O Consórcio Brasil Central e o Desenvolvimento Regional
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O Consórcio Brasil Central e o Desenvolvimento Regional
O Consórcio Brasil Central e o Desenvolvimento Regional 1 Alberto Carlos Lourenço Pereira Resumo: O propósito deste artigo é refletir sobre os desdobramentos possíveis da recente formação do Consórcio Brasil Central sobre a política de desenvolvimento regional brasileira. Argumenta que a política regional brasileira, fragmento remanescente do modelo proposto por Celso Furtado no fim dos anos 50, é equivocada e incapaz de atingir seu objetivo central: reduzir as assimetrias regionais. Após expor as razões desse diagnóstico, o artigo acena para o surgimento do Consórcio Brasil Central como um possível arauto de um novo paradigma de política de desenvolvimento regional caracterizado pela descentralização de poder, protagonismo de estados e municípios, ênfase no apoio à democratização de oportunidades produtivas e educacionais e intensa cooperação federativa. Palavras-chave: Região; Desenvolvimento; Consócio Brasil Central; Cooperação Federativa. Abstract: The purpose of this article is to reflect on the possible consequences of the recent formation of the Consortium Central Brazil on Brazil's regional development policy. It argues that Brazil's regional policy, remaining fragment of the model proposed by Celso Furtado in the late 50s, is misguided and unable to achieve its central objective: to reduce regional disparities. After laying out the reasons for this diagnosis, the article beckons to the emergence of the Consortium Central Brazil as a possible proclaimer of a new regional development policy paradigm characterized by the decentralization of power, the role of states and municipalities, emphasis on supporting the democratization of educational and productive opportunities and intense federative cooperative. Keyboards: Region; Development; Consórcio Brasil Central; Federative Cooperation. O MODELO DE POLÍTICA REGIONAL E SEU CONTEXTO O modelo de política regional brasileiro surgiu no fim dos anos 50 quando o Presidente 2 Juscelino Kubitschek, premido por mais uma das secas sazonais no Semiárido nordestino , 1 Doutor em Planejamento Urbano e Regional, School of Public Affairs, University of California, Los Angeles (UCLA) e Mestre em Ciências Econômicas, Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). É formado em Ciências Econômicas, Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected] 2 Esta seca teve grande repercussão no Sudeste devido ao conjunto de reportagens de Antonio Callado, publicadas no jornal Correio da Manhã, em que o jornalista e escritor expôs os desmandos e desvios da chamada “indústria da seca”. Em sintonia com a rápida modernização do país, os formadores de opinião cobravam políticas racionais que relegassem ao passado a chamada “solução hídrica”, outra face da “indústria da seca”, cujo agente institucional era o Departamento Nacional de Obras contra a Seca - DNOCS. 17 encomendou a Celso Furtado um diagnóstico e uma proposta de solução. Até então, a política federal para o Nordeste consistia na construção de açudes, que atendiam a duplo propósito: elevar a capacidade de estocagem de água para os anos críticos; e manter os excedentes de força de trabalho mobilizados na construção dos açudes e à disposição dos grandes proprietários de terra. Furtado, na época diretor do BNDE, formou no banco uma equipe, denominada de Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste - GTDN. Em poucos meses entregou ao Presidente um relatório com o título “Uma política para o desenvolvimento do Nordeste”, até hoje referência obrigatória para o estudo do Nordeste e das desigualdades regionais no Brasil. A MATRIZ TEÓRICA DO GTDN Celso Furtado concluíra o doutorado em economia em Paris e depois trabalhara na Comissão Econômica para a América Latina – CEPAL. O trabalho do GTDN reflete a influência do que era então a vanguarda das teorias do desenvolvimento. Gunnar Myrdal mostrava que o desenvolvimento desigual tendia a ampliar o fosso entre regiões ricas e pobres, num processo de causação circular cumulativa. Romper com a tendência natural à concentração exigia ação compensatória do Estado. Raul Prebish, com quem Celso Furtado trabalhara na CEPAL, desenvolvera tese análoga embora enfatizando a persistente deterioração dos termos de troca entre regiões industriais e outras