem sujos, limosos lá .de dentro .. . Até que bate a hora do roubo e partilha do vinho, que tem as suas leis, as do costume das povoações ribeirinhas. Noite alta, atravessam o Douro os remadores, tirando da água o menor choque, como quem desfere uma lira, surdamente, com destino ao barco, antes cuidadosamente amarrado na margem fronteira . Segue o serviço da criminosa tanoaria, cujo sonido os ecos do vale acusam, repetem». Estas famílias , grandemente miseráveis, têm seu perfeito e magistral retrato na novela «Uma Família de Ibsen», decalcada sôbre personagens absolutamente verídicas, e que se deve à pena do já citado duriense ilustre que foi o Visconde de Vila-Moura. Ao tradicional roubo do vinho, já as Leis da Companhia aludiam , no alvará de 24 de Dezembro de 1803, determinando que os barcos deviam trazer beberagem para a tripulação. Agora alguns dos seus costumes tradicionais mais interessantes. Quando trazem passageiros a bordo, os marinheiros, no geral bisonhos, gostam de conversar uns com os outros, sem que estranhos os entendam. O BARCO RABELO 91 Para isso, costumam falar em verso, improvisando quadras, que vão dizendo numa toada monocórdica ... Têm o costume de se tatuar no peito e especialmente nos braços, desenhando de preferência a imagem de Cristo, santos, estrêlas, corações, flores, nomes, datas, etc, Não são muito supersticiosos. O facto mais saliente dêste aspecto é o pregarem, no tôpo da proa do barco, uma ferradura. Mas, casos se encontram, em que ela é substituída por uma cruz que se repete, em muitos casos, no alto da vela, bordada a cordel. No dia 25 de Março é quando começa a vir o vento de baixo. Nesse dia, os marinheiros dão um ramo ao arrais para significar que podem trabalhar, caso queiram, um bocado da parte da manhã, havendo vento. Se não houver, têm de sirgar o barco, se quiserem. As casas exportadoras de Vinho do Pôrto, quando fazem as suas carregações, mandam, por vezes, embarcados, tanoeiros seus assalariados. A estes intrusos chamam os marinheiros cãis. f: que, com êles a bordo, é mais difícil senão impossível, a tradicional prova. P õem alcunhas uns aos outros, de tal maneira que são mais conhecidos por elas do que pelo seu verdadeiro nome, acabando, às vezes, por estes serem completamente esquecidos. Assim, encontramos alcunhas como estas, que reflectem um pouco da sua maneira de ser : Rebola, Caqueira, Chilé, Mirolha, Faz-tudo, Arrebentado, Florim, Piné, C antador, Pardal, Pêgo, Rato, Pem, Biscoito, Lama, Pilôto, Vermelho, ln verneiro, Mouco , Pintassilgo, Reboca, Portugal, Aré, Camões, Tôco, Gesteira, Pilão, Rouco, etc. A marinhagem trata do barco com grande asseio, chegando a lavar os cascos que embarca, motivo por que a bordo há sempre uma escôva de esfrega. De noite, quando o tempo está bom e as águas serenas, armam roda e dançam a chula, a inconfundível chula do 92 O BARCO RABELO Douro, junto ao taburno, ao som da viola, do cavaquinho e dos ferrinhos, sob o toldo ou encerado, que é pendente das varas lançadas das apegadas ao coqueiro. E então é que se ouvem quadras como estas, que vão encontrar seu eco plangente nas curvas do rio e quebradas das margens: Eu fui ao Douro à vindima, Pagaram-me a trinta réis; Fui à vila da Pesqueira Empreguei-os em anéis. Oh chula vareira, oh chula, Deixa-te andar asseada, Boa calça, bom sapato Boa fivela dourada! Além Douro, além Douro, Onde tenho os meus marmelos; Se o barqueiro não me passa Lá me caem de amarelos. Além Douro, além Douro, Alegre senhor arrais, Eu sou leve, peso pouco Peso duzentos quintais. ú senhor arrais do barco, Olhe lá a sua barquinha; Veja lá a sua espadela Que não embarre na minha. A água que leva o Douro Não é p'ra comparar Com as lágrimas que choro, Se te não posso falar. A Senhora das Amoras Cham<;~ que a mande passar; i ú ditoso marinheiro, Que soldada vais ganhar! A Senhora dos Remédios, Vai pelo Douro acima, Com a cestinha no braço Fazer a sua vindima. Eu hei-de casar na Régua Ou na terra dos Barqueiros; É um regalo na vida Ver remar os marinheiros. Fui ao Douro à vindima Pagaram-me a trinta réis; Fui ao mercado à Tõrre, Empreguei-os em anéis. Venho de cima do Douro, E mais não venho doirado; Venho da terra das môças, Fui