Por Guilherme Roman Borges FOUCAULT, Michel La naissance de

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Por Guilherme Roman Borges FOUCAULT, Michel La naissance de
Por Guilherme Roman Borges
FOUCAULT, Michel
La naissance de la clinique
Paris: PUF, 1963
Após alguns anos da publicação silenciosa de Maladie Mentale et
Personnalité e dos esboços de Folie et Déraison, Foucault inaugura seu
mundo acadêmico em 1963 com dois grandes livros, Naissance de la Clinique1 e Raymond Roussel, um sobre a história da medicina e oriundo
dos textos inutilisados de sua pesquisa maior sobre a loucura, e outro
sobre crítica literária e vindo das relações sobre um escritor seguido pelo
psiquiatra, do Collège de France, Pierre Janet. Este livro insere-se na trajetória filosófica de Foucault em busca de um esboço posteriormente co ncretizado de seus estudos sobre a saúde, a população, a sexulaidade, a
bio-política;2 e de uma crítica, que se evidenciará na obra seguinte, às
Ciências Humanas, demonstrando como o nascimento da medicina moderna contribuiu para a racionalidade contemporânea e para a formação
de uma estrutura política e sua forma de poder característica. Dizem, alguns, consoante as palavras de Didier Eribon, que tal livro teria sido escrito numa espécie de retorno às origens, dada a morte de seu pai, então
1
FOUCAULT, Michel. Naissance de la clinique. 6 ed. Paris: Presses Universitaire de France, 2000, 214p.
[trad. br. O nascimento da clínica. (trad. Roberto Machado) 5 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998,
241p.] [trad. in. The birth of the clinic: an archaeology of medical perception. (trad. A. M. Sheridan Smith)
Nova York: Pantheon Books, 1973, 215p.]
2
BILLOUET, Pierre. Foucault: figures du savoir. Paris: Les Beles Lettres, 1999, p. 53. “L’évolution du
jugement de Foucault sur son livre est solidaire d’une modification de sa compréhension de la médecine, du
cours que prend son propre travail. La médecine continue à l’intéresser après le livre de 63, abusivement
négligé par les commentateurs. En effet les thèmes de la santé, de la population et finalement de la sexualité,
que l’on trouve dans le livre de 1975 et dans les cours des années suivantes sur la bio-politique, viennent
directement de la différence du normal et du pathologique comme fondement da la médecine clinique, comme
modèle des sciences humaines, et comme idée directrice des normalisations disciplinaires.” [trad. do autor: “A
evolução do julgamento de Foucault sobre o seu livro é solidária de uma modificação de sua compreensão da
medicina, do curso que segue seu próprio trabalho. A medicina continua a interessá-lo após o livro de 63,
abusivamente negligenciado pelos críticos. De fato, os temas da saúde, da população e finalmente da sexualidade, que se encontram no livro de 1975, e nos cursos dos anos seguintes sobre a bio-política, vêm diretamente da diferença do normal e do patológico como fundamento da medicina clínica, como modelo de ciê ncias
humanas, e como idéia diretora das normalisações disciplinares.”]
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médico famoso, no ano de 1959,3 e que não teria recebida tanta repercussão, embora muito impressionasse a Lacan, como se verá adiante. 4
A obra, apesar de por vezes negligenciada, foi bem recebida pelos críticos na França, em compensação, nos Estados Unidos, para muitos autores,
tratou-se de uma obra horrível e entediante, consoante as palavras de Roger
Hahn, que doze anos após a sua publicação, resenhou-o, com muito mau
tom, para o famoso periódico American Journal of Sociology: “Naissance de
la Clinique (1963), de Michel Foucault, é um livro terrível. É terrivelmente
aborrecedor em virtude do estilo impressionístico; a defeituosa construção, o
esforço proposital de criar novos conceitos através da manipulação da linguagem tradicional, e o desejo continuamente forçado de transcender o banal. É também terrivelmente perceptivo e sugestivo, pelo seu modo difícil de
expressar. Relendo-o, eu tive a sensação de participar do ato momentâneo
de criação, repleto de flashes de beleza, mas capaz de interpretações não
contraditórias e totalmente diferentes.”5
Naissance de la Clinique é um livro escrito num estilo um tanto poético, que esboça o método arqueológico de Foucault, bem como uma erudição
inigualável, caminhado facilmente entre os conceitos médicos, filosóficos e
históricos, sofrendo um pouco a influência heideggeriana, sobretudo do método fenomenológico, ao falar de uma história do ser, uma história do sujeito-para-a-morte. Algumas visões interpostas e esboçadas nesta obra sofrerão mais tarde algumas mudanças por parte de Foucault, pois, se não alteradas, pelo menos foram retiradas de seu objetivo principal, muitas vezes para
dar a possibilidade de uma análise de uma biopolítica. Após a publicação do
livro Les Mots e Les Choses, um novo conceito de “clínica” se demonstra,
pois esta não passa a ser vista mais como uma ramificação ou mesmo a própria medicina moderna como ciência, tal como frenologia, a microbiologia,
mas sobretudo, uma função discursiva. A medicina passará a ser lida como
uma prática social, econômica, política e histórica. Certamente, alguns conceitos apenas são esboçados nessa obra, como a idéia de disciplina, de discurso e de arqueologia, ficando, inevitavelmente, inúmeros questionamentos
e outros aprofundamentos para serem realizados mais tarde.