especializadas em produtos primários. Albert Hirschman, influenciado pelo fenomenal crescimento da indústria soviética, rejeitava paradigma de crescimento equilibrado e defendia que países atrasados deveriam criar desequilíbrios setoriais para forçar a industrialização, de preferência com base em indústrias que gerassem fortes encadeamentos. Francois Perroux concebeu a noção de que a industrialização se fará a partir de polos de crescimento, que podem ser induzidos, ideia de imensa força que influenciaria políticas de desenvolvimento por décadas. Perroux e Jacques Boudeville falam de indústrias motrizes, aquelas que podem arrastar uma constelação de outras empresas em ritmo acelerado. E, pairando sobre todas essas formulações otimistas sobre a capacidade do Estado em transformar atraso em desenvolvimento, a sensação de poder que a experiência soviética de planejamento dirigista e os modelos keynesianos de crescimento e ciclo ofereciam aos jovens economistas da geração de Furtado. O que se propunha como explicação e terapia para a desigualdade entre países servia também para explicar o contraste entre Centro-Sul brasileiro, moderno e industrial, e o Nordeste, pobre e rural. A SUDENE E O MODELO DE POLÍTICA DE DESENVOLVIMENTO REGIONAL A SUDENE foi criada ainda em 1959, com amplo apoio no Congresso Nacional. Celso Furtado foi indicado como seu primeiro superintendente, cargo que ocupou até 1962, quando assumiu o recém-criado Ministério do Planejamento, deixando como superintendente interino seu braço direito, o sociólogo Francisco de Oliveira. Em 1963 retornou à SUDENE e implantou o programa de incentivos fiscais. Três dias após o golpe militar de 1964, Celso Furtado foi cassado e teve seus direitos políticos suspensos por 10 anos pelo Ato Institucional n° 1. O modelo de desenvolvimento concebido pelo GTDN pode ser resumido em suas características essenciais. A primeira é o foco em macrorregiões, definidas pela situação de atraso 18 relativo. Furtado contrapõe o Nordeste ao Centro-Sul: centro e periferia. A segunda característica é a prioridade atribuída às indústrias, em especial às grandes indústrias fordistas, como principal vetor do desenvolvimento. A terceira é a oferta pelo Estado de compensações ao atraso relativo da região pobre, principalmente incentivos fiscais e crédito subsidiado para atrair empresas que, de outra forma, se instalariam no Centro-Sul. Finalmente, mas não menos importante, todos os agentes da transformação desenvolvimentista são instituições federais: a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste - SUDENE, órgão máximo de planejamento e coordenação; o Banco do Nordeste, financiamento dirigido; e Companhia hidroelétrica do São Francisco – CHESF, 3 fornecimento do insumo crucial, a energia elétrica . O golpe militar de 1964 teve profundo impacto na composição e funcionamento da SUDENE. Celso Furtado foi preso, privado de seus direitos políticos por 10 anos e compelido a se exilar. Assim como ele, quase toda a diretoria foi presa, destituída e substituída por técnicos de confiança do novo regime. No entanto, o modelo continuou sem maiores alterações. A grande mudança é a escala em que o mecanismo de incentivos fiscais passou a funcionar. Tratava-se do chamado 34/18, que devolvia aos investidores a maior parte do imposto de renda devido, desde que o montante fosse investido em projetos aprovados na área da SUDENE. As maiores empresas 4, brasileiras aproveitavam o incentivo num momento em que expandiam seus mercados para a escala nacional. Em suma, a era dos incentivos fiscais de fato aumentou a densidade industrial do Nordeste. Porém, predominaram as chamadas “turn key factories”: indústrias fordistas, com baixa ou nenhuma propensão a inovar, indústrias de processo contínuo, em geral no ramo químico, sem exigências locacionais e baixa absorção de mão de obra, ou indústrias intensivas em mão de obra desqualificada, que uniam incentivos fiscais a salários mais baixos do que no Centro-Sul. O modelo SUDENE foi estendido pelo regime militar à Amazônia Legal em 1964, com a criação da SUDAM, e ao Centro-Oeste em 1967, com a criação da SUDECO. Foram dois casos distintos. A SUDAM repetiu estritamente o modelo concebido para a SUDENE, inclusive com a criação do Banco de Desenvolvimento da Amazônia – BASA, à semelhança do Banco do Nordeste. A SUDECO, por outro lado, não podia conceder incentivos fiscais pelo mecanismo 