AGOSTINHO DA SILVA

Transcrição

AGOSTINHO DA SILVA
.Apeadeiro que o tempo não pode apagar
FOLHAS CAÍDAS DE OUTONO
·
Trata-se de um homem que afirmou que não
vai "em rótulos nem em modas" e que o espírito se afirma resistindo às classificações.
Talvez por isso, segundo Eduardo Lourenço, a sua linha de pensamento seja "difícil
de enquadrar". "Não se pode dizer que tenha sido um conservador, nem um revolucionário ou um anarquista místico, pois ele era
um misto de tudo, um ser muito contraditório". Também Nuno Nabais considera não
existir "um pensamento Agostinho da Silva,
na medida em que não há uma tese original
sua, uma reflexão sobre os grandes temas,
como o belo, o bom, o Homem", mas antes
"um estilo desassossegado, contrário à
canonização do pensamento" e "uma raiva
aos cânones e às instituições". Avesso à ideia
de Escola enquanto instituição formal, rígida e normalizadora, que abre caminhos à
custa do encerramento de outros, que prefere a doutrina em detrimento da vocação
provocadora do pensamento, Agostinho
perfilhou sempre uma educação permanente, aberta, na maior liberdade e desprendimento possíveis, já que "o que importa não
é educar, mas evitar que os homens se
deseduquem". Daí que, para Baptista Bastos, Agostinho seja "um homem em permanente busca da claridade e, como tal, contra
todo o dogma e toda a ortodoxia".
AGOSTINHO
DA SILVA
(1906-1996)
Foi também, segundo Fernando Dacosta,
"um ser que veio de um tempo muito à frente e cuja capacidade de antecipar problemas
actuais fascinou uns e desconfortou outros".
Agostinho aflorou, com 20 anos de previdência, questões como a globalização, a explosão do desemprego, a aproximação da União
Soviética aos Estados Unidos e ao Ocidente, a construção de uma Comunidade
Europeia ou o fanatismo religioso, merecendo por isso, entre outras, a designação de
Profeta do Terceiro Milénio.
Agostinho representa hoje, diz Baptista Bastos, "aquilo que sempre representou na revista Seara Nova - uma dose de utopia, quimera e esperança nas infinitas possibilidades do Homem". No final de contas, talvez
seja esse o legado de Agostinho: um espírito livre e optimista, ao mesmo tempo
contestatário e conciliador, uma crença nas
virtualidades da História e da Humanidade,
ainda que consciente das asfixias da vida comunitária: "Cada um de nós como Homem é
inteiramente excepcional. Simplesmente as
condições da sociedade em que vivemos
obrigam-nos todos nós a lentamente nos irmos parecendo uns com os outros".
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"Não ganha quem corre mais, mas
quem corre melhor… quando alguma
coisa é alguma coisa, deixa logo de
ser as outras todas… O que é preciso
é ser tudo ao mesmo tempo… ser e
não ser são a chave do ser"
.Apeadeiro que o tempo não pode apagar
FOLHAS CAÍDAS DE OUTONO
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RADAR
KADAFI
(1984-1987)
Um Radar ao Serviço
da Pop Nacional
O
s Radar Kadafi surgiram na década de
80, mais precisamente em 1984, em Lisboa. Com uma estética assumidamente melancólica e Pop, viriam a marcar a cena musical
nacional da altura. Os fundadores do projecto
foram Luís Gravato (voz), Fernando Pereira
(guitarra), Tiago Faden (baixo), José Bruno (saxofone), Luís Sampaio (teclados), Guli (baterista) e Patrícia Lopes (coros).
O projecto foi baptizado inicialmente por "Radar" para participar na edição desse ano do
concurso de música moderna do Rock RendezVous, passando a ser Kadafi em virtude de todas as polémicas que então envolviam o líder
líbio e o tempo de antena que este na televisão
nacional. Ficando em terceiro lugar no concurso, foi-lhes garantida a presença na colectânea
editada pelo Festival com o tema "La Maquina", cantado em Italiano.
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.Apeadeiro que o tempo não pode apagar
Em Novembro de 1987 os Radar Kadafi
dão o seu último grande concerto e os
seus elementos seguem então caminhos
diferentes. Luís Sampaio entra para os
Delfins, Tiago Faden ingressa na editora
Sony (vindo mais tarde a envolver-se na
fundação da editora Lisboa Records, que
em 2007 editou uma compilação
dedicada à capital), Guli dedicou-se à
arquitectura, Luís Gravato é actualmente
designer gráfico e o saxofonista José
Bruno envolveu-se em vários projectos,
como os "Petromax" e os "Sei Miguel",
fechando-se assim mais um ciclo da Pop
Nacional.
