O Consórcio Brasil Central e o Desenvolvimento Regional

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O Consórcio Brasil Central e o Desenvolvimento Regional
O Consórcio Brasil
Central e o
Desenvolvimento
Regional
1
Alberto Carlos Lourenço Pereira
Resumo: O propósito deste artigo é refletir sobre os desdobramentos possíveis da recente formação do
Consórcio Brasil Central sobre a política de desenvolvimento regional brasileira. Argumenta que a política
regional brasileira, fragmento remanescente do modelo proposto por Celso Furtado no fim dos anos 50, é
equivocada e incapaz de atingir seu objetivo central: reduzir as assimetrias regionais. Após expor as razões
desse diagnóstico, o artigo acena para o surgimento do Consórcio Brasil Central como um possível arauto de
um novo paradigma de política de desenvolvimento regional caracterizado pela descentralização de poder,
protagonismo de estados e municípios, ênfase no apoio à democratização de oportunidades produtivas e
educacionais e intensa cooperação federativa.
Palavras-chave: Região; Desenvolvimento; Consócio Brasil Central; Cooperação Federativa.
Abstract: The purpose of this article is to reflect on the possible consequences of the recent formation of the
Consortium Central Brazil on Brazil's regional development policy. It argues that Brazil's regional policy,
remaining fragment of the model proposed by Celso Furtado in the late 50s, is misguided and unable to
achieve its central objective: to reduce regional disparities. After laying out the reasons for this diagnosis, the
article beckons to the emergence of the Consortium Central Brazil as a possible proclaimer of a new regional
development policy paradigm characterized by the decentralization of power, the role of states and
municipalities, emphasis on supporting the democratization of educational and productive opportunities
and intense federative cooperative.
Keyboards: Region; Development; Consórcio Brasil Central; Federative Cooperation.
O MODELO DE POLÍTICA REGIONAL E SEU CONTEXTO
O modelo de política regional brasileiro surgiu no fim dos anos 50 quando o Presidente
2
Juscelino Kubitschek, premido por mais uma das secas sazonais no Semiárido nordestino ,
1
Doutor em Planejamento Urbano e Regional, School of Public Affairs, University of California, Los Angeles (UCLA) e
Mestre em Ciências Econômicas, Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG). É formado em Ciências Econômicas, Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas
Gerais. E-mail: [email protected]
2
Esta seca teve grande repercussão no Sudeste devido ao conjunto de reportagens de Antonio Callado, publicadas no
jornal Correio da Manhã, em que o jornalista e escritor expôs os desmandos e desvios da chamada “indústria da seca”. Em
sintonia com a rápida modernização do país, os formadores de opinião cobravam políticas racionais que relegassem ao
passado a chamada “solução hídrica”, outra face da “indústria da seca”, cujo agente institucional era o Departamento
Nacional de Obras contra a Seca - DNOCS.
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encomendou a Celso Furtado um diagnóstico e uma proposta de solução. Até então, a política
federal para o Nordeste consistia na construção de açudes, que atendiam a duplo propósito: elevar
a capacidade de estocagem de água para os anos críticos; e manter os excedentes de força de
trabalho mobilizados na construção dos açudes e à disposição dos grandes proprietários de terra.
Furtado, na época diretor do BNDE, formou no banco uma equipe, denominada de Grupo de
Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste - GTDN. Em poucos meses entregou ao Presidente
um relatório com o título “Uma política para o desenvolvimento do Nordeste”, até hoje referência
obrigatória para o estudo do Nordeste e das desigualdades regionais no Brasil.
A MATRIZ TEÓRICA DO GTDN
Celso Furtado concluíra o doutorado em economia em Paris e depois trabalhara na
Comissão Econômica para a América Latina – CEPAL. O trabalho do GTDN reflete a influência do
que era então a vanguarda das teorias do desenvolvimento. Gunnar Myrdal mostrava que o
desenvolvimento desigual tendia a ampliar o fosso entre regiões ricas e pobres, num processo de
causação circular cumulativa. Romper com a tendência natural à concentração exigia ação
compensatória do Estado. Raul Prebish, com quem Celso Furtado trabalhara na CEPAL,
desenvolvera tese análoga embora enfatizando a persistente deterioração dos termos de troca
entre regiões industriais e outras especializadas em produtos primários. Albert Hirschman,
influenciado pelo fenomenal crescimento da indústria soviética, rejeitava paradigma de
crescimento equilibrado e defendia que países atrasados deveriam criar desequilíbrios setoriais
para forçar a industrialização, de preferência com base em indústrias que gerassem fortes
encadeamentos. Francois Perroux concebeu a noção de que a industrialização se fará a partir de
polos de crescimento, que podem ser induzidos, ideia de imensa força que influenciaria políticas
de desenvolvimento por décadas. Perroux e Jacques Boudeville falam de indústrias motrizes,
aquelas que podem arrastar uma constelação de outras empresas em ritmo acelerado. E, pairando
sobre todas essas formulações otimistas sobre a capacidade do Estado em transformar atraso em
desenvolvimento, a sensação de poder que a experiência soviética de planejamento dirigista e os
modelos keynesianos de crescimento e ciclo ofereciam aos jovens economistas da geração de
Furtado. O que se propunha como explicação e terapia para a desigualdade entre países servia
também para explicar o contraste entre Centro-Sul brasileiro, moderno e industrial, e o Nordeste,
pobre e rural.