e não venho casado. A Senhora da Cardia, Toma banhos em Janeiro, Quando o rio anda grande Na praia do Vimieiro. Tanto ai, tanto suspiro, Que se dá pela calada; ~eu coração sabe tudo ~inha bõca não diz nada. ú senhor arrais do barco, Salte fora e venha ver; Venha ver a sua filha Que se vai arreceber. O BARCO RABELO I 93 Adeus, ó Pêso da Régua, Terreiro da Companhia; Adeus môças de Portelo Com quem eu m'adevertia. Oh chula de Barqueiros, Eu não vos digo que não; São rapazes de calça branca E de castanhola na mão! Hei-de-me casar em barcos, Lá na vila de Barqueiros; É um regalo, meu amor, V er remar os marinheiros. Fui ao Douro à vindima, Não achei que vindimar; Vindimaram-me as costelas, Foi o que lá fui ganhar. ú Senhora Pequenina, Do lugar do Escamarão, Livrai Senhora o meu homem Dos lnvalos do Cachão. Dizeis que viva Barqueiros Por ter a frente caiada; Também digo que viva A bela rapaziada! Suspirando, dando ais, Anda o amor pela rua; Suspira quanto quiseres Que eu nunca hei-de ser tua. O meu amor foi p'rà Régua, Foi carregar ao Pinhão; Nossa Senhora m'o livre, Dos lnvalos do Cadão. Senhora da Livração, Que livrais os marinheiros, Livrai-me também a mim Que eu também sou de Barqueiros. Rio Douro, rio Douro, Rio de tanto penedo; Se não fõra o rio Douro, Não tomava amores tam cedo! Fui-me confessar ao Põrto, Comungar a Rio ~au; Deram-me por penitência Batatas com bacalhau. ú Vila Real Alegre, Província de Trás-os-Montes; No dia que te não vejo, ~eus olhos são duas fontes. Rio Douro, Rio Douro, Deu a moléstia nas vinhas, ... Arrumado ao Pinhão, Senhor, tende compaixão. Se queres que te vá a ver Além Douro, ao Pinhão, ~anda fazer um barquinho D a raíz do coração. 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CANGALHAS- São umas travessas que se prendem, diagonalmente aos escamões que ficam do lado da ré e que têm umas esperas on.de assentam as varas do toldo. !TORA ( ?) -O mesmo que cangalhas, mas do lado da prôa. Servem para dar segurança aos escantões e às travessas que aguentam as ap~gadas. MOIT AO- Ou polé. Roldana para içar a vela. PEJADEIRA- Primeira draga ou travessa, onde assentam directamente as apegadas. POLll:- O mesmo que moitão. RABELA (Vela) -11: a vela do barco rabelo. TRAVESSA- O mesmo que draga. TRAVESSÃO -11: a travessa que liga horizontalmente os dois escamões, do lado da prôa. Taburno e coqueiro, designam a mesma coisa, como oportunamente foi dito. Acrescente-se agora que a segunda expressão é usada de Entre-os-:Rios até Põrto-Antigo e a primeira de Põrto-Antigo para cima. Os rabões usam geralmente a vela do 1·abelo. Encontram-se, porém, por vezes, empregando a vela do saveiro- isto é, nos barcos de «rio abaixo>> -mas em duplicado. Neste caso, tomam o nome de latineiras. Na parte superior das espadelas das barcas de passagem e, por vezes, dos rabões, encontram-se pesos de ferro ou pedra, para darem estabilidade e equilibrio a tam grande madeiro- que sem as ap~gadas mais dificil é de governar- e facilitar a manobra. As barcas de passagem são iguais aos saveiros, apenas um pouco mais larg;as e com um reduzido coqueiro. Usam borda-falsa e, além das pd8, servem-se da vara. O rabão indicado no tipo II é também empregado no transporte da Por vezes não traz espadela. 11: governado com as três pds. O do tipo IV, tem em frente ao coqueiro, uma tábua, fixa aos bordados, sõbre a qual se governa a espadela. :1!: a tábua de peijar, que desempenha as funções de apegadas. Nessa tábua são pregadas em sentido contrário ao seu comprimento, pequenas travessas, para quem fõr em cima se segurar melhor. Fixas à tábua de peijar e ao fundo do barco, existe uma divisória de madeira, que pode ter uma porta, e que se chama impana. areia. TÁBUA DOS ASSUNTOS PÁGS. Prefácio • 9 Homenagem 15 Duas palavras 17 1-0 Douro 11-0 barco rabelo 23 31 III -A navegação. 69 IV-Os marinheiros 81 Bibliografia 95 Nota final 99 «Da infelicidade da composição, erros da escritura, e outras imperfeições da estampa, não há que dizer-vos: vós os vêdes, vós os castigais» D. FRANCISCO MANUEL DE MELO. ACABOU DE SE IMPRIMIR ÊSTE LIVRO DURANTE O MÊS DE JANEIRO DO ANO DA GRAÇA DE 1940, NA TIPOGRAFIA SEQUEIRA, L.da 114, R. JOS~ FALCÃO, 122 --PÓRTO--