Para os amantes e coleccionadores de
música, o disco "Prima Dona" foi
reeditado em CD, em 1998. Se é certo
que o o vinil é já um objecto de colecção,
o CD também não é fácil de encontrar.
FOLHAS CAÍDAS DE OUTONO
Os Radar Kadafi, para além da sua Pop
melancólica, caracterizaram-se também
pelas suas performances ao vivo, cheias
de componentes cénicas com recurso a
bailarinos, que reforçavam toda a estrutura musical, dando-lhes um cunho que
os distinguia do que se vinha fazendo na
altura.
Três anos depois, em 1987, assinam contrato com a editora multinacional Poligram,
gravando assim o primeiro e único álbum
de originais, "Prima Dona". Gravado no
"Angel Studios", com produção de Ricardo
Camacho, o disco incluiria temas de 1982
a 1987. Do álbum editado em vinil destacam-se, do lado A, temas que ficaram para
a história da Pop Portuguesa como "40
Graus à Sombra" e "Eu sei que não sou
Sincero". No lado B, os temas são cantados em francês, italiano e espanhol.
.Apeadeiro que o tempo não pode apagar
FOLHAS CAÍDAS DE OUTONO
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DEREK
JARMAN
(1942-1994)
Radicalismo, Vanguarda
e Tradição
D
erek Jarman é um dos cineastas mais con
troversos e ousados que a Inglaterra conheceu, apenas igualado no seu país por figuras
como Michael Powell, Ken Russell ou Peter
Greenaway. Todos eles cultivaram - ou cultivam
ainda - um gosto requintado pela provocação aliado a uma visualidade arrojada, ainda hoje confundida com mau gosto (porque ainda hoje espectadores abandonam a sala de cinema durante filmes
de Peter Greenaway). Jarman, além de inegavelmente controverso, conhecido pela sua "homossexualidade activista", é também autor de uma das
cinematografias mais originais, distintas e
idiossincráticas do século XX, tendo mesmo merecido uma nomeação para o Turner Prize (em
1986) pela "excepcional qualidade visual" dos seus
filmes.
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Sebastiane (1976)
Jarman, contemporâneo de Fassbinder, via-se a si
próprio como um artista gay na linhagem de Jean
Cocteau e Pasolini, sendo considerado um dos fundadores do chamado New Queer Cinema, hoje associado a Isaac Julien, Todd Haynes, Gregg Araki ou
John Cameron Mitchell. O ecletismo da sua obra coloca-o numa posição crítica: para muitos, Jarman permanece uma figura marginal cuja obra é demasiado
experimental para ser aceite num cânone; por outro
lado, e ironicamente, é também visto como esteticamente demasiado conservador e convencional para
ser lido à luz das vanguardas. Jarman era, ao mesmo
tempo, modernista e renascentista. A crítica feroz à
política e sociedade britânicas e o uso de formas estéticas arrojadas, bem como de elementos da cultura
popular, eram combinados com um fascínio tão neoromântico quanto subversivo pela cultura artística tradicional. Tamanha idiossincrasia viria a colocá-lo no
centro do que se designou por "a Última Nova Vaga",
a resposta britânica tardia às correntes do cinema
europeu do pós-guerra.
A Tempestade (1979)
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.Apeadeiro que o tempo não pode apagar
Jubilee (1977)
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Jarman foi um artista de múltiplas dimensões - poeta,
pintor, argumentista, cenógrafo, realizador e até
jardinista -, fruto de um percurso académico peculiar.
Em 1960 entra na reputada e incontornável Slade
School of Art para estudar Pintura. Contudo, respeitando o desejo do seu pai, céptico quanto a esta escolha do filho, acaba por ir estudar Inglês, História e
História da Arte no King's College, com o objectivo de
adquirir uma qualificação mais "apropriada". Este percurso de estudos tão sincrético acabou por se revelar
decisivo para a sua cinematografia, facultando-lhe uma
série de referência históricas e culturais que viriam a
tornar-se evidentes nos seus filmes. Foi desta forma
que Jarman descobriu o fascínio pela história, arte e
literatura do Renascimento, que atravessa toda a sua
filmografia. Uma vez concluído o curso, Jarman regressa à Slade, em 1963, onde o estudo da Pintura e
da Cenografia concorre para a formação de uma
visualidade tão distinta quanto audaciosa, tal como o
ambiente que então se vivia contribuiu para a
assumpção da sua sexualidade, que viria a tornar-se
também num tema recorrente das suas obras.