A SUDENE E O MODELO DE POLÍTICA DE DESENVOLVIMENTO REGIONAL
A SUDENE foi criada ainda em 1959, com amplo apoio no Congresso Nacional. Celso
Furtado foi indicado como seu primeiro superintendente, cargo que ocupou até 1962, quando
assumiu o recém-criado Ministério do Planejamento, deixando como superintendente interino seu
braço direito, o sociólogo Francisco de Oliveira. Em 1963 retornou à SUDENE e implantou o
programa de incentivos fiscais. Três dias após o golpe militar de 1964, Celso Furtado foi cassado e
teve seus direitos políticos suspensos por 10 anos pelo Ato Institucional n° 1.
O modelo de desenvolvimento concebido pelo GTDN pode ser resumido em suas
características essenciais. A primeira é o foco em macrorregiões, definidas pela situação de atraso
18
relativo. Furtado contrapõe o Nordeste ao Centro-Sul: centro e periferia. A segunda característica é
a prioridade atribuída às indústrias, em especial às grandes indústrias fordistas, como principal
vetor do desenvolvimento. A terceira é a oferta pelo Estado de compensações ao atraso relativo da
região pobre, principalmente incentivos fiscais e crédito subsidiado para atrair empresas que, de
outra forma, se instalariam no Centro-Sul. Finalmente, mas não menos importante, todos os
agentes da transformação desenvolvimentista são instituições federais: a Superintendência de
Desenvolvimento do Nordeste - SUDENE, órgão máximo de planejamento e coordenação; o Banco
do Nordeste, financiamento dirigido; e Companhia hidroelétrica do São Francisco – CHESF,
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fornecimento do insumo crucial, a energia elétrica .
O golpe militar de 1964 teve profundo impacto na composição e funcionamento da
SUDENE. Celso Furtado foi preso, privado de seus direitos políticos por 10 anos e compelido a se
exilar. Assim como ele, quase toda a diretoria foi presa, destituída e substituída por técnicos de
confiança do novo regime. No entanto, o modelo continuou sem maiores alterações. A grande
mudança é a escala em que o mecanismo de incentivos fiscais passou a funcionar. Tratava-se do
chamado 34/18, que devolvia aos investidores a maior parte do imposto de renda devido, desde
que o montante fosse investido em projetos aprovados na área da SUDENE. As maiores empresas
4,
brasileiras aproveitavam o incentivo num momento em que expandiam seus mercados para a
escala nacional. Em suma, a era dos incentivos fiscais de fato aumentou a densidade industrial do
Nordeste. Porém, predominaram as chamadas “turn key factories”: indústrias fordistas, com baixa
ou nenhuma propensão a inovar, indústrias de processo contínuo, em geral no ramo químico, sem
exigências locacionais e baixa absorção de mão de obra, ou indústrias intensivas em mão de obra
desqualificada, que uniam incentivos fiscais a salários mais baixos do que no Centro-Sul.
O modelo SUDENE foi estendido pelo regime militar à Amazônia Legal em 1964, com a
criação da SUDAM, e ao Centro-Oeste em 1967, com a criação da SUDECO. Foram dois casos
distintos. A SUDAM repetiu estritamente o modelo concebido para a SUDENE, inclusive com a
criação do Banco de Desenvolvimento da Amazônia – BASA, à semelhança do Banco do Nordeste.
A SUDECO, por outro lado, não podia conceder incentivos fiscais pelo mecanismo 34/18, ficando
assim desprovida do principal instrumento de atração de capitais, até que encerrada em 1990.
