dossier - Fátima Missionária

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DOSSIER
FÁTIMA MISSIONÁRIA
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Edição LIII | Maio de 2007
Povo
Colômbia: resistência e alternativa no norte do Cauca
que não verga
texto Rádio Nasa e Elísio Assunção fotos Enzo Baldoni
“Sinto-me como um viúvo que amava
muito a sua esposa”, desabafou,
um dia, um bom velho nasa, com
ar sorridente e matreiro. Sentimento
provocado pela sua partida do norte
do Cauca onde viveu cerca de 19 anos.
Vive em Bogotá há cerca de um ano.
É ao mesmo tempo colombiano
de adopção e italiano de origem.
António Bonanomi é missionário
da Consolata. Conversámos com este
“viúvo”, de 73 anos. As palavras
saem-lhe pausadas. Tomou um ar
sério, embora habitualmente goste
de rir e fazer rir.
Profundamente humano, é capaz
de uma enorme compreensão
e solidariedade, que se indigna
perante a injustiça onde quer que ela
aconteça. É capaz de amor eficaz, por
isso apaixonou-se e comprometeu-se
com o povo Nasa até às últimas
consequências. Cansado e ferido pelos
cenários de morte, viu-se
forçado a entrar no caminho da viuvez,
para usar palavras suas. Porém,
procurando e apoiando novas causas.
É este ser excepcional, um homem
valente e fiel que nos abre o coração
António Bonanomi
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FM: Padre António Bonanomi (AB),
você deixou o norte do Cauca há um
ano. Ao olhar para trás, o que é que
mais admira no povo Nasa?
Padre António Bonanomi (AB): Há
um ano que troquei o Cauca por
Bogotá. Durante este tempo, pude
rever a minha experiência de viver
com o povo Nasa.
Há três palavras que resumem esta
caminhada de cerca de 19 anos.
Resistência é a primeira. Admiro imenso a capacidade de resistir daquele
povo. Muitos povos não conseguiram
aprender a resistir e desapareceram. O
povo Nasa resistiu antes da conquista, durante a colonização e resistiu
a todas as invasões que tentaram
roubar-lhe a cultura, o pensamento, a
terra e os seus valores. Muitas vezes,
A cultura indígena é
contrária às culturas
capitalistas e neoliberais,
que pretendem dominar
o mundo – e dominam –
com a política, com
as armas, com as leis
teve de mudar de estratégia: numas,
utilizou a luta armada; noutras o
diálogo, a resistência política. Mas
resistiu sempre e sobreviveu.
FM: Qual é a segunda palavra-chave?
AB: A segunda palavra que ressoa no
meu coração é a esperança, o sonho.
Tive sempre uma grande admiração
pela capacidade de sonhar deste povo.
Depois de viver problemas graves,
o povo conseguiu sempre voltar a
sonhar novos passos, novos projectos.
É impressionante! Quando mataram
os 20 companheiros do Nilo, a 16 de
Novembro de 1991, senti-me perdido.
A esperança morrera no meu coração.
Mas o povo continuou a acreditar e
o sangue dos seus 20 companheiros
tornou-se uma nova força para continuar a luta. Os mártires – e foram
muitos ao longo da sua história,
sobretudo nos últimos anos – em vez
de destruir, fortaleceram a esperança.
A partir dos anos 80, com o padre
Álvaro Ulcué à frente, o povo Nasa
organiza-se e define um plano, que se
torna fonte de esperança e de sonho.
FM: Já agora diga-nos qual é a terceira palavra que explica esta extraordinária caminhada do povo Nasa?
AB: A terceira é a palavra-chave do
Mandato Indígena e Popular, procla-
Nativos da Colômbia reunem-se em Cali para celebrar o Dia da Independência
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mada no congresso extraordinário, realizado no final da marcha de Santander
a Cali, em Setembro de 2004: alternativa. Está enraizada no coração do
povo. É fruto do plano de vida, mas é
também uma síntese nova entre tradição e modernidade, entre autoridade e
democracia, entre valores tradicionais
e valores novos. O povo Nasa não se
resigna a resistir ao sistema. Quer construir uma alternativa. Não quer o poder,
como tantos outros, muito menos com
as armas. Quer construir outra forma de
poder, outra forma de vida.