.Apeadeiro que o tempo não pode apagar
FOLHAS CAÍDAS DE OUTONO
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Foi de facto um renascentista em mais do que um sentido: cinco das suas onze longas-metragens giram em
torno da relação entre o Renascimento e a actualidade,
um espaço histórico que Jarman tomou como exclusivamente seu. É neste relacionamento com o passado,
com o património cultural, literário e artístico europeu,
que Jarman mais se aproxima de Pasolini, provando
ser um dos seus sucessores. Jarman sentia uma afinidade com o cineasta italiano não só por questões de
sexualidade, mas por ser igualmente visto como um
artista problemático e controverso apesar da escolha
de matérias tradicionais. Como diria o próprio:
"Shakespeare, Caravaggio, Requiem, que temas mais
tradicionais poderia um cineasta encontrar? E ainda
assim sou considerado uma ameaça". Foi na Slade
School que Jarman tomou contacto com os grandes
realizadores europeus como Eisenstein, Fellini e
Pasolini, mas também com a vanguarda americana
de Maya Deren, Kenneth Anger e Andy Warhol. Em
termos estéticos, a obra de Jarman situa-se na encruzilhada destas duas referências, com filmes de estilo
claramente europeu e austero como Caravaggio (1986)
e obras mais radicais e vanguardistas como Blue
(1993), bem como objectos híbridos como The Garden
(1990), que combina elementos de ambos estilos.
O seu primeiro trabalho em cinema foi marcante.
Jarman concebeu os cenários de The Devils (1971) a
convite de Ken Russell, realizador que o impressionou
de forma indelével: "é um realizador com quem se pode
aprender muito, pois escolhia sempre o caminho mais
aventureiro, mesmo que pusesse em causa a coerência". Viria ainda a colaborar no filme seguinte de
Russell, Savage Messiah (1972), mas por esta altura
adquire uma Super-8, começando a traçar os seus
próprios caminhos através de diversas curtasmetragens que por vezes compilava num só filme. É o
caso de In the Shadow of the Sun (1974-80), composto por material de The Art of Mirrors e Journey to
Avebury, que viria a estrear em 35mm no Festival de
Berlim, em 1981.
A sua estreia na longa-metragem, Sebastiane (1976),
apesar de revelar um Jarman ainda à procura de uma
voz própria, é notória por duas razões: é o primeiro
filme totalmente rodado em latim e o primeiro filme inglês abertamente homoerótico, que trata o amor homossexual com seriedade, de forma romântica e lírica. Não obstante alguns traços de comicidade - como
a tradução de Édipo por "motherfucker" -, este filme,
que reconta o martírio de S. Sebastião, pretende claramente reformar a representação da homossexualidade no cinema britânico, assumindo uma perspectiva séria e sóbria. O aparecimento do filme em meados dos anos 70, numa fase exangue do cinema britânico, não poderia aliás ter sido mais oportuna. O impacto foi tal que resultou no despertar de diversas produções independentes e de baixo orçamento como
Nighthawks (1978) de Ron Peck e Scum (1979) de
Alan Clarke.
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Jubilee (1977), a segunda longa-metragem de
Jarman, foi um escândalo bem sucedido, à semelhança de Sebastiane. Conhecido como o primeiro
filme inglês oficialmente punk, é também o primeiro filme renascentista do realizador, em que a Rainha Isabel I, através do seu astrólogo (um anacronismo típico de Jarman), é magicamente transportada 400 anos para o futuro, encontrando o cenário
urbano e desolado da geração punk londrina. Neste filme, que prefigura a adaptação de Orlando
(1992) por Sally Potter (não por acaso
protagonizado por Tilda Swinton, a actriz-fetiche de
Jarman), a interacção entre passado e futuro é na
verdade diminuta, servindo as sequências
isabelinas como um quadro de contraste nostálgico entre a Idade de Ouro e a decadência da Inglaterra moderna. Em vez de um elogio da geração
punk, Jubilee antecipa a comercialização do movimento e o seu progressivo declínio, parodiando uma
série de figuras paradigmáticas como o empresário dos Sex Pistols, Malcolm McLaren, que, na personagem de Borgia Ginz, transforma o Palácio de
Buckingham num estúdio de gravação. Diversos
ícones do movimento como Adam Ant, Wayne
County, The Slits e Siouxsie and the Banshees surgem neste filme que gerou diversas críticas no meio
punk, entre elas a de Vivienne Westwood, que criou
uma t-shirt que reproduzia a sua carta aberta a
Jarman, denunciando a visão deturpada do movimento veiculada pelo filme.