O CARÁTER AUTORITÁRIO DA POLÍTICA REGIONAL
Mais do que mera concentração de funções estratégicas em nível federal, neste modelo de
política regional, estados e municípios são vistos e tratados como meros recipientes de ajuda
FINANCEIRA federal e da racionalidade federal, incapazes de exercer a coordenação de seu próprio
processo de desenvolvimento e de responder à escala e à complexidade dos investimentos
3
A proposta do GTDN era mais profunda e abrangente do que meramente criar diferenciais de custo para atrair plantas
industriais ao Nordeste. O relatório trazia profunda análise do quadro socioeconômico nordestino, da qual derivam
propostas ousadas de reforma agrária na faixa açucareira da Zona da Mata, irrigação com desapropriação e distribuição
das terras adjacentes, e mesmo a transferência induzida de excedentes populacionais do Semiárido para as terras úmidas
da pré-Amazônia maranhense. Esta parcela do diagnóstico do GTDN sucumbiu à resistência do poder político
hegemônico dos grandes proprietários de terra e não foi implementada.
4
Francisco de Oliveira informa que um quarto das maiores empresas operando no Brasil, inclusive as de capital
estrangeiro, se beneficiavam do 34/18
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necessários. Tanto na fase democrática da SUDENE (1960 – 1964), quanto durante o regime militar
(1964 – 1984), o autoritarismo tecnocrático dos instrumentos federais de desenvolvimento regional
se justificava pela desconfiança em relação às elites políticas regionais, vistas como reacionárias
pela esquerda no período democrático, ou como demagógicas e corruptas pelo regime no período
5
autoritário . Aversão ainda mais extremada às elites políticas estaduais permeou a atuação da
SUDAM na Amazônia. O fracasso da SPVEA foi explicitamente atribuído à dissolução da
importância estratégica da Amazônia pela corrupção e pelo grosseiro clientelismo das elites
regionais.
Nem mesmo o fim do regime militar e três décadas de democracia alteraram
fundamentalmente a noção de que o desenvolvimento das regiões atrasadas é tarefa federal e que
as elites políticas locais não são confiáveis. Exemplo eloquente é que quando recriadas, SUDAM e
SUDENE em 2007 e SUDECO em 2009, a composição de votos nos Conselhos Deliberativos
assegurou confortável maioria de votos para representantes da União em relação à soma dos votos
de representantes dos estados e dos municípios. Embora ao longo de todo o período, estados e
municípios tenham formado quadros técnicos competentes e sejam reconhecidamente melhores
para atuar no território, continuam alijados das decisões e tratados como relativamente incapazes.
Excluindo estados e municípios dos círculos de decisão, a política regional se priva da sinergia de
investimentos complementares e do aprendizado que se forja a partir da cooperação.
CRÉDITO SUBSIDIADO: OS INSTRUMENTOS QUE RESTAM
Ao longo das últimas décadas o modelo de política de desenvolvimento regional brasileiro
vem fraquejando, amputado de seus instrumentos e esvaziado de prestígio político. A principal
alteração ocorreu em 2001, quando veio a público uma sucessão de escândalos de desvios e
malversação de recursos do FINAM e do FINOR. Os fundos foram extintos para novos desembolsos
6
e ambas as superintendências extintas . Embora recriadas em 2007, não recuperaram a
prerrogativa de conceder incentivos fiscais. Do modelo original e política de desenvolvimento
regional restou o crédito subsidiado dos Fundos Constitucionais e dos Fundos de
Desenvolvimento. Os Fundos Constitucionais foram criados pela Lei 8.727 de 1989, a partir de
7
provisão constitucional , como resposta ao quadro de fortes oscilações na oferta de crédito nos
anos 80, em especial para a produção agropecuária. Os Fundos de Desenvolvimento foram criados
em 2001 (FDA e FDNE) e 2009 (FDCO), voltados a investimentos em infraestrutura, serviços
públicos e empreendimentos produtivos de importância estratégica. Ao contrário dos Fundos
Constitucionais, os Fundos de Desenvolvimento – FDs dependem do Orçamento Geral da União e
podem ser contingenciados. Até o advento da Lei 12.712 de 2012, os FDs tinham natureza contábil,
5
A obra de referência para a visão de esquerda sobre as elites regionais nordestinas no período da SUDENE é Oliveira,
Francisco, op. cit. Sobre as origens da aversão do regime militar às elites políticas regionais, ver: Lamounier, Bolívar.
