Reflexões acerca da responsabilidade civil dos notários

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Reflexões acerca da responsabilidade civil dos notários
Reflexões acerca da responsabilidade civil dos notários
Karin Regina Rick Rosa, advogada, assessora jurídica do Colégio Notarial do Brasil Conselho
Federal, mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, especialista em
Direito Processual Civil pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, professora de Direito Civil e
Direito Notarial e Registral, autora e organizadora de obras jurídicas.
A responsabilidade civil é um tema que desperta o interesse de todas as pessoas, pois somos
todos suscetíveis a figurar como sujeitos passivos de uma obrigação decorrente da prática de
um ato ilícito, pelas mais variadas circunstâncias da vida. No caso da atividade notarial não é
diferente. Ao exercer em caráter privado esta função pública que lhe é delegada, o notário
poderá ver recair sobre si o dever de indenizar, em casos como, por exemplo, a cobrança
equivocada de emolumentos, a lavratura de uma escritura pública mediante utilização de uma
procuração falsa, o equívoco no envio de relatórios ou dados à Corregedoria ou outros órgãos,
a emissão de certidão contendo omissão, apenas para citar alguns.
O dever de indenizar tem como elemento nuclear do seu suporte fático a prática de um ato
ilícito. De acordo com o artigo 927 do Código Civil, aquele que praticar ato ilícito e causar dano
a outrem fica obrigado a repará-lo. O ato ilícito, por sua vez, é um fato jurídico, cujo suporte
fático abstrato se encontra descrito em dois artigos distintos do Código Civil. O primeiro deles
é o art. 186, que considera ato ilícito a ação ou omissão, negligente ou imprudente, que viola
direito e causa dano a outrem, ainda que exclusivamente moral. A norma se assemelha àquela
do art. 159 do Código Civil de 1916, inovando ao prever também a possibilidade de ocorrência
apenas de dano moral. O segundo, sem correspondência no Código anterior, define como ato
ilícito o exercício abusivo de direito, que se caracteriza pela conduta que excede
manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos
costumes. Em qualquer um dos casos, preenchidos os elementos do suporte fático e havendo
a produção de dano, haverá dever de indenizar.
A obrigação que resulta do ato ilícito pode ter origem em uma relação contratual ou não,
dependendo da existência ou não de um vínculo jurídico anterior à ocorrência do ato ilícito. Se
o ilícito resultar do descumprimento de uma obrigação previamente assumida pela parte,
estaremos diante da responsabilidade civil contratual, que é tratada pelo legislador no Livro I,
Título IV da Parte Especial do Código Civil, combinada com o art. 22, da Lei 8.935/94. Se, ao
contrário, não houver um vínculo anterior estabelecido entre o agente causador do dano e a
vítima, a responsabilidade civil será de natureza extracontratual, aplicando-se os arts. 186 ou
187, combinados com o art. 22, da Lei 8.935/94.
No caso da atividade notarial a doutrina diverge sobre a natureza contratual ou
extracontratual da responsabilidade civil. Uma parte considera que existe uma relação
contratual estabelecida entre o notário e o interessado que utiliza o serviço. Outra, entende
não existir um vínculo prévio entre o profissional e aquele que utiliza o serviço, já que a
atividade notarial e a remuneração pelos serviços decorre de lei, não havendo qualquer
espaço para negociação ou ajuste. A jurisprudência parece adotar a natureza extracontratual
com mais frequência.
Outro requisito para que se caracterize o dever de indenizar é o nexo causal. Na esfera cível,
diversamente do que acontece na penal, vigora o princípio da causalidade adequada, também
denominado de princípio do dano direto e imediato, pelo qual ninguém poderá ser
responsabilizado por aquilo a que não tiver dado causa, sendo que somente se considera
causa o evento que produziu direta e concretamente o resultado danoso. Além de se indagar
se uma determinada circunstância concorreu concretamente para o evento, é ainda necessário
se apurar, em abstrato, se ela era adequada para produzir aquele efeito.
Portanto, a imputação da responsabilidade civil pressupõe a existência de dois elementos de
fato indispensáveis, uma conduta do agente e um resultado danoso.
Por se tratar de uma função pública delegada, a participação do Estado é inafastável, sendo
discutido, no entanto, se ele responde em caráter solidário ou subsidiário. A aplicação da
responsabilidade solidária decorreria da própria natureza pública da função. Argumentam no
sentido de que a responsabilidade do Estado é subsidiária, com fundamento no exercício em
caráter privado da atividade, na responsabilidade do titular pela contratação de prepostos em
regime celetista, e no destino dos emolumentos devidos pela prática do ato. Se o titular tem
todo o proveito econômico, assume todos os riscos da atividade. Por tudo isso, o Estado
somente responderia, subsidiariamente, no caso de insolvência do titular.
Outra questão controvertida diz respeito à natureza subjetiva ou objetiva da responsabilidade
civil dos notários. Se por um lado está consolidado entendimento de que o Estado responde
objetivamente pelos danos produzidos por seus agentes, garantido-lhe o direito de regresso
contra o causador direto do dano, quando se trata dos notários paira a incerteza. Os
argumentos para aplicação da responsabilidade civil subjetiva, ou aquiliana, merecem atenção.
Primeiro, vale ressaltar que a responsabilidade por culpa é a regra geral no sistema de
responsabilidade civil vigente. Ou seja, quando o legislador quer afastar a responsabilidade por
culpa, deve fazê-lo de modo expresso na norma jurídica. Essa exclusão é identificada pela
expressão “independentemente de culpa”. O art. 22 da Lei 8.935/94, que trata
especificamente sobre a responsabilidade civil dos titulares das serventias, não contempla
expressão que excepciona a responsabilidade subjetiva. Logo, no silêncio, aplica-se, sempre, a
responsabilidade subjetiva. Aliás, quando a intenção é responsabilizar por culpa, mostra-se
totalmente desnecessário prever expressamente a exceção (como prevê o art. 37 da Lei
9.492/97). Segundo, historicamente a responsabilidade dos tabeliães e registradores sempre
foi de natureza subjetiva. Neste sentido é o art. 28, da Lei 6.015/73, por exemplo. Terceiro, o
art. 37, §6º, da Constituição Federal, ao estabelecer a responsabilidade civil objetiva do
Estado, a estendeu apenas às pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado
prestadoras de serviços públicos, não fazendo referência às pessoas físicas. Os titulares são
pessoas físicas, que recebem a delegação e por ela respondem pessoalmente. Mesmo com
argumentos consistentes, a responsabilidade objetiva dos titulares também é defendida por
uma parte da doutrina, e aplicada em casos concretos, como é possível se constatar em
consulta a decisões.
Considerando as peculiaridades que envolvem o exercício da atividade notarial, a conclusão
que se chega é que além dos requisitos necessários para a caracterização do ato ilícito e
consequente dever de indenizar, a prova da culpa, que na esfera cível abrange todas as
modalidades de culpa e o dolo, é indispensável para que haja responsabilização do notário
titular da serventia.
"Este artigo foi originariamente publicado no Boletim Eletrônico INR nº 5241 - 8/5/2012
(www.gruposerac.com.br)"

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