Caravaggio (1986)
Eduardo II (1991)
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The Last of England (1988)
.Apeadeiro que o tempo não pode apagar
The Last of England (1988)
FOLHAS CAÍDAS DE OUTONO
A Tempestade (1979), adaptação da peça de
Shakespeare, é o segundo filme renascentista de
Jarman. Com nudez opulenta (sobretudo masculina)
e um cenário inusitado (uma mansão em ruínas em
vez de uma ilha), a abordagem do texto é exuberantemente livre, visualmente vibrante, tornando o filme
numa das adaptações mais imaginativas e audazes
da obra do dramaturgo isabelino. Muito embora A Tempestade seja o mais acessível dos primeiros filmes de
Jarman, e porventura o menos ofensivo, o realizador
tornou-se persona non grata e apesar de ter conseguido realizar alguns filmes no entretanto (como The
Angelic Conversation, também com base em sonetos
de Shakespeare) levou seis anos a conseguir estrear
Caravaggio (1986), que se viria a tornar uma das suas
obras mais emblemáticas. O projecto do filme foi-lhe
sugerido por Andrew Ward Jackson, comerciante de
arte e produtor, que viu em Jarman um sucessor legítimo daquele que tinha sido a sua primeira escolha:
Pasolini. A figura do pintor Caravaggio intrigava Jarman
desde os seus estudos na Slade School e não será
difícil de entender porquê. Em primeiro lugar, Jarman
considerava Caravaggio o inventor da luz cinematográfica com o seu uso revolucionário do chiaroscuro.
Além disso, Caravaggio era para ele "o mais homossexual dos pintores", pelo que existe uma clara afinidade com o artista renascentista. Porém, Jarman não
se limita a figurar Caravaggio como um pintor homossexual, já que o triângulo amoroso que forma o núcleo
da narrativa é bem mais complexo, unindo o pintor
(Nigel Terry), o seu modelo Ranuccio (Sean Benn) e a
amante de ambos, Lena (Tilda Swinton, uma das amigas mais próximas de Jarman numa das suas mais
magníficas interpretações). O que mais impressiona
no filme é sem dúvida a sua visualidade, a forma como
Jarman conseguiu traduzir o chiaroscuro de
Caravaggio, de tal modo que muitas das cenas - sobretudo aquelas em que os quadros do pintor são encenados - se assemelham de facto a quadros
renascentistas. Isto aliado às figuras de estilo mais
caras a Jarman como os vários anacronismos (máquinas de escrever, revistas de moda, carros, o som
de um comboio), aqui especialmente bem conseguidos no contraste com a pouco habitual
convencionalidade e sobriedade de estilo.
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FOLHAS CAÍDAS DE OUTONO
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De facto, Jarman terá notado que o filme resultou
mais convencional do que desejaria. A conformação a um determinado género (o biopic) e sobretudo a obrigação contratual de rodar em 35mm
impuseram-lhe alguma austeridade visual, pois já
que não tinha tanta mobilidade como com a Super8, optou por não mover de todo a câmara ao longo
da quase totalidade da rodagem. Apesar de tudo
isto, ou justamente devido a estas contingências,
Caravaggio é não só o filme mais bem acolhido e
acessível de Jarman - mas não menos interessante -, como se tornou um exemplo incontornável
do género, tendo certamente inspirado obras como
Looking for Langston (1989), filme de Isaac Julien
sobre Langston Hughes, ou Love is the Devil
(1998), sobre Francis Bacon, de John Maybury.
Talvez por isso, The Last of England (1988), em
que a Super-8 dita a forma e o conteúdo de quase
todo o filme, marca um regresso consciente ao
estilo menos formal que antecedera Caravaggio.