34/18, ficando assim desprovida do principal instrumento de atração de capitais, até que encerrada em 1990. O CARÁTER AUTORITÁRIO DA POLÍTICA REGIONAL Mais do que mera concentração de funções estratégicas em nível federal, neste modelo de política regional, estados e municípios são vistos e tratados como meros recipientes de ajuda FINANCEIRA federal e da racionalidade federal, incapazes de exercer a coordenação de seu próprio processo de desenvolvimento e de responder à escala e à complexidade dos investimentos 3 A proposta do GTDN era mais profunda e abrangente do que meramente criar diferenciais de custo para atrair plantas industriais ao Nordeste. O relatório trazia profunda análise do quadro socioeconômico nordestino, da qual derivam propostas ousadas de reforma agrária na faixa açucareira da Zona da Mata, irrigação com desapropriação e distribuição das terras adjacentes, e mesmo a transferência induzida de excedentes populacionais do Semiárido para as terras úmidas da pré-Amazônia maranhense. Esta parcela do diagnóstico do GTDN sucumbiu à resistência do poder político hegemônico dos grandes proprietários de terra e não foi implementada. 4 Francisco de Oliveira informa que um quarto das maiores empresas operando no Brasil, inclusive as de capital estrangeiro, se beneficiavam do 34/18 19 necessários. Tanto na fase democrática da SUDENE (1960 – 1964), quanto durante o regime militar (1964 – 1984), o autoritarismo tecnocrático dos instrumentos federais de desenvolvimento regional se justificava pela desconfiança em relação às elites políticas regionais, vistas como reacionárias pela esquerda no período democrático, ou como demagógicas e corruptas pelo regime no período 5 autoritário . Aversão ainda mais extremada às elites políticas estaduais permeou a atuação da SUDAM na Amazônia. O fracasso da SPVEA foi explicitamente atribuído à dissolução da importância estratégica da Amazônia pela corrupção e pelo grosseiro clientelismo das elites regionais. Nem mesmo o fim do regime militar e três décadas de democracia alteraram fundamentalmente a noção de que o desenvolvimento das regiões atrasadas é tarefa federal e que as elites políticas locais não são confiáveis. Exemplo eloquente é que quando recriadas, SUDAM e SUDENE em 2007 e SUDECO em 2009, a composição de votos nos Conselhos Deliberativos assegurou confortável maioria de votos para representantes da União em relação à soma dos votos de representantes dos estados e dos municípios. Embora ao longo de todo o período, estados e municípios tenham formado quadros técnicos competentes e sejam reconhecidamente melhores para atuar no território, continuam alijados das decisões e tratados como relativamente incapazes. Excluindo estados e municípios dos círculos de decisão, a política regional se priva da sinergia de investimentos complementares e do aprendizado que se forja a partir da cooperação. CRÉDITO SUBSIDIADO: OS INSTRUMENTOS QUE RESTAM Ao longo das últimas décadas o modelo de política de desenvolvimento regional brasileiro vem fraquejando, amputado de seus instrumentos e esvaziado de prestígio político. A principal alteração ocorreu em 2001, quando veio a público uma sucessão de escândalos de desvios e malversação de recursos do FINAM e do FINOR. Os fundos foram extintos para novos desembolsos 6 e ambas as superintendências extintas . Embora recriadas em 2007, não recuperaram a prerrogativa de conceder incentivos fiscais. Do modelo original e política de desenvolvimento regional restou o crédito subsidiado dos Fundos Constitucionais e dos Fundos de Desenvolvimento. Os Fundos Constitucionais foram criados pela Lei 8.727 de 1989, a partir de 7 provisão constitucional , como resposta ao quadro de fortes oscilações na oferta de crédito nos anos 80, em especial para a produção agropecuária. Os Fundos de Desenvolvimento foram criados em 2001 (FDA e FDNE) e 2009 (FDCO), voltados a investimentos em infraestrutura, serviços públicos e empreendimentos produtivos de importância estratégica. Ao contrário dos Fundos Constitucionais, os Fundos de Desenvolvimento – FDs dependem do Orçamento Geral da União e podem ser contingenciados. Até o advento da Lei 12.712 de 2012, os FDs tinham natureza contábil, 5 A obra de referência para a visão de esquerda sobre as elites regionais nordestinas no período da SUDENE é Oliveira, Francisco, op. cit. Sobre as origens da aversão do regime militar às elites políticas regionais, ver: Lamounier, Bolívar. “Formação de um pensamento político autoritário na Primeira República: Uma interpretação”, em: História Geral da Civilização Brasileira, tomo III, vol. II (org. Bóris Fausto), São Paulo, Difel, 1977. Para entender a aversão do autoritarismo tecnocrático às elites políticas regionais pós-64, ver: Hagopian, Frances, Traditional Politics and Regime Change in Brasil, Cambridge University Press, New York, 1996. 