“Formação de um pensamento político autoritário na Primeira República: Uma interpretação”, em: História Geral da
Civilização Brasileira, tomo III, vol. II (org. Bóris Fausto), São Paulo, Difel, 1977. Para entender a aversão do autoritarismo
tecnocrático às elites políticas regionais pós-64, ver: Hagopian, Frances, Traditional Politics and Regime Change in Brasil,
Cambridge University Press, New York, 1996.
6
Respectivamente MP 2.157-5 de 2001 e MP 2.156-5 de 2001, especialmente Inciso VIII do .32 .Art
7
Art. 159, Inciso I, alínea c; regulamentada pela Lei 7.827 de 27 de setembro de 1987
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ou seja, recursos não gastos retornavam ao caixa do Tesouro. A partir de 2012, os recursos não
gastos passam a compor o patrimônio dos Fundos. Porém, os desembolsos têm sido descontínuos
e frequentemente usados como parte da engenharia financeira de grandes obras de infraestrutura
8
federais .
Trabalho do IPEA em 2014 se voltou para a avaliação de impacto dos Fundos
Constitucionais. Dos cinco estudos sobre o FNE, três detectaram efeito positivo no nível de
emprego das firmas beneficiadas, um detectou efeito positivo em alguns anos, mas não em outros
e o último não encontrou evidência de efeito positivo no PIB per capita e na produtividade. Dos
sete estudos sobre o FCO, três não detectaram efeito positivo em emprego, renda, produtividade
ou PIB. Dois encontraram efeito concentrador de renda, um foi não conclusivo e um encontrou
efeito positivo em renda per capita dos municípios beneficiados, mas em nível insignificante. De
seis avaliações de impacto do FNO, um encontrou efeito estatisticamente significativo em
produtividade e PIB per capita, dois detectaram efeito insignificante, um não detectou resultado
positivo algum, um alertou para efeito concentrador de renda e o último não foi conclusivo.
Considerando o porte significativo dos desembolsos anuais – previsão de cerca de 20
bilhões de reais em 2015, emprestados a taxas que variam de 2% (PRONAF) a 14,7% nominais
(empresa urbana de grande porte), com taxa média em torno de 6%, os resultados são
desalentadores. A principal hipótese para isso é que o esvaziamento político e a debilidade técnica
das instituições coordenadoras, na prática deixam aos bancos a prerrogativa de alocação do
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crédito. Como os bancos são remunerados em proporção inversa ao risco , privilegiam clientes
capitalizados e setores da economia em que predominam vantagens comparativas estáticas, em
geral pecuária extensiva, mineração, empreendimentos comerciais urbanos e indústrias
tradicionais. Os financiamentos tendem a ser não aditivos, ou seja, beneficiam tomadores que,
dotados de patrimônio, investiriam de qualquer forma. Ao evitar setores que poderiam diversificar
a produção e adensar cadeias produtivas, mas que implicam maior risco, tais como: indústrias de
maior conteúdo tecnológico, start ups e elos crítico das cadeias de valor, os Fundos Constitucionais,
apesar do porte expressivo, se tornam irrelevantes para transformar o perfil da economia.
QUAL ESCALA? QUAL DESENVOLVIMENTO? QUAIS PRIORIDADES?
“TUDO QUE É SÓLIDO SE DESMANCHA NO AR...”
Como vimos, o modelo de política de desenvolvimento regional construído por Celso
Furtado e seus colaboradores refletia a vanguarda da teoria do desenvolvimento da época. Era o
auge do Fordismo. As grandes empresas verticalizadas reinavam sobre mercados quase cativos,
amparadas por grandes acordos com sindicatos e beneficiadas pelas políticas macroeconômicas
de regulação da demanda e de proteção tarifária. Fabricavam produtos pouco diferenciados, de
8
Um exemplo é a ferrovia Transnordestina, em que o FDE aportou 2,7 bilhões de reais.
9
Banco da Amazônia e Banco do Nordeste recebem 3% do valor dos empréstimos e assumem metade do risco. O Banco
do Brasil, cujo porte lhe permite, pelas regras de Basiléia, assumir todo o risco, recebe 6%. A parcela PRONAF tem seu
risco integral assumido pelos próprios Fundos.
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longo ciclo de vida e o ritmo de inovação tecnológica era, consequentemente, lento. Importava a
escala, a dimensão das plantas industriais, o controle de larga fatia de mercado.