Memórias, pensamentos e fantasias do realizador
(ele próprio surge ocasionalmente ao longo do filme) são reunidas numa colagem desvairada de
estilos (crónicas quase documentais, vídeos domésticos) ao serviço da sua fúria contra a Inglaterra de Thatcher. Se em Jubilee Jarman apresentara a Inglaterra dos anos 70, transformada pela
rebelião anarco-punk, The Last of England (que
rouba engenhosamente o título ao quadro do prérafaelita Ford Madox Brown em que um grupo de
emigrantes abandona o país em busca de uma
nova vida no Novo Mundo) traduz uma visão
apocalíptica do futuro do país como um estado
totalitário, repressivo e homofóbico. O declínio de
Inglaterra é figurado aqui pelas paisagens sombrias de Londres e pelo desequilíbrio físico e mental
dos seus habitantes. Extractos de poemas como
Uivo de Alan Ginsberg ou Homens Ocos de T. S.
Eliot ecoam em justaposições frenéticas de imagens, entrecortadas por sonatas de Bach e disco
sound dos anos 80, sugerindo um país caótico
numa decadência sórdida. Influenciado pela pintura de Goya e pela alegoria grotesca de Pasolini
sobre a Itália de Mussolini, Saló (1975), The Last
of England figura o luto nostálgico de Jarman pela
sua Inglaterra moribunda, fria e cruel como a sua
líder.
Já em The Garden (1990), Jarman é uma personagem muito mais central. Surgindo no início do
filme, à secretária, rodeado de imagens cristãs,
Jarman sonha com o cenário da Paixão de Cristo,
figurado por dois amantes homossexuais, numa
tentativa de aproximação ao Evangelho segundo
S. Mateus de Pasolini.
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Uma das sequências mais memoráveis envolve o
realizador, deitado na cama numa praia, rodeado
de homens e mulheres que o circundam com tochas,
a voz off ecoando palavras sobre Sida, morte e a
mortalidade do próprio realizador. The Garden foi
de facto a primeira reflexão explícita de Jarman sobre o seu estatuto de seropositivo, que viria a marcar a fase final da sua obra. Já o seu filme anterior,
War Requiem (1989), baseado no oratório de Benjamin Britten, lidava com o problema da Sida, mas
de forma indirecta e alegórica, através do massacre de jovens na Grande Guerra. Mas muitos, incluindo o próprio Jarman, acreditavam que The
Garden seria o seu último filme, daí que tenha tratado o tema de modo mais directo. Porém, Jarman
viria ainda a surpreender com mais três filmes:
Eduardo II, Wittgenstein e o derradeiro Blue.
Cinematograficamente uma obra relativamente menor, Wittgenstein (1993), com guião de Terry
Eaggleton, foi encomendado por Tariq Ali para uma
série de programas do canal de televisão Channel
Four sobre vários filósofos. Contudo, verbas adicionais do British Film Institute levaram a que o filme
passasse de uma peça televisiva a uma espécie de
teatro filmado. Ainda assim o orçamento era reduzido, pelo que se trata de um projecto bastante
minimalista e de composição frugal. Gravando num
palco praticamente desprovido de cenários, guarnecido com poucos adereços, Jarman utilizou a
maior parte do orçamento no elenco, recorrendo ao
seu já núcleo duro: Michael Gough, Karl Johnson e,
claro, Tilda Swinton. O filme relata diversos aspectos sobre o filósofo, centrando-se na sua relação
com Bertrand Russell e Maynard Keynes, e as suas
principais ideias filosóficas são veiculadas num estilo humorístico através de diálogos com um marciano. O talento de Jarman na produção de baixo orçamento é também evidente em Eduardo II (1991),
a conclusão e o apogeu do seu ciclo renascentista.
A adaptação da peça de Marlowe, que aqui se centra
na figura do rei e do seu amante, lembra em alguns
aspectos Caravaggio, sobretudo na artificialidade
ostensiva dos cenários e no uso de anacronismos
como latas de coca-cola, cigarros e espingardas,
que forjam a ligação entre a narrativa de Marlowe e
aquele que é o verdadeiro tema do filme: a luta pelos direitos dos homossexuais na Inglaterra de
Thatcher. Naquele que é considerado o seu filme
mais furioso, Jarman chega ao ponto de encenar a
luta entre Mortimer e Eduardo como um conflito entre
a polícia de choque e activistas homossexuais.