Foucault, diante da ruptura que se deu nas ciências biológicas no início
do século XIX com a formação da medicina moderna, procura demonstrar a
racionalização que se processou no conhecimento médico, e a sua vital im3
ERIBON, Didier. Michel Foucault., p. 156.
ERIBON, Didier. Michel Foucault., p. 158.
5
HAHN, Roger. Book review: ‘The birth of clinic: an archaeology of medical perception. Review American
Journal of Sociology, Chicago, Ed. University of Chicago, v. 80, n. 6, p. 1503, may 1975. “Michel Foucault’s
Naissance de la Clinique (1963) is a terrible book. It is terribly annoying because of the impressionistic style,
the faulty construction, the willful effort to create new concepts by manipulating traditional language, and the
forced desire continually to trascend the banal. It is also terribly perceptive and suggestive, in ways that are
hard to express. In reading it again, I had the sense of participating in a momentous act of creation full of
flashes of beauty but capable of totally different, noncontradictory interpretations.” [trad. do autor.]
4
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portância para a transformação do conhecimento científico. Afirma que tal
alteração, antes de ser uma modernização dos instrumentos técnicos utilizados, ou mesmo um refinamento dos conceitos, foi, sem dúvida, uma mudança nos objetos, nas instituições, nos conceitos e nos métodos.6 Com a medicina moderna um novo modo surgiu de se olhar as relações estabelecidas
entre doentes e médicos, doentes e familiares e cientistas, dando-se origem
a novas formas de conhecimento e práticas institucionais. Formas que permitiram a passagem, assim como da História Natural à Biologia, da Medicina
Clássica à Medicina Moderna, antes meramente argumentativa, agora anátomo-clínica e classificatória.
Nessa alteração epistemológica que se processou no conhecimento
médico, novas configurações institucionais ocorreram, isto é, novas formas
de se tratar o conhecimento prático, novos modos de tratamento físico abriram o plano da praxis da ars medicare, como o nascimento do hospital, antes mero órgão de assistência ao pobre e de preparação para a morte, em
que se privilegiava a “salvação”, agora passa a ser o lugar destinado ao exercício da cura e do ensino da medicina, abrindo-se espaço para a “saúde”.
Com a medicina moderna, o saber médico desliza de uma análise abstrata das doenças, para a uma análise mais concreta, inserindo-se como conhecimento que se produz sobre o corpo doente, e não sobre a alma ou o
corpo da doença. Nesse compasso, em que o corpo ganha ênfase na doença,
surge concomitantemente à medicina moderna, uma medicina do espaço
social, um biopoder que se opera no nível estatal, transformando a doença,
antes mero intruso a ser extirpado da individualidade, em problema político
e de administração urbana, que atinge as cidades e as suas instituições. Duas são, portanto, as vitais alterações que permitiram o surgimento de um
novo olhar médico, qual sejam, a nova epistemologia da medicina e o rearranjo espacial operado pela transformação dos hospitais.
Antes de ingressar na descrição do papel de transformação da disposição dos hospitais, Foucault procura investigar o visível o e invisível das doenças e do poder sobre o corpo dos doentes, ou seja, busca, através de um
olhar arqueológico, demonstrar como a medicina clássica saiu de uma interrogação sobre pergaminhos molhados e membranas, para chegar a um novo
olhar médico, que parte de outra linguagem para analisar a doença. Entende
o autor, que passou a existir uma nova disposição do olhar médico, o qual
6
FOUCAULT, Michel. Naissance de la clinique. 6 ed. Paris: Presses Universitaire de France, 2000, p. 53.