6 Respectivamente MP 2.157-5 de 2001 e MP 2.156-5 de 2001, especialmente Inciso VIII do .32 .Art 7 Art. 159, Inciso I, alínea c; regulamentada pela Lei 7.827 de 27 de setembro de 1987 20 ou seja, recursos não gastos retornavam ao caixa do Tesouro. A partir de 2012, os recursos não gastos passam a compor o patrimônio dos Fundos. Porém, os desembolsos têm sido descontínuos e frequentemente usados como parte da engenharia financeira de grandes obras de infraestrutura 8 federais . Trabalho do IPEA em 2014 se voltou para a avaliação de impacto dos Fundos Constitucionais. Dos cinco estudos sobre o FNE, três detectaram efeito positivo no nível de emprego das firmas beneficiadas, um detectou efeito positivo em alguns anos, mas não em outros e o último não encontrou evidência de efeito positivo no PIB per capita e na produtividade. Dos sete estudos sobre o FCO, três não detectaram efeito positivo em emprego, renda, produtividade ou PIB. Dois encontraram efeito concentrador de renda, um foi não conclusivo e um encontrou efeito positivo em renda per capita dos municípios beneficiados, mas em nível insignificante. De seis avaliações de impacto do FNO, um encontrou efeito estatisticamente significativo em produtividade e PIB per capita, dois detectaram efeito insignificante, um não detectou resultado positivo algum, um alertou para efeito concentrador de renda e o último não foi conclusivo. Considerando o porte significativo dos desembolsos anuais – previsão de cerca de 20 bilhões de reais em 2015, emprestados a taxas que variam de 2% (PRONAF) a 14,7% nominais (empresa urbana de grande porte), com taxa média em torno de 6%, os resultados são desalentadores. A principal hipótese para isso é que o esvaziamento político e a debilidade técnica das instituições coordenadoras, na prática deixam aos bancos a prerrogativa de alocação do 9 crédito. Como os bancos são remunerados em proporção inversa ao risco , privilegiam clientes capitalizados e setores da economia em que predominam vantagens comparativas estáticas, em geral pecuária extensiva, mineração, empreendimentos comerciais urbanos e indústrias tradicionais. Os financiamentos tendem a ser não aditivos, ou seja, beneficiam tomadores que, dotados de patrimônio, investiriam de qualquer forma. Ao evitar setores que poderiam diversificar a produção e adensar cadeias produtivas, mas que implicam maior risco, tais como: indústrias de maior conteúdo tecnológico, start ups e elos crítico das cadeias de valor, os Fundos Constitucionais, apesar do porte expressivo, se tornam irrelevantes para transformar o perfil da economia. QUAL ESCALA? QUAL DESENVOLVIMENTO? QUAIS PRIORIDADES? “TUDO QUE É SÓLIDO SE DESMANCHA NO AR...” Como vimos, o modelo de política de desenvolvimento regional construído por Celso Furtado e seus colaboradores refletia a vanguarda da teoria do desenvolvimento da época. Era o auge do Fordismo. As grandes empresas verticalizadas reinavam sobre mercados quase cativos, amparadas por grandes acordos com sindicatos e beneficiadas pelas políticas macroeconômicas de regulação da demanda e de proteção tarifária. Fabricavam produtos pouco diferenciados, de 8 Um exemplo é a ferrovia Transnordestina, em que o FDE aportou 2,7 bilhões de reais. 9 Banco da Amazônia e Banco do Nordeste recebem 3% do valor dos empréstimos e assumem metade do risco. O Banco do Brasil, cujo porte lhe permite, pelas regras de Basiléia, assumir todo o risco, recebe 6%. A parcela PRONAF tem seu risco integral assumido pelos próprios Fundos. 