- Sebastiane (1976)
- Jubilee (1977)
- The Tempest (1979)
- The Angelic Conversation (1985)
- Caravaggio (1986)
- The Last of England (1988)
- War Requiem (1989)
- The Garden (1990)
- Edward II (1991)
- Wittgenstein (1993)
- Blue (1993)
Derek Jarman (1942-1994)
FOLHAS CAÍDAS DE OUTONO
Filmografia (longas-metragens)
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.Apeadeiro que o tempo não pode apagar
Blue (1993)
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Na introdução do guião Jarman diria que a única maneira de fazer um filme "sobre um caso de amor homossexual" é pegando "numa peça antiga e poeirenta e violá-la". Apesar do tom enfurecido que ressalta
do filme, o resultado é uma obra sensível, reflexiva e
madura, que antecipa a sua derradeira obra, Blue
(1993), provavelmente o seu filme mais comovente
mas também mais experimental.
Visualmente, como o título sugere, Blue limita-se a
um ecrã em azul, sobre o qual os habituais colaboradores e amigos Nigel Terry, John Quentin e Tilda
Swinton vão lendo passagens do diário do realizador,
evocando a sua luta contra o HIV, a sua progressiva
cegueira, a perda de amigos e a sua morte cada vez
mais próxima. O filme teve início como um projecto
sobre o pintor Yves Klein, cujas pinturas
monocromáticas, muitas vezes puras contemplações
de azul, Jarman admirava. Porém, à medida que a
sua doença e a consequente cegueira progrediam, o
projecto tornou-se mais pessoal e poético. Para
Jarman, a sua doença não poderia nunca constituir
tema de entretenimento e a sua figuração através de
personagens, narrativa e imagens apenas iria
empobrecê-la. A rejeição da imagem foi pois uma opção estética motivada por "critérios especificamente
políticos e éticos". Foi esta a única maneira de dignificar a sua despedida, que acabaria, como não poderia deixar de ser, por desafiar as próprias possibilidades do cinema, como aliás sempre o havia feito.
OPERAÇÃO COSMÉTICA
· Metamorfoses
REICHSBUNKER
FRIEDRICHSTRASSE
Das raves porno à arte contemporânea
I que se apresenta Christian Boros, o polaco milionário que transformou um antigo bunker
collect art that I don't understand. É assim
nazi, situado no centro de Berlim, num espaço
dedicado à arte contemporânea.
Não é um museu, sublinha o coleccionador, proprietário de uma Agência de Publicidade. É uma
galeria onde Boros instalou a sua colecção privada, em que figuram nomes como Damien
Hirst, Olafur Eliasson, Elizabeth Peyton,
Wolfgang Tillmans, Anselm Reyle, Manfred
Pernice, Tobias Rehberger, John Bock, Wilhelm
Sasnal e Michel Majerus.
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Encomendado por Hitler ao famoso arquitecto
Albert Speer, o bunker abre em 1942 com o propósito de albergar os passageiros da estação de
comboios da Friedrichstrasse dos ataques aéreos. A população civil da área residencial
circundante e os frequentadores do Teatro Nacional podiam igualmente procurar abrigo neste
espaço com capacidade para 2000 pessoas.
Após a rendição nazi, o abrigo foi tomado pelo
Exército Vermelho, que o utilizou como prisão.
A partir dos anos 50, o bunker conheceu uma
utilização bastante diferente: tornou-se num armazém de fruta e legumes. A espessura das
paredes e a sofisticação do sistema de ventilação proporcionavam uma temperatura estável,
tornando-o especialmente apropriado para a armazenagem de fruta tropical. Daí que os habitantes da DDR lhe tenham atribuído a magnífica designação de "Banana bunker".
Após a reunificação, as bananas foram outras.
A cena techno-fetiche, tão característica da Alemanha do anos 90, encontrou no bunker o local
perfeito para as suas festividades. O armazém
de bananas transformou-se então num dos
clubs de techno hardcore sado-maso mais afamados do país. A mítica exposição
Sexperimenta teve lugar em 1995 e no ano seguinte o bunker despediu-se definitivamente do
Techno. Até que Christian Boros se apaixonou
à primeira vista pelo edifício abandonado, dando-lhe uma nova vida, e uma nova casa à sua
colecção.
Aberta ao público desde Junho, com visitas apenas por marcação, a primeira exposição acolhe
escultura, instalação e performances que renovam a experiência deste local. A maior parte das
obras foi instalada e encenada pelos próprios
artistas, alguns dos quais as alteraram para um
melhor enquadramento no espaço. Algumas
obras foram mesmo criadas especialmente para
ele. "Outros poderiam ter transformado o espaço numa adega de vinhos", disse Boros. "Mas
isso seria errado, a meu ver. O meu propósito
foi de preencher um monumento do III Reich
com a forma mais elevada de liberdade intelectual - Arte."