“Non seulement le nom des maladies, non seulement le groupement des symptômes n’étaient pas les mêmes;
mais ont varié aussi les codes perceptifs fondamentaux qu’on appliquait au corps des malades, le champ des
objets auxquels s’adressait l’observation, les surfaces et profondeurs que parcourait le regard du médecin, tout
le système d’orientation de ce regard.” [trad. br. O nascimento da clínica. (trad. Roberto Machado) 5 ed. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 1998, p. 59. “Não apenas mudaram o nome das doenças e o agrupamento
dos sintomas; variaram também os códigos perceptivos fundamentais que se aplicavam ao corpo dos doentes,
o campo dos objetos a que se dirigia a observação, as superfícies e profundidades que o olhar do médico
percorria, todo o sistema de orientação deste olhar.”]
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passou a analisar o “dizível” das doenças, de acordo com os conteúdos visíveis. Houve, uma mudança no nível da linguagem, pois “o que mudou foi a
configuração surda em que a linguagem se apóia, a relação de situação e de
postura entre o que fala e aquilo de que se fala”.7 Não houve, enfim, uma
alteração dos conceitos, mas simplesmente a descoberta de uma positividade da medicina moderna, ou seja, de tal modo que a relação entre visível e
invisível passou a fazer parte do olhar e da linguagem médicos. A clínica,
que surge com a medicina moderna, passa a ser a nova experiência do médico com o perceptível e o enunciável, entre a doença e o organismo, entre a
linguagem e a patologia. Surge, no âmbito do saber, uma reestruturação e
reorganização da doença.
Não chegando à medicina do século XX, operada pela anátomoclínica, um tanto mais especializada, Foucault permance, pela importâ ncia de sua ruptura, nas suas análises da clínica ou “protoclínica”, que
objetivou estabelecer o espaço de configuração da doença em harmonia
com o espaço de localização do mal no corpo. O olhar médico, antig amente, não se dirigia diretamente ao corpo, ao visível, mas aos interv alos de natureza, às lacunas, e às distâncias entre os signos, à doença, de
tal modo, como afirma Foucault, que “o espaço do corpo e o espaço da
doença têm liberdade de se deslocar um com relação ao outro”. 8 A doença, com o novo olhar médico, ganha uma espacialização terciária, isto
é, ganha uma dimensão social, passa a ser o centro de estudos e de at uações políticas. 9 Antes tratada em casa, onde era seu lugar natural, com
a “doçura dos cuidados espontâneos”, a doença sofrerá uma intervenção
mais fria e inóspita, quando passa a ser tratada pelos hospitais, há uma
espécie de espacialização institucional da doença. 10
De outro lado, Foucault analisa o aparecimento do hospital como tecnologia médica e de medicina hospitalar, pois argumenta que antes do hospital se tornar, a partir do século XVIII, uma instituição destinada a correla7
FOUCAULT, Michel. Naissance de ..., p. VII. “Ce qui a changé, c’est la configuration sourde où le langage
prend appui, le rapport de situation et de posture entre ce qui parle et ce dont on parle.” [trad. br. O nascimento
..., p. IX.]
8
FOUCAULT, Michel. Naissance de ..., p. 8. “L’espace du corps et l’espace de la maladie ont l’atitude de
glisser l’un par rapport à l’autre.” [trad. br. O nascimento ..., p. 9.]
9
FOUCAULT, Michel. Naissance de ..., p. 15. “... la maladie est le lieu des dialectiques diverses: institutions
hétérogènes, décalages chronologiques, luttes politiques, revendications et utopies, contraintes économiques,
affrontements sociaux. En elle, tout un corps de pratiques et d’institutions médicales font jouer les spatialisations primaire et secondaire avec les formes d’un espace social dont la genèse, la structure et les lois sont de
nature différente. Et pourtant, ou plutôt pour cette raison même, elle est le point d’origine des mises en question les plus radicales. Il est arrivé qu’à partir d’elle, toute l’expérience médicale bascule et définisse pour ses
perceptions les plus concrètes des dimensions et un sol nouveaux.” [trad. br. O nascimento ..., p. 16. “... a
doença é, porém, o lugar de dialéticas diversas: instituições heterogêneas, decalagens cronológicas, lutas
políticas, reivindicações e utopias, pressões econômicas, afrontamentos sociais. Nela, todo um corpo de prát icas e instituições médicas articula as espacializações primária e secundária com as formas de um espaço social
de que a gênese, a estrutura e as leis são de natureza diferentes. A partir dela, a experiência médica oscilou e
definiu, para suas percepções, dimensões mais concretas e um novo solo.”]