21 longo ciclo de vida e o ritmo de inovação tecnológica era, consequentemente, lento. Importava a escala, a dimensão das plantas industriais, o controle de larga fatia de mercado. A partir da crise capitalista dos anos 70, esse modo de produção entra em crise. A primeira onda de transformações decorre da crise do Estado fiscal, o que amplia a estagnação causada pela súbita elevação dos preços do petróleo. A ordem financeira, que se ancorava na conversibilidade do dólar, dá lugar à instabilidade causada por grandes massas de capital financeiro sem pátria. A competição internacional se acirra, com a entrada de países emergentes em alguns mercados industriais. No fim dos anos 70, surgem os primeiros sinais de profundas mudanças nas estruturas produtivas. No Japão as indústrias fordistas se transformam, ganham flexibilidade, encurtam o ciclo de produtos, aprimoram a qualidade dos produtos e intensificam a competição em mercados cada vez mais globalizados. Da Itália, surgem sinais de imprevisto sucesso de formas de produção industrial antes consideradas inviáveis, pois focadas na fabricação de produtos tradicionais (vestuário, calçados, cerâmica) por uma constelação de empresas pequenas, mas extremamente 10 ágeis, alternando competição e cooperação . Na Ásia, a Coréia do Sul rapidamente galga escalas de produção e nível de complexidade tecnológica e a China finalmente desperta. Na medida em que a rápida mudança nos padrões de produção se consolida, surge uma nova geografia na indústria. Regiões inteiras sucumbem. O meio oeste norte-americano, com epicentro em Detroit, desde o início do século a área industrial mais dinâmica do planeta, se 11 transforma em um grande cemitério de indústrias . Por outro lado, a Costa Oeste, principalmente Califórnia, se torna a área mais dinâmica e inovadora do mundo. Além da indústria aeroespacial e de entretenimento, pequenas empresas de fundo de garagem começam a gestar uma revolução tecnológica: a indústria da informática. A informática é uma revolução transversal. Não é apenas um novo, gigantesco mercado de computadores e programas, mas uma tecnologia que perpassa e transforma radicalmente todos os setores da indústria, todos os serviços, a agricultura, a vida cotidiana. As transformações da estrutura produtiva, que já eram dramáticas no início dos anos 80, assumem um ritmo vertiginoso. Na frase presciente de Karl Marx: “Tudo que é sólido se desmancha no ar”. Grandes corporações que dominavam mercados mundiais, como a Kodak, desaparecem da noite para o dia, enquanto empresas de fundo de garagem, como a Microsoft e a Apple, se tornam mega empresas globais. Setores inteiros da economia de repente se tornam obsoletos, como, por exemplo, a indústria fonográfica tradicional, em um turbilhão de destruição criadora. A informática desencadeia revoluções paralelas em biotecnologia, robótica, mecânica de precisão, e em serviços produtivos, como design ou desktop publishing. Nos anos 90, essa revolução se acelera ainda mais com a criação da rede mundial de 12 computadores . A revolução nas comunicações é uma revolução dentro da revolução. Informação 10 A obra seminal sobre o surgimento de regiões industriais como a Terceira Itália é PIORE, Michael and SABEL, Charles. The Second Industrial Divide: possibilities for prosperity, New York, Basic Books, 1984. 11 A região passou a ser conhecida como rust belt, ou “cinturão da ferrugem”. A população de Detroit cai de 1.900.000 habitantes em 1950 para 700.000 em 2010. 12 A internet foi criada a partir de esforços combinados de duas universidades do sistema público da Califórnia: Berkeley e UCLA, a partir de encomendas e financiamentos do setor de defesa norte-americano. 22 e conhecimento passam a ter acesso quase ilimitado e a custo zero. A aceleração constante da capacidade de processamento e de transmissão de dados altera as condições da própria pesquisa tecnológica, gerando redes globais, acelerando e aprofundando resultados, em uma corrida vertiginosa. Os determinantes do sucesso ou do fracasso das regiões na competição global se alteram dramaticamente. O índice de um dos livros clássicos sobre o novo padrão de desenvolvimento no espaço é ilustrativo da dimensão das transformações. Trata as novas economias como “ativos relacionais”. Fala de “reflexividade”, de “convenções, coordenação e racionalidade”, de “conhecimento tácito”, de “economias de aprendizado”. O desenvolvimento das regiões é cada vez mais entendido como um processo de ação coletiva, em que empresas cooperam ao mesmo tempo em que competem. Inevitavelmente, também se altera o perfil das políticas públicas de desenvolvimento. Ao invés de se limitar à regulação macroeconômica da demanda e à proteção tarifária, o Estado passa a assumir etapas críticas e de alto risco da pesquisa básica, o que resulta em inovações de uso 13 difundido . Também na esfera das políticas públicas vence o imperativo da