OPERAÇÃO COSMÉTICA
· Metamorfoses
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MANTA DE RETALHOS
· Xisacto / Cortes Soltos
Quando a
Europa
não sabe
rir...
o novo ano e já o mundo da arte
Malnoscomeçou
brindou com mais uma polémica que, fe-
lizmente, lhe é habitual. Na abertura da presidência
checa da União Europeia, a 12 de Janeiro, foi inaugurada uma exposição no edifício Justus Lipsius,
em Bruxelas, como é prática comum por ocasião
do início de cada presidência rotativa. Exposições
destas costumam ser incontroversas e pacíficas. A
França, que deteve a presidência antes da República Checa, mandou erigir um previsível balão de
enormes proporções com as cores nacionais. Desta vez, porém, os checos encomendaram a exposição comemorativa a um artista nacional que conta
no seu currículo com várias obras controversas, pelo
que o escândalo suscitado pela escultura Entropa
só foi surpresa para quem o desconhece.
A obra foi encomendada a David ?erný, que se responsabilizou por convidar 26 artistas oriundos dos
restantes países da União Europeia para a criação
de uma obra colectiva que reflectisse o espírito da
Europa e dos seus estados-membros. O resultado
foi uma fraude e um teste ao sentido de humor dos
dirigentes políticos europeus: Entropa não foi criada por 27 artistas de diferentes nacionalidades, mas
sim apenas por ?erný (e dois assistentes), que forjou 26 identidades de artistas europeus associados
a peças representativas do território de cada um
dos países-membros da União.
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Para nomear apenas alguns, a Bélgica (Roger
Geboers) é representada como uma caixa de
bombons; a Bulgária (Elena Jelebova) por um
conjunto de sanitas ligadas através de luzes
néon; a Dinamarca (Lars Kristjansen e Susan
Malberg Albertsen) é uma grande construção
em legos; a França (pelo GRAA - Groupe de
Recherche d'Art Audiovisuel) é representada
por um cartaz grevista; a Alemanha (Helmut
Bauer) por um conjunto de auto-estradas que
se assemelha a uma cruz suástica; a Grécia
(Ângelo Navridis) é um território em chamas;
Itália (Francesco Zampedroni) surge como um
campo de futebol em que os jogadores têm
bolas no lugar dos seus órgãos sexuais; no
território da Polónia (Leszek Hirszenberg) um
grupo de padres erige a bandeira em arco-iris
do movimento gay; Portugal (Carla de
Miranda, que conta no seu falso currículo com
exposições na SNBA, em Alcochete e em
Arruda dos Vinhos) é formado por uma tábua
com três nacos de carne na forma de Brasil,
Angola e Moçambique; o eurocéptico e insular Reino Unido (Khalid Asadi, até o falso nome
do artista contém ironia) é representado pelo
espaço vazio no lugar que a grelha-mapa lhe
reserva.
?erný declarou que através desta peça procurou veicular uma visão irónica sobre os estereótipos que estão associados aos diferentes países da União Europeia, respondendo
criticamente ao lema desta presidência, "Europa sem barreiras". O sentido da obra parece evidente: enquanto os estados-membros
continuarem a vislumbrar-se através de estereótipos, as barreiras manter-se-ão.
Depois do seu Shark de 2005, uma imagem
de Saddam Hussein num tanque de formol que
parodia The Physical Impossibility of Death in
the Mind of Someone Living de Damien Hirst,
?erný soma ao seu currículo mais uma controvérsia, que nos faz o favor de lembrar que
a arte ainda tem alguma capacidade de causar desconforto.
MANTA DE RETALHOS
· Xisacto / Cortes Soltos
As reacções dos mais susceptíveis não se fizeram tardar. O representante europeu da
Bulgária exigiu de imediato a remoção da peça
que representa o seu país através de um conjunto de sanitas. A peça não foi removida mas
mais tarde foi coberta com cimento. Outros
países exigiram a retirada da escultura, mas
responsáveis do Conselho Europeu reafirmaram a legitimidade da obra: afinal de contas,
é suposto a Europa promover a liberdade de
expressão e censurar a própria censura.
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MANTA DE RETALHOS
· Xisacto / Cortes Soltos
CHICO BUARQUE
E MAYRA ANDRADE
PREMIADOS EM CUBA
O Brasileiro Chico Buarque e a cabo-verdiana
Mayra Andrade receberam na capital cubana,
Havana, os prémios Cubadiscos internacionais.