10
FOUCAULT, Michel. Naissance de ..., p. 19. [trad. br. O nascimento ..., p. 21.]
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cionar doentes e ciência médica, num surgimento eminentemente terapêutico, o hospital era essencialmente uma instituição de assistência aos pobres,
uma “institucionalização da miséria”, uma forma de impedir que existissem
focos de desordem econômico e social11, e, especialmente, de separação e
exclusão social, pois o pobre portador de doença seria ainda mais perigoso,
estigmatizando-o, portanto, na sua condição de miséria. Tanto que os montanheses no período revolucionário empinavam seus gritos “não mais indigentes, não mais hospitais”12. Nesse sentido, o hospital já existia desde muito tempo, embora a medicina como ciência não estivesse presente ou fosse
nada mais que uma prática não hospitalar, e se destinava não como meio de
cura, haja vista que várias expedições de médicos a ordens dos imperadores
demonstravam que inúmeras vezes os hospitais mais produziam patologias
do que curas, mas como meio de assistir material e espiritualmente os pobres, numa espécie de último sacramento. Para ser possível o aparecimento
dessa concepção dos hospitais, resgata Foucault a existência dessas expedições, que através de seus inquéritos demonstraram a imensa relação entre o
olhar médico e os doentes, bem como entre estes e a arquitetura dos hospitais. Relocamentos entre doentes eram realizados, pois se percebiam que os
doentes hospitalizados por febre não poderiam ser dispostos nos mesmos
leitos dos acometidos por qualquer ferida, sob perigo de contágio, bem como não poderiam restar juntos parturientes e doentes com feridas, porque o
risco de mortalidade aumentava.
Mas antes de se operar essa mudança no olhar médico, e, sem dúvida
da medicina e das instituições, os hospitais representavam, nas argumentações do autor, verdadeiros lugares de mortes coletivas, "morredouros”13,
cujos leitos não eram tratados por médicos, mas por leigos, geralmente religiosos e caridosos, que buscavam ajudar aos doentes, isto é, pobres, a fim
de que obtivessem a salvação eterna. Resumia-se num lugar de transição
entre a vida e a morte, de separação entre a população e os indivíduos perigosos à saúde geral. Nessa vertente, permaneceram os hospitais, sobretudo
o Hospital Geral, até o século XVIII, como lugares de internamento, onde se
11
FOUCAULT, Michel. Naissance de ..., p. 15-16. “L’hôpital, comme la civilisation, est un lieu artificiel où
la maladie transplantée risque de perdre son visage essentiel. Elle y rencontre tout de suite une forme de complications que les médecins appellent fièvre des prisons ou des hôpitaux: asthénie musculaire, langue sèche,
saburale, visage plombé, peau collante, dévoiement digestif, urine pâle, oppression des voies respiratoires ...”
[trad. br. O nascimento ..., p. 17. “O hospital, como a civilização, é um lugar artificial em que a doença,
transplantada, corre o risco de perder seu aspecto essencial. Ela logo encontra nele um tipo de complicação
que os médicos chamam febre das prisões ou dos hospitais: astenia muscular, língua seca, saburra, rosto lívido, pele pegajosa, diarréia, urina descorada, opressão nas vias respiratórias.....”]
12
FOUCAULT, Michel. Naissance de ..., p. 66. “Plus d’indigents, plus d’hôpitaux” [trad. br. O nascimento
..., p. 75.]
13
FOUCAULT, Michel. Naissance de ..., p. 16. “Et puis, peut-on effacer les fâcheuses impressions que fait
sur un malade, arraché à sa famille, le spectacle de ces maisons qui ne sont pour beaucoup que ‘le temple de la
mort.’” [trad. br. O nascimento ..., p. 17. “... e, além disso, pode-se apagar as desagradáveis impressões que
causam ao doentes, afastado de sua família, o espetáculo dessas casas que não são para muitos senão ‘o te mplo da morte’.”]