flexibilidade, das respostas rápidas às alterações nas demandas de produtores e setores sociais. Sobretudo, o Estado contemporâneo deve ser um catalisador de cooperação e coordenação, tanto entre agentes privados, como entre produtores e agências de governo. A POLÍTICA REGIONAL QUE NÃO QUEREMOS A despeito das radicais transformações brevemente descritas acima, a que ninguém se oporia se as chamássemos de revolucionárias, o modelo de política de desenvolvimento regional brasileiro continua fundamentalmente o mesmo que Celso Furtado e seus pares desenharam no fim dos anos 50. Nenhuma das dimensões críticas das novas indústrias e dos novos vetores de dinamismo econômico é sequer considerada. A resiliência de um modelo tão ultrapassado surpreende, pois os indicadores de sua falência são acachapantes. Em 56 anos de SUDENE, a 14 participação relativa do Nordeste no PIB brasileiro caiu . A Amazônia não se saiu melhor após 51 anos de SUDAM. Sua renda per capita permanece estagnada em torno de metade da renda nacional e sua economia especializada na produção de commoditties agrícolas. O único caso de 15 macrorregião que superou o atraso relativo foi o Centro-Oeste , justamente a região que foi menos aquinhoada com políticas compensatórias de desenvolvimento regional, pois sua instituição coordenadora, a SUDECO, é tardia e descontínua, além de jamais ter manipulado 13 Há farta e instigante literatura sobre o novo perfil do Estado indutor de desenvolvimento, com ênfase em inovação tecnológica. Os exemplos são diversos e, naturalmente, se destacam os exemplos da Ásia, especialmente Coréia do Sul, Taywan e China. Mas o caso mais estudado é o dos Estados Unidos, sempre o líder em inovação. Especial atenção é dada à relação entre inovação tecnológica e a agenda de pesquisa do setor de defesa. A referência clássica é MARKUSEN, Ann. The Rise of the Gunn Belt: the remaping of industrial America, London, Oxford Press. 1991 14 Em 1960, logo após a criação da SUDENE o PIB do Nordeste equivalia a 14,8% do PIB nacional. Em 1970 caiu para 11,7%. Em 1980: 12%. Em 1991: 13,4%. Em 2000 cai para 13,1%, onde permanece até 2010. 15 A participação do PIB do Centro-Oeste no PIB nacional sobe de 2,6% em 1960 para 8,9% em 2010. A renda per capita cresceu 80% mais do que a média nacional, enquanto todas as outras regiões permaneceram praticamente em torno da média. 23 generosos esquemas de incentivos fiscais. O sucesso do Centro-Oeste ocorreu a despeito e não por causa da política regional. As tentativas de mudança no perfil da política regional fracassaram. A Política Nacional de Desenvolvimento Regional, elaborada em 2006 pelo Ministério da Integração 16, Nacional, tinha algum mérito mas padecia de equívocos conceituais e de base empírica inadequada a ponto de ser um referencial inútil. Dependia também da criação de um novo fundo regional, que não foi aprovado. Jamais se transformou em um instrumento de coordenação da 17 política de desenvolvimento regional e teve quase nenhuma consequência operacional . A POLÍTICA REGIONAL QUE QUEREMOS Roberto Mangabeira Unger traçou os contornos de uma nova política regional em texto desenvolvido a partir de discussões com os governadores e a sociedade civil do Nordeste, quando Ministro Chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos, em 2009. Não faz sentido que a política de desenvolvimento regional seja essencialmente um conjunto de magras compensações pelo atraso relativo, argumentou. Política regional é a coordenação de ações de desenvolvimento no território e, como tal, se aplica a todo o país. São Paulo precisa de política regional, assim como o Sul do país, tanto quanto a Amazônia e o Nordeste. A estratégia da política regional não deve olhar para um padrão Fordista ultrapassado, que serviu ao Sudeste brasileiro na década de 50, mas que hoje encarna a expressão famosa de Boudeville: “catedrais no deserto”. Não faz sentido numa economia globalizada, com alto grau de especialização, buscar repetir São Paulo de meados do século passado, como se depreende da política atual. O propósito da política regional é prospectar e acalentar embriões de formações produtivas que contenham as características dos arranjos produtivos de vanguarda, tais como: propensão a cooperar, alta transitividade entre atores, flexibilidade e agilidade, abertura à inovação. Neste sentido, arranjos informais vistos erroneamente como primitivos, a exemplo dos polos