A raiz de onde brota esta maneira de ser
é uma profunda espiritualidade. Como
cristão, sempre me senti em sintonia
com o povo Nasa. Ele sabe muito bem
que não é dono nem da terra, nem da
vida, nem da criação. Apenas se sente
um guardião que tem de prestar contas
desta responsabilidade que os espíritos
lhe confiaram: cuidar e defender a
mãe-terra, cuidar e promover a vida. É
desta fonte que brotam a resistência, a
esperança e a alternativa.
FM: Estamos numa encruzilhada
difícil e perigosa. Fazer resistência,
manter viva a esperança para construir uma alternativa é um risco.
Como é que os povos indígenas da
Colômbia e da América enfrentam
este desafio?
AB: Na verdade, hoje vive-se um
momento muito difícil. O primeiro
inimigo dos povos da Colômbia é o
sistema imperial que domina a política do país, da terra, da água, da
floresta, dos recursos naturais. A cultura indígena é contrária às culturas
capitalistas e neoliberais, que pretendem dominar o mundo – e dominam
– com a política, com as armas, com
as leis. Consideram-se e são inimigos
declarados dos povos indígenas. Daí
a repressão, as deportações forçadas,
as leis contra os povos indígenas e os
sofrimentos que estes estão a viver.
Por outro lado, o povo Nasa, sobretudo
do norte do Cauca, é um estorvo para
quem quer apoderar-se do poder para
dominar novamente o território e o
país. Dói o coração dizer que o inimigo
Mecanhelas
Sinais de opulência ao lado de muita pobreza
não é apenas o exército. São inimigos
também os grupos subversivos, porque
não compreendem a resistência, nem a
esperança, nem a alternativa. Querem
o poder com as armas, ao passo que
o povo Nasa não quer o poder. Ou
melhor, quer construir outra forma
de poder. Neste sentido é solidário
com muitos outros grupos, como os
afro-americanos, campesinos e o povo
dos bairros populares das cidades. Em
Bogotá, Tocaima, em Maria La Baja e
noutros lados tenho encontrado comunidades de base, homens e mulheres
pobres, humildes, que foram perseguidos e continuam a sofrer por causa
do conflito social, mas também pelo
conflito armado.
FM: Há perspectivas de um futuro
melhor?
AB: Nunca a repressão contra o povo
Nasa foi tão forte, tão poderosa como
hoje. O ilegal converte-se em legal e
o que o estado faz tem a aparência de
legalidade mesmo que viole conti­nua­
mente os direitos dos povos indígenas. Por vezes, o único perigo que se
vê são as armas. Se pensarmos bem,
há outros perigos mais subtis que
dificilmente se enxergam, mas que
são mais determinantes e condicionam o futuro dos povos indígenas.
Em Fevereiro passado, realizou-se
uma audiência pública, em Corinto,
no norte do Cauca, para denunciar ameaças, perseguições e mortes.
Ficou claro que este povo é perseguido de todos os lados, por querer uma
alternativa à situação, outro estilo de
vida. É agredido pela guerra, pelas
leis, por uma campanha difamatória
que manipula os factos com calúnias
irresponsáveis, apresentando à opinião pública internacional o processo
comunitário como uma aliança com
o governo do presidente Uribe.
FM: Qual é o testemunho de quem,
como você, viveu 19 anos envolvido
neste processo?
AB: Quando assumi a direcção do
Centro de Missão e Culturas, em Bogotá,
confesso que me sentia cansado. Esse
cansaço levou-me a aceitar a proposta.
Estava esgotado por ver tantos mortos. Recordava os 20 companheiros
assassinados em Nilo, lembrava-me de
Cristobal, Ademar Pinzon, de todos os
jovens de Toríbio, Tacueyó, Jambaló,
Corinto, Caloto, Munchique… Tive de
acompanhar e partilhar a dor de centenas de famílias. É uma dor que renasce
dentro de mim quando leio os comunicados cheios de mentiras e ameaças
– como acontece nestes dias – de organizações campesinas que se autoproclamam defensoras dos direitos humanos.
Podem esperar-se ameaças, repressão e
morte da parte do estado, que sempre
foi inimigo dos povos indígenas. Mas
não se esperam mentiras e ameaças que
venham de pessoas que se proclamam
líderes de redes de defesa dos direitos
humanos, de pessoas que estão à frente
de organizações campesinas ou de grupos que se dizem defensores do povo.
Quando a perseguição e as mentiras
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Infelizmente
80 por cento
das pessoas vivem
em condições
de extrema miséria
e exclusão.