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misturavam loucos, doentes, devassos, prostitutas, como forma de exclusão,
assistência e transformação espiritual. Os hospitais tinham, portanto, fundamental relevância para a disposição política do Estado, pois se tornavam
indispensáveis à estrutura social, como forma de proteção, “proteção das
pessoas sadias contra a doença; proteção dos doentes contra as práticas das
pessoas ignorantes.”14
Nessa perspectiva, a experiência hospitalar, como o conjunto de observações no interior do hospital para registrar as constâncias, as generalidades e os elementos particulares das doenças15, inexistia na formação do
médico, cujo ritual se restringia a uma simples leitura dos poucos livros e de
transmissão de receitas. Eis porque o momento da “crise” ou do “surto” era
de suma importância, pois era somente ali que o médico interferia sobre o
doente e a doença.
Estavam, portanto, apartados médico, hospital e medicina, e um dos
grandes fatores para a transformação dos hospitais como assistência para os
hospitais terapêuticos, não foi simplesmente a busca de uma melhora da
atuação dos hospitais, mas, sobretudo, a anulação dos efeitos negativos e
nocivos ao desenvolvimento de novas patologias16, bem como o controle da
desordem institucional e de ordem econômico-social. Tanto é evidente, que
destaca Foucault ter começado essa busca pela ordem hospitalar, surgindo
os primeiros regulamentos, justamente nos hospitais marítimos e militares17,
onde a desordem reinava, haja vista o tráfico de mercadorias trazidas das
colônias.
Com o surgimento de uma tecnologia política, denominada disciplina,
que Foucault mais tarde irá traçar, aparece, além de levar os hospitais para a
periferia dos centros urbanos a fim de isolar o nefasto aos olhos da população, a necessidade de existirem nos hospitais formas diferentes de rearranjo
estrutural, como leitos individuais, a fim de que o hospital se torne um meio
de intervenção sobre o doente. Surge, enfim, uma medicina que passa a atu-
14
FOUCAULT, Michel. Naissance de ..., p. 41. “Protection des gens sains contre la maladie; protection des
malades contre les pratiques des gens ignorants.” [trad. br. O nascimento ..., p. 45.]
15
FOUCAULT, Michel. Naissance de ..., p. 4. “La maladie est perçue fondamentalement dans un espace de
projection sans profondeur, et de coïncidence sans déroulement.” [trad. br. O nascimento ..., p. 4. “A doença é
percebida fundamentalmente em um espaço de projeção sem profundidade e de coincidência sem desenvolvimento.”]
16
FOUCAULT, Michel. Naissance de ..., p. 18. “L’hôpital, créateurs de la maladie par le domaine clos et
pestilentiel qu’il dessine, l’est une seconde fois dans l’espace social où il est placé.” [trad. br. O nascimento ...,
p. 20. “O hospital, criador de doença, pelo domínio fechado e pestilento que representa, também o é no espaço
social em que etá situado..”]
17
FOUCAULT, Michel. Naissance de ..., p. 57. “C’est dans les hôpitaux militaires que l’enseignement clinique fut d’abord organisé; le Règlement pour les hôpitaux établi en 1775 porte en son article XIII que chaque
année d’étude doit comprendre un ‘cours de pratique et clinique des principales maladies qui règnent parmi les
troupes dans les armées et garnisons’.” [trad. br. O nascimento ..., p. 64. “Foi nos hospitais militares que se
organizou primeiramente o ensino clínico; o regulamento para os hospitais estabelecidos em 1775 reza, em
seu art. XIII, que cada ano de estudo deve compreender um curso de prática e de clínica das principais doenças que reinam entre as tropas nos exércitos e guarnições..”]
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ar nos hospitais, pois o médico não era mais um simples religioso, mas o
ator principal da organização hospitalar. Os médicos passam a acompanhar
a vida dos doentes, e sua presença se afirma no cotidiano dos hospitais, antes destinadas aos abastados, quando íam pessoalmente às suas casas. Os
médicos ganham, enfim, uma dimensão institucional, e, por conseguinte,
política.18 Surgem junto com os médicos, em virtude de uma alteração na
medicina, uma nova hierarquia nos hospitais, compostas por enfermeiros,
alunos, assistentes, etc., bem como uma nova visão dos doentes, que passam a ser identificados por pulseiras, formam-se bancos de dados e registros, transformando o hospital, não em simples terapia, mas, sobretudo, em
cadastro documental, de acúmulo de saber e informação.