A partir da crise capitalista dos anos 70, esse modo de produção entra em crise. A primeira
onda de transformações decorre da crise do Estado fiscal, o que amplia a estagnação causada pela
súbita elevação dos preços do petróleo. A ordem financeira, que se ancorava na conversibilidade
do dólar, dá lugar à instabilidade causada por grandes massas de capital financeiro sem pátria. A
competição internacional se acirra, com a entrada de países emergentes em alguns mercados
industriais. No fim dos anos 70, surgem os primeiros sinais de profundas mudanças nas estruturas
produtivas. No Japão as indústrias fordistas se transformam, ganham flexibilidade, encurtam o ciclo
de produtos, aprimoram a qualidade dos produtos e intensificam a competição em mercados cada
vez mais globalizados. Da Itália, surgem sinais de imprevisto sucesso de formas de produção
industrial antes consideradas inviáveis, pois focadas na fabricação de produtos tradicionais
(vestuário, calçados, cerâmica) por uma constelação de empresas pequenas, mas extremamente
10
ágeis, alternando competição e cooperação . Na Ásia, a Coréia do Sul rapidamente galga escalas
de produção e nível de complexidade tecnológica e a China finalmente desperta.
Na medida em que a rápida mudança nos padrões de produção se consolida, surge uma
nova geografia na indústria. Regiões inteiras sucumbem. O meio oeste norte-americano, com
epicentro em Detroit, desde o início do século a área industrial mais dinâmica do planeta, se
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transforma em um grande cemitério de indústrias . Por outro lado, a Costa Oeste, principalmente
Califórnia, se torna a área mais dinâmica e inovadora do mundo. Além da indústria aeroespacial e
de entretenimento, pequenas empresas de fundo de garagem começam a gestar uma revolução
tecnológica: a indústria da informática.
A informática é uma revolução transversal. Não é apenas um novo, gigantesco mercado de
computadores e programas, mas uma tecnologia que perpassa e transforma radicalmente todos os
setores da indústria, todos os serviços, a agricultura, a vida cotidiana. As transformações da
estrutura produtiva, que já eram dramáticas no início dos anos 80, assumem um ritmo vertiginoso.
Na frase presciente de Karl Marx: “Tudo que é sólido se desmancha no ar”. Grandes corporações
que dominavam mercados mundiais, como a Kodak, desaparecem da noite para o dia, enquanto
empresas de fundo de garagem, como a Microsoft e a Apple, se tornam mega empresas globais.
Setores inteiros da economia de repente se tornam obsoletos, como, por exemplo, a indústria
fonográfica tradicional, em um turbilhão de destruição criadora. A informática desencadeia
revoluções paralelas em biotecnologia, robótica, mecânica de precisão, e em serviços produtivos,
como design ou desktop publishing.
Nos anos 90, essa revolução se acelera ainda mais com a criação da rede mundial de
12
computadores . A revolução nas comunicações é uma revolução dentro da revolução. Informação
10
A obra seminal sobre o surgimento de regiões industriais como a Terceira Itália é PIORE, Michael and SABEL, Charles.
The Second Industrial Divide: possibilities for prosperity, New York, Basic Books, 1984.
11
A região passou a ser conhecida como rust belt, ou “cinturão da ferrugem”. A população de Detroit cai de 1.900.000
habitantes em 1950 para 700.000 em 2010.
12
A internet foi criada a partir de esforços combinados de duas universidades do sistema público da Califórnia: Berkeley
e UCLA, a partir de encomendas e financiamentos do setor de defesa norte-americano.
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e conhecimento passam a ter acesso quase ilimitado e a custo zero. A aceleração constante da
capacidade de processamento e de transmissão de dados altera as condições da própria pesquisa
tecnológica, gerando redes globais, acelerando e aprofundando resultados, em uma corrida
vertiginosa.
Os determinantes do sucesso ou do fracasso das regiões na competição global se alteram
dramaticamente. O índice de um dos livros clássicos sobre o novo padrão de desenvolvimento no
espaço é ilustrativo da dimensão das transformações. Trata as novas economias como “ativos
relacionais”. Fala de “reflexividade”, de “convenções, coordenação e racionalidade”, de
“conhecimento tácito”, de “economias de aprendizado”. O desenvolvimento das regiões é cada vez
mais entendido como um processo de ação coletiva, em que empresas cooperam ao mesmo
tempo em que competem.