têxteis e de confecções de Toritama, Caruaru e Santa Cruz do Capiberibe em Pernambuco, ou Jardim de Piranhas, no Rio Grande do Norte, Bonfim, na Paraíba, ou a produção tecnificada de mel em Picos, no Piauí. Embora operando com tecnologias que combinam o atrasado e o moderno, os arranjos sociais de cooperação competitiva estão muito mais próximos da vanguarda industrial do mundo do que as grandes unidades Fordistas movidas a incentivos fiscais. Em outras palavras, a política regional deve procurar as virtudes endógenas e dar-lhes os instrumentos para que se transformem em empresas inovadoras na competição global. Deve trazer a vanguarda para a retaguarda. Para isso, a política deve ser o contrário do que temos hoje. Ao invés de instrumentos passivos, como o crédito subsidiado ao sabor dos humores de gerentes de banco, políticas ativas de indução tecnológica e de coordenação entre empresas privadas e entre elas e os governos. Ao invés de autoritarismo tecnocrático, transitividade intensa e aprendizado mútuo. Ao invés do monopólio decisório de burocratas federais, a cooperação entre os diversos níveis da Federação, cada qual na escala e papel adequados. 16 O principal mérito é perceber que política regional se aplica a todo o país, não apenas às regiões “atrasadas”. 17 Uma discussão sobre a PNDR, embora pertinente, transcende o escopo deste artigo. A única instância em que a PNDR se aproxima de ter um efeito concreto em política pública é o condicionamento que supostamente impõe à alocação de recursos dos Fundos Constitucionais. No entanto, todas as análises de impacto convergem na conclusão de que tais diretrizes são sistematicamente desrespeitadas. 24 EPÍLOGO: AS PERSPECTIVAS ABERTAS PELO CONSÓRCIO BRASIL CENTRAL Em julho de 2015, a partir de uma provocação do Ministro Mangabeira, o governador de Goiás, Marconi Perillo, convidou os demais governadores do Centro-Oeste e o governador de Tocantins para uma reunião de trabalho em Goiânia. Nesta ocasião decidiu-se a criação de um Fórum de Governadores. Na reunião seguinte, em Cuiabá, se juntou a eles o governador de Rondônia. Nas reuniões subsequentes, com intervalos de menos de um mês, foi acordado que o instrumento de cooperação adequado seria um Consórcio Interestadual, com identidade institucional de autarquia de direito público. Em outubro, na capital do Mato Grosso do Sul, foi criado o Consórcio Interestadual de Desenvolvimento do Brasil Central, que, já na reunião de novembro, em Brasília, havia sido aprovado por todas as Assembleias Legislativas dos estados participantes. É o primeiro consórcio de governos de estado da história do Brasil. Mesmo antes de formalmente constituído, o Consórcio já definia horizontes de cooperação em políticas públicas. Acordos foram celebrados entre os estados participantes e instituições da sociedade civil para a formação de professores, que multipliquem iniciativas de capacitação 18 docente; e para a modernização administrativa dos governos . Outras iniciativas de cooperação horizontal entre estados já se iniciaram em diversas áreas em que as sinergias são explícitas, tais 19 como: defesa sanitária; infraestrutura logística; gestão de recursos hídricos; e gestão ambiental . Também foram iniciados estudos visando à possível convergência e harmonização das políticas tributárias. A cooperação entre agências de governo é um fenômeno pouco estudado. Em geral, predominam os casos relativos à gestão ambiental, tanto devido à natureza transversal do tema, que exige a interação de diferentes agências, como por transcender fronteiras institucionais, o que exige colaboração entre diferentes domínios. Bob Hudson e outros, em artigo seminal, após extenso exame da literatura, listam dez componentes que caracterizam a propensão à cooperação entre agências. São eles: Fatores contextuais: expectativas e restrições; Reconhecimento da necessidade de cooperar; Identificação de bases legítimas para a cooperação; Reconhecimento da capacidade prática de colaborar; Percepção clara e compartilhada dos objetivos da cooperação; Construção de laços de confiança; Garantia de compartilhamento dos benefícios; Capacidade de nutrir relações frágeis; Definição de formas de colaboração apropriadas; e Compartilhamento da estratégia. Todas essas condições estão presentes, entre os membros do Consórcio, na maioria dos casos em grande medida. Talvez o melhor indício do imenso potencial de colaboração horizontal entre os estados membros do Brasil Central seja o convívio frequente entre os indivíduos de primeiro escalão, especialmente Secretários de Estado e Procuradores de Estado. Essa proximidade gera diversos efeitos positivos. Em primeiro lugar, aumenta a disposição tácita ao aprendizado mútuo. Estratégias administrativas bem sucedidas começam a ser trocadas, do que resulta uma 18 Respectivamente acordos com a Fundação Unibanco e com o Movimento Brasil Competitivo. 