Nesse contexto, o saber médico sai dos artigos e grandes tratados para
fazer parte do dia-a-dia do hospital, e o ensino médico deve passar obrigatoriamente pelas práticas hospitalares, surgindo então a “clínica”, como espaço de organização do hospital e lugar de formação e transmissão de saber.19 A medicina, dentro de uma espaço hospitalar individualizado, que singulariza os doentes e as suas doenças, passa a auscultar, através do corpo
do doente, a doença, e leva o ensino dos bancos escolares ao cotidiano hospitalar, ao campo concreto20. A clínica passa a ser o elemento de acumulação
positiva, isto é o constante olhar sobre o doente, a atenção milenar 21; passa
a ser uma determinada maneira de dispor a verdade adquirida e apresentada, tornando o doente um caso, um caso a ser estudado; tornando-se, então, pedagógica, dizendo respeito à instrução dada pelos professores aos
alunos.22 A clínica, assim, estabelece um novo código de saber, não sendo
mais um mero olhar de um observador, mas o de um médico apoiado e justificado pela instituição, que passa a ter poder de decisão e intervenção.
Surge, desse modo, um novo olhar médico, um olhar clínico “como um
ato perceptivo subentendido por uma lógica das operações”, um olhar analítico, que abre cadáveres, uma nova observação clínica, uma anátomo-clínica
a partir de Bichat e Broussais no século XIX, conjugando um domínio hospi18
FOUCAULT, Michel. Naissance de ..., p. 33-34. “La première tâche du médecin est donc politique: la lutte
contre la maladie doit commencer par une guerre contre les mauvais gouvernements: l’homme ne sera totalement et définitivement guéri que s’il est d’abord libéré.” [trad. br. O nascimento ..., p. 37. “A primeira tarefa
do médico é, portanto, política: a luta contra a doença deve começar por uma guerra contra os maus governos;
o homem só será total e definitivamente curado se for primeiramente liberto....”]
19
FOUCAULT, Michel. Naissance de ..., p. 31. “Le lieu où se forme le savoir, ce n’est plus ce jardin pathologique où Dieu avait distribué les espèces, c’est une conscience médicale généralisée, diffuse dans l’espace et
dans le temps, ouverte et mobile, liée à chaque existence individuelle, mais aussi bien à la vie collective de la
nation, toujours éveillée sur le domaine indéfini où le mal trahit, sous ses aspects divers, sa grande forme
massive.” [trad. br. O nascimento ..., p. 35. “O lugar em que se forma o saber não é mais o jardim patológico
em que Deus distribui as espécies; é uma consciência médica generalizada, difusa no espaço e no tempo,
aberta e móvel, ligada a cada existência individual, mas também à vida coletiva da nação, sempre atenta ao
domínio indefinido em que o mal trai, sob seus aspectos diversos, sua grande forma.”]
20
FOUCAULT, Michel. Naissance de ..., p. 68. [trad. br. O nascimento ..., p. 77.]
21
FOUCAULT, Michel. Naissance de ..., p. 53. [trad. br. O nascimento ..., p. 59.]
22
FOUCAULT, Michel. Naissance de ..., p. 60. [trad. br. O nascimento ..., p. 68.]
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talar, da prática, e um domínio pedagógico, do conhecimento23; um olhar
que escuta e um olhar que fala, permitindo um equilíbrio entre a palavra e o
espetáculo24; surge, enfim, uma nova epistemologia da doença, uma nova
análise do visível e do invisível, uma nova luminosidade, que permitiu a formação de uma medicina clínica, e, portanto, de uma importante disposição
do saber.25
Guilherme Roman Borges
Advogado, doutorando e mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito na USP; mestre em
Sociologia do Direito e bacharel na UFPR, foi bolsista doutoral anual na Sholé Anthropístikon kai Koinonikon Epistémon–Tméma Philosophías–Panepstímio Pátron–Elleniké
Demokratía (Faculdade de Filosofia da Universidade de Patras-Grécia);
professor de Economia na Universidade Positivo
23
FOUCAULT, Michel. Naissance de ..., p. 111. “Il n’y a donc pas de différence de nature entre la clinique
comme science et la clinique comme pédagogie.” [trad. br. O nascimento ..., p. 125. “Não existe, portanto,
diferença de natureza entre a clínica como ciência e a clínica como pedagogia .”]
24
FOUCAULT, Michel. Naissance de ..., p. 116. [trad. br. O nascimento ..., p. 131.]
25
FOUCAULT, Michel. Naissance de ..., p. 202. [trad. br. O nascimento ..., p. 229.]
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