Inevitavelmente, também se altera o perfil das políticas públicas de desenvolvimento. Ao
invés de se limitar à regulação macroeconômica da demanda e à proteção tarifária, o Estado passa
a assumir etapas críticas e de alto risco da pesquisa básica, o que resulta em inovações de uso
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difundido . Também na esfera das políticas públicas vence o imperativo da flexibilidade, das
respostas rápidas às alterações nas demandas de produtores e setores sociais. Sobretudo, o Estado
contemporâneo deve ser um catalisador de cooperação e coordenação, tanto entre agentes
privados, como entre produtores e agências de governo.
A POLÍTICA REGIONAL QUE NÃO QUEREMOS
A despeito das radicais transformações brevemente descritas acima, a que ninguém se
oporia se as chamássemos de revolucionárias, o modelo de política de desenvolvimento regional
brasileiro continua fundamentalmente o mesmo que Celso Furtado e seus pares desenharam no
fim dos anos 50. Nenhuma das dimensões críticas das novas indústrias e dos novos vetores de
dinamismo econômico é sequer considerada. A resiliência de um modelo tão ultrapassado
surpreende, pois os indicadores de sua falência são acachapantes. Em 56 anos de SUDENE, a
14
participação relativa do Nordeste no PIB brasileiro caiu . A Amazônia não se saiu melhor após 51
anos de SUDAM. Sua renda per capita permanece estagnada em torno de metade da renda
nacional e sua economia especializada na produção de commoditties agrícolas. O único caso de
15
macrorregião que superou o atraso relativo foi o Centro-Oeste , justamente a região que foi
menos aquinhoada com políticas compensatórias de desenvolvimento regional, pois sua
instituição coordenadora, a SUDECO, é tardia e descontínua, além de jamais ter manipulado
13
Há farta e instigante literatura sobre o novo perfil do Estado indutor de desenvolvimento, com ênfase em inovação
tecnológica. Os exemplos são diversos e, naturalmente, se destacam os exemplos da Ásia, especialmente Coréia do
Sul, Taywan e China. Mas o caso mais estudado é o dos Estados Unidos, sempre o líder em inovação. Especial atenção
é dada à relação entre inovação tecnológica e a agenda de pesquisa do setor de defesa. A referência clássica é
MARKUSEN, Ann. The Rise of the Gunn Belt: the remaping of industrial America, London, Oxford Press. 1991
14
Em 1960, logo após a criação da SUDENE o PIB do Nordeste equivalia a 14,8% do PIB nacional. Em 1970 caiu para
11,7%. Em 1980: 12%. Em 1991: 13,4%. Em 2000 cai para 13,1%, onde permanece até 2010.
15
A participação do PIB do Centro-Oeste no PIB nacional sobe de 2,6% em 1960 para 8,9% em 2010. A renda per capita
cresceu 80% mais do que a média nacional, enquanto todas as outras regiões permaneceram praticamente em torno
da média.
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generosos esquemas de incentivos fiscais. O sucesso do Centro-Oeste ocorreu a despeito e não por
causa da política regional. As tentativas de mudança no perfil da política regional fracassaram. A
Política Nacional de Desenvolvimento Regional, elaborada em 2006 pelo Ministério da Integração
16,
Nacional, tinha algum mérito mas padecia de equívocos conceituais e de base empírica
inadequada a ponto de ser um referencial inútil. Dependia também da criação de um novo fundo
regional, que não foi aprovado. Jamais se transformou em um instrumento de coordenação da
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política de desenvolvimento regional e teve quase nenhuma consequência operacional .
A POLÍTICA REGIONAL QUE QUEREMOS
Roberto Mangabeira Unger traçou os contornos de uma nova política regional em texto
desenvolvido a partir de discussões com os governadores e a sociedade civil do Nordeste, quando
Ministro Chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos, em 2009. Não faz sentido que a política de
desenvolvimento regional seja essencialmente um conjunto de magras compensações pelo atraso
relativo, argumentou. Política regional é a coordenação de ações de desenvolvimento no território
e, como tal, se aplica a todo o país. São Paulo precisa de política regional, assim como o Sul do país,
tanto quanto a Amazônia e o Nordeste. A estratégia da política regional não deve olhar para um
padrão Fordista ultrapassado, que serviu ao Sudeste brasileiro na década de 50, mas que hoje
encarna a expressão famosa de Boudeville: “catedrais no deserto”. Não faz sentido numa economia
globalizada, com alto grau de especialização, buscar repetir São Paulo de meados do século
passado, como se depreende da política atual.