19 Para uma visão de cooperação entre membros do Consórcio pela ótica constitucional, ver: MARRAFON, Marco A. Consórcio Brasil Central é experiência inovadora do federalismo cooperativo, em: http://www.conjur.com.br/2015-set22/constituicao-poder-consorcio-brasil-central-experiencia-inovadora-cooperativismo acessado em 18/11/2015. 25 convergência acelerada rumo a padrões elevados de desempenho. Já são frequentes as visitas de trabalho, em que especialistas de um estado servem como tutores na implantação de melhores rotinas ou programas em outro. Percebe-se uma clara propensão à troca ocasional de capacidades, em resposta a situações anômalas ou a picos de demanda por serviços públicos. Difunde-se a percepção de crescente interdependência, condição essencial para o aprofundamento e para a invenção de novos horizontes para a cooperação. Paralelamente, fortalece a propensão a atuação política conjunta. Além da coesão entre os governadores, as bancadas estaduais no Congresso Nacional se aproximam e já foi criada formalmente uma Frente Parlamentar do Brasil Central, o que aumenta a força política das demandas e propostas do Consórcio. Embora recente, a experiência exitosa já inspira outros blocos regionais. No dia 20 de novembro, em Belém, os governadores da Amazônia Legal, dentre os quais se incluem três participantes do Consórcio Brasil Central, decidiram-se pela criação de “uma 20 instituição que formalize sua disposição à cooperação federativa” . A pergunta final procura a síntese entre a primeira e a segunda parte deste artigo: Até que ponto e de que forma iniciativas como o Consórcio Brasil Central podem ser fatores de renovação da política de desenvolvimento regional brasileira? A ação dos governadores já começa a apontar rumos. Em novembro, durante a reunião de Brasília, os governadores foram ao Ministro da Integração Nacional e manifestaram seu desejo de mudar o modelo de aplicação dos recursos dos Fundos Constitucionais. Querem que tanto as diretrizes estratégicas definidas pelo Consórcio, como as prioridades de suas carteiras de projetos de desenvolvimento, sejam priorizadas pela SUDECO e pela SUDAM. Em contrapartida, se dispõem a participar ativamente da gestão operacional da política, por meio de sua presença nos Conselhos Deliberativos dos Fundos. Discutem propostas de alterações no marco regulador dos Fundos, no sentido de aumentar a aditividade dos empréstimos, entender a pertinência de alguma abertura a níveis mais elevados de risco, inevitáveis em áreas produtivas caracterizadas por intensa inovação. Ao mesmo tempo, avançam na percepção do que é a escala virtuosa para a atuação dos estados. Como vimos, desenvolvimento regional exige cada vez mais nutrir e capacitar potenciais endógenos, o que implica em proximidade e transitividade. Espera-se que tal percepção seja um estímulo a mais para estimular a adesão de prefeitos e outras autoridades municipais. Embora a rigidez do federalismo brasileiro, que se expressa principalmente na legislação federal, seja obstáculo à experimentação, a força política derivada de experiências bem sucedidas de cooperação entre estados pode ser a cunha que, ao desencadear fraturas no marco legal e no aparato de controle, abra espaço para a emergência de modelos de políticas públicas mais modernos e satisfatórios. Celso Furtado, um homem aberto ao mundo e ao seu tempo, concordaria e assinaria embaixo. 20 Os governadores da Amazônia foram os primeiros a se organizarem em um Fórum oficial, com reuniões sistemáticas. A partir de reunião precursora em Belém, em 2008, já foram realizadas 10 reuniões, das quais 8 entre 2008 e 2010. Este Fórum teve papel decisivo na iniciativa histórica de enfrentar o caos fundiário que atrasa o desenvolvimento sustentável da região. 26 REFERÊNCIAS MYRDAL, Gunnar. Economic Theory and Underdeveloped Regions, London University Paperbacks, Methuen, 1957. PREBISH, Raul. 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