Os restantes
20 por cento
estão a apoderar-se
de todo o poder
vêm de ambos os lados, é sinal que a
opção pela autonomia é boa. O povo
Nasa optou pela vida, pela defesa da
terra, pela organização comunitária,
pela democracia construída a partir da
base. Por isso pode apresentar a sua
opção a outros grupos humanos do país,
do continente e do mundo. Prova disso
são o Prémio Nacional para a Paz, concedido ao projecto Nasa, o Prémio da
Paz para a Guarda Indígena, o Prémio
Equatorial 2004 das Nações Unidas
para o Desenvolvimento (PNUD). É o
reconhecimento do trabalho a favor
da paz verdadeira, não da paz dos
cemitérios, mas da vida e da fraternidade, da solidariedade e da convivência pacífica. É o caminho não apenas
para “outro mundo possível", mas
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necessário, que está a ser construído,
há anos, a preço de sangue. É tempo
que aqueles que disseram mentiras e
estão a ameaçar, reconheçam que não
é matando os líderes indígenas que se
constrói o futuro da Colômbia. Assim
só destroem a esperança da vida para
muitos não só aqui, mas também noutras partes do mundo.
FM: Na sua opinião, quais são os
sinais de que está a ser construída
uma alternativa?
AB: No projecto de vida do povo
Nasa, que eu chamaria uma democracia construída a partir da base, cada
um tem o direito de falar, de pensar,
de opinar, de actuar e controlar o que
se está a fazer. É um modelo único.
A palavra das crianças é importante
na comunidade Nasa, assim como a
palavra dos jovens e das mulheres.
Este caminho do povo que está a ser
vivido e construído nas assembleias
e encontros, constitui um esforço
enorme e, ao mesmo tempo, um sinal
evidente de uma alternativa.
A este modelo de participação, quero
acrescentar a opção que o povo Nasa
fez pela educação e pela formação da
consciência. É outro grande esforço
para não manipular ou enganar a
comunidade. Trata-se de despertar a
consciência das pessoas como base de
uma verdadeira organização. É uma
força que não vem do alto, mas nasce
de uma consciência desperta e atenta,
com a qual se foi construindo pouco
a pouco a comunidade. Democracia e
consciência são dois pilares que qualificam a alternativa, o novo projecto
de vida que o povo Nasa propõe aos
outros povos indígenas.
FM: Como é que este plano pode
tornar-se alternativa para “outro
mundo possível e necessário” no
cenário da América?
AB: A experiência do norte do Cauca
precisa de mais reflexão. Tem que ser
mais pensada e aprofundada. O futuro tem de ser construído sobre o despertar da consciência. Infelizmente
Pintura alusiva ao mártir padre Álvaro e à sua actividade
Mártir e símbolo dos povos indígenas
Álvaro Ulcué Chocué foi o primei-
ro padre indígena do povo Paez e de
toda a Colômbia. Tornou-se um símbolo do seu povo pelo qual deu a vida.
No dia em que foi ordenado sacerdote
declarou solenemente: “O meu povo
espera muito de mim. Guiá-lo-ei na
medida das minhas forças”.
Álvaro Ulcué nasceu em 1943,
na aldeia indígena de Paez, em Pueblo
Nuevo, de Caldono (Cauca). Terminada
a instrução primária, entrou no seminário menor de Popayán, vendo-se
forçado a desistir por motivos económicos. Mais tarde, apoiado por umas
religiosas, volta novamente ao seminário, para cursar filosofia e teologia.
A sua ordenação sacerdotal, em 1973,
teve grande destaque nos meios de
comunicação. Exerceu o seu ministério em várias aldeias, sendo nomeado
pároco de Toríbio, onde permaneceu
até à morte, salvo pequenas interrupções para se deslocar a Bogotá por
motivo de estudos.
O seu ministério é marcado desde
o início por uma clara consciência da
sua identidade indígena e pela sua
opção a favor dos seus irmãos de raça.
Procurando sempre uma inculturação
profunda do evangelho, experimentou
a opressão e exploração a que eram
submetidos os indígenas. Conseguiu
integrar na sua acção pastoral uma
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dinâmica de conscientização, organização e libertação dos indígenas. Pouco a
pouco tornou-se um líder, articulando
com facilidade este papel com o sacerdócio. Lança projectos, escreve às autoridades, denuncia os atropelos contra
as comunidades indígenas, recupera as
tradições da sua raça, pede o apoio de
antropólogos e sociólogos, incentiva
processos de conscientização e organização indígena. Estavam lançadas as
bases do Mandato Indígena e Popular
Pouco a pouco cresce a oposição dos proprietários e fazendeiros
da região. A perseguição tornou-se
feroz a partir do momento em que um
seu paroquiano foi detido e torturado
80 por cento das pessoas vivem
em condições de extrema miséria e
exclusão. Os restantes 20 por cento
estão a apoderar-se de todo o poder.