O propósito da política regional é prospectar e acalentar embriões de formações
produtivas que contenham as características dos arranjos produtivos de vanguarda, tais como:
propensão a cooperar, alta transitividade entre atores, flexibilidade e agilidade, abertura à
inovação. Neste sentido, arranjos informais vistos erroneamente como primitivos, a exemplo dos
polos têxteis e de confecções de Toritama, Caruaru e Santa Cruz do Capiberibe em Pernambuco, ou
Jardim de Piranhas, no Rio Grande do Norte, Bonfim, na Paraíba, ou a produção tecnificada de mel
em Picos, no Piauí. Embora operando com tecnologias que combinam o atrasado e o moderno, os
arranjos sociais de cooperação competitiva estão muito mais próximos da vanguarda industrial do
mundo do que as grandes unidades Fordistas movidas a incentivos fiscais. Em outras palavras, a
política regional deve procurar as virtudes endógenas e dar-lhes os instrumentos para que se
transformem em empresas inovadoras na competição global. Deve trazer a vanguarda para a
retaguarda. Para isso, a política deve ser o contrário do que temos hoje. Ao invés de instrumentos
passivos, como o crédito subsidiado ao sabor dos humores de gerentes de banco, políticas ativas
de indução tecnológica e de coordenação entre empresas privadas e entre elas e os governos. Ao
invés de autoritarismo tecnocrático, transitividade intensa e aprendizado mútuo. Ao invés do
monopólio decisório de burocratas federais, a cooperação entre os diversos níveis da Federação,
cada qual na escala e papel adequados.
16
O principal mérito é perceber que política regional se aplica a todo o país, não apenas às regiões “atrasadas”.
17
Uma discussão sobre a PNDR, embora pertinente, transcende o escopo deste artigo. A única instância em que a PNDR
se aproxima de ter um efeito concreto em política pública é o condicionamento que supostamente impõe à alocação de
recursos dos Fundos Constitucionais. No entanto, todas as análises de impacto convergem na conclusão de que tais
diretrizes são sistematicamente desrespeitadas.
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EPÍLOGO: AS PERSPECTIVAS ABERTAS PELO CONSÓRCIO BRASIL CENTRAL
Em julho de 2015, a partir de uma provocação do Ministro Mangabeira, o governador de
Goiás, Marconi Perillo, convidou os demais governadores do Centro-Oeste e o governador de
Tocantins para uma reunião de trabalho em Goiânia. Nesta ocasião decidiu-se a criação de um
Fórum de Governadores. Na reunião seguinte, em Cuiabá, se juntou a eles o governador de
Rondônia. Nas reuniões subsequentes, com intervalos de menos de um mês, foi acordado que o
instrumento de cooperação adequado seria um Consórcio Interestadual, com identidade
institucional de autarquia de direito público. Em outubro, na capital do Mato Grosso do Sul, foi
criado o Consórcio Interestadual de Desenvolvimento do Brasil Central, que, já na reunião de
novembro, em Brasília, havia sido aprovado por todas as Assembleias Legislativas dos estados
participantes. É o primeiro consórcio de governos de estado da história do Brasil.
Mesmo antes de formalmente constituído, o Consórcio já definia horizontes de cooperação
em políticas públicas. Acordos foram celebrados entre os estados participantes e instituições da
sociedade civil para a formação de professores, que multipliquem iniciativas de capacitação
18
docente; e para a modernização administrativa dos governos . Outras iniciativas de cooperação
horizontal entre estados já se iniciaram em diversas áreas em que as sinergias são explícitas, tais
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como: defesa sanitária; infraestrutura logística; gestão de recursos hídricos; e gestão ambiental .
Também foram iniciados estudos visando à possível convergência e harmonização das políticas
tributárias.
A cooperação entre agências de governo é um fenômeno pouco estudado. Em geral,
predominam os casos relativos à gestão ambiental, tanto devido à natureza transversal do tema,
que exige a interação de diferentes agências, como por transcender fronteiras institucionais, o que
exige colaboração entre diferentes domínios. Bob Hudson e outros, em artigo seminal, após
extenso exame da literatura, listam dez componentes que caracterizam a propensão à cooperação
entre agências. São eles: Fatores contextuais: expectativas e restrições; Reconhecimento da
necessidade de cooperar; Identificação de bases legítimas para a cooperação; Reconhecimento da
capacidade prática de colaborar; Percepção clara e compartilhada dos objetivos da cooperação;
Construção de laços de confiança; Garantia de compartilhamento dos benefícios; Capacidade de
nutrir relações frágeis; Definição de formas de colaboração apropriadas; e Compartilhamento da
estratégia. Todas essas condições estão presentes, entre os membros do Consórcio, na maioria dos
casos em grande medida.