Chico Buarque recebeu o galardão pelo álbum
"Carioca", onde o compositor resume toda a
sua identidade através da sua cidade natal, o
Rio de Janeiro, e Mayra Andrade com o álbum
"Navega", que já fora também distinguido este
ano pela BBC.
"8" - O NOVO ALBUM DOS RÁDIO
MACAU
Os Rádio Macau estão de volta após cinco anos sobre o último trabalho de originais, editado pela Universal em 2003, surgindo agora o oitavo da banda,
justamente com o nome de "8". A banda que junta
agora novos elementos aos fundadores do projecto
marca uma vez mais com este trabalho, com arranjos mais Pop, um apeadeiro obrigatório na cena musical nacional, fruto de toda a sua experiência, maturidade e longa carreira. Absolutamente obrigatório escutar o tema "Cantiga d'Amor".
SAM THE KID À CONQUISTA
DOS EUA
O site All Hip-Hop, uma das mais importantes publicações on-line dos EUA, destacou a faixa "Negociantes" do álbum "Praticamente" do rapper português Sam The Kid, colocando-o lado a lado com
JadaKiss, Nelly ou Lupe Fiasco. O português com
direito a mp3 na famosa página é o único rapper
não anglo-saxónico a dispor de tal privilégio.
JARVIS COCKER EM BUSCA
DO SEGUNDO ALBUIM
O vocalista dos Pulp, Jarvis Cocker, na sua carreira a solo e a viver há cinco anos em Paris,
está a acabar o seu segundo álbum. O sucessor de Jarvis ainda não tem nome, no entanto
algumas das canções já foram baptizadas.
Titulo: A anunciar
Data: Fim de 2008, inicio de 2009
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MANTA DE RETALHOS
· Xisacto / Cortes Soltos
LIVRARIA CÍRCULO DAS LETRAS
das Letras abriu portas no dia 7
A Círculo
de Novembro de 2007. Situada na Rua
Augusto Gil, 15 B, entre o Campo Pequeno e a
Avenida de Roma, afirmou-se no seu projecto
como "espaço de leitura, núcleo de militância
cultural e de debate, ponto de encontro de amigos".
É exactamente o que tem sido no ano de vida
que contabiliza.
Dezenas de lançamentos de livros, sessões de
poesia, debates e exposições de artes plásticas têm dado conteúdo à ideia inicial e
mobilizadora de um grupo de amigos.
Mestre Rogério Ribeiro, extraordinário artista
plástico e amigo, inaugurou com uma Exposição que intitulou "Trabalhos de ilustração", o
Espaço a que foi dado o seu nome. Foi a ultima acção cultural, orientada ao pormenor pelo
próprio, que veio a falecer em Março de 2008.
O ano que agora começa tem já agendadas
inúmeras acções, das quais podemos destacar para o primeiro trimestre:
JANEIRO
08./31. - Exposição de pintura de Margarida Alfacinha
13. - Ciclo de Poesia Neo-realista - (Luis
Miguel Cintra diz Mário Dionísio)
20. - 60 anos da Declaração Universal
dos Direitos do Homem (Dom Januário
Torgal Ferreira e Dr. Domingos Lopes)
21. - "Sete Partidas - poemas" de Manuel Alegre - (Paulo Sucena, António
Borges Coelho e poemas por Manuel
Alegre)
FEVEREIRO
03./28. - Exposição de Cerâmica de Teresa Cortez
17. - Ciclo de Poesia Neo-realista (Fernanda Lapa diz Carlos de Oliveira)
* . - 60 anos da Declaração Universal
dos Direitos do Homem /Guantanamo
(Ana Gomes)
* . - 60 anos da Declaração Universal
dos Direitos do Homem nos mundos de
hoje - (Dr. Fernando Nobre e Dr. Domingos Lopes)
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MARÇO
05. - Memórias e depoimentos do 25 de Abril
(Vasco Lourenço e Pinto Soares)
* . - Poesia de Abril (Maria do Céu Guerra)
13. - Ciclo de Poesia Neo-realista - (Cármen
Dolores diz Manuel da Fonseca)
o
Março - Teatro de Abril (Helder Costa)
*. - Evocação do 25 de Abril (intervenção artística, literatura, canto livre)
ABRIL
*. - Evocação do 25 de Abril (intervenção artística, literatura, canto livre)
*. - Datas a confirmar

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