O mais triste e dramático é que a
maioria não tem consciência desta
situação. Deixa-se manipular e comprar. As pessoas lutam umas contra
as outras, pensando que o inimigo
é o outro pobre. O mais urgente é
despertar as consciências, sem deixar-se adormecer, muitas vezes, pela
educação oficial.
Em segundo lugar, é necessário incentivar a participação. Nota-se nas eleições que mais de 80 por cento dos que
não votam são os que mais sofrem,
pela polícia, acusado de ter assinado
um documento que denunciava os
atropelos da mesma polícia. Padre
Álvaro foi acusado de ter redigido a
denúncia e de “mandar matar fazendeiros”. Multiplicaram-se calúnias e
agressões verbais, atribuindo-lhe a
responsabilidade de todos os actos
de violência cometidos na região. Em
1981, o «cabildo», autoridade administrativa da aldeia, saiu em defesa
do seu pároco, vítima de numerosas
calúnias dos fazendeiros. Enviou uma
carta ao arcebispo, em que explicava que os “ricos não compreendem
a mudança que iniciámos e por isso
odeiam-no. Caluniam-no e acusam-no
de ser comunista e subversivo, até de
assassino o tratam, porque não compreendem a luz do Evangelho”.
Seguiram-se provocações, foi sujeito a vexames e violências. De nada
valeram os esforços de Álvaro Ulcué
para esclarecer e acalmar a tensão.
Tentou explicar os direitos dos indígenas à terra e a reivindicação dos
seus direitos por vias legais. Acusado
pela polícia e pelos militares de promover a invasão das terras, estava
envolvido numa maquinação que
visava a sua eliminação física. A 10
de Novembro de 1984, o sacerdote
foi assassinado pela própria polícia,
em Santander de Quilichao.
abrindo caminho para que uma
pequena minoria prepotente e soberba domine todo o país. Participação
deverá ser a palavra-chave daqueles
que querem construir o futuro.
Em terceiro lugar, é urgente compreender que nenhum grupo humano ou
povo poderá por si só mudar a realidade, resistir às leis que favorecem o
domínio das multinacionais na exploração da maioria dos seres humanos.
Para resistir e construir a esperança
é preciso criar redes. Como se lê no
Mandato Indígena e Popular, necessitamos uns dos outros para poder
resistir e para construir uma alternativa. Só com uma grande visibilidade
destes processos se poderá construir
uma rede o mais ampla possível que
fortaleça a resistência e permita continuar a sonhar com uma alternativa.
FM: Ao escutar as suas palavras
sobre o sonho do povo Nasa, para
construir uma nova comunidade,
damo-nos conta que estamos muito
perto do sonho de Jesus de Nazaré,
que por isso mesmo morreu assassinado pelo império romano.
AB: Agradeço a Deus que me permitiu passar quase 19 anos a acom-
panhar aquela comunidade. Ali vi
o Evangelho vivo. Na cidade lê-se,
estuda-se, mas quase que não se vê.
Lá tive menos tempo para estudar,
mas vi-o na vida de muitos líderes,
em quem admirei a fortaleza e a
coragem. Nunca viravam a cara aos
perigos. Muitos até pensam que não
são cristãos ou recusam certas formas de o ser. Mas são espelhos vivos
do Evangelho, que não deixam que
a palavra fique sem obras. Vivem
no meio de perigos, de ameaças e de
mentiras, construindo o Reino de um
Deus que é esperança de muitos.
Deixo-lhes uma palavra: não desistam! O caminho é longo! Reúnam-se em comunidade para enfrentar os
problemas! Dentro da comunidade há
desigualdades, injusta repartição das
terras e muitas outras dificuldades. É
preciso enfrentar os problemas, encontrar soluções. O caminho que o padre
Álvaro Ulcué deixou continua a ser o
caminho de Jesus. Não é o caminho do
ódio e das armas, nem das mentiras e
das ameaças. É o caminho da solidariedade e da fraternidade. É o caminho
que valoriza a vida de cada um, a
começar pela vida da Mãe-terra.
Modestas instalações da emissora comunitária
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