Talvez o melhor indício do imenso potencial de colaboração horizontal entre os estados
membros do Brasil Central seja o convívio frequente entre os indivíduos de primeiro escalão,
especialmente Secretários de Estado e Procuradores de Estado. Essa proximidade gera diversos
efeitos positivos. Em primeiro lugar, aumenta a disposição tácita ao aprendizado mútuo.
Estratégias administrativas bem sucedidas começam a ser trocadas, do que resulta uma
18
Respectivamente acordos com a Fundação Unibanco e com o Movimento Brasil Competitivo.
19
Para uma visão de cooperação entre membros do Consórcio pela ótica constitucional, ver: MARRAFON, Marco A.
Consórcio Brasil Central é experiência inovadora do federalismo cooperativo, em: http://www.conjur.com.br/2015-set22/constituicao-poder-consorcio-brasil-central-experiencia-inovadora-cooperativismo acessado em 18/11/2015.
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convergência acelerada rumo a padrões elevados de desempenho. Já são frequentes as visitas de
trabalho, em que especialistas de um estado servem como tutores na implantação de melhores
rotinas ou programas em outro. Percebe-se uma clara propensão à troca ocasional de capacidades,
em resposta a situações anômalas ou a picos de demanda por serviços públicos. Difunde-se a
percepção de crescente interdependência, condição essencial para o aprofundamento e para a
invenção de novos horizontes para a cooperação.
Paralelamente, fortalece a propensão a atuação política conjunta. Além da coesão entre os
governadores, as bancadas estaduais no Congresso Nacional se aproximam e já foi criada
formalmente uma Frente Parlamentar do Brasil Central, o que aumenta a força política das
demandas e propostas do Consórcio. Embora recente, a experiência exitosa já inspira outros blocos
regionais. No dia 20 de novembro, em Belém, os governadores da Amazônia Legal, dentre os quais
se incluem três participantes do Consórcio Brasil Central, decidiram-se pela criação de “uma
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instituição que formalize sua disposição à cooperação federativa” .
A pergunta final procura a síntese entre a primeira e a segunda parte deste artigo: Até que
ponto e de que forma iniciativas como o Consórcio Brasil Central podem ser fatores de renovação
da política de desenvolvimento regional brasileira?
A ação dos governadores já começa a apontar rumos. Em novembro, durante a reunião de
Brasília, os governadores foram ao Ministro da Integração Nacional e manifestaram seu desejo de
mudar o modelo de aplicação dos recursos dos Fundos Constitucionais. Querem que tanto as
diretrizes estratégicas definidas pelo Consórcio, como as prioridades de suas carteiras de projetos
de desenvolvimento, sejam priorizadas pela SUDECO e pela SUDAM. Em contrapartida, se dispõem
a participar ativamente da gestão operacional da política, por meio de sua presença nos Conselhos
Deliberativos dos Fundos. Discutem propostas de alterações no marco regulador dos Fundos, no
sentido de aumentar a aditividade dos empréstimos, entender a pertinência de alguma abertura a
níveis mais elevados de risco, inevitáveis em áreas produtivas caracterizadas por intensa inovação.
Ao mesmo tempo, avançam na percepção do que é a escala virtuosa para a atuação dos estados.
Como vimos, desenvolvimento regional exige cada vez mais nutrir e capacitar potenciais
endógenos, o que implica em proximidade e transitividade. Espera-se que tal percepção seja um
estímulo a mais para estimular a adesão de prefeitos e outras autoridades municipais. Embora a
rigidez do federalismo brasileiro, que se expressa principalmente na legislação federal, seja
obstáculo à experimentação, a força política derivada de experiências bem sucedidas de
cooperação entre estados pode ser a cunha que, ao desencadear fraturas no marco legal e no
aparato de controle, abra espaço para a emergência de modelos de políticas públicas mais
modernos e satisfatórios. Celso Furtado, um homem aberto ao mundo e ao seu tempo, concordaria
e assinaria embaixo.
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Os governadores da Amazônia foram os primeiros a se organizarem em um Fórum oficial, com reuniões sistemáticas. A
partir de reunião precursora em Belém, em 2008, já foram realizadas 10 reuniões, das quais 8 entre 2008 e 2010. Este
Fórum teve papel decisivo na iniciativa histórica de enfrentar o caos fundiário que atrasa o desenvolvimento sustentável
da região.
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